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Sobre a tradução:

A tradução dos três primeiros cantos e do canto 45, realizada por Gerardo Mello
Mourão em homenagem aos 100 anos de nascimento de Ezra Pound, foi retirada do
Caderno RioArte, Ano 1 – N° 4, 1985, formato grande, 118 páginas, papel suntuoso,
bela diagramação, fotos e desenhos admiráveis e artigos dos maiores especialistas da
obra poundiana: T. S. Eliot, E. E. Cummings, Jorge Luís Borges, Windham Lewis, Stephen
G. Nichols Jr., Piero Bigongiari, Mathurin Dondo, William Carlos Williams, Marianne
Moore, Eva Hesse, Lawrence W. Chisolm, Guy Davenport, Hugh Kenner e outros. O
poeta Gerardo Mello Mourão foi o diretor da publicação, na época presidente do
Instituto Municipal de Arte e Cultura do Rio. Como disse o Jaguar em O Pasquim,
sobre esta edição especial: “Que pena que não haja mais loucos do tipo dele para dar
aos leitores brasileiros preciosidades como esta. É o caso de comprar 2 exemplares, um
para ler e outro para embrulhar direitinho e guardar avaramente. Porque depois desta,
meus filhos, nunca mais.”

Epígrafe:
Em 1964, o grupo a que me incorporei, da Escola
de Arquitetura da Universidade de Valparaíso,
coordenou uma tradução dos Cantos, da qual se
fez uma edição privada para os alunos. Nessa
tradução trabalharam Winston Wilkins, Jorge
Sánchez, Cláudio Girola, Alberto Vial e Juan
Purcell. O texto é enriquecido por notas de
Cláudio Girola. Em grande parte a presente
tradução, feita diretamente do texto inglês da
edição Faber & Faber — Londres, 1954 —
acompanha a versão chilena, resultante de
minuciosas consultas pessoais ao próprio Pound.
— G. M. M.

Os Cantares
Ezra Pound
Tradução: G. M. M.

CANTO 1
E então fomos descendo para o barco,
De quilha a talhamar, rumamos para o deus marinho,
Içamos mastro e vela sobre aquela negra nave,
Embarcamos uma carga de ovelhas e a carga de nossos corpos
Pesados de ir chorando, e assim ventos de popa
Avançaram conosco mar afora, as lonas inchadas,
Artes de Circe, a deusa de belo penteado.
Sentamo-nos então no meio do barco, a cana do leme à mercê do vento
Assim, de velas pandas, cortamos o mar até o fim do dia,
10 Sol por adormecer, no mar inteiro sombras
Das profundíssimas águas ao limite então chegamos,
Aos países cimérios e às cidades povoadas
Cobertas de espessa névoa, nunca atravessada
Pelo clarão dos raios do Sol
Nem ao fulgor das estrelas nem ao crepúsculo
Ali, sobre os desventurados homens a noite profundíssima.
Recuava o mar e então chegamos ao sítio
Predito por Circe.
Aqui cumpriram ritos, Perimedes e Euríloco
20 E sacando a espada da cintura
Cavei a cova de um côvado quadrado
Vertemos libações por cada um dos mortos
Primeiro hidromel, depois vinho doce, água com farinha branca.
Então rezei várias orações às lívidas cabeças mortas;
Como se dispôs e, Ítaca, touros estéreis, dos melhores,
Para o sacrifício, coberta a pira de oblações,
Só para Tirésias um carneiro, um carneiro negro com seu cincerro,
Sangue escuro escorreu na cova
Almas saídas do Erebo, corpos cadavéricos, de noivas
30 De jovens e de velhos que tinham suportado tudo;
Almas banhadas de lágrimas recentes, meninas ternas,
Homens, muitos, feridos por lanças de ponta de bronze
Despojos de batalha, de armas ainda ensangüentadas,
Esses, que eram muitos, juntaram-se ao redor de mim, clamando,
Pálido gritei a meus homens por mais animais;
Degolei os rebanhos, carneiros a golpes de bronze;
Derramei ungüentos, clamei aos deuses,
A Plutão, o forte, e entoei loas a Proserpina,
Desembainhei a fina espada,
40 Sentei-me para afastar os impetuosos impotentes mortos
Até poder ouvir Tirésias,
Mas veio primeiro Elpenor, Elpenor nosso amigo
Insepulto, estendido no vasto chão,
Membros que deixáramos na casa de Circe,
Sem lágrima, sem sudários, sem sepulcros, outros trabalhos urgiam,
A alma alanceada. E eu gritei sem me conter:
“Elpenor, como viste dar nesta escura praia?
Vieste a pé, mais veloz que os marinheiros?”
E ele num tom grave:
50 “Pouca sorte e muito vinho. Adormeci nas virilhas de Circe.
Despencando pela longa escada sem corrimão
Caí nos contrafortes,
Partindo o nervo da cerviz, foi-se a alma ao Averno.
Mas a ti, ó rei, eu peço: lembra-te de mim — não morto nem sepulto,
Junta as minhas armas em túmulo na praia, com uma inscrição:
UM HOMEM SEM FORTUNA, AMANHÃ UM NOME
E planta meu remo com que entre os meus companheiros eu remei”
E veio Anticléia e eu o repeli, e veio então Tirésias, tendo,
Na mão sua vara dourada, me conheceu, e falou primeiro:
60 “Pela segunda vez? Por quê? homem desastrado,
Fitando os mortos sem sol nesta região desolada?
Sai do fosso, deixa-me com minha taça de sangue
Para os augúrios.”
E eu dei um passo atrás
E ele, com o vigor do sangue bebido, disse então: “Odisseu,
Voltará por Netuno rancoroso, por negros mares
Perderá os companheiros todos”. E aí veio Anticléia.
Quieto, Divus. Digo Andréas Divus
In officina Wecheli, 1538, vindo de Homero.
70 E velejou perto das Sereias, dali partiu-se, longe
E até Circe.
Venerandam,
Na frase do Cretense, com a coroa de ouro, Afrodite,
Cypri munimenta sortita est, jubilosa, oricalchi, com dourados
Cinturões e faixas nos seios, tu, com tuas pálpebras escuras,
Levando o ramo dourado do Argicida. E assim:

