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ABRAHAM J.

HESCHEL

O homem
não está só

EDIÇÕES PAULINAS
Titulo original
M A N IS NOT ALO NE — A Philosophy of Religion
© 1951 by Abraham Joshua Heschel
Farrar, Straus & Giroux, New York, Edit.

Traduziu e anotou
Edwino A loysius Royer

C O M A P R O V A Ç Ã O EC L E SIÁ S T IC A
© B y E d iç õ e s P a u l in a s , 1974
O bras do mesmo autor, editadas pelas E .P .
O homem à procura de Deus
O homem não está só
D eus à procura do homem

F IC H A C A T A L O G R Á F IC A

(P reparad a pelo Centro de Catalogação-na-fonte,


C âm ara B rasileira do L ivro, SP )

H eschel, A b rah am Josh ua, 1907-1972.


H499ho O hom em não está só |traduziu e anotou
Edw ino A loysius Royer| São Paulo, E d. Paulinas,
1974.
p. 308

Bibliografia.

1. D eus (Ju d aísm o) 2. H om em (T eologia ju ­


daica) 3. M isticism o-Judaísm o 4. Religião-Filoso-
íia I. T ítulo.

CDD-200.1
-296.311
-296.32
-296.71
74-0759

índices p ara catálogo sistem ático:


1. D eu s: T eolo gia dogm ática: Ju d aísm o 296.311
2. D eu s: T eolo gia m ística: Ju d aísm o 296.71
3. H om em : T eologia dogm ática: Ju d aísm o 296.32
4. M isticism o: Ju d aísm o 296.71
5. R eligião: F ilosofia 200.1
Apresentação

Na audiência geral d e í í de janeiro d e 197?, o


papa PauIo VI, desenvolvendo o belíssimo tema da
'Procura de Deus", citava em sua alocução um texfO
de um rabino e teólogo judeu. Quem se SUrpreen-
desse com essa citação, logo compreenderia o seu
significado ao ter o título do livro d e Abraham
Joshua Heschel- *Dieu en quite de Vkontntem —
Deus em busca do homem. O que desejava acentuar
o papa era justamente o conteúdo de lodo o livro de
Hesehel: * teremos a surpresa de descobrir que Deus
veia à nossa procura muito antes que nós começásse­
mos a procurâlo, e. que ele nos procura infinitamen­
te mais do que somos capazes d e fa z élo " { c f. "La
Documentation Catholtque ' — n? 16261 p 1 5 }).
Este amor de Deus, que procura incessantemen­
te o coração do homem e que suscita a sua resposta
parú um encontro verdadeiro, ê o cerne de toda a
doutrina e de toda a obra de Abraham Hescbel.
Seus livros mais conhecidos, e que agora aparecem
em tradução portuguesa, trazem sugestivamente os
seguintes titules1, 'Deus à procura do hom em ”, * 0
homem â procura de Deus ", ‘ O homem não está só ”.
Falecido em 1972, aos 65 anos, Abrabam Hes-
cbet já era consideradoj não só peias seus, mas por
muitos cristãos, um profundo teólogo, verdadeiro
místico, hem como ttm homem capaz de testemunhar
pela sua vida e suas ações, no meio das situações
problemáticas de hoje, as vontades d o seu Deus —
um profeta dos nossos tempos!

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Homem de profunda cultura clássica e religiosa,
podia escrever em quatro línguas sobre ós temas mais
difíceis da teologia e da mística, mas, ao mesmo
tempo , caminhava ao lado d e Martin Luther King
nas marchas d e protesto cm defesa dos direitos hu­
manas e comparecia a outras manifestações não vio­
lentas em favor da justiça e da paz ( cf. " Tim e ",
Jânuary 8, 1975).
Enfrentando a desaprovação dos sem correli­
gionários mais conservadores, Heschel encontrou-se
pessoalmente com PauIo VI, e supõe-se que a de­
claração de 196?, eximindo o povo judaico da culpa
da crucifixão do Cristo, seja, em parte, devido à
sua influência (cf. Concilio Vaticano I I : Declaração
“N ostra A etaie” A). Esforçou-sc sempre para um
trabalho comum intereônfessional e costumava dixer
que, sem ele, a alternativa seria o "intemihitismo
Sua brilhante inteligência, sua marcante personali­
dade, desde cedo haviam chamado a atcnçio d e mes­
tres realmente famosos. Foi discípulo de Martin
Buhber e seu substituto no Centro de Cultura Ju­
daica em Frankfurt, na Alemanha. Forçado a emi­
grar para os Estados Unidos, t/a época das cam -
ponhas an ti judaicas dos nazistas, aí viveu e trabalhou
até a stta mortet Durante muitos anos fo i professor
de Ética Judaica e Mística no Seminário Teológico
judaico da Amitiea.
H eschel denominam a sua obra uma filosofia
da Religião; mais particularmente, uma filosofia do
Judaísmo. Não entendia porem a filosofia num sen­
tido limitado , de um estudo do fenômeno religioso
exclusivamente do ponto de vista racional. Seria
mais justo dizer que se trata d e uma teologia do
judaísmo, se Heschef não insistisse em sublinhar o
caráter essencialmente dogmático da teologia, em
oposição ao caráter aberto e questionador da filoso­
fia. *A filosofia conhece, antes de tudo, os prohle-

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mas; ü teologia conhece de antemão as soluções"
(c f . Dien, p. 10)
Na procura da compreensão dos problemas fí-
ligiosos, H esc hel se coloca numa tinha de conheci­
mento que ele chama dç * situacional", porque se
ocupa com as situações, supõe uma experiência inte-
riúr e procura, antes d e (udo, compreender os pro­
blemas que envolvem a nossa existência real Nesse
sentido, o conhecimento * situacional* se distingue
daquele que é predominantemente conceituai — que
se desenvolve pelo raciocínio* procura um aumento
de conhecimento do mundo exterior e exige sempre
uma objetividade que é desapego e abstração das
condições do próprio sujeito, * 0 inicio d o conheci­
mento situacional não é a dúvida ou o desapego,
mas sim a admiração, o medo, o engajamento - 0 fi­
lósofo torna-se pois testemunha e não simplesmente
0 narrador das ações dos outros, Se não nos com­
prometemos pessoalmente a problema não terá pre­
sença 0 problema da filo sol ia da religião, por exem ­
plo, não é *como o homem pode chegar a uma com­
preensão de Dera, mas anfes, 'df. que modo pode­
remos nós mesmos chegar a ama compreensão de
Deus”. Em outras palavras, o filósofo jantais pode
ser um simples espectadorH (cf Vieu, p- 12).
Já se vi, pois, sob que ângulo vai ser desen­
volvido o estudo dos temas bíblicos. H escbel "não
quer apresentar um conjunto das verdades reveladas
por Deus e que se tornaram o conteúdo da f é de
ísrael Ele quer aprofundar, não os conceitos, mas
as situações que lhes são anteriores * -— "ele visa
não tanto desenvolver a filosofia d e uma doutrina
ou as interpretações de um dogma, mas a filosofia
de acontecimentos concretos, de atos e de intuições,
a filosofia de tudo que pertence ao homem que c rê“
(ib. p, 14). Nesse sentido, diz d e. o objeto d o seu
estudo não é o conteúdo da fé — objeto da teologia,
mas c aio d e crer, — isto ê, a f ê "em sua profxtn-
7
didade, o substratum de onde ela emerge, 0 que
quer fazer é uma "teologia em profundidade“
Comprêenée se melhor agora 4 riqneja dos lrõ*
halhos dê Heschel dentro dessa visão que the c tão
característica. Traia-se de estudar 0 homem btblko,
em sua situação concreta, qttt não desenvolve ío%o
uma ciência de Veus, mas vive o encontro com Deus.
Os caminhos para esse encontro não são os prole-
gômettõf racionais do ato de fé, Cí motivos de credi­
bilidade, nem mesmo as provai da existência de
Deus, — mas são as atitudes simples, concretas que
tornam 0 homem sbertot como que desarmado dian­
te do mistério, "a percepção da grandiosidade’1,
“o sentido do inefável", “o deslumbramento \ "0
sentido do mistério ", *0 temor reverenciai", "a re­
verência e a adoração*, *a intuição, a /<?, 0 acon­
tecimento", Seu tiüro sobre a oração ê muito m e­
nos um tratado de Teologia Espiritual do que rtm
ensinamento direto e pessoal de um mestre a um
disciptdo numa liuguagcm um pies, mas profunda­
mente viva pela força que brota da realidade d e
unta experiência. Suas citações dos ditos de mestres
rabinos do passado e das suas interessantes narrati­
vas, lembram muito o es tifo vivo e pessoal dos pri­
meiros mestres espirituais cristãos — os monges do
deserto — com 01 seus "apofteimas” tão caros à
tradição monástica quer d d ocidente quer do oriente.
Toda a teologia de Abraham Hescbel está mar­
cada por está insistência no valor da experiência, do
moiHcnto vivido, do “insight" e da intuição Po-
der-se-ia folgar que se trata de uma posição marca-
damente anti intclecttialista, de influência possivel­
mente bergsoniatia- Mas, desculpando-se um ou outro
texto, em qtte sc excede um pouco mais cm sua
crítica a ama teologia abstraia e desencarnada, p o­
de-se ver que é sempre possível uma interpretação
equilibrada e justa do pensamento de H esc hel.
O que ele deseja iitcutcar é a validade e mesmo

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a absoluta necessidade de uma abordagem "experi-
mental" do minério dê Deus, do valor de uma ex-
pt>riftíria intuitiva e não meramente discursiva. Po
der-se-ia aproximar esta * intuição" daquela que fá
se denominou "paraconceitual” ou conhecimento de
st triples presença, e que estaria hem dentro de ama
concepção tomista do conhecimento. Intuição que
pode referir-se ttão apenas ao próprio sujai o, mas
tamhém a outros objetos, através de um conheci­
mento "por ^naturalidade", que, embora supondo
uma apreensão conceituai, se redita por outros meios
que o conceito propriamente dito „ (cf. Tauzitr, Pr. Se­
bastião, o p - — 'Bergson e santo Tomás — Dcscíée
tie Br J943> — Rro de Janeiro —“ tap. V I e V Iï) .
Ninguém nega, boje em dia, ú profundidade da
influência afetiva no conhecimento humano, e já
são hem conhecidos os trabalhos de ditufrsos auto­
res tomistas sobre a existência de dois tipos bem
distintos de conhecimentos de Deus sob a luz da fé:
a ciência teológica c a sabedoria (cf. Jacques Mari-
tain — “Les denrées du savoir " — Desciée d e
Br Paris, 10)2, cap. V il).
Através desse especial ponto de vista. H escbel
consegue aprofundar e esclarecer diversos temas bí­
blicos que escapam a uma análise propriamente con­
ceituai de uma filosofia. Mostra que, na Bíblia, hâ
realidades que não podem ser atingidas pela filosofia
e que constituem como que um desafio para ela.
Enquanto a filosofia procura descobrir a essência das
coisas, os princípios do ser , analisar c explicar par­
tindo de premissas universais, a Bíblia quer revelar
o criador de todas as coisas, sua vontade, baseando-se
numa tradição, numa intuição pessoal e partindo sem -
pre de fatos e acontecimentos que se passam no
tempo.
Sendo um livro de um rabino sobre a religião
de Israel, é evidente que certos temas abordados et
especialmente, a maneira de abordá-los, è reveladora

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de uma concepção própria do judaísmo Assim, por
exemplo, considerando a resposta do homem à Pa­
lavra de Deus — não se pode deixar de notar a
característica insistência na observância da lei e suas
prescrições (mitsvot) como próprias da religião de
Israel, A étiça, como ciência e norma do agir não
ê a norma fundamentei enquanto revela ú valor e a
finalidade de cada ação. Para c judeu, a prática dos
mandamentos> como simples obediência e fidelidade,
eomtttui um caminho especial para o encontro com
Deus "As portas da fé nào estão abertas, majr os
umitsvot" servem conto chaves. É a vida judaica
<?tte permiie atingir a fé judaica”. Embora diferindo
da concepção crista da lei e da norma moral, não
deixa de ser deveras proveitoso conhecer as claras e
profundas explicações de Heschet sobre a "ciência
dos aios".

A obra de Ahraham foshua H esc hel, publicada


agora pelas "Edições Paulinas", vem oferecer uma
excelente oportunidade para um estudo mais apro­
fundado do judaísmOj mas, de modo especial, uma
reflexão profundamente religiosa sobre a Palavra de
Deus. Sendo umâ obra fundamentalmente bíblica,
ela permitira certamente a iodos que a souberem ler,
um conhecimento mais verdadeiro e extremamente
belo desse Livro que ê nosso patrimônio comum e,
ainda hoje, o liame mais forte de nossa fé e de
nossa união no conhecimento e na busca do mesmo
Deus. Que a tradução das obras d e H esc bei permita
a muitos descobrir qne “a Bíblia não é um livro.
Assim como existem acontecimentos situados em
momentos determinados do tempo, existe uma pa­
lavra que interpela todos os homens, em todo
tempo. A Bíblia ê a expressão eterna d e um per­
manente interesse d e Deus Elá é o grito d e Deus
10
íjo homem e não uma mensagem enviada sem co­
nhecimento ? preocupação pêlo destinatário. Elá não
é um Ih r ç para ser lido — mas um drama que deve
5cr vivido; xao é a narração d e ttma série de acon­
tecimentos — mai, em ri mesmat um acontecimento
— e será a continuação desíe acontecimento enquan­
to o rtõsso compromisso p a sc a l for a continuação da
rçíposta. O acontecimento permanecerá enquanto
continuar a resposta" (Dica, p. 269j .

D Jojiquitn cíe Arruda

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O PRO BLEM A DE D EUS
1

O sentido do inefável

A consciência da Igreja

Há três aspectos da natureza que se impõem


à atenção do homem: a força, a beleza e a grandeza.
A força, ele a explora. A beleza é para o seu gozo.
E a grandeza enche-o de reverente admiração. Ad­
mitimos, sem discussão, que a mente do homem
deve ser sensível à beleza da natureza. Considera­
mos igualmente certo que uma pessoa que não se
emociona olhando para o céu e a terra, que não
tem olhos para ver a grandeza da natureza e sentir
o sublime, por mais vagamente que seja, não é
humana.
Por quê? Que utilidade nos traz? A percepção
da grandeza não serve a nenhuma finalidade social
ou biológica. Raríssimas vezes o homem é capaz
de descrever a sua apreciação do sublime a outros
ou de somá-la aos seus conhecimentos científicos.
Tampouco a sua percepção agrada aos sentidos ou
satisfaz à nossa vaidade. Por que, então, expor-nos
à inquietante provocação de algo que desafia nosso
impulso de conhecer, à algo que pode até encher-nos
de pavor, melancolia ou resignação? Apesar disso
insistimos que é indigno do homem não tomar co­
nhecimento do sublime.
Talvez mais significativo que o fato de nossa
percepção da realidade cósmica seja nossa consciên-

15
cia de term os que ser conscientes disso, como se
houvesse um imperativo, uma necessidade de pres­
tar atenção àquilo que está além do nosso alcance.

O sentido do inefável

O poder de expressão não é monopólio de


homem.
Expressão e comunicação são atividades de que,
até certo ponto, os animais são capazes. O que
caracteriza o homem não é só a sua capacidade de
desenvolver palavras e símbolos, mas também o fato
de ser obrigado a distinguir entre o que é expri-
mível e o que é inexprimível, a admirar o que
existe e não pode ser traduzido em palavras.
É este sentido do sublime que devemos consi­
derar como a raiz das atividades criativas do homem
nas artes, no pensamento e na nobreza de vida.
Assim como nenhuma flora jamais desenvolveu em
toda a sua plenitude, toda a vitalidade oculta da
terra, assim também nenhuma obra de arte jamais
exprimiu toda a profundeza do inexprimível, em
cujo contato vivem as almas dos santos, dos poetas
e dos filósofos. A tentativa de comunicar o que
vemos e não conseguimos dizer é o eterno tema
da sinfonia inacabada da humanidade, uma aventura
cuja realização jamais será consumada. Somente
aqueles que vivem de palavras emprestadas acredi­
tam na sua capacidade de expressão. Uma pessoa
sensível sabe que o intrínseco, o mais essencial,
nunca é expresso.
A maior parte — e muitas vezes a melhor
— daquilo que se passa dentro de nós permanece
nosso segredo íntimo; algo com o que só nós mes­
mos somos obrigados a nos debater. A emoção,
que nasce em nossos corações ao observarmos o

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céu salpicado de estrelas, é algo que nenhuma lin­
guagem pode transmitir. O que nos enche de ma­
ravilhado assombro não é o que compreendemos
e somos capazes de comunicar, mas o que se situa
dentro do nosso alcance e ao mesmo tempo está
além da nossa compreensão; não o aspecto quan­
titativo da natureza, mas algo de qualitativo, não
o que está além do nosso alcance no tempo e no
espaço, mas o verdadeiro sentido, a origem e o fim
do ser, em outras palavras, o inefável.

O encontro inefável

O inefável habita tanto naquilo que é maravi­


lhoso como no que é comum, tanto nos fatos gran­
diosos, como nos insignificantes. ^Algumas pessoas
experimentam esta qualidade à distância de longos
intervalos em acontecimentos extraordinários. Ou­
tras sentem-na nos acontecimentos ordinários, em
toda parte, em cada ângulo, dia após dia, hora após
hora. Para elas as coisas estão despojadas de futi­
lidade, os seres não equivalem ao absurdo. Ouvem
o silêncio que povoa o mundo apesar do nosso ba­
rulho, apesar da nossa ganância. Por mais insigni­
ficantes e simples que sejam as coisas — um pe­
daço de papel, um pedaço de pão, uma palavra,
um suspiro — ocultam e guardam um perene se­
gredo: um lampejo de Deus? Afinidade com o es­
pírito do ser? Brilho eterno de uma vontade?
Deixe de lado idéias preconcebidas; abandone
sua tendência de repetir e de conhecer antes de
ver; tente ver o mundo pela primeira vez com
olhos não ofuscados pela memória ou pela volição
e descobrirá que você e as coisas que o rodeiam
— as árvores, os pássaros, as cadeiras — são como
linhas paralelas que correm juntas, mas nunca se

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2 - O homem não está só
encontram. Logo você abandonará sua pretensão
de estar familiarizado com o mundo.
Como é que procuramos apreender o mundo?
A inteligência investiga a natureza da realidade, mas
como não pode trabalhar sem seus instrumentos,
toma os fenômenos que parecem enquadrar-se em
suas categorias como respostas para a sua investi­
gação. Entretanto, quando tentamos encontrar-nos
com a realidade face a face, sem a ajuda de pala­
vras nem de conceitos, percebemos que o que é
inteligível à nossa mente é somente uma tênue
superfície de uma realidade profundamente oculta,
um murmúrio de inveterado silêncio, que continua
imune à curiosidade e à indagação como uma fo­
lhagem na escuridão.

Existe alguma via de acesso à essência?

Tente analisar, pesar e medir uma árvore como


quiser; observe e descreva sua forma e suas fun­
ções, sua gênese e as leis a que está sujeita. Com
tudo isso você ainda não terá penetrado na sua
essência. Olhar as coisas através do intermediário
dos nossos pensamentos é um ato de cristaloman-
cia; as imagens que induzimos são parte da verdade,
mas o que vemos é uma imagem mental, não as
coisas em si. Correndo rapidamente pelo estreito
caminho do tempo, o homem e o mundo não têm
parada, não têm presente em que possam conhe­
cer-se. O pensamento nunca é co-temporal com
o seu objeto, porque segue ao processo da percep­
ção que ocorreu antes. Em nossos pensamentos
ocupamo-nos sempre de objetos póstumos. Entran­
do em ação sempre depois da percepção, o pensa­
mento dispõe apenas de lembranças. Seu objeto
é algo que já passou, como um instante antes do

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último: tão perto e, ao mesmo tempo, tão longe.
O conhecimento é, portanto, uma série de reminis­
cências . E como nossa percepção é sempre incom­
pleta e cheia de omissões, nosso conhecimento é
uma combinação subseqüente de recordações casuais.
Raramente descobrimos. Antes de pensar recorda­
mos. Vemos o presente à luz do que já conhece­
mos. Constantemente comparamos ao invés de pe­
netrarmos e nunca estamos inteiramente livres de
preconceitos. A memória é, muitas vezes, um obstá­
culo à experiência criativa.
O pensamento está preso a palavras, a nomes
e os nomes só descrevem aquilo que as coisas têm
em comum. O ser individual e único realmente
não é captado pelos nomes. E nossa mente está
necessariamente comprometida com palavras, com
nomes. Esta é outra razão pefii qual raramente
encontramos acesso à essência. Não conseguimos
sequer dizer adequadamente o que nos escapa.
Será necessário vencer uma pilha de idéias para
aprender que nossas soluções são enigmas, que nos­
sas palavras são indiscrições? Um mundo de coisas
está aberto a nossas mentes, mas, muitas vezes, pa­
rece que a nossa mente é uma peneira em que
procuramos segurar o fluxo da realidade, e há mo­
mentos em que a mente é arrastada pela corrente
do inexplorável, uma corrente contra a qual geral­
mente se luta, mas que nunca retrocede.

A disparidade entre alma e razão

A consciência do desconhecido é anterior à


consciência do conhecido. A árvore do conheci­
mento desenvolve-se no solo do mistério. Não são
os conceitos, as palavras, os nomes que estão mais
próximos da nossa mente, mas o inominável, o

19
inexprimível, o ser. Se é verdade que o dado, o
aparente está próxim o da nossa experiência, o que
há dentro da nossa experiência é o outro, o remoto,
por cima do qual passamos. Os conceitos são deli­
ciosos petiscos com que procuramos saciar nossa
admiração indagadora. Tentemos pensar a própria
realidade, esqueçamos o que conhecemos e senti­
remos logo dolorosa fome. Não devemos esperar
que os pensamentos nos dêem mais do que con­
têm. Alma e razão não são a mesma coisa. Os con­
ceitos e nós mesmos assemelhamo-nos a estranhos
que em algum ponto do tempo interminável se en­
contraram e se tornaram amigos. Muitas vezes se
unem e muitas vezes se afastam um do outro, para
benefício de ambos. Quanto mais incisiva a cons­
ciência do desconhecido e mais vigorosa nossa per­
cepção imediata da realidade, tanto mais aguda e
inexorável se torna a nossa verificação dessa dis­
paridade.
Como o simplório identifica a aparência com a
realidade, assim o superculto identifica o exprimí-
vel com o inefável, o lógico com o metalógico, os
conceitos com as coisas. E assim como o pensa­
mento crítico está cônscio da sua não identidade
com as coisas, assim nossa alma em sua auto-re-
flexão leva no coração uma consciência de si mes­
ma, distinta do conteúdo lógico dos seus pensa­
mentos .
A consciência do inefável é o ponto em que
deve começar a nossa indagação. A filosofia, se­
duzida pela promessa do conhecido, abandonou mui­
tas vezes os tesouros do incompreendido mais pro­
fundo aos poetas e aos místicos, embora sem o sen­
tido do inefável não possa haver problemas meta­
físicos, nem consciência do ser como ser, do valor
como valor.
A pesquisa da razão termina no horizonte do

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conhecido. Na imensa amplidão que se estende para
além dele só o sentido do inefável consegue planar.
Só ele sabe o caminho que leva para o que está
fora da experiência e do entendimento.. Nenhum
dos dois é anfíbio: a razão não pode ir além da
praia do seu horizonte e o sentido do inefável
está fora do seu ambiente no terreno em que se
medem e se pesam as coisas.
Não deixamos as praias do conhecido em bus­
ca de aventuras ou suspense por causa da incapa­
cidade da razão em responder a'nossas perguntas.
Partimos porque nossa mente é como que uma
fantástica concha marinha: quando lhe colamos os
ouvidos escutamos o perpétuo murmúrio das ondas
do além.
Cidadãos de dois reinos, temos que sujeitar-
-nos a dupla lealdade: sentimos^ o sentido do ine­
fável num reino, nomeamos e exploramos a reali­
dade noutro. Estabelecemos um sistema de refe­
rências entre os dois, mas não conseguimos preen­
cher o vazio. Acham-se tão longe e ao mesmo tempo
tão pertos um do outro como o tempo e o calen­
dário, o violino e a melodia, a vida e o que vem
depois do último suspiro.
Perscrutamos os fenômenos tangíveis com a ra­
zão, e com o sentido do inefável auscultamos o
sagrado e indemonstrável. A força que inspira a
disposição para o sacrifício de si próprio, as idéias
que nutrem a humildade dentro da mente, e, além
dela, não são idênticas às artes do lógico. A pu­
reza sobre a qual nunca deixamos de sonhar, as
coisas tácitas que amamos insaciavelmente, a visão
do bem pelo qual morremos ou nos entregamos
vivos — são realidades que nenhuma razão con­
segue dominar. É o inefável, do qual haurimos o
gosto do sagrado, a felicidade do imperecível.

21
2

A admiração, base do conhecimento

Razão e admiração

O maior empecilho ao conhecimento é nosso


ajustamento a noções convencionais, a clichês men­
tais . A admiração ou o maravilhamento radical,
isto é, o estado de desajustamento a palavras e no­
ções, é o pré-requisito para uma consciência autên­
tica daquilo que é.
Colocando-nos frente a frente ao ser como ser,
percebemos que podemos olhar o mundo com duas
faculdades — com a razão e com a admiração. Me­
diante a primeira, procuramos explicar ou adaptar
o mundo aos nossos conceitos, com a segunda,
tentamos adaptar nossa mente ao mundo.
A raiz do conhecimento está antes na admira­
ção que na dúvida. A dúvida segue o conhecimento
como um estado de vacilação entre duas visões
contrárias ou contraditórias, como um estado em
que a fé que tínhamos abraçado começa a tornar-
se hesitante. Coloca em dúvida os cálculos da
mente sobre a realidade e exige um exame e ve­
rificação do que está depositado na m ente. Em
outras palavras, a função da dúvida é a de auditor
das contas da mente com relação à realidade. Não
se preocupa propriamente com a realidade em si.

22
Dirige-se ao conteúdo da percepção e não à per­
cepção em si.
A dúvida não se aplica àquilo de que temos
consciência imediata. Não duvidamos que existi­
mos ou que estamos vendo alguma coisa. Apenas
perguntamos se conhecemos o que vemos ou se o
que vemos é um reflexo verdadeiro do que existe
na realidade. Portanto a dúvida surge depois que
a percepção se cristalizou numa concepção.
A dúvida é, pois, uma atividade interdeparta­
mental da mente. Primeiro vemos, a seguir julga­
mos e formamos uma opinião e depois duvidamos.
Em outros termos, duvidar é pôr em questão
aquilo que um instante atrás aceitamos como pos-
Ivelmente verdadeiro. A dúvida é um ato de ape­
lação, um processo pelo qual um julgamento lógico
é transportado da memória para a faculdade crí­
tica da mente para um reexame. Conseqüente­
mente, devemos primeiro julgar e aderir a uma fé
em nosso juízo para depois podermos duvidar. Mas
se devemos conhecer para podermos questionar, se
devemos alimentar uma fé para depois pô-la em
dúvida, quer dizer que a dúvida não pode ser o
início do conhecimento.
A admiração vai além do conhecimento. Não
duvidamos que duvidamos, mas estamos admirados
de nossa capacidade de duvidar, admirados de nossa
capacidade de admirar. O indolente reprovará a dú­
vida; o cego será contra a admiração. A dúvida
pode chegar a um fim, a admiração permanecerá
sempre. A admiração é um estado da mente em
que não olhamos a realidade através da treliça de
nosso conhecimento memorizado; um estado em que
nada se supõe conhecido. Não podemos viver es­
piritualmente apenas repetindo conhecimentos em­
prestados ou herdados. Indaguemos de nossa alma
o que ela conhece, o que supõe como certo. Dir-

23
-nos-á simplesmente que nada é suposto como certo,
que cada coisa constitui uma surpresa, que o ser ê
inacreditável. Estamos maravilhados pelo simples
fato de vermos as coisas, maravilhados não só diante
de valores e coisas particulares, mas diante do ines­
perado do ser com o tal, diante do fato de ser sim­
plesmente .

