Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
HESCHEL
O homem
não está só
EDIÇÕES PAULINAS
Titulo original
M A N IS NOT ALO NE — A Philosophy of Religion
© 1951 by Abraham Joshua Heschel
Farrar, Straus & Giroux, New York, Edit.
Traduziu e anotou
Edwino A loysius Royer
C O M A P R O V A Ç Ã O EC L E SIÁ S T IC A
© B y E d iç õ e s P a u l in a s , 1974
O bras do mesmo autor, editadas pelas E .P .
O homem à procura de Deus
O homem não está só
D eus à procura do homem
F IC H A C A T A L O G R Á F IC A
Bibliografia.
CDD-200.1
-296.311
-296.32
-296.71
74-0759
5
Homem de profunda cultura clássica e religiosa,
podia escrever em quatro línguas sobre ós temas mais
difíceis da teologia e da mística, mas, ao mesmo
tempo , caminhava ao lado d e Martin Luther King
nas marchas d e protesto cm defesa dos direitos hu
manas e comparecia a outras manifestações não vio
lentas em favor da justiça e da paz ( cf. " Tim e ",
Jânuary 8, 1975).
Enfrentando a desaprovação dos sem correli
gionários mais conservadores, Heschel encontrou-se
pessoalmente com PauIo VI, e supõe-se que a de
claração de 196?, eximindo o povo judaico da culpa
da crucifixão do Cristo, seja, em parte, devido à
sua influência (cf. Concilio Vaticano I I : Declaração
“N ostra A etaie” A). Esforçou-sc sempre para um
trabalho comum intereônfessional e costumava dixer
que, sem ele, a alternativa seria o "intemihitismo
Sua brilhante inteligência, sua marcante personali
dade, desde cedo haviam chamado a atcnçio d e mes
tres realmente famosos. Foi discípulo de Martin
Buhber e seu substituto no Centro de Cultura Ju
daica em Frankfurt, na Alemanha. Forçado a emi
grar para os Estados Unidos, t/a época das cam -
ponhas an ti judaicas dos nazistas, aí viveu e trabalhou
até a stta mortet Durante muitos anos fo i professor
de Ética Judaica e Mística no Seminário Teológico
judaico da Amitiea.
H eschel denominam a sua obra uma filosofia
da Religião; mais particularmente, uma filosofia do
Judaísmo. Não entendia porem a filosofia num sen
tido limitado , de um estudo do fenômeno religioso
exclusivamente do ponto de vista racional. Seria
mais justo dizer que se trata d e uma teologia do
judaísmo, se Heschef não insistisse em sublinhar o
caráter essencialmente dogmático da teologia, em
oposição ao caráter aberto e questionador da filoso
fia. *A filosofia conhece, antes de tudo, os prohle-
6
mas; ü teologia conhece de antemão as soluções"
(c f . Dien, p. 10)
Na procura da compreensão dos problemas fí-
ligiosos, H esc hel se coloca numa tinha de conheci
mento que ele chama dç * situacional", porque se
ocupa com as situações, supõe uma experiência inte-
riúr e procura, antes d e (udo, compreender os pro
blemas que envolvem a nossa existência real Nesse
sentido, o conhecimento * situacional* se distingue
daquele que é predominantemente conceituai — que
se desenvolve pelo raciocínio* procura um aumento
de conhecimento do mundo exterior e exige sempre
uma objetividade que é desapego e abstração das
condições do próprio sujeito, * 0 inicio d o conheci
mento situacional não é a dúvida ou o desapego,
mas sim a admiração, o medo, o engajamento - 0 fi
lósofo torna-se pois testemunha e não simplesmente
0 narrador das ações dos outros, Se não nos com
prometemos pessoalmente a problema não terá pre
sença 0 problema da filo sol ia da religião, por exem
plo, não é *como o homem pode chegar a uma com
preensão de Dera, mas anfes, 'df. que modo pode
remos nós mesmos chegar a ama compreensão de
Deus”. Em outras palavras, o filósofo jantais pode
ser um simples espectadorH (cf Vieu, p- 12).
Já se vi, pois, sob que ângulo vai ser desen
volvido o estudo dos temas bíblicos. H escbel "não
quer apresentar um conjunto das verdades reveladas
por Deus e que se tornaram o conteúdo da f é de
ísrael Ele quer aprofundar, não os conceitos, mas
as situações que lhes são anteriores * -— "ele visa
não tanto desenvolver a filosofia d e uma doutrina
ou as interpretações de um dogma, mas a filosofia
de acontecimentos concretos, de atos e de intuições,
a filosofia de tudo que pertence ao homem que c rê“
(ib. p, 14). Nesse sentido, diz d e. o objeto d o seu
estudo não é o conteúdo da fé — objeto da teologia,
mas c aio d e crer, — isto ê, a f ê "em sua profxtn-
7
didade, o substratum de onde ela emerge, 0 que
quer fazer é uma "teologia em profundidade“
Comprêenée se melhor agora 4 riqneja dos lrõ*
halhos dê Heschel dentro dessa visão que the c tão
característica. Traia-se de estudar 0 homem btblko,
em sua situação concreta, qttt não desenvolve ío%o
uma ciência de Veus, mas vive o encontro com Deus.
Os caminhos para esse encontro não são os prole-
gômettõf racionais do ato de fé, Cí motivos de credi
bilidade, nem mesmo as provai da existência de
Deus, — mas são as atitudes simples, concretas que
tornam 0 homem sbertot como que desarmado dian
te do mistério, "a percepção da grandiosidade’1,
“o sentido do inefável", “o deslumbramento \ "0
sentido do mistério ", *0 temor reverenciai", "a re
verência e a adoração*, *a intuição, a /<?, 0 acon
tecimento", Seu tiüro sobre a oração ê muito m e
nos um tratado de Teologia Espiritual do que rtm
ensinamento direto e pessoal de um mestre a um
disciptdo numa liuguagcm um pies, mas profunda
mente viva pela força que brota da realidade d e
unta experiência. Suas citações dos ditos de mestres
rabinos do passado e das suas interessantes narrati
vas, lembram muito o es tifo vivo e pessoal dos pri
meiros mestres espirituais cristãos — os monges do
deserto — com 01 seus "apofteimas” tão caros à
tradição monástica quer d d ocidente quer do oriente.
Toda a teologia de Abraham Hescbel está mar
cada por está insistência no valor da experiência, do
moiHcnto vivido, do “insight" e da intuição Po-
der-se-ia folgar que se trata de uma posição marca-
damente anti intclecttialista, de influência possivel
mente bergsoniatia- Mas, desculpando-se um ou outro
texto, em qtte sc excede um pouco mais cm sua
crítica a ama teologia abstraia e desencarnada, p o
de-se ver que é sempre possível uma interpretação
equilibrada e justa do pensamento de H esc hel.
O que ele deseja iitcutcar é a validade e mesmo
8
a absoluta necessidade de uma abordagem "experi-
mental" do minério dê Deus, do valor de uma ex-
pt>riftíria intuitiva e não meramente discursiva. Po
der-se-ia aproximar esta * intuição" daquela que fá
se denominou "paraconceitual” ou conhecimento de
st triples presença, e que estaria hem dentro de ama
concepção tomista do conhecimento. Intuição que
pode referir-se ttão apenas ao próprio sujai o, mas
tamhém a outros objetos, através de um conheci
mento "por ^naturalidade", que, embora supondo
uma apreensão conceituai, se redita por outros meios
que o conceito propriamente dito „ (cf. Tauzitr, Pr. Se
bastião, o p - — 'Bergson e santo Tomás — Dcscíée
tie Br J943> — Rro de Janeiro —“ tap. V I e V Iï) .
Ninguém nega, boje em dia, ú profundidade da
influência afetiva no conhecimento humano, e já
são hem conhecidos os trabalhos de ditufrsos auto
res tomistas sobre a existência de dois tipos bem
distintos de conhecimentos de Deus sob a luz da fé:
a ciência teológica c a sabedoria (cf. Jacques Mari-
tain — “Les denrées du savoir " — Desciée d e
Br Paris, 10)2, cap. V il).
Através desse especial ponto de vista. H escbel
consegue aprofundar e esclarecer diversos temas bí
blicos que escapam a uma análise propriamente con
ceituai de uma filosofia. Mostra que, na Bíblia, hâ
realidades que não podem ser atingidas pela filosofia
e que constituem como que um desafio para ela.
Enquanto a filosofia procura descobrir a essência das
coisas, os princípios do ser , analisar c explicar par
tindo de premissas universais, a Bíblia quer revelar
o criador de todas as coisas, sua vontade, baseando-se
numa tradição, numa intuição pessoal e partindo sem -
pre de fatos e acontecimentos que se passam no
tempo.
Sendo um livro de um rabino sobre a religião
de Israel, é evidente que certos temas abordados et
especialmente, a maneira de abordá-los, è reveladora
9
de uma concepção própria do judaísmo Assim, por
exemplo, considerando a resposta do homem à Pa
lavra de Deus — não se pode deixar de notar a
característica insistência na observância da lei e suas
prescrições (mitsvot) como próprias da religião de
Israel, A étiça, como ciência e norma do agir não
ê a norma fundamentei enquanto revela ú valor e a
finalidade de cada ação. Para c judeu, a prática dos
mandamentos> como simples obediência e fidelidade,
eomtttui um caminho especial para o encontro com
Deus "As portas da fé nào estão abertas, majr os
umitsvot" servem conto chaves. É a vida judaica
<?tte permiie atingir a fé judaica”. Embora diferindo
da concepção crista da lei e da norma moral, não
deixa de ser deveras proveitoso conhecer as claras e
profundas explicações de Heschet sobre a "ciência
dos aios".
11
O PRO BLEM A DE D EUS
1
O sentido do inefável
A consciência da Igreja
15
cia de term os que ser conscientes disso, como se
houvesse um imperativo, uma necessidade de pres
tar atenção àquilo que está além do nosso alcance.
O sentido do inefável
16
céu salpicado de estrelas, é algo que nenhuma lin
guagem pode transmitir. O que nos enche de ma
ravilhado assombro não é o que compreendemos
e somos capazes de comunicar, mas o que se situa
dentro do nosso alcance e ao mesmo tempo está
além da nossa compreensão; não o aspecto quan
titativo da natureza, mas algo de qualitativo, não
o que está além do nosso alcance no tempo e no
espaço, mas o verdadeiro sentido, a origem e o fim
do ser, em outras palavras, o inefável.
O encontro inefável
17
2 - O homem não está só
encontram. Logo você abandonará sua pretensão
de estar familiarizado com o mundo.
Como é que procuramos apreender o mundo?
A inteligência investiga a natureza da realidade, mas
como não pode trabalhar sem seus instrumentos,
toma os fenômenos que parecem enquadrar-se em
suas categorias como respostas para a sua investi
gação. Entretanto, quando tentamos encontrar-nos
com a realidade face a face, sem a ajuda de pala
vras nem de conceitos, percebemos que o que é
inteligível à nossa mente é somente uma tênue
superfície de uma realidade profundamente oculta,
um murmúrio de inveterado silêncio, que continua
imune à curiosidade e à indagação como uma fo
lhagem na escuridão.
18
último: tão perto e, ao mesmo tempo, tão longe.
O conhecimento é, portanto, uma série de reminis
cências . E como nossa percepção é sempre incom
pleta e cheia de omissões, nosso conhecimento é
uma combinação subseqüente de recordações casuais.
Raramente descobrimos. Antes de pensar recorda
mos. Vemos o presente à luz do que já conhece
mos. Constantemente comparamos ao invés de pe
netrarmos e nunca estamos inteiramente livres de
preconceitos. A memória é, muitas vezes, um obstá
culo à experiência criativa.
O pensamento está preso a palavras, a nomes
e os nomes só descrevem aquilo que as coisas têm
em comum. O ser individual e único realmente
não é captado pelos nomes. E nossa mente está
necessariamente comprometida com palavras, com
nomes. Esta é outra razão pefii qual raramente
encontramos acesso à essência. Não conseguimos
sequer dizer adequadamente o que nos escapa.
Será necessário vencer uma pilha de idéias para
aprender que nossas soluções são enigmas, que nos
sas palavras são indiscrições? Um mundo de coisas
está aberto a nossas mentes, mas, muitas vezes, pa
rece que a nossa mente é uma peneira em que
procuramos segurar o fluxo da realidade, e há mo
mentos em que a mente é arrastada pela corrente
do inexplorável, uma corrente contra a qual geral
mente se luta, mas que nunca retrocede.
19
inexprimível, o ser. Se é verdade que o dado, o
aparente está próxim o da nossa experiência, o que
há dentro da nossa experiência é o outro, o remoto,
por cima do qual passamos. Os conceitos são deli
ciosos petiscos com que procuramos saciar nossa
admiração indagadora. Tentemos pensar a própria
realidade, esqueçamos o que conhecemos e senti
remos logo dolorosa fome. Não devemos esperar
que os pensamentos nos dêem mais do que con
têm. Alma e razão não são a mesma coisa. Os con
ceitos e nós mesmos assemelhamo-nos a estranhos
que em algum ponto do tempo interminável se en
contraram e se tornaram amigos. Muitas vezes se
unem e muitas vezes se afastam um do outro, para
benefício de ambos. Quanto mais incisiva a cons
ciência do desconhecido e mais vigorosa nossa per
cepção imediata da realidade, tanto mais aguda e
inexorável se torna a nossa verificação dessa dis
paridade.
Como o simplório identifica a aparência com a
realidade, assim o superculto identifica o exprimí-
vel com o inefável, o lógico com o metalógico, os
conceitos com as coisas. E assim como o pensa
mento crítico está cônscio da sua não identidade
com as coisas, assim nossa alma em sua auto-re-
flexão leva no coração uma consciência de si mes
ma, distinta do conteúdo lógico dos seus pensa
mentos .
A consciência do inefável é o ponto em que
deve começar a nossa indagação. A filosofia, se
duzida pela promessa do conhecido, abandonou mui
tas vezes os tesouros do incompreendido mais pro
fundo aos poetas e aos místicos, embora sem o sen
tido do inefável não possa haver problemas meta
físicos, nem consciência do ser como ser, do valor
como valor.
A pesquisa da razão termina no horizonte do
20
conhecido. Na imensa amplidão que se estende para
além dele só o sentido do inefável consegue planar.
Só ele sabe o caminho que leva para o que está
fora da experiência e do entendimento.. Nenhum
dos dois é anfíbio: a razão não pode ir além da
praia do seu horizonte e o sentido do inefável
está fora do seu ambiente no terreno em que se
medem e se pesam as coisas.
Não deixamos as praias do conhecido em bus
ca de aventuras ou suspense por causa da incapa
cidade da razão em responder a'nossas perguntas.
Partimos porque nossa mente é como que uma
fantástica concha marinha: quando lhe colamos os
ouvidos escutamos o perpétuo murmúrio das ondas
do além.
Cidadãos de dois reinos, temos que sujeitar-
-nos a dupla lealdade: sentimos^ o sentido do ine
fável num reino, nomeamos e exploramos a reali
dade noutro. Estabelecemos um sistema de refe
rências entre os dois, mas não conseguimos preen
cher o vazio. Acham-se tão longe e ao mesmo tempo
tão pertos um do outro como o tempo e o calen
dário, o violino e a melodia, a vida e o que vem
depois do último suspiro.
Perscrutamos os fenômenos tangíveis com a ra
zão, e com o sentido do inefável auscultamos o
sagrado e indemonstrável. A força que inspira a
disposição para o sacrifício de si próprio, as idéias
que nutrem a humildade dentro da mente, e, além
dela, não são idênticas às artes do lógico. A pu
reza sobre a qual nunca deixamos de sonhar, as
coisas tácitas que amamos insaciavelmente, a visão
do bem pelo qual morremos ou nos entregamos
vivos — são realidades que nenhuma razão con
segue dominar. É o inefável, do qual haurimos o
gosto do sagrado, a felicidade do imperecível.
21
2
Razão e admiração
22
Dirige-se ao conteúdo da percepção e não à per
cepção em si.
A dúvida não se aplica àquilo de que temos
consciência imediata. Não duvidamos que existi
mos ou que estamos vendo alguma coisa. Apenas
perguntamos se conhecemos o que vemos ou se o
que vemos é um reflexo verdadeiro do que existe
na realidade. Portanto a dúvida surge depois que
a percepção se cristalizou numa concepção.
A dúvida é, pois, uma atividade interdeparta
mental da mente. Primeiro vemos, a seguir julga
mos e formamos uma opinião e depois duvidamos.
Em outros termos, duvidar é pôr em questão
aquilo que um instante atrás aceitamos como pos-
Ivelmente verdadeiro. A dúvida é um ato de ape
lação, um processo pelo qual um julgamento lógico
é transportado da memória para a faculdade crí
tica da mente para um reexame. Conseqüente
mente, devemos primeiro julgar e aderir a uma fé
em nosso juízo para depois podermos duvidar. Mas
se devemos conhecer para podermos questionar, se
devemos alimentar uma fé para depois pô-la em
dúvida, quer dizer que a dúvida não pode ser o
início do conhecimento.
A admiração vai além do conhecimento. Não
duvidamos que duvidamos, mas estamos admirados
de nossa capacidade de duvidar, admirados de nossa
capacidade de admirar. O indolente reprovará a dú
vida; o cego será contra a admiração. A dúvida
pode chegar a um fim, a admiração permanecerá
sempre. A admiração é um estado da mente em
que não olhamos a realidade através da treliça de
nosso conhecimento memorizado; um estado em que
nada se supõe conhecido. Não podemos viver es
piritualmente apenas repetindo conhecimentos em
prestados ou herdados. Indaguemos de nossa alma
o que ela conhece, o que supõe como certo. Dir-
23
-nos-á simplesmente que nada é suposto como certo,
que cada coisa constitui uma surpresa, que o ser ê
inacreditável. Estamos maravilhados pelo simples
fato de vermos as coisas, maravilhados não só diante
de valores e coisas particulares, mas diante do ines
perado do ser com o tal, diante do fato de ser sim
plesmente .
24
mas também ao próprio ato de ver e a nós pró
prios que vemos e estamos admirados diante de
nossa capacidade de ver.
25
vivai a nossa própria admiração, nossa própria viva
cidade. E se falhamos em nossa busca de introspec
ção, isso não ocorre porque não possa ser atingida,
mas porque não sabemos como viver ou não sabe
mos defender-nos da tendência narcisística da mente
de enamorar-se de sua própria reflexão, tendência
que corta o pensamento das suas raízes.
A árvore da ciência e a árvore da vida estão
enraizadas no mesmo solo. Mas, enquanto brinca
com os ventos e os raios de sol, a árvore da ciência,
muitas vezes, só apresenta folhas brilhantes sem
seiva, ao invés de produzir frutos. Podemos dei
xar que murchem as folhas, mas a seiva nunca de
veria secar.
O que vale a sutil especulação sem a introspec
ção anterior da realidade sagrada da vida, intros
pecção que procuramos traduzir para os termos ra
cionais da filosofia, para as maneiras de vida da
religião, para as formas e visões da arte? Manter
o impulso e o fluxo dessa introspecção em todos
os pensamentos, de modo que nem mesmo em nos
sas dúvidas cesse de fluir sua seiva, significa haurir
do solo de tudo o que é criativo na civilização e
na religião, um solo de que somente as flores arti
ficiais podem prescindir.
O sentido do inefável não silencia a pesquisa
do pensamento, mas, ao contrário, perturba o aco
modado e desperta nossa impressionabilidade estan
cada. A penetração no inefável leva às profundezas
do pensamento e não ao olhar ignorante do animal.
Para as mentes daqueles que não cometem o erro
universal de tomar como conhecido um mundo que
é desconhecido, de colocar a solução na frente do
enigma, a abundância do exprimível jamais poderá
substituir o mundo do inefável.
As almas enfocadas, que não vacilam à pri
meira vista, recorrendo a palavras e noções prontas
26
de que a memória está repleta, conseguem ver as
montanhas como se estas fossem gestos de exaltação.
Para elas toda visão é inesperada, enquanto os olhos
embotados que nas trevas das coisas não distinguem
a luz, só percebem séries de clichês.
27
A raiz da razão
28
3
29
de ^onhecer certos aspectos da realidade, possui
também a capacidade de conhecer que há mais do
que aquilo que ele conhece. Sua mente está rela
cionada com o inefável tanto quanto com o expri-
mível e a consciência de sua admiração radicai é
tão universalmente válida como o princípio de con
tradição ou o princípio de razão suficiente.
Da mesma forma como as coisas materiais ofe
recem resistência aos nossos impulsos espontâneos,
sendo esta sensação de resistência que nos faz crer
que as coisas são reais e não ilusórias, também o
inefável oferece resistência às nossas categorias.
O que o sentido do inefável percebe é algo
objetivo que não pode ser concebido pela mente
ou captado pela imaginação ou pelo sentimento,
algo real que pela sua própria essência se situa
além do alcance do pensamento. Estamos primaria
mente conscientes não de nós mesmos, de nosso
aspecto interno, mas de uma situação transubjetiva
em relação à qual falha a nossa capacidade. Subje
tiva é a maneira e não o objeto da nossa percepção.
O que percebemos é objetivo no sentido de ser
independente da nossa percepção e corresponder a
ela. Nossa admiração radical corresponde ao mis
tério, mas não o produz. Nem você nem eu inven
tamos a grandeza do céu, nem dotamos o homem
com o mistério do nascimento e da morte. Não
criamos o inefável, encontramo-lo.
Nossa consciência dele está potencialmente pre
sente em cada percepção, em cada ato de pensar,
em cada ato de gozar ou apreciar a realidade.
Tratando-se de um fato incontestável, nenhuma teo
ria humana seria completa se ele fosse omitido.
E atestado por exploradores intrépidos e triunfan
tes que, depois de terem alcançado o cume da mon
tanha, são mais humildes que antes.
Subjetiva é a ausência e não a presença da ad-
30
miração radical. Esta falta ou ausência é o sinal
de uma mente indiferente e desatenta, de um sen
tido não desenvolvido para as profundezas das
coisas.
O inefável pode, portanto, ser verificado por
todo homem não sofisticado, que chegar até ele
através de sua autêntica experiência própria. É
por isso que todas as palavras que aludem ao ine
fável podem ser compreendidas por todos.
Sem o conceito do inefável seria impossível
explicar a diversidade das tentativas do homem pa
ra expressar ou pintar a realidade, a diversidade
das filosofias, das visões poéticas ou das represen
tações artísticas, a consciência de que ainda nos en
contramos no começo das nossas tentativas de di
zer o que vemos em torno de nós.
Caracterizamos a percepção :4o inefável como
uma percepção universal. Mas se seu conteúdo não
é comunicável, como sabemos que ele é o mesmo
em todos os homens?
Com relação a isso, podemos dizer que se so
mos incapazes de definir ou descrever o inefável
somos capazes de indicá-lo. Mais por meio de ter
mos indicativos que por meio de termos descritivos,
podemos transmitir aos outros aqueles aspectos da
nossa percepção que são conhecidos a todos os ho
mens .
Também a percepção da beleza não é expressa
por meio de definições e porque o que sentimos
não é idêntico sob todos os aspectos, as descrições
apresentadas divergem tanto. Contudo, supomos
que todas querem dizer essencialmente a mesma
coisa. E por isso que o leitor reconhece nas des
crições a essência de uma percepção de que ele
participa, ainda que as descrições discordem bas
tante .
31
O caráter alusivo do ser
32
é refutada por nosso sentido do inefável, que é
a consciência de uma alusão a uma realidade signi
ficativa sem capacidade de expressá-la.
Que o sentido do inefável seja uma consciên
cia de algo significativo é indicado pelo fato de
que a resposta interna que evoca é o temor ou
a reverência.
33
3 - O homem não está só
4 I'
Ser é significar
A universalidade da reverência
35
torcáto-íamos se tentássemos avaliá-lo segundo nossa
escala de valores. Supera nossos critérios de ma
neira essencial.
36
espiritualmente real, independente da nossa percep
ção, não estamos dotando de existência uma mera
idéia, tal como não o fazemos ao afirmarmos: “Isto
é um oceano”, quando somos arrastados por suas
ondas. O inefável existe antes de formarmos uma
idéia dele. O seu próprio espírito é testemunha
certa para o homem de que o mistério não é um
absurdo, que, ao contrário, as coisas conhecidas e
perceptíveis estão carregadas de significação exta-
siante, galvanizante.
37
cem com um mínimo de significação, enquanto para
o artista superabundam em significação. As coisas
comunicam-lhe mais significação do que ele é capaz
de absorver. A vida criativa da arte, da ciência e
da religião é uma negação da idéia de que o ho
mem é a fonte da significação. Este apenas em
presta as suas categorias e meios de expressão para
a significação que existe. Só aqueles que perderam
o sentido da significação podem pretender que a
auto-expressão e não a expressão do mundo é a
finalidade da vida.
38
por causa dos seus compromissos com algumas das
suas divagações e noções excêntricas distorcendo
assim o que originalmente era uma autêntica in
trospecção? A idéia de que a significação suprema
deve anunciar-se a si mesma como um relógio, a
tendência de lançar ao mundo as concepções antro-
pocêntricas preferidas, criaram uma caricatura do
mistério. O escândalo de tentar adaptar a signifi
cação às nossas mentes, de procurar constantemen
te o valor que tem o universo para nós, pode efe
tivamente destruir a nossa capacidade de compreen
são da significação.
39
teoria da evolução e adaptação das espécies não
tira a maravilha do organismo . Homens como Ke-
pler e Newton que estiveram face a face diante
da realidade do infinito teriam sido incapazes de
cunhar uma frase dizendo que os céus cantam a
glória não de Deus, mas de Kepler e de Newton,
ou o verso: “Glória ao homem nas alturas! por
que o homem é o senhor das coisas” .
A pesquisa científica é uma entrada no infi
nito, não um caminho sem saída. Quando resolve
mos um problema, outro maior se apresenta diante
de nós. Uma resposta gera uma multidão de novas
perguntas. As explicações são apenas indicações de
enigmas maiores. Cada coisa sugere algo que a
transcende. O pormenor indica o todo, o todo a
sua idéia, a idéia a sua raiz misteriosa. O que
parece ser um centro é só um ponto na periferia
de outro centro. A totalidade de uma coisa é efe
tivamente a infinitude.
40
mpções de inconcebível significação; que não há
idéias solitárias vagando pelo vazio para serem to
madas e apropriadas. Ser implica significar, porque
todo ser é representante de algo que é mais que
ele próprio. Porque aquilo que é visto, que é co
nhecido, está pelo não visto, pelo não conhecido.
Até a fórmula matemática mais abstrata a que pos
samos reduzir a ordem do universo levanta o pro
blema: o que significa? A resposta necessariamente
será: representa a majestade do (jue é mais que a
própria fórmula. A qualquer espécie do pensa
mento que possamos chegar, enfrentamos sempre
a significação transcendente.
O mistério do mundo ou é um caos sem ne
nhum valor ou está cheio de uma significação abso
luta além do alcance de mentes finitas. Em outras
palavras, ou é absolutamente serifc sentido ou abso
lutamente pleno de sentido, ou demasiadamente in
ferior ou demasiadamente superior para ser objeto
da compreensão humana.
Mas como saberíamos do mistério do ser se
não mediante nosso sentido do inefável? É este
sentido que nos comunica a supremacia e a gran
deza do inefável juntamente com o conhecimento
da sua realidade. Assim não podemos negar a su
perioridade do inefável sobre nossas mentes, em
bora pela mesma razão, não possamos prová-lo.
Por outro lado, o fato de sermos capazes de
senti-lo e de sermos conscientes da sua existência
é uma indicação certa de que o inefável está em
certa relação com a mente humana. Por isso, não
deveríamos chamá-lo de irracional, algo desprezível
como um resíduo de conhecimento, como obscuro
remanescente de especulação indigna de nossa aten
ção. O inefável é concebível apesar de ser incog-
noscível.
41
Será o inefável uma ilusão?
42
está repleta de exemplos de ídolos e símbolos que
tinham significado para certos povos e não tinham
sentido para outros. Mas será que realmente não
significam, não estão indicando nada? Podemos
apontar certos complexos psíquicos que presumivel
mente influenciaram o desejo de produzir esses ído
los primitivos bem como o seu ridículo e a sua per
versidade. Mas a sua rejeição como produtos vo
luntários da mente, não invalida o sentido de mis
tério implícito na necessidade de produzi-los e ado
rá-los. O erro do adorador de ídolos começa no
processo da expressão do seu sentido de mistério,
quando começa a relacionar o transcendente com
suas necessidades e idéias convencionais e tenta es
pecificar aquilo que está além da sua percepção.
Nesse processo entram em jogo motivos que nada
têm a ver com sua percepção original. Começa a
olhar o instrumento como fim, o temporal como
o último, distorcendo assim tanto os fatos que adora
como a qualidade do divino que lhes atribui. Ainda
precisa ouvir as palavras: “Não farás imagem escul
pida nem qualquer outra semelhante” . Nada pode
servir como símbolo ou semelhança de Deus nem
mesmo o universo.
Numa agradável tarde de verão um famoso
professor admirava o céu. Sua filhinha voltou-se
para ele e perguntou-lhe: “O que é que há acima
do céu?” O pai deu-lhe uma resposta “científica”:
“Éter, minha filha” . Ao que a menina exclamou:
“É te r!” E levou a mão ao n a riz ...
43
5
44
do vamos à porta que abre para o infinito, perce
bemos que todos os nossos conceitos não passam
de partículas de pó luminoso que povoam um raio
de sol. Para alguns de nós as explicações e as opi
niões são sinais da partida do maravilhoso, como
um toque de recolher indicando o fim da percep
ção e da pesquisa. Mas aqueles para os quais a
realidade é mais cara que a informação, a vida mais
forte que os conceitos e o mundo mais que as pa
lavras, nunca serão levados à ilusão de pensar que
o que sabem e percebem é o núcfeo da realidade.
Somos capazes de explorar e de rotular as coisas
com belas palavras, mas quando deixamos de su
jeitá-las às nossas finalidades e de impor-lhes as
formas da nossa inteligência, ficamos desorientados
e incapazes de dizer o que as coisas são em si
mesmas. É a sensação de sermo^ incapazes de ex
perimentar algo com que nos defrontamos: grande
demais para poder ser compreendido. A música,
a poesia, a religião, todas iniciam a alma no encon
tro com um aspecto da realidade para o qual a
razão não tem conceitos e a língua não tem pa
lavras .
O modo da utilidade
45
modo da utilidade, mas também segundo o modo
da admiração. No primeiro caso encontramos in
formações para dominar; no segundo aprofundamos
nossa apreciação para responder. O poder é a lin
guagem da utilidade; a poesia, a linguagem da ad
miração .
Quando procuramos ampliar nossos conheci
mentos para satisfazer nossa paixão de poder, o
mundo torna-se alheio e estranho. Os conhecimen
tos que adquirimos em nosso anseio de invocar a
apreciação são um meio de descobrir nossa união
com as coisas. Com a informação estamos sós;
na apreciação estamos em companhia de todas as
coisas.
O desejo do maravilhoso
46
nada abandonado ou sem destinatário. É como se
Deus estivesse entre ele e o mundo. O que é fa
miliar desaparece da sua visão e ele distingue o
original sob o palimpsesto das coisas.
47
e a todas as coisas. Não um fato particular, mas
a situação surpreendente do próprio fato de exis
tirem os fatos. O ser. A presença do universo.
O desenvolver-se do tempo. O sentido do inefável
não se encontra de entremeio entre o homem e o
mistério. Ao invés de excluí-lo, une-o ao mistério.
Para o nosso conhecimento o mundo e o “eu” são
dois, um objeto e um sujeito; mas dentro da nossa
admiração o mundo e o “eu” são eternamente um
ser. Despertamos para a nossa convivência com a
grande amizade de todos os seres e deixamos de
olhar as coisas como oportunidades para explorar
mos. A conformidade com o ego já não é mais
o interesse exclusivo e nosso direito de subordinar
mos a realidade a serviço dos assim chamados fins
práticos torna-se um problema.
As coisas que nos cercam emergem da triviali
dade que lhes atribuímos e o seu caráter estranho
abre como que um vazio entre elas e nossa mente,
um vazio que palavra alguma pode encher. Como
é possível que eu esteja usando esta caneta e es
teja escrevendo estas linhas? Quem somos nós para
esquadrinharmos as esotéricas estrelas, para teste
munharmos o pôr do sol, para termos o serviço
da fonte para a nossa sobrevivência? Como pode
remos retribuir pela respiração e pelo pensamento,
pela vista e pelo ouvido, pelo amor e pelas ações?