CANTO 2
Nada disso, Robert Browning,
não pode haver senão um único “Sordello”.
Mas Sordello, e o meu Sordello?
80 Lo Sordels si fo di Mantovana.
So-shu agitou o mar
Salta uma foca no alvor das falésias espumosas,
Cabeça lisa, filha de Lir
olhos de Picasso
Sob negra coifa de peles, ágil filha do Oceano;
E a vaga corre pelo sulco da praia:
“Eleanor ἑλέναυς e ἑλέπτολις!“
E o pobre velho Homero cego, cego como um morcego,
Ouvido, ouvido para o rumor das ondas, murmúrios de vozes de velhos:
90 “Deixa-a voltar para os navios
Voltar aos rostos gregos, antes que uma desgraça caia sobre nós,
Desgraça e mais desgraça e praga praguejada contra nossos filhos,
Ela se move, sim, move-se como uma deusa,
E tem o rosto de um deus
e a voz das filhas de Schoeney,
E a ruína caminha a seu lado.
Deixai-a voltar aos navios,
voltar para entre as vozes da Grécia.”
E lá, à beira-mar, Tiro
100 Torcidos braços do deus-mar,
Ágeis tendões de água, agarrando-a, abraçam
E a lâmina azul cinéria da onda os veste
Água de claro azul celeste ao se quebrar ergue seu pálio
Doce praia dourada de sol.
As gaivotas abrem as asas
beliscando entre as penas tensas
As narcejas chegam para o banho
desdobram as junturas das asas
Estendem asas molhadas para o sol suas películas
110 E por Chios,
à esquerda do estreito de Naxos
Naviforme rochedo exuberante
Algas aderem-se ao seu casco
Há um fosforescer vermelho-vinho nos baixios,
um relâmpago de lata no ofuscante sol.
O barco encostou em Chios
aos homens faltando água de nascente,
E junto a uma lagoa entre rochas um adolescente na modorra do vinho
“Para Naxos?” “Sim, nós te levamos a Naxos,
120 Vem conosco, rapaz.” “Não é por aí!”
“Ora, para Naxos é por aqui mesmo.”
“E eu disse: ‘este é um barco honrado’.”
E um ex-presidiário da Itália
Me empurrou pela estai da vante,
(Estava sendo procurado por homicídio na Toscana)
E os vinte todos contra mim,
Loucos pelo pouco dinheiro dado por escravos.
E levaram o barco de Chio
E fora de rumo...
130 E o rapaz reanimou-se, de novo, com a gritaria
E olhou por cima da proa
E para o leste e para o Estreito de Naxos.
Estratagema de Deus, então, estratagema de Deus:
Barco encalhado no redemoinho
Hera sobre os remos, rei Pentheu,
uvas sem outra semente senão a espuma do mar
Hera nas vigias.
Sim, eu, Acetes, estive ali,
e o deus estava ao meu lado,
140 Água cortando-se sob a quilha
Singradura em frente, desde a popa
da proa correndo a esteira
E onde havia casco, agora há cepa de videira
E sarmento onde houvera enxárcia
folhas de parreira nas toleteiras
Pesado pâmpano na haste dos remos
E, de nada, um hálito
calor de um hálito em meus tornozelos,
Animais como sombras no vidro
150 uma peluda cauda sobre o nada
Rosnar de lince e um pantanoso odor de feras
em que havia cheiro de pez
Farejar e rastejar de feras,
centelha de olho desde o negro ar
O céu aberto, enxuto sem qualquer tempestade,
Farejar e rastejar de feras
pelos roçando pele de meus joelhos
Crepitar de espigas no ar
formas secas no éter.
160 E o barco como uma quilha no estaleiro
pendurado como um boi no guindaste.
Baliza encalhada na rota
cachos de uvas nos ganchos,
vácuo de ar enchendo o couro.
Ar sem vida adquirindo nervos,
ócio felino de panteras,
Leopardos farejando brotos de videira nas escotilhas,
Panteras agachadas na vigia da proa
E à nossa volta o mar azul-profundo
170 verde-avermelhado em sombras,
E Lyeus: “desde agora, Acetes, meus altares,
Sem temor a qualquer escravidão,
Sem medo dos felinos selvagens
A salvo com meus linces,
Cevando com uvas meus leopardos,
Olíbano é meu incenso,
as videiras crescem em meu louvor.”
Ondas de volta agora mansas nos cabos do leme
Negro focinho de um porco marinho
180 onde Lycabs tinha estado
Escamas de peixe sobre os remeiros.
E eu adoro.
Eu vi o que vi.
Quando trouxeram o rapaz eu disse:
“Ele tem um deus dentro de si,
embora eu não saiba que deus.”
e eles me empurraram para os estais de vante,
Eu vi o que vi:
A cara de Médon como a cabeça de um peixe-galo
190 Braços reduzidos a barbatanas. E tu, Penteu,
Bem farias em ouvir a Tirésias e a Cadmus,
do contrário a sorte te abandonará.
Escamas de peixe nos músculos das virilhas,
rosnar de lince pelo mar...
E anos depois
pálida nas algas vermelho-vinho,
Se te inclinares sobre a rocha,
a face de coral entre a tinta da onda,
Palidez de rosa ao vaivém das águas,
200 Eleutéria, clara Dafne de litorais,
Os braços de nadadora feito ramas,
Quem dirá em que ano,
fugindo de que bando de tritões,
A lisa testa vista e entrevista,
agora ebúrnea placidez.
E So-shu agitou o mar, So-shu também,
usando por bastão a longa lua...
Ágil redemoinho de água
tendões de Poseidon,
210 Negro azulado e hialino,
onda de vidro sobre Tiro,
Cerrada coberta, inquietude,
coruscante rodopio do cordão das ondas,
Depois água quieta,
quieta na areia alaranjada,
Aves marinhas estirando junturas de asas
chapinhando em poças na rocha e poças na areia
Ao vaivém de ondas pelas pequenas dunas;
Reflexo de vidro da onda na arrancada de marés contra luz do sol
220 palor de Héspero,
Crista cinza da onda
onda, cor de polpa de uva,
Cinza-oliva perto,
longe cinza-fumo do talude da rocha,
Rosa-salmão das asas do falcão do mar
matizam sombras cinzentas sobre a água
A torre como um grande ganso de um só olho
alonga-se por cima do olivedo,
E ouvimos os faunos resmungando a Proteu
230 no cheiro de feno sob as oliveiras,
E as rãs cantando contra os faunos
à meia-luz.
E...

CANTO 3

Sentei-me nos degraus da Dogana


Pois as gôndolas estavam muito caras naquele ano
E não havia “aquelas moças”, havia um rosto,
E o Buccentoro a vinte jardas, gritando “Stretti”,
E as traves iluminadas, aquele ano, no Morosini
E pavões, quem sabe, na casa de Koré
240 Deuses flutuam no ar azul-celeste,
Deuses brilham e toscanos, de volta antes que caia o orvalho.
Luz: e a primeira luz antes de cair o orvalho
E Pans e Pans, e do carvalho, dríade,
E da maçã melíade
Por todo o bosque e as folhas estão cheias de vozes,
Em sussurros, e as nuvens se inclinam sobre o lago
E há deuses sobre elas,
E na água, a nadadora de alvor de amêndoas
A água de prata cristaliza erectos bicos de seios
250 Como Poggio assinalou.
Veias verdes na turquesa.
Ou: os cinzentos degraus sobem entre os cedros.