A filosofia começa com a admiração

Uma filosofia que começa com a dúvida radical


termina em desespero radical. Foi o princípio do
dubito ut intelligam que preparou o terreno para
os modernos evangelhos do desespero. “A filosofia
começa na admiração” (Platão, Theatetus, 155 D ),
num estado da mente que desejaríamos chamar tau-
mutismo (de thaumatzein — ■ duvidar), enquanto
distinto do ceticismo.
Antes de conceituarmos o que percebemos, já
estamos maravilhados para além das palavras, para
além das dúvidas. Podemos duvidar de tudo, menos
de que estamos dominados pelo maravilhoso. Quan­
do estamos em dúvida fazemos perguntas, quando
tomados pela admiração nem sequer sabemos como
perguntar. As dúvidas podem ser resolvidas, a ad­
miração radical nunca poderá ser extinta. Não há
no mundo nenhuma resposta à admiração radical
do homem. Sob o mar de nossas teorias e explica­
ções científicas encontra-se o abismo primordial da
admiração radical.
A admiração radical tem um alcance mais am­
plo que qualquer outro ato humano. Enquanto
qualquer ato de percepção ou conhecimento tem
como objeto um segmento selecionado da realidade,
a admiração radical se refere só aquilo que vemos,

24
mas também ao próprio ato de ver e a nós pró­
prios que vemos e estamos admirados diante de
nossa capacidade de ver.

O mistério dentro da razão

O inefável não é constituído por um enigma


particular para a mente, como, por exemplo, a causa
das erupções vulcânicas. Não precisamos ir até o
fim do raciocínio para encontrá-lo*. O inefável, co­
mo dissemos acima, é algo com que nos defronta­
mos em toda parte e sempre. Até o próprio fato
do pensamento confunde o nosso pensamento. Co­
mo todo fato inteligível, em virtude de ser um
fato, está impregnado de desconcertante indiferença.
Não é verdade que o mistério reina dentro do ra­
ciocínio, dentro da percepção, dentro da explicação?
Onde está a autocompreensão capaz de revelar a
maravilha do nosso próprio pensamento, capaz de
explicar o prodígio de esvaziarmos o concreto com
a magia da abstração? Que fórmula poderia explicar
e resolver o enigma do próprio fato do pensamento?
Não dominamos nem o pensamento, nem a coisa;
podemos apenas combinar a mágica sutil dos dois.
O que nos enche de radical admiração não são
as relações em que todas as coisas se inserem, mas
o fato de que até o mínimo de percepção é um
máximo de enigma. O fato mais incompreensível
é o próprio fato de compreendermos.
É impossível sentir-nos à vontade e repousar
sobre idéias que se tornaram hábitos, sobre teorias
“enlatadas” em que são conservadas as nossas per­
cepções ou as de outras pessoas. Nunca poderemos
deixar nossos interesses na caixa-forte das opiniões,
nem delegar seu valor a outros e assim atingir in­
trospecções por meio de outros. Devemos manter

25
vivai a nossa própria admiração, nossa própria viva­
cidade. E se falhamos em nossa busca de introspec­
ção, isso não ocorre porque não possa ser atingida,
mas porque não sabemos como viver ou não sabe­
mos defender-nos da tendência narcisística da mente
de enamorar-se de sua própria reflexão, tendência
que corta o pensamento das suas raízes.
A árvore da ciência e a árvore da vida estão
enraizadas no mesmo solo. Mas, enquanto brinca
com os ventos e os raios de sol, a árvore da ciência,
muitas vezes, só apresenta folhas brilhantes sem
seiva, ao invés de produzir frutos. Podemos dei­
xar que murchem as folhas, mas a seiva nunca de­
veria secar.
O que vale a sutil especulação sem a introspec­
ção anterior da realidade sagrada da vida, intros­
pecção que procuramos traduzir para os termos ra­
cionais da filosofia, para as maneiras de vida da
religião, para as formas e visões da arte? Manter
o impulso e o fluxo dessa introspecção em todos
os pensamentos, de modo que nem mesmo em nos­
sas dúvidas cesse de fluir sua seiva, significa haurir
do solo de tudo o que é criativo na civilização e
na religião, um solo de que somente as flores arti­
ficiais podem prescindir.
O sentido do inefável não silencia a pesquisa
do pensamento, mas, ao contrário, perturba o aco­
modado e desperta nossa impressionabilidade estan­
cada. A penetração no inefável leva às profundezas
do pensamento e não ao olhar ignorante do animal.
Para as mentes daqueles que não cometem o erro
universal de tomar como conhecido um mundo que
é desconhecido, de colocar a solução na frente do
enigma, a abundância do exprimível jamais poderá
substituir o mundo do inefável.
As almas enfocadas, que não vacilam à pri­
meira vista, recorrendo a palavras e noções prontas

26
de que a memória está repleta, conseguem ver as
montanhas como se estas fossem gestos de exaltação.
Para elas toda visão é inesperada, enquanto os olhos
embotados que nas trevas das coisas não distinguem
a luz, só percebem séries de clichês.

Experiência sem expressão

Andamos constantemente à procura das palavras


e constantemente elas nos fogem. Mas as maiores
experiências são aquelas para as quais não temos
expressão . Viver só naquilo que podemos exprimir
é rolar na areia, ao invés de escavar a terra. Como
podemos ignorar o mistério em que estamos envol­
vidos, ao qual estamos presos pela nossa própria
existência? Por que permaneceríafaos surdos à pul­
sação cósmica que ecoa sutilmente em nossas pró­
prias almas? O que é mais íntimo é mais miste­
rioso. Só a admiração é a bússola que pode diri-
gir-nos ao pólo do sentido das coisas. Quando co­
meço o próximo segundo da minha vida, enquanto
escrevo estas linhas, estou consciente de que ser
movido pelo enigma e parar — e não fugir e es­
quecer —■ é que é viver no centro da realidade.
Tornar-se consciente do inefável é separar-se
das palavras. A essência, a tangente à curva da ex­
periência humana, está além dos limites da língua.
O mundo das coisas que percebemos é apenas um
véu. Sua palpitação é música, seu ornamento ciên­
cia, mas o que oculta é inescrutável. Seu silêncio
permanece intato; não há palavras que possam mo­
vê-lo .
Às vezes desejaríamos que o mundo gritasse
e nos falasse sobre aquilo que o enche de grandeza.
Às vezes gostaríamos que o nosso próprio coração
falasse sobre aquilo que o enche de admiração.

27
A raiz da razão

Devemos tudo o que conhecemos ao pensa­


mento discursivo? Será o nosso poder de silogismo
responsável por tudo? O raciocínio não é o único
motor da vida mental. Quem não sabe que em
nossas convicções está contido mais do que foi
cristalizado em conceitos definíveis? É um equívoco
supor que em nossa consciência não há nada que
antes não tenha estado na percepção ou na razão
analítica. Boa parte da sabedoria inerente à nossa
consciência é a raiz e não o fruto da razão.
Em nossa alma há mais canções do que a lín­
gua pode exprimir. Quando separada das suas in­
trospecções originais, a mente discursiva cai na mi­
séria e quando descobrimos que os conceitos não
trazem nenhum alívio à nossa ardente consciência
e sede de totalidade, voltamos à origem do pensa­
mento, ao mar imenso que está além do mundo
lógico. Assim como a mente é capaz de formar
conceitos com base na percepção sensível, pode
também derivar introspecções a partir da dimensão
do inefável. As introspecções são as raízes da arte,
da filosofia e da religião e devem ser reconhecidas
como fatos fundamentais da vida mental. Os cami­
nhos do pensamento nem sempre coincidem com
os aprovados pelos lógicos tradicionais. Dificilmen­
te o lógico tem acesso ao reino em que habita o
gênio, em que age a introspecção.

28
3

O mundo é uma alusão

Uma introipecção cognitiva

Não é por meio de vias indiretas, por analogia


ou inferência, que tomamos consciência do inefá­
vel. Não podemos pensá-lo in absentia. É uma rea­
lidade sentida como algo imediatamente dado me­
diante uma introspecção infinita \ inderivável, ló­
gica e psicologicamente anterior ao juízo, à assimi­
lação dos objetos, às categorias mentais; uma in­
trospecção universal de um aspecto objetivo da rea­
lidade, de que todos os homens são sempre capa­
zes. Não são as palavras vazias da ignorância, mas
o clímax do pensamento, conatural ao clima que
predomina no ápice do esforço intelectual, em que
surgiram obras como os últimos quartetos de Bee-
thoven. É uma introspecção cognitiva, pois a cons­
ciência que evoca é um acréscimo definitivo à
mente.

Uma percepção universal

O sentido do inefável não é uma faculdade


esotérica, mas uma capacidade de que estão dota­
dos todos os homens; é potencialmente tão comum
como a vista ou a capacidade de formar silogismos.
Pois assim como o homem está dotado da faculdade

29
de ^onhecer certos aspectos da realidade, possui
também a capacidade de conhecer que há mais do
que aquilo que ele conhece. Sua mente está rela­
cionada com o inefável tanto quanto com o expri-
mível e a consciência de sua admiração radicai é
tão universalmente válida como o princípio de con­
tradição ou o princípio de razão suficiente.
Da mesma forma como as coisas materiais ofe­
recem resistência aos nossos impulsos espontâneos,
sendo esta sensação de resistência que nos faz crer
que as coisas são reais e não ilusórias, também o
inefável oferece resistência às nossas categorias.
O que o sentido do inefável percebe é algo
objetivo que não pode ser concebido pela mente
ou captado pela imaginação ou pelo sentimento,
algo real que pela sua própria essência se situa
além do alcance do pensamento. Estamos primaria­
mente conscientes não de nós mesmos, de nosso
aspecto interno, mas de uma situação transubjetiva
em relação à qual falha a nossa capacidade. Subje­
tiva é a maneira e não o objeto da nossa percepção.
O que percebemos é objetivo no sentido de ser
independente da nossa percepção e corresponder a
ela. Nossa admiração radical corresponde ao mis­
tério, mas não o produz. Nem você nem eu inven­
tamos a grandeza do céu, nem dotamos o homem
com o mistério do nascimento e da morte. Não
criamos o inefável, encontramo-lo.
Nossa consciência dele está potencialmente pre­
sente em cada percepção, em cada ato de pensar,
em cada ato de gozar ou apreciar a realidade.
Tratando-se de um fato incontestável, nenhuma teo­
ria humana seria completa se ele fosse omitido.
E atestado por exploradores intrépidos e triunfan­
tes que, depois de terem alcançado o cume da mon­
tanha, são mais humildes que antes.
Subjetiva é a ausência e não a presença da ad-

30
miração radical. Esta falta ou ausência é o sinal
de uma mente indiferente e desatenta, de um sen­
tido não desenvolvido para as profundezas das
coisas.
O inefável pode, portanto, ser verificado por
todo homem não sofisticado, que chegar até ele
através de sua autêntica experiência própria. É
por isso que todas as palavras que aludem ao ine­
fável podem ser compreendidas por todos.
Sem o conceito do inefável seria impossível
explicar a diversidade das tentativas do homem pa­
ra expressar ou pintar a realidade, a diversidade
das filosofias, das visões poéticas ou das represen­
tações artísticas, a consciência de que ainda nos en­
contramos no começo das nossas tentativas de di­
zer o que vemos em torno de nós.
Caracterizamos a percepção :4o inefável como
uma percepção universal. Mas se seu conteúdo não
é comunicável, como sabemos que ele é o mesmo
em todos os homens?
Com relação a isso, podemos dizer que se so­
mos incapazes de definir ou descrever o inefável
somos capazes de indicá-lo. Mais por meio de ter­
mos indicativos que por meio de termos descritivos,
podemos transmitir aos outros aqueles aspectos da
nossa percepção que são conhecidos a todos os ho­
mens .
Também a percepção da beleza não é expressa
por meio de definições e porque o que sentimos
não é idêntico sob todos os aspectos, as descrições
apresentadas divergem tanto. Contudo, supomos
que todas querem dizer essencialmente a mesma
coisa. E por isso que o leitor reconhece nas des­
crições a essência de uma percepção de que ele
participa, ainda que as descrições discordem bas­
tante .

31
O caráter alusivo do ser

O inefável não é sinônimo de desconhecido ou


de não descrito. Sua essência não consiste em ser
um enigma, em estar oculto atrás da cortina.
O que encontramos em nossa percepção do su­
blime, em nossa admiração radical, é uma sugestão
espiritual da realidade, uma alusão ao sentido trans­
cendente. O mundo na sua grandeza está cheio de
uma irradiação espiritual, para a qual não temos
nome nem conceito.
Somos tomados de admiração pela consciência
da imensa preciosidade do ser; uma preciosidade
que não é objeto de uma análise, mas causa de
admiração. É inexplicável, sem nome, não podendo
ser especificada ou colocada em nenhuma das nossas
categorias. Apesar disso, temos uma certeza sem
conhecim ento: é real sem ser exprimível. Não pode
ser comunicada a outros; cada um deve encontrá-la
por si mesmo. Nos momentos em que sentimos o
inefável estamos tão certos do valor do mundo
como o estamos da sua existência. Deve haver
um valor pelo qual valeu a pena o mundo ter vindo
a existir. Podemos ser céticos quanto à questão
se o mundo é perfeito. Entretanto, mesmo admi­
tindo a sua imperfeição, a preciosidade de sua gran­
deza está fora de toda a dúvida.
Assim, se inefável é um termo de negação que
indica uma limitação de expressão, seu conteúdo é
intensamente afirmativo e denota uma alusão a
algo que tem sentido, mas para o que não temos
meios de expressão. Geralmente consideramos que
algo tem sentido quando podemos exprimi-lo, e
dizemos que alguma coisa é sem sentido quando
não podemos exprimi-la. Entretanto, a equiparação
daquilo que tem sentido com o que é exprimível
ignora um vasto campo da experiência humana e

32
é refutada por nosso sentido do inefável, que é
a consciência de uma alusão a uma realidade signi­
ficativa sem capacidade de expressá-la.
Que o sentido do inefável seja uma consciên­
cia de algo significativo é indicado pelo fato de
que a resposta interna que evoca é o temor ou
a reverência.

33
3 - O homem não está só
4 I'

Ser é significar

A universalidade da reverência

A reverência é uma atitude tão conatural à


consciência humana como o medo diante do perigo
ou a dor diante do ferimento. A faixa dos objetos
reverenciados pode variar, mas a reverência em si
mesma é característica do homem em todas as civi­
lizações. Analisemos um exemplo bastante comum
e talvez universal de tal atitude cuja estrutura in­
terna se revela como sendo a mesma em todos os
exemplos — qualquer que seja o objeto reveren­
ciado. Obviamente, jamais poderemos escarnecer
das estrelas, zombar da aurora ou mofar da totali­
dade do ser. A grandeza sublime evoca um res­
peito sem hesitação, sem titubeio. Longe do imen­
so, enclaustrados em nossos próprios conceitos, po­
demos desdenhar e ultrajar qualquer coisa. Mas
quando nos encontramos entre o céu e a terra, so­
mos silenciados pela visão. . .
Por que é impossível ser arrogante diante do
universo? Será por causa do medo? As estrelas não
poderiam fazer-nos nenhum mal se nós as ridicula­
rizássemos . Será por causa de um temor herdado
de nossos primitivos antepassados, uma superstição
atávica que deveria ser esquecida? Ninguém sem
preconceito é capaz de declarar em presença da
grandeza que tal reverência é fátua ou absurda.
Será uma forma mais elevada de egoísmo? Nenhu­
ma pessoa sã poderia pensar em venerar-se a si
mesma. A reverência é sempre para outra coisa;
não há auto-reverência.
Não é a ignorância a causa da reverência. O
desconhecido como tal não nos enche de respeito.
Nem temos por outro lado, sentimentos de respeito
pela lua ou por aquilo que acontecerá amanhã.
Tampouco é o poder ou a massa que desperta tal
atitude. Não é o pugilista ou o milionário, mas o
ancião frágil ou nossa mãe que achamos veneráveis.
Não reverenciamos um objeto por sua beleza, uma
afirmação por causa da sua consistência lógica ou
uma instituição por sua importância.
Menos ainda reverenciamos o conhecido, por­
que o que é conhecido está ao nosso alcance e só
reverenciamos aquilo que nos supera. Não reve­
renciamos a regularidade das estações do ano, mas
aquilo que as torna possíveis; não a máquina de
calcular, mas a mente que a inventou; não' o sol,
mas o poder que o criou. Reverenciamos aquilo
que é extrem am ente precioso, moral, intelectual ou
espiritualmente.
A reverência é uma das respostas do homem
à presença do mistério. É por isso que em contra-
distinção às outras emoções, ela não tem pressa em
ser expressa. Quando estamos dominados pelo res­
peito da admiração, nossos lábios não procuram fa­
lar, cientes de que se falássemos nos degradaríamos.
Em tais momentos a fala é uma abominação. Só
queremos parar, ficar tranqüilos para que o mo­
mento permaneça. É como escutar uma música su­
blime que nos brota do fértil sok» da tranqüilidade;
somos dominados por ela sem sermos capazes de
apreciá-la. O sentido das coisas que reverenciamos
é irresistível e está além do alcance do nosso enten­
dimento. Não possuímos categorias para ele e dis-

35
torcáto-íamos se tentássemos avaliá-lo segundo nossa
escala de valores. Supera nossos critérios de ma­
neira essencial.

A reverência — um imperativo categórico

Pode-se levantar a objeção de que uma reação


psicológica não constitui evidência de um fato on­
tológico e que nunca podemos inferir um objeto
em si de um sentimento que uma pessoa tem a
respeito dele. O sentimento de respeito e admi­
ração pode, muitas vezes, ser o resultado de um
fato comum mal entendido. Podemos ser invadi­
dos de espanto diante de um espetáculo artificial
ou fenômeno de poder maligno. A objeção é, evi­
dentemente, válida. Mas acontece que não inferi­
mos o sentimento real de respeito e admiração, e
sim a certeza intelectual de que diante da grandeza
e do mistério da natureza devemos responder com
o respeito da admiração. O que inferimos não é
um estado psicológico, mas uma norma fundamental
da consciência humana, um im perativo categórico-
Efetivamente, a validade e a necessidade do respeito
de admiração gozam de um grau de certeza que
não é superado nem pela certeza axiomática da
geometria.
Não sentimos o mistério por sentir, mas alguma
necessidade de senti-lo, assim como não notamos
o oceano ou o céu por termos desejo de vê-los.
O sentido do mistério não é um produto da nossa
vontade. Pode ser suprimido pela vontade, mas
não é gerado por ela. O mistério não é o produto
de uma necessidade, é um fato.
O impulso do mistério não é um pensamento
em nossa mente, mas uma poderosíssima presença
acima da mente. Ao afirmarmos que o inefável é

36
espiritualmente real, independente da nossa percep­
ção, não estamos dotando de existência uma mera
idéia, tal como não o fazemos ao afirmarmos: “Isto
é um oceano”, quando somos arrastados por suas
ondas. O inefável existe antes de formarmos uma
idéia dele. O seu próprio espírito é testemunha
certa para o homem de que o mistério não é um
absurdo, que, ao contrário, as coisas conhecidas e
perceptíveis estão carregadas de significação exta-
siante, galvanizante.

A significação fora da mente

Nossa afirmação de que há nas coisas um sen­


tido que tem o poder de inspirar um respeito de
admiração na mente humana imjllica num princípio
que pode parecer surpreendente para muitos leito­
res: é a afirmação de que a significação é algo que
ocorre fora da m ente nas coisas objetivas — inde­
pendentemente da consciência subjetiva que dela
se tenha. Na verdade, sustentamos que as signifi­
cações, tal como os fatos, são independentes da
estrutura da mente humana e existem com ou den­
tro das coisas e acontecimentos. Na análise abstrata
distinguimos e dividimos o fato e a significação,
mas na percepção real eles estão juntos. Não exis­
tem fatos nus, neutros. O ser como tal é incon­
cebível; está sempre dotado de significação.
A significação não é um presente que o ho­
mem dá à realidade. Supor que a realidade é caó­
tica, desprovida de significação, enquanto o homem
não se aproxima dela com o toque mágico da sua
mente, equivaleria a negar que a natureza se com­
porta de acordo com as leis. Pensamento é desco­
berta e não invenção.
Na percepção do homem comum os fatos apare-

37
cem com um mínimo de significação, enquanto para
o artista superabundam em significação. As coisas
comunicam-lhe mais significação do que ele é capaz
de absorver. A vida criativa da arte, da ciência e
da religião é uma negação da idéia de que o ho­
mem é a fonte da significação. Este apenas em­
presta as suas categorias e meios de expressão para
a significação que existe. Só aqueles que perderam
o sentido da significação podem pretender que a
auto-expressão e não a expressão do mundo é a
finalidade da vida.

Suposição e certeza de significação

A suposição de uma significação, a certeza de


que tudo o que existe deve valer a pena, de que
tudo o que é real deve ser compatível com um
pensamento, está na raiz de todos os nossos pen­
samentos, sentimentos e volições. É o oráculo ou
o axioma da razão, em cuja justificação apostamos
tudo que possuímos. Não se pode fugir dela senão
pela autodestruição e pela vontade da loucura. Sem­
pre à procura de alguma qualidade intrínseca na
realidade que manifeste a sua significação, temos
certeza de que o oculto e desconhecido nunca se
revelará absurdo ou sem sentido. Há uma precio­
sidade transcendente que supera nosso poder de
apreciação e da qual nossos valores mais elevados
são apenas uma indicação. O mundo resplandece
com esta preciosidade; sentimo-la onde quer que
estejamos, com nossos corações fracos ou incapazes
de sondá-la.
Devemos condenar essa certeza como uma pre­
sunção irrefletida pelo fato de não ser reivindicada
constantemente? Não será nossa mente que deve
ser acusada de entender mal sua própria suposição,

38
por causa dos seus compromissos com algumas das
suas divagações e noções excêntricas distorcendo
assim o que originalmente era uma autêntica in­
trospecção? A idéia de que a significação suprema
deve anunciar-se a si mesma como um relógio, a
tendência de lançar ao mundo as concepções antro-
pocêntricas preferidas, criaram uma caricatura do
mistério. O escândalo de tentar adaptar a signifi­
cação às nossas mentes, de procurar constantemen­
te o valor que tem o universo para nós, pode efe­
tivamente destruir a nossa capacidade de compreen­
são da significação.

A ciência — uma entrada no infinito

A ciência não procura mudado mistério. Ape­


nas descreve e explica a maneira como se compor­
tam as coisas em termos de necessidade causal.
Não nos dá uma explicação em termos de necessi­
dade lógica — por que as coisas devem existir, e
por que as leis da natureza devem ser como são.
Não sabemos, por exemplo, por que certas combi­
nações de determinada espécie formam uma conste­
lação que se refere aos fenômenos da eletricidade,
enquanto outras aos fenômenos do magnetismo. O
conhecimento de como funciona o mundo não nos
dá familiaridade com sua essência nem compreensão
da sua significação, assim como o conhecimento da
fisiologia e psicologia geral não nos confere nenhu­
ma familiaridade com o Dalai Lama que nunca
vimos.
Querer penetrar o mistério com nossas cate­
gorias é o mesmo que querer morder uma parede.
A ciência ao invés de reduzir, alarga o campo do
inefável. Nossa admiração radical é intensificada
e não reduzida pelo avanço do conhecimento . A

39
teoria da evolução e adaptação das espécies não
tira a maravilha do organismo . Homens como Ke-
pler e Newton que estiveram face a face diante
da realidade do infinito teriam sido incapazes de
cunhar uma frase dizendo que os céus cantam a
glória não de Deus, mas de Kepler e de Newton,
ou o verso: “Glória ao homem nas alturas! por­
que o homem é o senhor das coisas” .
A pesquisa científica é uma entrada no infi­
nito, não um caminho sem saída. Quando resolve­
mos um problema, outro maior se apresenta diante
de nós. Uma resposta gera uma multidão de novas
perguntas. As explicações são apenas indicações de
enigmas maiores. Cada coisa sugere algo que a
transcende. O pormenor indica o todo, o todo a
sua idéia, a idéia a sua raiz misteriosa. O que
parece ser um centro é só um ponto na periferia
de outro centro. A totalidade de uma coisa é efe­
tivamente a infinitude.

Todo o conhecimento é apenas uma partícula

Não há nenhum pensador verdadeiro que não


esteja consciente de que seu pensamento é uma
parte de um contexto sem fim, que suas idéias
não são tiradas do ar. Toda a filosofia não é senão
uma palavra numa sentença, assim como para um
compositor a sinfonia mais completa é apenas uma
nota numa melodia inesgotável. Só quem estiver
intoxicado com suas próprias idéias, é que pode
considerar o mundo do espírito como um solilóquio,
os ideais, os pensamentos, as melodias como suas
sombras. Os ricos de espírito não sabem ser orgu­
lhosos a respeito daquilo que apreendem, porque
entendem que as coisas que compreendem são ir-

40
mpções de inconcebível significação; que não há
idéias solitárias vagando pelo vazio para serem to­
madas e apropriadas. Ser implica significar, porque
todo ser é representante de algo que é mais que
ele próprio. Porque aquilo que é visto, que é co­
nhecido, está pelo não visto, pelo não conhecido.
Até a fórmula matemática mais abstrata a que pos­
samos reduzir a ordem do universo levanta o pro­
blema: o que significa? A resposta necessariamente
será: representa a majestade do (jue é mais que a
própria fórmula. A qualquer espécie do pensa­
mento que possamos chegar, enfrentamos sempre
a significação transcendente.
O mistério do mundo ou é um caos sem ne­
nhum valor ou está cheio de uma significação abso­
luta além do alcance de mentes finitas. Em outras
palavras, ou é absolutamente serifc sentido ou abso­
lutamente pleno de sentido, ou demasiadamente in­
ferior ou demasiadamente superior para ser objeto
da compreensão humana.
Mas como saberíamos do mistério do ser se­
não mediante nosso sentido do inefável? É este
sentido que nos comunica a supremacia e a gran­
deza do inefável juntamente com o conhecimento
da sua realidade. Assim não podemos negar a su­
perioridade do inefável sobre nossas mentes, em­
bora pela mesma razão, não possamos prová-lo.
Por outro lado, o fato de sermos capazes de
senti-lo e de sermos conscientes da sua existência
é uma indicação certa de que o inefável está em
certa relação com a mente humana. Por isso, não
deveríamos chamá-lo de irracional, algo desprezível
como um resíduo de conhecimento, como obscuro
remanescente de especulação indigna de nossa aten­
ção. O inefável é concebível apesar de ser incog-
noscível.

41
Será o inefável uma ilusão?

Contra nossa afirmação sobre o inefável pode-


-se argumentar da seguinte maneira. Embora admi­
tamos que existem certas qualidades significativas
na realidade, certamente há outras qualidades sig­
nificativas que, sendo consideradas reais por nós,
sáo meras ilusões. Assim, por exemplo, não sus­
tentamos que exista na realidade algo que corres­
ponda às imagens grotescas dos demônios adorados
nos cultos religiosos primitivos. Não será também
o inefável uma mera palavra, um puro simulacro?
O fato da significação para nós prova que existe
algo significado por ela? Qual a garantia de que
a consciência do inefável é mais do que uma im­
pressão subjetiva? Admitamos a teoria de que se
trata de um sonho que se desenvolve nas frontei­
ras da mente, o fruto mágico de um pensamento
intenso, mas ilusório! Mas o caminho fácil e ele­
gante oferecido por tal teoria é falaz e escorrega­
dio. Por que haveria o homem de desejar ou pos­
tular uma maravilha que não consegue dominar nem
compreender, que o enche de terror e humildade?
As teorias são sempre grandiosas, mas o seu teste
é feito quando aplicadas. Pode-se imaginar que
uma academia internacional de sábios proclame al­
gum dia: não há nada digno de reverência; o mis­
tério da vida, do céu e da terra não passa de uma
ficção da mente?
Afirmar que as mentes mais sensíveis de todos
os tempos foram vítimas de uma ilusão; que a
religião, a poesia, a arte e a filosofia nasceram de
uma auto-ilusão é sofisticado demais para ser ra­
zoável. Lançando o descrédito sobre o gênio do
homem, semelhante afirmação evidentemente des­
qualificaria nossas próprias mentes para fazer qual­
quer assertiva. É verdade que a história da religião

42
está repleta de exemplos de ídolos e símbolos que
tinham significado para certos povos e não tinham
sentido para outros. Mas será que realmente não
significam, não estão indicando nada? Podemos
apontar certos complexos psíquicos que presumivel­
mente influenciaram o desejo de produzir esses ído­
los primitivos bem como o seu ridículo e a sua per­
versidade. Mas a sua rejeição como produtos vo­
luntários da mente, não invalida o sentido de mis­
tério implícito na necessidade de produzi-los e ado­
rá-los. O erro do adorador de ídolos começa no
processo da expressão do seu sentido de mistério,
quando começa a relacionar o transcendente com
suas necessidades e idéias convencionais e tenta es­
pecificar aquilo que está além da sua percepção.
Nesse processo entram em jogo motivos que nada
têm a ver com sua percepção original. Começa a
olhar o instrumento como fim, o temporal como
o último, distorcendo assim tanto os fatos que adora
como a qualidade do divino que lhes atribui. Ainda
precisa ouvir as palavras: “Não farás imagem escul­
pida nem qualquer outra semelhante” . Nada pode
servir como símbolo ou semelhança de Deus nem
mesmo o universo.
Numa agradável tarde de verão um famoso
professor admirava o céu. Sua filhinha voltou-se
para ele e perguntou-lhe: “O que é que há acima
do céu?” O pai deu-lhe uma resposta “científica”:
“Éter, minha filha” . Ao que a menina exclamou:
“É te r!” E levou a mão ao n a riz ...