Uma evidência prolongada, penetrante, desacostu
ma-nos de confundirmos a bondade do mundo com
ausência de dono, sua vida simbólica com ordem
insípida.
Um dos maiores choques que experimentamos
em nossa infância ocorre com a descoberta de que
nossas necessidades e atos nem sempre são apro
vados pelos homens, nossos companheiros, que o
mundo não é só alimento para o nosso prazer. A
resistência que encontramos, as recusas em que in-
'Ifi
corremos abrem nossos olhos para a existência de
um mundo fora de nós mesmos. Mas quando nos
tornamos mais velhos e mais fortes, recuperamo-nos
gradativamente do choque e procuramos esquecer
essa dolorosa lição e aplicamos a maior parte das
nossas capacidades para levarmos nossa vontade a
ocupar-se da natureza e dos homens. Nenhuma lem
brança da nossa passada experiência consegue der
rubar completamente a arrogância que repetidamen
te congestiona o tráfego da nossa^ m ente. Deslum
brados pelas brilhantes realizações' do intelecto na
ciência e na técnica, deixamo-nos iludir acreditando
que somos os senhores da terra e a nossa vontade
o critério supremo do que está certo ou errado.
49
4 - O homem não está só
Contamos por todas as coisas
50
6
Uma interrogação
que transcende as palavras
51
onde termina a fonte e começa a derivação? Até
mesmo a estrutura da sentença de tais fórmulas
está carregada de pressupostos lógicos que a uma
análise minuciosa revelam imensas dificuldades.
Uma profunda consciência da incongruência de
todas as categorias com a onipresença sem nome
e impenetrável do mistério é um pré-requisito para
nossos esforços em busca de uma resposta. Quanto
mais cuidados tomarmos para não deixar nossa per
gunta incomparável ser adulterada ou até mesmo
sufocada por formulações inadequadas, maior será
a nossa oportunidade de chegarmos a respostas fi
nais razoáveis.
52
seu eu finito. Mas tal atitude é uma armadilha in
consistente e auto-ilusória. Insistindo em que so
mos incapazes de conhecer, mostramos um conhe
cimento que afirmamos ser inatingível. A alegação
de que não existe uma significação última ressoa
estridentemente no profundo silêncio do inefável.
É possível evadir-nos da questão suprema re-
tirando-nos para dentro dos limites do próprio eu?
A consciência do maravilhoso é, muitas vezes, do
minada pela tendência da mente de dicotomizar,
que nos faz olhar o inefável como se fosse uma coi
sa ou um aspecto das coisas longe de nós mesmos,
como se somente as estrelas estivessem circundadas
com o halo do enigma e não a nossa própria exis
tência. A verdade é que o eu, nosso “senhor”, é
algo desconhecido, inconcebível em si mesmo. Pe
netrando-o, descobrimos o paradoxp de não conhe
cermos o que supomos conhecer tão bem.
Quem é “eu”?
53
profundeza insondável do inconsciente. Além do
meu alcance está o fundo da minha própria vida
interior. Não estou certo nem sequer de que a
voz que sai de mim é a voz de uma unidade pes
soal definida. O que na minha voz se originou em
mim e o que é a ressonância da realidade transub-
jetiva? Ao dizer “eu”, minha intenção é diferenciar
a mim mesmo de outras pessoas e outras coisas.
Mas qual é o conteúdo direto, positivo do “eu”:
o florescimento do consciente sobre o solo impene
trável do subconsciente? O “eu” não inclui menos
realidade desconhecida, subconsciente, que realidade
conhecida e consciente. Isso significa que o “eu”
só pode ser separado distintamente das suas rami
ficações, isto é, de outros indivíduos e de outras
coisas, mas não das suas raízes.
Tudo o que sabemos do eu é a sua expressão.
Mas o eu nunca é plenamente expresso. Não sa
bemos dizer o que somos; não compreendemos
aquilo em que nos tornamos. Tudo é uma abrevia
tura criptográfica de sugestões que a mente tenta
em vão decifrar. Como a sarça ardente, o “eu”
arde em chamas sem nunca se consumir. Levando
dentro de si mesmo muito mais que a razão, está
em luta com o inefável. O sorriso de um homem
significa alguma coisa. Mas o quê?
Como veremos 1 existir implica em possuir tem
po. Mas será que o homem possui o tempo? O
fato é que não posso possuir o tempo, os momen
tos através dos quais vivo, e o intemporal, na mi
nha temporalidade, certamente, não é minha pro
priedade particular. Mas se a vida não pertence ex
clusivamente a mim, qual é o meu direito legal
a ela? Tem a minha essência o direito de dizer “eu”?
1 C f. adiante cap. 19 — O SE N T ID O DA E X IS
T Ê N C IA — temporalidade da existência.
54
Quem é este “eu”, a quem se supõe que a minha
vida pertence? Ninguém conhece nem seu conteú
do nem seus limites. Trata-se de algo que se acaba
ou de algo que o tempo não consegue destruir?
Como indivíduo, como um “eu”, estou separa
do da realidade externa dos outros homens e das
outras coisas. Mas na única relação em que o “eu”
se torna consciente de si mesmo, na relação para
a existência, descubro que o que chamo de “eu”
é uma autodecepção, que a existência não é pro
priedade minha e, sim, algo que me foi confiado;
que o eu não é uma entidade isolada, confinada
em si mesma, um reino governado pela nossa von
tade.
Penetrando no “eu”, defrontamo-nos com o pa
radoxo de não conhecermos o que julgamos conhe
cer tão bem . Quando descobrimps que o eu em
si mesmo é uma monstruosa decepção, que o “eu”
é uma realidade transcendente dissimulada, começa
mos a sentir o peso de estarmos reduzidos a um
mero eu. Começamos a perceber que nossa cons
ciência normal se encontra num estado de transe,
que aquilo que em nós é mais elevado está geral
mente suspenso. Começamos a sentir-nos estranhos
dentro da nossa consciência normal, como se nossa
própria vontade fosse algo que nos é imposto.
As almas clarividentes, presas na tensão entre
o prodigamente óbvio e tranqüilidade clandestina,
não se deixam deslumbrar nem surpreender. Ob
servando a interminável pantomima, que se passa
num mundo ostensivo e turbulento, sabem que não
é ali fora de nós que se encontra o mistério. A
verdade é que estamos todos imergidos nele, im
buídos nele. Somos, parcialmente, esse mistério.
55
Sou o! que não sou
2 C f. adiante cap. 14 — D E U S É O S U JE IT O —
O pensamento de Deus não tem fachada.
56
“eu”, como um sujeito, já não sou mais capaz de
apreender o conteúdo da interrogação em que estou
posto como objeto. Assim, ao nível da autocons
ciência não há meio de enfrentar o problema, de
fazer a interrogação absoluta. Por outro lado, quan
do somos dominados pelo espírito do inefável, não
resta mais nenhum eu lógico para perguntar e ne
nhum poder mental para julgar a Deus como um
objeto, a respeito de cuja existência devo decidir.
Sou incapaz de levantar minha voz ou de julgar.
Não há nenhum eu para dizer: eu \cho que. . .
Com efeito, não existe nível especulativo em
que possa ser levantada a interrogação. Ou não
percebemos a significação do problema, ou, quando
entendemos a respeito do que deveríamos pergun
tar, não há sujeito lógico que possa perguntar, exa
minar, inquirir. %
57
7
58
gência estar na raiz do ser é tão forte que nem
mesmo a fundamentação da ciência goza de maior
probabilidade. O aparecimento da ordem universal
por um puro acaso — que é uma categoria irracional
— parece bem menos plausível às nossas mentes
que o seu aparecimento pelas mãos de um planeja
dor super-racional.
Não é muito difícil descobrir algumas falácias
sutis nas provas especulativas. Pode-se dizer, por
exemplo, que a presença da ordena no mundo não
prova a existência de uma mente divina que está
acima e é distinta dessa ordem. Da ordem podemos
inferir somente a existência de uma causa mais
alta, mas não a existência de um ser que transcende
toda causalidade. Ou, em termos lógicos, o univer
so conforme concebido por n ó s,„é um sistema fe
chado de relações lógicas e tudo o que dele podemos
inferir é uma suprema estrutura lógica. Supor a
existência de uma mente ou de um ser supremo além
do universo, é passar do domínio da lógica para o
da ontologia. Logicamente, pode-se afirmar, não há
justificação para se supor a existência de um ser
supremo. O que podemos observar na natureza é
uma ordem mecânica, não uma consciência viva.
Conseqüentemente tudo o que a mente humana
pode supor é a existência de uma força mecânica
suprema, uma força cega do destino. Por isso, co
mo filósofos, abstemo-nos de crer na existência de
um ser supremo dotado de vontade e inteligência.
Essa abstenção está inteiramente de acordo com
nossos hábitos. Comportamo-nos como se a natureza
fosse uma árvore que rebenta de dentro de uma
sepultura primordial sem nome e nós homens vi
vêssemos por engano, por acaso, por descuido.
O mundo é tratado por nós como se fosse um
gigantesco carvalho do qual as crianças arrancam
59
galhos' e ramos, enquanto os turistas gravam nomes
na sua casca.
Os argumentos especulativos são cosmocêntri-
cos ou antropocêntricos. Para o argumento cosmo-
lógico da existência de Deus, o ponto de partida é
o plano e a realidade do universo. Sua pergunta é:
qual é a causa última de tudo o que existe? O
princípio de causalidade serve de escada pela qual
a mente sobe até o ser supremo. Ele é visto como
uma explicação para os acontecimentos naturais,
como uma solução científica para um problema.
De maneira semelhante, o argumento moral de Kant
para a existência de Deus parte de premissas mo
rais. Se a moralidade deve ser mais que um sonho
vazio, é necessário que se realize a união da virtude
e da felicidade. Entretanto, a experiência mostra
à saciedade que no sistema da natureza, empirica
mente conhecido, a felicidade não depende da vir
tude. Portanto, a união deve ser feita por um po
der supremo, não por nós. Assim, é um postulado
da moralidade que exista um ser supremo absoluta
mente sábio e santo.
A fraqueza essencial desses argumentos está
no fato de que seu ponto de partida não é um
problema religioso, mas um problema cosmológico
ou antropológico. Entretanto, também há uma si
tuação religiosa única, em que a mente se ocupa
primariamente não dos problemas da natureza e do
homem — por mais urgentes e importantes que
sejam — mas de Deus; não da relação do mundo
com nossas categorias, mas da relação do mundo
com Deus.
60
Será a ordem a coisa mais importante?
61
de, tfm receio que não poderia ser vencido por uma
fé de que nalgum lugar nos infinitos recessos da Di
vindade há uma fonte de sabedoria. É a ordem a
questão suprema? É a ordem o máximo que a sabedo
ria divina poderia produzir? Estamos mais ansiosos
por saber se existe um Deus da justiça do que sermos
informados de que há um Deus da ordem. Há um
Deus que recolhe as lágrimas, que corresponde à
esperança e recompensa as provações da inocência?
Ou devemos supor que os impérios do pensamento,
as santas intenções, as harmonias e os atos de sacri
fício dos honestos e dos humildes não são mais que
imagens esculpidas na superfície do oceano?
Filosofia da religião
62
existência, em momentos em que todas as conclu
sões anteriores, todas as trivialidades que sufocam
a vida ficam suspensas; em que a alma está faminta
por uma idéia da realidade eterna; em momentos
em que se descobre o indestrutível inesperado den
tro do constante perecível.
Podemos conseguir muitas coisas em nossa bus
ca de Deus, aplicando métodos racionais, desde que
nos lembremos que nas questões que se relacionam
com a totalidade da vida, devem entrar em jogo
todas as capacidades mais elevada^ da nossa perso
nalidade, particularmente nosso sentido do inefável.
%
8
A questão suprema
64
mente não deformada por hábitos intelectuais, dis
torcida pelo já conhecido, para uma surpresa inata
não viciada, não existem axiomas nem dogmas. Há
unicamente admiração, compreensão de que o mun
do é excessivamente inacreditável, demasiadamente
cheio de significação para nós. A existência do
mundo é o fato mais inverossímil, mais incrível.
Até nossa capacidade de surpresa está além da ex
pectativa. Em nossa admiração não viciada, somos
como espíritos que nunca tiveram consciência da
realidade externa, e aos quais o ^conhecimento da
existência do universo chegou pela primeira vez.
Quem poderia crê-lo? Quem poderia concebê-lo?
Precisamos aprender a superar a certeza ilusória e
a entender que a existência do universo é contrária
a todas as expectativas racionais. O mistério está
onde nos colocamos sem pressuposições, sem argu
mentações, sem doutrinas, sem dogmas.
65
5 - O homem não está só
com a consciência de uma realidade que desacredita
nossa sabedoria, que abala nossos conceitos. Portan
to, devemos começar com o inefável, porque de ou
tra forma não haveria problema. Devemos voltar
à sua percepção, pois do contrário nenhuma solução
teria importância.
A questão suprema
66
em que a interrogação suprema está fora de alcance.
O reino da especulação em que habitualmente de
batemos o mérito do nosso problema está a uma
grande distância do seu ambiente nativo, do reino
do inefável. No momento em que o problema é
colocado diante de nossos olhos críticos, já murchou
como uma folha ao bafo quente de um forno.
O sentido do inefável que, crescendo, alcança
e se inclina para a luz de uma realidade última
nunca poderá ser transplantado paca a superficiali
dade da mera reflexão. Arrancado do seu meio,
geralmente se transforma como uma rosa compri
mida entre as páginas de um livro. Quando redu
zido a termos e definições é pouco mais que o resto
ressequido de uma realidade anteriormente viva.
Se, apesar disso, tentamos refletir sobre a in
terrogação suprema na sua forma í&gica, deveríamos
pelo menos tratá-la como uma planta erradicada do
seu solo, removida de seus ventos, de seus raios
solares e de seu ambiente terrestre e que pode so
breviver somente se conservada em condições de al
guma forma semelhantes ao seu clima original.
Por isso, mesmo quando nosso pensamento sobre
ela se desenvolve num nível discursivo, nossa me
mória deve permanecer ancorada nas percepções do
inefável e nossa mente precisa permanecer num es
tado de temor respeitoso, sem o que nunca atingi
remos uma língua comum com o espírito do pro-
bleriaa, sem o que a natureza original da interroga
ção não se nos revelará.
O problema em apreço só será apreendido por
aqueles que forem capazes de encontrar categorias
que se combinem com o metal puro e de fundir o
imponderável numa expressão única. Não basta des
crever o conteúdo da consciência do inefável. De
vemos assediar a alma com perguntas, forçando-a
a entender e esclarecer o sentido daquilo que se
67
passà quando ela se encontra no horizonte supremo.
Penetrando a consciência do inefável, podemos con
ceber a realidade que está atrás dela.
68
Além das coisas
69
concireto e diretamente. Não é uma idéia que se
assemelha a uma lei geral aplicada a fenômenos
particulares. É algo incorpóreo, uma relação que
transcende os fatos e não algo que está dentro dos
fatos.
E contudo a realidade da significação inefável,
como demonstramos, está fora de toda discussão.
O imperativo do respeito e do temor é a prova da
sua evidência, uma prova universal que todos nós
testemunhamos com tremor e pasmo, não porque
queremos, mas porque estamos tomados de assom
bro e dele não conseguimos nos livrar. A realidade
tem muito mais significações do que a minha alma
é capaz de absorver. E quando começo a soletrar
a infinita sentença da minha admiração e a dizer
o que percebo, noto que toda a percepção é uma
exteriorização, que a essência começa onde termina
a percepção. A percepção do fato de que a reali
dade supera meu poder de percepção é demasiada
mente consistente, demasiadamente estonteante e
universal para ser ilusória.
Portanto a interrogação suprema não é uma
creatio ex nihilo da mente, mas uma repetição na
mente de algo que acontece à alma. A indicação
que transcende todas as coisas nos é dada com o
mesmo imediatismo que as próprias coisas. Sua
presença é um fato como qualquer outro o é. Mui
to mais que isso, é um fato dentro de todos os
fatos. Se é verdade que os aspectos concebíveis da
realidade estão próximos à nossa experiência, den
tro da experiência deparamos com o mistério. En
quanto nossas mentes ficam sobre as coisas, nossas
almas são levadas para além delas.
70
Uma presença espiritual
3 C f. adiante cap. 14 — D E U S É O S U JE IT O —
O pensamento de D eus não tem fachada.
71
Números, relações abstratas, não expressam a
sua essência, como o número dos membros de uma
família não conta a história única do seu drama.
(A vida interior, enquanto pensada, é, naturalmente,
um símile, mas é só através de símiles que podemos
comunicar-nos quando falamos da realidade última).
Para o homem religioso é como se as coisas
estivessem d e costas para ele e com o rosto voltado
para Deus, como se a qualidade inefável das coisas
consistisse em serem um objeto do pensamento di
vino. Assim como quando tocamos numa árvore
sabemos que a árvore não é o fim do mundo, que
ela se encontra no espaço, da mesma forma sabemos
que o inefável • — o que é santo em justiça, com
paixão e veracidade — não é o fim do espírito.
Que os valores supremos sobrevivem aos nossos
juízos errôneos, nossas vaidades e negações. Que
a significação é significativa não por causa das nos
sas mentes e que a beleza é bela não por graça
do homem.
A alma é introduzida numa realidade que não
só é diferente dela, como ocorre no caso dos atos
ordinários de percepção. Elá é introduzida numa
realidade que é mais elevada que o universo. Nossa
alma se compara com a glória dessa realidade como
o hálito com todo o ar do mundo. Somos introdu
zidos numa realidade, cuja simples consciência nos
é mais preciosa que nossa própria existência. O
pensamento dessa realidade é tão poderoso que não
pode ser ignorado e santo demais para ser por nós
absorvido. E um pensamento de que somos parti
cipantes. E como se a mente humana não estivesse
sozinha ao pensá-la, mas como se o universo inteiro
estivesse pleno dele. Não mais admiramos as coisas;
admiramos juntamente com todas as coisas. Não
pensamos a respeito das coisas. Pensamos por todas
as coisas.
72
9
Na presença de Deus
73
A aurora da fé
74
temor, com a fraqueza do nosso choque, o estado
de estarmos sendo interrogados pela interrogação
suprema.
A admiração infinita produz um sentido inato
de dívida. Em nosso temor não há lugar para ne
nhuma auto-afirmação. Em nosso reverente respeito
só sabemos que somos devedores de tudo o que
possuímos. O mundo não consiste em coisas, mas
em tarefas. A admiração é o estado que resulta da
nossa situação de sermos interrogados. O inefável
é uma interrogação que nos é dirigida.
Tudo o que nos resta é uma escolha — res
ponder ou recusar-nos a responder. Mas quanto
mais profundamente escutarmos, mais despojados fi
camos da arrogância e da indiferença, as únicas coi
sas que nos tornariam capazes de recusar. Carrega
mos uma carga de maravilhas, dçsejosos de trocá-la
pela simplicidade de saber para o que viver, uma
carga de que nunca poderemos aliviar-nos e por
outro lado não podemos continuar a carregá-la sem
saber para onde.
No momento em que lavra um incêndio que
ameaça destruir a própria casa, ninguém pára a
fim de investigar se o perigo que enfrenta é real
ou fruto da sua imaginação. Não é este o momento
de investigar o princípio químico da combustão ou
quem é o responsável pelo surgimento do incêndio .
A interrogação suprema, quando irrompe em nossas
almas, é excessivamente surpreendente, demasiada
mente carregada de inexprimível admiração, para
ser uma questão acadêmica, para ficarmos suspen
sos entre o sim e o não. Não é o momento de lan
çar dúvidas sobre a razão do seu surgimento.
75
Que é o enigma?
76
creta da nossa certeza da existência de um ser que
transcende todo o esplendor?
O problema que se apresenta diante de nós não
é se existe um Deus, mas se sabemos que existe um
Deus. Não se ele existe, mas se somos suficiente
mente inteligentes para apresentar razões adequadas
para afirmá-lo. O problema é: como dizê-lo às nos
sas mentes? Como vencer as antinomias que nos
impedem de conhecer clara e distintamente o que
ele significa? ^
Interrogação invencível
77
vem! de nós mesmos. É uma pressão que pesa so
bre nós e sobre todos os homens. Não comunica
palavra alguma. Só pergunta, só chama. Impõe-nos
uma interrogação, uma ordem que nosso coração faz
ecoar como um sino, avassalador como se fosse o
único som a reboar num silêncio infinito e nós os
únicos a ter que responder-lhe. Nossa mente e
nossa voz são grosseiras demais para pronunciar uma
resposta. É uma interrogação que exige todo o
nosso ser como resposta. Nossas palavras, nossas
posses, nossas realizações não constituem resposta.
As teorias e as explicações se dissipam como meros
divertimentos. Diante da interrogação deixamos de
perceber a resposta, diante da floresta não vemos
mais as árvores. Não há mais nem céus, nem ocea
nos, nem aves, nem árvores. Há somente uma in
terrogação, e esta é inefável.
Em busca da alma
78
o é. Em momentos assim nossa afirmação lógica,
nosso dizer “sim” é como uma bolha de pensamento
na praia de um mar eterno. Percebemos então
que o nosso problema não é: o que podemos co
nhecer? Como manifestá-lo às nossas mentes? mas,
sim: a quem pertencemos? Como abrir nossas vidas
a ele?
Onde não há mais auto-afirmação, quando se
percebe que a admiração não é obra nossa, que não
é só por nós mesmos que som^s invadidos pela
admiração radical, também não podemos mais assu
mir o papel de um examinador, de um sujeito em
busca de um objeto, tal como procuramos uma cau
sa quando ouvimos um trovão. Admiração suprema
não é a mesma coisa que curiosidade. Curiosidade
é o estado do espírito que está à procura de conhe
cimento, enquanto a admiração sí^rema é o estado
de conhecimento em busca de uma mente. É o pen
samento de Deus à procura de uma alma.
O importante não é o momento existencial do
desespero, a aceitação da nossa própria falência, mas
ao contrário, a percepção do nosso grande poder
espiritual, o poder de sanar o que está destruído
no mundo, a percepção da nossa capacidade de res
ponder à interrogação de Deus.
A fé não é um produto da nossa vontade. Elá
se verifica sem a intenção, sem a vontade. As pa
lavras morrem depois de pronunciadas, e a fé é
como o silêncio que aproxima os amantes, como um
hálito que participa do vento.
Não é uma conclusão de premissas lógicas nem
o produto de um sentimento que nos leva a crer
na sua resistência. Não é uma idéia que se obteve
ao parar e observar ou ao penetrar na alma escu
tando-se a própria voz interior. Não cremos porque
chegamos a uma conclusão. . . ou porque fomos
vencidos por alguma emoção. É uma transformação
79
dentro da mente causada por um poder que está
acima da mente, um choque e uma colisão com o
inacreditável pelo qual somos forçados a crer.
A premissa da glorificação
80
Deixemos a intuição acontecer
81
6 - 0 homem não está só
Deus está solicitando o homem
82
gueiam no vazio, mantém o seu coração vigilante
para a hora em que o mundo entra em arrebata
mento. As coisas não são mudas: o silêncio está
cheio de perguntas, à espera de uma alma para res
pirar o mistério que todas as coisas exalam na sua
ansiedade de comunhão. Do mundo eleva-se um
pedido para instilar no ar um hino arrebatador acer
ca de Deus, para encarnar nas pedras uma mensa
gem de humilde beleza e para instilar uma prece
para que haja bondade nos corações de todos os
homens.
83
conílta as grades da prisão descobriram que a vida
está envolvida em conflitos que não conseguem re
solver, que a ânsia de possuir que enche as ruas,
as casas e os corações é constantemente silenciada
pela ironia do tempo, que as nossas realizações são
minadas pela autodestruição — mesmo esses prefe
rem viver numa suntuosa, sofisticada dieta dentro
da prisão, a procurar uma saída do labirinto, em
busca de liberdade na escuridão desconhecida.
Mas há outros que não resistem e desesperam.
Não têm mais forças para sustentar a fé, não en
trevêem mais nenhuma meta pela qual valha a pena
empenhar-se, estão sem forças para procurar um ob
jetivo. Chega, porém, como um raio, um momento
em que o fulgor do oculto afasta para longe a nossa
apatia. É um instante cheio de um brilho que sub
juga, é como um ponto em que se concentram to
dos os momentos ou como um pensamento que su
pera todos os pensamentos já anteriormente conce
bidos . Há tanta luz em nossa prisão, em nosso
mundo, que este parece suspenso entre as estrelas.
Inesperadamente a apatia se transforma em esplen
dor. Num estremecimento inefável infiltra-se na al
ma. Penetra em nossa consciência como um raio
de luz penetra num lago. A refração desse raio
penetrante produz uma transformação em nossa
mente. Somos penetrados pela sua visão. Não so
mos mais capazes de pensar que ele está lá e nós
aqui: ele está tanto lá como aqui. Ele não é um
ser, mas ser em todas as coisas e acima d e todas
ela s.
Um tremor invade nossos membros. Nossos
nervos são atingidos e tremem como cordas. Todo
o nosso ser explode em assombro. Eis que então
uma voz, arrancada do nosso íntimo mais profundo,
enche o mundo à nossa volta, como se uma mon
tanha estivesse a ponto de postar-se diante de nós.
84
É uma palavra: Deus. Não é uma emoção, um im
pulso dentro de nós, mas um poder, uma maravilha
acima de nós, que separa o mundo de nós. A pa
lavra que significa mais que o universo, mais que
a eternidade, santo, santo, santo. Somos incapazes
de compreendê-la. Só sabemos que significa infini
tamente mais do que somos capazes de absorver
e repercutir. Confusos e perturbados balbuciamos:
Aquele que é mais que tudo o que existe, que fala
através do inefável, cuja interrogação é mais do que
podemos responder. Aquele para quem só nossa
vida inteira pode ser a soletração de uma resposta.
Uma inspiração passa, mas o fato de ter sido
inspirado não passa jamais. Permanece como uma
ilha através da agitação do tempo, para a qual nos
voltamos sobre a onda da eterna admiração. Per
manece uma ansiedade, uma angústia e um senti
mento de vergonha por sofrermos sempre a corrup
ção do esquecimento. . .
Podemos dizer não, se decidirmos alimentar
nossa mente com pressupostos e conceitos, agarrar
mos à duplicidade e recusar a significar o que per
cebemos, a pensar o que sentimos. Mas não existe
homem algum que pelo menos por um instante não
seja abalado pelo eterno. E se dissermos que não
temos coração para sentir, nem alma para ouvir,
rezemos pedindo lágrimas ou um sentimento de ver
gonha .
85
10
Dúvidas
86
apresentar o seu alibi como justificativa de sua in
capacidade de dar testemunho, .. .
A interrogação suprema na sua forma lógica é
um desafio permanente, que encontramos onde quer
que estejamos e não há maneira de ignorá-la. O
homem não pode deixar de estar comprometido
com uma realidade da qual depende , a significação
e o modo da sua existência. E impelido a alguma
espécie de afirmação. Em qualquer decisão que-to
ma aceita implicitamente ou a. presença de Deus
ou o absurdo de negá-la. O contra-senso da negação
é demasiadamente monstruoso para ser concebível,
pois implica que todo o universo está só, com ex
ceção da companhia do homem, que a mente, do
homem supera tudo dentro e além do universo.- A
menos que esqueçamos tudo o que acontece conosco
no incomparável estado da experiência do inefável,
em nosso encantamento sem palavras, quando a
maioria dos nossos conceitos são . eliminados - como
ficções da nossa cabeça e os preconceitos desapa
recem, não podemos afirmar que o homem tem o
monopólio da mente e da alma, que ele é o único
ser vivo, consciente dentro e além do. universo,
que não há nenhum outro espírito afora o espírito
do homem. Quem está aberto para o inefável guar-
dar-se-á da esquizofrenia espiritual, isto é, da perda
de contato com o mistério da vida que nos circunda
em toda parte e sempre. Por outro lado, quem
afirma a existência de Deus, embora possa ser in
capaz de defender a consistência epistemológica- do
seu julgamento, permanece coerente com a sua cons
ciência viva do inefável.
O sentido do inefável é anterior e mais forte
que as dúvidas. As provas lógicas da existência de
Deus são como um anticlímax para aqueles que
foram despertados por aquilo que os conceitos pro
curam verificar.
87
Tentando provar ou negar a existência de Deus,
assemelhamo-nos a fantoches que, incapazes de saber
para que e como são capazes de dançar, atrevem-se
a opinar sobre se há ou não alguém puxando as
cordas. Aqueles que acham impossível subsistir com
a dieta racional da alma racional não serão capazes
de representar a solene cerimônia de conceder a
Deus um reconhecimento de Jure, depois que sua
existência foi conclusivamente demonstrada e devi
damente confirmada.
Se a alma não estiver inflamada, nenhuma luz
da especulação poderá iluminar as trevas da indife
rença. Nenhuma demonstração lógica magistral da
existência de Deus e nenhuma análise dos intricados
conceitos tradicionais de Deus terá bom êxito em
afugentar as trevas. Os homens praticamente desa
prenderam a arte de ser persuadidos por meio de
abstrações a respeito da realidade última. Rara
mente a austera dignidade da evidência lógica abs
trata prevalece sobre as desconfianças da inércia
intelectual. É ingenuidade pensar que foi por causa
da refutação das clássicas provas de Deus por Kant
que o homem perdeu a sua fé. Sua fé estava per
dida muito antes de começar o seu ceticismo.
As provas podem ajudar a proteger, mas não
a iniciar a certeza. Elas são essencialmente expli
cações de algo que já nos é intuitivamente claro.
Quem procura a Deus para resolver suas dú
vidas, para tranqüilizar seu ceticismo ou para satis
fazer sua curiosidade não encontrará o caminho da
saída. A procura de Deus começa com a compreen
são de que o homem é que é o problema, de que
mais do que Deus é um problema para o homem,
o homem é um problema para Deus.
Se a divindade fosse uma noção complexa, po
deríamos suspeitar que se tratasse de um produto
da fantasia, uma combinação de características en-
88
contradas separadamente no mundo e que são ima
ginadas como existindo juntamente num sér. Mas
o divino como visão primeira é uma realidade que
transcende tanto o poder da mente como a ordem
do mundo e não uma composição de características
encontradas no mundo.
O divino é demasiadamente inefável para ser
um produto da mente humana, demasiadamente gra
ve, exigente e sobrepujante para ser postulado por
um pensamento que deseja que sèja verdade aquilo
em que acredita. Donde se originaria essa consciên
cia do ser absolutamente insuperável se não de uma
visão inderivável na sua total insuperabilidade? Mas
pode-se perguntar: não acalentamos, muitas vezes,
crenças que depois verificamos serem ilusões? Sim.
Podemos pensar que estamos vendo uma casa quan
do andamos de carro através do deserto e ao tentar
aproximar-nos dela verificamos que se trata de uma
miragem. Mas não poderíamos pensar que um qua
dro representa uma casa se não existisse uma reali
dade que é uma casa 11.
A objeção mais fundamental à crença na exis
tência de Deus é o argumento de que tal crença
passa dos dados da mente para algo que supera o
alcance da mente. O que nos dá garantia de que
uma idéia que nós julgamos obrigados a pensar é
verdadeira com relação a uma realidade que se en
contra além do alcance da mente? Tal objeção é vá
lida quando feita sob o aspecto especulativo. Mas,
como vimos, a certeza da existência de Deus não
surge como um corolário de premissas lógicas, como
um salto do reino da lógica para o reino da onto
logia, de uma hipótese para um fato. É, pelo con
trário, a transição de uma apreensão direta para um
4 C f. Collected Papers de C h . S. P e ir c e , 6 .4 9 3 .
89
pensamento, do fato de uma subjugação pela pre
sença de Deus para uma consciência da sua essência.
Percebendo a dimensão espiritual de todos os
seres, tomamos consciência da realidade absoluta do
divino. Ao formular um credo, ao afirmar que Deus
existe, apenas reduzimos a realidade suprema ao
nível do pensamento. Nossa fé é só uma reflexão
posterior.
Em outras palavras, nossa fé na realidade de
Deus não consiste em possuir primeiro uma idéia
e , depois postular o seu correspondente ontológico.
Ou, para usar uma frase kantiana, em ter a idéia
de cem cruzeiros e depois afirmar que se tem os
mesmos com base na idéia. O que ocorre aqui é
primeiro a posse real dos cruzeiros e depois a ten
tativa de contá-los. Há possibilidade de erros na
contagem das notas, mas as notas existem.