Meu Cid cavalgou até Burgos


Subiu até o portão tauxiado entre duas torres,
Golpeou com o cabo da lança e a menina saiu
Una niña de nueve años,
Na pequena galeria sobre o portão, entre as torres,
Lendo o decreto voce tinnula:
Que homem algum fale, alimente, ajude a Ruy Diaz,
260 Sob a pena de ser-lhe arrancado o coração e espetado numa estaca
E seus dois olhos arrancados, e todos os seus bens seqüestrados,
“E aqui, Myo Cid, estão os selos,
O grande selo e o decreto.”
E ele desceu de Bivar, Myo Cid,
Sem falcões deixados lá em suas alcandoras
Nem roupas nos armários,
E deixou sua arca com Raquel e Vidas,
Aquele grande baú de areia, com os agiotas,
Para arranjar soldo para sua tropa;
270 Abrindo caminho para Valencia.
Inês de Castro assassinada e um muro
Aqui desmantelado, aqui sustentado de pé.
Lúgubre ruína, o pigmento se esfarela da pedra,
Ou o estoque se esfarela, Mantegna pintou a parede.
Trapos de seda, “Nec Spe Nec Metu”.

CANTO 45

Com Usura
com usura homem nenhum tem uma casa de boa pedra
cada bloco talhado liso e perfeito
que o risco possa cobrir sua aparência,
com usura
homem nenhum tem um paraíso pintado na parede de sua igreja
harpes et luthes
ou onde a virgem receba a anunciação
e uma auréola se erga do entalhe,
com usura
nenhum homem contempla Gonzaga seus herdeiros e concubinas
nenhuma pintura é feita para durar e viver conosco
só é feita para vender e vender depressa
com usura, pecado contra a natureza,
teu pão é cada vez mais feito de restos duros
teu pão é seco como papel
sem trigo da serra, sem farinha nova
com usura o risco se torna grosseiro
com usura não há nítida demarcação
e homem nenhum pode encontrar sítio para sua morada.
O canteiro que lavra a pedra é separado de sua pedra
o tecelão é separado do seu tear
COM USURA
não chega lã no mercado
a ovelha não dá lucro com usura
a usura é uma praga, a usura
entorpece a agulha nas mãos da rapariga
e embota a perícia da fiandeira. Pietro Lombardo
não apareceu da usura
Duccio não apareceu da usura
nem Pier della Francesca; Zuan Bellini não veio da usura
nem “La Calunnia” foi pintada pela usura.
Da usura não veio Angélico; não veio Ambrogio Praedis,
não apareceu nenhuma igreja de pedra lavrada, com a inscrição
Adamo me fecit.
Pela usura não havia St. Trophime
pela usura não havia Saint Hilaire,
a usura enferruja o cinzel
enferruja a arte e o artesão
ela rói o fio no tear
com ela ninguém aprende a bordar o ouro no bastidor;
o azul contrai câncer pela usura; o carmesim não é bordado
a esmeralda não encontra um Memling
usura mata a criança no útero
o rapaz desaprende o galanteio
a usura traz impotência na cama, instala-se
entre o jovem noivo e a noiva
CONTRA NATURAM
Trouxeram putas para Elêusis
meteram cadáveres no banquete
a mando da usura.

NOTAS - CANTOS I, II E III

CANTO I
Versos 1-67
Esta passagem do poema homérico foi traduzida para o inglês pelo próprio Pound e intercalada
posteriormente em seus “Cantos”.

Ver: “Odisséia, rapsódia XI, 1-40.

Versos 68-70
“...no ano da graça de 1906, 1908 ou 1910, levei comigo para minha casa, desde as margens do
Sena, uma versão latina da Odisséia, traduzida por Andrea Divus Justinopolinatus (Parisiis, In
Officina Christiani Wecheli, MDXXXVIII) em um volume que continha ainda a “Batramiomaquia”
traduzida por Aldo Manuzio e os “Hymni Deorum” traduzidos para o latim por Georgius Dartona
Cretensis...”
“Ensaios literários de E. P.” (Ed. Garzanti, Itália 1957) pág. 332.