43
5

Conhecimento por apreciação

Uma percepção no fim da percepção

Raramente temos consciência da tangente do


além no meio da roda-viva da experiência. Em nos­
sa paixão pelo conhecimento, nossas mentes apos-
sam-se das riquezas de um mundo irresistível e,
carregando nossos limitados espólios, apressadamen­
te deixamos a terra para nos perdermos no redemoi­
nho dos nossos próprios conhecimentos.
O horizonte do conhecimento perde-se na ne­
blina produzida pelos caprichos da moda e das fra­
ses feitas. Recusamo-nos a tomar conhecimento da­
quilo que se encontra fora do nosso campo de vi­
são, contentando-nos em converter as realidades em
opiniões, os mistérios em dogmas e as idéias numa
multidão de palavras. O que é extraordinário pa-
rece-nos um hábito, a aurora. Uma rotina diária
da natureza. Mas às vezes despertamos. Cami­
nhando na sucessão interminável de dias e noites,
sentimo-nos inesperadamente invadidos de solene ter­
ror, de um sentimento de que a nossa sabedoria
está abaixo do pó. Não conseguimos suportar o
doloroso esplendor do pôr do sol. De que valem,
então, as opiniões, as palavras, os dogmas? No con­
finamento dos nossos gabinetes de estudo, nosso
conhecimento parece-nos um foco de luz. Mas quan-

44
do vamos à porta que abre para o infinito, perce­
bemos que todos os nossos conceitos não passam
de partículas de pó luminoso que povoam um raio
de sol. Para alguns de nós as explicações e as opi­
niões são sinais da partida do maravilhoso, como
um toque de recolher indicando o fim da percep­
ção e da pesquisa. Mas aqueles para os quais a
realidade é mais cara que a informação, a vida mais
forte que os conceitos e o mundo mais que as pa­
lavras, nunca serão levados à ilusão de pensar que
o que sabem e percebem é o núcfeo da realidade.
Somos capazes de explorar e de rotular as coisas
com belas palavras, mas quando deixamos de su­
jeitá-las às nossas finalidades e de impor-lhes as
formas da nossa inteligência, ficamos desorientados
e incapazes de dizer o que as coisas são em si
mesmas. É a sensação de sermo^ incapazes de ex­
perimentar algo com que nos defrontamos: grande
demais para poder ser compreendido. A música,
a poesia, a religião, todas iniciam a alma no encon­
tro com um aspecto da realidade para o qual a
razão não tem conceitos e a língua não tem pa­
lavras .

O modo da utilidade

A maior parte da nossa atenção vai para a uti­


lidade, para aquilo que nos traz vantagens e que
nos possibilita explorar os recursos do nosso pla­
neta. Se nossa filosofia fosse uma projeção do com­
portamento real do homem, deveríamos definir o
valor da terra como uma fonte de abastecimento
para nossas indústrias, e o oceano como um viveiro
de peixes. Entretanto, como vimos, existe mais que
um aspecto da natureza que chama nossa atenção.
Vamos ao encontro do mundo não só segundo o

45
modo da utilidade, mas também segundo o modo
da admiração. No primeiro caso encontramos in­
formações para dominar; no segundo aprofundamos
nossa apreciação para responder. O poder é a lin­
guagem da utilidade; a poesia, a linguagem da ad­
miração .
Quando procuramos ampliar nossos conheci­
mentos para satisfazer nossa paixão de poder, o
mundo torna-se alheio e estranho. Os conhecimen­
tos que adquirimos em nosso anseio de invocar a
apreciação são um meio de descobrir nossa união
com as coisas. Com a informação estamos sós;
na apreciação estamos em companhia de todas as
coisas.

O desejo do maravilhoso

À medida que a civilização avança, decresce


quase necessariamente o sentido do maravilhoso.
Este declínio é um sintoma alarmante do nosso es­
tado mental. A humanidade não perecerá por falta
de informação, mas por falta de apreciação. O co­
meço da nossa felicidade consiste em compreender­
mos que a vida sem o maravilhoso não é digna de
ser vivida. O que nos falta não é a vontade de
crer, mas a vontade de admirar.
Interceptar as alusões submersas nas percepti-
bilidades, os valores intersticiais que nunca afloram
à superfície, a dimensão indefinível de toda exis­
tência, eis a tarefa da verdadeira poesia. É por
isso que a poesia é para a religião o que é a análise
para a ciência. Certamente não foi por acaso que
a Bíblia não foi escrita m ore geom etrico, mas na
língua dos poetas. Entretanto, o inefável experi­
mentado pelo artista é anônimo, é como um enjei­
tado sem nome. Para o homem religioso não há

46
nada abandonado ou sem destinatário. É como se
Deus estivesse entre ele e o mundo. O que é fa­
miliar desaparece da sua visão e ele distingue o
original sob o palimpsesto das coisas.

O mundo como objeto

Nossa mente, segura de si mesma, é especiali­


zada na produção de facas, como ^se fôssemos uma
cutelaria. Em todos os seus pensamentos avança
com uma lâmina cortando o mundo em dois: uma
coisa e um eu próprio, um objeto e um sujeito
que concebe o objeto como distinto de si próprio.
Mercenária da nossa vontade de poder, a mente
é levada a atacar para saquear em vez de procurar
comungar para amar. Além disso,^endo nossa aten­
ção necessariamente seletiva, notando apenas uma
coisa, passamos por cima de todas as outras que,
encontrando-se fora de controle, desprezam nossa
autoridade.
Quando deixa de converter o mundo em obje­
tos de sua abstração, o homem começa a perceber
que é tratado como satélite pela sua própria men­
te, que o impede de entrar em contato com a
realidade em si e jamais revela o seu próprio se­
gredo, mantendo-o afastado da essência ao invés de
introduzi-lo nela.
Quando o homem vai ao encontro do mundo,
não com os instrumentos que fabricou, mas com
a alma com a qual nasceu, não como um caçador
que persegue a sua presa, mas como um amante
para dar e receber amor, quando o homem e a
matéria se encontram como iguais diante do mis­
tério, ambos feitos, mantidos e destinados a passar,
já não há um objeto, uma coisa dada a seus senti­
dos, mas um estado de amizade que abrange a ele

47
e a todas as coisas. Não um fato particular, mas
a situação surpreendente do próprio fato de exis­
tirem os fatos. O ser. A presença do universo.
O desenvolver-se do tempo. O sentido do inefável
não se encontra de entremeio entre o homem e o
mistério. Ao invés de excluí-lo, une-o ao mistério.
Para o nosso conhecimento o mundo e o “eu” são
dois, um objeto e um sujeito; mas dentro da nossa
admiração o mundo e o “eu” são eternamente um
ser. Despertamos para a nossa convivência com a
grande amizade de todos os seres e deixamos de
olhar as coisas como oportunidades para explorar­
mos. A conformidade com o ego já não é mais
o interesse exclusivo e nosso direito de subordinar­
mos a realidade a serviço dos assim chamados fins
práticos torna-se um problema.
As coisas que nos cercam emergem da triviali­
dade que lhes atribuímos e o seu caráter estranho
abre como que um vazio entre elas e nossa mente,
um vazio que palavra alguma pode encher. Como
é possível que eu esteja usando esta caneta e es­
teja escrevendo estas linhas? Quem somos nós para
esquadrinharmos as esotéricas estrelas, para teste­
munharmos o pôr do sol, para termos o serviço
da fonte para a nossa sobrevivência? Como pode­
remos retribuir pela respiração e pelo pensamento,
pela vista e pelo ouvido, pelo amor e pelas ações?
Uma evidência prolongada, penetrante, desacostu­
ma-nos de confundirmos a bondade do mundo com
ausência de dono, sua vida simbólica com ordem
insípida.
Um dos maiores choques que experimentamos
em nossa infância ocorre com a descoberta de que
nossas necessidades e atos nem sempre são apro­
vados pelos homens, nossos companheiros, que o
mundo não é só alimento para o nosso prazer. A
resistência que encontramos, as recusas em que in-

'Ifi
corremos abrem nossos olhos para a existência de
um mundo fora de nós mesmos. Mas quando nos
tornamos mais velhos e mais fortes, recuperamo-nos
gradativamente do choque e procuramos esquecer
essa dolorosa lição e aplicamos a maior parte das
nossas capacidades para levarmos nossa vontade a
ocupar-se da natureza e dos homens. Nenhuma lem­
brança da nossa passada experiência consegue der­
rubar completamente a arrogância que repetidamen­
te congestiona o tráfego da nossa^ m ente. Deslum­
brados pelas brilhantes realizações' do intelecto na
ciência e na técnica, deixamo-nos iludir acreditando
que somos os senhores da terra e a nossa vontade
o critério supremo do que está certo ou errado.

Estará o mundo à tnercê do homem?

Estamos hoje começando a despertar de um


estado de intoxicação, da alegria juvenil dos triunfos
do nosso saber. Começamos a perceber em que tris­
te situação estariam tanto o homem como a natu­
reza se estivessem totalmente à mercê do homem
e dos seus caprichos. Não devemos ficar decep­
cionados com o limitado esplendor das teorias que
não respondem a nenhum dos nossos problemas mais
ditais e só ridicularizam o anseio inato da pergunta
mais gritante, mais urgente: Qual é o segredo da
exjstência? Para que e por que vivemos? Somente
aqueles que não experimentaram o terror da vida,
só aqueles que afirmam que é um prazer viver e
que mais prazer e só prazer está reservado para as
gerações do futuro, podem negar a necessidade es­
sencial de perguntar: Para quê? Por quê?

49
4 - O homem não está só
Contamos por todas as coisas

A mente prática presta mais atenção às vírgu­


las e dois pontos no grande texto da realidade que
ao seu conteúdo e à sua significação, enquanto para
quem tem o sentido do inefável as coisas se apre­
sentam como pontos de exclamação, como testemu­
nhas silenciosas. E a alma do homem é um anseio
de cantar todos os seres por aquilo que todos eles
representam. Todas as coisas trazem em si um ex­
cedente de significação além do ser — significam
mais do que aquilo que são em si mesmas. Mesmo
fatos finitos estão indicando uma significação infi­
nita. É como se todas as coisas estivessem palpi­
tantes de significação espiritual. Tudo o que pro­
curamos fazer na arte criativa e nas boas ações é
entoar um cântico secreto, um aspecto desta signi­
ficação .
Enquanto vemos apenas objetos estamos sós.
Quando começamos a cantar, cantamos por todas
as coisas. Por sua essência, a música não descreve
aquilo que é, mas procura antes transmitir aquilo
que a realidade representa. O universo é uma par­
titura de música eterna e nós somos a voz.
A razão explora as leis da natureza, tentando
decifrar as escalas sem compreender a harmonia, en­
quanto o sentido do inefável está à procura da can­
ção. Quando pensamos, empregamos palavras ou
símbolos daquilo que pensamos sobre as coisas.
Quando cantamos, somos levados pela nossa admi­
ração. E os atos de admiração são sinais ou sím­
bolos daquilo que todas as coisas representam.

50
6

Uma interrogação
que transcende as palavras

Não sabemos como perguntar

O universo é uma imensa alusão e nossa vida


interior uma citação anônima. Só o grifo é nosso.
Está em nosso poder verificar a citação, identificar
a fonte, saber o que todas as coisas representam?
Perguntar é o começo de todo pensamento.
Em saber como fazer a pergunta certa reside a úni­
ca esperança de chegarmos a uma resposta. Ao
formularmos uma pergunta, devemos vagamente an­
tecipar algo da natureza daquilo que estamos inda­
gando. Assim sendo, a pergunta sobre a fonte su­
prema de toda a realidade é uma pergunta que não
sabemos fazer. Pois se trata de algo que não pode
ser forçado dentro das nossas categorias finitas,
de algo impossível de prender nas cadeias de uma
sentença e de ser convertido em matéria definida
para indagação. Fórmulas — como: qual é a ori­
gem suprema do universo? O que está atrás de
todos os acontecimentos? — são caricaturas daquilo
que irresistivelmente se apresenta ao nosso sentido
original do maravilhoso. Estamos perguntando pela
origem ou pela presença, finalidade e missão do
universo?
Sabemos onde traçar a linha divisória entre
a origem desconhecida e o produto conhecido, ou

51
onde termina a fonte e começa a derivação? Até
mesmo a estrutura da sentença de tais fórmulas
está carregada de pressupostos lógicos que a uma
análise minuciosa revelam imensas dificuldades.
Uma profunda consciência da incongruência de
todas as categorias com a onipresença sem nome
e impenetrável do mistério é um pré-requisito para
nossos esforços em busca de uma resposta. Quanto
mais cuidados tomarmos para não deixar nossa per­
gunta incomparável ser adulterada ou até mesmo
sufocada por formulações inadequadas, maior será
a nossa oportunidade de chegarmos a respostas fi­
nais razoáveis.

Para quê? Por quê

Em nossa ansiedade esquecemos todo o cuida­


do e prudência. Nem o sábio nem o selvagem con­
segue eludir o problema: Quem é o grande autor?
Por que existe um mundo? Qual o sentido da
nossa vida?
Apesar das nossas conquistas e poder, asseme­
lhamo-nos a mendigos cegos num labirinto, que não
sabem em que porta bater a fim de obter alívio
para suas ansiedades. Sabemos com o age a natu­
reza, mas não por que e por causa de quem ? Sa­
bemos que vivemos mas não por que nem para
quê. Sabemos que temos que indagar, mas não sa­
bemos quem plantou dentro de nós o anseio da
indagação.
Intimidado pela força do agnosticismo, que
proclama a ignorância a respeito da realidade última
como a única atitude honesta, o homem moderno
foge da metafísica e tende a suprimir seu sentido
inato, a sufocar as perguntas que transcendem a
sua mente, procurando refugiar-se nos limites do

52
seu eu finito. Mas tal atitude é uma armadilha in­
consistente e auto-ilusória. Insistindo em que so­
mos incapazes de conhecer, mostramos um conhe­
cimento que afirmamos ser inatingível. A alegação
de que não existe uma significação última ressoa
estridentemente no profundo silêncio do inefável.
É possível evadir-nos da questão suprema re-
tirando-nos para dentro dos limites do próprio eu?
A consciência do maravilhoso é, muitas vezes, do­
minada pela tendência da mente de dicotomizar,
que nos faz olhar o inefável como se fosse uma coi­
sa ou um aspecto das coisas longe de nós mesmos,
como se somente as estrelas estivessem circundadas
com o halo do enigma e não a nossa própria exis­
tência. A verdade é que o eu, nosso “senhor”, é
algo desconhecido, inconcebível em si mesmo. Pe­
netrando-o, descobrimos o paradoxp de não conhe­
cermos o que supomos conhecer tão bem.

Quem é “eu”?

O homem vê as coisas que o rodeiam muito


antes de tomar consciência de si próprio. Muitos
de nós estão conscientes do aspecto oculto das coi­
sas, mas poucos sentem o mistério da própria pre­
sença. O eu não pode ser descrito com termos da
mente, pois todos os nossos símbolos são demasia­
damente pobres para exprimi-lo. O eu é mais do
que aquilo que pensamos dele. É como se estivesse
de costas para a mente. De fato, para a mente a
própria mente é mais enigmática que uma estrela.
Escapa à compreensão a maneira como opera a men­
te humana. As idéias, os tijolos com que são cons­
truídas as convicções, são símbolos cuja significação
o homem nunca consegue penetrar plenamente, e
aquilo que ele deseja expressar está submerso na

53
profundeza insondável do inconsciente. Além do
meu alcance está o fundo da minha própria vida
interior. Não estou certo nem sequer de que a
voz que sai de mim é a voz de uma unidade pes­
soal definida. O que na minha voz se originou em
mim e o que é a ressonância da realidade transub-
jetiva? Ao dizer “eu”, minha intenção é diferenciar
a mim mesmo de outras pessoas e outras coisas.
Mas qual é o conteúdo direto, positivo do “eu”:
o florescimento do consciente sobre o solo impene­
trável do subconsciente? O “eu” não inclui menos
realidade desconhecida, subconsciente, que realidade
conhecida e consciente. Isso significa que o “eu”
só pode ser separado distintamente das suas rami­
ficações, isto é, de outros indivíduos e de outras
coisas, mas não das suas raízes.
Tudo o que sabemos do eu é a sua expressão.
Mas o eu nunca é plenamente expresso. Não sa­
bemos dizer o que somos; não compreendemos
aquilo em que nos tornamos. Tudo é uma abrevia­
tura criptográfica de sugestões que a mente tenta
em vão decifrar. Como a sarça ardente, o “eu”
arde em chamas sem nunca se consumir. Levando
dentro de si mesmo muito mais que a razão, está
em luta com o inefável. O sorriso de um homem
significa alguma coisa. Mas o quê?
Como veremos 1 existir implica em possuir tem­
po. Mas será que o homem possui o tempo? O
fato é que não posso possuir o tempo, os momen­
tos através dos quais vivo, e o intemporal, na mi­
nha temporalidade, certamente, não é minha pro­
priedade particular. Mas se a vida não pertence ex­
clusivamente a mim, qual é o meu direito legal
a ela? Tem a minha essência o direito de dizer “eu”?

1 C f. adiante cap. 19 — O SE N T ID O DA E X IS ­
T Ê N C IA — temporalidade da existência.

54
Quem é este “eu”, a quem se supõe que a minha
vida pertence? Ninguém conhece nem seu conteú­
do nem seus limites. Trata-se de algo que se acaba
ou de algo que o tempo não consegue destruir?
Como indivíduo, como um “eu”, estou separa­
do da realidade externa dos outros homens e das
outras coisas. Mas na única relação em que o “eu”
se torna consciente de si mesmo, na relação para
a existência, descubro que o que chamo de “eu”
é uma autodecepção, que a existência não é pro­
priedade minha e, sim, algo que me foi confiado;
que o eu não é uma entidade isolada, confinada
em si mesma, um reino governado pela nossa von­
tade.
Penetrando no “eu”, defrontamo-nos com o pa­
radoxo de não conhecermos o que julgamos conhe­
cer tão bem . Quando descobrimps que o eu em
si mesmo é uma monstruosa decepção, que o “eu”
é uma realidade transcendente dissimulada, começa­
mos a sentir o peso de estarmos reduzidos a um
mero eu. Começamos a perceber que nossa cons­
ciência normal se encontra num estado de transe,
que aquilo que em nós é mais elevado está geral­
mente suspenso. Começamos a sentir-nos estranhos
dentro da nossa consciência normal, como se nossa
própria vontade fosse algo que nos é imposto.
As almas clarividentes, presas na tensão entre
o prodigamente óbvio e tranqüilidade clandestina,
não se deixam deslumbrar nem surpreender. Ob­
servando a interminável pantomima, que se passa
num mundo ostensivo e turbulento, sabem que não
é ali fora de nós que se encontra o mistério. A
verdade é que estamos todos imergidos nele, im­
buídos nele. Somos, parcialmente, esse mistério.

55
Sou o! que não sou

“E Deus disse a Moisés:


Sou o que sou e disse:
Assim dirás aos filhos de Israel,
Eu sou enviou-me a vós” (Ê x 3 ,1 4 ).

Sou dotado de uma vontade, mas a vontade


não é minha; sou dotado de liberdade, mas é uma
liberdade imposta à vontade. A vida é algo que
visita meu corpo. É um empréstimo transcenden­
tal. Não iniciei nem concebi seu valor e sua signi­
ficação . A essência do que sou não me pertence.
Sou o que nao é m e u . Sou o que não sou.
Ao nível da consciência normal sinto-me en­
volvido em autoconsciência e afirmo que meus atos
e estados se originam em mim e pertencem a mim.
Mas ao tentar penetrar e desvendar o eu, percebo
que ele não se originou em si mesmo, que a es­
sência do eu está em ser um não-eu, que em última
análise o homem não é um sujeito, mas r*n objeto 2.

Não há sujeito para interrogar

É fácil levantar verbalmente a questão: Quem é


o sujeito do qual o meu eu é o objeto? Mas sentir
agudamente a sua significação é algo que ultrapassa
nosso poder de compreensão. De fato, é impossível
compreender logicamente as suas implicações. Por­
que ao colocar a questão, estou sempre consciente
do fato de que sou eu quem faz a interrogação.
Mas tão logo conheço a mim mesmo como um

2 C f. adiante cap. 14 — D E U S É O S U JE IT O —
O pensamento de Deus não tem fachada.

56
“eu”, como um sujeito, já não sou mais capaz de
apreender o conteúdo da interrogação em que estou
posto como objeto. Assim, ao nível da autocons­
ciência não há meio de enfrentar o problema, de
fazer a interrogação absoluta. Por outro lado, quan­
do somos dominados pelo espírito do inefável, não
resta mais nenhum eu lógico para perguntar e ne­
nhum poder mental para julgar a Deus como um
objeto, a respeito de cuja existência devo decidir.
Sou incapaz de levantar minha voz ou de julgar.
Não há nenhum eu para dizer: eu \cho que. . .
Com efeito, não existe nível especulativo em
que possa ser levantada a interrogação. Ou não
percebemos a significação do problema, ou, quando
entendemos a respeito do que deveríamos pergun­
tar, não há sujeito lógico que possa perguntar, exa­
minar, inquirir. %

57
7

O Deus dos filósofos

Deus como problema especulativo

Tradicionalmente a questão suprema é colocada


em termos de especulação. Tomando como ponto
de partida o mundo ou a ordem da natureza, per­
guntamos: Sugerem os fatos deste mundo a pre­
sença ou existência de uma inteligência suprema?
A ciência baseia-se no pressuposto de que na
natureza há leis inteligíveis que podem ser obser­
vadas, concebidas e descritas pela mente humana.
Não foi o cientista quem inventou essas intrincadas
leis. Elas já existiam muito antes que ele se pu­
sesse a explorá-las. De qualquer maneira que ten­
temos conceber a realidade da natureza, seja como
um mecanismo, seja como uma ordem orgânica,
ela nos é dada como um todo significativo, cujos
processos são governados por princípios estritos.
Se nossas mentes são capazes de compreendê-los,
esses princípios não são só inerentes às relações
reais entre os componentes da realidade, mas são
também intrinsecamente racionais.
Mas se a racionalidade funciona na natureza,
não há maneira de explicá-la sem referência à ati­
vidade de uma inteligência suprema.
Portanto, a probabilidade de que o universo
tenha vindo a existir sem intenção é infinitamente
pequena, enquanto a probabilidade de uma inteli-

58
gência estar na raiz do ser é tão forte que nem
mesmo a fundamentação da ciência goza de maior
probabilidade. O aparecimento da ordem universal
por um puro acaso — que é uma categoria irracional
— parece bem menos plausível às nossas mentes
que o seu aparecimento pelas mãos de um planeja­
dor super-racional.
Não é muito difícil descobrir algumas falácias
sutis nas provas especulativas. Pode-se dizer, por
exemplo, que a presença da ordena no mundo não
prova a existência de uma mente divina que está
acima e é distinta dessa ordem. Da ordem podemos
inferir somente a existência de uma causa mais
alta, mas não a existência de um ser que transcende
toda causalidade. Ou, em termos lógicos, o univer­
so conforme concebido por n ó s,„é um sistema fe­
chado de relações lógicas e tudo o que dele podemos
inferir é uma suprema estrutura lógica. Supor a
existência de uma mente ou de um ser supremo além
do universo, é passar do domínio da lógica para o
da ontologia. Logicamente, pode-se afirmar, não há
justificação para se supor a existência de um ser
supremo. O que podemos observar na natureza é
uma ordem mecânica, não uma consciência viva.
Conseqüentemente tudo o que a mente humana
pode supor é a existência de uma força mecânica
suprema, uma força cega do destino. Por isso, co­
mo filósofos, abstemo-nos de crer na existência de
um ser supremo dotado de vontade e inteligência.
Essa abstenção está inteiramente de acordo com
nossos hábitos. Comportamo-nos como se a natureza
fosse uma árvore que rebenta de dentro de uma
sepultura primordial sem nome e nós homens vi­
vêssemos por engano, por acaso, por descuido.
O mundo é tratado por nós como se fosse um
gigantesco carvalho do qual as crianças arrancam

59
galhos' e ramos, enquanto os turistas gravam nomes
na sua casca.
Os argumentos especulativos são cosmocêntri-
cos ou antropocêntricos. Para o argumento cosmo-
lógico da existência de Deus, o ponto de partida é
o plano e a realidade do universo. Sua pergunta é:
qual é a causa última de tudo o que existe? O
princípio de causalidade serve de escada pela qual
a mente sobe até o ser supremo. Ele é visto como
uma explicação para os acontecimentos naturais,
como uma solução científica para um problema.
De maneira semelhante, o argumento moral de Kant
para a existência de Deus parte de premissas mo­
rais. Se a moralidade deve ser mais que um sonho
vazio, é necessário que se realize a união da virtude
e da felicidade. Entretanto, a experiência mostra
à saciedade que no sistema da natureza, empirica­
mente conhecido, a felicidade não depende da vir­
tude. Portanto, a união deve ser feita por um po­
der supremo, não por nós. Assim, é um postulado
da moralidade que exista um ser supremo absoluta­
mente sábio e santo.
A fraqueza essencial desses argumentos está
no fato de que seu ponto de partida não é um
problema religioso, mas um problema cosmológico
ou antropológico. Entretanto, também há uma si­
tuação religiosa única, em que a mente se ocupa
primariamente não dos problemas da natureza e do
homem — por mais urgentes e importantes que
sejam — mas de Deus; não da relação do mundo
com nossas categorias, mas da relação do mundo
com Deus.

60
Será a ordem a coisa mais importante?

Outra deficiência das provas especulativas da


existência de Deus reside no fato de que, mesmo
se sua validade estivesse fora de discussão, elas
provam muito pouco. Qual é o ponto essencial des­
sas provas? É a afirmação de que dados certos fatos
da experiência, tais como a ordem racional do uni­
verso, Deus é a hipótese necessária para explicá-los.
Como a conclusão não pode coçter mais do que
aquilo que está contido nas premissas, um Deus
derivado da especulação equivale no máximo a tanto
quanto exige o nosso conhecimento finito dos fatos
do universo, isto é, uma hipótese. Partindo de
uma justificação racional do nosso credo, podemos
chegar à idéia de que a existência de Deus é tão
provável quanto a do éter na físfea ou a do flogisto
na química, uma hipótese que facilmente pode ser
refutada ou tornada supérflua por uma mudança das
premissas. Mesmo que se admita que tenha sido
demonstrada a existência de um ser dotado de sumo
gênio e sabedoria, permanece o problema: por que
nós, pobres criaturas, haveríamos de preocupar-nos
com ele, o perfeitíssimo? Podemos, efetivamente,
aceitar a idéia de que existe um supremo planejador
e ainda assim dizer: “E daí?” Enquanto o conceito
de Deus não nos subjugar, enquanto pudermos di­
zer — “E daí?” — , não é de Deus que estamos
falando, mas de outra coisa.
A idéia de um supremo planejador pode servir
de fonte de segurança intelectual em nossa busca
do plano, da lei e da ordem do universo, que nos
dá uma garantia para a validade da teoria científica.
Entretanto, o universo pode ser aceito como a obra
de um gênio, as estrelas como resplandecentes de
significação, e contudo nossas almas não deixariam
de se sentirem perseguidas por um receio de futilida­

61
de, tfm receio que não poderia ser vencido por uma
fé de que nalgum lugar nos infinitos recessos da Di­
vindade há uma fonte de sabedoria. É a ordem a
questão suprema? É a ordem o máximo que a sabedo­
ria divina poderia produzir? Estamos mais ansiosos
por saber se existe um Deus da justiça do que sermos
informados de que há um Deus da ordem. Há um
Deus que recolhe as lágrimas, que corresponde à
esperança e recompensa as provações da inocência?
Ou devemos supor que os impérios do pensamento,
as santas intenções, as harmonias e os atos de sacri­
fício dos honestos e dos humildes não são mais que
imagens esculpidas na superfície do oceano?