A fase decisiva, a transição do esquecimento
para üma consciência de Deus, não é um salto por
sobre um elo faltante num silogismo, mas uma re
tirada em que se deixa de lado as premissas ao
invés de acrescentar mais uma, em que se avança
para além da autoconsciência e se interroga o eu
e todas as suas pretensões cognocitivas.
Não temos forças para chegar ao clímax do
pensamento, não temos asas para nos alçarmos sobre
todos os perigos de distorção. Mas, às vezes, esta
mos inflamados contra e acima das nossas próprias
forças e a menos que a existência humana deva ser
considerada um asilo de loucos, a análise espectral
desse raio é evidência para aqueles que o procuram.
90
11
A fé
A fé em um atalho
91
pedaço de terra dada a cada vida que chamamos
tempo — é deixar a alma crescer além de si pró
pria. A fé é o fruto de uma semente plantada
nas profundezas da duração de uma vida.
Muitos de nós parecem pensar que a fé é um
bom atalho para se chegar ao mistério de Deus,
encurtando a interminável e vacilante estrada da
especulação crítica. A verdade é que a fé não é
um caminho, mas a abertura de um caminho, da
passagem da alma que deve ser constantemente es
cavado através das montanhas da indiferença. A
fé tampouco é um presente que recebemos imere
cidamente .
Não encontramos as coisas feitas. A fé é o
frulo de uma preocupação e uma vigilância penosa
e constante, da persistência em permanecer fiel a
uma visão. Não é um ato de inércia, mas um anseio
de manter viva nossa resposta a ele.
Assim como os homens são incapazes de notar
os fenômenos mais óbvios da natureza se não esti
verem interessados em conhecê-los, assim como não
terão nenhuma introspecção científica aqueles que
não estiverem preparados, da mesma forma são in
capazes de perceber o divino se não se tornam sen
síveis ao seu valor supremo. Sem a pureza da von
tade a mente não oferece passagem para a impor
tância de Deus.
Caminhos da fé
92
óbvio para o homem piedoso devemos suspender as
trivialidades do pensamento, deixar de ridicularizar
as percepções únicas e de sufocar nossas mentes
com noções estandardizadas. O maior obstáculo à
fé é a tendência de contentar-nos com meias ver
dades e meias realidades. A fé é dada só àquele
que vive com toda a sua mente e com toda a sua
alma, que procura compreender com todos os seres
e não busca apenas um conhecimento a respeito de
les, àquele cuja preocupação permanente é cultivar
nosso senso incomum, a educação do sentido do
inefável5. A fé é encontrada na solicitude pela fé,
na atenção apaixonada ao maravilhoso que existe
em toda parte.
Como a primeira na lista das virtudes, essa
ardente preocupação estende-se não só à esfera mo
ral, mas a todos os domínios da vida: a nós mesmos
e aos outros, às palavras e aos pensamentos, aos
acontecimentos e às ações. Sem se acovardar com
a predominante estreiteza da mente, persiste como
uma atitude que se relaciona com toda a realidade:
dá valor às pequenas coisas, leva a sério os assun
tos simples, relaciona as questões cotidianas com o
eterno. Não é uma atitude de afastamento da rea
lidade, de absorção passiva ou de auto-aniquilamen-
to. É, sim, a capacidade de testemunhar o que é
sagrado em meio aos negócios deste mundo e de
alimentar um sentimento de vergonha e desconten
tamento de viver sem fé, sem corresponder ao sa
grado .
93
Estranhas e diversas são as fontes das quais
nasce nossa insatisfação. Alguns de nós sofrem a
tristeza de viver constantemente por ninharias, sen
tem medo de uma morte desprevenida. Outros vi
vem angustiados pela maneira como a inocência
nos . nossos próprios membros e palavras se encontra
exposta à crueldade e temeridade das nossas pró
prias forças. Outros há que sentem o encanto da
santidade de viver para as suas leis. Ao invés de
entregar-se à inveja e à ambição, ao invés de com
prazer-se em si mesmos, resolvem manter seus cora
ções vigilantes para o aspecto de alusão que nos
circunda em toda parte.
Preferindo a bondade à beleza, o amor à força,
á gratidão à tristeza, suplicando o Senhor para que
nos ajude a compreender nossas esperanças, força
para resistir aos nossos temores, podemos receber
um suave sentido da santidade que impregna o ar
como algo estranho que não se pode eliminar. Sus
pirando e implorando a pureza da devoção em meio
aos escolhos da auto-indulgência, estaremos prepa^
rando a aurora da fé.
Alguns homens entram em greve de fome na
prisão da mente, famintos que estão de Deus. Há
uma felicidade, antiga e nova, nesta fome. A re
compensa do ardente sonho que rompe as barras
da prisão do pensamento é a percepção do intan
gível .
94
enrubescem, outros se cobrem com sua máscara..
A fé é um enrubescer-se na presença de Deus.
Alguns ruborizam, outros se cobrem com uma
máscara que impede a sensibilidade espontânea para
a dimensão santa e inefável da realidade. Todos
nós nos cobrimos com tanta maquilagem que o
nosso rosto quase desaparece. Mas a fé só vem
quando nos encontramos face a face — o inefável
dentro de nós com o inefável além de nós — quan
do permitimos ser vistos, quando .nos dispomos, a
comungar, a receber um raio e reflèti-lo. Para isso.
a alma deve estar viva dentro da mente.
A resposta a Deus não pode ser copiada. Deve
ser original de cada alma. Nem o sentido do divina
é percebido quando imposto por uma doutrina, quan
do aceito por ouvir dizer. Só entra no campo de
nossa visão ao saltar como uma faísca da bigorna
da mente, malhada e batida pelo temor, da reve*
rência.
Aqueles que o procuram por meio da abstração
não o encontrarão. Ele não é uma pérola perdida
no fundo da mente, que se encontra mergulhando,
nas ondas dos argumentos. O maior não é. jamais,
aquilo que se espera.
É justamente na nossa incapacidade de com
preendê-lo que dele mais nos aproximamos. A exis
tência de Deus não é real por ser concebível. Elá
é concebível porque é real. E ela é real para quem
aprende a .viver em tremor e temor sem nenhuma,
intenção, sem nenhum propósito de recompensa,
para quem vive em tremor e temor porque não
pode comportar-se de outra maneira, para quem
vive na consciência do inefável, mesmo que este
pareça louco, fútil e inconveniente.
Pensar a respeito de Deus como um “hobby”,
numa ocupação de tempo parcial, torna impossível
até a colocação do problema. Com efeito, qual é
95
a questão que nos ocupa? Uma curiosidade seme
lhante à da indagação a respeito da natureza da
eletrônica? A eletrônica não nos pergunta nada,
enquanto o começo da significação de Deus é a
consciência da nossa dependência dele.
Deus não é uma explicação dos enigmas do
mundo ou uma garantia da nossa salvação. É um
eterno desafio, uma interrogação que nos urge.
Não é um problema a ser resolvido, mas uma
interrogação dirigida a nós como indivíduos, como
nações, como humanidade.
Deus não terá nenhuma importância se não
for da máxima importância, o que significa uma
profunda certeza de que é melhor ser derrotado
com ele que ser vitorioso sem ele.
A prova da fé
96
tos do mundo físico que se desviam das leis conhe
cidas da natureza. De que servem milagres se nos
sos sentidos não oferecem segurança, se nossos co
nhecimento é incompleto? A fé precede toda ex
periência palpável ao invés de derivar-se dela. Sem
a posse da fé nenhuma experiência nos comunicará
uma significação religiosa.
No Cântico dos Cânticos está escrito: “Como
uma macieira em meio às árvores do bosque” (2 ,3 ).
O Rabi Aha Ben Zeira fez essa çomparação: “As
flores da macieira brotam antes das folhas; assim
Israel no Egito produziu a fé antes mesmo de ha
ver percebido a mensagem da redenção, conforme
está dito: “E o povo acreditou e ouviu que o Se
nhor tinha se lembrado dele” . (Ê x 4,31) (Mi-
drash Hazita 2 ,1 0 ) 6 .
%
6 Midrash (singular) ou Midrashim (plu ral), do verbo
hebraico darash que significa investigar, interpretar, são in
terpretações ou comentários sobre os livros da B íblia feitos
geralmente pelos rabinos e hoje reunidos em várias coleções.
A época em que se desenvolveram e foram compilados
cobre um período que se estende desde a conclusão do An
tigo Testam ento até cerca do ano mil da nossa era. E ntre
tanto, já encontramos formas de midrash nos últimos livros
do Antigo Testamento, por exemplo, em Ezequiel. Em o N o
vo Testamento temos o chamado midrash cristão, com parti
cular freqüência no Evangelho de são M ateus, nas E pístolas
e na pregação cristã cristalizada nos Atos dos A póstolos.
O s midrashim judaicos dividem-se em duas categorias: 1)
os halákhicos (d o radical hebraico halakh = caminhar e
deste o substantivo halakha — caminho, norm a), que são
interpretações e explicações de caráter legal e jurídico; 2)
os haggãdicos (do verbo hebraico nagadh = narrar, expli
car, donde o substantivo haggada = narração, exposição),
que são interpretações e explicações da Bíblia com o obje
tivo de edificação moral e espiritual, que contêm, muitas
vezes, elementos alegóricos e até partes legendárias. Entre
os primeiros enumeram-se: Mekhilta (regra) sobre o Ê xodo,
Sifra (o livro) sobre o Levítico e Sifre (os livros) sobre
N úm eros e D euteronôm io. D a segunda categoria os mais
importantes são: o Midrash Rabba (o grande) sobre todo
97
7 - O homem não está só
Uma frase de Rabi Isaac Meir de G e r7 ilus
tra o que queremos dizer. Comentando o versículo:
“E Israel viu a grande obra que o Senhor tinha
realizado contra os egípcios e o povo temeu o Se
nhor e teve fé no Senhor e no seu servo Moisés”
(Ê x 1 4 ,3 1 ), observou: “Embora tivessem visto os
milagres com seus próprios olhos, ainda precisavam
de fé, porque a fé é superior à visão. Com a fé
vê-se mais que com os olhos” .
Um ato do espírito
99
sagrados nos planaltos do tempo — os jardineiros
secretos do Senhor em meio à humanidade desolada
de esperanças — podem ser sacudidos e hesitar,
mas raramente trairão sua vocação.
É extremamente fácil ser cínico. É tão fácil
negar sua existência como o é cometer suicídio.
Mas ninguém está privado de alguma medida de
sugestionabilidade em relação ao Santo.
Até as almas mais pobres têm asas que as
elevam acima de onde o desespero vê o teto de
uma prisão.
'tu tu ?
100
12
O que entendemos por divino
101
tudb o que ele vive”, e o homem piedoso: “Tudo
o que ele expressa eu vivo” .
O teórico, em vez de colocar-se face a face
diante dos mistérios, coloca seus espelhos mentais
diante dele, transformando os mistérios em mitos,
reduzindo os enigmas a dogmas e colocando a ima
gem nos espelhos. Parece não perceber que a idea
lização das idéias leva a uma atrofia da intuição do
inefável; que podemos perder a Deus em nosso
credo, em nossas palavras, em nossos dogmas.
Vale a pena gastar uma vida inteira para dizer
como nossos pensamentos descobrem a pátina do
sagrado na superfície do que é comum. Mas os
pensamentos em que possa ser identificada tal des
coberta são raros e as palavras mais vitais morrem
quando pronunciadas. E por isso que Deus começa
onde terminam as palavras.
Mas ninguém pode viver só do mistério. A
consciência do inefável assemelha-se ao escutar de
uma interrogação de um pedido. Solicita-se algo de
nós. O quê? Somos impelidos a conhecer a Deus
para conformar-nos aos seus caminhos. Mas para
conhecê-lo teríamos que chegar quase ao impossível:
traduzir o inefável em termos positivos. Surge,
assim, o problema: se para ser conhecido o ine
fável tem que ser expresso, não se segue daqui que
o conhecemos como ele não é?
As compreensões da religião precisam percor
rer uma longa distância até chegar à expressão e
facilmente podem definhar ou até morrer no ca
minho que medeia entre o coração e os lábios.
Nossa consciência é imediata, mas nossas interpre
tações são discursivas. Muitas vezes ocorrem aci
dentes no tráfego congestionado da alma, particu
larmente quando sob o esforço de perceber mais que
o coração é capaz de ouvir, fazemos compromissos
com palavras que nos desviam do caminho.
102
A intuição de Deus é universal. Entretanto,
dificilmente haverá uma forma universal ■ — com
poucas possíveis exceções — de expressá-la. Efe
tivamente, as concepções sobre a divindade têm apre
sentado, através da história, muitas divergências e
contradições entre si, desenvolvendo-se às vezes co
mo erva daninha, sendo causa de espinhos e discór
dias. Se a uniformidade e a impecabilidade de ex
pressão fossem a marca da autenticidade, essa di
vergência e distorção refutaria nossa suposição da
realidade do mistério. Mas o fato é que as opiniões
dos homens sobre Deus através da história não
apresentam maior variedade, que, por exemplo, suas
opiniões acerca da natureza do mundo.
Padrões de expressão
103
for digna. Pois o mistério não é sempre evasivo.
Em raros momentos entrega-se àqueles que foram
escolhidos. Não podemos expressar Deus, mas Deus
nos expressa a sua vontade.
É através da sua palavra que sabemos que
Deus não está além do bem e do mal. Não fosse
a orientação recebida, nossa emoção nos deixaria
num estado de confusão.
104
altíssimo. Tampouco nosso sentimento ou estado
de absoluta dependência constitui um índice da sua
presença. A força física ou as obsessões internas
podem subjugar-nos numa coação irresistível. Co
mo já foi dito muitas vezes, o sobrevivente de um
naufrágio, que se agarra a uma tábua flutuante, en
contra-se num estado de absoluta dependência da
tábua.
Não se pode empreender nenhuma pesquisa
sem alguma pressuposição ou perspçctiva donde par
tir. O cientista ao formular um problema deve
até certo ponto antecipar o conteúdo da solução
que procura, pois de outra forma não saberia o
que está indagando nem seria capaz de julgar se
as soluções que encontrar são pertinentes ao seu
problema. A filosofia foi definida como uma ciên
cia com um mínimo de pressuposições, pois não há
maneira de progredir em nossos pensamentos sem
alguma perspectiva, sem alguma suposição inicial.
Essa suposição inicial encontra-se no começo
de toda especulação acerca de Deus. Para a mente
especulativa Deus é o ser mais perfeito. O atri
buto da perfeição e sua implicação de sabedoria
serve de ponto de partida para as indagações a
respeito da existência e da natureza de Deus.
O atributo da perfeição
105
louytor que podemos usar ao darmos vazão à nossa
emoção. Mas empregar esta palavra como nome de
sua essência significaria para o homem avaliá-lo e
confirmá-lo. A linguagem bíblica está livre de tal
insolência. Esta só ousou chamar de tamim, per
feita, a “Sua obra” (D t 3 2 ,4 ), “Seus caminhos”
(2Sam 22,31) ou a “L ei” (Sl 1 9 ,7 ). Em lugar
algum lemos: “Ouve, Israel, Deus é perfeito!” É
um atributo notadamente ausente, tanto na litera
tura bíblica, como na rabínica.
Quem somos nós para glorificá-lo ou mesmo
para nomeá-lo? Entre nós nunca se pronuncia o
Nome Inefável e em lugar dele usamos uma pará
frase — o Senhor — que, em nosso vocabulário é
um título de distinção menor. Isso, segundo o
Rabi Pinchas de Koretz, não porque sua majestade
seja limitada, mas porque nosso mundo é de impor
tância menor. Um grande imperador tem, entre ou
tras denominações, o título de “soberano” de certa
ilha. Esse título é de menor valor porque a ilha
é pequena8. Mas há uma idéia que transporta nos
sos pensamentos além do horizonte da nossa ilha.
Uma idéia que se dirige a todas as mentes e é taci
tamente aceita como um axioma pela ciência e
como um dogma pela religião monoteísta. É a idéia
do uno. Todo conhecimento e compreensão se ba
seia na sua validade. Não obstante as profundas
diferenças daquilo que descreve e significa nos vá
rios campos do pensamento humano, há muita coisa
comum e de recíproca importância.
106
A idéia do universo
107
relativa e que as grandezas são determinadas pelo
sistema de referência em que são medidas, sua fi
nalidade é encontrar novas invariáveis, descrevendo
a realidade de uma maneira que seja independente
da escolha do sistema de referência. Não exclui o
princípio de unidade, mas, pelo contrário, procura
“satisfazer a uma nova e mais estrita exigência de
unidade” 10.
Se é impossível seguir o caminho mediante o
qual o grande segredo da unidade que tudo abrange
chegou até nossas mentes, é certo que não foi obti
do por mera percepção dos sentidos ou por meio
de uma mente que pensou em prestações, através
de uma série de graus distintos, cada qual logica
mente dependente do anterior. Aquilo a que se re
fere a idéia do universo transcende o alcance da per
cepção ou a extensão de qualquer premissa possível,
incluindo coisas conhecidas e desconhecidas, origens
e fins, fatos e possibilidades, o passado pré-histórico
e o futuro distante, fenômenos já descritos por
Newton e fenômenos que serão observados daqui
a mil anos. A idéia do universo é uma introspecção
metafísica.
Fraternidade cósmica
108
“Sou o olho com o qual o Universo
Se vê a si mesmo e se sabe divino”
(Shelley, “Hino de Apoio” V I, l s ) .
109
gar-nos de uma vez por todas ao espírito do todo.
É suspeitosamente mais fácil sentir-se um com a
natureza que sentir-se um com cada homem: com
o selvagem, com o leproso, com o escravo. Aqueles
que sabem que ser um com o todo significa existir
para cada parte do todo, procurarão amar não só
a humanidade, mas também o homem individual
como se fosse todos os homens. Quando nos deci
dimos a servir aqui e agora, descobrimos que a
visão da unidade abstrata desaparece da vista como
um raio e o que permanece são as trevas de uma
noite chuvosa, em que devemos lutar com suor e
lágrimas contra a escravidão para produzir um raio
de claridade, para acender uma tocha.
Os politeístas são cegos para a unidade que
transcende um mundo de multiplicidade, enquanto
os monistas esquecem multiplicidade de um mundo
cuja abundância e desarmonia encontramos para on
de quer que nos voltemos. O monismo é um tear
de ilusões. A vida é intrincada, encarniçada e ins
tável. Não podemos ficar coerentes com todos os
objetivos. Constantemente somos obrigados a fazer
uma opção e a opção por uma coisa significa uma
renúncia a outra.
Ainda que se admita a sua validade, a idéia
de uma harmonia universal da natureza, de uma
concórdia geral nas relações da parte para com o
todo, é destituída de valor para os problemas ime
diatos da vida. Por mais intrincada, sábia e pró
diga de beleza que seja a natureza, nós, em nossa
confusão humana, somos incapazes de traduzir suas
leis gerais para a linguagem das decisões individuais,
pois decidir significa transcender e não seguir o pa
drão das leis naturais. As normas da vida espiritual
constituem um desafio para a natureza e não uma
parte da natureza. Há uma discrepância entre o
ser e o espírito, entre os fatos e as normas, entre o
110
que é e o que deve ser. A natureza tem pouca con
sideração para com as normas espirituais e muitas
vezes é insensível, se não hostil, aos nossos em-
penhos morais.
O homem é mais que razão. O homem é vida.
Defrontar-se com a interrogação que tudo abrange,
é defrontar-se com algo que é mais que um prin
cípio, mais que um problema teórico. Um prin
cípio é algo que o homem pode conceber ou con
verter num objeto da sua mente, Mas diante da
interrogação suprema o homem sé sente chamado
e desafiado para além das palavras nas profundezas
da sua existência. Não se trata de um problema
que ele compreende, mas do fato de estar exposto
a um conhecimento que o compreende a ele. De
que vale, então, o conhecimento de princípios, dos
princípios matemáticos?
111
Instilar explicações científicas da natureza nu
ma alma que vive o sagrado temor do inefável é
como plantar flores artificiais no meio das flores
de um jardim. A não ser que neguemos o que sen
timos, que sucumbamos ao narcisismo intelectual,
como podemos considerar o que conhecemos como
sendo a realidade suprema?
Conforme já dissemos acima, não é a ordem
e a sabedoria da natureza que são manifestos no
tempo e no espaço, mas dentro de toda ordem e
sabedoria a indicação daquilo que as transcende, do
que está além do tempo e do espaço, que nos co
munica a consciência dos problemas supremos. O
mundo está repleto dessa indicação. Para onde quer
que nos voltemos encontramos o inefável, mas os
nossos sentidos são muito fracos e insuficientes para
captá-lo. Se o universo é uma imensa alusão e
nossa vida interior uma citação anônima, a desco
berta de uma lei universal que dominasse a reali
dade empírica não responderia à nossa interrogação
essencial. O problema último não é um problema
de sintaxe, de entender como as várias partes da
natureza são colocadas e dispostas nas suas relações
mútuas. O problema é: o que é que representa a
realidade, a unidade? Descrevemos as leis univer
sais por meio das relações dentro do dado, do co
nhecido. Mas diar.te da questão última somos leva
dos para além do conhecido, à presença do divino.
Da pluralidade empírica dos fatos e valores,
não podemos deduzir um plano que domina tanto
o reino dos fatos como o domínio das normas, tanto
a natureza como a história. Só no espelho da uni
dade divina podemos contemplar a unidade de tudo:
da necessidade e da liberdade, da lei e do amor.
Só ela nos dá uma introspecção na unidade que
transcende todos os conflitos, a fraternidade da es
perança e da tristeza, da alegria e do medo, da torre
112
e da sepultura, do bem e do mal. A unidade como
um conceito científico é só um reflexo de uma idéia
transcendente, que abrange não só o tempo e o
espaço, mas também o ser e o valor, o conhecido
e o mistério, o aquém e o além.
Deus não pode ser reduzido a uma idéia bem
definida. Todos os conceitos se desfazem quando
aplicados à sua essência. Para o homem piedoso
o conhecimento de Deus não é um pensamento ao
seu alcance, mas uma forma de pensar em que pro
cura compreender toda a realidade. É o segredo
não revelado do solo em que todo o conhecimento
se transforma numa semente de sentido, um segre
do pelo qual vivemos e que jamais chegamos a en
tender realmente. Um solo do qual as raízes de
todos os valores exaurem perene vitalidade. Acima
e contra a divisão entre homem «se natureza, entre
o eu e o pensamento, entre o tempo e a tempora
lidade, o homem piedoso é capaz de perceber o
entrelaçamento de tudo, a união do que está sepa
rado, o amor que paira sobre os atos de bondade,
as montanhas, as flores, que brilha no seu esplendor
como se fosse contemplado por Deus.
Como podemos identificar o divino?
O divino é uma mensagem que revela unidade
onde vemos diversidade, que revela paz onde nos
envolve a discórdia, Deus é aquele que mantém uni
das nossas vidas vacilantes, que nos revela que o
que é empiricamente diverso em cor, em interesse,
em credos, em raças, classes e nações é um aos seus
olhos e um na essência.
Deus significa: ninguém está só; a essência do
temporal é o eterno; o momento é uma imagem de
eternidade num mosaico infinito. Deus significa:
União de todos os seres em santa alterid ad e.
Deus significa: o que está atrás da nossa alma
está acima do nosso espírito; o que está na raiz
113
3 - O homem não está só
de nós mesmos está no fim de nossos caminhos.
Ele é o coração de tudo, desejoso de receber e de
sejoso de dar.
Quando Deus se torna a nossa forma de pen
sar, começamos a sentir todos os homens num ho
mem, o mundo inteiro num grão de areia, a eter
nidade num momento. Para a ética profana um ser
humano é menos que dois seres humanos. Para o
espírito religioso causar a morte de uma única alma
é como causar a morte de todo um mundo e salvar
a alma é como salvar o mundo inteiro.
Se à luz de uma introspecção religiosa eu con
seguir vislumbrar um caminho para concentrar mi
nha vida dispersa, para unir o que está dividido
em discórdia, um caminho que é bom para todos
os homens como o é para mim, saberei que este é
o seu caminho.
114
13
Um Deus
A atração do pluralismo
115
A unidade como objetivo
116
O mundo não é um com Deus, e é por isso
que o seu poder não corre livremente através de
todos os degraus do ser. A criatura está separada
do Criador e o universo se encontra num estado de
desordem espiritual. Mas Deus não se retirou com
pletamente deste mundo. O espírito desta unidade
paira sobre a face de toda a pluralidade, e a tendên
cia mais forte de todos os nossos pensamentos e
esforços é a sua poderosa intimação. A meta de
todos os esforços é alcançar a restituição da uni
dade de Deus e do mundo. A restauração desta
unidade é um processo constante e a sua realização
será a essência da redenção messiânica.
117
Para onde irei?
118
perguntar: qual deles? Só há um sinônimo para
Deus: U m .
Para a mente especulativa, a unicidade de Deus
é uma idéia deduzida da perfeição suprema de Deus.
Para o sentido do inefável a unicidade de Deus é
auto-evidente.
Escuta, ó Israel
'v
119
um Deus alcançou na história do judaísmo? Além
disso, foram levantadas dúvidas sobre o termo “um”,
se tem sentido quando aplicado a Deus. Pois como
podemos designá-lo por um número? Um número
é um dentre uma série de símbolos usados na dis
posição de quantidades, para colocá-los em relação
entre si. Visto que Deus não está no tempo e no
espaço nem é uma parte de uma série, “o termo
um é tão inaplicável a Deus como o termo muitos,
pois tanto a unidade como a pluralidade são cate
gorias quantitativas, sendo por isso tão inaplicáveis
a Deus como curvo e reto em relação a doçura, ou
salgado e insípido em relação à voz” (Maimônides
— Guia dos Perplexos I, 5 7 ) .
A coragem de atacar todas as divindades, as
santidades de todas as nações, baseava-se em algo
mais que a abstração: “Um, não muitos” . Atrás
da revolucionária afirmação: “Todos os deuses das
nações são nada” estava uma nova compreensão da
relação do divino para com a natureza: “Mas ele
fez os céus” (Sl 9 6 ,5 ). No paganismo a divindade
era uma parte da natureza e o culto era um ele
mento nas relações do homem com a natureza.
Tanto o homem como as divindades estavam sujei
tos à natureza. O monoteísmo ao ensinar que Deus
é o Criador, que a natureza e o homem são ambos
criaturas de Deus, redimiu o homem da sujeição
exclusiva à natureza. A terra é nossa irmã, não
nossa mãe.
120
Os céus não são Deus, são suas testemunhas:
proclamam a sua glória.
Um significa único
121
que existe juntamente com este mundo, mas uma
realidade que está acima e além do universo.
Um significa somente
122
Em lR s 4,29, bem como em outras passagens bí
blicas, ehad significa “somente” .
“O que somos nós? O que é nossa vida? O
que é nossa justiça? O que é nosso auxílio? Nossa
força? Nosso poder? O que podemos dizer na tua
presença, Senbor nosso Deus e Deus dos nossos
pais? Na realidade, todos os heróis não são nada
diante de ti, os homens famosos como se nunca
tivessem existido, os sábios como se não tivessem
conhecimentos, os inteligentes conjo se fossem pri
vados de entendimento, pois a maior parte das suas
ações não têm valor e os dias da sua vida são vãos
aos teus olhos” (Oração matutina judaica).
Deus é Um. Só ele é real. “Todas as nações
são como nada diante dele, são consideradas por
ele como coisas insignificantes e vaidade” (Is 40,
1 7 )' .
“ Somos mortais e como água derramada no
chão que não pode mais ser recolhida” (2Sam 14,
1 4 ).
Um significa o mesmo
16 V er notas 29 e 30.
123
“Um”, neste sentido, significa “o mesmo” .
Este é o verdadeiro sentido de “Deus é um” . Ele
é um ser que está ao mesmo tempo além e aqui,
na natureza e na história, que é simultaneamente
amor e força, que está perto e longe, conhecido e
desconhecido, o Pai e o Eterno. O verdadeiro con
ceito de unidade só se atinge no conhecimento de
que há um ser que é ao mesmo tempo Criador e
Redentor. “Sou o Senhor, teu Deus, que te tirou
da terra do Egito” (Ê x 2 0 ,2 ) .
É com esta declaração da mesm idade, da iden
tidade do Criador e do Redentor que começa o
Decálogo 17.
Tu és Um
E ninguém consegue penetrar. . .
O mistério da tua insondável unidade. . .
(Ibn Gabirol, Keter Malhut) 19.
124
O bem e o mal
125
o bêm é convergência, reunião, união. O bem e
o mal não são qualidades da mente, mas relações
dentro da realidade. O mal é divisão, contestação,
falta de unidade e como a unidade de todo ser é
anterior à pluralidade das coisas, assim o bem é
anterior ao mal.
O bem e o mal permanecem independentes do
fato de lhes darmos ou não atenção. Não nascemos
no vazio. Quer queiramos, quer não, encontramo-
-nos relacionados com todos os homens e com o
Deus uno. Como não criamos as dimensões do es
paço para construir as figuras geométricas, assim
também não criamos as relações morais e espirituais.
Estas são dadas com a existência. O que fazemos
é unicamente ajustar-nos dentro delas. O bem não
começa na consciência do homem. É o ser reali
zado na cooperação natural de todos os seres, en
quanto uns existem para os outros.
Não são as estrelas nem as pedras, nem os áto
mos nem as ondas, mas o seu pertencer uno aos
outros, sua interação, a relação de todas as coisas
entre si, que constitui o universo. Nenhuma célula
pode existir sozinha, todos os corpos são interde
pendentes, influenciam-se e servem-se reciprocamen
te. Falando figuradamente, até as pedras produ
zem seus frutos, estão plenas de bondade não apre
ciada quando sua força mantém uma parede de pé.
20 O r Yesharim, 87.
126
Ao dizer que Deus está em toda parte, não
queremos dizer que ele é como o ar, cujas partes
se encontram em lugares incontáveis. Um em sen
tido metafísico significa totalidade, indivisibilidade.
Deus não se encontra parcialmente aqui e parcial
mente ali. Está totalmente aqui e totalmente ali.
“Senhor, onde poderei encontrar-te?
Alto e oculto é teu lugar;
E onde não poderei encontrar-te?
O mundo está cheio da tua glória”
(Judas Haíevi) 21.
“Pode alguém esconder-se em lugares tão se
cretos que eu não possa vê-lo? disse o Senhor. Por
acaso não encho os céus e a terra? disse o Senhor”
(Jer 2 3 ,2 4 ).
Deus está dentro de todas as coisas, não só
na vida do homem. “Por que Deus falou a Moisés
de dentro da sarça?”, foi a pergunta que um pagão
dirigiu a um rabino. Para uma mentalidade pagã,
ele deveria ter aparecido sobre o alto de uma mon
tanha ou na majestade de uma tempestade. E o
rabino respondeu: “Para ensinar que não há lugar
na terra em que não esteja a Shekhinah22, nem
mesmo um humilde espinheiro” ( Ê xod o R abba, 2,
9 cf. Cântico dos Cânticos R abba 3,16) 23. Como
a alma enche o corpo, Deus enche o mundo. Como
a alma suporta o corpo, Deus suporta o mundo24.
127
.0 natural e o sobrenatural não são duas es
feras diferentes, separadas uma da outra como o
céu da terra. Deus não está além daqui, mas aqui
mesmo. Não só junto aos pensamentos, mas tam
bém junto ao meu corpo, É por isso que se ensina
que o homem deve estar consciente da sua presença
não só pela oração, pelo estudo e pela meditação,
mas também na sua vida física, em como e o que
comer e beber, conservando o corpo livre de toda
impureza e profanação.
“ Um ídolo está próximo e longínquo; Deus
está longínquo e próximo” (D euteronôm io R abba
2,6
“Deus está longínquo e, contudo, nada está
mais perto do que ele” {Jerushalm i B erakhot 13a) 25.
E a sua alteridade, inefável e imediata como
o ar que respiramos e não vemos, que nos torna
capazes de sentir sua distante proximidade. “Pois
assim falou o que é alto e elevado, que habita a
eternidade, cujo nome é Santo: Eu habito o lugar
elevado e santo, e também com aquele que é de
espírito contrito e humilde, para revivescer o es
pírito do humilde, e para revivescer o coração dos
contritos” (Is 5 7 ,1 5 ).
128
da criação proclama: “Um dia. . . um segundo dia...
um terceiro dia”, e assim por diante. Tratando-se
de contar o tempo, esperaríamos que a Bíblia dis
sesse: “Um dia. . . dois dias. . . três dias”; ou: “O
primeiro dia. . . o segundo dia. . . o terceiro dia”,
mas certamente não um, segundo, terceiro!