Versos 72-76
Adaptação do “Il Himno a Afrodita” de Homero, segundo a versão latina aludida na citação
anterior de E. P.
Hugh Kenner disse em seu Apêndice n.° 2 que é possível fazer uma introdução ao canto 1 em
vários níveis e deles distingue três: um primeiro, cultural; um segundo, que se refere a própria
pessoa do poeta e um terceiro, em relação ao sentido que adquire aqui o descenso ao Averno e a
invocação a Tirésias. Kenner menciona uma citação do próprio Pound para ilustrar a possível
introdução em um nível cultural: “... em qualquer caso a cultura clássica do Renascimento esteve
inserida na cultura medieval. Este processo está excelentemente ilustrado pela tradução da
Odisséia para o latim por Andreas Divus Justinopolinatus... (“Make it New”. Yale Univ. Press. New
Haven, 1935). Para o segundo nível, aquele onde é possível fazer referência à pessoa do poeta,
Kenner disse que se ponde pensar “no poeta como Odisseu, que viu as cidades populares e
conheceu suas maneiras”, sofreu muitos azares no alto mar, em sua luta por preservar sua vida e
trazer seus companheiros a salvo, apesar de seus esforços. O pecado deles levou-os à sua própria
ruína, pois em sua loucura devoraram o Hipérion Hélios e o deus se encarregou de que eles jamais
retornassem. Em certo sentido se poderia dizer que a medula do canto é a vidência de Odisseus,
como no “Waste Land” de Eliot é a vidência de Tirésias. Só que no poema de Elior, Tirésias possui
uma pura capacidade de ação psíquica, de movimentos de fascinação, reação ou purificação; ao
contrário, Odisseus é imaginativo, fértil em estratagemas, comprometido ativamente em melhorar
as condições para ele mesmo e seus companheiros, envolto como protagonista fático do que ele
vê...” Para o terceiro nível, ou seja para o significado que adquire no contexto do poema, o
descenso ao Averno e a invocação a Tirésias, Kenner propõe esta análise: “A visita aos mortos é
indispensável prólogo do retorno a casa. Como invocação à sabedoria e à inteligência
enciclopédica, como ritual para forçar a inteligibilidade a partir dos acontecimentos, como por
exemplo o episódio de Elpenor, símbolo da piedade para com os precursores e os companheiros
idos. É sintomático comparar a morte de Elpenor com aquela outra que sucede em “Mauberley”
de Lionel Johnson: “Por cair de um andar alto de um bar”. A homenagem de Pound a Johnson
(“Junta meus remos, haja túmulos” ... etc.) consistiu em recompilar-lhe as obras e a inscrição do
verso 56 “Um homem sem fortuna e com um nome por vir” tem sua contrapartida no prefácio que
Pound fez para as obras de Johnson”.
“The Poetry of Ezra Pound” (Ed. Faberand Faber, London 1954)
Acreditamos ser conveniente traduzir um trecho do prefácio que E. P. dedica a Lionel Johnson;
pois que ao modo de extensão à introdução que faz Kenner, ali se encontra uma definição da
tentativa poética gerada pelo movimento “imagista”, do qual E. P. foi um dos fundadores.
“...eu creio que o encargo de escrever este prefácio foi confiado a mim, antes de mais nada
porque é sabido que tenho certas teorias que alguns tomam por covas e que muitos as sabem
hostis à grande parte daquilo que até hoje foi aceito como “clássico” na poesia inglesa. Respeito a
Dante, Villon e Catulo, porém por Milton e o Vitorianismo, pelo efeminamento do decênio
1890-1900 sinto diversos graus de antipatia e até de desprezo. Creio que Mrs. Elkin Mathews quis
ter uma prova decisiva sobre o respeito de uma geração por Lionel Johnson, mais ainda, por um
grupo de poetas jovens que consideram ridículo a maioria das coisas de seu tempo. É bom dizer
desde já que não é possível demonstrar que a poesia de Lionel Johnson esteja em harmonia com
nossas teorias atuais e com nossas ambições. Sua linguagem é um dialeto livresco, ou melhor
dizendo, não um dialeto mas uma linguagem curial, e nossa finalidade é a de uma linguagem
natural, a de uma linguagem falada. Queremos que a palavra poética siga a ordem natural da fala.
Não escreveremos nada que não possamos dizer efetivamente na vida, sob o estímulo de uma
emoção. A poesia de Johnson está cheia de inversões porém ninguém em sua época escreveu um
“imagismo” mais puro que seu “Imagismo” do verso: “Clear lie the fields, and fade into blue air”.
Ensayos Literarios de E. P. (Ed. Garzanti, Itália 1957).
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CANTO II
Versos 77-78
Robert Browning, poeta inglês da época vitoriana. Nasce em Camberwell no ano de 1812 e morre
em Veneza ao ano de 1899. Suas obras mais destacadas são: “Paracelsus”, “Dramatis Personae” e
“Sordello”. Importantes são também suas traduções para o inglês de alguns autores gregos e
certos poetas provençais. “Do bimestre janeiro/fevereiro do ano 1919, citamos um trecho
pertencente ao ensaio de E. P. sobre “traduções de Ésquilo”: ... Browning se revela poeta em
alguns versos como “Dust, mut’s thirsty brother” (pó, sedento irmão do lodo). Admito que o verso
pode aparecer como algo um tanto fácil, talvez seja assim mas é Inglês, ainda que seja o peculiar
inglês de Browning; assim como, por outro lado “dust, of mud brother thirsty” não seria inglês de
modo algum. E se tratei com extrema severidade a primeira passagem citada não se pode negar
que li Browning de cima para baixo durante dezessete anos, com grande prazer e admiração e sou
uma das poucas pessoas que sabem tudo quanto diz respeito a seu “Sordello”.
cf. “The egoist”, VI, 1.
“Dante e Browning têm suscitado e provocado tal interesse por Sordello de Goito que não é
inoportuno transcrever a breve nota biográfica que sobre ele aparece em um manuscrito da
Ambrosiana de Milão, cujo cabeçário ou “razó” diz assim: “Lo Sordels se fo di Mantovana”.
cf. “Literary Essays of E. P.” (Faber and Faber London MCMLIV) do ensaio sobre “Trobadours Their
Sorts and Conditions”.
“Da personalidade de Sordello de Goito (nasce em torno de 1200, morre depois de 1269) temos
três imagens. A primeira é a de seu antigo biógrafo que o representa como homem gentil e de boa
aparência, bom cantor, bom trovador e grande boêmio, ainda que “mont truans e fals vas domnas
e vas los barons ab cui el estava”. Raptor — pela vontade de Ezzelino — de Cunizza da Romano,
irmão de Alberico e Ezzelino, mulher do conde de São Bonifácio e depois sedutor de Otta de
Estrasso, suscitando iras e desejos de vingança, teve que abandonar a risonha Marca de Trevisso e
ir embora para Provença onde se alojou na corte do conde Rámon Berenguer IV e amou uma bela
provençal para quem compôs, segundo disse o mesmo biográfico, muitas boas canções sob o
‘senhal’ de doce inimiga” Um aventureiro, em poucas palavras, o Sordello retratado pelo antigo
biógrafo, como muitos outros que pertenceram ao mundo da truanice, da “boemia” trovadoresca.
A segunda imagem do Sordello é a que nos oferecem dois solenes documentos. Um deles é o
“Breve” de 22 de fevereiro de 1261 em que o Papa Clemente IV reprovava a Carlos de Anjou —
que havia conquistado o Reino de Sicília e Puglia — sua inaptidão para com os barões provençais
que lhe haviam ajudado na empresa. Entre estes, que pelo egoísmo de Carlos de Anjou haviam
acabado em asilos para mendigos, o Pontífice recorda também Sordello: “Languesce, em Novara,
Sordello, tu “cavaleiro”, o que te conviria adquirir se já não te tivesse feito bons serviços mas não
readquiri-los pelos serviços que te fez”. Outro documento é a carta de 5 de março de 1269 com
que Carlos de Anjou concede como feudo a Sordello de Goito “seu amado cavaleiro familiar e fiel”
alguns castelos nos Abruzzos, para justificar sua generosidade Carlos de Anjou fala dos grandes,
gratos e caros serviços de Sordello. Por estes autênticos testemunhos conhecemos um Sordello
que depois de sua ida a Provença, no início da corte de Rámon de Berenguer e mais tarde no
séquito do genro deste, Carlos de Anjou, chegou a ser um personagem de primeiro plano; o que
nos é confirmado pelo fato de que o nome de Sordello, sempre precedido da qualificação
“Dominus” aparece em muitos documentos solenes da corte do conde de Provença. A terceira
imagem é a grandiosa representação que Dante fez de nosso trovador no Canto VI do
“Purgatório”, V. 58-75 onde Sordello como escreveu Novati “na alta beira do Ante-Purgatório,
desdenhoso e imóvel sua arrogante atitude... se nos aparece como o homem no qual o poeta quis
encarnar, o mais sublime dos afetos humanos... o amor à pátria”. Entre a primeira e a terceira
destas imagens há um forte contraste, muito diferente do exímio cidadão representado por Dante
e o Sordello falso que corre atrás das mulheres e dos nobres pronto a realizar os mais baixos
serviços para Ezzelino tal como ele nos é retratado pelo antigo biógrafo, cuja história parece
confirmada pelas violentas invectivas que contra o trovador dirigem os poetas rivais. Entre as duas
imagens porém medeia a que nos oferece o breve (decreto) apostólico e a carta real; as quais nos
informam que Sordello não se deteve nas loucuras e misérias de sua juventude senão que chegou
a ser na Provença um cavaleiro nobre e austero, familiar e conselheiro de príncipes e grande
senhor, até o ponto de justificar completamente o juízo de Dante. E sua obra poética — quarenta
e cinco composições líricas e um breve poema didático, o “Ensehamen d’onor” — tem um tom
nobre e elevado, ou seja, que fica longe do espírito despreocupado da juventude do poeta...”
“Nascido possivelmente, da leitura de Dante, “Sordello” é com “Paracelsus” e “Paulina”, o terceiro
de um grupo de poemas que expressam perplexidade, as provas, os erros e a salvação final de seu
espírito superior, de um gênio que vive entre os perigos e as tentações do mundo. A Sordello,
poeta do século XIII se lhe faz viver aqui na aura de seu tempo e entre as lutas de guelfos e
gibelinos. Ezzelino, senhor de Vicenza, fora desterrado de sua cidade. Sua mulher, Adelaida e um
filho de tenra idade, são salvos pelo arqueiro El Corte. Também Retrude, mulher de Salimguerra,
aliado de Ezzelino é salva porém morre ao dar a luz a Sordello. Adelaida, para evitar futuras
disputas com seu filho faz com que Sordello passe por filho de El Corte e o educa como pajem em
seu castelo de Goito. Sordello revela-se dotado de imaginação poética e sua vida se faz cada vez
mais irreal e mais distante das coisas que lhe rodeiam. Poeta, triunfa sobre o trovador Eglamour.
Entretanto, durante uma crise das lutas políticas se descobre que Sordello é filho de Salimguerra e
que o poder e o mando são seus, se ele os quiser. Apesar de seu amor pela bela Palma, filha de
Ezzelino, e dos conselhos de seu pai que lhe incita a ceder e escolher uma vida ativa, inferior à vida
com que sonha, Sordello não sabe decidir-se senão quando está próximo da morte, a abandonar
seu elevado ideal de vida espiritual. Morre, em luta interior, em conflito entre suas idéias
filosóficas e poéticas com as práticas que se lhe impõem e que lhe sufocam, carregado de
doutrinas. O poema é um dos mais difíceis entre todos os de Browning, por uma obscuridade que
deriva em grande parte de uma auto-análise refinada até o hermetismo.”