Filosofia da religião

A questão que cabe à filosofia da religião dis­


cutir em primeiro lugar não é a fé, nem os ritos,
nem a experiência religiosa, mas a origem de todos
esses fenômenos: a situação total do homem. Não
o que ele experimenta no sobrenatural ou como o
experimenta, mas por que o experimenta e sente.
O problema é: o que impõe a religião à minha e
à sua vida?
A filosofia da religião não é a filosofia de uma
filosofia, a filosofia de uma doutrina, a interpretação
de um dogma, mas a filosofia de fatos, atos, per­
cepções concretas, daquilo que acontece diretamente
com o homem piedoso. Os dogmas são simples­
mente um catálogo, um índice indispensável. A re­
ligião é mais que um credo ou uma ideologia e
não pode ser compreendida quando separada da
vida real. Manifesta-se em momentos em que nossa
alma é invadida por uma angústia insaciável a res­
peito do sentido de todos os sentidos, sobre o nosso
compromisso supremo, que é parte da nossa própria

62
existência, em momentos em que todas as conclu­
sões anteriores, todas as trivialidades que sufocam
a vida ficam suspensas; em que a alma está faminta
por uma idéia da realidade eterna; em momentos
em que se descobre o indestrutível inesperado den­
tro do constante perecível.
Podemos conseguir muitas coisas em nossa bus­
ca de Deus, aplicando métodos racionais, desde que
nos lembremos que nas questões que se relacionam
com a totalidade da vida, devem entrar em jogo
todas as capacidades mais elevada^ da nossa perso­
nalidade, particularmente nosso sentido do inefável.

%
8

A questão suprema

O que a admiração suprema dá ao homem

As provas especulativas são o resultado daquilo


que o homem realiza com a sua razão. Mas, como
sabemos, a razão não é nossa única fonte de certeza.
Por mais valiosa que seja a mão estendida, a orien­
tação vital e o sóbrio esforço da razão, ela não pode
aliviar-nos do pesado fardo que o mundo impõe
sobre nossos ombros, a necessidade de pensar em
coisas que não são conversíveis em imagens mentais.
Há, na verdade, outro tipo de evidência sobre o
que é e o que significa Deus. Elá é o resultado
daquilo que o homem alcança com sua admiração
suprema, com seu sentido do inefável.
Nunca a humanidade poderia ter feito brotar
da rocha dos fatos finitos a torrente inexaurível
de sua consciência de Deus, analisando o plano de
suas camadas geológicas. Efetivamente, quando pas­
samos além da análise, procurando ver a rocha como
rocha e a pensar no que significa ser, ela esconde a
sua face de nossas perscrutações e o que fica é mais
inverossímil, mais inacreditável que o fundo miste­
rioso do ser. Então se torna claro que o mundo do
conhecido é um mundo desconhecido, exceto nos
seus postos avançados funcionais; que nutrir a idéia
de que a vida é lúcida e familiar é o mesmo que
viver na ilusão de um conto de fadas. Para uma

64
mente não deformada por hábitos intelectuais, dis­
torcida pelo já conhecido, para uma surpresa inata
não viciada, não existem axiomas nem dogmas. Há
unicamente admiração, compreensão de que o mun­
do é excessivamente inacreditável, demasiadamente
cheio de significação para nós. A existência do
mundo é o fato mais inverossímil, mais incrível.
Até nossa capacidade de surpresa está além da ex­
pectativa. Em nossa admiração não viciada, somos
como espíritos que nunca tiveram consciência da
realidade externa, e aos quais o ^conhecimento da
existência do universo chegou pela primeira vez.
Quem poderia crê-lo? Quem poderia concebê-lo?
Precisamos aprender a superar a certeza ilusória e
a entender que a existência do universo é contrária
a todas as expectativas racionais. O mistério está
onde nos colocamos sem pressuposições, sem argu­
mentações, sem doutrinas, sem dogmas.

A religião começa com o sentido do inefável

O pensamento acerca de Deus começa na crosta


escarpada da mente, onde termina abruptamente o
murmúrio, onde não temos mais anseios, onde não
sabemos mais temer. Só aqueles que sabem viver
espiritualmente inquietos serão capazes de ir além
do litoral sem nostalgia das certezas estabelecidas
spbre a rocha artificial da nossa especulação.
Não é a especulação teórica, mas o sentido do
inefável que precipita o problema de todos os pro­
blemas. Não o aparente, mas o oculto no aparente;
não a sabedoria, mas o mistério do plano do uni­
verso, as interrogações que não sabemos como fazer
sempre derramaram óleo sobre as chamas da ansie­
dade do homem.
A religião começa com o sentido do inefável,

65
5 - O homem não está só
com a consciência de uma realidade que desacredita
nossa sabedoria, que abala nossos conceitos. Portan­
to, devemos começar com o inefável, porque de ou­
tra forma não haveria problema. Devemos voltar
à sua percepção, pois do contrário nenhuma solução
teria importância.

A questão suprema

Há um erro pernicioso que, muitas vezes, inuti­


liza os esforços filosóficos no tratamento do nosso
problema. Parece que esquecemos que uma interro­
gação autêntica representa mais do que aquilo que
diz expressamente. Assim como a natureza tem aver­
são ao vácuo, assim o vazio de pensamento tem
aversão aos problemas. Para poder colocar uma in­
terrogação, para procurar uma resposta, deve-se pos­
suir algum conhecimento, deve-se saber o que inda­
gar. Deve haver uma situação responsável pelo apa­
recimento do problema, uma razão de ser da pre­
sença da interrogação na mente. Nossa primeira ta­
refa é, portanto, percorrer de volta o caminho que
leva à origem do problema, para recuperar o conhe­
cimento que ela deixou para trás. Se nosso coração
não estiver aberto para o que está atrás da sua
aparência verbal, a interrogação passará por nós com
a face oculta.
O reino do inefável, e não o da especulação, é
que constitui o ambiente em que se origina a inter­
rogação suprema. É no seu recinto que o mistério
está ao alcance de todos os pensamentos, que a in­
terrogação deve ser estudada. No seu estado nativo
a interrogação suprema é diferente, na sua forma,
da configuração lógica em que é moldada quando
levada ao nível abstrato da especulação.
Há um mundo em que a admiração está morta,

66
em que a interrogação suprema está fora de alcance.
O reino da especulação em que habitualmente de­
batemos o mérito do nosso problema está a uma
grande distância do seu ambiente nativo, do reino
do inefável. No momento em que o problema é
colocado diante de nossos olhos críticos, já murchou
como uma folha ao bafo quente de um forno.
O sentido do inefável que, crescendo, alcança
e se inclina para a luz de uma realidade última
nunca poderá ser transplantado paca a superficiali­
dade da mera reflexão. Arrancado do seu meio,
geralmente se transforma como uma rosa compri­
mida entre as páginas de um livro. Quando redu­
zido a termos e definições é pouco mais que o resto
ressequido de uma realidade anteriormente viva.
Se, apesar disso, tentamos refletir sobre a in­
terrogação suprema na sua forma í&gica, deveríamos
pelo menos tratá-la como uma planta erradicada do
seu solo, removida de seus ventos, de seus raios
solares e de seu ambiente terrestre e que pode so­
breviver somente se conservada em condições de al­
guma forma semelhantes ao seu clima original.
Por isso, mesmo quando nosso pensamento sobre
ela se desenvolve num nível discursivo, nossa me­
mória deve permanecer ancorada nas percepções do
inefável e nossa mente precisa permanecer num es­
tado de temor respeitoso, sem o que nunca atingi­
remos uma língua comum com o espírito do pro-
bleriaa, sem o que a natureza original da interroga­
ção não se nos revelará.
O problema em apreço só será apreendido por
aqueles que forem capazes de encontrar categorias
que se combinem com o metal puro e de fundir o
imponderável numa expressão única. Não basta des­
crever o conteúdo da consciência do inefável. De­
vemos assediar a alma com perguntas, forçando-a
a entender e esclarecer o sentido daquilo que se

67
passà quando ela se encontra no horizonte supremo.
Penetrando a consciência do inefável, podemos con­
ceber a realidade que está atrás dela.

A situação que determina a interrogação

Nosso ponto de partida não é a visão do enco­


berto e do inescrutável. Do interminável nevoeiro
do desconhecido não poderíamos, efetivamente, de­
rivar uma compreensão do conhecido. E a tensão
entre o conhecido e o desconhecido, entre o comum
e o sagrado, entre o fugaz e o inefável que enche
os momentos das nossas introspecções.
Nossa interrogação última não nasce do fato de
que nas brumas da nossa ignorância topamos por
acaso com uma parede cheia de enigmas misteriosos.
Não perguntamos por sermos pobres de espírito e
desprovidos de conhecimentos. Perguntamos porque
sentimos um espírito que supera nossa capacidade
de compreendê-lo. Nossa indagação é devida não
a algo que é menos, mas a algo que é mais que
o conhecido. Perguntamos porque o mundo é de­
mais para nós, porque o conhecido está repleto
de maravilhoso, porque o mundo está cheio do que
é mais que o mundo como nós o entendemos.
A interrogação acerca de Deus não é uma inda­
gação sobre todas as coisas, mas uma indagação a
todas as coisas. Não uma indagação do desconhe­
cido, mas uma indagação daquilo que todas as coi­
sas representam e significam. Uma pergunta que
dirigimos a todas as coisas. É expressa não em ca­
tegorias da razão, mas em atos em que nos movemos
além das palavras. A mente não sabe como expri­
mi-la, mas a alma exprime-a com suspiros, canta-a,
apela para ela.

68
Além das coisas

Ao empreendermos a solução de um problema


racional, devemos primeiro testar a capacidade da
nossa mente e verificar o que as categorias mentais
são capazes de transmitir. Igualmente em nosso
caso, temos que aplicar tudo o que sabemos sobre
o que é dado à incompreensão superior do bomem,
à sua pura admiração e o que a intuição do inefável
transmite à nossa consciência. Lembremos o fato
fundamental de uma percepção não discursiva uni­
versal do inefável, que é o sentido de uma signifi­
cação transcendente, de uma consciência de que o
universo comunica a significação de algo que ultra­
passa nosso poder de compreensão.
O conhecimento racional sempre implica em
elementos alógicos, tais como u m l confiança inicial
na veracidade das nossas faculdades e uma confiança
contínua, uma espécie de fé, na hipótese mais ra­
zoável. Na percepção do inefável, somos levados a
uma fé numa significação não revelada e ficamos
desprovidos do poder de desconhecer o inobservado.
Surge a pergunta se não há também aqui uma hi­
pótese racional para a qual a mente se sente natu­
ralmente atraída ou atrás da qual anda em busca
ansiosa.
De fato, a mente busca e se sente atraída pelo
racional como tal. Mas o prazer e a essência do
que é racional ou tem sentido ou está na sua coe­
rência com nossas mentes. Quando dizemos que al­
go é racional, entendemos que é algo racional para
nós e pode ser integrado em nosso sistema de con­
ceitos. Mas o inefável tem sentido sem ser racional.
Não se dobra à análise nem se conforma com as
nossas categorias. É como se estivesse fora de lugar
em nosso cérebro. Além disso, não é uma idéia
conseguida através de abstrações, mas apreendida no

69
concireto e diretamente. Não é uma idéia que se
assemelha a uma lei geral aplicada a fenômenos
particulares. É algo incorpóreo, uma relação que
transcende os fatos e não algo que está dentro dos
fatos.
E contudo a realidade da significação inefável,
como demonstramos, está fora de toda discussão.
O imperativo do respeito e do temor é a prova da
sua evidência, uma prova universal que todos nós
testemunhamos com tremor e pasmo, não porque
queremos, mas porque estamos tomados de assom­
bro e dele não conseguimos nos livrar. A realidade
tem muito mais significações do que a minha alma
é capaz de absorver. E quando começo a soletrar
a infinita sentença da minha admiração e a dizer
o que percebo, noto que toda a percepção é uma
exteriorização, que a essência começa onde termina
a percepção. A percepção do fato de que a reali­
dade supera meu poder de percepção é demasiada­
mente consistente, demasiadamente estonteante e
universal para ser ilusória.
Portanto a interrogação suprema não é uma
creatio ex nihilo da mente, mas uma repetição na
mente de algo que acontece à alma. A indicação
que transcende todas as coisas nos é dada com o
mesmo imediatismo que as próprias coisas. Sua
presença é um fato como qualquer outro o é. Mui­
to mais que isso, é um fato dentro de todos os
fatos. Se é verdade que os aspectos concebíveis da
realidade estão próximos à nossa experiência, den­
tro da experiência deparamos com o mistério. En­
quanto nossas mentes ficam sobre as coisas, nossas
almas são levadas para além delas.

70
Uma presença espiritual

A consciência do mistério é compartilhada por


todos os homens. Mas, como vimos, geralmente jul­
gam erroneamente que o que sentem está separado
de sua própria existência, como se o maravilhoso
existisse só naquilo que vêem e não no próprio ato
de ver, como se o mistério fosse apenas um objeto
de observação. Um pensamento generoso, não li­
mitado, abre nossas mentes para ç fato de que o
mistério não está separado de nós, não é uma coisa
longínqua como um arco-íris no céu. O mistério
não está fechado, encontra-se em todas as coisas
que se possam ver e não só naquilo em que há mais
do que os sentidos podem captar. Aqueles para os
quais a consciência do inefável é um estado cons­
tante da mente sabem que o mistáíio não é uma ex­
ceção, mas um ar que envolve todas as coisas, o
fundo espiritual da realidade. Não algo separado
da realidade, mas uma dim ensão de toda a exis­
tência .
Aprendem a sentir que toda a existência está
envolta por uma presença espiritual; que a vida não
é uma propriedade do eu; que o mundo é uma
casa aberta em que a presença do dono está tão
bem encoberta que geralmente confundimos sua dis­
crição com inexistência.
Há uma santidade que paira sobre todas as
coisas, que as faz parecer-nos em alguns momentos
objetos de meditação transcendente, como se ser
significasse ser pensado por D eus3 como se toda a
vida exterior estivesse envolta por uma vida inte­
rior, por um processo interno de uma mente, pen­
sante e intencional.

3 C f. adiante cap. 14 — D E U S É O S U JE IT O —
O pensamento de D eus não tem fachada.

71
Números, relações abstratas, não expressam a
sua essência, como o número dos membros de uma
família não conta a história única do seu drama.
(A vida interior, enquanto pensada, é, naturalmente,
um símile, mas é só através de símiles que podemos
comunicar-nos quando falamos da realidade última).
Para o homem religioso é como se as coisas
estivessem d e costas para ele e com o rosto voltado
para Deus, como se a qualidade inefável das coisas
consistisse em serem um objeto do pensamento di­
vino. Assim como quando tocamos numa árvore
sabemos que a árvore não é o fim do mundo, que
ela se encontra no espaço, da mesma forma sabemos
que o inefável • — o que é santo em justiça, com­
paixão e veracidade — não é o fim do espírito.
Que os valores supremos sobrevivem aos nossos
juízos errôneos, nossas vaidades e negações. Que
a significação é significativa não por causa das nos­
sas mentes e que a beleza é bela não por graça
do homem.
A alma é introduzida numa realidade que não
só é diferente dela, como ocorre no caso dos atos
ordinários de percepção. Elá é introduzida numa
realidade que é mais elevada que o universo. Nossa
alma se compara com a glória dessa realidade como
o hálito com todo o ar do mundo. Somos introdu­
zidos numa realidade, cuja simples consciência nos
é mais preciosa que nossa própria existência. O
pensamento dessa realidade é tão poderoso que não
pode ser ignorado e santo demais para ser por nós
absorvido. E um pensamento de que somos parti­
cipantes. E como se a mente humana não estivesse
sozinha ao pensá-la, mas como se o universo inteiro
estivesse pleno dele. Não mais admiramos as coisas;
admiramos juntamente com todas as coisas. Não
pensamos a respeito das coisas. Pensamos por todas
as coisas.

72
9
Na presença de Deus

Da sua presença à sua essência

O sentido do inefável introduz a alma no as­


pecto divino do universo, numa realidade mais alta
que o universo. Ao dizermos que ser significa ser
pensado por Deus, que o universo é um objeto
do pensamento divino, afirmamos a existência de
um ser que está além do inefável. Como sabemos
que Deus é mais que a dimensão sagrada, mais que
um aspecto ou um atributo do ser? Como passamos
do caráter de alusão do mundo para um ser ao qual
o mundo alude?
Ao pensarmos no nível do inefável, não par­
timos com uma idéia preconcebida de um ser su­
premo em nossa posse, procurando verificar se ele
é realmente tal como existe em nossas mentes. A
consciência que abre nossas mentes para a existência
de um ser supremo é a consciência de uma reali­
dade, a consciência de uma presença divina. Muito
antes de atingirmos qualquer conhecimento sobre a
sua essência, temos a intuição de uma presença di­
vina.
É nisso que a ventilação mediante o inefável
difere da ventilação mediante a especulação. Nesta
procedemos de uma idéia da sua essência para uma
fé na sua existência, enquanto no primeiro caso
passamos de uma intuição de sua presença para uma
compreensão de sua essência.

73
A aurora da fé

O sentido do inefável não nos dá uma consciên­


cia de Deus. Somente nos eleva a um plano em que
ninguém pode ficar indiferente e calmo, impertur­
bável e impassível, em que sua presença pode ser
desafiada, mas não negada, em que, em última ins­
tância, a única atitude possível é a fé nele.
Desde o momento em que nossa alma nua es­
tiver exposta à onipresença do inefável, já não po­
deremos ordenar-lhe que cesse de abalar-nos com
a sua admiração ansiosa. É como se houvesse só
sinais e lembranças ocultas do único e verdadeiro
sujeito, do qual o mundo é um objeto enigmático.
Quem fez brilhar o maravilhoso diante dos
nossos olhos e quem acendeu a admiração dos nos­
sos olhos? Quem fulgurou em nossas mentes o raio
que nos queima com a imperiosa necessidade de
nos sentirmos invadidos pelo temor do sagrado, tão
inegável como o espetáculo das estrelas?

O que fazer com a admiração?

O começo -da fé não é um sentimento do mis­


tério da vida ou um sentido de temor, de admira­
ção ou de medo. A origem da religião é a pergunta
sobre o que fazer com o sentimento do mistério
da vida, o que fazer com o temor, a admiração ou
o medo. A religião, o fim do isolamento, começa
com a consciência de que há uma pergunta que é
dirigida a nós. A alma é dominada por esta interro­
gação tensa e eterna e neste clima se dá a resposta
do homem.
A admiração não é um estado de gozo estético.
Admiração infinita é tensão infinita, uma situação
em que nos ofendemos com a inadequação do nosso

74
temor, com a fraqueza do nosso choque, o estado
de estarmos sendo interrogados pela interrogação
suprema.
A admiração infinita produz um sentido inato
de dívida. Em nosso temor não há lugar para ne­
nhuma auto-afirmação. Em nosso reverente respeito
só sabemos que somos devedores de tudo o que
possuímos. O mundo não consiste em coisas, mas
em tarefas. A admiração é o estado que resulta da
nossa situação de sermos interrogados. O inefável
é uma interrogação que nos é dirigida.
Tudo o que nos resta é uma escolha — res­
ponder ou recusar-nos a responder. Mas quanto
mais profundamente escutarmos, mais despojados fi­
camos da arrogância e da indiferença, as únicas coi­
sas que nos tornariam capazes de recusar. Carrega­
mos uma carga de maravilhas, dçsejosos de trocá-la
pela simplicidade de saber para o que viver, uma
carga de que nunca poderemos aliviar-nos e por
outro lado não podemos continuar a carregá-la sem
saber para onde.
No momento em que lavra um incêndio que
ameaça destruir a própria casa, ninguém pára a
fim de investigar se o perigo que enfrenta é real
ou fruto da sua imaginação. Não é este o momento
de investigar o princípio químico da combustão ou
quem é o responsável pelo surgimento do incêndio .
A interrogação suprema, quando irrompe em nossas
almas, é excessivamente surpreendente, demasiada­
mente carregada de inexprimível admiração, para
ser uma questão acadêmica, para ficarmos suspen­
sos entre o sim e o não. Não é o momento de lan­
çar dúvidas sobre a razão do seu surgimento.

75
Que é o enigma?

Quando pensamos com toda a nossa mente,


com todo o nosso coração, com toda a nossa alma,
quando tomamos consciência do fato de que o eu
não pode subsistir por si mesmo, compreendemos
que as explicações mais sutis não passam de esplên­
didos enigmas, que Deus é mais plausível que nós
mesmos. Que não é Deus que é um enigma. Quan­
do toda a nossa mente está ardendo pela interroga­
ção eterna como um rosto diante de uma grande fo­
gueira, não perguntamos: Onde está Deus? Pois tal
pergunta implicaria que nós, que perguntamos, es­
tamos presentes e que Deus está ausente. No reino
do inefável, onde nossa própria presença é inacredi­
tável, não perguntamos: onde está Deus? Só pode­
mos exclamar: onde não está ele? Onde estamos
nós? Como é possível a nossa presença?
No momento em que pela primeira vez des­
pertamos para a interrogação última, confessamos
sem reservas nossa incapacidade de enfrentar o mun­
do sem um ser que está além do mundo. Nossa
pergunta é essencialmente uma conclusão antecipada,
uma resposta disfarçada. Pois uma vez que acatamos
a legitimidade da interrogação já a afirmamos. A
incapacidade da nossa mente em encontrar evidên­
cia da sua presença é simplesmente uma admissão
implícita de que consideramos a natureza tão per­
feita que não se pode descobrir nenhum traço da
sua dependência do sobrenatural. Como se Deus
tivesse irradiado um esplendor que ocultasse a sua
presença.
Mas há uma dimensão em que Deus não está
oculto, em que sentimos sua presença atrás do es­
plendor. Mas somos nós capazes de dizer o que
sentimos? Somos capazes de manifestar a razão se-

76
creta da nossa certeza da existência de um ser que
transcende todo o esplendor?
O problema que se apresenta diante de nós não
é se existe um Deus, mas se sabemos que existe um
Deus. Não se ele existe, mas se somos suficiente­
mente inteligentes para apresentar razões adequadas
para afirmá-lo. O problema é: como dizê-lo às nos­
sas mentes? Como vencer as antinomias que nos
impedem de conhecer clara e distintamente o que
ele significa? ^

Interrogação invencível

A consciência do divino, que inicialmente se in­


filtra como um sentido de admiração que transpa­
rece através da indiferença, com^ uma necessidade
de estar consciente do inefável, cresce e impercepti­
velmente, como um cabelo, transforma-se em inquie­
tação e ansiedade até romper numa insuportável
preocupação que nos priva da complacência e da
paz de espírito, forçando-nos a pensar em realidades
nas quais não desejaríamos pensar, em realidades
que não têm nenhuma atração para o nosso inte­
resse pessoal. Com todo o nosso poder, orgulho e
autoconfiança, procurar desafiar, suprimir e comba­
ter essa preocupação com o desconhecido, com o
que não está confinado nem pela nossa mente, nem
pela nossa vontade, nem pela nossa vida. Preferi­
ríamos ser prisioneiros, desde que as quatro paredes
da prisão fossem nossa mente, vontade, paixão e
ambição. De fato não haveria maior conforto do
que viver na segurança de conclusões antecipadas,
em vez dessa preocupação angustiante que transfor­
ma todas as conclusões num montão de ruínas.
Qual é a natureza dessa preocupação forçada
a que resistimos com tamanha veemência? Elá não

77
vem! de nós mesmos. É uma pressão que pesa so­
bre nós e sobre todos os homens. Não comunica
palavra alguma. Só pergunta, só chama. Impõe-nos
uma interrogação, uma ordem que nosso coração faz
ecoar como um sino, avassalador como se fosse o
único som a reboar num silêncio infinito e nós os
únicos a ter que responder-lhe. Nossa mente e
nossa voz são grosseiras demais para pronunciar uma
resposta. É uma interrogação que exige todo o
nosso ser como resposta. Nossas palavras, nossas
posses, nossas realizações não constituem resposta.
As teorias e as explicações se dissipam como meros
divertimentos. Diante da interrogação deixamos de
perceber a resposta, diante da floresta não vemos
mais as árvores. Não há mais nem céus, nem ocea­
nos, nem aves, nem árvores. Há somente uma in­
terrogação, e esta é inefável.

Em busca da alma

Perseguidos por um problema que não conse­


guimos penetrar, que não se enquadra dentro da
nossa curiosidade intelectual, somos dominados pela
sua luta à procura de uma entrada em nossos es­
píritos, pela sua busca de uma alma que se empenhe
em compreendê-lo.
Não conseguimos interrogar a suprema e inven­
cível interrogação que se estende diante de nós inin­
terruptamente como o tempo, e que nos interpela
como uma voz que se fundiu com o silêncio.
Não há conhecimento algum que possa cons­
tituir uma resposta à admiração infinita, que possa
conter a invasão do seu silencioso desafio. Quando
estamos dominados pela admiração infinita, toda in­
ferência é um retrocesso ineficaz. Em tais momen­
tos, o silogismo não é auto-evidente. Só a intuição

78
o é. Em momentos assim nossa afirmação lógica,
nosso dizer “sim” é como uma bolha de pensamento
na praia de um mar eterno. Percebemos então
que o nosso problema não é: o que podemos co­
nhecer? Como manifestá-lo às nossas mentes? mas,
sim: a quem pertencemos? Como abrir nossas vidas
a ele?
Onde não há mais auto-afirmação, quando se
percebe que a admiração não é obra nossa, que não
é só por nós mesmos que som^s invadidos pela
admiração radical, também não podemos mais assu­
mir o papel de um examinador, de um sujeito em
busca de um objeto, tal como procuramos uma cau­
sa quando ouvimos um trovão. Admiração suprema
não é a mesma coisa que curiosidade. Curiosidade
é o estado do espírito que está à procura de conhe­
cimento, enquanto a admiração sí^rema é o estado
de conhecimento em busca de uma mente. É o pen­
samento de Deus à procura de uma alma.
O importante não é o momento existencial do
desespero, a aceitação da nossa própria falência, mas
ao contrário, a percepção do nosso grande poder
espiritual, o poder de sanar o que está destruído
no mundo, a percepção da nossa capacidade de res­
ponder à interrogação de Deus.
A fé não é um produto da nossa vontade. Elá
se verifica sem a intenção, sem a vontade. As pa­
lavras morrem depois de pronunciadas, e a fé é
como o silêncio que aproxima os amantes, como um
hálito que participa do vento.
Não é uma conclusão de premissas lógicas nem
o produto de um sentimento que nos leva a crer
na sua resistência. Não é uma idéia que se obteve
ao parar e observar ou ao penetrar na alma escu­
tando-se a própria voz interior. Não cremos porque
chegamos a uma conclusão. . . ou porque fomos
vencidos por alguma emoção. É uma transformação

79
dentro da mente causada por um poder que está
acima da mente, um choque e uma colisão com o
inacreditável pelo qual somos forçados a crer.

A premissa da glorificação

Não é a prova especulativa que constitui o


prelúdio da fé. Os antecedentes da fé são consti­
tuídos pela premissa da admiração e pela premissa
da glorificação. Glorificamos antes de provar. En­
quanto em relação a outras questões duvidamos an­
tes de decidir, em relação a Deus cantamos antes
de falar. Se não soubermos glorificá-lo, não po­
deremos aprender a conhecê-lo. O louvor é a nossa
primeira resposta à admiração. Na realidade, o que
nos resta fazer diante do sublime senão glorificar,
senão sentirmo-nos inflamados pela incapacidade de
dizer o que vemos e sentirmo-nos envergonhados
por não saber como agradecer pela capacidade de
ver?
Ser invadido pelo temor de Deus não é entre­
ter um sentimento, mas participar de um espírito
que impregna todas as coisas. “Todos agradecem,
todos glorificam, todos dizem: não há ninguém co­
mo Deus” . Como ato de reconhecimento pessoal
nossa glorificação pessoal seria fátua. Elá só tem
sentido enquanto ato que se une ao cântico infi­
nito. Cantamos com as pedras das estradas que são
como que uma admiração petrificada, com todas as
flores e árvores que parecem hipnotizadas em silen­
ciosa devoção.
Quando a mente e a alma se harmonizam,
nasce a fé. Mas antes dela os nossos corações pre­
cisam sentir o estremecimento da adoração.