Y om ehad, um dia, significa na verdade o dia
em que Deus desejou ser um com o homem. “Des
de o começo da criação o Santo, bendito seja ele,
desejou entrar em sociedade com o mundo terres
tre” 26. A unidade de Deus é a referência para a
unidade do mundo.
129
9 - O homem não está só
14
Deus é o sujeito
O “eu” é “algo”
130
a primeira vista de uma ilha desconhecida, não con
segue acreditar que toda a beleza e grandeza que
acaba de descobrir nunca tenha sido vista, nunca
tenha sido pensada, nunca tenha sido apreciada an
tes da sua chegada. Na rotina diária de pensar, pa
rece-nos que o eu é o único fator ativo, o único
poder que conta; que o mundo é apenas matéria
para ser usada. E assim as idéias são também ape
nas bens úteis para serem gastos e consumidos con
forme o desejo. Bem diverso é-„o que ocorre na
vida das almas independentes e criativas, que não
tratam o mundo como donos auto-inflados, como
sujeitos que se celebram a si mesmos. Abandonam
tudo o que conhecem para se tornarem receptivos,
para se transformarem num foco em que se possa
captar a luminosidade do mundo. A percepção cria
tiva não se realiza através de cálculos. Surge como
uma resposta dentro de uma experiência em que
a significação das coisas impõe sua força ao sujeito
da experiência.
Para o sentido do inefável o mundo não é
solo virgem. O mundo ê e ê pen sado. A eterni
dade é a memória de Deus. O mundo está diante
de nós, enquanto Deus está atrás de nós.
Quanto mais profundamente estivermos aten
tos à interioridade que reside em todas as coisas
e ao mistério do ser que compartilhamos com todas
as coisas, tanto mais profundamente compreendere
mos a natureza do objeto do eu. Começamos a en
tender que o que é um “eu” para nossas mentes
é “algo” para Deus. Por isso a consciência de ob
jeto, e não a consciência de eu, constitui o ponto
de partida para nossos pensamentos a respeito dele.
É em nossa consciência de objeto que começamos a
compreender que Deus é mais que o divino.
131
Õ pensamento de Deus não tem fachada
132
tamos todos nele quando ele é tudo em nós. Con
cebê-lo é ser absorvido por ele, como o presente no
passado, num passado que nunca morre.
Nosso conhecimento dele e da sua realidade
não estão separados. Pensar nele é abrir nossas
mentes à sua presença que tudo impregna, ao fato
de estarmos plenos da sua presença. Pensar em
coisas significa ter um conceito dentro da mente,
enquanto pensar nele se assemelha a andar sob um
dossel de pensamento, a ser circundado pelo pen
samento. Ele permanece fora de nosso alcance en
quanto não compreendermos que nosso alcance está
dentro dele, que ele é o Conhecedor e nós os co
nhecidos, que ser significa ser pensado por ele.
Pensar em Deus é possível pelo fato de ele
ser o sujeito e nós o seu o b je t o . Pensar em Deus
é expor-nos a ele, é conceber-noá^como um reflexo
da sua realidade. Ele não pode ser limitado a um
pensamento. Pensar significa pôr de lado ou se
parar um objeto do sujeito pensante. Mas sepa-
rando-o, ganhamos uma idéia e perdemos a Deus.
Como ele não está afastado de nós e nós não es
tamos além dele, ele nunca poderá tornar-se um
mero objeto do nosso pensamento. Como, ao pen
sarmos sobre nós mesmos, o objeto não pode ser
separado do sujeito, assim ao pensarmos em Deus
o sujeito não pode ser separado do objeto. Pen
sando nele percebemos que é através dele que pen
samos nele. Assim, devemos pensar nele como su
jeito de tudo, como a vida da nossa vida, como a
mente da nossa mente.
Se uma idéia tivesse capacidade de pensar-se,
de transcender-se a si mesma, teria neste momento
consciência de ser um pensamento de minha mente.
O homem religioso tem tal consciência de ser co
nhecido por Deus como se fosse um objeto, um
pensamento na sua mente.
133
!Para o filósofo Deus é um objeto, para os ho
mens em oração ele é o sujeito. Seu objetivo não
é o de possuí-lo como um conceito do conhecimen
to, de informar-se a respeito dele, como se fosse
um fato entre outros fatos. O que desejam é es
tarem totalmente possuídos por ele, ser um objeto
do seu conhecimento e de senti-lo. O que importa
não é conhecer o desconhecido, mas ser penetrado
por ele. Não conhecer, mas ser conhecido dele, ex
por-nos a ele ao invés de ele expor-se a nós. Não
julgar e afirmar, mas escutar e ser julgado por ele.
Seu conhecimento do homem precede o conhe
cimento que o homem tem dele, e o conhecimento
dele pelo homem inclui só o que Deus interroga ao
homem. Este é o conteúdo essencial da revelação
profética 27.
134
ser visto por Deus. Ele não é o objeto de uma
descoberta, mas o sujeito da revelação.
Não há conceitos que pudéssemos indicar para
designar a grandeza de Deus ou para representá-lo
às nossas mentes. Ele não é um ser cuja existência
possa ser confirmada ou descrita por nossos pen
samentos. Ele é uma realidade diante da qual, quan
do conscientes da sua significação, somos invadi
dos por um sentimento de infinita indignidade.
Deus é incognoscível
Tendo um sentido muito fraco para o mistério,
o homem moderno dispõe-se a aceitar o princípio
do agnosticismo como uma panacéia para todos os
problemas teológicos e metafísicos. Está inclinado
a acreditar que, se existe um sei%supremo, a dife
rença entre ele e o homem é muito maior que a
diferença entre a matéria inconsciente e o homem
consciente; que, conseqüentemente, o homem pode
conhecer tanto a respeito dele quanto uma bolha
de sabão a respeito da teoria da relatividade; que
Deus não tem nada a ver com este miserável pla
neta; que ele está no alto e tão acima das formas
de existência que nos são conhecidas, que só o
nada pode ser o lugar da sua habitação. Hoje é
tão plausível afastá-lo para além de todo o além,
como outrora o era sentir um espírito dentro de
uma árvore ou de uma pedra. Entretanto, quem
insiste que Deus é incognoscível por todos os modos
afirma conhecer aquilo que diz não poder ser co
nhecido. Afirma saber que Deus vive numa prisão
de inescrutável irrelacionamento, atrás das barras
da infinitude e do totalmente outro.
O termo “conhecimento”, no sentido em que
é empregado para coisas finitas, é, de fato, inaplicá
vel à essência de Deus. Contudo, nossa consciência
135
contíém mais do que a certeza de que ele existe.
Se estar imerso no pensamento significa revestir-se
de opiniões, como se enfeita a cabeça com plumas,
somos néscios; mas se os pensamentos são como o
sangue que circula dentro de nós, então podem ser
encontrados nas pontas dos dedos de uma alma
sensível. Muitas vezes, conhecemo-lo desconhecida-
mente e não conseguimos percebê-lo quando insisti
mos em conhecê-lo.
O homem tem afinidade com o divino pelo que
é e não só pelo que compreende. A essência do
seu espírito, que luta com aquele que está além do
inefável e, muitas vezes, prevalece sobre ele, efeti
vamente deve estar relacionado com Deus. E quan
do o seu espírito se eleva à procura dele, é o divino
no homem que é responsável por esta exaltação.
“O espírito do homem é a lâmpada do Senhor, ela
penetra o íntimo do seu ser” (Prov 2 0 ,2 7 ).
Deus estaria fora do nosso alcance se tivésse
mos que procurá-lo na prisão à luz dos fogos de
artifício das nossas mentes. Mas somos “pó e cin
zas” . Pó da terra e cinzas do seu fogo, e a mente,
despertando a alma, pode soprar as brasas do seu
fogo que ainda estão acesas. Assim, perguntar por
que cremos é perguntar por que percebemos. Nossa
fé em Deus é Deus (D euteronôm io R abba 1 ,1 0 ).
Não precisamos de palavras para comunicar-
-nos com o mistério. O inefável em nós comunga
com o inefável além de nós. Não precisamos ex
pressar a Deus, se deixarmos o nosso eu continuar
a ser seu, a ser o eco da sua expressão.
Recorrendo ao divino depositado em nós, não
precisamos lamentar o fato de o seu horizonte ficar
tão longe. Se cumprirmos sinceramente os seus
mandamentos, a distância desaparece. Não está em
nosso poder forçar o além a transferir-se para cá,
mas podemos transportar o aqui para o além.
136
Nosso conhecimento é uma alusão
137
É um brado em nome da justiça, duma justiça que
não pode ter nascido de nós e não existir na nossa
fonte. Quem está atento ao inefável recusará acei
tar uma fonte de energia chamada a causa primeira
como expressando o altíssimo. Sabe que afirmar que
o altíssimo está dotado de espírito é uma indicação
grosseira. Prefere mantê-la em silêncio a formu
lá-la .
Conhecimento ou entendimento?
138
não é um enigma, mas justiça e misericórdia; não
só uma força perante a qual somos responsáveis,
mas também um exemplo para a nossa vida. Ele
não é o Desconhecido, ele é o Pai, o Deus de
Abraão. Do silêncio dos tempos anteriores surgiu
finalmente a compaixão e a orientação.
%
15
O interesse divino
O problema da existência
140
moral esbarram em dificuldades insuperáveis, prin
cipalmente por causa da disparidade entre a existên
cia inanimada e a existência animada e pessoal.
Uma caneta, uma pomba e um poeta têm em
comum o ser, mas não só a sua essência senão tam
bém a sua existência não são as mesmas. A dife
rença entre a existência de um ser humano e a exis
tência de uma caneta é tão radical e intrínseca quan
to a diferença entre a existência de uma caneta e
a não existência do Navio Fantasma. Isso se en
tende quando se compara um homem vivo com um
cadáver. Ambos contêm os mesmos elementos quí
micos exatamente nas mesmas proporções, pelo me
nos imediatamente após a morte. No entanto, um
homem morto é inexistente como homem, como
ser humano ou social, embora ainda exista como
cadáver. %
Vida é preocupação
141
estádo passivo de indiferença e inércia. A essência
da vida é intensa inquietação e preocupação. Por
exemplo, a vida da célula depende da sua capaci
dade de fabricar e de reter certas substâncias ne
cessárias para a sua sobrevivência. Essas substân
cias são impedidas de saírem porque a superfície
exterior da célula é impermeável a elas. Ao mesmo
tempo esta superfície, devido à permeabilidade se
letiva do protoplasma, permite a outras substâncias
favoráveis penetrarem na célula a partir da parte
exterior, enquanto impede a entrada de substâncias
desfavoráveis. Cada célula se comporta como um
acordeão contraindo-se quando posta em contato
com algo destrutivo. Na base dessas observações,
pode-se estabelecer o seguinte princípio biológico:
todo organismo vivo tem aversão à sua própria
destruição.
Assim podemos dizer que tal como a quali
dade peculiar da existência inorgânica é a necessi
dade e a inércia, a propriedade peculiar da existên
cia orgânica, da vida, é a preocupação. Vida ê
preocupação.
Tal preocupação é reflexiva: refere-se ao pró
prio eu e nasce da ansiedade do eu a respeito do
seu próprio futuro. Se o homem não desse nenhuma
atenção ao futuro, se fosse indiferente ao que pode
ou não acontecer, não conheceria nenhuma ansie
dade. O passado já não existe, no presente está
vivendo. Só o futuro lhe causa apreensões.
Preocupação transitiva
142
ao mesmo tempo o índice de sua maturidade é a
tridimensionalidade da preocupação do homem. A
criança torna-se humana, não descobrindo o ambien
te que inclui as coisas e os outros eus, mas tornan
do-se sensível aos interesses dos outros eus. Hu
mano é aquele que se preocupa com os outros
eus.
O homem é um ser que nunca poderá ser au
to-suficiente, não só pelo que deve receber em si,
mas também pelo que deve dar de s i. A pedra
é auto-suficiente, o homem é auto-superante. Sem
pre necessitado de outros seres para entregar-se a
eles, o homem não pode sequer estar de acordo con
sigo mesmo se não servir a algo além de si mesmo.
A paz de espírito,, alcançável na solidão não pro
vém de se ignorar tudo o que não seja o eu ou
da fuga disso, mas da reconciliação com o que não
é o próprio eu. A faixa das necessidades cresce
com a ascensão da forma de existência. Uma pedra
é mais auto-suficiente que uma planta e um cavalo
necessita de mais coisas para a sua sobrevivência
que uma árvore. Uma exigência vital da vida hu
mana é a preocupação transitiva, a atenção aos ou
tros, além da preocupação reflexiva de um intenso
interesse por si mesma.
Primeiramente os outros eus são considerados
como meios para alcançar a satisfação das próprias
necessidades. A passagem da dimensão animal para
a dimensão humana se verifica quando em decor
rência de vários fatos, tal como a observação do so
frimento de outras pessoas, o amor ou a educação
moral, o homem começa a reconhecer os outros eus
como fins, a responder às suas necessidades, mesmo
sem consideração do próprio interesse. É um ato
de reconhecimento de jure ou até de facto dos outros
seres humanos como iguais. Em conseqüência disso
se torna interessado na preocupação deles. O que
143
é importante para eles torna-se vital para ele. Caim,
quando interrogado sobre o paradeiro de seu irmão,
responde: “Sou por acaso o guarda do meu irmão?”
(Gên 4 ,9 ) . Abraão, sem ser perguntado, sem ser
solicitado, implorou por Sodoma, a cidade do mal.
Mas por que Abraão estava interessado na salvação
de Sodoma? Abraão podia argumentar com Deus
a favor de Sodoma, porque existe uma justiça eterna
e incondicional em cujo nome pôde dizer: “Longe
de ti matar o justo juntamente com o mau. . . Não
deverá o juiz de toda a terra fazer justiça?” (Gên
1 8 ,2 5 ).
O que dá origem à preocupação pelos outros
não é uma extensão mecânica, lateral, da preocupa
ção consigo mesmo. A preocupação com os outros
muitas vezes exige o preço da renúncia a si mesmo.
Como se poderia explicar a renúncia a si mesmo,
ou até a auto-extinção como uma extensão de si
mesmo? Conseqüentemente não podemos dizer que
a preocupação pelos outros esteja no mesmo nível
que a preocupação consigo mesmo, consistindo ape
nas na substituição do próprio eu por outro. A
motivação da nossa preocupação transitiva pode ser
egoísta, mas o fato da nossa preocupação transitiva
não o é.
As três dimensões
144
dicação aos ideais pode atingir o grau da renúncia
a si mesmo. Objetivos distantes, interesses religio
sos, morais e artísticos podem tornar-se tão impor
tantes para o homem como sua preocupação pela
alimentação. O eu, o próximo e a dimensão do sa
grado são as três dimensões de uma preocupação
humana amadurecida.
O amor verdadeiro do homem é amor clandes
tino de Deus. Mas que relação tem a afeição ou
a bondade de um homem por outr,p com o mistério
de todos os mistérios? Não deveríamos rejeitar o
provérbio:
145
10 - O homem não está só
lações que transcendem esta esfera. Não há homem
algum que não lute, pelo menos alguma ou outra
vez, por algum grau de desinteresse, que não pro
cure algo a que possa dedicar-se sem ter em vista
alguma vantagem. Não é verdade que todos os ho
mens estão sempre à mercê de seu ego, que a única
coisa que conseguem fazer é promover a sua própria
prosperidade. Não é verdade que nos conflitos en
tre a honestidade e a conveniência a primeira sem
pre sai derrotada. Em toda alma palpita incognita-
mente uma necessidade de amar, de esquecer-se a
si mesma, de ser independente de interesses próprios
É contra seus interesses egoísticos que o homem
cede à necessidade de refletir sobre a finalidade, o
sentido ou o valor da vida, que insiste em julgar-se
a si mesmo segundo padrões não egoísticos e se
preocupa com objetivos que nem sequer compreen
de totalmente, que, muitas vezes, resiste às tentações
da riqueza, do poder ou da popularidade vulgar,
que passa por cima da aprovação ou do favor dos
que dominam o mundo financeiro, político ou aca
dêmico para permanecer fiel a algum princípio moral
ou religioso.
Nosso primeiro impulso é a autopreservação.
É a essência da vida orgânica e só quem despreza
a vida pode condená-la como vício . Se a vida é sa
grada como cremos que é, a atenção a si mesmo
é o que mantém o sagrado. O interesse pelo eu
só se torna vício por associação: quando unido a
um desinteresse total ou pessoal pelos outros eus.
Assim o dever moral não consiste em desinteressar-
-se pelo próprio eu, mas em descobrir e atender ao
outro eu.
O eu não é um mal. O preceito: “Amarás
teu próximo como a ti mesmo” inclui o cuidado com
o próprio eu como um dever. É tão errôneo consi
derar o dever para consigo mesmo e a vontade de
146
Deus como duas coisas contrárias, como o é iden-
tificá-las. Servir não significa ceder, mas participar.
A frase: “Amarás teu próximo como a ti mes
mo” conclui com as palavras: “Eu sou o Senhor” .
E esta conclusão que contém a razão última do so
lene mandamento. Esse mandamento é verdadeiro
e válido para sempre, mas se Deus não fosse Deus
não haveria verdade, nem eternidade, nem manda
mento semelhante.
É um esforço inútil combaterão ego com ar
gumentos intelectuais, pois tal como a hidra, por
cada cabeça cortada produz duas outras. A razão
por si só é incapaz de forçar a alma sem lucro e
sem recompensa. A grande batalha da integridade
deve ser combatida objetivando-se o próprio coração
do ego e intensificando-se o poder de liberdade da
alma.
147
duiz' o egoísmo a migalhas. É o sentido do inefável
que nos leva além do horizonte dos interesses pes
soais, fazendo-nos entender o absurdo de considerar
o eu como um fim.
Não há outra maneira de sentir-nos unidos com
cada homem, com o leproso ou com o escravo, se
não sentir-nos unidos com ele numa unidade supe
rior: no único interesse de Deus por todos os ho
mens .
O interesse divino
O que significa a existência de Deus? Sendo
eterno não se lhe aplica a temporalidade. Pode-se
atribuir-lhe interesse reflexivo? Ele não precisa pre-
ocupar-se a respeito de si mesmo, pois não há ne
cessidade de ele estar em guarda contra nenhum
perigo que ameace a sua existência. A única preo
cupação que lhe podemos atribuir é uma preocupa
ção transitiva que está implícita no próprio conceito
de criação. Pois se a criação é concebida como uma
atividade voluntária do Ser Supremo, ela implica
num interesse pelo que começa a ser. Como a exis
tência de Deus é contínua, seu interesse ou preocu
pação por suas criaturas deve ser permanente. En
quanto o interesse do homem pelos outros está mui
tas vezes misturado de interesse próprio, e se carac
teriza como uma falta de auto-suficiência e uma exi
gência para a perpetuação de sua própria existência,
a preocupação de Deus por suas criaturas é um
interesse puro.
Segundo Cícero, “os deuses preocupam-se com
as grandes coisas e negligenciam as pequenas” (De
Natura Deorum, I I , 66, 1 6 7 ). Segundo os pro
fetas de Israel, de Moisés até Malaquias, Deus preo
cupa-se com as coisas pequenas. Os profetas pro
curaram ensinar ao homem não a concepção de uma
148
harmonia eterna, de um ritmo de sabedoria imu
tável, mas a percepção do interesse de Deus por
situações concretas. Revelando o plano da história,
em que o humano está entrelaçado com o divino,
introduziram uma seriedade divina no mundo do
homem.
Na mitologia as divindades são imaginadas co
mo seres que procuram a si mesmos, que se interes
sam por si próprios. Sendo imortais, superiores ao
homem em força e sabedoria, muitas vezes lhe são
inferiores em moralidade. “Homero e Hesíodo atri
buíram aos deuses todas as coisas que são vergonha
e desgraça entre os mortais, roubos, adultérios e
fraudes ” ( Xenófanes) .
A Bíblia não nos fala nada sobre Deus em si
mesmo. Todos os seus ensinamentos referem-se às
suas relações com o homem. Su» própria vida e
essência não são referidas nem reveladas. Não ou
vimos falar de nenhum interesse reflexivo, de ne
nhuma paixão, exceto a paixão da justiça. Os úni
cos fatos da vida de Deus de que a Bíblia tem co
nhecimento são atos realizados por causa do ho
mem: atos de criação, atos de redenção (de Ur,
do Egito, da Babilônia), ou atos de revelação.
Zeus está apaixonadamente interessado em be
las divindades femininas e inflama-se de ira contra
aqueles que despertam o seu ciúme. O Deus de Is
rael está apaixonadamente interessado pelas viúvas
e órfãos.
A preocupação de Deus significa o seu inte
resse pelo destino do homem. Quer dizer que o
estado moral e espiritual do homem merece a sua
atenção. É verdade que para a maioria de nós o
seu interesse constitui um dos mistérios mais des
concertantes, mas é igualmente verdadeiro que para
aqueles cuja vida está aberta a Deus, sua preocu
pação e amor são uma experiência constante.
149
Expressão contínua
150
profanam e oprimem sua presença silenciosa e pa
ciente .
É fácil expulsar a Deus, como fácil é derramar
sangue. Mas mesmo quando ele se esconde, quando
nossas almas perderam o seu vestígio, podemos ain
da chamá-lo das profundezas: das profundezas de
todas as coisas. Porque Deus está em toda parte,
salvo na arrogância. Podemos não saber o que é
ele, mas sabemos onde está. Nenhuma língua é ca
paz de descrever sua essência, mas toda alma pode
compartilhar de sua presença e sentir a angústia de
sua temível ausência.
Emuralhados em nosso pomposo egoísmo ge
ralmente esquecemos onde ele está, esquecemos que
nossa preocupação própria é apenas uma pequena
dose haurida do espírito da preocupação divina.
Mas há uma maneira de nos cofiíservarmos abertos
à presença deste espírito. Há momentos em que
sentimos o desafio de um poder que, não nascendo
da nossa vontade nem sendo por ela estabelecido,
tira nossa independência pelo seu julgamento da re
tidão ou malícia das nossas ações, pelo remorso que
produz em nosso coração, quando nos opomos às
suas injunções. Não há dentro de nós nenhum re
cinto privado, nenhuma possibilidade de retiro ou
escape, nenhum lugar dentro de nós onde enterrar
os restos dos nossos maus sentimentos. Há uma
voz que chega a todas as partes, sem condescen
dência, escavando as sepulturas do esquecimento.
151
lidofe por duas forças, temos tanto o impulso de
adquirir, de gozar, de possuir como a necessidade
de responder, de entregar-nos, de dar.
Parece que chegamos a um período de eclipse
divino na história humana. Navegamos os mares,
contamos as estrelas, desintegramos o átomo, mas
não nos lembramos de perguntar: será que não
existe nada mais que um universo morto e nossa
temerária curiosidade?
Horrorizados pela descoberta do poder do ho
mem para aniquilar a vida orgânica no planeta, co
meçamos hoje a compreender que o sentido do sa
grado é tão vital para nós como a luz do sol;
que o gozo da beleza, as posses e a segurança na
sociedade civilizada dependem do sentido que o ho
mem tem para a Sacralidade da vida, da sua reve
rência por esta faísca de luz nas trevas do egoísmo;
que se permitirmos que se apague este lampejo,
a escuridão cairá sobre nós como um raio.
Impressionamo-nos com os imensos edifícios de
Nova Iorque. Entretanto, o seu fundamento último
não é nem a rocha de Manhattan nem o aço de
Pittsburgh, mas a lei que veio1 do Sinai. O verda
deiro fundamento sobre o qual assentam nossas ci
dades é um punhado de idéias espirituais. Tudo
em nossa vida está pendente de um fio — a fide
lidade do homem ao interesse de Deus.
Qual é a esperança do homem, sendo sua fi
delidade tão fraca, tão vaga, tão instável e confusa?
O mundo em que por muito tempo confiamos ex
plodiu em nossas mãos e foi liberada uma torrente
de males e de miséria que não deixa ilesa a inte
gridade de ninguém. Mas o homem tornou-se ca
lejado em relação às catástrofes. O que esperamos
conseguir com nossa indiferença que se levanta co
mo uma muralha entre nossa consciência e Deus?
152
Compaixão
153
prqijunciar o Tetragrama, o Grande Nome, mas
aprendemos que significa compaixão 29.
Os adjetivos morais e espirituais que a Bíblia
lhe atribui, tais como zaddik, hasid, ne’eman, tam
bém emprega para caracterizar homens que levam
uma vida correta. Só um atributo é reservado a
Deus: na Bíblia só ele é chamado de rahum, O
Misericordioso30.
Deus não é tudo em tudo. Ele está em todos
os seres, mas ele não é todos os seres. Ele está
na escuridão, mas ele não é a escuridão. Seu inte
resse único impregna todos os seres. Ele está em
toda parte, mas também a ausência do divino está
em toda parte. Seus objetivos estão ocultos nos
frios fatos da natureza; seu interesse está envolto
na independência do universo que está tão bem
disposto que muitas vezes somos levados a acreditar
que não há necessidade de consertos ocasionais.
Nossa preocupação se assemelha à escuta de uma
língua estrangeira: percebemos os sons, mas não en
tendemos o seu sentido. Ao homem, que não é
senão uma exclamação no discurso da criação, pa
rece que as coisas funcionam e se comportam como
se Deus fosse um estranho cuja presença não é
nem necessária nem desejada. Alguns de nós arro
gantemente o perseguem e pisoteiam. “O ímpio
154
vangloria-se da sua capacidade; o ambicioso nega-o
e despreza-o. Na sua insolência pensa: Deus nunca
punirá. Todo o seu pensamento é Deus não existe”
(Sl 10;3 -4 ). Outros desesperam em meio ao nevoei
ro das rígidas leis da necessidade em que muitas
vezes nossas esperanças se congelam mortalmente.
Manifestação e ocultamento
155
a idéia de uma presença divina oculta na ordem
racional da natureza é compatível com nossa visão
científica da natureza e de acordo com o nosso sen
tido do inefável.
A alma mora dentro, mas o espírito paira sem
pre acima da realidade. O infinito interesse de
Deus está presente no mundo, mas sua essência é
transcendente. Ele inclui o universo, mas citando
a oração de Salomão na dedicação do Templo: “Eis
que nem os céus nem os céus dos céus podem con
ter-te” (lR s 8 ,2 7 ). A consciência de Deus como
moradia do universo deve ter sido muito aguda na
época pós-bíblica, se M akom ( “lugar” ) chegou a
ser um sinônimo de Deus.
A alma está dentro: passiva, oculta; o espírito
está acima: ativo, infinito.
156
16
157
impedir que usássemos nossas armas carregadas.
Como não fez isso, ele é agora imaginado como o
supremo Bode Expiatório.
Vivemos numa época em que muitos de nós
já não nos ofendemos mais com a crescente quebra
das inibições morais. A corrupção da consciência
enche o ar de um odor pungente. O bem e o mal,
que antes eram tão distintos como o dia e a noite,
tornaram-se uma névoa confusa. Mas essa confusão
vem do homem. Deus não se cala. Ele foi silen
ciado .
Em vez de aprenderem a corresponder aos
mandamentos diretos de Deus com uma consciência
aberta à sua vontade, os homens se alimentam com
as doçuras da mitologia, com promessas de salvação
e imortalidade, como sobremesa do delicioso repas
to da terra. A fé que os crentes nutrem é de se
gunda mão: é uma fé nos milagres do passado, um
apego a símbolos e cerimônias. Conhece-se Deus
de ouvir dizer. É uma informação fornecida pelos
dogmas. Até pensadores não dogmáticos apresentam
conceitos gastos e solenes sem ousar proclamar a
espantosa visão do sublime, em cujo horizonte as
indecisões e as dúvidas são quase desprezíveis.
Brincamos com o nome de Deus. Tornamos
os ideais em vão. Rezamos a ele e o enganamos,
louvamo-lo e o desafiamos. Agora colhemos os fru
tos das nossas faltas. Durante séculos sua voz cla
mou no deserto. Com quanta habilidade foi apri
sionada nos templos! Completamente distorcida! E
agora estamos presenciando como esta voz se re
tira progressivamente, como abandona um povo após
outro, deixando suas almas, desprezando sua sabe
doria. O gosto do bem quase já desapareceu da
terra.
Somos testemunhas de como muitas vezes na
história homens, grupos ou nações que perderam
158
Deus de vista, agem e têm sucesso, lutam e reali
zam, mas estão abandonados por ele. Podem mar
char de uma vitória para outra, mas estão abando
nados, rejeitados e postos de lado. Ainda que pos
suam toda glória e poder, sua vida será triste e
sombria. Deus retirou-se da sua vida, enquanto eles
acumulam uma perversidade sobre outra, um mal
sobre outro. O abandono do homem, a proscrição
da Providência marcam o início da calamidade final.
São deixados sós, sem serem molçstados por cas
tigos nem tranqüilizados por algum sinal de ajuda.
O divino não interfere em suas ações nem inter
vém em suas consciências. Tendo tudo em abun
dância, menos a sua bênção, sentem-se na sua pros
peridade como numa concha em que há só maldição
sem piedade.
O homem foi o primeiro a :se esconder de
D eus32, depois de ter comido o fruto proibido, e
ainda continua a se esconder 33. A vontade de Deus
é de estar aqui, manifesta e próxima. Mas quando
as portas deste mundo são batidas no seu rosto,
sua verdade traída, sua vontade desafiada, ele se
retira, abandonando o homem a si mesmo. Deus
não se retirou por sua própria vontade. Foi ex
pulso. Deus está exilado.
Mais grave que o ato de Adão comer o fruto
proibido foi o seu ato de esconder-se de Deus de
pois de tê-lo comido. “Onde estás?” Onde está o
homem? Esta é a primeira pergunta que ocorre na
Bíblia. Nosso problema é o alibi do homem. É
o homem que se esconde, que foge, que tem um
alibi. Deus é menos raro do que pensamos. Quan
do o procuramos sua distância desaparece.
Os profetas não falam do Deus oculto, mas do
32 G ên 3,8.
33 Jó 13,20-24.
159
Deiis que se esconde. Seu ocultamento é uma fun
ção, não sua essência, um ato e não um estado per
manente. Deus abandona seu povo e esconde sua
face, quando este o abandona, violando a aliança
que fez com e le 34. Não é Deus que é obscuro.
É o homem quem o eclipsa. Seu ocultamento de
nós não faz parte da sua essência. “Verdadeiramen
te, tu és um Deus que te escondes, ó Deus de Israel,
Salvador!” (Is 4 5 ,1 5 ). Um Deus que se oculta
e não um Deus oculto. Ele espera ser descoberto,
ser admitido em nossas vidas.
O efeito direto do seu ocultamento é o endu
recimento da consciência: o homem ouve e não en
tende, vê, mas não percebe — . seu coração está
obtuso, seus ouvidos estão pesados35. Nosso dever
é abrir nossas almas a ele, deixá-lo entrar novamente
em nossos atos. Aprendemos a gramática do con
tato com Deus; aprendemos de Baal Shem 36 que
sua distância é uma ilusão que pode ser eliminada
por nossa fé. Há muitas portas pelas quais deve
mos passar para entrar no palácio, mas nenhuma
delas está fechada.
Como o ocultamento do homem é conhecido e
percebido por Deus, assim também é percebido o
ocultamento de Deus. Ao notarmos o fato do seu
ocultamento, descobrimos a ele próprio. A vida é
o lugar em que Deus vem esconder-se. Nunca es
tamos separados daquele que precisa de nós. As
nações erram e se agitam, mas tudo isso produz
apenas ondulações na tranqüilidade profunda, des
percebida e não apreciada.
O neto do Rabi Baruch estava brincando de
esconder com outro menino. Escondeu-se e ficou
34 D t 3 1 ,1 6 -1 7 .
35 Is 6.
36 Baal Shem — famoso rabino do H assidism o. (N .
do T . ) .
160
no seu esconderijo durante longo tempo, pensando
que o seu amigo o procurasse. Finalmente saiu e
notou que seu amigo tinha ido embora, aparente
mente não tendo sequer procurado por ele e que
tinha se escondido em vão. Correu para a sala de
estudo de seu avô, chorando e queixando-se de
seu amigo. Ouvindo o fato, o Rabi Baruch desfez-
-se em pranto e disse: “Também Deus diz: ‘Eu
me escondo, mas ninguém me procura’ ” .