Verso 81
So-shu; Imperador da China.

Verso 83
“... à Deusa Danun estava unido por laços de parentesco o deus Lyr ou Lyr ou Ler, nome que
provavelmente designa um Oceano.”
cf. “Mitologia Universal Ilustrada” (Ed. Joquín Gil, Bs. As. 1960) Cap. Mitologia Céltica, pág. 205.
Verso 87
Alienor ou Leonor de Aquitânia, rainha da França e depois rainha da Inglaterra. Filha de Guilherme
X e neta de Guilherme IX de Poitiers, senhor feudal e trovador. Nasce no ano de 1122 e morre na
abadia de Fontevrault no ano 1204. Casa-se com Luís VII, o jovem, rei da França no ano de 1137.
Deste matrimônio tem duas filhas: Maria de Champagne e Alix Blois. No ano de 1152 Luís VII pede
a nulidade de seu matrimônio e a obtém no concílio de Beaugency. Alienor se casa dois meses
depois de espedido o decreto de nulidade, com Henrique Plantagenet, posteriormente Henrique II
rei da Inglaterra. Deste matrimônio nascem quatro filhos: Henrique, o Jovem, Godofredo de
Bretanha, Ricardo Coração de Leão e João Sem Terra e uma filha, Alienor, rainha de Castela. “O
abade de Saint-Denis (Surger) continuava dirigindo os negócios correntes do reino; nas questões
de alta política, porém, tinha o rei um conselheiro a quem se reconhecia incapaz de resistir. Sua
jovem esposa, Alienor, lhe inspirava uma ternura apaixonada e ciumenta, quase “imoderada”
(“amore inmoderato”, segundo a frase de João de Salisbury em “Historias pontificalis”). A rainha
acostumada à vida fácil das cortes do Sul da França, amiga da poesia e dos poetas, sensual, com
outras tantas damas divinizadas pelos trovadores, nunca encontrou entre as tradições de sua
família o respeito ao clero e às coisas santas. Seu avô, Guilherme IX zombava com freqüência dos
clérigos e resistiu abertamente à vontade dos papas. Seu pai Guilherme X havia sido adversário de
Inocêncio III e São Bernardo. Alienor arrastou pouco a pouco seu marido para ousadias
inesperadas por parte daquele antigo aluno do claustro de Nossa Senhora”
cf. “Historia General de Francia” E. Lavisse. (Ed. Española 1910. Madrid). Tomo II, pág. 3.
“Foi a queda de Edesa o que determina a segunda cruzada. O piedoso Luís VII tomou a iniciativa
desde 1145 e foi pregada por São Bernardo na França e na Alemanha, em meio a grande
entusiasmo. O imperador Conrad partiu em maio de 1147 e Luís VII, acompanhado de sua esposa
Alienor, no mês seguinte. Desde o início até o fim, esta empresa é esterilizada pelas dissenções
entre os cristãos, desavenças antigas entre o imperador e o rei da Sicília, Rogélio II; rivalidade
entre este que reivindicava o principado de Antióquia, e Raimundo de Poitiers, que o possuía e
queria guardá-lo; quere-las entre os cruzados alemães e franceses, egoísmo do imperador
bizantino Manuel Comnéne e ódio entre gregos e latinos, ciúmes entre barões cristãos da Terra
Santa e entre eles e os cruzados. Por temor à ambição de Rogélio II, que ofereceu navios a Luís VII,
a via terrestre foi escolhida; alemães e franceses passaram sucessivamente por Constantinopla.
Desperta assim a pretensão de Manoel Comnéne: acreditando que os cruzados lhe tirariam as
castanhas do fogo, reclama antecipadamente a soberania das terras que vão conquistar nas
antigas possessões do Império Romano. O orgulhoso imperador Conrad nada fez para conciliar-se
com o imperador de Bizâncio. Os gregos e os cruzados, fossem “estes alemães ou franceses, se
exasperam mutuamente”. Pouco faltou para que Constantinopla não fosse tomada de assalto por
parte dos ocidentais. Durante toda a campanha da Ásia, os cruzados não puderam obter dos
gregos mais do que um apoio intermitente interrompido pelas traições, um abastecimento
insuficiente e transportes incompletos. Conrad, esperando obter somente sucessos decisivos,
passou para a Ásia sem esperar os franceses e fez assim exterminar a maior parte de seu exército
pelos turcos, perto de Dorilia em 26 de Outubro de 1147. Luís VII, durante a primeira parte da
expedição mostra-se prudente e valoroso, chegando com sua cavalaria quase intacta em Atióquia
(Março de 1148). Porém, em seguida, comete erro atrás de erro. O príncipe de Antióquia,
Raimundo de Poitiers, tio de Alienor lhe propõe aproveitar-se do terror dos turcos pela chegada de
tão brilhante exército e destruir o império fundado por Zengy. Luís VII, antes, quer fazer uma
peregrinação a Jerusalém e rechaça a idéia de Raimundo. Este, que era um cavaleiro sedutor, bem
falante e rancoroso de caráter, se vinga de Luís VII; sabemos de que maneira. Alienor se deixa
cortejar por ele. Quer permanecer em Antióquia e divorcia-se imediatamente de Luís VII, porém
uma noite este a rapta e a leva para a Palestina. Ali reencontra Conrad. Havendo fracassado em
suas empresas (julho de 1148), Conrad embarca em 8 de Setembro e Luís VII, depois de passar as
festas de Páscoa em Jerusalém, volta à França, chamado por Surger, passando por Roma, onde o
Papa Eugênio III trata de reconciliá-lo com a esposa...”
cf. “L’Essor des États d’Occident” de Ch. Petit Dutaillis. (Ed. Presses Univ. des Français-Paris 1944)
Tomo IV.
“... Alienor regressou grávida de Roma, mas do mesmo modo que antes, não deu a Luís VII o
herdeiro varão que esperavam; ela, que havia de ter cinco filhos com Henrique II, deu à luz a sua
segunda filha e este foi sem dúvida um motivo que não esqueceram seus inimigos quando
tratavam de excitar o mau humor de Luís VII. O prudente Surger morrera em 13 de janeiro de
1151 e aqueles tomaram novamente a ofensiva. Naquele mesmo ano Henrique Plantagenet fez
uma visita à corte e Alienor ficou impressionada com ele. “Luís, aceso de ciúme, partiu para
Aquitânia com Alienor, mandou destruir as fortificações começadas e fez regressar as guarnições
que ali tinha”. Estava resolvido a pedir a nulidade de seu matrimônio e enquanto isso prosseguia
com a evacuação da Aquitânia. Finalmente, um Concílio reunido em Beaugency em 21 de março
de 1152 pronunciou a dissolução do matrimônio real devido ao parentesco. Era tão cobiçada a
mão de Alienor que ela teve de voltar à Aquitânia de noite e em segredo para escapar dos
pretendentes que intentavam raptá-la. Evidentemente ela já estava de acordo com Henrique
Plantagenet e se casaram em menos de dois meses depois, por volta de 18 de maio de 1152. Em
vão, Luís VII, que compreendeu o perigo demasiadamente tarde, se opôs ao matrimônio, que fazia
de Henrique, ainda antes de chegar a ser rei da Inglaterra, um vassalo muito mais poderoso do
que seu próprio senhor. A perda de uma mulher que amava apaixonadamente parece afetar Luís
VII e ele atua, a partir daí, com as energias alquebradas.
cf. “Monarquia feudal em França y en Inglaterra”, do mesmo autor. (Ed. Uthes — México 1956)
pág. 86.
“... Suas reações contra o desenvolvimento do poder monárquico foram muito variadas. Pode-se
ver com clareza, ainda durante a mesma sublevação geral de 1173/1174 qual foi a falha que
deslocou o império angevino. A restauração da ordem durante os primeiros vinte anos do reino de
Henrique II satisfez a classe média, cavaleiros, burgueses, porém não à alta nobreza. Por outro