80
Deixemos a intuição acontecer

Nossa consciência de Deus é uma sintaxe do


silêncio em que nossas almas se misturam com o
divino, em que o inefável dentro de nós comunga
com o inefável acima de nós,
E o crepúsculo vespertino dos anos em que
alma e céu estão silenciosamente unidos, o fruto
da certeza acumulada da presença abundante, nunca
recessiva do divino.
A única coisa que nos cabe fazer é deixar a
intuição acontecer e escutar a oculta certeza da
alma de ser um parênteses no imenso texto do eter­
no discurso de Deus.
Não atingimos a grande intuição quando pen­
samos ou inferimos o além a partir daqui. No reino
do inefável, Deus não é uma hipStese derivada de
pressupostos lógicos, mas uma intuição imediata,
auto-evidente como a luz. Ele não é algo que se
deva procurar na escuridão à luz da razão. Diante
do inefável, ele é a luz. Quando chega a consciên­
cia do supremo é como um brilho que se manifesta
subitamente. Para os espíritos meditativos o ine­
fável é crítico, inarticulado: pontos, marcas de sig­
nificação secreta, indicações dispersas a serem reco­
lhidas, decifradas e transformadas em evidência.
Nos momentos de intuição, no entanto, o inefável
é uma metáfora numa língua materna esquecida.
Portanto, a consciência de Deus não vem gra­
dativamente: da timidez à temeridade intelectual;
da conjetura, da relutância à certeza. Não é uma
decisão a que se chega na encruzilhada da dúvida.
Vem quando vagueando em lugar solitário, depois
de nos termos perdido, de repente vemos a imu­
tável estrela polar. Livre da interminável angústia,
livre da negação e do desespero, a alma explode
em clamor sem palavras.

81
6 - 0 homem não está só
Deus está solicitando o homem

Bater timidamente nas portas distantes do si­


lêncio à procura de Deus em . algum lugar não é o
caminho acertado. Todos nós temos a possibilidade
de descobrir na pedra ou na árvore, no som ou no
pensamento mais próximo o refúgio da sua bondade
freqüentemente profanada. Sua espera para que o
çoração do. homem se afilie à sua vontade. E di­
fícil perceber a manifestação do divino neste mundo
de lutas e de invejas. Contudo, uma força acima
da nossa consciência clama ao homem, lembrando-o
e advertindo-o de que o mau falhará na sua rebelião
contra o bom . Quem quiser ser um eco dessa voz
impelente abre a sua vida à compreensão do invi­
sível no deserto da indiferença. É Deus que pro­
cura. a nossa devoção constantemente, persistente­
mente. E ele quem sai ao nosso encontro logo que
queiramos conhecê-lo.
O que dá origem à religião não é a curiosidade
intelectual, mas o fato e a experiência de sermos
interrogados.. Enquanto ficarmos a formular e con­
siderar as nossas próprias interrogações, não sabe­
mos sequer como interrogar. Sabemos muito pouco
para sermos capazes de indagar. A fé não é o pro­
duto da pesquisa e do esforço, mas a resposta a
um desafio que ninguém pode ignorar indefinida­
mente. Não entra através de um problema, mas
através de uma exclamação. A filosofia tem seu
início na interrogação do homem. A religião com eça
com interrogação de Deus e a resposta do hom em .
Quem escolheu uma vida de empenho total
pelo objetivo supremo, o objetivo vital e incompa­
rável de Deus, tem às vezes a sensação de que o
espírito de Deus paira sobre as suas pálpebras junto
âòs séus olhos, mas nunca é visto . Aquele que com­
preende que o sol e as estrelas e as almas não va­

82
gueiam no vazio, mantém o seu coração vigilante
para a hora em que o mundo entra em arrebata­
mento. As coisas não são mudas: o silêncio está
cheio de perguntas, à espera de uma alma para res­
pirar o mistério que todas as coisas exalam na sua
ansiedade de comunhão. Do mundo eleva-se um
pedido para instilar no ar um hino arrebatador acer­
ca de Deus, para encarnar nas pedras uma mensa­
gem de humilde beleza e para instilar uma prece
para que haja bondade nos corações de todos os
homens.

A invasão da grande realidade

. O mundo em que vivemos é uma vasta prisão


num labirinto que tem a altura ^Ha nossa mente,
a largura da nossa força de vontade e o compri­
mento da extensão da nossa vida. Aqueles que
nunca chegaram até as grades e nunca viram o que
existe além da prisão não conhecem e não sonham
com nenhuma liberdade e estão dispostos a lutar
por civilizações que surgem, passam e mergulham
no abismo do esquecimento, abismo que jamais con­
seguirão encher.
Nesta época tecnológica o homem não é capaz
de conceber seu mundo senão como material para
a sua própria realização. Considera-se a si mesmo
dono de seu destino, capaz de organizar a procriação
das raças, de adaptar uma filosofia para as suas ne­
cessidades transitórias e de criar uma religião a seu
critério. Postulou a existência de um Poder que
servisse de garantia para a sua auto-realização, como
se Deus fosse um criado para atender aos desejos
do homem e ajudá-lo a tirar o máximo proveito da
sua vida.
Entretanto, mesmo os que bateram a cabeça

83
conílta as grades da prisão descobriram que a vida
está envolvida em conflitos que não conseguem re­
solver, que a ânsia de possuir que enche as ruas,
as casas e os corações é constantemente silenciada
pela ironia do tempo, que as nossas realizações são
minadas pela autodestruição — mesmo esses prefe­
rem viver numa suntuosa, sofisticada dieta dentro
da prisão, a procurar uma saída do labirinto, em
busca de liberdade na escuridão desconhecida.
Mas há outros que não resistem e desesperam.
Não têm mais forças para sustentar a fé, não en­
trevêem mais nenhuma meta pela qual valha a pena
empenhar-se, estão sem forças para procurar um ob­
jetivo. Chega, porém, como um raio, um momento
em que o fulgor do oculto afasta para longe a nossa
apatia. É um instante cheio de um brilho que sub­
juga, é como um ponto em que se concentram to­
dos os momentos ou como um pensamento que su­
pera todos os pensamentos já anteriormente conce­
bidos . Há tanta luz em nossa prisão, em nosso
mundo, que este parece suspenso entre as estrelas.
Inesperadamente a apatia se transforma em esplen­
dor. Num estremecimento inefável infiltra-se na al­
ma. Penetra em nossa consciência como um raio
de luz penetra num lago. A refração desse raio
penetrante produz uma transformação em nossa
mente. Somos penetrados pela sua visão. Não so­
mos mais capazes de pensar que ele está lá e nós
aqui: ele está tanto lá como aqui. Ele não é um
ser, mas ser em todas as coisas e acima d e todas
ela s.
Um tremor invade nossos membros. Nossos
nervos são atingidos e tremem como cordas. Todo
o nosso ser explode em assombro. Eis que então
uma voz, arrancada do nosso íntimo mais profundo,
enche o mundo à nossa volta, como se uma mon­
tanha estivesse a ponto de postar-se diante de nós.

84
É uma palavra: Deus. Não é uma emoção, um im­
pulso dentro de nós, mas um poder, uma maravilha
acima de nós, que separa o mundo de nós. A pa­
lavra que significa mais que o universo, mais que
a eternidade, santo, santo, santo. Somos incapazes
de compreendê-la. Só sabemos que significa infini­
tamente mais do que somos capazes de absorver
e repercutir. Confusos e perturbados balbuciamos:
Aquele que é mais que tudo o que existe, que fala
através do inefável, cuja interrogação é mais do que
podemos responder. Aquele para quem só nossa
vida inteira pode ser a soletração de uma resposta.
Uma inspiração passa, mas o fato de ter sido
inspirado não passa jamais. Permanece como uma
ilha através da agitação do tempo, para a qual nos
voltamos sobre a onda da eterna admiração. Per­
manece uma ansiedade, uma angústia e um senti­
mento de vergonha por sofrermos sempre a corrup­
ção do esquecimento. . .
Podemos dizer não, se decidirmos alimentar
nossa mente com pressupostos e conceitos, agarrar­
mos à duplicidade e recusar a significar o que per­
cebemos, a pensar o que sentimos. Mas não existe
homem algum que pelo menos por um instante não
seja abalado pelo eterno. E se dissermos que não
temos coração para sentir, nem alma para ouvir,
rezemos pedindo lágrimas ou um sentimento de ver­
gonha .

85
10

Dúvidas

Depois, quando o sentido do inefável no ho­


mem entrar em sua fase recessiva e a força invasora
das visões desaparecer, a interrogação eterna apre-
sentar-se-á fora de sintonia em meio aos pensamen­
tos de cobiça e de lugares-comuns.
Na sua honestidade a mente vem cobrar as
suas dúvidas. Será que o encontro com o inefável
em que tomamos conhecimento da existência de
um ser acima do inefável pode ser considerado uma
fonte segura de introspecção? Tal encontro poderia
não ser nada mais que um solilóquio, a introspec­
ção obtida, apenas uma ficção da mente, um produto
da vontade.
Efetivamente, não temos em nosso poder ne­
nhuma credencial com a qual pudéssemos demons­
trar aos outros que a realidade.infinita em que-fo­
mos iniciados não é o simples extravasamento de
nosso coração. Se nem a resposta ao inefável pode
ser demonstrada, muito menos ainda podemos acen­
der a realidade a que respondemos, fazendo com que
a sarça arda com o fogo de Deus para todos os
homens verem.
Ninguém pode atestar a inexistência de Deus
sem cometer perjúrio contra a sua alma. Pois aque­
les que se escondem, que estão sempre ausentes
quando Deus está presente, só têm o direito de

86
apresentar o seu alibi como justificativa de sua in­
capacidade de dar testemunho, .. .
A interrogação suprema na sua forma lógica é
um desafio permanente, que encontramos onde quer
que estejamos e não há maneira de ignorá-la. O
homem não pode deixar de estar comprometido
com uma realidade da qual depende , a significação
e o modo da sua existência. E impelido a alguma
espécie de afirmação. Em qualquer decisão que-to­
ma aceita implicitamente ou a. presença de Deus
ou o absurdo de negá-la. O contra-senso da negação
é demasiadamente monstruoso para ser concebível,
pois implica que todo o universo está só, com ex­
ceção da companhia do homem, que a mente, do
homem supera tudo dentro e além do universo.- A
menos que esqueçamos tudo o que acontece conosco
no incomparável estado da experiência do inefável,
em nosso encantamento sem palavras, quando a
maioria dos nossos conceitos são . eliminados - como
ficções da nossa cabeça e os preconceitos desapa­
recem, não podemos afirmar que o homem tem o
monopólio da mente e da alma, que ele é o único
ser vivo, consciente dentro e além do. universo,
que não há nenhum outro espírito afora o espírito
do homem. Quem está aberto para o inefável guar-
dar-se-á da esquizofrenia espiritual, isto é, da perda
de contato com o mistério da vida que nos circunda
em toda parte e sempre. Por outro lado, quem
afirma a existência de Deus, embora possa ser in­
capaz de defender a consistência epistemológica- do
seu julgamento, permanece coerente com a sua cons­
ciência viva do inefável.
O sentido do inefável é anterior e mais forte
que as dúvidas. As provas lógicas da existência de
Deus são como um anticlímax para aqueles que
foram despertados por aquilo que os conceitos pro­
curam verificar.

87
Tentando provar ou negar a existência de Deus,
assemelhamo-nos a fantoches que, incapazes de saber
para que e como são capazes de dançar, atrevem-se
a opinar sobre se há ou não alguém puxando as
cordas. Aqueles que acham impossível subsistir com
a dieta racional da alma racional não serão capazes
de representar a solene cerimônia de conceder a
Deus um reconhecimento de Jure, depois que sua
existência foi conclusivamente demonstrada e devi­
damente confirmada.
Se a alma não estiver inflamada, nenhuma luz
da especulação poderá iluminar as trevas da indife­
rença. Nenhuma demonstração lógica magistral da
existência de Deus e nenhuma análise dos intricados
conceitos tradicionais de Deus terá bom êxito em
afugentar as trevas. Os homens praticamente desa­
prenderam a arte de ser persuadidos por meio de
abstrações a respeito da realidade última. Rara­
mente a austera dignidade da evidência lógica abs­
trata prevalece sobre as desconfianças da inércia
intelectual. É ingenuidade pensar que foi por causa
da refutação das clássicas provas de Deus por Kant
que o homem perdeu a sua fé. Sua fé estava per­
dida muito antes de começar o seu ceticismo.
As provas podem ajudar a proteger, mas não
a iniciar a certeza. Elas são essencialmente expli­
cações de algo que já nos é intuitivamente claro.
Quem procura a Deus para resolver suas dú­
vidas, para tranqüilizar seu ceticismo ou para satis­
fazer sua curiosidade não encontrará o caminho da
saída. A procura de Deus começa com a compreen­
são de que o homem é que é o problema, de que
mais do que Deus é um problema para o homem,
o homem é um problema para Deus.
Se a divindade fosse uma noção complexa, po­
deríamos suspeitar que se tratasse de um produto
da fantasia, uma combinação de características en-

88
contradas separadamente no mundo e que são ima­
ginadas como existindo juntamente num sér. Mas
o divino como visão primeira é uma realidade que
transcende tanto o poder da mente como a ordem
do mundo e não uma composição de características
encontradas no mundo.
O divino é demasiadamente inefável para ser
um produto da mente humana, demasiadamente gra­
ve, exigente e sobrepujante para ser postulado por
um pensamento que deseja que sèja verdade aquilo
em que acredita. Donde se originaria essa consciên­
cia do ser absolutamente insuperável se não de uma
visão inderivável na sua total insuperabilidade? Mas
pode-se perguntar: não acalentamos, muitas vezes,
crenças que depois verificamos serem ilusões? Sim.
Podemos pensar que estamos vendo uma casa quan­
do andamos de carro através do deserto e ao tentar
aproximar-nos dela verificamos que se trata de uma
miragem. Mas não poderíamos pensar que um qua­
dro representa uma casa se não existisse uma reali­
dade que é uma casa 11.
A objeção mais fundamental à crença na exis­
tência de Deus é o argumento de que tal crença
passa dos dados da mente para algo que supera o
alcance da mente. O que nos dá garantia de que
uma idéia que nós julgamos obrigados a pensar é
verdadeira com relação a uma realidade que se en­
contra além do alcance da mente? Tal objeção é vá­
lida quando feita sob o aspecto especulativo. Mas,
como vimos, a certeza da existência de Deus não
surge como um corolário de premissas lógicas, como
um salto do reino da lógica para o reino da onto­
logia, de uma hipótese para um fato. É, pelo con­
trário, a transição de uma apreensão direta para um

4 C f. Collected Papers de C h . S. P e ir c e , 6 .4 9 3 .

89
pensamento, do fato de uma subjugação pela pre­
sença de Deus para uma consciência da sua essência.
Percebendo a dimensão espiritual de todos os
seres, tomamos consciência da realidade absoluta do
divino. Ao formular um credo, ao afirmar que Deus
existe, apenas reduzimos a realidade suprema ao
nível do pensamento. Nossa fé é só uma reflexão
posterior.
Em outras palavras, nossa fé na realidade de
Deus não consiste em possuir primeiro uma idéia
e , depois postular o seu correspondente ontológico.
Ou, para usar uma frase kantiana, em ter a idéia
de cem cruzeiros e depois afirmar que se tem os
mesmos com base na idéia. O que ocorre aqui é
primeiro a posse real dos cruzeiros e depois a ten­
tativa de contá-los. Há possibilidade de erros na
contagem das notas, mas as notas existem.
A fase decisiva, a transição do esquecimento
para üma consciência de Deus, não é um salto por
sobre um elo faltante num silogismo, mas uma re­
tirada em que se deixa de lado as premissas ao
invés de acrescentar mais uma, em que se avança
para além da autoconsciência e se interroga o eu
e todas as suas pretensões cognocitivas.
Não temos forças para chegar ao clímax do
pensamento, não temos asas para nos alçarmos sobre
todos os perigos de distorção. Mas, às vezes, esta­
mos inflamados contra e acima das nossas próprias
forças e a menos que a existência humana deva ser
considerada um asilo de loucos, a análise espectral
desse raio é evidência para aqueles que o procuram.

90
11

A fé

A fé em um atalho

Já muitas vezes, os homens apresentaram mo­


tivos discriminados por que devem crer que Deus
existe. Esses motivos são como trigo maduro que
colhemos na superfície da terra. Mas é além de
todas as razões, abaixo do solo, r%ue a semente se
transforma em árvore, que o ato de fé se origina.
Raramente a alma sabe como elevar seus se­
gredos mais profundos aos níveis discursivos da
mente. Por isso não devemos equiparar o ato de
fé com a sua expressão. A expressão da fé é uma
afirmação de verdade, um juízo definitivo, uma con­
vicção, enquanto a fé em si é um ato, algo que
acontece e não algo que se guarda. É um momento
em que a alma do homem comunga com a glória
de Deus.
Qual é a natureza deste ato? Como surge?
A pergunta do salmista — “Há algum homem
de razão que procure a D eus?” (1 4 ,2 ) — foi assim
interpretada pelo Rabi Mendel de Kotzk: Um ho­
mem que não tem nada mais que- a sua própria
razão é capaz de procurar a Deus?
Muitos de nós estão dispostos a embarcar em
qualquer aventura, exceto entrar em silêncio e es­
perar. Colocar toda a sabedoria no segredo do
solo, semear nossa própria alma como semente nesse

91
pedaço de terra dada a cada vida que chamamos
tempo — é deixar a alma crescer além de si pró­
pria. A fé é o fruto de uma semente plantada
nas profundezas da duração de uma vida.
Muitos de nós parecem pensar que a fé é um
bom atalho para se chegar ao mistério de Deus,
encurtando a interminável e vacilante estrada da
especulação crítica. A verdade é que a fé não é
um caminho, mas a abertura de um caminho, da
passagem da alma que deve ser constantemente es­
cavado através das montanhas da indiferença. A
fé tampouco é um presente que recebemos imere­
cidamente .
Não encontramos as coisas feitas. A fé é o
frulo de uma preocupação e uma vigilância penosa
e constante, da persistência em permanecer fiel a
uma visão. Não é um ato de inércia, mas um anseio
de manter viva nossa resposta a ele.
Assim como os homens são incapazes de notar
os fenômenos mais óbvios da natureza se não esti­
verem interessados em conhecê-los, assim como não
terão nenhuma introspecção científica aqueles que
não estiverem preparados, da mesma forma são in­
capazes de perceber o divino se não se tornam sen­
síveis ao seu valor supremo. Sem a pureza da von­
tade a mente não oferece passagem para a impor­
tância de Deus.

Caminhos da fé

A fé nasce naquele que suspira apaixonadamen­


te pelo sentido supremo das coisas, que está atento
à sublime dignidade do ser, que é sensível à mara­
vilha da matéria, ao insuspeitado núcleo que existe
dentro do conhecido, do evidente, do concreto.
Para perceber o que é tão esmagadoramente

92
óbvio para o homem piedoso devemos suspender as
trivialidades do pensamento, deixar de ridicularizar
as percepções únicas e de sufocar nossas mentes
com noções estandardizadas. O maior obstáculo à
fé é a tendência de contentar-nos com meias ver­
dades e meias realidades. A fé é dada só àquele
que vive com toda a sua mente e com toda a sua
alma, que procura compreender com todos os seres
e não busca apenas um conhecimento a respeito de­
les, àquele cuja preocupação permanente é cultivar
nosso senso incomum, a educação do sentido do
inefável5. A fé é encontrada na solicitude pela fé,
na atenção apaixonada ao maravilhoso que existe
em toda parte.
Como a primeira na lista das virtudes, essa
ardente preocupação estende-se não só à esfera mo­
ral, mas a todos os domínios da vida: a nós mesmos
e aos outros, às palavras e aos pensamentos, aos
acontecimentos e às ações. Sem se acovardar com
a predominante estreiteza da mente, persiste como
uma atitude que se relaciona com toda a realidade:
dá valor às pequenas coisas, leva a sério os assun­
tos simples, relaciona as questões cotidianas com o
eterno. Não é uma atitude de afastamento da rea­
lidade, de absorção passiva ou de auto-aniquilamen-
to. É, sim, a capacidade de testemunhar o que é
sagrado em meio aos negócios deste mundo e de
alimentar um sentimento de vergonha e desconten­
tamento de viver sem fé, sem corresponder ao sa­
grado .

5 “ É da natureza daquilo que é evidente por si mes­


mo não ser evidente a toda mente, mesmo a menos desen­
volvida, mas ser apreendido diretamente só por mentes que
alcançaram certo grau de maturidade. E para que as men­
tes atinjam o necessário grau de maturidade, o desenvol­
vimento que se verifica de uma geração a outra é tão im­
prescindível como o que se realiza da infância para a vida
adulta” . W. D . Ross — The Rigbt and the Good, p. 12.

93
Estranhas e diversas são as fontes das quais
nasce nossa insatisfação. Alguns de nós sofrem a
tristeza de viver constantemente por ninharias, sen­
tem medo de uma morte desprevenida. Outros vi­
vem angustiados pela maneira como a inocência
nos . nossos próprios membros e palavras se encontra
exposta à crueldade e temeridade das nossas pró­
prias forças. Outros há que sentem o encanto da
santidade de viver para as suas leis. Ao invés de
entregar-se à inveja e à ambição, ao invés de com­
prazer-se em si mesmos, resolvem manter seus cora­
ções vigilantes para o aspecto de alusão que nos
circunda em toda parte.
Preferindo a bondade à beleza, o amor à força,
á gratidão à tristeza, suplicando o Senhor para que
nos ajude a compreender nossas esperanças, força
para resistir aos nossos temores, podemos receber
um suave sentido da santidade que impregna o ar
como algo estranho que não se pode eliminar. Sus­
pirando e implorando a pureza da devoção em meio
aos escolhos da auto-indulgência, estaremos prepa^
rando a aurora da fé.
Alguns homens entram em greve de fome na
prisão da mente, famintos que estão de Deus. Há
uma felicidade, antiga e nova, nesta fome. A re­
compensa do ardente sonho que rompe as barras
da prisão do pensamento é a percepção do intan­
gível .

Alguns de nós se enrubescem

Deus não deseja ficar só e o homem não pode


ficar sempre fechado ao que ele deseja mostrar.
Aqueles de nós que não conseguem resistir encon-
tram-se às vezes diante da visão do invisível e co­
meçam a arder com os seus raios. Alguns de nós

94
enrubescem, outros se cobrem com sua máscara..
A fé é um enrubescer-se na presença de Deus.
Alguns ruborizam, outros se cobrem com uma
máscara que impede a sensibilidade espontânea para
a dimensão santa e inefável da realidade. Todos
nós nos cobrimos com tanta maquilagem que o
nosso rosto quase desaparece. Mas a fé só vem
quando nos encontramos face a face — o inefável
dentro de nós com o inefável além de nós — quan­
do permitimos ser vistos, quando .nos dispomos, a
comungar, a receber um raio e reflèti-lo. Para isso.
a alma deve estar viva dentro da mente.
A resposta a Deus não pode ser copiada. Deve
ser original de cada alma. Nem o sentido do divina
é percebido quando imposto por uma doutrina, quan­
do aceito por ouvir dizer. Só entra no campo de
nossa visão ao saltar como uma faísca da bigorna
da mente, malhada e batida pelo temor, da reve*
rência.
Aqueles que o procuram por meio da abstração
não o encontrarão. Ele não é uma pérola perdida
no fundo da mente, que se encontra mergulhando,
nas ondas dos argumentos. O maior não é. jamais,
aquilo que se espera.
É justamente na nossa incapacidade de com­
preendê-lo que dele mais nos aproximamos. A exis­
tência de Deus não é real por ser concebível. Elá
é concebível porque é real. E ela é real para quem
aprende a .viver em tremor e temor sem nenhuma,
intenção, sem nenhum propósito de recompensa,
para quem vive em tremor e temor porque não
pode comportar-se de outra maneira, para quem
vive na consciência do inefável, mesmo que este
pareça louco, fútil e inconveniente.
Pensar a respeito de Deus como um “hobby”,
numa ocupação de tempo parcial, torna impossível
até a colocação do problema. Com efeito, qual é

95
a questão que nos ocupa? Uma curiosidade seme­
lhante à da indagação a respeito da natureza da
eletrônica? A eletrônica não nos pergunta nada,
enquanto o começo da significação de Deus é a
consciência da nossa dependência dele.
Deus não é uma explicação dos enigmas do
mundo ou uma garantia da nossa salvação. É um
eterno desafio, uma interrogação que nos urge.
Não é um problema a ser resolvido, mas uma
interrogação dirigida a nós como indivíduos, como
nações, como humanidade.
Deus não terá nenhuma importância se não
for da máxima importância, o que significa uma
profunda certeza de que é melhor ser derrotado
com ele que ser vitorioso sem ele.

A prova da fé

O homem que vive segundo a sua fé é aquele


que — mesmo que os sábios de todo o mundo
proclamassem, que a humanidade por uma esmaga­
dora maioria de votos endossasse e as experiências,
que às vezes se adaptam às teorias favoritas dos
homens, confirmassem que Deus não existe — pre­
feriria sofrer nas mãos da razão a aceitar a sua pró­
pria razão como íJo lo . Aquele que, embora sofren­
do, não vacila nem trai a dignidade do seu sentido
de inadequação na presença do inefável. Pois a
fé é um penhor qu? conservamos até a hora de
passarmos para o além, que não será resgatada por
nenhuma doutrina nem cedida em troca de compre-
ensões. O que significa Deus, está expresso nas pa­
lavras: “Porque a tua bondade é melhor que a vida”
(Salmos 6 3 ,4 ). Deus é aquele cujo olhar prezo
mais que a própria vida.
Não se capta a fé observando os acontecimen­

96
tos do mundo físico que se desviam das leis conhe­
cidas da natureza. De que servem milagres se nos­
sos sentidos não oferecem segurança, se nossos co­
nhecimento é incompleto? A fé precede toda ex­
periência palpável ao invés de derivar-se dela. Sem
a posse da fé nenhuma experiência nos comunicará
uma significação religiosa.
No Cântico dos Cânticos está escrito: “Como
uma macieira em meio às árvores do bosque” (2 ,3 ).
O Rabi Aha Ben Zeira fez essa çomparação: “As
flores da macieira brotam antes das folhas; assim
Israel no Egito produziu a fé antes mesmo de ha­
ver percebido a mensagem da redenção, conforme
está dito: “E o povo acreditou e ouviu que o Se­
nhor tinha se lembrado dele” . (Ê x 4,31) (Mi-
drash Hazita 2 ,1 0 ) 6 .
%
6 Midrash (singular) ou Midrashim (plu ral), do verbo
hebraico darash que significa investigar, interpretar, são in­
terpretações ou comentários sobre os livros da B íblia feitos
geralmente pelos rabinos e hoje reunidos em várias coleções.
A época em que se desenvolveram e foram compilados
cobre um período que se estende desde a conclusão do An­
tigo Testam ento até cerca do ano mil da nossa era. E ntre­
tanto, já encontramos formas de midrash nos últimos livros
do Antigo Testamento, por exemplo, em Ezequiel. Em o N o­
vo Testamento temos o chamado midrash cristão, com parti­
cular freqüência no Evangelho de são M ateus, nas E pístolas
e na pregação cristã cristalizada nos Atos dos A póstolos.
O s midrashim judaicos dividem-se em duas categorias: 1)
os halákhicos (d o radical hebraico halakh = caminhar e
deste o substantivo halakha — caminho, norm a), que são
interpretações e explicações de caráter legal e jurídico; 2)
os haggãdicos (do verbo hebraico nagadh = narrar, expli­
car, donde o substantivo haggada = narração, exposição),
que são interpretações e explicações da Bíblia com o obje­
tivo de edificação moral e espiritual, que contêm, muitas
vezes, elementos alegóricos e até partes legendárias. Entre
os primeiros enumeram-se: Mekhilta (regra) sobre o Ê xodo,
Sifra (o livro) sobre o Levítico e Sifre (os livros) sobre
N úm eros e D euteronôm io. D a segunda categoria os mais
importantes são: o Midrash Rabba (o grande) sobre todo

97
7 - O homem não está só
Uma frase de Rabi Isaac Meir de G e r7 ilus­
tra o que queremos dizer. Comentando o versículo:
“E Israel viu a grande obra que o Senhor tinha
realizado contra os egípcios e o povo temeu o Se­
nhor e teve fé no Senhor e no seu servo Moisés”
(Ê x 1 4 ,3 1 ), observou: “Embora tivessem visto os
milagres com seus próprios olhos, ainda precisavam
de fé, porque a fé é superior à visão. Com a fé
vê-se mais que com os olhos” .