Há épocas em que só sofremos derrotas, em
que a fé só tem que suportar horrores. Contudo,
apesar da angústia, apesar do terror, jamais somos
vencidos pelo desânimo supremo.
“Ainda que aprouvesse a Deus destruir-me,
ainda que ele soltasse sua mão e me deixasse cair,
mesmo assim teria prazer, exultaria até em meu
sofrimento; que ele não me poupe, pois não neguei
as palavras do Santo” (Jó 6 ,9 -1 0 ). Jorram torren
tes nos desertos do desespero. Esta é a orientação
da fé: “Deitado no pó sacia-te com a fé ” 37.
161
11-0 homem não está só
Por teu nome esmagaremos aqueles que se
levantam contra nós.
Não confiarei em meu arco,
Nem será minha espada que me salvará.
Foste tu que nos salvaste de nossos inimigos,
E humilhaste aqueles que nos odiavam.
Em Deus nos gloriamos todo o dia
E louvamos teu nome para sempre. Selah.
E, no entanto, nos rejeitaste e humilhaste.
Não acompanhas mais nossos exércitos,
Fizeste-nos recuar diante do inimigo.
E aqueles que nos odeiam pilham nossos bens.
Entregaste-nos como ovelhas para o matadouro,
Dispersaste-nos entre os pagãos.
Vendes teu povo por um preço vil,
Sem lucrares com sua venda.
Fazes de nós um motivo de insulto
para nossos vizinhos,
Desprezo e vergonha diante dos que nos
rodeiam.
Fazes de nós uma sátira entre os pagãos,
Um escárnio entre os povos.
Continuamente a confusão me acompanha,
E a vergonha cobre meu rosto,
Diante dos clamores do ultraje e da blasfêmia,
Por causa do inimigo vingativo.
Tudo isso nos aconteceu sem que te tivéssemos
esquecido
E sem que fôssemos infiéis à tua aliança.
Nosso coração não se afastou de ti
E nossos passos não abandonaram o teu
caminho.
Lançaste-nos na morada dos dragões,
Cobriste-nos com a sombra da morte.
Se tivéssemos esquecido o nome do nosso
Deus,
162
Se tivéssemos estendido nossas mãos a um
deus estranho,
Certamente Deus o teria percebido,
Ele que conhece os segredos do coração.
Mas é por causa de ti que somos chacinados
todo dia,
Contados como ovelhas para o matadouro.
Desperta, por que dormes, Senhor?
Levanta-te, não nos rejeites para sempre.
Por que escondes tua face, esquecendo nossa
aflição e nossa opressão?
Pois nossa alma está prostrada no pó,
Nosso ventre está colado à terra.
Levanta-te, vem em nosso socorro,
Salva-nos por tua misericórdia” (Sl 4 4 ) .
%
163
17
Além da fé
O perigo da fé
164
A afinidade da alma com o sagrado é suficientemen
te forte para eliminar ou reprimir, mas não para
aniquilar a força da gravitação para o que é baixo.
Aqueles que estão seguros de sua fé muitas vezes
tombam sob o seu próprio peso e caídos põem-se
de joelhos adorando, deificando a serpente, que ge
ralmente jaz lá onde crescem as flores. Quanta
terna devoção, heroísmo e mortificação de si pró
prio, já foi desperdiçada com o mal! Quantas vezes
o homem já não divinizou Satã, achou magnífico
o mal, apesar de perverso, e cheio de indescritível
majestade! Na verdade fé não é segurança.
É tragicamente verdade que muitas vezes esta
mos errados a respeito de Deus, crendo no que
não é Deus, num ideal falso, num sonho, numa
força cósmica, em nosso pai, em nós mesmos. Não
devemos jamais deixar de interrogar a nossa fé e
de perguntar o que significa Deus para nós. Não
é ele apenas um alibi para a ignorância? A bandeira
branca da rendição ao desconhecido? É ele um pre
texto para conforto e despreocupada satisfação? Um
meio para iludir o desânimo, o temor ou o deses
pero?
De quem podemos esperar ajuda para nossa
fé se até a religião pode ser fraude, se com o sacri
fício de nós mesmos podemos consagrar até o as
sassínio? De nossas próprias mentes que tantas ve
zes nos traíram? De nossa consciência que tão fa
cilmente erra e falha? Do coração? De nossas boas
intenções? “Aquele que confia em seu próprio co
ração é um louco” (Prov 2 8 ,2 6 ).
165
ser assinada pela ordem de uma orientação ines
quecível .
Significativamente, o Shema, a confissão prin
cipal da fé judaica, não está escrito na primeira
pessoa e não exprime uma atitude pessoal: eu creio.
Só lembra a Voz que disse: “Ouve, ó Israel” .
Crer é lembrar
166
mental vivo de cada um” . Há um cofre do tesouro
em nossa memória de grupo. “Nada se perdeu ex
ceto a chave deste cofre e mesmo essa eventual
mente é encontrada” .
As riquezas de uma alma estão guardadas na
sua memória. Elá constitui o teste de personalidade,
não para verificar se um homem segue a moda do
dia, mas se o passado está vivo no seu presente.
Quando quisermos entender-nos a nós mesmos, des
cobrir o que é mais precioso em nossas vidas pes
quisemos em nossa memória. A memória é a tes
temunha da alma para a mente inconstante.
Só aqueles que são espiritualmente imitadores,
somente pessoas que têm medo de ser gratas e de
masiadamente fracas para serem leais, têm apenas
o momento presente. Para uma pessoa nobre, lem
brar é uma santa alegria, ser grat% uma emoção su
perior. Para uma pessoa cujo caráter não é rico
nem forte, a gratidão é uma sensação muito dolo
rosa . O segredo da sabedoria é nunca perder-se
numa disposição ou paixão momentânea, nunca es
quecer a amizade por causa de uma mágoa passa
geira, nunca perder de vista os valores permanentes
por causa de um episódio transitório. As coisas que
passam por nossa vida diária deveriam ser avaliadas
segundo o critério: enriquecem ou não o nosso de
pósito interior? Só tem valor em nossa experiência
aquilo que é digno de recordação. A recordação é
a pedra de toque de todas as ações.
A memória é a fonte da fé. Ter fé é recordar.
A fé judaica é uma recordação daquilo que acon
teceu a Israel no passado. Os acontecimentos em
que o espírito de Deus se tornou realidade estão
diante de nossos olhos pintados em cores que nunca
empalidecem. Muito do que a Bíblia prescreve pode
ser compreendido numa palavra: L em bra. “Guar
da-te de ti mesmo, e cuida tua alma diligentemente
167
para ;que não esqueças as coisas que teus olhos vi
ram e para que não saiam de teu coração todos
os dias da tua vida; ensina-as aos teus filhos e aos
filhos dos teus filhos” (D t 4 ,9 ) .
Os judeus não preservaram monumentos anti
gos, guardaram os momentos antigos. A luz que
se acendeu em sua história nunca se extinguiu.
Com vigorosa vitalidade o passado sobrevive em
seus pensamentos, em seus corações, em seus rituais.
A recordação é um ato sagrado: santificamos o
presente lembrando o passado.
Talvez seja por esta razão que em alguns livros
de orações judaicas encontramos dois resumos da
doutrina judaica, um, baseado nos ensinamentos de
Maimônides, contêm os famosos treze princípios e
o outro é uma lista de recordações41. É que as
coisas essenciais do judaísmo não são idéias abstra
tas, mas acontecimentos concretos. O êxodo do
Egito, a Lei dada no Monte Sinai, a destruição do
Templo de Jerusalém deveriam estar constantemen
te presentes no espírito de um judeu. Durante mais
de dezoito séculos o povo esteve afastado da Terra
Santa e, contudo, seu apego à Terra de Israel nunca
foi rompido. A alma de Israel jurou: “Se eu te
esquecer, ó Jerusalém, que minha mão direita es
queça a sua destreza” (Sl 1 3 7 ,5 ).
Não longe de nossa consciência corre um lento
e silencioso rio, rio não do esquecimento, mas da
memória, do qual as almas devem beber constante
mente antes de entrar no reino da fé. Bebendo
deste rio não precisamos dar um salto para alcançar
o nível da fé. Só devemos estar abertos às águas
do rio para ressoarmos, para recordarmos.
Há um lento e silencioso rio que corre no
168
horizonte de toda a história humana. O céu per
tence ao Senhor, mas o rio é acessível a todos os
homens. E aquele que vive segundo a sua fé en
contra-se na comunidade de inumeráveis homens de
todas as épocas, de todas as nações que aprenderam
que um homem com Deus é maioria contra todos
os homens do mal, que o amor misericordioso é
mais forte que o poder. Os credos podem dividi-la,
os fanáticos podem negá-la, mas a comunidade da
fé dura eternamente. As guerras não conseguem des
truí-la, as rivalidades não consegüem vencê-la. Se
o demônio nos oferecesse todos os seus bens como
preço para traí-la, seria desprezado e rejeitado. “Por
que desde o nascer até o pôr do sol meu nome
é grande entre os gentios e em toda parte se oferece
incenso ao meu nome e uma oferta pura: porque
grande é meu nome entre os gentios, diz o Senhor
dos Exércitos” (Ml 1 ,1 1 ). Essas palavras referem-
-se indubitavelmente aos contemporâneos do pro
feta. Mas quem eram estes adoradores de Um Deus?
No tempo de Malaquias não havia grande número
de prosélitos. Mas a afirmação declara: “Todos
aqueles que adoram seus deuses não o sabem, mas
na realidade estão me adorando a mim” 42.
42 C f. R . N i s s i m G e r o n d i — Derasho th I X . Cons
tantinopla, 1 5 3 0 (? ). p . 107a.
43 “ As Dezoito Bênçãos começam com as palavras:
‘Bendito sejas tu, Senhor, nosso D eus e D eus dos nossos
169
piritüal é a perda da integridade; auto-engrandeci-
mento é autotraição.
Fé autêntica é mais que um eco de uma tra
dição. É uma situação criativa; um acontecimento.
Porque Deus não está sempre calado e o homem
não é sempre cego. Na vida de todo homem há
momentos em que se levanta o véu no horizonte
do conhecido abrindo uma visão do eterno. Cada
um de nós já experimentou pelo menos uma vez
na vida a momentosa realidade de D eus. Cada um
de nós já teve alguma vez um lampejo da beleza,
da paz e do poder que flui através das almas dos
que se devotam a ele. Mas tais experiências são
acontecimentos raros. Para algumas pessoas eles são
como estrelas cadentes que passam e são esqueci
das. Em outros acendem uma luz que nunca mais
se apaga. A recordação dessa experiência e a leal
dade à resposta de tal momento são as forças que
sustentam nossa fé. Neste sentido, fé ê fidelidade,
lealdade a um acontecimento, lealdade à nossa res
posta.
Fé é crença
170
mente uma proposição ou um fato como verdadeiro
com base em autoridade ou evidência. É a convic
ção da verdade de uma dada proposição ou de um
fato afirmado.
Crença, neste sentido, não é um termo teoló
gico, mas epistemológico que se aplica a toda es
pécie de conhecimentos e quem a identifica com
a fé esquece a diferença entre a aceitação de um
julgamento e a aceitação de uma idéia de fé. Será
a fé somente uma atitude mental? Aceitamos, pela
fé, a existência de Deus da mesma maneira como
aceitamos a existência da torre de Pisa? Fé não
é um assentimento a uma idéia, mas um consenti
mento a Deus.
A fé é uma relação a Deus. Crença é uma
relação a uma idéia ou a um dogma. Diversamente
da crença (que acompanha o confecimento ou apre
ensão, o assentimento dado ao que conhecemos),
a fé eleva-se acima do conhecimento e da apreen
são . Não se refere ao cognoscível, mas ao que
transcende o conhecimento. Além disso, a crença
é necessariamente um ato autoconsciente. Ao dizer:
“eu acredito”, há consciência de que é o eu que
aceita algo como verdadeiro. Crença é convicção
pessoal. Mas na desconfiança e temor em que nasce
a fé não há lugar para a autoconsciência. É mons
truoso conceber a fé como um ato do homem que
dá sua opinião de perito, como um ato de reconhe
cimento, de dar reconhecimento a Deus.
Um rabino hassídico, longe da sua casa, pas
sou a noite em caça de um oponente do hassidismo.
Antes do clarear do dia, o dono da casa, conforme
seu costume, levantou-se para estudar o Talmud.
Passavam-se as horas e o rabino continuava na ca
ma. “É coisa indigna de um homem tido como
um santo deixar passar as horas matinais sem es
tudar a L ei”, pensava o dono da casa. Quando
171
afinal o rabino se levantou, o anfitrião falou-lhe
sobre seu dormir até tão tarde. “Estou acordado
há muitas horas”, disse o rabino. “Então, por que
não se levantou para estudar?” E o rabino replicou:
“Antes de abrir os olhos e de rezar: ‘Rendo graças
a ti. . . ’ comecei a pensar: Quem é ‘eu’ e quem é
‘tu’ . Como sou indigno de dar graças a ele. Es
tava acima de minhas forças encontrar uma res
posta, continuar a rezar ou le v a n ta r ...”
Acreditar sem fé é um ato formal, muitas ve
zes tão pobre de sentido espiritual como uma prova
da existência de Deus produzida por uma máquina
de calcular. A fé, por outro lado, não é só o as
sentimento a uma proposição, mas a aposta de toda
uma vida na verdade de uma realidade invisível.
Não se pode reduzi-la a um assentimento do mesmo
modo como não se pode fazê-lo com o amor. Sua
expressão adequada não é uma sóbria afirmação,
mas uma exclamação.
Fé e credo
172
usando termos necessariamente chegamos a um acor
do com nosso desejo de segurança intelectual, de
estabilidade e tranqüilidade.
Os princípios supremos do pensamento e da
ação são inacessíveis à análise. Todas as ciências
especiais são obrigadas a admitir certo número de
pressuposições que não podem ser provadas. Tais
pressuposições baseiam-se numa certeza intuitiva po
sitiva ou são aceitos pela razão negativa de que não
são negadas por nenhuma experiêçcia. Ninguém é
capaz de explicar racionalmente por que sacrificar
sua vida e felicidade por causa do bem. A convic
ção de que devemos obedecer a imperativos éticos
não deriva de argumentos lógicos. Origina-se de
uma certeza intuitiva, de uma certeza de fé. Todas
as religiões positivas baseiam-se em fundamentos de
certo modo comparáveis. Os axicSfnas e os dogmas
só podem ser expressos em metáforas (o princípio
da preservação da energia é um exemplo) porque
se referem a algo que transcende a experiência e
nossos meios de expressão são derivados da expe
riência .
A adequação dos dogmas depende de se eles
pretendem formular ou aludir. No primeiro caso
apenas aparentam e enganam, no segundo indicam
e iluminam. Para serem adequados devem manter
uma relação telescópica com o tema ao qual se re
ferem. Devem apontar para os mistérios ao invés
de representá-los. Só podem marcar o caminho, mas
não o fim do pensamento. Os dogmas, se não fo
rem pontos de sinalização do cominho, são obstá
culos. São alusivos ao invés de informativos ou des
critivos . Se tomados literalmente são superficiais,
estreitos, triviais ou se transformam em mitos ven
tríloquos. Assim, por exemplo, o dogma da criação
foi freqüentemente reduzido a um conto e despo
jado de sua verdadeira significação, quando como
173
alusão a um fato supremo é de inexaurível impor
tância .
Há muitas experiências para as quais não te
mos nomes, muitos estratos da fé para os quais não
temos dogmas. Procurando um meio para trans
mitir o inexprimível, o homem se dispõe a embarcar
num veículo que segue para qualquer direção e do
qual depois é difícil desembarcar.
Um jovem queria ir a Nova Iorque. Esperan
do carona na estrada, parou um carro que passava:
“Você vai em direção leste, para Nova Iorque?”
— “Não, estou indo para o oeste, para Chicago” .
— “Bem, então vou a Chicago” .
174
lhas, nos alimentam no inescrutável deserto da vida,
quando perdemos a visão e o impulso? Os dogmas
são como o âmbar em que são embalsamadas as abe
lhas, outrora vivas, e que podem ser eletrificadas
quando nossas mentes estiverem expostas à energia
do inefável. Pois os problemas com que constante
mente nos debatemos são: como comunicar esses
raros momentos de percepção a todas as horas da
nossa vida? Como confiar a intuição a conceitos, o
inefável às palavras, a comunhão |io entendimento
racional? Como transmitir a outros nossas percep
ções e uni-los numa união de fé? É o credo que
tenta responder a esses problemas44.
“Meu filho, ouve os ensinamentos de teu pai
e não esqueças aquilo que te ensina tua mãe” (Prov
1 ,8 ). Nosso credo é como uma mãe que nunca se
impacienta com nossa loucura e ftbssas faltas, que
nunca se esquece, mesmo que nossa fé desapareça
no esquecimento.
Há muitos credos, mas uma só fé universal.
Os credos podem mudar, desenvolver-se, desapare
cer, mas a substância da fé permanece a mesma
em todos os tempos. A hipertrofia do credo pode
esmagar e marcar o fim da fé. Um mínimo de
credo e um máximo de fé é a síntese ideal.
Fé e razão
175
tas vezes homens de fé estão prontos a trocar visões
incomparáveis e inalienáveis por noções fabricadas
em produção de massa 45. Mas não há taxa de câm
bio para tais visões, pois querer avaliar a fé em
termos de razão é como querer compreender o amor
como um silogismo e a beleza como uma expressão
algébrica.
O que pretendemos com nosso ceticismo? Vê-
-lo na tela do televisor? Que a fé se cristalize em
moeda corrente do conhecimento?
Raramente conseguimos levantar uma torre que,
apoiando-se sobre a base de silogismos, alcance a
altura da fé. Querer traduzir as visões da fé em
termos de especulação é como querer construir um
avião com rocha maciça.
Não devemos esquecer que em nossas tenta
tivas de defender a crença, estamos analisando o
credo em vez da fé, cujo conteúdo é fino demais
para ficar retido na peneira da lógica.
A razão não é a medida de todas as coisas,
não é o poder que tudo controla na vida de um
homem; não é o pai de todas as afirmações. O
grito de um homem ferido não é produto de um
pensamento discursivo. A ciência não pode ser esta
belecida em termos de arte nem a arte em termos
de ciência. E por que a fé, para ser válida, deveria
depender da justificação da ciência?
A consciência de Deus, como já vimos, não
penetra na mente por meio de silogismos e a cer
teza da fé não pode ser apresentada na bandeja de
prata da especulação. A plausibilidade lógica não
cria a fé, como também não a refuta a implausibi-
lidade lógica.
176
A razão procura integrar o desconhecido com
o conhecido. A fé procura integrar o desconhecido
com o divino. Seu fruto sazonado não é o juízo
frio, mas a adesão, a ação, o cântico e a aproxima
ção a ele. Enquanto o historiador explica os so
frimentos de Israel pela geografia política da Pa
lestina, que, situada na encruzilhada de três conti
nentes, estava exposta à ambição dos conquistadores,
o profeta fala do plano divino de permitir que Is
rael fosse afligido para expiar não só os próprios
pecados, mas também os pecados dòs pagãos.
Quando transformada em credo, a fé é tradu
zida em termos convencionais de razão. Tais ter
mos vêm e vão e o que é lúcido hoje, pode ser
uma caricatura amanhã. O grande conflito da ra
zão não é com a fé, mas com o credo.
%
“ Dá-nos conhecimento. . . ”
177
12 - O homem não está só
no áéu entrincheiramento atrás da muralha de uma
obstinada crença, seria sinal de que no fundo dela
haveria medo e não fé, desconfiança e não confian
ça. A verdade não tem nada que temer a razão. O
que abominamos é a presunção que tantas vezes
acompanha o super-racionalismo, a razão condicio
nada pela vaidade, a razão subserviente à paixão.
Era opinião predominante entre òs grandes pen
sadores judeus da Idade Média que não pode haver
conflito entre os ensinamentos que nos foram mi
nistrados pela revelação e as idéias adquiridas pela
razão. A idéia da sua intrínseca harmonia era, na
concepção desses pensadores, uma implicação neces
sária do monoteísmo. O que está contido na men
sagem divina não pode deturpar a realidade nem
contradizer nenhuma verdade ensinada pela ciência,
porque tanto a razão como a revelação se originam
da sabedoria de Deus que criou toda a realidade
e conhece toda a verdade. Um desacordo essencial
entre razão e revelação pressuporia a existência de
dois seres divinos, cada qual representando uma
fonte diferente e independente.
Portanto, a fé nunca poderá obrigar a razão
a aceitar algo que é absurdo .
Nem a fé nem a razão abrangem tudo nem
tampouco são auto-suficientes. As percepções da fé
são gerais e vagas e necessitam de uma conceituação
para serem comunicadas à mente, para serem inte
gradas e para que adquiram coerência. A razão é
um coeficiente necessário da fé, que empresta forma
àquilo que muitas vezes se torna violento, cego e
exagerado pela imaginação. A fé sem razão é muda;
a razão sem fé é surda.
Mas será que realmente cremos? Certa vez
um Hassid46 começou a recitar os treze princí
178
pios de Maimônides: “Creio firmemente que o Cria
dor, bendito seja o seu nome, é o Criador e Se
nhor de todos os seres criados. . . ” De repente pa
rou: “Posso dizer que creio firmemente? Se assim
fosse, eu não estaria tão revoltado, não seria tão
profano; não rezaria com tanta frieza. . . Mas se
não creio firmemente, como ouso proferir uma men
tira. . . Não, não direi mais isso; mentir é pior
que não crer. . . Mas isso significaria que não creio.
Entretanto, eu creio!. . . ” Fez nov^ pausa e final
mente encontrou a saída. Resolveu dizer: “Que
eu possa crer firmemente. . . ”
Esdras, o Escriba, o grande restaurador do Ju
daísmo, de quem os rabinos diziam ser digno de
receber a Torá se já não tivesse sido recebida por
Moisés (Sanhedrin 2 1 b ) , confessava sua falta de
fé perfeita. Conta-nos que depois de ter recebido
um decreto real do rei Artaxerxes concedendo-lhe
permissão de partir de Babilônia com um grupo de
exilados: “Proclamei um jejum junto ao rio Àhava
para nos humilharmos diante de nosso Deus a fim
de obtermos dele uma feliz viagem para nós, nossos
filhos, e todos os nossos haveres. Pois, eu tinha
vergonha de pedir ao Rei uma escolta de soldados
e cavaleiros para proteger-nos contra os inimigos
durante o percurso, porque tínhamos dito ao rei
que a mão de Deus se estende protetora sobre to
dos aqueles que o procuram” (Esdr 8 ,2 1 -2 2 ).
Fé é reciprocidade
179
impulso que domina o coração, que se apodera da
mente — tudo isso impele a servir aquele que res
soa em nossos corações como um sino. Ele está
esperando para entrar em nossas vidas vazias e ago
nizantes . Confiar em nossa fé seria idolatria. Só
temos o direito de confiar em Deus. A fé não é
uma garantia, mas um constante esforço, uma cons
tante escuta da voz eterna.
A fé não é uma característica da mentalidade
humana: auto-extinção da curiosidade, ascese da ra
zão, qualidade psicológica que se refere só ao ho
mem. Sua essência não se revela na maneira como
a exprimimos, mas na concordância da alma com
o que é importante para Deus, na entrega do nosso
amor àquilo que Deus aprova, em sermos arrebata
dos pela onda dos seus pensamentos, em sermos
elevados acima do desolado horizonte do desespero
humano. A fé só é real quando não for unilateral,
mas recíproca. O homem pode confiar em Deus,
se Deus puder confiar no homem. Podemos ter
confiança nele porque ele tem confiança em nós47.
Ter fé significa justificar a fé de Deus no homem.
É tão importante que Deus creia no homem quanto
o é que o homem creia em Deus. Assim, fé é cons
ciência de reciprocidade e parceria divina, uma for
ma de comunhão entre Deus e o homem.
180
comuns, como se a religião fosse uma planta que só
pode vingar no fundo do oceano. Como já vimos,
a religião não é um sentimento a respeito de algo
que existe, mas uma resposta àquele que nos pede
viver de certa maneira.
Na sua própria origem é uma consciência de
dever, de estarmos destinados a fins superiores. A
compreensão de que a vida é a esfera dos inte
resses não só do homem, mas também de Deus.
A fé não atinge o seu fim ao alcançar a certeza
da sua existência. A fé é o início' de uma intensa
aspiração a entrar em síntese com aquele que está
além do mistério, de unir todo o poder que está
dentro de nós com toda a realidade espiritual acima
de nós. Mas qual é a língua desta comunhão, sem
a qual nosso impulso permanece inarticulado?
Aprendemos que o que Deu&pede do homem
é mais que uma atitude interior, que ele dá ao ho
mem não só a vida, mas também uma lei, que sua
vontade é ser servido e não só adorado, obedecido
e não só cultuado. A fé nos invade como uma força
que nos impele à ação, à qual respondemos com
prometendo-nos a uma devoção constante, entregan-
do-nos à presença de Deus. Permanece uma filia
ção por toda vida, uma lealdade que implica limi
tação, submissão, autocontrole e coragem.
O Judaísmo insiste em estabelecer uma unida
de entre fé e credo, entre piedade e Halakha4S,
entre devoção e ação. A fé é só uma semente, en
quanto a ação é seu desenvolvimento ou sua deca
dência. A fé desencarnada, a fé que procura viver
em esplêndido isolamento é apenas um espírito,
para o qual não há lugar em nosso mundo psico-
físico.
O que o credo é em relação à fé, a H alakha
181
é em relação à pied ad e. Como a fé não pode existir
sem um credo, a piedade não pode subsistir sem
uma norma de ação. Como a inteligência não pode
ficar separada da instrução, a religião não pode ser
divorciada do procedimento. O Judaísmo é vivido
em atos e não só em pensamentos.
Uma norma de vida — o objeto da busca
mais urgente do homem que corresponda à sua dig
nidade, deve levar em consideração não só sua ca
pacidade de explorar as forças da natureza e apreciar
a beleza das suas formas, mas também seu sentido
único do inefável. Deve prever não só a satisfação
das necessidades, mas também a realização dos fins.
182
H
II.
O PROBLEM A DA VIDA
18
*
Da admiração à piedade
185
tres pelo problema do conhecimento. Dirigida pela
idéia de que quem sabe como pensar também sa
berá como viver, a filosofia, desde a época de Só
crates, tem sido primariamente uma indagação sobre
como pensar certo. Particularmente, à partir da
época de Descartes concentrou sua atenção sobre o
problema do conhecimento, esquecendo cada vez mais
o problema da vida. Efetivamente, quanto menos
importância tivesse um problema para a vida, tanto
mais respeitável e digno de exploração parecia aos
filósofos.
Entretanto, pensar sobre os problemas últimos
é mais do que uma técnica particular. É um ato
da personalidade to ta l49, um processo em que estão
envolvidas todas as faculdades da mente e da alma,
que está necessariamente atingido pelo clima pessoal
em que se passa. Pensamos da maneira como vive
mos. Para pensar o que sentimos temos que viver
o que pensamos. Se a cultura há de ser algo mais
que o produto de uma estufa, deverá brotar do solo
da vida cotidiana e por sua vez atingir o reduto
interno da personalidade humana. A cultura deve
crescer de dentro para fora, partindo da existência,
do procedimento e das condições concretas do
homem.
O problema do neutro
49 C f. cap. 8 acima.
186
vida do homem não é o fato do pecado, dos atos
errados e corruptos, mas os atos naturais, as necessi
d a d es. Nossas posses não constituem um problema
menor que as nossas paixões. Portanto, a primeira
tarefa não é como agir em relação ao mal, mas como
agir em relação ao neutro, como tratar as neces
sidades .
187
fação'-50. Psicologicamente, onde quer que haja uma
necessidade há um desejo de satisfazê-lo e quando
não se sente um desejo, não foi expressa a necessi
dade. Ignoti nulla cupido. “Não se deseja o que
não se conhece” (Ovídio, Ars A matoria, I I I . 1.3 9 7 ).
Só desejamos aquilo que conhecemos.
188
por uma aspiração somos envolvidos em desagradá
veis tensões. Muitas obsessões são a perpetuação
de tais equívocos. Com efeito, há mais pessoas que
morrem na epidemia das necessidades que na epi
demia de uma doença.
Se a evolução biológica do homem pode ser
explicada como uma adatação ao seu ambiente, o
progresso da civilização deve ser definido como um
ajustamento das condições ambientais às necessida
des humanas. Não há desejos materiais que a ciên
cia e a tecnologia não prometam satisfazer. Impe
dir a expansão das necessidades do homem, que por
sua vez são provocadas pelo progresso tecnológico
e social, significaria estancar a corrente sobre a qual
navega a civilização. Mas se essa corrente não for
controlada pode aniquilar a própria civilização, pois
a pressão das necessidades transformadas em inte
resses agressivos é a constante causa das guerras e
aumenta na proporção direta do progresso tecnoló
gico. A moral tenta julgar e distinguir entre inte
resses justos e interesses injustos, mas aparece tarde
demais para poder ser eficaz. Quando os interesses
se entrincheiraram não há princípios que consigam
desalojá-los. A alma é demasiadamente incerta,
cheia de desejos e ressentimentos, rebelde, incons
tante e relutante para aceitar a hegemonia da razão.
A inadequação da ética
189
ódio è ao mesmo tempo ser incapaz de dominá-lo.
Não se vive a vida à maneira de um debate entre
as faculdades membros da alma, em que a mais
persuasiva ganhasse a discussão. A vida é muitas
vezes uma guerra em que as forças desordenadas
de paixões loucas, caprichosas são lançadas numa
batalha. É uma guerra que não se pode ganhar
pela nobre magia de simplesmente lembrar uma
regra de ouro. Como poderia uma sábia abstração
competir com a ira, a astúcia, a insaciabilidade e
o favoritismo do ego para consigo mesmo?
E verdade que nossa razão responde a argu
mentos racionais. Mas a razão é um estranho soli
tário na alma, enquanto as forças irracionais se
sentem em casa e estão sempre em maioria. Por
que sofrer em nome da virtude? Por que agir con
tra a natureza e escolher o que é correto quando
o prazer abunda do lado do vício? Por que renun
ciar àquilo que naturalmente se deveria preferir ou
por que suportar voluntariamente o que natural
mente se evitaria?
A ética supõe que o homem consulta sua ca
pacidade de julgamento, que decida sobre a atitude
a tomar à luz de princípios gerais e que execute
fielmente a sábia decisão. Assim fazendo, não só
subestima a dificuldade de aplicar normas gerais a
situações particulares, muitas vezes intrincadas, per
plexas e ambivalentes, mas ainda supõe que todo
homem combine dentro de si poderes judiciais e
executivos. Além disso, enquanto nos aponta aquilo
para o que lutamos, a teoria ética nada nos diz
sobre como ganhar a batalha. Diz-nos o que de
vemos fazer, mas não nos diz como dominar a lou
cura e a insensatez. É bem verdade que a ética
pede a aquisição de bons hábitos e não só o conhe
cimento . Mas não há nenhuma soma de hábitos
que possa abranger a totalidade da vida.
190
O perigo da vida
191
O que fazem diariamente os homens,
sem saber o que estão fazendo!”
( Shakespeare, M uito barulho por nada,
Ato IV , cena 1 ,1 .1 9 ).
192
Adoramos não um, mas todo um panteão de ne
cessidades e chegamos ao ponto de não ver na mo
ral e nas normas espirituais nada mais que desejos
pessoais disfarçados.
É realmente grotesco que, enquanto na ciência
a visão antropocêntrica da terra como centro do uni
verso e do homem como fim de todo ser foi aban
donada há muito tempo, na vida real se continue
a adotar uma visão egocêntrica do homem e de suas
necessidades como medida de todo^ os valores, sem
nada para determinar seu modo de vida, exceto suas
próprias necessidades. Se a satisfação das necessi
dades humanas tivesse que ser tomada como me
dida de todas as coisas, o mundo, que jamais se
ajusta às nossas necessidades, deveria ser conside
rado como um erro abissal. A natureza humana é
insaciável, e o progresso nunca eünsegue acompa
nhar o ritmo da evolução das necessidades.
193
13 - O homem não está só
Via de regra tomamos consciência de nossas
aspirações autênticas súbita e inesperadamente. Não
no início, mas já tarde no decorrer de nossa vida.