lado, esta classe não gostava muito deste rei administrador e legislador, que desdenhava os
torneios e que só fazia a guerra por obrigação. No continente também Henrique II comprometeu
as baronias em defesa dos oprimidos, restringiu os direitos dos senhores e confiscou castelos de
vassalos rebeldes. Na Normandia os barões somente se continham por temor. Sobre o Loire
Henrique II, nos primeiros tempos de seu reinado teve que sustentar uma guerra com o visconde
de Thouars, que pretendia ajudar ao próprio irmão do rei para que permanecesse como dono de
Anjou. Esteve constantemente em luta com os condes de Angulema, de Périgord e com o visconde
de Bigorre. Os historiadores têm desnaturalizado o caráter destes conflitos: quiseram ver os
barões aquitânios dirigidos pela voz do poeta-guerreiro Bertrand de Born, defendendo sua
“nacionalidade” contra os ingleses. Na realidade, Bertrand de Born e os outros senhores do
Sudoeste eram feudalistas, versáteis, incapazes de manter uma promessa e prontos a mudar de
partido se achavam proveitoso fazê-lo. Sua impaciência para com o jugo e seu rico humor
encontraram um sustentáculo na própria família real. Henrique II e Alienor muito rapidamente
entram em discórdia. Alienor sonha em retornar à possessão de sua Aquitânia e viver rodeada de
amáveis senhores e trovadores. Henrique II entrega o condado de Poitiers ao seu segundo filho,
Ricardo, em 1169, deixando que Alienor se instale no palácio de Poitiers. Ela governa a Aquitânia
em nome de seu filho, porém Henrique II não lhe concede mais do que uma semi-independência
que não a satisfazia. No ano seguinte de acordo com os costumes capetianos Henrique associa seu
filho maior, Henrique, o Jovem, à coroa assegurando deste modo na França a transmissão pacífica
do cetro. Henrique, o Jovem, de imediato se faz muito popular: muito se celebra sua beleza, sua
liberalidade e se dizia que ele reavivaria a cavalaria adormecida. Muito rapidamente seu pai se
inquieta com esta popularidade, o rodeia de espiões, lhe tira o poder. O terceiro filho, Godofredo,
se lamenta, por seu lado, de não poder governar real e efetivamente a Bretanha, da qual era
supostamente conde. O escândalo pelo assassinato de Becket momentaneamente debilitou
Henrique II e as concessões que faz à sua família sobreexcitam os apetites. Menos de um ano
depois da penitência imposta ao rei pela Igreja, uma grande sublevação feudal, encabeçada por
Alienor e seus filhos, estremece o império angevino de Henrique II, desde a Escócia até os Pirineus
(abril de 1173). Alienor logo foi traída pelos senhores potevinos os quais veremos mais tarde
cumulados de bens por Henrique II, sendo encerrada por seu marido em Chinon e posteriormente
em seu castelo inglês. Não recuperará sua liberdade completa senão doze anos depois. Não foi
igual a sorte de seus três filhos, Henrique, Godofredo e Ricardo, que se passaram para a “França”
junto a Luís VII. Henrique, o Jovem, reivindica nada mais nada menos que o governo da Inglaterra,
da Normandia e de Anjou. Tem como aliados todos aqueles que o poder de Henrique II havia
inquietado, o rei de Flandres e da Escócia prometem sua colaboração. Alguns grandes condes
ingleses tais como o de Leicister e o de Norfolk entraram em coalizão que por outra parte só
tinham como programa a satisfação de seus apetites feudais. Excetuando-se, porém, o bispo de
Durham, a Igreja inglesa lhe permanece fiel, o mesmo acontece com a grande massa do povo e os
oficiais e Henrique II que sufocam a rebelião da Inglaterra sem que o rei se veja obrigado a dirigir a
repressão. Este permanece na França e lhe são necessários dezoito meses de dura guerra para
acabar com seus adversários...”
cf. “Lessor des Etats D’Occidente”, do mesmo autor. Cap. IX, pág. 119.
“... Ricardo não deixou herdeiros varões. Arthur tem por pai o terceiro filho de Henrique II e seus
direitos podem passar por superiores aos do quarto filho, João Sem Terra. Graças à teoria da
Monarquia eletiva e ao acordo entre os arcebispos Hubert e o mais influente dos barões
anglo-normandos, Guilherme, o Marechal, João pôde sem grande dificuldade recolher a sucessão
de Ricardo da Inglaterra. Na França foi poderosamente ajudado por sua mãe, Alienor. Ela foi uma
das autoras da paz alcançada entre João e Felipe Augusto e teve o singular mérito de distinguir o
proveito de uma aliança com a Burguesia.
pág. 125 do mesmo capítulo.
“... com freqüência serviu de intermediária uma pessoa e, em geral, uma pessoa de condição
principesca ou senhorial a quem convinha agradar e cujos desejos se convertiam facilmente em
ordem; e assim nomeamos, sem mais, a Leonor ou Alienor da Aquitânia, princesa culta, neta do
trovador Guilherme IX de Poitiers, capaz ainda de entender o “tobar clus”, o poetizar obscuro ou
enigmático, de um Cercamon e de fazer com que gostassem dele os poetas do Norte que
freqüentavam sua corte ao lado dos meridionais, corte na qual se encontravam, por exemplo, seu
amado e apaixonado Bernardo de Ventadour...
... logo vai reinar com ele não só sobre as ricas províncias que constituíam seu dote pessoal e sua
herança paterna, como também sobre o Anjou, Normandia e aquela outra Normandia, francesa
também por sua aristocracia conquistadora: a Grã-Bretanha. Temos provas de que aquele poderio
atraiu para si por seu brilhantismo aos errantes e sempre pedinchões poetas...
... em Blois, na residência de Alix, irmã de Maria e filha também de Alienor, sem dúvida se
sustentava igual entretenimento... desta maneira, Alienor e suas duas filhas sustentavam três
cortes literárias, onde se encontravam unidas as matérias do Sul e do Norte...”
cf. “El arte de la Edad Media” de Gustavo Cohen. (Ed. Uthea. México 1956) Tomo 60, pág. 277.
“Alienor da Aquitânia... encarna a nova lei, a que põe o poderio do amor aos pés da mulher
divinizada e coroada, da protetora e inspiradora dos trovadores, em especial de Bernardo de
Ventadour, aquele que, em meados do século, melhor soube cantar o amor...
... ela, de início, saboreia as delícias do Oriente; pois, coisa rara, acompanha seu jovem esposo, o
rei Luís VII na cruzada, porém não é para ajoelhar-se ante o Santo Sepulcro, senão para melhor
oferecer seus ardores de bordelesa a Adônis, deixando-se levar pelos encantos das margens de
Oronto e entregando-se ali a seu tio, Raimundo de Poitiers. Conheceu Geoffroy Rudel, senhor de
Blaye, ansioso de amor distante e ao poderoso e duro Marcabrú e, sobretudo, viu crescer e
desenvolver-se a geração poética de seu avô Guilherme e este sim que havia tomado parte
inutilmente na primeira cruzada em seu feudo lemosino, à sombra de São Marcial, junto ao
castelo de Ventadour, com Eblé e os trovadores de Ussel, pobres e faustosos e, mais tarde,
Bernardo, talvez por quem se apaixonou e por quem, em todo caso, se deixou celebrar...”
cf. “La vida literaria en la Edad Media, de Gustave Cohen (Ed. F. de Cultura Econômica-México,
1958) pág. 61.
(Eleaus) significa “destruidora de navios”.
Ésquilo “Agamenon” 689. Eurípedes “Ifigênia” I. A. 1476, 1511.
A origem deste jogo de palavras sobre o nome de Helena é homérico.