Um ato do espírito

Na luz da fé não procuramos descobrir ou ex­


plicar, mas perceber e absorver as raridades do mis­
tério que transparecem de todas as coisas, não pro­
curamos conhecer mais, mas estar unidos àquilo
que é mais que tudo o que possamos compreender.
Só aqueles que julgam que todas as coisas na vida
e na morte estão ao alcance da sua vontade, tentam
enquadrar o mundo dentro do seu conhecimento.
Mas quem pode permanecer indefinidamente insen­
sível à fragrância do sagrado derramado na vida?
Com seu delicado sentido do divino em toda
existência, do valor sagrado de todo ser, o homem
piedoso pode renunciar ao prazer de conhecer, à
emoção da percepção. Aquele que ama a grandeza
do que a fé revela fica à distância da sua meta, evita
procurar familiaridade com o que é necessariamente

o Pentateuco e os cinco rolos, isto é, Cântico, Rute, L a­


mentações, Eclesiastes e E ster, os Tanhuma Midrashim,
que incluem muitas homilias do rabi Tanhuma do IV sé­
culo, os Vesikta Midrashim. O Midrash Hazita citado no
texto é um comentário sobre o Cântico dos Cânticos, sendo
também conhecido sob o títu lo Shir-ha-Shirim Rabba. (N .
do T . ) .
7 Rabino hassídico da Polônia. (N . do T . ) .
oculto e não busca provas nem milagres. A exis­
tência de Deus nunca poderá ser provada pelo pen­
samento humano. Todas as provas são meras de­
monstrações da nossa sede dele. Acaso um homem
sedento tem necessidade de uma prova da sua sede?
O reino para o qual está orientada a nossa fé
pode ser avizinhado, mas não penetrado. Dele nos
podemos aproximar, mas não podemos entrar nele.
Podemos desejá-lo, mas não captá-lo. Podemos sen­
ti-lo, mas não examiná-lo. Pois tei^fé é ficar racio­
nalmente do lado de fora e espiritualmente dentro
do mistério.
A fé é um ato do espírito. O espírito tem
poder de reconhecer a superioridade do divino.
Tem força para perceber a grandeza do transcen­
dente, para amar a sua superioridade. O homem
de fé não se deixa seduzir pelo que é ostensivo.
Abstém-se da arrogância intelectual e despreza o
triunfo do que é meramente óbvio. Sabe que pos­
suir a verdade é ter devoção a ela. Alegrando-se
mais em dar que em adquirir, mais em crer que
em perceber, pode deixar de lado as deficiências
da razão. Este é o segredo do espírito, que não
é revelado à razão: a adaptação da mente ao que
é sagrado, a humildade intelectual em presença do
supremo. A mente rende-se ao mistério do espírito
não por resignação, mas por amor. Entregando seu
destino à realidade última, entra em íntima relação
com Deus.
Confiar é render-se? Crer é um sacrifício?
É bem verdade que as crenças não estão garantidas
por uma demonstração nem são inexpugnáveis por
objeções. Mas acaso bondade significa servir só en­
quanto houver recompensa? É mais fácil abalar tor­
res que sepulturas. A dúvida, a contestação e a
frustração insistente pode transformar templos em
ruínas. Os homens de fé que plantam pensamentos

99
sagrados nos planaltos do tempo — os jardineiros
secretos do Senhor em meio à humanidade desolada
de esperanças — podem ser sacudidos e hesitar,
mas raramente trairão sua vocação.
É extremamente fácil ser cínico. É tão fácil
negar sua existência como o é cometer suicídio.
Mas ninguém está privado de alguma medida de
sugestionabilidade em relação ao Santo.
Até as almas mais pobres têm asas que as
elevam acima de onde o desespero vê o teto de
uma prisão.

'tu tu ?

100
12
O que entendemos por divino

O perigo das palavras

O grande segredo parece não ter nenhuma afi­


nidade com doutrinas de qualquer espécie que se­
jam. Dificilmente haverá um símbolo que, quando
usado, não diminua ou mesmo destrua a compreen­
são ou recordação do incomparável. As opiniões
confundem e dificultam as intuições. As análises
e definições tomam o nome de Deus em vão. Não
temos nem imagem nem definição de Deus. Pos­
suímos somente o seu nome. E o nome é ine­
fável .
Por isso o homem piedoso não se distingue
pela paixão de exprimir em palavras aquilo que co­
nhece, consciente que está do perigo de desperdiçar
irrecuperavelmente a parte melhor. Expressando-nos
deixamos sair algo de que estamos repletos, e o
homem piedoso deseja viver essa realidade ao invés
de livrar-se dela. A eloqüência é uma qualidade rara
nos santos. Também é natural que a expressão
da realidade mais profunda seja tridimensional, sen­
do que a sua significação literal simplesmente reflete
a superfície daquilo que a expressão tenta trans­
mitir .
Se um poeta e um homem piedoso se referis­
sem um ao outro, o poeta poderia dizer: “Expresso

101
tudb o que ele vive”, e o homem piedoso: “Tudo
o que ele expressa eu vivo” .
O teórico, em vez de colocar-se face a face
diante dos mistérios, coloca seus espelhos mentais
diante dele, transformando os mistérios em mitos,
reduzindo os enigmas a dogmas e colocando a ima­
gem nos espelhos. Parece não perceber que a idea­
lização das idéias leva a uma atrofia da intuição do
inefável; que podemos perder a Deus em nosso
credo, em nossas palavras, em nossos dogmas.
Vale a pena gastar uma vida inteira para dizer
como nossos pensamentos descobrem a pátina do
sagrado na superfície do que é comum. Mas os
pensamentos em que possa ser identificada tal des­
coberta são raros e as palavras mais vitais morrem
quando pronunciadas. E por isso que Deus começa
onde terminam as palavras.
Mas ninguém pode viver só do mistério. A
consciência do inefável assemelha-se ao escutar de
uma interrogação de um pedido. Solicita-se algo de
nós. O quê? Somos impelidos a conhecer a Deus
para conformar-nos aos seus caminhos. Mas para
conhecê-lo teríamos que chegar quase ao impossível:
traduzir o inefável em termos positivos. Surge,
assim, o problema: se para ser conhecido o ine­
fável tem que ser expresso, não se segue daqui que
o conhecemos como ele não é?
As compreensões da religião precisam percor­
rer uma longa distância até chegar à expressão e
facilmente podem definhar ou até morrer no ca­
minho que medeia entre o coração e os lábios.
Nossa consciência é imediata, mas nossas interpre­
tações são discursivas. Muitas vezes ocorrem aci­
dentes no tráfego congestionado da alma, particu­
larmente quando sob o esforço de perceber mais que
o coração é capaz de ouvir, fazemos compromissos
com palavras que nos desviam do caminho.

102
A intuição de Deus é universal. Entretanto,
dificilmente haverá uma forma universal ■ — com
poucas possíveis exceções — de expressá-la. Efe­
tivamente, as concepções sobre a divindade têm apre­
sentado, através da história, muitas divergências e
contradições entre si, desenvolvendo-se às vezes co­
mo erva daninha, sendo causa de espinhos e discór­
dias. Se a uniformidade e a impecabilidade de ex­
pressão fossem a marca da autenticidade, essa di­
vergência e distorção refutaria nossa suposição da
realidade do mistério. Mas o fato é que as opiniões
dos homens sobre Deus através da história não
apresentam maior variedade, que, por exemplo, suas
opiniões acerca da natureza do mundo.

Padrões de expressão

Devemos tomar cuidado para não violar o sa­


grado, a fim de que nossos dogmas não sufoquem
o mistério e nossos salmos não o afastem com suas
palavras. O direito de interpretação só é dado a
quem vela o seu rosto, “com medo de olhar para
Deus”, àquele que quando a visão se lhe impõe,
diz: “Estou perdido porque meus olhos viram o
R ei” . Só podemos beber a torrente dos pensamen­
tos sorvendo-os da rocha das suas palavras. Só pa­
lavras que não seriam triviais na presença de um
homem agonizante, só idéias que não empalidece­
riam diante do sol nascente ou em meio a um vio­
lento terremoto: “Deus é um Um” ou “Santo, San­
to, Santo é o Senhor dos Exércitos” . . . podem ser
usadas como metáforas quando se fala de Deus.
O inefável só entra numa palavra da mesma
maneira como a próxima hora entra no caminho do
tempo: quando não houver outras horas no cami­
nho. Falará quando de todas as palavras só uma

103
for digna. Pois o mistério não é sempre evasivo.
Em raros momentos entrega-se àqueles que foram
escolhidos. Não podemos expressar Deus, mas Deus
nos expressa a sua vontade.
É através da sua palavra que sabemos que
Deus não está além do bem e do mal. Não fosse
a orientação recebida, nossa emoção nos deixaria
num estado de confusão.

O que entendemos por divino?

Como identificamos o divino? Para o reconhe­


cermos deveríamos conhecê-lo. Mas se nosso conhe­
cimento dependesse de atos de uma comunicação
divina, nunca seríamos capazes de identificar tal co­
municação como divina.
Além disso, uma idéia não se torna válida ou
digna de fé por causa das circunstâncias em que
entra em nossa mente. Nunca podemos defender
uma verdade em nome das dores de parto em que
nasceu. Qualquer mensagem que se apresenta como
divina deve apoiar-se em si mesma e estar impreg­
nada de uma significação única que a identifique
como divina. Se aparecesse uma pessoa entre nós
e anunciasse uma idéia que lhe foi comunicada de
maneira miraculosa e nossos exames críticos até con­
firmassem a maneira divina da sua experiência, sen­
tir-nos-íamos por isso obrigados a aceitar a sua idéia
como válida e verdadeira?
E não seria melhor a sorte da nossa própria
experiência interior. É necessário que tenhamos uma
idéia a priori do divino, uma qualidade ou relação
que nos represente a realidade última, pela qual
sejamos capazes de identificá-la quando nos for
dada em tais atos.
A necessidade forçada não é uma marca do

104
altíssimo. Tampouco nosso sentimento ou estado
de absoluta dependência constitui um índice da sua
presença. A força física ou as obsessões internas
podem subjugar-nos numa coação irresistível. Co­
mo já foi dito muitas vezes, o sobrevivente de um
naufrágio, que se agarra a uma tábua flutuante, en­
contra-se num estado de absoluta dependência da
tábua.
Não se pode empreender nenhuma pesquisa
sem alguma pressuposição ou perspçctiva donde par­
tir. O cientista ao formular um problema deve
até certo ponto antecipar o conteúdo da solução
que procura, pois de outra forma não saberia o
que está indagando nem seria capaz de julgar se
as soluções que encontrar são pertinentes ao seu
problema. A filosofia foi definida como uma ciên­
cia com um mínimo de pressuposições, pois não há
maneira de progredir em nossos pensamentos sem
alguma perspectiva, sem alguma suposição inicial.
Essa suposição inicial encontra-se no começo
de toda especulação acerca de Deus. Para a mente
especulativa Deus é o ser mais perfeito. O atri­
buto da perfeição e sua implicação de sabedoria
serve de ponto de partida para as indagações a
respeito da existência e da natureza de Deus.

O atributo da perfeição

A noção de Deus como um ser perfeito não


é de origem bíblica. Não é produto da religião
profética, mas da filosofia grega. É um postulado
da razão e não uma resposta direta, obrigatória, ini­
cial do homem à sua realidade. No decálogo Deus
não diz que ele é perfeito, mas que transformou
escravos em homens livres. Significando um estado
sem defeito e sem falha, perfeição é um termo de

105
louytor que podemos usar ao darmos vazão à nossa
emoção. Mas empregar esta palavra como nome de
sua essência significaria para o homem avaliá-lo e
confirmá-lo. A linguagem bíblica está livre de tal
insolência. Esta só ousou chamar de tamim, per­
feita, a “Sua obra” (D t 3 2 ,4 ), “Seus caminhos”
(2Sam 22,31) ou a “L ei” (Sl 1 9 ,7 ). Em lugar
algum lemos: “Ouve, Israel, Deus é perfeito!” É
um atributo notadamente ausente, tanto na litera­
tura bíblica, como na rabínica.
Quem somos nós para glorificá-lo ou mesmo
para nomeá-lo? Entre nós nunca se pronuncia o
Nome Inefável e em lugar dele usamos uma pará­
frase — o Senhor — que, em nosso vocabulário é
um título de distinção menor. Isso, segundo o
Rabi Pinchas de Koretz, não porque sua majestade
seja limitada, mas porque nosso mundo é de impor­
tância menor. Um grande imperador tem, entre ou­
tras denominações, o título de “soberano” de certa
ilha. Esse título é de menor valor porque a ilha
é pequena8. Mas há uma idéia que transporta nos­
sos pensamentos além do horizonte da nossa ilha.
Uma idéia que se dirige a todas as mentes e é taci­
tamente aceita como um axioma pela ciência e
como um dogma pela religião monoteísta. É a idéia
do uno. Todo conhecimento e compreensão se ba­
seia na sua validade. Não obstante as profundas
diferenças daquilo que descreve e significa nos vá­
rios campos do pensamento humano, há muita coisa
comum e de recíproca importância.

8 Nofet Zujim, 22. (R abino hassídico do século pas­


sado . (N . do T . ).

106
A idéia do universo

A perspectiva da qual dependemos na ciência


e na filosofia, apesar de toda a especialização e me­
ticulosidade no estudo dos pormenores, é uma visão
do todo, sem a qual nosso conhecimento seria como
um livro composto exclusivamente de iotas. As­
sim, todas as ciências e filosofias têm um axioma
em comum: o axioma da unidade de tudo o que
é, foi e será. Todas supõem que as coisas não es­
tão inteiramente divorciadas e indiferentes, umas
em relação às outras, mas sujeitas a leis universais
e que, pela sua interação ou, como diz Lotze, pela
sua “relação simpática” formam um universo. Mas
a possibilidade de sua mútua interação está condi­
cionada à unidade que pervade a todas as coisas.
O mundo não pode existir senãè» como um. Sem
unidade não seria um cosmos, mas um caos, uma
aglomeração de possibilidades indefinidas.
Os expoentes do pluralismo, ao afirmar que
“a realidade é constituída de um número de entes
relativamente independentes, cada um dos quais
existe até certo ponto por si mesmo”, parecem
negar a unidade fundamental e o universo como
um todo. Mas enquanto põem em dúvida que essa
unidade seja absoluta e penetre tudo a ponto de
excluir o acaso e as indeterminações, são obrigados
a complementar a hipótese pluralística por um prin­
cípio de unidade para explicar a interação dos entes
independentes e aquilo que faz da realidade um
mundo 9.
A teoria da relatividade não contradiz a dou­
trina da constância e da unidade da natureza. Mos­
trando que a simultaneidade de dois processos é

9 C f. C . A . R i c h a r d s o n , Spiritual Realism and Recení


Philosophy, p p . 82s.

107
relativa e que as grandezas são determinadas pelo
sistema de referência em que são medidas, sua fi­
nalidade é encontrar novas invariáveis, descrevendo
a realidade de uma maneira que seja independente
da escolha do sistema de referência. Não exclui o
princípio de unidade, mas, pelo contrário, procura
“satisfazer a uma nova e mais estrita exigência de
unidade” 10.
Se é impossível seguir o caminho mediante o
qual o grande segredo da unidade que tudo abrange
chegou até nossas mentes, é certo que não foi obti­
do por mera percepção dos sentidos ou por meio
de uma mente que pensou em prestações, através
de uma série de graus distintos, cada qual logica­
mente dependente do anterior. Aquilo a que se re­
fere a idéia do universo transcende o alcance da per­
cepção ou a extensão de qualquer premissa possível,
incluindo coisas conhecidas e desconhecidas, origens
e fins, fatos e possibilidades, o passado pré-histórico
e o futuro distante, fenômenos já descritos por
Newton e fenômenos que serão observados daqui
a mil anos. A idéia do universo é uma introspecção
metafísica.

Fraternidade cósmica

A intuição desta unidade, que tudo penetra,


muitas vezes produz no homem a sensação de viver
em fraternidade cósmica com todos os seres. Da
consciência da unidade da natureza nasce freqüen­
temente a emoção de ser um com a natureza.

1° E r n s t C a s s ir e r , Substance and Function and Eins­


tein's Theory of Relativity. C h icag o , 1923, p p . 373s.

108
“Sou o olho com o qual o Universo
Se vê a si mesmo e se sabe divino”
(Shelley, “Hino de Apoio” V I, l s ) .

Há uma profunda significação filosófica nesta


piedade cósmica. O conhecimento só é possível por
causa da afinidade entre conhecedor e conhecido,
porque a inteligência do homem parece correspon­
der à inteligibilidade do mundo. Mas acima e além
disso há outra afinidade: a afinidade do ser. Todos
nós — homens, estrelas, flores, pássaros — pertence­
mos ao mesmo elenco representando o mesmo dra­
ma inexplicável. Todos nós temos um mistério em
comum — o mistério do ser.
Mas seremos todos um quanto à finalidade?
Todos temos em comum o ser e até o sofrimento
e a luta pela existência. Mas têfiemos em comum
também os objetivos e compromissos? A posição
do homem na natureza é demasiadamente distinta
para justificar a idéia de que a sua vocação deve
conformar-se aos seus caminhos ou identificar-se
com a sua essência.

O reino do ser e o reino dos valores

A idéia da unidade da qual a piedade cósmica


deriva a sua inspiração é uma meia-verdade. As
coisas da natureza podem constituir uma unidade,
mas o reino dos valores parece oscilar entre o bem
e o mal e em muitas outras direções. A história
não é menos nosso ambiente que a natureza, e os
conflitos que dentro dela se travam assemelham-se
mais a um permanente estado de guerra entre dois
princípios hostis que a uma esfera de harmonia.
É realmente uma tentação espiritual meditar sobre
a fraternidade cósmica de todos os seres ou entre­

109
gar-nos de uma vez por todas ao espírito do todo.
É suspeitosamente mais fácil sentir-se um com a
natureza que sentir-se um com cada homem: com
o selvagem, com o leproso, com o escravo. Aqueles
que sabem que ser um com o todo significa existir
para cada parte do todo, procurarão amar não só
a humanidade, mas também o homem individual
como se fosse todos os homens. Quando nos deci­
dimos a servir aqui e agora, descobrimos que a
visão da unidade abstrata desaparece da vista como
um raio e o que permanece são as trevas de uma
noite chuvosa, em que devemos lutar com suor e
lágrimas contra a escravidão para produzir um raio
de claridade, para acender uma tocha.
Os politeístas são cegos para a unidade que
transcende um mundo de multiplicidade, enquanto
os monistas esquecem multiplicidade de um mundo
cuja abundância e desarmonia encontramos para on­
de quer que nos voltemos. O monismo é um tear
de ilusões. A vida é intrincada, encarniçada e ins­
tável. Não podemos ficar coerentes com todos os
objetivos. Constantemente somos obrigados a fazer
uma opção e a opção por uma coisa significa uma
renúncia a outra.
Ainda que se admita a sua validade, a idéia
de uma harmonia universal da natureza, de uma
concórdia geral nas relações da parte para com o
todo, é destituída de valor para os problemas ime­
diatos da vida. Por mais intrincada, sábia e pró­
diga de beleza que seja a natureza, nós, em nossa
confusão humana, somos incapazes de traduzir suas
leis gerais para a linguagem das decisões individuais,
pois decidir significa transcender e não seguir o pa­
drão das leis naturais. As normas da vida espiritual
constituem um desafio para a natureza e não uma
parte da natureza. Há uma discrepância entre o
ser e o espírito, entre os fatos e as normas, entre o

110
que é e o que deve ser. A natureza tem pouca con­
sideração para com as normas espirituais e muitas
vezes é insensível, se não hostil, aos nossos em-
penhos morais.
O homem é mais que razão. O homem é vida.
Defrontar-se com a interrogação que tudo abrange,
é defrontar-se com algo que é mais que um prin­
cípio, mais que um problema teórico. Um prin­
cípio é algo que o homem pode conceber ou con­
verter num objeto da sua mente, Mas diante da
interrogação suprema o homem sé sente chamado
e desafiado para além das palavras nas profundezas
da sua existência. Não se trata de um problema
que ele compreende, mas do fato de estar exposto
a um conhecimento que o compreende a ele. De
que vale, então, o conhecimento de princípios, dos
princípios matemáticos?

O uno não é Deus

Deus é uno, mas o uno não é Deus. Há entre


alguns de nós a tendência de divinizar a única força
ou lei suprema que regula todos os fenômenos da
natureza, da mesma maneira como os povos primi­
tivos divinizaram as estrelas. Mas referir-se à lei
suprema da natureza como sendo Deus, ou dizer
que o mundo surgiu em virtude da sua própria
energia é dar o problema como provado.
O problema fundamental não é qual a lei que
explica a interação dos fenômenos do universo, mas
por que há uma lei, por que há um universo. O
conteúdo e a operação da lei universal pode ser
concebido e descrito, mas o fato da existência de
tal lei não faz perder o seu caráter inefável pelo
conhecimento que possamos alcançar acerca da sua
operação.

111
Instilar explicações científicas da natureza nu­
ma alma que vive o sagrado temor do inefável é
como plantar flores artificiais no meio das flores
de um jardim. A não ser que neguemos o que sen­
timos, que sucumbamos ao narcisismo intelectual,
como podemos considerar o que conhecemos como
sendo a realidade suprema?
Conforme já dissemos acima, não é a ordem
e a sabedoria da natureza que são manifestos no
tempo e no espaço, mas dentro de toda ordem e
sabedoria a indicação daquilo que as transcende, do
que está além do tempo e do espaço, que nos co­
munica a consciência dos problemas supremos. O
mundo está repleto dessa indicação. Para onde quer
que nos voltemos encontramos o inefável, mas os
nossos sentidos são muito fracos e insuficientes para
captá-lo. Se o universo é uma imensa alusão e
nossa vida interior uma citação anônima, a desco­
berta de uma lei universal que dominasse a reali­
dade empírica não responderia à nossa interrogação
essencial. O problema último não é um problema
de sintaxe, de entender como as várias partes da
natureza são colocadas e dispostas nas suas relações
mútuas. O problema é: o que é que representa a
realidade, a unidade? Descrevemos as leis univer­
sais por meio das relações dentro do dado, do co­
nhecido. Mas diar.te da questão última somos leva­
dos para além do conhecido, à presença do divino.
Da pluralidade empírica dos fatos e valores,
não podemos deduzir um plano que domina tanto
o reino dos fatos como o domínio das normas, tanto
a natureza como a história. Só no espelho da uni­
dade divina podemos contemplar a unidade de tudo:
da necessidade e da liberdade, da lei e do amor.
Só ela nos dá uma introspecção na unidade que
transcende todos os conflitos, a fraternidade da es­
perança e da tristeza, da alegria e do medo, da torre

112
e da sepultura, do bem e do mal. A unidade como
um conceito científico é só um reflexo de uma idéia
transcendente, que abrange não só o tempo e o
espaço, mas também o ser e o valor, o conhecido
e o mistério, o aquém e o além.
Deus não pode ser reduzido a uma idéia bem
definida. Todos os conceitos se desfazem quando
aplicados à sua essência. Para o homem piedoso
o conhecimento de Deus não é um pensamento ao
seu alcance, mas uma forma de pensar em que pro­
cura compreender toda a realidade. É o segredo
não revelado do solo em que todo o conhecimento
se transforma numa semente de sentido, um segre­
do pelo qual vivemos e que jamais chegamos a en­
tender realmente. Um solo do qual as raízes de
todos os valores exaurem perene vitalidade. Acima
e contra a divisão entre homem «se natureza, entre
o eu e o pensamento, entre o tempo e a tempora­
lidade, o homem piedoso é capaz de perceber o
entrelaçamento de tudo, a união do que está sepa­
rado, o amor que paira sobre os atos de bondade,
as montanhas, as flores, que brilha no seu esplendor
como se fosse contemplado por Deus.
Como podemos identificar o divino?
O divino é uma mensagem que revela unidade
onde vemos diversidade, que revela paz onde nos
envolve a discórdia, Deus é aquele que mantém uni­
das nossas vidas vacilantes, que nos revela que o
que é empiricamente diverso em cor, em interesse,
em credos, em raças, classes e nações é um aos seus
olhos e um na essência.
Deus significa: ninguém está só; a essência do
temporal é o eterno; o momento é uma imagem de
eternidade num mosaico infinito. Deus significa:
União de todos os seres em santa alterid ad e.
Deus significa: o que está atrás da nossa alma
está acima do nosso espírito; o que está na raiz

113
3 - O homem não está só
de nós mesmos está no fim de nossos caminhos.
Ele é o coração de tudo, desejoso de receber e de­
sejoso de dar.
Quando Deus se torna a nossa forma de pen­
sar, começamos a sentir todos os homens num ho­
mem, o mundo inteiro num grão de areia, a eter­
nidade num momento. Para a ética profana um ser
humano é menos que dois seres humanos. Para o
espírito religioso causar a morte de uma única alma
é como causar a morte de todo um mundo e salvar
a alma é como salvar o mundo inteiro.
Se à luz de uma introspecção religiosa eu con­
seguir vislumbrar um caminho para concentrar mi­
nha vida dispersa, para unir o que está dividido
em discórdia, um caminho que é bom para todos
os homens como o é para mim, saberei que este é
o seu caminho.

11 M ishna Sinédrio, 4,5. Mishna, da raiz hebraica sha-


nah ~ repetir, é o nome da prim eira coleção oficial da
doutrina judaica pós-bíblica, compilada pelo rabi Ju d as, o
Santo, em fins do século I Í da nossa era. D e caráter pre­
dominantemente jurídico, está dividida em seis ordens (se-
darim ) que por sua vez se dividem em 73 tratados (masse-
kh toth ), entre os quais se encontra o tratado Sinédrio (tri­
bunais) citado no texto. Posteriormente a Mishna foi in­
cluída no Talm ud. O Talmud, do radical hebraico lamad
= estudar, é o grande corpus ou coleção das doutrinas ra-
bín icas. Inclui a Mishna e os comentários e interpretações
dos rabinos posteriores à M ishna. Existem dois Talm ud:
o Talm ud Palestinense ou Hierosolim itano e o Talm ud B a­
bilónico. Sua redação final ocorreu entre o século IV e
V I I d . C . ( N. do T . ) .

114
13

Um Deus

A atração do pluralismo

É estranho que os estudiosos modernos da re­


ligião não percebam a constante necessidade de pro­
testar contra o politeísmo. A idéia da unidade não
é só uma idéia da qual depende a justificação final
do universalismo filosófico, éticd&í e religioso. É
também uma idéia que está fora do alcance da maior
parte dos homens. Até hoje o monoteísmo está
em luta com o pensamento popular. É algo contra
o que o instinto popular continua a rebelar-se. O
politeísmo parece ser mais compatível com as ten­
dências e a imaginação emocionais que o monoteís­
mo sem compromissos. Grandes poetas sentiram-se
atraídos para os deuses pagãos. Em todo o mundo
o politeísmo exerce uma sedução quase hipnótica
despertando fortes e latentes desejos de formas pa­
gãs. Obviamente é mais fácil para uma mentali­
dade mediana um culto de idéias politeístas que um
culto de concepção monoteísta.
Mas, enquanto a imaginação popular e mesmo
a poética é fascinada pela visão de um pluralismo
supremo, o pensamento metafísico e a reflexão cien­
tífica sentem-se atraídos para o conceito de unidade.

115
A unidade como objetivo

É impossível ignorar o fato evidente de que


o avanço ininterrupto do conhecimento e da expe­
riência nos leva à unidade, quer a procuremos cons­
cientemente, quer não. Em nossa época somos obri­
gados a reconhecer que, em termos de relações hu­
manas, ou haverá um só mundo ou nenhum. Mas
a unidade política e moral como meta pressupõe
a unidade como fonte. A fraternidade dos homens
seria um sonho vão sem a paternidade de D eus.
Eternidade é outra palavra para a unidade.
Nela o passado e o futuro não estão separados. To­
dos os lugares estão aqui reunidos e continuam para
sempre. O oposto da eternidade é a difusão, não
o tempo. A eternidade não começa quando o tempo
chega ao fim. Tempo é eternidade partida em es­
paço, como um raio de luz refrangido na água.
A visão do raio não quebrado acima da água,
o anseio por unidade e coerência, é o aspecto pre­
dominante de um espírito maduro. Toda a ciência,
toda a filosofia e toda a arte são uma busca da uni­
dade. Mas a unidade é uma tarefa, não uma con­
dição. O mundo encontra-se em luta, em discórdia,
em divergência. A unidade está além, não dentro
da realidade12. Todos ansiamos por ela. Estamos
todos animados de uma vontade apaixonada de per­
manecer, e permanecer significa ser um .
12 “ É s tu quem os ligas e unes e sem ti não há uni­
dade nem em cima nem em b aixo ” — Segunda Introdução
ao Tikkne Zohar. Zohar, que significa esplendor, é o
grande livro da Cabala e do misticism o judeu. Foi escrito
em torno do ano 1300 na Espanha, sob forma de comen­
tário à B íblia. N a verdade o seu conteúdo é uma filosofia
místico-religiosa e seus temas principais são a natureza
de D eus, a maneira como ele se tornou conhecido ao mun­
do, a alma humana, o bem e o mal, a importância da Torá,
o M essias, a redenção. (N . do T . ) .