Como só raramente entendemos o que queremos
antes que já seja quase tarde demais, nossos senti
mentos não podem ser indicadores do que é essen
cial. Somos todos zelosos e prontos para dominar
as forças hostis da natureza, para combater o que
é hostil à nossa sobrevivência física, as doenças, os
inimigos, o perigo. Mas quantos de nós são zelosos
e estão dispostos a subjugar o mal dentro de nós
ou a combater o crime quando não ameaça nossa
própria sobrevivência, a decadência da alma, o ini
migo dentro das nossas necessidades?
Tendo absorvido uma enorme quantidade de ne
cessidades e tendo ao mesmo tempo aprendido a
apreciar grandes valores tais como a justiça, a liber
dade, a fé, como interesses particulares, começamos
a perguntar-nos se podemos confiar nas necessidades
e interesses. Se é verdade que há interesses que
todos os homens têm em comum, a maioria dos
nossos interesses particulares, tais como são afirma
dos na vida cotidiana, dividem-nos e antagonizam-
-nos ao invés de nos unir.
O interesse é um princípio subjetivo, um prin
cípio que divide. É a excitação do sentimento que
acompanha uma atenção especial dada a algum obje
to . Mas prestamos atenção suficiente às exigências
da justiça universal? Na verdade, o interesse pelo
bem-estar universal é geralmente bloqueado pelo in
teresse do bem-estar particular, especialmente quan
do tiver que ser alcançado ao preço da renúncia
aos interesses pessoais. É justamente porque a for
ça dos interesses tiraniza nossas vidas, determina
nossas idéias e ações, que perdemos de vista os
valores mais importantes.
194
Necessidades verdadeiras
e necessidades falsas
195
majbi não é o nosso interesse em si mesmo que é
certo. O certo está acima do sentimento de inte
resse. Pode exigir que se façam coisas das quais
não sentimos necessidade, coisas exigidas, mas não
desejadas.
Quem emprega as realidades da vida como
meios para satisfazer seus próprios desejos não tar
dará a perder sua liberdade e será degradado a um
mero instrumento. Adquirindo as coisas, torna-se
escravo delas. Subjugando os outros, perde sua
própria alma. A cobiça desenfreada tem como que
duas faces; uma irônica e sutil vingança atrás de
um sorriso cativante. Dificilmente podemos erigir
as necessidades, um fator desconhecido, variável, va
cilante e eventualmente degradante em regra uni
versal, como suprema e perene norma ou padrão
para a vida.
Sentimo-nos presos no confinamento das ne
cessidades pessoais. Quanto mais cedemos às satis
fações, tanto mais profundo será o nosso sentimen
to de opressão. Para ser iconoclasta das necessida
des idolizadas, para desafiar nossos próprios inte
resses imorais, que podem parecer vitais e ter sido
acalentados por longo tempo, devemos ter a força
de dizer não a nós mesmos em nome de um sim
mais alto. Mas nossas mentes são tardias, lentas e
errantes. O que é que nos pode dar o poder de
dominar a deferência para com as falsas necessida
des, de detectar as falácias espirituais, de repelir
os falsos ideais e de lutar contra a desatenção ao
que não é aparatoso, mas é santo? As necessidades
não podem ser tratadas uma a uma, isoladamente,
mas devem ser estudadas todas de uma só vez, em
sua raiz. Para entender o problema das necessi
dades, temos que enfrentar o problema do homem,
que é o sujeito das necessidades. O homem está
animado por mais necessidades que qualquer outro
196
ser. Estas parecem situar-se além da sua vontade
c são independentes da sua volição. São a fonte e
não o produto do desejo. Conseqüentemente só po
deremos julgar as necessidades se conseguirmos en
tender o sentido da existência 51.
51 C í. cap. 15 — 0 IN T E R E S S E D IV IN O — Preo
cupação tran sitiva.
197
10 -
O sentido da existência
198
cnsão, se não tiver esbanjado a vida atrás de pe
quenos prêmios, abre-lhe a alma para as questões
que tentou evitar.
O sentido da existência
199
A suposição suprema
200
uma finalidade acima dela, enquanto não tiver valor
para alguém mais. O eu pode ter a mais alta taxa
de câmbio, mas os homens não vivem da moeda
senão dos bens alcançáveis por meio dela. Acumu
lar e investir no eu é cultivar um sentido colossal
de futilidade da vida.
O homem não é fim de si mesmo, incluindo
tudo em si. A segundo máxima de Kant, de nunca
usar os seres humanos simplesmente como meios,
mas considerá-los como fins, só indica como uma
pessoa deve ser tratada por outras pessoas, não
como ela deve tratar-se a si mesma. Se uma pes
soa pensa ser um fim em si mesma, usará os outros
como meios. Além disso, se a idéia de que o ho
mem é um fim for tomada como medida do seu
valor, não se poderá esperar que ele sacrifique sua
vida ou seus interesses pelo bem de um outro, nem
mesmo de um grupo. Deverá tratar a si mesmo
da mesma maneira que espera que o tratem os ou
tros. Por que um grupo ou todo um povo haveria
de merecer o sacrifício de nossa vida? Para uma
pessoa que se considera como fim absoluto mil vidas
não valerão mais que sua própria vida.
Um pensamento sofisticado pode possibilitar ao
homem simular-lhe que ele é suficiente a si mesmo.
Mas o caminho que conduz à insanidade está co
berto de tal tipo de ilusões. O sentimento de fu
tilidade que nasce com o sentimento de ser inútil,
de não ser necessitado neste mundo é a causa mais
comum de psiconeurose. A única maneira de evitar
o desespero é ser uma necessidade ao invés de ser
uma finalidade. Efetivamente, a felicidade pode ser
definida como a certeza d e ser necessitado. Mas
quem precisa do homem?
201
O homem existe por causa da sociedade
202
mente poderão ser usados para o bem da sociedade,
a menos que se converta o homem numa máquina
em que cada parafuso deve ter a sua função ou
ser eliminado. Um estado que, procurando utilizar
0 indivíduo, exige para si tudo o que há no homem,
é um estado exploratório.
E se a sociedade concretizada no estado se
revelasse corrompida e meus esforços para curar
seu mal fossem inúteis, será que a minha vida como
indivíduo seria por isso totalmente sem sentido?
Se a sociedade decidisse recusar meus serviços e
até confinar-me ao isolamento, de maneira que eu
tivesse que morrer com toda a certeza, sem poder
exercer nenhuma influência sobre o mundo que
amo, sentir-me-ei obrigado, por isso, a terminar
minha vida?
A existência humana não pode derivar seu sen-
1ido último da sociedade, porque a própria socieda
de necessita de sentido. E tão legítimo perguntar
se há necessidade da humanidade como perguntar
se há necessidade de mim.
A humanidade começa com o homem indi
vidual tal como a história nasce de um aconteci
mento singular. É sempre um homem por vez que
temos em mente quando proclamamos “mal a nin
guém, bem a todos”, ou quando tentamos cumprir
o mandamento “ama o teu próximo como a ti mes
mo” . O termo “humanidade”, que em biologia in
dica a espécie humana, tem um significado inteira
mente diferente no reino da ética e da religião.
Aqui a humanidade não é concebida como uma es
pécie, um conceito abstrato destituído da sua reali
dade concreta, mas como uma abundância de indi
víduos específicos; como uma comunidade de pes
soas e não como um rebanho ou uma multidão de
desconhecidos.
Se é verdade que o bem de todos vale mais
203
quefío bem de um só, contudo é o indivíduo con
creto que dá sentido à raça humana. Não julga
mos que um ser humano tem valor por ser mem
bro da raça. O oposto é que é a verdade: a raça
humana tem valor porque é composta de seres hu
manos .
Embora dependamos da sociedade como do ar
que nos sustenta e embora outros homens compo
nham o sistema de relações em que a curva das
nossas ações tem o seu curso, é como indivíduos
que somos dominados por desejos, temores e espe
ranças, que somos desafiados, que somos chamados
e que somos dotados do poder da vontade e de
uma centelha de responsabilidade.
O auto-aniquilamento do desejo
204
de necessidades e desejos outrora ardentemente aca
lentados, que nos tornamos intimamente conscien-
les da temporalidade da existência.
Em busca do permanente
Desesperada ansiedade
205
convicção de que existe algo que seja digno das
lutas e trabalhos da vida. Não há alma alguma
que não tenha sentido a ânsia de conhecer algo
que dure mais que a vida, a luta e a agonia.
Com toda a sua angústia, com suas fracas luzes
em meio ao nevoeiro, o homem sente-se desampa
rado e contraditório. Será que a sua vontade de
ser bom pode curar as feridas da sua alma, seu
pavor e a sua frustração? É demasiadamente óbvio
que sua vontade é uma porta aberta para uma
casa dividida em si mesma, que suas boas intenções,
depois de durarem por algum tempo, tocam a lama
da vaidade, como o horizonte da sua vida que al
gum dia tocará a sepultura. Existe alguma coisa
além do horizonte das nossas boas intenções?
A busca humana de um sentido para a exis
tência é essencialmente uma busca do que é per
manente, uma busca de continuidade. Em certo
sentido a vida humana é, muitas vezes, uma corrida
contra o tempo, esforçando-se por perpetuar as ex
periências, ligando-se a valores ou estabelecendo re
lações que não pereçam logo. Sua busca não é um
produto do desejo, mas um elemento essencial da
sua natureza, característica não só da sua mente,
mas também da sua própria existência. Isso pode
ser demonstrado pela análise da estrutura da exis
tência como tal.
O que é a existência?
206
relações. Há sempre um mínimo de sentido em
nossa noção de existência.
A característica mais intrínseca da existência é
a independência. O que existe, existe na realidade,
no tempo e no espaço, e não só em nossas mentes.
Atribuindo existência a uma pessoa, implicamos que
a pessoa é mais que uma mera palavra, nome ou
idéia, que ela existe independentemente de nós e
do nosso pensamento, enquanto aquilo que é um
produto da nossa imaginação, coijpo os quiméricos
Brobdingnags ou os Yahoos, depende inteiramente
da nossa mente. Não existe quando não pensamos
nele. Mas a existência assim descrita é um conceito
negativo que nos diz o que não é a existência e
a coloca fora da relação para conosco. Mas qual
é o conteúdo positivo da existência? Será que exis
tência não implica uma relação nlfcessária para com
algo além de si mesma?
A temporalidade da existência
207
sas: uma mera sucessão de instantes perecíveis. É
algo que nunca conseguimos segurar; o passado
passou para sempre, o que está por vir está fora
do nosso alcance e o presente desaparece antes que
possamos percebê-lo. Paradoxal verdade — nunca
possuímos a única propriedade que temos.
208
cie mais que a continuidade. Medimos os valores
pela sua duração.
Até a nossa consciência do tempo depende de
um princípio que é independente do tempo. Temos
consciência do tempo medindo-o, dizendo um mi
nuto, uma hora, um dia. Mas para medir o tempo,
lemos que estar de posse de um princípio de me
dição que deve ser constante. Não podemos me
di-lo diretamente comparando uma extensão de tem
po com outra, pois nunca são dadas duas partes
de tempo simultaneamente. Assim, o tempo por
si mesmo não pode fornecer uma consciência de
si, pois para ser uma consciência de si deveria estar
igualmente presente em todos os estágios do tempo.
Por isso a consciência do tempo pressupõe um prin
cípio que não é temporal e não d esaParece> como
cada instante, para dar origem ao seguinte instante.
O tempo para a sua continuação depende de um
princípio que é independente do tempo, pois o
tempo em si não oferece permanência. O rio do
tempo corre ao longo de uma “terra sem tempo” .
O segredo da existência
209
14 - O homem não está só
volve-se porque assim o quer? Será que o ímpeto,
o empenho a audácia e a aventura que caracterizam
a vida são o resultado de uma escolha? Se assim
for, não estamos conscientes disso. Pelo contrário,
sabemos que a vontade humana jamais cria a vida.
Ao gerar a vida, somos instrumentos e não senhores
dela. Somos testemunhas e não autores do nasci
mento e da morte. Sabemos que algo anima e ins
pira um organismo vivo. Mas o que é? Usar o con
ceito de uma subcônscia vontade de viver, de uma
vontade que não conhecemos, é recorrer a um deus
ex machina, o artifício por meio do qual na tragédia
antiga se introduzia um deus na cena a fim de
encontrar uma solução sobrenatural para uma difi
culdade dramática, mas com a diferença de que aqui
o deus aparece dissimulado com a pretensão de ser
um ente natural.
Qual é o elemento permanente em nossas vi
das? O que continua permanente através de todas
as mudanças? O corpo cresce e declina. As paixões
são todas arrastadas pela correnteza do esqueci
mento. O que o homem que se encontra no li
miar da morte, olhando para trás, considera per
manente em tudo o que aconteceu e passou? Será
a nossa vontade de viver? Nossa preocupação re
flexiva?
Ser é obedecer
210
i|ue temos vontade de assim fazer. Nossa própria
vontade é obediência, é uma resposta, um cumpri
mento. Só subseqüentemente chegamos a querer
o que devem os. A vontade é aparência, nosso cum
primento é “a coisa em si mesma” . Não é a vida
do corpo um processo de obediência? O que é
o pensamento senão submisão à verdade, cumpri
mento das regras da lógica? O fato de que existe
lógica, independentemente da vontade que deseja
que algo seja verdade, exercendo um poder coerci-
livo e implacável sobre nossas mentes não é expli
cável como produto da vontade ou da mente. Os
atos do pensamento lógico dependem da mente,
mas o fato de que deve haver lógica, de que a
mente só pode pensar de acordo com suas regras,
6 algo que não depende do poder da mente.
%
A meta suprema
211
uma verdade, mas existem muitas maneiras de en
tendê-la e interpretá-la mal. Há uma só meta, mas
existem muitos modos de não atingi-la.
Qual é a meta suprema? O prolongamento da
existência na sua forma presente com seus prazeres
e preocupações? A perpetuação do eu com suas
fraquezas, vaidades e temores? Não amamos a tota
lidade do ego a tal ponlo que nossa maior aspira
ção seja preservá-lo para sempre. Efetivamente, co
meçamos a pensar em imortalidade quando nos sen
timos angustiados pela perpetuação dos outros e
não na ânsia pela nossa própria perpetuação. O
pensamento da imortalidade começa na compaixão,
numa preocupação transitiva por aqueles que mor
reram .
A verdadeira aspiração não é a de que perdure
o eu e tudo o que nele está contido, mas que per
maneça tudo aquilo para o qual o eu existe. O
homem pode ser um pesadelo, mas também o cum
primento de uma visão de Deus. Foi-lhe dado o
poder de superar-se a si mesmo, de responder por
todas as coisas e de agir por um Deus. Todos os
seres obedecem à lei. O homem tem a capacidade
de cantá-la. Seu supremo legado consiste em com
por um cântico dos feitos que só Deus compreende
plenamente.
Tempo e eternidade
212
O tempo é a orla da eternidade. O tempo
('■ a eternidade sob forma de borlas. Os momentos
tia nossa vida são como luxuosas borlas. Estão
presas à vestimenta e são feitas do mesmo tecido,
r, mediante a vida espiritual que compreendemos
que o infinito pode ser confinado numa linha men
surável .
A vida sem integridade assemelha-se a fios sol-
los que facilmente se desprendem da vestimenta
principal, enquanto nos atos de piedade aprendemos
a ver que cada instante é como um fio que sai da
eternidade para formar uma delicada borla. Não
devemos deixar cair os fios, mas entretecê-los com
a textura eterna.
Os dias da nossa vida, ao contrário de fu
gazes, são representantes da eternidade e devemos
viver como se o destino de tod& o tempo depen
desse totalmente de um só momento.
Visto como temporalidade, a essência do tempo
e separação, isolamento. Um momento temporal é
sempre solitário, sempre exclusivo. Dois instantes
nunca podem estar juntos, nunca podem ser con
temporâneos . Visto como eternidade, a essência do
tempo é união, comunhão. É no tempo e não no
espaço que podemos comungar, adorar, amar. É no
tempo que um dia pode valer mil anos.
As intuições criativas desenvolvem-se durante
uma vida inteira para durar um momento. Con
tudo, permanecem para sempre. Pois permanecer
significa estar em comunhão com Deus, “aderir a
ele” (D t 1 1 ,2 2 ). Um momento não tem outro mo
mento contemporâneo dentro do tempo. Mas na
eternidade cada momento pode tornar-se contempo
râneo de Deus.
É por isso que acima dissemos que o bem é
um fato ontológico. O amor, por exemplo, é mais
que cooperação, mais que sentir e agir conjunta-
213
ménte. Amar ê ser juntamente, um modo de exis
tência, não só um estado de alma.
O aspecto psicológico do amor, sua paixão e
emoção, é apenas um aspecto de uma situação onto
lógica. Quando um homem ama outro, constitui
uma união que é mais que uma adição, mais que
um mais um. Amar é unir-se ao espírito de uni
dade, elevar-se a um novo nível, entrar numa nova
dimensão, uma dimensão espiritual. Porque, como
vimos, o que quer um homem faça a outro homem,
fá-lo também a Deus.
Significativamente a Bíblia descreve o amor da
seguinte maneira: “Amarás o Senhor, teu Deus,
com todo o teu coração, com toda a tua alma, com
toda a tua m eo d ” . O que significa m eod? Só pode
significar o que significa em toda parte na Bíblia
o advérbio “mento” num grau superlativo. Dese
jando qualificar o verbo “amar”, o texto de re
pente sentiu a falta de força de expressão. Diz pro
gressivamente: “com todo o teu coração” . E ainda
mais: “com toda a tua alma” . Mas também essa
expressão não era suficiente e então disse: “com
toda a tua m uitidade. \ . ”
214
20
A essência do homem
A unicidade do homem
\
Tudo o que existe obedece. Só o homem ocu
pa um status único. Como ser natural ele obedece,
como ser humano freqüentemente tem que escolher.
Confinado na sua existência, é livre na sua vontade.
Seus atos não emanam dele como os raios da ener
gia emanam da matéria. Colocado na encruzilhada
dos caminhos, o homem deve repetidamente decidir
que direção tomar. O curso de sua vida é impre
visível . Ninguém pode escrever sua autobiografia
antecipadamente.
Será o homem que ocupa uma posição tão es
tranha no grande reino do ser uma exceção da or
dem universal? Um proscrito? Um capricho da na
tureza? Um fragmento de fio que caiu do tear da
natureza e depois foi entretecido da maneira estra
nha corno o vemos? A astronomia e a geologia en
sinaram-nos a desprezar a pretensiosa vaidade do
homem. Mesmo sem o auxílio da astronomia e da
geologia, o salmista deve ter-se sentido oprimido
pelo sentimento da própria insignificância, quando
lançou a melancólica interrogação:
Quando contemplo teus céus, obra de teus dedos,
A lua e as estrelas que criaste,
Que é o homem para dele te lembrares?
E o filho do homem para dele te ocupares?
(Sl 8 ,3 -4 ).
215
'; Entretanto, se o valor e a posição do homem
no universo devem ser definidos como um dividido
pelo infinito, sendo que o infinito designa o número
de seres que povoam o universo, se o homem =
1
------- como explicamos o fato de que o infinitésimo
00
216
do universo: como que um produto, uma massa
:inormal de tecido que não só começou a interagir
com outras partes, mas também, até certo ponto,
foi capaz de modificar o próprio estado destas.
Qual é a sua natureza e função? É algo maligno,
um tumor, ou é como que um cérebro do uni
verso?
A espécie humana mostra às vezes sintomas
de perversidade e o seu desenvolvimento não for
controlado, pode destruir todo o corpo por causa
da sua expansão. Em termos de tempo astronô
mico, nossa civilização encontra-se na sua infância.
A expansão do poder humano apenas começou e
o que o homem fizer com o seu poder poderá
tanto salvar como destruir nosso planeta.
A terra pode ter pouca importância no universo
infinito. Mas se tiver alguma sigfiificação, é o ho
mem quem tem a sua chave. Pois uma coisa o
homem, sem dúvida, parece possuir: a ilimitada e
imprevisível capacidade de desenvolver um universo
interior. Na sua alma há mais potencialidade que
em qualquer outro ser que conhecemos. Olhemos
para uma criança e tentemos imaginar a multiplici
dade de acontecimentos que originará. Uma criança
chamada Bach foi dotada de poder suficiente para
exercer fascínio sobre muitas gerações de homens.
Mas há qualquer potencialidade a saudar ou qual
quer surpresa a esperar de um bezerro ou de um
potro? Efetivamente, a essência do homem não está
no que ele é, mas naquilo que ele é capaz de ser.
217
liyres contra nossa vontade -— e temos a audácia
de escolher, raramente sabendo como e por quê.
Nossas faltas brilham como luzes de mil formas,
mas o certo está abaixo do solo. Somos minoria
no grande reino do ser e com nossa tendência de
adaptar-nos, freqüentemente procuramos unir-nos
com a multidão. Somos minoria dentro da nossa
própria natureza e na agonia e luta das paixões
muitas vezes preferimos invejar os animais. Com-
portamo-nos como se o reino animal fosse nosso
paraíso perdido, ao qual tentamos voltar por mo
mentos de prazer, acreditando que a felicidade con
siste no estado animal. Temos um incessante desejo
de ser como as bestas, uma nostálgica admiração do
animal dentro de nós. Segundo um cientista con
temporâneo: “A maior tragédia do homem ocorreu
quando ele deixou de andar sobre quatro pés e se
separou do mundo animal, assumindo uma posição
ereta. Se o homem tivesse continuado a andar ho
rizontalmente e os coelhos tivessem aprendido a
andar verticalmente, muitos dos males do mundo
não existiriam” .
218
pre mais fácil invejar o animal, adorar um totem
v ser dominado por ele do que atender à Voz.
Nossa existência oscila entre a animalidade e
a divindade, entre o que é mais e o que é menos
que a humanidade: abaixo está a evanescência, a
Iutilidade e acima a porta aberta do tesouro divino
onde depositamos a moeda da piedade e do espírito,
i is restos imortais de nossas vidas mortais. Estamos
constantemente entre as mós da morte, mas somos
lambém contemporâneos de Deus.
O homem está “um pouco abaixo dos anjos”
( Sl 8,5) e um pouco acima dos animais. Como
um pêndulo, oscila para lá e para cá sob a ação com
binada da gravidade e do movimento, da gravitação
do egoísmo e do movimento do divino, de uma
visão de Deus nas trevas da carne e do sangue.
Não conseguiremos entender o assentido da nossa
existência se não atendermos a nossos compromissos
com essa visão. Mas só olhos vigilantes e fortale
cidos contra a ofuscação e o superficial ainda con
seguem perceber a visão de Deus na noite de lou
cura, falsidade, ódio e malícia humana que invade
a alma.
Por causa do seu imenso poder, o homem é
potencialmente o mais perverso dos seres. Muitas
vezes domina-o a paixão da crueldade, que só o
temor de Deus pode amainar, acessos sufocantes
de inveja que só a santidade pode abrandar.
Se o homem não for mais que humano, será
menos que humano. O homem é apenas um breve
e crítico estágio entre o animal e o espiritual. Seu
estado é constantemente vacilante, ora se eleva, ora
cai. Não existe humanidade sem desvio. Ainda
está por aparecer o homem emancipado.
O homem é mais que aquilo que ele é para
si mesmo. Pode ser limitado na sua razão, per
verso na sua vontade, mas encontra-se numa re
219
la(ção com Deus que ele pode trair, mas não pode
romper e que constitui o sentido essencial da sua
vida. Ele é o nó em que se entrelaçam o céu e
a terra.
Quando arrebatados pela alegria de agir con
forme nosso agrado, seguindo qualquer desejo, acei
tando toda oportunidade para agir segundo aprou
ver ao corpo, sentimo-nos perfeitamente satisfeitos
em andar sobre quatro pés. Mas há momentos na
vida de cada um em que começamos a perguntar
mos se os prazeres do corpo ou os interesses do
eu podem servir como perspectiva sob a qual devem
ser tomadas as decisões.
220
Ini excedente que não é nosso? Viver acima das
liiissiis necessidades significa ser independente de
lim\ssidades egoístas. Mas como conseguirá o ho
mem romper o círculo do seu eu?
A possibilidade de eliminar a consideração de
a mesmo depende, em última análise, da natureza
do eu. É mais uma questão metafísica que psi
cológica. Se o eu existisse por causa de si mes
mo, essa independência não seria possível nem de-
vjável. Só se pode afirmar essa possibilidade su
pondo que o eu não é o centro, ''mas apenas um
mio, que ele não é nem seu princípio nem seu fim.
O homem é sentido, mas não seu próprio sen-
lido. Nem sequer conhece seu próprio sentido, pois
o sentido não sabe o que significa. O eu é uma
necessidade, mas não sua própria necessidade.
Todas as nossas experiências^ão necessidades
que se desfazem quando as necessidades são satis-
leitas. Mas a verdade é que também a nossa exis
tência é uma necessidade. Somos da mesma matéria
da qual são feitas as necessidades e nossa pobre
vida está cercada por uma vontade. O que é p er
manente em nossa vida não é a paixão nem o pra
zer, nem a alegria, nem o sofrimento, mas a res
posta a uma necessidade. O permanente em nós não
é nossa vontade de viver. Há uma necessidade das
nossas vidas e vivendo nós a satisfazemos. Perma
nente não é nosso desejo, mas nossa resposta a essa
necessidade, uma concordância e não um impulso.
Nossas necessidades são temporais, enquanto o fato
de sermos necessitados é permanente.
221
individual — e estabelecemos sua unicidade no fato
de estar repleto de imensas potencialidades, das
quais toma consciência mediante sua experiência
das necessidades. Também mostramos que ele não
encontra a felicidade utilizando suas potencialidades
para a satisfação das suas próprias necessidades, que
seu destino é ser uma necessidade.
Mas quem tem necessidade do homem? Te
rão as montanhas necessidade dos nossos poemas?
Será que as estrelas desapareceriam se deixassem
de existir os astrônomos? A terra pode continuar
a existir sem o auxílio da espécie humana. A na
tureza está repleta de oportunidades para satisfazer
todas as nossas necessidades, exceto uma — a ne
cessidade de ser necessitado. No seu ininterrupto
silêncio o homem é como que o meio de uma sen
tença e todas as suas teorias são como pontos que
indicam seu isolamento dentro de si próprio.
Diversamente de todas as outras necessidades,
a necessidade de ser necessário é um empenho para
dar e não para obter satisfação. É um desejo de
satisfazer um desejo transcendente, uma aspiração
de satisfazer uma aspiração.
Todas as necessidades são unilaterais. Quando
estamos com fome, estamos necessitados de alimen
to, mas o alimento não tem necessidade de ser con
sumido. As coisas belas atraem nossas mentes, sen
timos necessidade de observá-las, mas elas não têm
necessidade de serem observadas por nós. A maior
parte da vida é prisioneira dessa unilateralidade.
Se analisarmos um espírito de tipo médio, veremos
que é dominado pelo esforço de talhar a realidade
à medida do ego, como se o mundo existisse para
agradar o nosso ego. Todos nós temos mais rela
ções com coisas que com pessoas e mesmo quando
tratamos com pessoas comportamo-nos em relação
a elas como se fossem coisas, instrumentos, meios
222
,i serem usados para nossos fins egoístas. Quão ra-
uimcnte consideramos uma pessoa como pessoa! So-
nii is todos dominados pelo desejo de apropriar e de
possuir. Só uma pessoa livre compreende que o
verdadeiro sentido da existência se experimenta em
d;ir, em doar, indo ao encontro de uma pessoa face
.1 face, satisfazendo as necessidades de outras
pessoas.
Ao compreendermos o excedente do que vemos
iiei ma do que sentimos, nossa mpnte se evade e
;ile o coração é insuficiente. Por que estamos des
contentes com viver simplesmente por viver? Quem
nos fez sedentos do que é mais que a existência?
Em toda a parte estamos circundados pelo ine-
líível. Nossa familiaridade com a realidade é um
mito. No mais íntimo da nossa alma até a beleza
é uma liga misturada com o veraadeiro metal da
eternidade. Não há terra, nem céu, nem primavera,
nem outono. Só há uma interrogação, a eterna in
terrogação de Deus ao homem: onde estás? A reli
gião começa com a certeza de que nos é pedida
alguma coisa, de que há finalidades que têm ne
cessidade de nós. Diversamente de todos os outros
valores, os fins morais e religiosos evocam em nós
um sentido de obrigação. Apresentam-se como ta
refas e deveres e não como objetos de percepção.
Assim, a vida religiosa consiste em servir a fins
que têm necessidade de nós. O homem não é um
espectador inocente no drama cósmico. Há em nós
mais afinidade com o divino do que somos capazes
de crer. As almas dos homens são luzes do Se
nhor, acesas no caminho cósmico, e não fogos de
artifício produzidos pela combustão dos componen
tes explosivos da natureza, e cada alma é indispen
sável a ele. O homem é necessário, é uma necessi
dade de Deus-
223
211
224
iin apelo de possíveis compradores ou ao entusiasmo
ilns admiradores? Por acaso nosso desejo de ver
uni novo Shakespeare para expressar a tensão da
iiDKsa época deu realmente origem a tal novo gênio?
Apesar disso continuamos a sustentar a teoria de
iiiie a arte é produto de uma necessidade, a necessi
dade de auto-expressão do artista ou a necessidade
tlr gozo da arte por parte da sociedade.
O mito da auto-expressão
225
15 - O homem não está só
mundo quando no processo da expressão consegue
alcançar objetivos que são importantes para os ou
tros. Se Honoré de Balzac estivesse interessado so
mente em satisfazer seu desejo de dinheiro e pres
tígio, suas obras não teriam interessado a ninguém
além dele próprio. Sua significação tornou-se uni
versal por ter conseguido criar tipos e situações,
cuja importância pouco tem a ver com suas próprias
necessidades particulares.
O segredo da personalidade criativa não está na
cega necessidade de auto-expressão. Só proclama o
seu ímpeto de auto-expressão aquele que não tem
nada a dizer. Deve haver algo a ser expresso, uma
emoção, uma visão, um objetivo que produza a
necessidade de expressá-lo. O objetivo é o número
básico, a necessidade é apenas o coeficiente.
Objetivos e necessidades
226
'.cm objetos percebidos. As necessidades são a re-
Inção do homem para com os valores e objetivos.
IVi- um interesse é tornar-se consciente de tal re
lação .
Os fins são exigências que muitas vezes são in
dependentes de necessidades. Como a nossa per
cepção sensitiva não cria, mas só registra as coisas
percebidas, assim o sentimento de necessidade é
apenas uma resposta interna a um fim objetivo. Os
sentimentos, as percepções são nossas; os fins, as
coisas são do mundo. E o mundo e do Senhor.
A moralidade e a religião não começam como
sentimentos dentro do homem, mas como respostas
i objetivos e situações fora do homem. É sempre
( m relação a uma situação objetiva que julgamos
e afirmamos que algo é certo ou errado. E é em
resposta ao que está além do inefável que o homem
diz sim a Deus.
Um homem livre não se considera a si mesmo
como um repositório de necessidades fixas, mas vê
sua vida como uma orientação em direção a fins.
Ter uma meta em vista, procurar atingi-la e conti
nuar ampliando-a é a forma da vida civilizada. É
típico do libertino adaptar os fins às suas necessi
dades egoísticas. Está sempre pronto a seguir suas
necessidades. Efetivamente, todos podem aprender
a ter necessidades, a desejar alimentos, vestimenta
e outras coisas dispendiosas, que satisfazem os ape
tites ou os gostos. Mas os homens livres não obe
decem cegamente às necessidades. Pesam e compa
ram os seus respectivos méritos, e procuram satis
fazer aquelas que contribuem para a intensificação
e o enriquecimento de valores superiores. Em ou
tras palavras, aprovam só aquelas necessidades que
servem para atingir fins bons. Não dizem: “As
necessidades justificam os fins” . Mas, ao contrário:
“Os fins justificam as necessidades” . Para serem
227
capazes de deixar de lado a satisfação de uma ne
cessidade por causa de outra ou por causa de prin
cípios morais, estéticos ou religiosos devem, até cer
to ponto, ser independentes das necessidades.
O fatalismo psicológico que ensina que existe
uma única maneira, a maneira animal, é uma falácia
paralisante à qual jamais se submeterá o espírito
humano. A mente não c um repositório de idéias
fixas, mas sim uma orientação para ou uma pers
pectiva sob a qual se apreende o mundo. Tam
pouco a alma é escrava de interesses, vivendo sob
a ordem mesmeriana de interesses predeterminados.
Há mais de um fim no itinerário da vida de
cada pessoa. Alguns são paradas no caminho, en
quanto outros são desvios que confundem nossa ca
minhada. Cegos para a meta principal, geralmente
vagueamos atrás de fins egoístas e limitados, se
guindo modos que nos agradam, tecendo a tela das
necessidades com o entrelaçamento negligente de há
bitos e desejos.