Versos 90-98
“As próprias idéias de Pound sobre seus Cantos, expressas em 1927 numa carta a seu pai valem
também muito mais que os sentimentos fugazes de quem quer que seja. Não revelam
desconfiança, admiração, ironia?”: “Diversas coisas se evidenciam no poema. O mundo original
dos deuses; a Guerra de Tróia, Helena nos muros de Tróia com os anciões que desfrutam de todo
o espetáculo e sugerem que ela seja enviada de volta à Grécia.”
cf. “Pound”. Armando Uribe Arce. Cadernos do Centro de Investigações de Literatura Comparada.
U. Chile (1963).

Verso 100
Tiro, filha de Salmoned, rei de Élide.
Ver “Odisséia”, rapsódia XI, 235-59.

Versos 111-194
Esta passagem do poema canta a epifania de Dionísio a uns incrédulos marinheiros que são
metamorfoseados em peixes como castigo à sua própria incredulidade. O tema original se
encontra no “Hino VII a Dionísio” de Homero, 1-58; e posteriormente é retomado por Ovídio em
“As metamorfoses”, livro III “Penteus e Acoetes” 510-692. Para a referência que se faz no verso
192 sobre Tirésias e Cadmo, ver “As Bacantes” de Eurípedes. No verso 172, Dionísio é nomeado
por um de seus epítetos virgilianos: Liaus. “Eneida” IV, 58. John Brown diz, a propósito da
utilização “da irrupção do divino na vida cotidiana”: que tal tema se repete constantemente nos
“Cantos”. A epifania foi uma preocupação constante do grupo de poetas anglo-saxões, tais como
Yeats, Eliot, Joyce.
“Panorama de la literatura norte-americana contemporânea”. (Ed. Guadarrama Madrid 1956).
Sobre este assunto, Harry Levín, em seu estudo sobre Joyce, diz: “Uma epifania é uma
manifestação espiritual. Joyce acreditava que esses momentos chegam para todos, se somos
capazes de compreendê-los. Às vezes em circunstâncias mais complexas, se levanta
repentinamente o véu, se revela o mistério que pesa sobre nós e se manifesta o segredo último
das coisas. É a intuição fulminante que teve Marcel Proust quando molhou um pedaço de
“rosquilha” em uma xícara de tília.”
“James Joyce” (Ed. Breviarios FC. México 1959).
Verso 200
Eleutéria é um “demos” de Ática e o lugar por onde penetra nessa região da Grécia, proveniente
de Tebas, o culto de Dionísio.
cf. “Vita e Cultura dei Greci” (Ed. Hoepli-Milano, 1910)
Para Dafne,
ver “Las Metamorfosis” de Ovídio, Libro I “Daphne” 442-595, assim como também “La vida del
Dante” de Giovanni Boccaccio, cap. XI, pág. 105 (Ed. Argos Bs. As. 1947).

Verso 220
“Hespero, filho de Atlas, príncipe muito amado por sua justiça e bondade e muito aficionado ao
estudo dos astros. Observando-os um dia no topo do Monte Atlas foi arrebatado pelo vento e seu
povo deu seu nome ao mais brilhante dos planetas, o que hoje chamamos de Vênus e os antigos
designaram, ainda, com os nomes de Véspero, Phosphoros, Lúcifer etc.”