116
O mundo não é um com Deus, e é por isso
que o seu poder não corre livremente através de
todos os degraus do ser. A criatura está separada
do Criador e o universo se encontra num estado de
desordem espiritual. Mas Deus não se retirou com­
pletamente deste mundo. O espírito desta unidade
paira sobre a face de toda a pluralidade, e a tendên­
cia mais forte de todos os nossos pensamentos e
esforços é a sua poderosa intimação. A meta de
todos os esforços é alcançar a restituição da uni­
dade de Deus e do mundo. A restauração desta
unidade é um processo constante e a sua realização
será a essência da redenção messiânica.

Não se nega a pluralidade


%
Xenófanes contemplando o universo dizia: “Tu­
do é uno” . Parmênides, levando a sério o uno foi
levado a negar a realidade de qualquer outra coisa.
Moisés, porém, não disse: “Tudo é uno”, mas “Deus
é Uno” . No mundo há o fato refratário da plurali­
dade, da divergência, do conflito: “Eis que coloquei
diante de ti neste dia a vida e o bem, a morte e
o mal” (D t 3 0 ,1 5 ). Mas Deus é a origem de
tudo:

“Eu sou o Senhor e não há nenhum outro


além de mim;
Além de mim não há Deus. . .
Eu sou o Senhor e não há nenhum outro
além de mim;
Eu formo a luz e crio as trevas;
Eu faço a paz e crio o mal;
Eu sou o Senhor que faz todas estas coisas”
(Is 45,5-7).

117
Para onde irei?

A visão do Uno, pelo qual empenhamos nossos


esforços e nossa suprema esperança, não será alcan­
çada em contemplações da natureza e da história.
É a visão daquele que transcende os cenários de
ambas, oculto, mas presente em toda parte, dando-
-nos forças para ajudar a realizar a unificação su­
prema .

“Onde me esconderei do teu espírito


Ou para onde fugirei de tua presença?
Se subir até os céus, lá estás;
Se me esconder no mundo dos mortos,
lá estás. . .
E se eu disser: certamente as trevas me
cobrirão;
E a luz ao meu redor se fizer noite;
Mesmo as trevas não são escuras para t i”
(Sl 139,8-12).

O pensamento mítico-poético deixa-se seduzir


pela beleza das ondas espumantes, pelo seu movi­
mento incansável e pelo seu ritmo interminável.
Atendo-se ao fragmento, toma o instrumento como
fim, possui uma imagem, uma expressão que corres­
ponde à sua própria experiência. Pelo contrário,
aquele que toma a sério o inefável não se apaixona
pelo fragmento. Para a sua mente não há nenhum
poder no mundo que possa apresentar o ar da di­
vindade .
Nada do que podemos contar, dividir, ultra­
passar a fração ou a pluralidade pode ser conside­
rado como a realidade última. Acima de dois existe
um. A pluralidade é incompatível com o sentido
do inefável. Com relação ao divino não se pode

118
perguntar: qual deles? Só há um sinônimo para
Deus: U m .
Para a mente especulativa, a unicidade de Deus
é uma idéia deduzida da perfeição suprema de Deus.
Para o sentido do inefável a unicidade de Deus é
auto-evidente.

Escuta, ó Israel
'v

Nada é mais sagrado na vida dos judeus que


a recitação do Shema: “Escuta, ó Israel, o Senhor
é nosso Deus, o Senhor é Um ” . Em todo o mundo
“o povo aclama a sua Unicidade ao entardecer e
ao amanhecer, duas vezes por dia,..e com terna afei­
ção recita o Shema” (Kedusha de Musaf aos Sá­
bados) 13. A voz que chama: “Escuta, ele é Um ”,
é evocada e revivida. Elá é o clímax da devoção
no encerramento do Dia da Expiação. É a última
palavra que sai da boca de um judeu ao morrer e
da boca daqueles que estão presentes a tal mo­
mento .
Se perguntarmos a um judeu comum o que
significa o adjetivo “um”, ele indicará a sua signi­
ficação negativa — nega a existência de muitos
deuses. Mas valerá tal negação o preço do mar­
tírio que Israel tantas vezes esteve disposto a pagar
por ela? Não há nela um conteúdo positivo que
justifique a insuperável dignidade que a idéia de

13 Kedusha de M usaf é uma das classes de orações do


culto judaico. Cf . , por exemplo, o Sidur —■ Livro de rezas
para todo o ano israelita, ed. A SSO C IA Ç Ã O R E L IG IO S A
IS R A E L IT A D O R IO D E JA N E IR O e C O N G R E G A Ç Ã O
IS R A E L IT A P A U L IST A E M SÃ O PA U LO , trad. por H .
Lemle e F. Pinkuss. São Paulo, 1953. 508 p p . (N . do T .).

119
um Deus alcançou na história do judaísmo? Além
disso, foram levantadas dúvidas sobre o termo “um”,
se tem sentido quando aplicado a Deus. Pois como
podemos designá-lo por um número? Um número
é um dentre uma série de símbolos usados na dis­
posição de quantidades, para colocá-los em relação
entre si. Visto que Deus não está no tempo e no
espaço nem é uma parte de uma série, “o termo
um é tão inaplicável a Deus como o termo muitos,
pois tanto a unidade como a pluralidade são cate­
gorias quantitativas, sendo por isso tão inaplicáveis
a Deus como curvo e reto em relação a doçura, ou
salgado e insípido em relação à voz” (Maimônides
— Guia dos Perplexos I, 5 7 ) .
A coragem de atacar todas as divindades, as
santidades de todas as nações, baseava-se em algo
mais que a abstração: “Um, não muitos” . Atrás
da revolucionária afirmação: “Todos os deuses das
nações são nada” estava uma nova compreensão da
relação do divino para com a natureza: “Mas ele
fez os céus” (Sl 9 6 ,5 ). No paganismo a divindade
era uma parte da natureza e o culto era um ele­
mento nas relações do homem com a natureza.
Tanto o homem como as divindades estavam sujei­
tos à natureza. O monoteísmo ao ensinar que Deus
é o Criador, que a natureza e o homem são ambos
criaturas de Deus, redimiu o homem da sujeição
exclusiva à natureza. A terra é nossa irmã, não
nossa mãe.

“Os filhotes dos leões rugem por suas presas,


E procuram receber seu alimento de Deus. . .
As criaturas vivas, grandes e pequenas. . .
Todas esperam por ti. . .
Que lhes dês o alimento no tempo certo”
(Sl 104, 21, 25, 2 7 ) .

120
Os céus não são Deus, são suas testemunhas:
proclamam a sua glória.

Um significa único

Um no sentido de “Um, não muitos” é apenas


o início de uma série de significações. Não obstante
a sua incongruência metafísica com a idéia espiritual
de Deus, é uma barreira constante que detém a
torrente do absurdo politeísta que permanentemente
ameaça contagiar as mentes dos homens. Mas o
verdadeiro sentido da unidade divina não está em
ser ele um numa série, um entre outros. Não se
chegou ao monoteísmo por meio de redução numé­
rica, diminuindo a multidão das ^ivindades ao me­
nor número possível. Um significa ú n ico.
O mínimo de conhecimento é o conhecimento
da unidade de Deus 14. Seu ser único é um aspecto
do seu ser inefável.
Lfeer que ele é mais que o universo seria o
mesmo que dizer que a eternidade é mais que um
dia.
De uma coisa temos certeza: sua essência é
diferente de tudo o que somos capazes de conhecer
ou dizer. Ele não é só superior, ele é incomparável.
Não há equivalente do divino. Ele não é “um as­
pecto da natureza”, não é uma realidade adicional

14 E m hebraico a palavra ehad significa tanto um como


único. É no último sentido que deve ser entendido ehad
na passagem de 2Sam 7,23, incorporada ao serviço religioso
da tarde de Sábado: “ Tu és Um e Teu nome é U m : e
quem é semelhante ao Teu povo Israel único (ehad) sobre
a terra ?” E sta foi também a interpretação dos rabinos, cf.
Bekhorot 6b. O Targmn traduz ehad por “ Ü nico” no Gê-

121
que existe juntamente com este mundo, mas uma
realidade que está acima e além do universo.

“Ele é Um, e não há outro


Para comparar com ele, para pôr a seu lado”
(Yigdal) 15.

“Com quem me compararás


Para assemelhar-me a ele?
Disse o Santo Uno” (Is 4 0 ,2 5 ).
O Criador não pode ser comparado com
o que ele criou:
“Eleva teus olhos para o alto
E vê: quem criou isso?” (Is 4 0 ,2 6 ).

Um significa somente

Deus é um. Isto significa que só êle é verdadei­


ramente real. Um significa exclusivamente, nenhum
outro a mais, nenhum outro além de, só, somente.
nese 26,10. Ehad é tomado no sentido de Meyuhad, isto
é, “ único” diferente dos outros seres em Megillah 28a. N a
literatura rabínica D eus é, às vezes, chamado Yehido shel
olam, o Ünico do universo, ou Yahid be-olamo, cf. Tanhu-
ma Buber I, 49a: “ porque D eus é único no universo, co­
nhece o caráter de cada criatura individual e suas m en tes!”
V er também. Hullin 28a, 83b; Bekhorot 17a. (A s palavras
Bekhoroth (prim ogênitos), Megillah (volum e de E ste r) e
Hullin (batim ento de animais profanos) citadas no texto
da nota são títulos de tratados da M ishna. O Targum é
uma tradução parafrástica ou explicativa da B íblia para a
língua aramaica, feita nas prim eiras épocas rabínicas. (N .
do T . ) .
15 Yigdl, forma verbal hebraica que significa “ que se
engrandeça”, é a primeira palavra e o título de um hino li-
túrgico judaico que contém em form a de verso os treze
artigos da fé de M aimônides. (N . do T . ) .

122
Em lR s 4,29, bem como em outras passagens bí­
blicas, ehad significa “somente” .
“O que somos nós? O que é nossa vida? O
que é nossa justiça? O que é nosso auxílio? Nossa
força? Nosso poder? O que podemos dizer na tua
presença, Senbor nosso Deus e Deus dos nossos
pais? Na realidade, todos os heróis não são nada
diante de ti, os homens famosos como se nunca
tivessem existido, os sábios como se não tivessem
conhecimentos, os inteligentes conjo se fossem pri­
vados de entendimento, pois a maior parte das suas
ações não têm valor e os dias da sua vida são vãos
aos teus olhos” (Oração matutina judaica).
Deus é Um. Só ele é real. “Todas as nações
são como nada diante dele, são consideradas por
ele como coisas insignificantes e vaidade” (Is 40,
1 7 )' .
“ Somos mortais e como água derramada no
chão que não pode mais ser recolhida” (2Sam 14,
1 4 ).

Um significa o mesmo

A mente especulativa só consegue formular in­


terrogações isoladas perguntando algumas vezes:
qual é a origem de todos os seres? e outras vezes:
qual é o sentido da existência? Para o sentido do
inefável só há uma interrogação que se estende
além de todas as categorias de expressão, da qual
se refletem alguns aspectos em perguntas como:
quem criou o mundo? Quem dirige a história do
homem? E a resposta de Israel é: Um Deus. Um
designa unidade interna: sua lei é misericórdia; sua
misericórdia é le i 16.

16 V er notas 29 e 30.

123
“Um”, neste sentido, significa “o mesmo” .
Este é o verdadeiro sentido de “Deus é um” . Ele
é um ser que está ao mesmo tempo além e aqui,
na natureza e na história, que é simultaneamente
amor e força, que está perto e longe, conhecido e
desconhecido, o Pai e o Eterno. O verdadeiro con­
ceito de unidade só se atinge no conhecimento de
que há um ser que é ao mesmo tempo Criador e
Redentor. “Sou o Senhor, teu Deus, que te tirou
da terra do Egito” (Ê x 2 0 ,2 ) .
É com esta declaração da mesm idade, da iden­
tidade do Criador e do Redentor que começa o
Decálogo 17.

“Eles te pintaram em visões incontáveis;


Apesar de todas as comparações Tu és Um”
(Hino da Glória) 18.

Ele é de uma só maneira: Seu poder é seu


amor. Sua justiça é sua misericórdia. É uma idéia
à qual podemos aplicar as palavras de Ibn Gabirol.

Tu és Um
E ninguém consegue penetrar. . .
O mistério da tua insondável unidade. . .
(Ibn Gabirol, Keter Malhut) 19.

17 O Decálogo não representa, como alguns autores


afirmam, um henoteísmo tribal, no sentido de que a tribo
de Israel reconhece só a ele, sem negar a realidade de ou­
tras divindades, que outras tribos continuavam a adorar.
Um D eus do qual não devia ser feita nenhuma imagem,
que criou “ o céu e a terra, o m ar e tudo o que eles con­
têm ” (Ê x 20,11), não pode adm itir a realidade de outras
divindades.
18 O Hino da Glória faz parte da liturgia judaica, sendo
recitado diariamente no fim do culto matinal. (N . do T . ) .

124
O bem e o mal

Os sentimentos morais não se originam na ra­


zão como tal. Uma pessoa muito estudada pode ser
perversa e um homem totalmente iletrado pode ser
bom. Os sentimentos morais do homem originam-
-se do sentido de unidade do homem, da sua apre­
ciação do que é comum aos homens. Talvez a afir­
mação mais fundamental da ética está contida nas
palavras do último profeta de Israel: “Não temos
todos um Pai? Não foi um Dehs que nos fez?
Então por que somos infiéis uns aos outros, deson­
rando nossa outrora honrada verdade?” (M l 2 ,1 0 ).
O princípio último da ética não é um imperativo,
mas um fato ontológico. Se é verdade que o que
distingue uma atitude moral é a consciência da obri­
gação de agir assim, contudo, pqf outro lado, um
ato não é bom porque nos sentimos obrigados a pra­
ticá-lo, mas sentimo-nos obrigados a praticá-lo por­
que ele é bom.
A essência de um valor moral não está nem
no fato de sua validade independentemente de nos­
sa vontade nem na sua exigência de dever ser rea­
lizado por si mesmo. Estas características referem-
-se somente à nossa atitude em relação a tais valo­
res, e não à sua essência. Além disso, exprimem
um aspecto que se aplica tanto a valores lógicos
como estéticos.
Visto da parte de Deus, o bem se identifica
com a vida e é orgânico com o mundo. A perver­
sidade é uma doença e o mal se identifica com a
morte. Porque o mal é divergência, é confusão, é
aquilo que aliena o homem do homem, enquanto

Keter Malchut, que significa “ coroa real” , é um


fam oso poema de Ibn Gabirol, filósofo judeu do século X I.

125
o bêm é convergência, reunião, união. O bem e
o mal não são qualidades da mente, mas relações
dentro da realidade. O mal é divisão, contestação,
falta de unidade e como a unidade de todo ser é
anterior à pluralidade das coisas, assim o bem é
anterior ao mal.
O bem e o mal permanecem independentes do
fato de lhes darmos ou não atenção. Não nascemos
no vazio. Quer queiramos, quer não, encontramo-
-nos relacionados com todos os homens e com o
Deus uno. Como não criamos as dimensões do es­
paço para construir as figuras geométricas, assim
também não criamos as relações morais e espirituais.
Estas são dadas com a existência. O que fazemos
é unicamente ajustar-nos dentro delas. O bem não
começa na consciência do homem. É o ser reali­
zado na cooperação natural de todos os seres, en­
quanto uns existem para os outros.
Não são as estrelas nem as pedras, nem os áto­
mos nem as ondas, mas o seu pertencer uno aos
outros, sua interação, a relação de todas as coisas
entre si, que constitui o universo. Nenhuma célula
pode existir sozinha, todos os corpos são interde­
pendentes, influenciam-se e servem-se reciprocamen­
te. Falando figuradamente, até as pedras produ­
zem seus frutos, estão plenas de bondade não apre­
ciada quando sua força mantém uma parede de pé.

Ele é tudo em toda parte

O Rabi Moisés de Kobrin disse certa vez aos


seus discípulos: “Quereis saber onde está D eus?”
Depois tomou da mesa um pedaço de pão, mos­
trou-o a todos e disse: “Aqui está Deus” 20.

20 O r Yesharim, 87.

126
Ao dizer que Deus está em toda parte, não
queremos dizer que ele é como o ar, cujas partes
se encontram em lugares incontáveis. Um em sen­
tido metafísico significa totalidade, indivisibilidade.
Deus não se encontra parcialmente aqui e parcial­
mente ali. Está totalmente aqui e totalmente ali.
“Senhor, onde poderei encontrar-te?
Alto e oculto é teu lugar;
E onde não poderei encontrar-te?
O mundo está cheio da tua glória”
(Judas Haíevi) 21.
“Pode alguém esconder-se em lugares tão se­
cretos que eu não possa vê-lo? disse o Senhor. Por
acaso não encho os céus e a terra? disse o Senhor”
(Jer 2 3 ,2 4 ).
Deus está dentro de todas as coisas, não só
na vida do homem. “Por que Deus falou a Moisés
de dentro da sarça?”, foi a pergunta que um pagão
dirigiu a um rabino. Para uma mentalidade pagã,
ele deveria ter aparecido sobre o alto de uma mon­
tanha ou na majestade de uma tempestade. E o
rabino respondeu: “Para ensinar que não há lugar
na terra em que não esteja a Shekhinah22, nem
mesmo um humilde espinheiro” ( Ê xod o R abba, 2,
9 cf. Cântico dos Cânticos R abba 3,16) 23. Como
a alma enche o corpo, Deus enche o mundo. Como
a alma suporta o corpo, Deus suporta o mundo24.

21 Ju d as H alevi de Toledo poeta e filósofo que viveu


entre os séculos X I e X I I .
22 Shekinah, do verbo hebraico shakan, que significa
habitar, é uma palavra rabínica para designar a Presença
D iv in a.
23 Êxodo, Gênese etc. Rabba quer dizer o Midrash
R abba do Êxodo, Gênese e tc . ; c f . nota 6 ( N . do T . ) .
24 Levítico Rabba 4,8; Deuteronômio Rabba 2,26; cf.
Berakhot 10b.

127
.0 natural e o sobrenatural não são duas es­
feras diferentes, separadas uma da outra como o
céu da terra. Deus não está além daqui, mas aqui
mesmo. Não só junto aos pensamentos, mas tam­
bém junto ao meu corpo, É por isso que se ensina
que o homem deve estar consciente da sua presença
não só pela oração, pelo estudo e pela meditação,
mas também na sua vida física, em como e o que
comer e beber, conservando o corpo livre de toda
impureza e profanação.
“ Um ídolo está próximo e longínquo; Deus
está longínquo e próximo” (D euteronôm io R abba
2,6
“Deus está longínquo e, contudo, nada está
mais perto do que ele” {Jerushalm i B erakhot 13a) 25.
E a sua alteridade, inefável e imediata como
o ar que respiramos e não vemos, que nos torna
capazes de sentir sua distante proximidade. “Pois
assim falou o que é alto e elevado, que habita a
eternidade, cujo nome é Santo: Eu habito o lugar
elevado e santo, e também com aquele que é de
espírito contrito e humilde, para revivescer o es­
pírito do humilde, e para revivescer o coração dos
contritos” (Is 5 7 ,1 5 ).

A unidade de Deus e a unidade do mundo

A unidade de Deus é a força para a unidade


de Deus com todas as coisas. Ele é um em si mes­
mo e procura ser um com o mundo. O Rabi Sa­
muel ben Ammi observou que a narrativa bíblica

25 Jerushalmi Berakhot quer dizer o tratado Berakhot


(bênçãos) do Talm ud Palestinense ou Hierosolimitano. (N .
do T . ) .

128
da criação proclama: “Um dia. . . um segundo dia...
um terceiro dia”, e assim por diante. Tratando-se
de contar o tempo, esperaríamos que a Bíblia dis­
sesse: “Um dia. . . dois dias. . . três dias”; ou: “O
primeiro dia. . . o segundo dia. . . o terceiro dia”,
mas certamente não um, segundo, terceiro!
Y om ehad, um dia, significa na verdade o dia
em que Deus desejou ser um com o homem. “Des­
de o começo da criação o Santo, bendito seja ele,
desejou entrar em sociedade com o mundo terres­
tre” 26. A unidade de Deus é a referência para a
unidade do mundo.

26 Gênese Rabba cap. 3,9; ver neste livro cap. 23


— D E F IN IÇ Ã O D A R E L IG IÃ O JU D A IC A — D eus pre­
cisa do homem.

129
9 - O homem não está só
14

Deus é o sujeito

O “eu” é “algo”

Para o eu humano o mundo é um mundo pen­


sado por seu eu. Mas será que o eu humano, que
entrou no mundo na última hora do tempo eterno,
é um pioneiro sem predecessores em abrir um ca­
minho no vazio espiritual, na tentativa de criar
idéias do nada, de tirar música do caos? Será a
mente humana um vaga-lume na escuridão, que so­
zinha tenta iluminar a imensa amplidão da eterni­
dade?
Só quem for prisioneiro da sua presunção pode
afirmar que única e exclusivamente o homem é
quem conhece. Qualquer pessoa cuja mente não
esteja separada do seu sentido do inefável julgará
impossível conceber que só o homem tem o privi­
légio de pensar, com exclusão de qualquer outro
espírito, como se o mundo não fosse premeditado,
como se suas qualidades significativas fossem precá­
rias, dependendo exclusivamente do espírito do ho­
mem. Ainda que seja concebível, é absurdo pensar
que o homem é o único ser dotado de capacidades
mentais e espirituais. O homem jamais é o pri­
meiro a pensar a respeito de qualquer coisa, a rea­
lizar a estranha operação de converter uma coisa
num objeto de pensamento. Pelo menos não con­
sidera ser ele o primeiro. O explorador que alcança

130
a primeira vista de uma ilha desconhecida, não con­
segue acreditar que toda a beleza e grandeza que
acaba de descobrir nunca tenha sido vista, nunca
tenha sido pensada, nunca tenha sido apreciada an­
tes da sua chegada. Na rotina diária de pensar, pa­
rece-nos que o eu é o único fator ativo, o único
poder que conta; que o mundo é apenas matéria
para ser usada. E assim as idéias são também ape­
nas bens úteis para serem gastos e consumidos con­
forme o desejo. Bem diverso é-„o que ocorre na
vida das almas independentes e criativas, que não
tratam o mundo como donos auto-inflados, como
sujeitos que se celebram a si mesmos. Abandonam
tudo o que conhecem para se tornarem receptivos,
para se transformarem num foco em que se possa
captar a luminosidade do mundo. A percepção cria­
tiva não se realiza através de cálculos. Surge como
uma resposta dentro de uma experiência em que
a significação das coisas impõe sua força ao sujeito
da experiência.
Para o sentido do inefável o mundo não é
solo virgem. O mundo ê e ê pen sado. A eterni­
dade é a memória de Deus. O mundo está diante
de nós, enquanto Deus está atrás de nós.
Quanto mais profundamente estivermos aten­
tos à interioridade que reside em todas as coisas
e ao mistério do ser que compartilhamos com todas
as coisas, tanto mais profundamente compreendere­
mos a natureza do objeto do eu. Começamos a en­
tender que o que é um “eu” para nossas mentes
é “algo” para Deus. Por isso a consciência de ob­
jeto, e não a consciência de eu, constitui o ponto
de partida para nossos pensamentos a respeito dele.
É em nossa consciência de objeto que começamos a
compreender que Deus é mais que o divino.

131
Õ pensamento de Deus não tem fachada

Acostumados a pensar em categorias de espaço


concebemos a Deus como estando diante de nós,
como se nós estivéssemos aqui e ele ali. Pensamos
acerca dele como pensamos sobre as coisas, como
se ele fosse uma coisa entre outras coisas, um ser
entre os seres.
Entrando a meditar sobre a realidade última,
temos que desfazer-nos do hábito intelectual de
converter a realidade num objeto de nossas mentes.
Pensar acerca de Deus é totalmente diferente de
pensar sobre todas as outras coisas. Querer aplicar
os usuais instrumentos lógicos seria como querer
rechaçar uma tempestade com a força do nosso há­
lito. Muitas vezes não conseguimos compreendê-lo,
não porque não saibamos como levar nossos con­
ceitos suficientemente longe, senão porque não sa­
bemos começar de maneira suficientemente íntima.
Pensar em Deus não é encontrá-lo como objeto em
nossa mente, mas encontrar-nos a nós dentro dele.
A religião começa onde termina a experiência e o
fim da experiência é a percepção de que somos per­
cebidos .
Ter conhecimento de uma coisa é ter o seu
conceito à disposição da nossa mente. Como con­
ceito e coisa, definição e essência pertencem a rei­
nos diferentes, podemos dominar e possuir uma
coisa teoricamente, enquanto a coisa em si mesma
pode estar longe de nós, como, por exemplo, no
caso do nosso conhecimento das nebulosas estelares.
Deus não é uma coisa nem uma idéia. Ele
está dentro e além de todas as coisas e de todas
as idéias. O pensamento de Deus não está além,
mas dentro dele. O pensamento dele não estaria
diante de nós, se Deus não estivesse atrás dele.
O pensamento de Deus não tem fachada. Es-

132
tamos todos nele quando ele é tudo em nós. Con­
cebê-lo é ser absorvido por ele, como o presente no
passado, num passado que nunca morre.
Nosso conhecimento dele e da sua realidade
não estão separados. Pensar nele é abrir nossas
mentes à sua presença que tudo impregna, ao fato
de estarmos plenos da sua presença. Pensar em
coisas significa ter um conceito dentro da mente,
enquanto pensar nele se assemelha a andar sob um
dossel de pensamento, a ser circundado pelo pen­
samento. Ele permanece fora de nosso alcance en­
quanto não compreendermos que nosso alcance está
dentro dele, que ele é o Conhecedor e nós os co­
nhecidos, que ser significa ser pensado por ele.
Pensar em Deus é possível pelo fato de ele
ser o sujeito e nós o seu o b je t o . Pensar em Deus
é expor-nos a ele, é conceber-noá^como um reflexo
da sua realidade. Ele não pode ser limitado a um
pensamento. Pensar significa pôr de lado ou se­
parar um objeto do sujeito pensante. Mas sepa-
rando-o, ganhamos uma idéia e perdemos a Deus.
Como ele não está afastado de nós e nós não es­
tamos além dele, ele nunca poderá tornar-se um
mero objeto do nosso pensamento. Como, ao pen­
sarmos sobre nós mesmos, o objeto não pode ser
separado do sujeito, assim ao pensarmos em Deus
o sujeito não pode ser separado do objeto. Pen­
sando nele percebemos que é através dele que pen­
samos nele. Assim, devemos pensar nele como su­
jeito de tudo, como a vida da nossa vida, como a
mente da nossa mente.
Se uma idéia tivesse capacidade de pensar-se,
de transcender-se a si mesma, teria neste momento
consciência de ser um pensamento de minha mente.
O homem religioso tem tal consciência de ser co­
nhecido por Deus como se fosse um objeto, um
pensamento na sua mente.

133
!Para o filósofo Deus é um objeto, para os ho­
mens em oração ele é o sujeito. Seu objetivo não
é o de possuí-lo como um conceito do conhecimen­
to, de informar-se a respeito dele, como se fosse
um fato entre outros fatos. O que desejam é es­
tarem totalmente possuídos por ele, ser um objeto
do seu conhecimento e de senti-lo. O que importa
não é conhecer o desconhecido, mas ser penetrado
por ele. Não conhecer, mas ser conhecido dele, ex­
por-nos a ele ao invés de ele expor-se a nós. Não
julgar e afirmar, mas escutar e ser julgado por ele.
Seu conhecimento do homem precede o conhe­
cimento que o homem tem dele, e o conhecimento
dele pelo homem inclui só o que Deus interroga ao
homem. Este é o conteúdo essencial da revelação
profética 27.

A visão de Deus sobre o homem

A Bíblia é primariamente não a visão que o


homem tem de Deus, mas a visão que Deus tem
do homem. A Bíblia não é a teologia do homem,
mas a antropologia de Deus, que trata do homem
e daquilo que ele pede do homem, e não da natu­
reza de Deus. Deus não revelou aos profetas mis­
térios eternos, mas o seu conhecimento e amor do
homem. A aspiração de Israel não era conhecer o
Absoluto, mas saber o que ele quer do homem.
Comungar com sua vontade e não com a sua es­
sência .
Na profundeza do nosso temor só conseguimos
expressar a consciência de sermos conhecidos por
Deus. O homem não pode ver a Deus, mas pode

27 C f. A . H e s c h e l , Die Prophetie, Cracow 1936, p .


182.

134
ser visto por Deus. Ele não é o objeto de uma
descoberta, mas o sujeito da revelação.
Não há conceitos que pudéssemos indicar para
designar a grandeza de Deus ou para representá-lo
às nossas mentes. Ele não é um ser cuja existência
possa ser confirmada ou descrita por nossos pen­
samentos. Ele é uma realidade diante da qual, quan­
do conscientes da sua significação, somos invadi­
dos por um sentimento de infinita indignidade.