Muitas coisas da civilização só servem para dar
estabilidade ou até para estimular metas competi
tivas e não para ajudar a busca de fins espirituais.
Encobrimos o homicídio com nossa vontade de vi
ver e não recuamos diante da injustiça em nosso
zelo por satisfazer ambições egoístas.
O erro da panpsicologia
228
,i forma e o conteúdo do pensamento e do compcr-
lamento a processos psíquicos subjetivos, a impul
sos e funções do desenvolvimento psíquico.
O equívoco dessa concepção está em confundir
os valores, as leis ou princípios com o contexto
psíquico em que elas se apresentam à nossa aten
ção . É engano identificar o conteúdo do conheci
mento com as reações emocionais que acompanham
a sua aquisição, ou identificar os conceitos com fun
ções mentais. Nossa afirmação ou ^pegação de uma
conclusão, nosso sim ou não dado a uma idéia é
um ato em que queremos afirmar a verdade com
base na necessidade lógica ou na certeza intuitiva.
E justamente a imunidade de emoção que nos per
mite sustentar que conhecemos a verdade.
O próprio panpsicólogo sustenta isso. As leis
devem ser por ele aplicadas aos processos, aos va
gos, múltiplos e caóticos processos psicológicos, se
quiser classificá-los, interpretá-los e torná-los inte
ligíveis. Mas essas leis, para serem universalmente
válidas, devem poder ser defendidas lógica e epis-
temologicamente. Devem ser categorias e não pro
cessos psíquicos. Caso contrário, não seriam senão
uma matéria a mais para a análise psicológica, sem
qualquer valor cognitivo. Assim sendo, não somos
forçados a admitir que existem atos cognitivos cuja
validade é independente de impulsos?
Do ponto de vista da panpsicologia teríamos
que negá-lo. Mas não temos mais direito de dizer
que as categorias lógicas são o produto de impulsos
do que dizer que os impulsos são produto das ca
tegorias. As categorias são fatos da consciência hu
mana que são tão inegáveis quanto os impulsos.
Com efeito, parece que dependemos mais das cate
gorias para compreender os impulsos que necessita
mos de impulsos para o desenvolvimento das nos
sas categorias.
229
A consciência do bem e do mal
230
plicadas por motivos egoísticos. Sendo um ser so
cial, o bem-estar de um indivíduo depende do bem-
-cstar de todos os outros membros do grupo. As
sim, qualquer serviço que ultrapassa os limites das
minhas necessidades imediatas pode ser um investi
mento para meu próprio benefício pessoal. Nesse
caso o altruísmo é egoísmo disfarçado e os atos mo
rais não diferem do atendimento generoso que todo
comerciante inteligente presta a seus clientes. O
sacrifício dos meus interesses pessoais por causa de
outro seria simplesmente um exefhplo do tipo de
renúncias que pratico em vista dos meus próprios
interesses, deixando de satisfazer algumas necessi
dades para conseguir a satisfação de outras. Adap
tar meu comportamento aos interesses de outras
pessoas à medida que isso for conveniente para
mim seria afinal tudo o que sou^moralmente obri
gado a fazer.
Mas o que constitui a consciência do bem e
do mal, do certo e do errado, é a exigência de agir
não por causa de mim, de fazer o que é certo,
mesmo que isso não me traga nenhuma vantagem.
A utilidade de um ato bom pode servir de incen
tivo para cumprir uma obrigação moral, mas cer
tamente não se identifica com ela.
231
pregar suas capacidades para objetivos não egoístas,
uma ordem que é obrigado a seguir, sob pena de
sofrer se assim não fizer. Essa ordem não é o
produto, mas a origem da civilização. A vida ci
vilizada é o resultado dessa necessidade, desse im
pulso para irmos além das necessidades imediatas
em nossos esforços, além de objetivos individuais,
tribais ou nacionais.
O impulso para construir uma família, para
servir a sociedade ou para dedicar-se à arte ou à
ciência pode, muitas vezes, nascer do desejo de satis
fazer nossos próprios apetites ou ambições. Mas,
visto do alto da torre de observação da história,
a utilidade egoísta dos atos exigidos, a possibili
dade de considerá-los como instrumentos para al
cançar as nossas próprias finalidades egoístas, é a
arma secreta de Deus na sua luta com a insensibi
lidade humana.
Muitas vezes alimentamos o falso prazer de
acreditar que os outros nos estão servindo quando,
na realidade, somos nós que servimos aos outros.
Não é nossa mente individual que é a medida do
sentido da realidade. Aquele que planta uma ár
vore para quem a planta? Para gerações futuras
cujo rosto nunca viu? Os fins superiores dissimu
lam-se astutamente como objetivos de utilidade ime
diata. É como se uma divina astúcia operasse na
história humana, usando nossos instintos como pre
textos para alcançar objetivos que são universal
mente válidos, um esquema para utilizar as forças
inferiores do homem a serviço de fins superiores.
A bondade não consiste em ser um objeto de
interesse, em ser usufruída ou desejada por algumas
ou muitas pessoas. Uma ação não é boa porque nos
agrada ou porque pensamos que ela é boa. Con
forme já foi indicado acima, o bem e o mal são
relações dentro da realidade. Bom é o que Deus
232
quer; bom é o que une o homem dentro de si
mesmo, o que une um homem com outro, o que
une o homem com Deus.
A vida é tridimensional
233
be que. a justiça é uma norma à qual devem obe
decer as suas leis para merecerem o nome de jus
tiça. Não sabemos de nenhuma tribo, de nenhum
código que afirme que é bom odiar ou que está certo
piejudicar-se mutuamente. A justiça é algo que to
dos os homens são capazes de apreciar.
Para conservar viva essa idéia, devemos esfor
çar-nos para preservar e aumentar o sentido do ine
fável, para lembrar constantemente a superioridade
do dever à nossa vontade e de conservar viva nossa
consciência de viver na grande fraternidade de todos
os seres em que somos todos iguais perante a rea
lidade última. Nosso interesse exclusivo já não é
mais a obediência ao ego, pois nossa preocupação
agora é outro problema: como cumprir o que se
pede de nós.
O universo não é algo abandonado nem a vida
algo desaçnparado. O homem não é o senhor do
universo, nem sequer o dono do seu próprio des
tino. Nossa vida não é propriedade nossa, mas
posse de Deus. É essa propriedade divina que faz
da vida uma coisa sagrada.
O que dissemos da justiça vale igualmente da
religião. Não é o seu coração a fonte daquela luz
em que o homem piedoso vê suas simples palavras
transformarem-se em sinais de eternidade. Não são
mãos humanas que constroem a fortaleza em que
se abriga o homem piedoso quando estremecem to
das as torres. A realidade do sagrado não depende
da sua vontade de crer. A religião não lhe gover
naria o coração se fosse simplesmente obra da sua
mente ou produto dos seus sentimentos.
234
22
O que é a religião
235
doiitrina que glorifica o homem primevo que era
natural e despojado das artes da vida civilizada.
Conseqüentemente insistem em compreender os pro
fetas em termos de homem selvagem.
Era doutrina básica da antropologia antiga que
na sociedade primitiva não havia lugar para as ati
vidades espontâneas do indivíduo, que os pensamen
tos e ações do indivíduo sempre lhe eram impostos
pelas pressões sociais. Essa doutrina é uma pressu
posição subjacente da teoria sociológica em que a
sociedade, suas tentativas e instintos para sobreviver
são consideradas como a causa mística da religião.
Essa doutrina foi rejeitada pela antropologia
atual que afirma que mesmo nos níveis inferiores
da civilização o indivíduo não foi totalmente opri
mido. A nós nos parece evidente que as grandes
idéias nasceram apesar das pressões sociais, apesar
das circunstâncias. Moisés teve que enfrentar lutas
não só contra o faraó, mas também contra o seu
próprio povo. A proibição de fazer imagens escul
pidas teve que ser imposta a massas que reclamavam
um bezerro de ouro. A essência da religião está
fora da compreensão da sociologia.
Por outro lado, a psicologia da religião, idea
lizando informações neutras e indiferentes, pretende
chegar a uma compreensão da religião aplicando
questionários a um grupo típico de pessoas ou então
tomando as opiniões e a mentalidade de uma pessoa
média como perspectiva de julgamento. Mas será
que a ausência de preconceito poderá compensar a
falta de compreensão do assunto? Será que indife
rença é o mesmo que objetividade?
Como é que chegamos a formar um conceito
certo de história ou de astronomia? Para tanto não
nos dirigimos ao homem da rua, mas àqueles que
dedicam sua vida à pesquisa, àqueles que são peri
tos no pensamento científico e que absorveram to
236
dos os dados referentes ao assunto. Da mesma
forma, para obtermos um conceito adequado da re
ligião, devemos procurar aqueles que têm a mente
voltada para a realidade espiritual, aqueles cuja vida
é religião e que são capazes de distinguir entre ver
dade e felicidade, espírito e emoção, fé e autocon
fiança. Do ponto de vista de um espírito para o
qual a enigmática santidade da religião não cons
titui uma certeza, mas um problema, dificilmente
podemos esperar mais que uma idéia exterior, um
relance distante de algo que para ò homem piedoso
é prementemente atual e eminentemente real.
Os peritos em religião estão em perigo de as
semelhar-se aquele estudante de Yeshivah54 que
afirmava entender e dominar todas as artes. Per
guntado se sabia nadar, respondeu: “Não sei nadar,
mas sei o que é nadar. . . ”
Semelhante é a situação de pessoas que se de
dicam à prosódia e são peritos em escandir versos.
Vangloriam-se de uma arte que é fácil para um
poeta naturalmente dotado. Ao contrário dos peri
tos, o poeta ainda que saiba compor uma poesia
perfeita, pode não saber ensinar a teoria da versi
ficação. Mas é capaz de ensinar alguém que seja
naturalmente dotado como ele, por meio de uma
simples alusão. Assim as palavras do homem pie
doso acendem centelhas nas almas de pessoas aber
tas à religião, centelhas que se transformam em lu
zes nos seus corações55.
237
tadò de um desejo de segurança e de imortalidade
ou a tentativa de vencer o medo, são semelhantes
a pessoas que pensam que os rios, como os canais,
foram construídos pelo homem para a navegação.
É verdade que necessidades econômicas e fatores
políticos ensinaram o homem a explorar as vias flu
viais. Mas serão os rios em si produtos do gênio
humano?
Muita gente pensa que alimentamos nosso cor
po para aliviar os tormentos da fome, para acalmar
os nervos irritados de um estômago vazio. Na ver
dade, não comemos porque sentimos fome, mas por
que a ingestão de alimento é essencial para a manu
tenção da vida, de vez que fornece as energias ne
cessárias para as várias funções do corpo. A fome
é o sinal para comer, sua ocasião e seu regulador,
mas não a sua causa verdadeira. Não confundamos
o rio com a navegação, a nutrição com a fome, ou
a religião com o uso que dela faz o homem.
Ás teorias psicológicas que pretendem que a
religião surgiu de um sentimento ou de uma necessi
dade parecem esquecer que tal causa não tem eficá
cia suficiente para produzir a religião. Não vêem
que, por exemplo, o sentimento de dependência ab
soluta ou de medo da morte não tendo absoluta
mente nenhuma qualidade religiosa, sua relação com
a religião não pode ser a de causa e efeito. Esse
sentimento pode contribuir para a receptividade do
homem para a religião, mas por si mesmo é incapaz
de criá-la. Como a autêntica intenção religiosa com
a qual está unido tal sentimento deve originar-se
de outra fonte, é evidente que essas teorias não
explicam o problema.
238
Magia e religião
239
religião a satisfação de suas próprias necessidades,
uma garantia de imortalidade ou um estratagema
para proteger a sociedade, não é a Deus que está
servindo, mas a si próprio. Quanto mais afastada
do ego, mais real é a sua presença. Um modo certo
de passar ao largo dele é pensar que Deus é uma
resposta a uma necessidade humana, como se não só
os exércitos, as fábricas e os cinemas, mas até Deus
tivesse que ocupar-se do ego.
Sempre houve pessoas que pensaram que “é
conveniente que haja deuses e se é conveniente acre
ditemos que os deuses existem” (Ovídio, Ars Ama-
toria, Livro I, 1 .6 3 7 ). Foi a tais pessoas que se
dirigiu Amós.
240
O lado objetivo da religião
241
16-0 homem não está só
lítica. Olhamos a religião como se ela fosse apenas
um instrumento e não uma entidade. Esquecemos
de perguntar: o que é a religião em si? O aspecto
objetivo da religião geralmente fica de lado. No
primeiro plano aparece, grande e saliente, seu com
plemento subjetivo, a resposta humana. Escutamos
o eco e esquecemos o sino, perscrutamos a religio
sidade e esquecemos a religião, observamos a expe
riência e descuidamos a realidade que antecede a
experiência. Entender a religião através da análise
dos sentimentos que inspira é não entender sua es
sência. É a mesma coisa que pretender apreender
uma obra de arte descrevendo nossa impressão dela
ao invés de compreender seu valor intrínseco. O
valor interno de uma obra de arte subsiste indepen
dentemente da nossa resposta a ela. A essência de
uma obra de arte não é equivalente nem comensu
rável com a impressão que produz, com o que é
refletido no gozo da arte. O estrato da experiência
interior e o reino da realidade objetiva não se en
contram no mesmo nível.
Não há neutralidade
242
está diante de Deus pela duração de uma expe
riência, meditação ou cumprimento de um ritual
é absurdo. A relação do homem com Deus não é
um episódio. O que acontece entre Deus e o ho
mem dura toda a vida.
Religião como instituição, o Templo como fim
supremo ou, em outras palavras, a religião pela re
ligião, é idolatria. O fato é que o mal integra tanto
a religião como a realidade profana. Uma santidade
estreita campanilística pode ser uma fuga do dever,
uma acomodação ao egoísmo.
A religião existe por causa de Deus. O lado
humano da religião, seus credos, rituais e institui
ções é um meio, e não o fim. O fim é “praticar
a justiça, amar a misericórdia e andar em humildade
com teu Deus” . Quando o lado humano da religião
se converte em fim, a injustiça s#>torna um meio.
A dimensão sagrada
243
e ridda de vivo pode ser concebido como estando
fora dela. Toda a existência encontra-se diante de
Deus aqui e em toda parte, agora e sempre. Não
somente um voto ou uma conversão, não somente
a concentração da mente em Deus engajam o ho
mem com Deus. Todos os atos, pensamentos, sen
timentos e acontecimentos são de seu interesse.
Tal como o homem vive no reino da natureza
e está subordinado às suas leis, assim se encontra
ele na dimensão da santidade. Não pode fugir das
suas fronteiras, da mesma forma como não pode
deixar a natureza. Não consegue separar-se da di
mensão sagrada nem pelo pecado, nem pela estu
pidez, nem pela apostasia, nem pela ignorância.
Não há possibilidade de fugir de Deus.
A piedade é a resposta
244
todos os estratos da sua personalidade. Na sra
solidão final, na hora da aproximação da morte,
desaparecem como palha levada pelo vento. É na
dimensão do sagrado que ele se encontra firme,
o que quer que lhe aconteça.
A modéstia do espírito
245
rar 4 misericórdia de Deus? Palavras não detém
a água, nem a meditação acaba com a tempestade.
A oração nunca está entrelaçada diretamente na ca
deia de causa e efeito físicos. O espiritual não in
terfere com a ordem natural das coisas. O fato de
que homens de intrépida sinceridade põem na ora
ção o melhor de sua alma nasce da convicção de
que há um reino em que os atos de fé são pode
rosos e fortes, que há uma ordem em que as coi
sas do espírito podem ter grandes conseqüências.
Há fenômenos que parecem sem importância
e acidentais no reino da natureza, mas que têm um
grande sentido na dimensão da santidade. Adorar
a violência, usar a força bruta é natural, enquanto
o sacrifício, a humildade e o martírio são coisas
inauditas sob o ponto de vista da natureza. É na
esfera do sagrado que um pensamento ou um sen
timento pode surgir como uma perene aproximação
da verdade, em que as orações são passos em dire
ção a ele aere p eren n ior.
Vivemos não só no tempo e no espaço, mas
também no conhecimento, encontrando-nos próximos
a ele não só mediante a nossa fé, mas também, e
antes de tudo, mediante a nossa vida. Todos os
acontecimentos refletem-se nele. Toda a existência
é coexistência com Deus. O espaço e o tempo não
são os limites do mundo. Nossa vida ocorre aqui
e no conhecimento de Deus.
246
23
247
tenhamos consciência disso, fins cuja necessidade
devemos aprender a sentir.
A vida é uma sociedade entre Deus e o ho
mem . Deus não está distante nem é indiferente
às nossas alegrias e sofrimentos. As necessidades
vitais autênticas do corpo e da alma do homem são
preocupações divinas. É por isso que a vida hu
mana é santa. Deus é um sócio e um partidário
na luta do homem pela justiça, pela paz e pela san
tidade, e é por necessitar do homem que ele fez
uma aliança perpétua com o homem, um vínculo
mútuo que une Deus e o homem, um relaciona
mento que liga tanto Deus como o homem.
“Neste dia obtivestes do Senhor a declaração
de que ele é vosso Deus, prometendo andar em
seus caminhos, obedecer às suas leis e mandamentos
e escutar sua voz. E neste dia o Senhor obteve de
vós a declaração de que sois seu povo, exclusivo,
como vos prometeu, e que obedeceríeis a seus man
damentos” (Dt 2 6 ,1 7 -1 8 ).
Algumas pessoas pensam que a religião se rea
liza como percepção de uma resposta a uma oração,
quando na verdade ela se verifica em nosso conhe
cimento de que Deus participa da nossa oração.
A essência do judaísmo é a consciência da recipro
cidade entre Deus e o homem, da união com aquele
que subsiste em eterna alteridade. Pois a missão
de viver é sua e nossa, como o é igualmente a res
ponsabilidade. Temos direitos e não só obrigações.
Nosso supremo dever é nosso supremo privilégio.
Interpretando Malaquias 3,18, disse o Rabi
Aha ben Ada: “Então distinguireis novamente o
justo do perverso” significando: “o que tem fé do
que não tem fé; o que serve a Deus do que não
o serve”, que significa: “o que serve à necessidade
de Deus do que não serve à necessidade de D eus.
Não se deve fazer da Torá uma pá para cavar, um
248
instrumento para uso pessoal ou uma corva para
glorificar-se a si próprio” (Midrash Tehillim, ed.
Buber, pp. 2 4 0 s ).
Sua necessidade é um interesse que ele mesmo
se impôs. Deus tem agora necessidade do homem,
porque ele próprio livremente o fez participante da
sua empresa, “participante na obra da criação” .
“Desde o primeiro dia da criação o Santo, bendito
seja, desejou entrar em sociedade com o mundo
terrestre” para habitar com suas criaturas no mundo
terrestre ( N úm eros R abba, cap. 13,6; cf. G ênese
Rabba, cap. 3,9) . Explicando Gên 17,1, o Midrash
observou: “Na opinião do Rabi Johanan nós neces
sitamos da sua honra: na opinião do Rabi Simeão
ben Lakish, ele necessita da nossa honra” ( G ênese
R abba, cap. 30; diversamente Teodoro, p. 2 7 7 )SÓ.
“Quando Israel cumpre a vaptade do Onipo
tente, acrescenta forças ao poder celeste, conforme
está dito: ‘A Deus damos forças’ (Sl 6 0 ,1 4 ). Mas
quando Israel não cumpre a vontade do Onipoten
te, enfraquece, se assim se pode dizer, o grande
poder daquele que está no alto, conforme está es
crito: “Enfraqueceste a Rocha que te gerou” ( P e-
sikta, ed. Buber, X X V I, 166b; comparar as duas
versões) .
A relação do homem com Deus não é uma
relação de confiança passiva na sua Onipotência,
mas uma relação de ajuda ativa. “Os ímpios con
fiam em seus deuses. . . os justos são o apoio de
Deus” ( G ênese Rabba, cap. 6 9 ,3 ).
Por isso os Patriarcas são chamados “o carro
do Senhor” ( G ênese R abba, cap. 4 7 ,6 ;8 2 ,6 ).
“Ele se gloria em mim, ele se compraz em mim;
Ele será minha coroa de beleza.
249
Sua glória repousa em mim, e a minha nele.
Ele está perto de mim quando chamo por ele’ .
(O Hino da Glória).
A extrema audácia deste paradoxo foi expressa
numa interpretação tanaítica57 de Isaías 43,12: “Vós
sois minhas testemunhas, disse o Senhor, e eu sou
Deus” — quando vós sois minhas testemunhas eu
sou Deus, e quando não sois minhas testemunhas
não sou Deus 58.
O pathos divino
250
mente, num espírito de fria indiferença. Seu jul
gamento está imbuído de um sentimento de íntima
preocupação. Ele é o pai de todos os homens e
não apenas um juiz. Ele é o amante comprometido
com o seu povo e não apenas um rei. Deus tem
um relacionamento apaixonado com o homem. Seu
amor ou sua ira, sua misericórdia ou seu descon
tentamento são a expressão da sua profunda parti
cipação na história de Israel e de todos os homens.
Assim, a profecia consiste na proclamação do
pathos divino, expresso na linguagem dos profetas
como amor, misericórdia ou ira. Atrás das várias
manifestações do seu pathos há um motivo, uma
necessidade: a necessidade divina da justiça hu
mana .
Os deuses pagãos tinham paixões animais, de
sejos carnais, eram mais caprichosos e licenciosos
que os homens. O Deus de Israel tem paixão pela
justiça. Os deuses pagãos tinham necessidades egoís
tas, enquanto o Deus de Israel só tem necessidade
da integridade do homem. A necessidade de Mo
loque era a morte do homem, a necessidade do Se
nhor é a vida do homem. O pathos divino que os
profetas tentaram expressar de muitas maneiras não
era um nome para a sua essência, mas para os mo
dos da sua reação ao procedimento de Israel, que mu
daria se Israel modificasse seus caminhos.
A onda de pathos divino que invadiu as almas
dos profetas como uma paixão impetuosa, assusta
dora, estremecedora, ardente, levou-os ao perigoso
desafio da autoconfiança e contentamento do povo.
Antes de todos os hinos e pregações consultavam o
interesse de Deus pelo povo, a fonte da qual bro
tavam todas as torrentes de ira 59.
251
A Bíblia não é uma história do povo judeu,
mas a história da procura do homem justo por Deus.
Visto que a espécie humana como um todo não
seguiu o caminho da justiça, foi a um indivíduo
— Noé, Abraão — a um povo: Israel ou ao resto
de um povo, que foi dada a missão de satisfazer
essa busca fazendo de todo homem um homem
justo.
Há no mundo um chamado eterno: Deus está
implorando o homem. Alguns se espantam, outros
permanecem surdos. Todos somos procurados. Um
ar de expectativa paira sobre a vida. Algo é pedido
ao homem, a todos os homens.
Música?
“Afastai de mim o ruído de vossos cânticos,
Pois não prestarei ouvidos à melodia
de vossas liras” (Am 5 ,2 3 ).
Oração?
“Quando estenderdes vossas mãos,
252
Afastarei meus olhos de vós.
Por mais orações que façais,
Não as escutarei.
Vossas mãos estão cheias de sangue”
(Is 1,15-16).
Sacrifício?
“Terá o Senhor tanto prazer em holocaustos e
sacrifícios como na obediência à voz do Se
nhor?” ( lSam 15,22).
“E agora, ó Israel, o que o Senhor teu Deus
pede de ti senão que temas o Senhor teu Deus,
que andes em seus caminhos, que o ames, que
sirvas o Senhor teu Deus com toda a tua men
te e coração e observes os mandamentos do
Senhor e suas leis que te ordeno hoje, para o
teu bem ?” (D t 10,12).
%
A necessidade religiosa
253
veitò'. Mas exploramos também alguma coisa a fim
de satisfazer nossas necessidades religiosas? Qual
é então a maneira de satisfazer a necessidade reli
giosa? Quais são os fins que o homem procura
atingir na religião?
Há em todo ser humano uma inextinguível ne
cessidade de algo permanente, uma necessidade de
adorar e reverenciar. A divergência começa apenas
no objeto e na maneira da adoração. Mas essa inex
tinguível necessidade é freqüentemente desvirtuada
em auto-exaltação ou num desejo de encontrar uma
garantia para a imortalidade pessoal. O judaísmo
mostra que ela é uma necessidade d e ser necessi
tado por D eus. Ensina que todo homem necessita
de Deus porque Deus está necessitado do homem.
Nossa necessidade dele não é senão um eco da sua
necessidade de nós.
Há, naturalmente, o constante perigo de crer
no que desejamos ao invés de desejar o que cremos,
de acalentar nossa necessidade como se fosse Deus
em vez de adotarmos Deus como nossa necessidade.
Por isso devemos avaliar nossas necessidades à luz
dos fins divinos.
Os fins desconhecidos
254
sermos senhores de um império ou de “um reino
de soldados ” . Mas temos necessidade de sermos
inspirados para sonhar os sonhos de Deus: “Deve
rás ser santo porque eu, teu Deus, sou santo. . . ”
“Serás para mim um reino de sacerdotes, um povo
santo ” .
É Deus quem nos ensina nossos fins últimos.
Abraão pode não ter sentido necessidade de aban
donar sua casa e seu país, como também o povo
de Israel não teve vontade de deixar suas panelas
de carne no Egito pela idéia de ir para o deserto.
Se analisarmos as potencialidades do homem,
torna-se evidente que sua unicidade e seu sentido
essencial se encontra na sua capacidade de satis
fazer finalidades que vão além do seu ego, en
quanto sua preocupação natural é: o que podem
fazer os outros pelo meu ego? A fieligião ensina-lhe
a considerar o que pode ele fazer pelos outros e
a compreender que o ego de nenhum homem é
digno de ser fim último.
Há um hino antigo com o qual concluímos
nossas orações diárias e que exprime nossa concep
ção dos fins últimos. É um hino que pode ser con
siderado o hino nacional do povo judeu.
“Por isso esperamos, Senhor nosso Deus, para
breve ver tua glória majestosa, quando serão elimi
nadas da terra as abominações e exterminados os
falsos deuses; quando o mundo será formado sob
o reino do Todo-poderoso, e toda a humanidade
invocará teu nome e todos os maus se voltarão para
ti. Que todos os habitantes do mundo reconheçam
e saibam que todo joelho deve dobrar-se diante de
ti, que toda língua deve jurar-te obediência. Que
se ajoelhem e prostrem diante de ti, Senhor nosso
Deus, e honrem o teu nome glorioso, que todos
eles aceitem o jugo do teu reino sobre eles para
sempre. Pois teu é o reino e por toda a eternidade
255
reinarás na glória, como está escrito em tua Torá:
‘O Senhor será Rei por todo o sempre’ . E foi dito
ainda: ‘O Senhor reinará sobre toda a terra; na
quele dia o Senhor será Um e seu nome Um’ ” 60.
256
verdadeira de culto à divindade. A terceira forma
de religião, abandonando a idéia de considerar a
Deus um meio para atingir fins pessoais, insiste
em que há uma sociedade entre Deus e o homem,
que as necessidades humanas constituem preocupa
ção de Deus e que os fins divinos devem conver
ter-se em necessidades humanas. Rejeita a idéia de
que o bem deve ser feito com desinteresse próprio,
de que a satisfação experimentada na prática do
bem corrompe a pureza da ação. O judaísmo pede
a participação plena da pessoa no'serviço do Se
nhor. Ao invés de boicotar os atos da vontade,
o coração deve responder com alegria e com irres
trito prazer.
257
17-0 homem não está só
potente se não for mais forte que todas as outras
obrigações, mais forte que a obstinada força dos
interesses egoísticos. Para poder competir com as
inclinações egoísticas, a obrigação moral deve estar
aliada com a mais elevada paixão do espírito.
Para ser mais forte que o mal, o imperativo
moral deve ser mais poderoso que a paixão pelo
mal. Uma norma abstrata, uma idéia etérea não é
capaz de neutralizar a gravitação do ego. Uma
paixão só pode ser vencida por outra paixão mais
forte.
Do fato de que se adota e acalenta um fim
como interesse pessoal não se segue que o fim seja
de origem psicológica, da mesma forma como a
nossa utilização da teoria do quantum não prova
que ela se originou de motivos utilitários. Assim,
o fato de Deus se tornar uma necessidade humana
não vicia a objetividade e a validade da idéia de
Deus.
A solução do problema das necessidades não
está em criar uma necessidade para acabar com to
das as outras necessidades, mas em criar uma ne
cessidade para acalmar todas as outras necessidades.
Há em cada homem um sopro de Deus, uma força
mais profunda que a camada da vontade e que
pode ser estimulada a transformar-se numa aspira
ção tão forte que seja capaz de dirigir e até de
se opor a todos os ventos.
258
24
O grande anseio
259
impele a experimentar a contrariedade e o perigo,
assim há nas almas sedentas um impulso de morrer
antes que viver de fraudes e distorções. Para o
homem piedoso Deus é tão real como a vida e
assim como ninguém se daria por satisfeito apenas
com conhecer e ler a respeito da vida, da mesma
forma ele não se contenta com supor ou provar
logicamente que Deus existe. Quer sentir e entre-
gar-se a ele. Não só obedecer, mas também ache
gar-se a ele. Seu desejo é provar todo o trigo do
espírito antes de ser moído pela mó da razão.
Prefere ser subjugado pelos símbolos do inconce
bível a manusear as definições do superficial.
Estimulado pelo desejo do inatingível, o ho
mem piedoso não se contenta em ficar confinado
ao que é. Seu desejo é não só conhecer mais do
que pode oferecer a razão ordinária, mas também
ser mais do que é; transformar a alma num barco
para a realidade transcendente, compreender com
os sentidos o que está oculto à mente, exprimir por
símbolos o que a língua é incapaz de dizer e o que
a razão é incapaz de conceber, experimentar como
realidade o que vagamente transluz na intuição.
A nobre nostalgia
260
(4 2 ,2 -3 ). “Minha alma suspira e até desfalece pe
los átrios do Senhor; meu coração e minha carne
cantam de alegria pelo Deus vivo” ( 8 4 , 3 ) . “Pois
um dia em teus átrios vale mais que m il” (84,11).
“Em tua presença há plenitude de alegria” ( 16, 11).
Será o judaísmo uma religião terrena? “Sou
um peregrino na terra” (119, 19) , declara o salmista.
“Quem tenho nos céus senão a ti? Não quero mais
ninguém na terra” ( 7 3 , 25 ) . “Minha carne e meu
coração desfalecem; mas Deus é^a rocha do meu
coração e minha herança para sempre” ( 7 3 , 2 6 ) .
“Quanto a mim, minha felicidade é a proximidade
de Deus” ( 7 3 , 2 8 ) . “Ó Deus, tu és meu Deus;
com ardor te procurarei; minha alma está sedenta
de ti, minha carne suspira por ti numa terra seca
e sequiosa, onde não há água. . . pois tua amorosa
bondade é melhor que a vida. M?hha alma se sacia
de fino e pingue manjar... Em meu leito lembro-me
de ti e em minhas vigílias noturnas medito em ti. . .
minha alma se aconchega a ti, tua direita é meu
apoio” ( 6 3 , 2 . 4 . 6 . 7 . 9 ) .
A consciência de Deus é incompatível com a
autojustificação, com a idéia de tomar muito a sério
as próprias obras. “Se eu for culpado, ai de mim,
e se sou inocente, não ousarei levantar minha ca
beça. Estou cheio de vergonha; vê minha miséria”
(Jó 10,15).
Há muitas leis na Bíblia que prescrevem o ofe
recimento de sacrifícios no santuário. Mas, ainda
que os profetas insistam que os verdadeiros “sa
crifícios para Deus são um espírito arrependido, um
coração arrependido e contrito” (Sl 51,19), não
há nenhum mandamento de contrição. Seria neces
sário tal preceito?
É possível não sofrer do fundo do coração
num mundo como este?
261
“A terra está entregue às mãos dos maus. . .
Os tabernáculos dos assaltantes são prósperos.
E os que provocam a Deus estão seguros” .
A auto-satisfação é algo muito difícil de man
ter juntamente com o conhecimento da miséria co
existente. Quem é capaz de pensar que suas pró
prias faltas desaparecem com desculpas mesquinhas
ou sentir-se feliz pretextando incapacidade moral?
“Não é enorme a tua malícia?
E infinitas as tuas iniqüidades?