Verso 229
Proteu, deus marinho, servidor de Posseidon e pai de Idotea. Ao meio-dia sai do mar para a praia
de Faros e dorme no meio das focas e quando alguém tenta subjugá-lo se converte em algum
animal, em água, em fogo, etc.
Ver “Odisséia”, rapsódia IV, 364-547. “Geórgicas” de Virgílio, Livro IV, 388-421-428-446-527.
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CANTO III
Verso 237
“Nome de uma galera de gala com mastaréus, na qual o duque de Veneza embarcava todos os
anos no dia da Assunção, para celebrar as cerimônias das bodas com o mar. Essa cerimônia parece
que teve a sua origem no ano de 997 depois da primeira conquista da Dalmácia, sendo o Duque de
Veneza Orsélo II, chegando a adquirir forma definitiva em 1177... Deve-se o nome ao monstro com
cabeça de boi que figurava na popa; segundo outros o nome se formou com a partícula “bu” e a
palavra “Centauro”; supõem outros que o barco era uma imitação do “Bistaurus” de Enéias e
outros que “Bucentaurus” é corruptela de “Ducentaurum” (embarcação de 200 remadores). O
nome surgiu por volta de 1289 e ainda que haja variado a forma primitiva da embarcação, o nome
subsistiu, chegando a empregar-se a palavra por extensão, para designar a nave de luxo destinada
a conduzir certos personagens importantes.”
cf. “Enciclopedia Espasa Calpe”, Tomo IX, pág. 1191, ver “Eneida” de Virgílio, livro V, 122-155-157
e o livro X, 195.

Verso 238
“Morosini, nome de uma ilustre família veneziana de remota antigüidade e que deu um grande
número de homens célebres à sua pátria.”
cf. “Enciclopedia” ant. cit. tomo 36, pág. 1152.
“O palácio Morosini, ogival, do século XV... e também existe um Campo Morosini, no bairro
Sub-Oeste de Veneza próximo da ponte da Academia no Grande Canal.”
Tomo 67, pág. 919.
O Partenón estava intacto em 1687. Naquela época o veneziano Morosini bombardeou a cidadela
e um dos projéteis, ateando fogo a um dos barris de pólvora encerrados no templo, fez saltar
parte dele. Depois, o mesmo Morosini fez descer as estátuas do frontão e as quebrou.”
cf. “História Universal” (Ed. Española, Madrid 1910) tomo IV, pág. 421.

Verso 239
Koré etimologicamente significava “A jovem filha”. Mitologicamente designava-se com este nome
a filha de Deméter. Na Ática toma o nome de Perséfone e entre os romanos é chamada de
Prosérpina. Hades se enamora dela um dia em que ela estava colhendo flores com a ninfa Ciane. O
deus das regiões infernais raptou-a, apesar de sua resistência e levou-a para seus domínios...
atribulada, Deméter, com o desaparecimento de sua filha e sabendo por Ciane o nome do raptor
recorreu a Júpier que, segundo o hino homérico, enviou Erebos Argifontes com quem Hades a
deixou ir embora... outras versões dizem que Zeus prometeu à mãe que resgataria sua filha se esta
não houvesse comido nada na mansão infernal, porém como esta tinha comido uns grãos de
romã, ficou como esposa de Hades e rainha do Erebos, se bem que podia passar uma parte do ano
sobre a Terra em companhia de sua mãe.
ver também: “Ilíada” IX, 569; “Odisséia” X, 491, 494, 509, 534, 564, XI, 47, 213, 217, 226, 386, 635;
“Il hino a Deméter”, 1490. “Alcestes e “Las Suplicantes” de Eurípedes, 855 e 34, respectivamente.

Verso 250
“Poggio di Guccio Bracciolini, chamado Poggio florentino nasceu no ano de 1380 em Terranova, no
Valdarno Superior. Depois de haver estudado notariado em Florença, ajudado e aconselhado por
Coluccio Salutati que se valia dele como copista. Salutati tem o mérito, também, de haver
conseguido subtraí-lo do perigo de languescer entre as penúrias de uma família reduzida à miséria
por pressões dos usuários. Também por recomendação deste o Papa Bonifácio IX lhe outorga o
cargo de “escrevente apostólico” o secretariado de bulas e breves pontifícios. No mês de outubro
de 1414 estava em Constança junto com a cúria do Papa XXIII, enquanto acontecia o Concílio. Nos
anos 1415-1417 fazia algumas descobertas nos mosteiros trás-alpinos das mais importantes obras
clássicas como a “De rerum natura” de Lucrécio e a “Institutio oratória” de Quintiliano. Em 1418 se
trasladava a Roma convidado pelo Cardeal Henrique Beaufort, bispo de Manchester,
permanecendo ali durante 4 anos. De volta a Roma em 1423, lhe foi conferido novamente o cargo
de secretário de bulas e breves. Em 1436 casou-se com Vaggia, jovem mulher da família de
Buondelmonti. Em 1453, chamado pela república florentina, assumiu o cargo de Secretário da
Chancelaria de Florença. Morreu em 1459 e foi sepultado em Santa Cruz. De suas obras, as mais
conhecidas são os “Liber Facetiarum” e a “História Florentina”.”
cf. “Storia Della Litteratura Italiana” de F. Flora. (Ed. Mondadori, Itália 1913). Tomo I, cap. II, pág.
469.

Versos 253-270
Adaptação do Poema do Mio Cid
Edición Paleografica del Cantar por R. Menéndez Vidal. Madrid 1911. V. 254-264 del Folio in
caderno 1.°; 40-49 v. 265-267, del Folio in v. 268-271 del Folio 2v, 89-95.

Verso 271
Inês de Castro, esposa de Pedro I de Portugal, nascida em princípios do século XIV e morta em
Coimbra em 7 de janeiro de 1355. Era filho de Pedro Fernandes de Castro, poderoso nobre de
conhecida família da Galícia. Acompanhou Dona Constança, filha de Dom João e prima sua, ao
casar-se esta em 1340 com Dom Pedro, Infante de Portugal. Inês impressionou profundamente
Dom Pedro. Esta impressão se foi convertendo em paixão. Inês não aceitava as súplicas amorosas
de Dom Pedro e só quando morreu sua amiga e prima, Dona Constança, em 13 de novembro de
1345, se fez amante de Dom Pedro. Nove anos mais tarde se casou com ele. Em 1355, Alfonso V,
pai de Dom Pedro, transladou a corte para Montemor-o-velho e alguns inimigos dos Fernandes
Castro persuadiram o rei de que era preciso reduzir as pretensões daquela casa poderosa tirando
a vida de Dona Inês que ia ascender ao trono de Portugal. Aproveitando uma ocasião em que seu
filho, o Infante, estava caçando, dirigiu-se secretamente ao palácio de Coimbra. Os cavaleiros do
séquito do rei, com seu consentimento, entraram no palácio e assassinaram Dona Inês. A vingança
de Dom Pedro foi terrível e os funerais que mandou fazer para sua esposa, suntuosos.
A lenda e as artes plásticas se apoderaram da figura desta princesa criando diversas obras. A de
Luiz Vélez de Guevara (1578-1645). “Reinar depois de morrer” é a que mais fama alcançou.
Modificou em parte a realidade história e é deste drama teatral que nos fica a imagem de uma
Dona Inês proclamada rainha por seu esposo depois de morta. Sentado o cadáver no trono, ele a
coroa e faz com que toda a corte lhe renda vassalagem.
Enciclopedia Espasa Calpe

Verso 275
“Nec Spe Nec Metu”: em latim: “Nem com esperança nem com medo.”

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