Não deste água ao sedento,
Recusaste o pão ao faminto.
Sendo homem poderoso que possuía a terra,
Sendo homem de alta posição que nela habitava,
Despediste as viúvas de mãos vazias
E quebraste os braços dos órfãos”
(Jó 2 2 , 5 . 7 9 ) .
“Não há nada mais são que um coração con
trito” . O sentido da contrição não deve prejudicar
a consciência do nosso poder espiritual, da nobreza
eterna que acompanha a responsabilidade eterna.
Um homem culto havia perdido todas as suas
fontes de renda e estava à procura de um meio para
ganhar a vida. Os membros da sua comunidade,
que o admiravam pela sua cultura e pela sua pie
dade, sugeriram-lhe que servisse como preceptor da
comunidade nos dias do Temor. Mas ele se consi
derava indigno de servir como mensageiro da co
munidade, aquele que devia apresentar as orações
dos seus irmãos ao Todo-poderoso. Foi ter com o
seu mestre o Rabi de Husiatin e contou-lhe sua afli
tiva situação, o convite que recebera de servir como
preceptor nos dias do Temor e o seu receio em
aceitá-lo e rezar pela sua congregação.
“Seja receoso e reze”,
foi a resposta do rabi.
262
Descontentamento perpétuo
263
possível por causa da insatisfação dos homens com
os costumes, as sanções e as maneiras de compor
tamento de sua época e raça. Uma nova compreen
são começa quando chega o fim da satisfação, quan
do tudo o que foi visto ou dito parecer uma dis
torção para quem vê o mundo pela primeira vez.
A auto-satisfação é a beira do abismo, do qual
os profetas procuram afastar-nos. Quando o povo
de Israel ainda se encontrava no deserto, antes de
entrar na Terra Prometida, já foi exortado a lutar
contra os perigos da auto-satisfação. “Quando eu
os tiver introduzido na terra que jurei a seus pais
que lhes daria, uma terra abundante em leite e
mel, e eles comerem e engordarem, e se voltarem
para deuses estranhos e os adorarem, desprezando-
-me e violando minha aliança. . . ” (D t 3 1 , 2 0 ) . Por
que é este o caminho da ruína e da desgraça:
264
Bebem vinho em taças
E se ungem com óleos preciosos:
Mas não sentem os sofrimentos de José”
(Am 6 , 1 . 4- 6) .
Aspirações
265
lei fie Deus, pode estabelecer uma norma para toda
a nossa vida. Não basta ter idéias certas. Pois é
a vontade e não a razão que tem o poder executivo
no reino da vida. A vontade é mais forte que a
razão e não se submete cegamente aos ditames dos
princípios racionais. A razão pode forçar a mente
a aceitar intelectualmente as suas conclusões. Mas
qual é a força que pode fazer-me gostar de fazer
o que devo fazer?
Um jovem foi ser aprendiz de ferreiro. Apren
deu a segurar a tenaz, a manusear o malho, a bater
na bigorna e a puxar o fole para alimentar o fogo.
Concluindo o seu aprendizado, foi escolhido para
empregado na ferraria do palácio do rei. Mas pouco
durou a felicidade do jovem rapaz. Descobriu que não
tinha aprendido como acender o fogo. De nada lhe
valia toda a sua arte e conhecimento no manejo
dos instrumentos.
266
25
267
os deixa falar. Cabe à religião articular esses fins
que não têm voz.
Fazer a paz com todas as nossas realidades
significaria entregar-nos ao ego. É fácil converter
a alma numa casa de loucos e pensar que é um
santuário. O espírito que suspira pelo sopro divino,
que deseja ser mais forte que a veemência das pai
xões, deve equipar-se com armas que a mente sozi
nha não pode produzir.
O anseio do homem pela liberdade interior
vem acompanhado de um sentimento de desgosto
pelas necessidades artificiais. Cada um de nós, nal
gum momento da vida, entendeu a sabedoria da
máxima antiga de que “não ter desejo nenhum é
divino; e ter o mínimo possível de desejos é estar
próximo da divindade” (Diógenes Laércio, Sócrates,
séc. I I ). Se só os santos podem ser como o Rabi
Hanina, com relação ao qual todo dia sai uma voz
do monte Horeb proclamando: “O mundo inteiro
é alimentado por causa do meu filho Hanina; mas
meu filho Hanina se satisfaz com uma pequena
quantidade de alfarrobas de um sábado ao outro”
(Berakot 17b), todos os homens podem aceitar
o conselho de que “devemos procurar diminuir nos
sos desejos em vez de aumentar nossos meios” .
268
pios extremos de uma idéia que no subconsciente
nunca desapareceu.
Os expoentes do outro extremo, alarmados com
o poder destrutivo das paixões desenfreadas, ensi
naram o homem a ver torpeza e mal no desejo, Sa
tanás no arrebatamento da carne. Seu conselho é
reprimir os apetites e seu ideal é a renúncia de si
mesmo e a ascese. Alguns gregos diziam: “A pai
xão é um deus, E ros” . Os budistas afirmam: “O
desejo é mau” .
Para o espírito judeu, que não^é seduzido nem
horrorizado pelo poder das paixões, os desejos não
são bons nem maus, mas tal como o fogo, não com
binam com a palha. Não devem ser nem extintas
nem alimentadas de combustível. Em vez de cultuar
o fogo e ser por ele consumidos, devemos deixar
que das chamas nasça uma 1uz.^^4í necessidades
são oportunidades espirituais.
Espírito e carne
269
cosfjda alma. Pelo contrário uma necessidade que
serve para a intensificação da vida sem prejuízo a
outros, é obra do Criador, e a destruição ou muti
lação arbitrária ou ignorante da sua criação é van
dalismo. “Comer, beber e gozar do seu trabalho
é um dom de Deus ao homem” (Ecl 3, 13 ).
Vida correta evidentemente implica em con
trole e relativo domínio das paixões, mas não re
núncia a todas as satisfações. O que é decisivo não
é o ato do domínio, mas como utilizar este domínio
sobre as paixões. Nosso ideal não é um domínio
implacável, mas uma diligente alteração das necessi
dades. A paixão é um monstro de muitas cabeças
e o objetivo só é atingido mediante cuidadosa me
tamorfose. Não por meio de amputação ou muti
lação .
O judaísmo não está ligado a nenhuma dou
trina de pecado original e não tem conhecimento
de uma malícia inerente à natureza humana. No
seu vocabulário a palavra “carne” não assumiu a
coloração de pecaminosidade. As necessidades car
nais não são concebidas como sendo radicadas no
mal. Em parte alguma da Bíblia se encontra uma
indicação da idéia de que a alma é prisioneira de
um corpo corrupto, que procurar satisfação neste
mundo significa perder a alma ou faltar à aliança
com Deus, que a fidelidade a Deus exige a renúncia
aos bens terrenos.
Nossa carne não é má. Elá é matéria para apli
cação do espírito. O carnal é algo a ser superado
e não aniquilado. Tanto o céu como a terra são
sua criação. Nada na criação pode ser rejeitado e
de nada se deve abusar. O inimigo não está na
carne. Está no coração, no ego.
Para a Bíblia o bem é equivalente à vida. O
ser é intrinsecamente bom. “Deus viu que era
bom” . A Torá é concebida como uma “Árvore da
270
Vida”, representando a equivalência da vida e do
bem. “No caminho da justiça está a vida” (Prov
12 , 2 8 ) .
Na vizinhança de Deus
271
Se perguntarmos “por que criou ele a má inclina
ção. . . o Senhor nos dirá: Sois vós que a tornais
má” 61.
Pode-se servir a Deus com o corpo, com suas
paixões e até com “o impulso mau” {S ifre D eute
ronôm io, 3 2 ) . Só é necessário saber distinguir en
tre a escória e o ouro. Este mundo só adquire gosto
quando recebe um pouco de mistura do outro mun
do. Sem a nobreza do espírito, a carne pode real
mente converter-se num foco de trevas.
O caminho que leva ao sagrado passa através
do profano. O espiritual apóia-se sobre o carnal,
como “o espírito que paira sobre a face das águas”.
A vida judaica é uma vida vivida de acordo com
um sistema de controles e equilíbrios.
61 Tanhuma Bereshit /G ê n e se / n° 7.
272
mariamente atos executados pelo indivíduo; atos
particulares e simples e não cerimônias públicas.
“O homem deveria sempre considerar-se como se
o Santo habitasse no seu corpo, pois está escrito:
‘O Santo está dentro de vós’ (Os 11,9), por isso
não se deve mortificar o corpo” (Taanit 11b) 62.
O homem é a fonte e o iniciador da santidade
no mundo. “Se um homem se santificar um pouco,
Deus o santificará cada vez mais; se ele se santi
ficou a partir de baixo, será santificado a partir de
cima” (Yoma 39a).
O judaísmo ensina-nos que até a satisfação de
necessidades animais pode ser um ato de santifica
ção. O gozo do alimento pode ser uma forma de
purificação. Algo da minha alma pode morrer afo
gado num copo d’água se seu conteúdo for bebido
como se a única coisa im portante no mundo fosse
a minha sede. Mas podemos chegar um pouco mais
perto de Deus, quando nos lembrarmos dele ainda
mais intensamente na excitação e na paixão.
A santificação não é um conceito celestial.
Não existe um dualismo de terreno de um lado e
sublime de outro. Todas as coisas são sublimes.
Todas foram criadas por Deus e sua continuação
na existência, sua cega aderência às leis da necessi
dade é, conforme dissemos acima, um modo de obe
diência ao Criador. A existência das coisas no uni
verso é um rito supremo.
Um homem que vive, uma flor que floresce
na primavera, é um cumprimento da ordem de Deus:
“Existam !” Vivendo estamos diretamente cumprin
do a vontade de Deus, numa forma que está acima
de nossa escolha ou decisão. A nossa própria exis-
273
18-0 homem não está só
tênciâ está em contato com sua vontade. A vida
é santa e constitui uma responsabilidade tanto de
Deus como do homem.
63 Rabino tanaíta. (N . do T . ) .
64 Mishna Makkot 3,16. (T ratado da Mishna sobre a
fustigação. N . do T ) .
65 Yebamot, título do tratado da Mishna sobre o le-
v irato.
274
A santificação como razão para andar nos seus
caminhos não é um conceito de pragmatismo reli
gioso — a teoria segundo a qual os efeitos tangí
veis servem como critério para a validade dos man
damentos . O bem deve ser feito por causa de Deus
e não para promover a perfeição do homem.
“Diz: ‘os olhos do sábio estão na sua cabeça’
(Ecl 2 , 1 4 ) . Dir-se-á: onde poderiam estar senão na
c abeça?. .. Mas quer dizer o seguinte. Aprende
mos que um homem não deve caminhar quatro cú
bitos de cabeça descoberta, a razão para tanto sendo
que a Shekhinah está sobre a cabeça. Então, os
olhos do sábio. . . estão voltados para a sua cabeça,
para aquilo que está sobre sua cabeça e assim sabe
que a luz acesa sobre sua cabeça precisa de óleo,
pois o corpo humano é um pavio e a chama arde
sobre ele. E o rei Salomão advSrte e diz: ‘Não
deixa faltar óleo na tua cabeça’ (E cl 9, 8) , porque
a luz sobre a sua cabeça precisa de óleo, que con
siste em boas obras e por isso os olhos do sábio
estão voltados para a cabeça e não para outra parte”
(Zohar I I I , 187a).
Aprendemos que o homem é necessário, que
nossas necessidades autênticas são exigências divi
nas, símbolos de necessidades cósmicas. Deus é o
sujeito de todos os sujeitos. A vida é sua e nossa.
Ele não nos lançou no mundo e nos abandonou.
Ele participa dos nossos trabalhos. Compartilha das
nossas ansiedades. Um homem que tem uma ne
cessidade não é o sujeito exclusivo e último da ne
cessidade: Deus tem necessidade juntamente com
ele. Tomando consciência de uma necessidade, de
vemos perguntar-nos: Deus tem necessidade junta
mente comigo? Ter Deus como sócio das nossas
ações é lembrar-nos de que nossos problemas não
são exclusivamente nossos. A existência judaica é
uma vida compartilhada com Deus.
275
Viver dentro de uma ordem
A totalidade da vida
O não-heróico
A autoridade interior
277
zenédas. Pode ter uma memória cheia e uma alma
vazia. Os homens que não são livres horrorizam-se
com a idéia de aceitar um regime espiritual. Asso
ciando o controle interno com a tirania externa, pre
ferem sofrer a sujeitar-se à autoridade espiritual.
Só homens livres, que não têm a tendência de cano
nizar todos os caprichos, não identificam o autocon
trole com a auto rendição, sabendo que ninguém é
livre se não for senhor de si mesmo, que quanto
mais liberdade gozarmos, de mais disciplina necessi
tamos 66.
A idéia do deixa-correr, ou seja, a ausência de
controle ou direção na esfera íntima é uma ilusão.
A vida interior está povoada de inúmeras forças
insaciáveis e competitivas. Aqui o poder não pode
ficar vago. Se os princípios forem eliminados, logo
um desejo inferior tenta ocupar o poder. Sob pena
de cair no ridículo, o imenso reino da vida não
pode ser colocado sob o controle da ética ou da
jurisprudência. Como dotar o homem de capaci
dade para dominar a totalidade da vida, eis o su
premo desafio da inteligência.
A resposta a este desafio é a vida de piedade.
Para aprender a viver devemos dirigir-nos ao ho
mem piedoso.
O homem piedoso
Ò que é piedade?
279
jeitáda no interesse da sanidade mental e da liber
dade espiritual.
Apesar disso existe entre nós o homem pie
doso. Ele não desapareceu da face da terra. Efe
tivamente, com mais freqüência do que geralmente
se supõe, encontram-se na vida normal situações
que revelam com toda a evidência uma atitude de
piedade. A presença da piedade entre nós é, portan
to, um fato incontestável. Porque, pois, nos deixa
ríamos dominar por um preconceito, deixando de
estudar tal fenômeno ou pelo menos esforçando-nos
para compreendê-lo?
Método de análise
280
significa Deus na sua vida? Qual é a sua atitude
para com o mundo, a vida, suas forças interiores
e suas posses?
A piedade não é um conceito psicológico. O
termo não faz parte da nomenclatura psicológica,
da mesma forma como não pertencem a ela os con
ceitos lógicos de verdadeiro e falso, os conceitos
éticos de certo e errado e os conceitos estéticos de
belo e feio. A piedade não indica uma função, mas
um ideal da alma. Como a sabedoria e a veracidade,
está sujeita ao caráter individual do homem apre
sentando nuanças das suas qualidades próprias. As
sim há tipos de piedade apaixonada ou sóbria, ativa
ou quietista, emocional ou intelectual. Mas, embora
a piedade nunca seja independente da estrutura fí
sica do indivíduo, é fútil querer explicá-la por
qualquer tendência ou preconceito da vida mental.
Está muito longe de ser o resultado de qualquer
disposição psíquica ou função orgânica. Certas dis
posições podem influenciá-la ou intensificá-la, mas
não a criam.
Como ato, a piedade faz parte da corrente da
vida psíquica. Entretanto, o seu conteúdo espiri
tual não se identifica com o ato em si. É universal
e distinta da função psíquica subjetiva. A piedade
é uma maneira espiritual objetiva de pensar e viver.
Houve épocas em que a piedade era tão comum
como é hoje o conhecimento da tabuada.
Para compreender a piedade, temos que anali
sar a consciência que acompanha os atos de um
homem piedoso e classificar os conceitos latentes
na sua mente. É desnecessário acentuar o fato de
que a validade de tal análise não é prejudicada pela
possibilidade de que conceitos derivados de uma
análise geral podem não se encontrar em cada ato
de piedade. 0 fato de um poeta não estar familia
rizado com as regras que governam a sua arte, ou
281
1
282
a sombra de um cavalo em fuga, não se conseguindo
segurar nem o cavalo nem a sombra. A piedade não
consiste em atos isolados, em experiências esporá
dicas e efêmeras. Tampouco se limita a um só
estrato da alma. Ainda que se manifeste em atos
particulares, está acima das distinções entre inte
ligência e emoção, vontade e ação. Sua fonte pa
rece ser mais profunda que o alcance da razão e
estender-se mais longe que a consciência. Embora
se revele em atitudes isoladas tais como devoção,
reverência ou desejo de servir, átias forças essen
ciais localizam-se numa camada da alma muito mais
profunda que a órbita de qualquer uma dessas ati
tudes. É algo de incessante, imutável na alma, uma
perpétua atitude interior de todo o homem. Como
uma brisa na atmosfera, ela percorre todos os atos,
expressões e pensamentos. È ui^ sentido da vida
que se manifesta em cada traço do caráter, em
cada modo de ação.
283
dadé divina. Nas pequenas coisas sente o impor
tante, nas coisas comuns e simples sente o supremo;
na agitação do que passa sente a tranqüilidade do
eterno. Embora a piedade esteja em relação com o
que o homem conhece e sente sobre os horizontes
da vida, excede incomparavelmente o total obtido pe
la adição das suas diferentes experiências inteletuais
e emocionais. Sua essência é realmente algo mais
que uma teoria, um sentimento ou uma convicção.
Para aqueles que a ela aderem, a piedade é o cum
primento do destino, a única vida digna de ser
vivida, o único caminho da vida que eventualmente
não lança o homem no caos bestial.
A piedade é, portanto, um modo de vida. É
a orientação do interior humano para a santidade.
É um interesse predominante pelo valor supremo
de todos os atos, sentimentos e pensamentos. Com
o seu coração aberto e atraído por certa gravitação
espiritual, o homem piedoso como que se move para
o centro da tranqüilidade universal e sua consciên
cia está numa posição que lhe permite escutar a
voz de Deus.
A vida de todo homem é dominada por certos
interesses e está essencialmente determinada pela
aspiração por aquelas coisas que mais o preocupam
e interessam. O interesse principal do homem pie
doso é a preocupação com a preocupação de Deus,
que assim se torna a força impulsora que controla
o coeso de suas ações e decisões, que modela suas
aspirações e seu comportamento. E um equívoco
ver em atos isolados de percepção ou consideração
os elementos decisivos do comportamento humano.
Na verdade, é a direção da mente e do coração,
o interesse geral de uma pessoa que a leva a ver
ou descobrir certas situações e esquecer outras.
Conforme vimos anteriormente, o interesse é uma
apreensão seletiva baseada sobre idéias anteriores,
284
percepções, reconhecimentos ou predileções preceden
tes. O interesse de um homem piedoso é determi
nado por sua fé, de maneira que a piedade é a fé
traduzida em vida, o espírito encarnado numa per
sonalidade .
O anonimato interior
Não é um hábito
285
moráentos de tensão o homem piedoso poderá tro
peçar; poderá errar ou desviar-se. Em sua fra
queza poderá temporariamente sucumbir ao agradá
vel, ao invés de ficar fiel à verdade, seguir o apa
ratoso, em vez do que é simples e sólido. Entre
tanto, sua aderência ao que é santo apenas vacila,
mas nunca se rompe. Na verdade, tais quedas são
freqüentemente seguidas de um novo impulso em
direção à meta. A queda provoca novo estímulo.
Sabedoria e piedade
286
Fé e piedade
237
com* ela; não só encontrar a Deus, mas aderir a ele,
concordar com a sua vontade, ressoar as suas pala
vras e responder à sua voz.
E da piedade que nasce a revelação do eu su
perior, a manifestação do que é mais delicado na
alma humana, dos elementos mais puros da aven
tura humana. Trata-se essencialmente de uma ati
tude em relação a Deus e ao mundo, em relação
aos homens e às coisas, em relação à vida e ao
destino.
Na presença de Deus
288
Deus está entre o homem e o mundo
289
19-0 homem não está só
força, pensando usa do seu poder. Move-se sempre
sob o pálio invisível da recordação e o maravilhoso
peso do nome de Deus está constantemente sobre
sua mente. A palavra de Deus lhe é tão vital como
o ar ou o alimento. Nunca está só, nunca está sem
companhia, pois Deus está ao alcance do seu co
ração. Na aflição ou sob o impacto de algum cho
que repentino pode momentaneamente sentir-se num
caminho desolado, mas basta que volte levemente
seus olhos para descobrir que seu sofrimento está
compensado pela compaixão de Deus. O homem
piedoso não precisa de nenhuma comunicação mila
grosa para torná-lo consciente da presença de Deus.
Tampouco é necessária uma crise a fim de desper
tá-lo para o sentido e para o apelo desta presença.
Sua consciência poderá ficar temporariamente enco
berta ou oculta por alguma mudança violenta, mas
nunca desaparecerá. E esta consciência de estar
sempre vivendo sob o olhar vigilante de Deus que
leva o homem piedoso a ver alusões de Deus nas
mais variadas coisas que encontra na sua caminhada
cotidiana. Muitos acontecimentos comuns podem ser
aceitos por ele tanto pelo que são, quanto como
delicadas alusões ou bondosas lembranças de coisas
divinas. Com essa atenção come e bebe, trabalha
e se diverte, fala e pensa. Pois a piedade é uma
vida vivida em harmonia com a presença de Deus.
O valor da realidade
Esta harmonia revela-se na maneira segundo
a qual ele considera e avalia todos os fenômenos.
O homem tem por natureza a inclinação de avaliar
as coisas e os acontecimentos de acordo com a
finalidade para que servem. Na vida econômica
um homem é avaliado segundo a sua eficiência,
pelo seu valor no trabalho e pela sua posição social.
290
Cada objeto do universo é considerado uma utili
dade ou instrumento, sendo o seu valor determi
nado pela quantidade de trabalho que é capaz de
executar ou o grau de prazer que oferece, de sorte
que a medida de todas as coisas é a sua utilização.
Mas será que o universo foi criado apenas para
uso do homem, para a satisfação de seus desejos
animais? Evidentemente é cruel e impensado subme
ter outros seres ao serviço dos nossos interesses,
vendo que cada existência tem seu próprio valor
interno e que utilizá-los sem considerar sua essência
individual é profaná-los e desprezar sua real digni
dade . A loucura desta mentalidade instrumental
manifesta-se na vingança que se segue inevitavel
mente. Ao tratar todas as outras coisas como instru
mentos, o homem eventualmente se transforma a si
próprio em instrumento de algo que não entende.
Escravizando os outros, ele próprio mergulha na
servidão, servindo os senhores da guerra ou os pre
conceitos que serão impostos sobre ele. Esbanja a
sua vida servindo a paixões que os outros astuta
mente nele excitam, pensando ingenuamente que
esta é a sua liberdade.
O valor intrínseco de todos os entes ■ — ho
mens ou mulheres, árvores ou estrelas, idéias ou
coisas — não está totalmente sujeito a nenhum dos
nossos objetivos. Têm em si mesmos um valor
completamente independente de qualquer função que
os torna úteis aos nossos fins. Isso é particular
mente verdadeiro do homem, pois é a sua essência,
esse segredo do seu ser em que se fundam a sua
existência e o seu sentido, que exigem nosso res
peito . Por isso, ainda que não saibamos de que
maneira ele possa ser útil ou não conheçamos ne
nhum meio de subordiná-lo a qualquer fim ou obje
tivo, devemos estimá-lo somente por isso pelo seu
valor intrínseco e independente.
291
Uma atitude em relação
à realidade total
Reverência
292
abre a porta para um templo de novas luzes, ainda
que o seu vestíbulo seja escuro e sombrio. O ho
mem piedoso aceita as provações da vida e sua
necessidade de angústias, porque sabe que isso faz
parte da totalidade da vida. Tal aceitação não sig
nifica complacência ou resignação fatalística. Ele
não é insensível. Pelo contrário, é agudamente sen
sível à dor e ao sofrimento, à adversidade e ao mal
em sua própria vida e na dos outros. Mas possui
a força interior de elevar-se acima das aflições, e
com a compreensão do que esses males são na rea
lidade, as aflições lhe parecem uma espécie de arro
gância . Nunca sabemos qual é o sentido último
das coisas. Distinguir muito nitidamente o que jul
gamos bom ou mau na experiência é desonesto. É
melhor amar que entristecer-se e, com a consciência
amorosa do longo alcance de tudo^o que atinge nos
sas vidas, o homem piedoso nunca superestimará o
peso aparente dos acontecimentos do momento.
Gratidão
293
tristeza representa uma arrogante e presunçosa de
predação das realidades fundamentais. A tristeza
implica que o homem pensa ter direito a um mun
do melhor, mais agradável. A tristeza é uma re
cusa e não um oferecimento; uma censura e não
uma apreciação; uma retirada e não uma busca.
As raízes da tristeza encontram-se na pretensão,
no fastio e no desprezo do bem. O homem triste,
vivendo irritado e queixando-se constantemente do
seu destino, sente hostilidade em toda parte e pa
rece nunca perceber a ilegitimidade das suas pró
prias queixas. Tem um sentido muito agudo para
perceber as incoerências da vida, mas nega-se obsti
nadamente a reconhecer a delicada graça da exis
tência .
294
do bem, e encontra sinais de Deus quase em cada
objeto ordinário sobre o qual cai o seu olhar. Por
isso suas palavras trazem esperança para um mundo
sórdido e desesperado.
Responsabilidade
295
como írása a natureza. É impressionante a falta de
consideração que o homem moderno tem da sua
responsabilidade em relação a este mundo. Encon
tra diante de si um mundo repleto e transbordante
de maravilhosos materiais e forças e sem hesitação
ou escrúpulo lança mão de tudo o que estiver a
seu alcance. Onívoro em seus desejos, ilimitado
em seus esforços, persistente em seus objetivos,
o homem está progressivamente mudando a face
da terra. Parece não haver ninguém que negue ou
desafie a sua eminência. Iludidos por esta apa
rente grandeza, nem sequer pensamos se há um
fundamento para nosso suposto direito de possuir
nosso universo. Nossos caprichosos desejos e im
pulsos, por naturais que sejam, não constituem ne
nhum título de propriedade. Esquecidos disso, con
sideramos nosso direito como coisa evidente e lan
çamos nossas mãos sobre tudo, sem jamais nos per
guntarmos se isso não é rapina. As centrais elé
tricas, as fábricas, os supermercados familiarizam-nos
com a exploração da natureza em nosso proveito.
Enganados pela familiaridade, a armadilha invisível
da mente, facilmente nos entregamos à ilusão de
que estas coisas estão à nossa disposição e pouco
pensamos que o sol, a chuva, os cursos d’água, de
forma alguma são fontes de recursos de nosso di
reito. Só despertamos da nossa ilusão quando ines
peradamente somos colocados diante de coisas ob
viamente fora do alcance do poder ou da jurisdição
humana, tais como as montanhas ou os oceanos ou
acontecimentos incontroláveis como a morte súbita,
terremotos ou outras catástrofes.
Na realidade o homem não tem poderes ilimi
tados sobre a terra, assim como não os tem sobre
as estrelas e os ventos. Não tem poder completo
nem sequer sobre si mesmo. Em sentido absoluto,
nem o mundo nem sua própria vida lhe pertencem.
296
E nas coisas que consegue controlar mais ou menos,
o que controla não é a essência, mas apenas a apa
rência, como é evidente para quem quer que olhe
com olhos descobertos uma flor ou uma pedra.
Surge, então, a interrogação: Quem é o senhor?
Quem é o dono de tudo o que existe? “A terra
é do Senhor” . O homem piedoso olha as forças
da natureza, os pensamentos da sua própria mente,
a vida e o destino como propriedade de Deus. Este
modo de ver orienta a sua atitude em relação a
todas as coisas. Não murmura quarido as calami
dades caem sobre ele ou quando o invade o deses
pero. Sabe que tudo na vida é de interesse divino,
porque tudo o que é, é posse divina.
Um sçflom perpétuo
297
'AO - O homem não está só
O sentido do sacrifício
298
dos dons de Deus pelo homem justo lhe dá forças
para servir e meios para dar. O objetivo do sacri
fício não está na autopauperização como tal, mas
em entregar todas as aspirações a Deus, criando
assim um lugar para ele no coração. Além disso,
é uma imitatio Dei, pois é feito segundo a maneira
do Doador divino e lembra ao homem que ele é
criado à semelhança do divino, sendo assim rela
cionado a Deus.
*
A afinidade com o divino
299
O tesouro de Deus
300
nisso que encontra o verdadeiro sentido da vida.
Sentir-se-ia infeliz e perdido sem a certeza de que
a sua vida, por mais insignificante que seja, tem
uma finalidade no grande plano e sua vida recebe
novo valor ao sentir-se engajado na realização de
objetivos que o afastam de si mesmo. Desta ma
neira sente que em tudo o que faz está subindo,
degrau após degrau, uma escada que leva à reali
dade suprema. Ajudando uma criatura está ajudan
do o Criador. Socorrendo a um pobre, trata de
um interesse de Deus. Admirando o bem, reve
rencia o espírito de Deus. Amando o que é puro
é atraído para ele. Promovendo o que é justo,
está encaminhando as coisas em direção à sua von
tade, em que devem terminar todos os fins. Subin
do por esta escada, o homem piedoso atinge o es
tado do esquecimento de si mêSmo, sacrificando
não só seus desejos, mas também sua vontade, pois
percebe que o que importa é a vontade de Deus
e não a sua própria perfeição ou salvação . Assim,
a glória da dedicação do homem ao bem se trans
forma num tesouro de Deus na terra.
301
é unia chegada em casa. “Preciosa é aos olhos do
Senhor a morte dos seus santos” (Sl 116, 14) .
Porque nosso maior problema é apenas uma resso
nância da preocupação de Deus: Como poderei re
tribuir ao homem toda a sua generosidade para co
migo? “Pois a misericórdia de Deus permanece
para sempre ” .
Este é o sentido da existência: reconciliar a li
berdade com o serviço, o passageiro com o perma
nente, entrelaçar os fios da temporalidade no tecido
da eternidade.
A mais profunda sabedoria que o homem pode
alcançar é saber que seu destino é ajudar, servir.
Temos que vencer para sucumbir. Devemos adqui
rir para dar. Devemos triunfar para sermos subju
gados. O homem deve entender para crer, conhe
cer para aceitar. A aspiração é ter, mas a perfeição
é dar. Este é o sentido da morte: a suprema dedi
cação de si mesmo ao divino. Assim entendida,
a morte não será distorcida pelo desejo da imor
talidade, pois este ato de entregar é reciprocidade
da parte do homem pelo presente da vida dado por
Deus. Para o homem piedoso morrer é um privi
légio .
302
ÍNDICE
Pág.
5 Apresentação
I. O Problema de Deus
15 1. O S E N T ID O D O IN E F Á V E L
22 2. A A D M IR A Ç Ã O , B A SE D O C O N H E C IM E N T O
29 3. O M U N D O É UM A A LU SÃ O
34 4. SE R É S IG N IF IC A R
303
44 5. CONHECIMENTO POR APRECIAÇÃO
Uma percepção no fim da percepção, 44 — O
modo da utilidade, 45 — 0 desejo do maravi
lhoso, 46 — O mundo como objeto, 47 •—•
E stará o mundo à mercê do homem?, 48 —
Cantamos por todas as coisas, 50.
51 6. U M A IN T E R R O G A Ç Ã O Q U E T R A N SC E N D E
A S P A LA V R A S
58 7. O D E U S D O S F IL Ó S O F O S
64 8. A Q U E ST Ã O SU PR E M A
73 9. N A P R E SE N Ç A D E D EU S
86 10. D Ü V ID A S
304
91 1L. A FÉ
101 12. O Q U E E N T E N D E M O S P O R D IV IN O
115 13. UM D E U S
130 14. D E U S É O S U JE IT O
140 15. O IN T E R E S S E D IV IN O
305
dente de um fio, 151 — Compaixão, 153 —
Manifestação e ocultamento, 155.
O D E U S Q U E SE O C U LT A
ALÉM DA FÉ
O P R O B L E M A D A S N E C E SSID A D E S
O SE N T ID O D A E X IS T Ê N C IA
215 20. A E S S Ê N C IA D O H O M E M
224 21. O P R O B L E M A D O S F IN S .^
247 23. D E F IN IÇ Ã O D A R E L IG IÃ O JU D A IC A
259 24. O G R A N D E A N S E IO
307
UMA NORMA DE VIDA
O s objetivos supremos não têm voz, 267 — Nem
divinização nem aviltamento, 268 — E spírito e
carne, 269 — N a vizinhança de D eus, 271 —
O Santo dentro do corpo, 272 — N ão sacrifi
car mas santificar, 274 — Viver dentro de uma
ordem, 276 — A totalidade da vida, 276 —
O não-heróico, 277 — A autoridade interior, 277.
O H O M E M P IE D O S O