Deus é incognoscível
Tendo um sentido muito fraco para o mistério,
o homem moderno dispõe-se a aceitar o princípio
do agnosticismo como uma panacéia para todos os
problemas teológicos e metafísicos. Está inclinado
a acreditar que, se existe um sei%supremo, a dife­
rença entre ele e o homem é muito maior que a
diferença entre a matéria inconsciente e o homem
consciente; que, conseqüentemente, o homem pode
conhecer tanto a respeito dele quanto uma bolha
de sabão a respeito da teoria da relatividade; que
Deus não tem nada a ver com este miserável pla­
neta; que ele está no alto e tão acima das formas
de existência que nos são conhecidas, que só o
nada pode ser o lugar da sua habitação. Hoje é
tão plausível afastá-lo para além de todo o além,
como outrora o era sentir um espírito dentro de
uma árvore ou de uma pedra. Entretanto, quem
insiste que Deus é incognoscível por todos os modos
afirma conhecer aquilo que diz não poder ser co­
nhecido. Afirma saber que Deus vive numa prisão
de inescrutável irrelacionamento, atrás das barras
da infinitude e do totalmente outro.
O termo “conhecimento”, no sentido em que
é empregado para coisas finitas, é, de fato, inaplicá­
vel à essência de Deus. Contudo, nossa consciência

135
contíém mais do que a certeza de que ele existe.
Se estar imerso no pensamento significa revestir-se
de opiniões, como se enfeita a cabeça com plumas,
somos néscios; mas se os pensamentos são como o
sangue que circula dentro de nós, então podem ser
encontrados nas pontas dos dedos de uma alma
sensível. Muitas vezes, conhecemo-lo desconhecida-
mente e não conseguimos percebê-lo quando insisti­
mos em conhecê-lo.
O homem tem afinidade com o divino pelo que
é e não só pelo que compreende. A essência do
seu espírito, que luta com aquele que está além do
inefável e, muitas vezes, prevalece sobre ele, efeti­
vamente deve estar relacionado com Deus. E quan­
do o seu espírito se eleva à procura dele, é o divino
no homem que é responsável por esta exaltação.
“O espírito do homem é a lâmpada do Senhor, ela
penetra o íntimo do seu ser” (Prov 2 0 ,2 7 ).
Deus estaria fora do nosso alcance se tivésse­
mos que procurá-lo na prisão à luz dos fogos de
artifício das nossas mentes. Mas somos “pó e cin­
zas” . Pó da terra e cinzas do seu fogo, e a mente,
despertando a alma, pode soprar as brasas do seu
fogo que ainda estão acesas. Assim, perguntar por
que cremos é perguntar por que percebemos. Nossa
fé em Deus é Deus (D euteronôm io R abba 1 ,1 0 ).
Não precisamos de palavras para comunicar-
-nos com o mistério. O inefável em nós comunga
com o inefável além de nós. Não precisamos ex­
pressar a Deus, se deixarmos o nosso eu continuar
a ser seu, a ser o eco da sua expressão.
Recorrendo ao divino depositado em nós, não
precisamos lamentar o fato de o seu horizonte ficar
tão longe. Se cumprirmos sinceramente os seus
mandamentos, a distância desaparece. Não está em
nosso poder forçar o além a transferir-se para cá,
mas podemos transportar o aqui para o além.

136
Nosso conhecimento é uma alusão

A vida, como a vemos, não é um amontoado


de loucuras. Há nela tanto fertilidade como esteri­
lidade, sentido e absurdo. Pode-se conceber que a
sabedoria, a música, o amor, a ordem, a beleza, a
santidade surgiram do caos de algo sem vida, in­
ferior a nós? Será essa riqueza assombrosa e inson­
dável do espírito simplesmente o produto de um
acaso? Seria absurdo pensar que o poder dentro
de nós que criou leis, ideais, sinfonias e santidade
está contido só em nós e não existe em nenhuma
outra parte.
Ninguém negará que há homens que despre­
zam o dinheiro da opressão, que mantêm suas mãos
impolutas de suborno. Qualquer que sejam os mo­
tivos para tal, todos respeitamos Süa atitude. Ainda
que sejamos incapazes de atingir a justiça perfeita,
pelo menos alimentamo-la como ideal, como a mais
bela norma e somos até capazes de realizá-la até
certo ponto. Afirmar que semelhante ideal e sua
realização é monopólio do homem, desconhecido do
Ser Supremo, que o homem é o único ser dotado
de qualidades intelectuais e morais, que ele é supe­
rior ao Ser Supremo, é algo não só absurdo, mas
revoltante, uma insensatez que só pode ser susten­
tada enquanto o homem vê apenas a si mesmo e
a sua glória ilusória, mas se dissipa à primeira vista
da sua real situação. Quem alguma vez sentiu a
infinita superioridade do inefável é suficientemente
sábio para saber que Deus não pode ser inferior a
nenhum outro ser; que não poderíamos ter a capa­
cidade de sermos bons se ela faltasse em Deus. Se
há moralidade em nós, ela deve existir eminente­
mente em Deus. Se nós possuímos a visão da jus­
tiça, esta deve existir em grau eminente em Deus.
Até o grito de desespero: Não há justiça no céu!

137
É um brado em nome da justiça, duma justiça que
não pode ter nascido de nós e não existir na nossa
fonte. Quem está atento ao inefável recusará acei­
tar uma fonte de energia chamada a causa primeira
como expressando o altíssimo. Sabe que afirmar que
o altíssimo está dotado de espírito é uma indicação
grosseira. Prefere mantê-la em silêncio a formu­
lá-la .

Conhecimento ou entendimento?

É mais apropriado descrever as idéias que al­


cançamos em nossa luta com o inefável como enten­
dimento de Deus. Pois se ele não é um princípio
abstrato nem uma coisa, mas um ser vivo único,
nossa discussão sobre ele não pode realizar-se me­
diante os meios de conhecimento, mas mediante um
processo de entendimento. Conhecemos por meio da
indução ou inferência e entendemos mediante a in­
tuição. Conhecemos uma coisa e entendemos uma
pessoa. Conhecemos um fato e entendemos uma
alusão. O conhecimento implica em familiaridade
com algo ou até no seu domínio. O entendimento
é um ato de interpretar algo que só conhecemos
por sua expressão e através de uma concordância
interna com ela. Não há conhecimento por sim­
patia, mas há entendimento por simpatia. Signifi­
cativamente entendimento é um sinônimo de acor­
do. E pelo acordo que chegamos ao entendimento.
Podemos conhecer e reconhecer o inefável. En­
tretanto, só muito raramente os homens aprendem
a viver na harmonia suprema e é por isso que tan­
tas vezes não encontram o caminho que leva do
inefável até ele. Nos profetas o inefável se fez
voz, revelando que Deus não é um ser separado e
longe de nós, como acreditavam os antigos, que ele

138
não é um enigma, mas justiça e misericórdia; não
só uma força perante a qual somos responsáveis,
mas também um exemplo para a nossa vida. Ele
não é o Desconhecido, ele é o Pai, o Deus de
Abraão. Do silêncio dos tempos anteriores surgiu
finalmente a compaixão e a orientação.

%
15
O interesse divino

O problema da existência

Já é um final conhecido que os filósofos, de­


pois de oporem um pensamento a outro, de contra­
porem um argumento a outro chegam à solene con­
clusão: “Não conseguimos saber o que ele é, só
sabemos que ele existe” o que significa: nada sa­
bemos a respeito dos seus atributos, a única coisa
que podemos atribuir-lhe é a existência. Mas, sa­
bidamente, a existência é um conceito indefinível,
não pode ser imaginado p er si, sem qualificação,
pura e simplesmente. O que conhecemos é sempre
um existente específico, particular, ou um modo
de existência, um ser revestido de atributos. As­
sim, tudo o que resulta dessa especulação acerca
de Deus é uma categoria inefável. Além disso, a
existência não é só o fim, mas também o ponto de
partida de todo o pensamento a respeito de Deus,
pois sem supor a possibilidade da sua existência,
não começaríamos a contemplá-lo.
No seu desejo de evitar a possibilidade de atri­
buir aspectos antropomórficos a Deus, os filósofos
adotaram tradicionalmente o expediente predominan­
te na ontologia geral em que a noção de existência
que serve de objeto de análise é derivada do reino
da existência inanimada e não da existência anima­
da e pessoal. Os esforços subseqüentes para encher
essa casca ontológica com um conteúdo espiritual ou

140
moral esbarram em dificuldades insuperáveis, prin­
cipalmente por causa da disparidade entre a existên­
cia inanimada e a existência animada e pessoal.
Uma caneta, uma pomba e um poeta têm em
comum o ser, mas não só a sua essência senão tam­
bém a sua existência não são as mesmas. A dife­
rença entre a existência de um ser humano e a exis­
tência de uma caneta é tão radical e intrínseca quan­
to a diferença entre a existência de uma caneta e
a não existência do Navio Fantasma. Isso se en­
tende quando se compara um homem vivo com um
cadáver. Ambos contêm os mesmos elementos quí­
micos exatamente nas mesmas proporções, pelo me­
nos imediatamente após a morte. No entanto, um
homem morto é inexistente como homem, como
ser humano ou social, embora ainda exista como
cadáver. %

Vida é preocupação

Como veremos28, a temporalidade e a ininter-


rupção exprimem a relação da existência para o
tempo. Uma relação passiva. O que distingue a
existência orgânica da inorgânica é o fato de que
a planta ou o animal estão numa relação ativa e
defensiva para a temporalidade. Toda existência
finita, uma pedra ou um cachorro, encontra-se cons­
tantemente à beira da não existência: a qualquer
momento pode deixar de existir. Mas contraria­
mente à pedra, o cachorro está dotado até certo
ponto de capacidade de lutar contra, ou evitar, os
males da vida.
Sabemos pela biologia que a vida não é um

28 Cf. cap. 19 — O Sentido da Existência — O que


é a existência, e seções seguintes.

141
estádo passivo de indiferença e inércia. A essência
da vida é intensa inquietação e preocupação. Por
exemplo, a vida da célula depende da sua capaci­
dade de fabricar e de reter certas substâncias ne­
cessárias para a sua sobrevivência. Essas substân­
cias são impedidas de saírem porque a superfície
exterior da célula é impermeável a elas. Ao mesmo
tempo esta superfície, devido à permeabilidade se­
letiva do protoplasma, permite a outras substâncias
favoráveis penetrarem na célula a partir da parte
exterior, enquanto impede a entrada de substâncias
desfavoráveis. Cada célula se comporta como um
acordeão contraindo-se quando posta em contato
com algo destrutivo. Na base dessas observações,
pode-se estabelecer o seguinte princípio biológico:
todo organismo vivo tem aversão à sua própria
destruição.
Assim podemos dizer que tal como a quali­
dade peculiar da existência inorgânica é a necessi­
dade e a inércia, a propriedade peculiar da existên­
cia orgânica, da vida, é a preocupação. Vida ê
preocupação.
Tal preocupação é reflexiva: refere-se ao pró­
prio eu e nasce da ansiedade do eu a respeito do
seu próprio futuro. Se o homem não desse nenhuma
atenção ao futuro, se fosse indiferente ao que pode
ou não acontecer, não conheceria nenhuma ansie­
dade. O passado já não existe, no presente está
vivendo. Só o futuro lhe causa apreensões.

Preocupação transitiva

Um homem totalmente despreocupado consigo


mesmo é um homem morto, e um homem preocu­
pado exclusivamente consigo mesmo é um animal.
A sua marca de distinção em relação ao animal e

142
ao mesmo tempo o índice de sua maturidade é a
tridimensionalidade da preocupação do homem. A
criança torna-se humana, não descobrindo o ambien­
te que inclui as coisas e os outros eus, mas tornan­
do-se sensível aos interesses dos outros eus. Hu­
mano é aquele que se preocupa com os outros
eus.
O homem é um ser que nunca poderá ser au­
to-suficiente, não só pelo que deve receber em si,
mas também pelo que deve dar de s i. A pedra
é auto-suficiente, o homem é auto-superante. Sem­
pre necessitado de outros seres para entregar-se a
eles, o homem não pode sequer estar de acordo con­
sigo mesmo se não servir a algo além de si mesmo.
A paz de espírito,, alcançável na solidão não pro­
vém de se ignorar tudo o que não seja o eu ou
da fuga disso, mas da reconciliação com o que não
é o próprio eu. A faixa das necessidades cresce
com a ascensão da forma de existência. Uma pedra
é mais auto-suficiente que uma planta e um cavalo
necessita de mais coisas para a sua sobrevivência
que uma árvore. Uma exigência vital da vida hu­
mana é a preocupação transitiva, a atenção aos ou­
tros, além da preocupação reflexiva de um intenso
interesse por si mesma.
Primeiramente os outros eus são considerados
como meios para alcançar a satisfação das próprias
necessidades. A passagem da dimensão animal para
a dimensão humana se verifica quando em decor­
rência de vários fatos, tal como a observação do so­
frimento de outras pessoas, o amor ou a educação
moral, o homem começa a reconhecer os outros eus
como fins, a responder às suas necessidades, mesmo
sem consideração do próprio interesse. É um ato
de reconhecimento de jure ou até de facto dos outros
seres humanos como iguais. Em conseqüência disso
se torna interessado na preocupação deles. O que

143
é importante para eles torna-se vital para ele. Caim,
quando interrogado sobre o paradeiro de seu irmão,
responde: “Sou por acaso o guarda do meu irmão?”
(Gên 4 ,9 ) . Abraão, sem ser perguntado, sem ser
solicitado, implorou por Sodoma, a cidade do mal.
Mas por que Abraão estava interessado na salvação
de Sodoma? Abraão podia argumentar com Deus
a favor de Sodoma, porque existe uma justiça eterna
e incondicional em cujo nome pôde dizer: “Longe
de ti matar o justo juntamente com o mau. . . Não
deverá o juiz de toda a terra fazer justiça?” (Gên
1 8 ,2 5 ).
O que dá origem à preocupação pelos outros
não é uma extensão mecânica, lateral, da preocupa­
ção consigo mesmo. A preocupação com os outros
muitas vezes exige o preço da renúncia a si mesmo.
Como se poderia explicar a renúncia a si mesmo,
ou até a auto-extinção como uma extensão de si
mesmo? Conseqüentemente não podemos dizer que
a preocupação pelos outros esteja no mesmo nível
que a preocupação consigo mesmo, consistindo ape­
nas na substituição do próprio eu por outro. A
motivação da nossa preocupação transitiva pode ser
egoísta, mas o fato da nossa preocupação transitiva
não o é.

As três dimensões

A preocupação pelos outros não é uma exten­


são horizontal, mas uma ascensão, uma elevação.
O homem alcança nova dimensão vertical, a dimen­
são do sagrado, quando passa além dos seus inte­
resses próprios, quando aquilo que é de interesse
dos outros se torna vital para ele. É só nessa di­
mensão, na compreensão da sua perene validade,
que o interesse pelos outros seres humanos e a de­

144
dicação aos ideais pode atingir o grau da renúncia
a si mesmo. Objetivos distantes, interesses religio­
sos, morais e artísticos podem tornar-se tão impor­
tantes para o homem como sua preocupação pela
alimentação. O eu, o próximo e a dimensão do sa­
grado são as três dimensões de uma preocupação
humana amadurecida.
O amor verdadeiro do homem é amor clandes­
tino de Deus. Mas que relação tem a afeição ou
a bondade de um homem por outr,p com o mistério
de todos os mistérios? Não deveríamos rejeitar o
provérbio:

“Quem oprime o pobre ultraja seu Criador;


mas honra-o quem se compadece
do necessitado” (Prov 1 4 ,3 1 ).

Como palavras vazias e ocas? Há algo de intrínseco


na existência de Deus que justifique tal correlação?
Além disso, é certo dizermos que o homem é capaz
de elevar-se acima de si mesmo? Porventura qual­
quer auto-análise honesta não revela que as moti­
vações da nossa conduta estão envolvidas nas fun­
ções dos desejos instintivos, que os interesses do
eu penetram nossas motivações morais e nossos atos
de conhecimento? Contudo, embora concedendo tu­
do isso, seria errado considerar nossa preocupação
pelos outros como preocupação própria disfarçada.

A necessidade de esquecer-se a si mesmo

Não é verdade que o homem esteja condenado


à prisão perpétua num reino em que a causalidade,
a luta pela existência, a vontade de poder, a libido
sexual e o desejo de prestígio são os únicos mo-
ventes da ação. O homem está envolvido em re-

145
10 - O homem não está só
lações que transcendem esta esfera. Não há homem
algum que não lute, pelo menos alguma ou outra
vez, por algum grau de desinteresse, que não pro­
cure algo a que possa dedicar-se sem ter em vista
alguma vantagem. Não é verdade que todos os ho­
mens estão sempre à mercê de seu ego, que a única
coisa que conseguem fazer é promover a sua própria
prosperidade. Não é verdade que nos conflitos en­
tre a honestidade e a conveniência a primeira sem­
pre sai derrotada. Em toda alma palpita incognita-
mente uma necessidade de amar, de esquecer-se a
si mesma, de ser independente de interesses próprios
É contra seus interesses egoísticos que o homem
cede à necessidade de refletir sobre a finalidade, o
sentido ou o valor da vida, que insiste em julgar-se
a si mesmo segundo padrões não egoísticos e se
preocupa com objetivos que nem sequer compreen­
de totalmente, que, muitas vezes, resiste às tentações
da riqueza, do poder ou da popularidade vulgar,
que passa por cima da aprovação ou do favor dos
que dominam o mundo financeiro, político ou aca­
dêmico para permanecer fiel a algum princípio moral
ou religioso.
Nosso primeiro impulso é a autopreservação.
É a essência da vida orgânica e só quem despreza
a vida pode condená-la como vício . Se a vida é sa­
grada como cremos que é, a atenção a si mesmo
é o que mantém o sagrado. O interesse pelo eu
só se torna vício por associação: quando unido a
um desinteresse total ou pessoal pelos outros eus.
Assim o dever moral não consiste em desinteressar-
-se pelo próprio eu, mas em descobrir e atender ao
outro eu.
O eu não é um mal. O preceito: “Amarás
teu próximo como a ti mesmo” inclui o cuidado com
o próprio eu como um dever. É tão errôneo consi­
derar o dever para consigo mesmo e a vontade de

146
Deus como duas coisas contrárias, como o é iden-
tificá-las. Servir não significa ceder, mas participar.
A frase: “Amarás teu próximo como a ti mes­
mo” conclui com as palavras: “Eu sou o Senhor” .
E esta conclusão que contém a razão última do so­
lene mandamento. Esse mandamento é verdadeiro
e válido para sempre, mas se Deus não fosse Deus
não haveria verdade, nem eternidade, nem manda­
mento semelhante.
É um esforço inútil combaterão ego com ar­
gumentos intelectuais, pois tal como a hidra, por
cada cabeça cortada produz duas outras. A razão
por si só é incapaz de forçar a alma sem lucro e
sem recompensa. A grande batalha da integridade
deve ser combatida objetivando-se o próprio coração
do ego e intensificando-se o poder de liberdade da
alma.

Liberdade e êxtase espiritual

A integridade é o fruto da liberdade. O es­


cravo sempre quererá saber: o que serve aos meus
interesses? Só o homem livre é capaz de superar
a relação de interesse e fato, de ato e desejo de
recompensa pessoal. Só o homem livre pergunta:
por que me interessar por meus interesses? Quais
são os valores que devo sentir-me obrigado a servir?
Mas a liberdade interior é êxtase espiritual,
o estado de quem está acima de todos os interesses
e de todo egoísmo. A liberdade interior é um mi­
lagre da alma. Como se realiza esse milagre?
É a dedicação do coração e da mente ao fato
de nossa presença à preocupação de Deus, a cons­
ciência de sermos parte de um movimento espiritual
eterno que desperta as forças de uma consciência
cansada, que, arrancando a base da presunção, re-

147
duiz' o egoísmo a migalhas. É o sentido do inefável
que nos leva além do horizonte dos interesses pes­
soais, fazendo-nos entender o absurdo de considerar
o eu como um fim.
Não há outra maneira de sentir-nos unidos com
cada homem, com o leproso ou com o escravo, se­
não sentir-nos unidos com ele numa unidade supe­
rior: no único interesse de Deus por todos os ho­
mens .

O interesse divino
O que significa a existência de Deus? Sendo
eterno não se lhe aplica a temporalidade. Pode-se
atribuir-lhe interesse reflexivo? Ele não precisa pre-
ocupar-se a respeito de si mesmo, pois não há ne­
cessidade de ele estar em guarda contra nenhum
perigo que ameace a sua existência. A única preo­
cupação que lhe podemos atribuir é uma preocupa­
ção transitiva que está implícita no próprio conceito
de criação. Pois se a criação é concebida como uma
atividade voluntária do Ser Supremo, ela implica
num interesse pelo que começa a ser. Como a exis­
tência de Deus é contínua, seu interesse ou preocu­
pação por suas criaturas deve ser permanente. En­
quanto o interesse do homem pelos outros está mui­
tas vezes misturado de interesse próprio, e se carac­
teriza como uma falta de auto-suficiência e uma exi­
gência para a perpetuação de sua própria existência,
a preocupação de Deus por suas criaturas é um
interesse puro.
Segundo Cícero, “os deuses preocupam-se com
as grandes coisas e negligenciam as pequenas” (De
Natura Deorum, I I , 66, 1 6 7 ). Segundo os pro­
fetas de Israel, de Moisés até Malaquias, Deus preo­
cupa-se com as coisas pequenas. Os profetas pro­
curaram ensinar ao homem não a concepção de uma

148
harmonia eterna, de um ritmo de sabedoria imu­
tável, mas a percepção do interesse de Deus por
situações concretas. Revelando o plano da história,
em que o humano está entrelaçado com o divino,
introduziram uma seriedade divina no mundo do
homem.
Na mitologia as divindades são imaginadas co­
mo seres que procuram a si mesmos, que se interes­
sam por si próprios. Sendo imortais, superiores ao
homem em força e sabedoria, muitas vezes lhe são
inferiores em moralidade. “Homero e Hesíodo atri­
buíram aos deuses todas as coisas que são vergonha
e desgraça entre os mortais, roubos, adultérios e
fraudes ” ( Xenófanes) .
A Bíblia não nos fala nada sobre Deus em si
mesmo. Todos os seus ensinamentos referem-se às
suas relações com o homem. Su» própria vida e
essência não são referidas nem reveladas. Não ou­
vimos falar de nenhum interesse reflexivo, de ne­
nhuma paixão, exceto a paixão da justiça. Os úni­
cos fatos da vida de Deus de que a Bíblia tem co­
nhecimento são atos realizados por causa do ho­
mem: atos de criação, atos de redenção (de Ur,
do Egito, da Babilônia), ou atos de revelação.
Zeus está apaixonadamente interessado em be­
las divindades femininas e inflama-se de ira contra
aqueles que despertam o seu ciúme. O Deus de Is­
rael está apaixonadamente interessado pelas viúvas
e órfãos.
A preocupação de Deus significa o seu inte­
resse pelo destino do homem. Quer dizer que o
estado moral e espiritual do homem merece a sua
atenção. É verdade que para a maioria de nós o
seu interesse constitui um dos mistérios mais des­
concertantes, mas é igualmente verdadeiro que para
aqueles cuja vida está aberta a Deus, sua preocu­
pação e amor são uma experiência constante.

149
Expressão contínua

Atribuindo um interesse transitivo a Deus, não


usamos um conceito antropomórfico nem antropo-
pático, mas uma idéia que poderíamos caracterizar
como antropopneum ism o ( antropo + pneuma) . O
que lhe atribuímos não é uma característica psíqui­
ca, mas espiritual, não uma atitude emocional, mas
moral. Aqueles que se recusam a atribuir a Deus
um interesse transitivo, são inconscientemente obri­
gados a conceber a sua existência, se é que esta
tem algum sentido, em analogia com o ser físico
e a imaginá-lo em termos de “fisiomorfisismo ” .
A criação na linguagem da Bíblia é um ato
de expressão. Disse Deus: “Exista”, e existiu. E
a criação não é um ato que ocorreu uma vez, mas
um processo contínuo. A palavra Y ehi, “exista”,
está para sempre no universo. Se não fosse a pre­
sença desta palavra não haveria mundo, não haveria
ser finito (cf. Midrash Tehillim, ed. Buber, p.
4 9 8 ).
Quando dizemos que ele está presente em todas
as coisas, não queremos dizer que ele está inerente
às coisas como um componente ou ingrediente da
sua estrutura física. Deus no universo é um espí­
rito de interesse pela vida. O que é uma coisa
para nós, é uma preocupação para Deus. O que
é uma parte do mundo físico do ser é também uma
parte do mundo divino da significação. Ser é sig­
nificar, significar um interesse divino.
Deus está presente na sua expressão contínua.
Ele está imanente em todos os seres da mesma ma­
neira que uma pessoa está imanente na voz que
emite: ele significa o que diz. Está preocupado
com o que diz. Todos os seres estão repletos da
palavra divina que só se retira quando nossos vícios

150
profanam e oprimem sua presença silenciosa e pa­
ciente .
É fácil expulsar a Deus, como fácil é derramar
sangue. Mas mesmo quando ele se esconde, quando
nossas almas perderam o seu vestígio, podemos ain­
da chamá-lo das profundezas: das profundezas de
todas as coisas. Porque Deus está em toda parte,
salvo na arrogância. Podemos não saber o que é
ele, mas sabemos onde está. Nenhuma língua é ca­
paz de descrever sua essência, mas toda alma pode
compartilhar de sua presença e sentir a angústia de
sua temível ausência.
Emuralhados em nosso pomposo egoísmo ge­
ralmente esquecemos onde ele está, esquecemos que
nossa preocupação própria é apenas uma pequena
dose haurida do espírito da preocupação divina.
Mas há uma maneira de nos cofiíservarmos abertos
à presença deste espírito. Há momentos em que
sentimos o desafio de um poder que, não nascendo
da nossa vontade nem sendo por ela estabelecido,
tira nossa independência pelo seu julgamento da re­
tidão ou malícia das nossas ações, pelo remorso que
produz em nosso coração, quando nos opomos às
suas injunções. Não há dentro de nós nenhum re­
cinto privado, nenhuma possibilidade de retiro ou
escape, nenhum lugar dentro de nós onde enterrar
os restos dos nossos maus sentimentos. Há uma
voz que chega a todas as partes, sem condescen­
dência, escavando as sepulturas do esquecimento.

A civilização pendente de um fio

O curso em que se move a vida humana, tal


como a órbita dos corpos celestes, é uma elipse e
não um círculo. Estamos ligados a dois centros:
o foco de nós próprios e o foco de Deus. Impe-

151
lidofe por duas forças, temos tanto o impulso de
adquirir, de gozar, de possuir como a necessidade
de responder, de entregar-nos, de dar.
Parece que chegamos a um período de eclipse
divino na história humana. Navegamos os mares,
contamos as estrelas, desintegramos o átomo, mas
não nos lembramos de perguntar: será que não
existe nada mais que um universo morto e nossa
temerária curiosidade?
Horrorizados pela descoberta do poder do ho­
mem para aniquilar a vida orgânica no planeta, co­
meçamos hoje a compreender que o sentido do sa­
grado é tão vital para nós como a luz do sol;
que o gozo da beleza, as posses e a segurança na
sociedade civilizada dependem do sentido que o ho­
mem tem para a Sacralidade da vida, da sua reve­
rência por esta faísca de luz nas trevas do egoísmo;
que se permitirmos que se apague este lampejo,
a escuridão cairá sobre nós como um raio.
Impressionamo-nos com os imensos edifícios de
Nova Iorque. Entretanto, o seu fundamento último
não é nem a rocha de Manhattan nem o aço de
Pittsburgh, mas a lei que veio1 do Sinai. O verda­
deiro fundamento sobre o qual assentam nossas ci­
dades é um punhado de idéias espirituais. Tudo
em nossa vida está pendente de um fio — a fide­
lidade do homem ao interesse de Deus.
Qual é a esperança do homem, sendo sua fi­
delidade tão fraca, tão vaga, tão instável e confusa?
O mundo em que por muito tempo confiamos ex­
plodiu em nossas mãos e foi liberada uma torrente
de males e de miséria que não deixa ilesa a inte­
gridade de ninguém. Mas o homem tornou-se ca­
lejado em relação às catástrofes. O que esperamos
conseguir com nossa indiferença que se levanta co­
mo uma muralha entre nossa consciência e Deus?

152
Compaixão

Tenebroso é para mim o mundo com todas


as suas cidades e estrelas, não fora o hálito de com­
paixão que Deus soprou sobre mim quando me
formou do pó e da terra, compaixão mais forte
do que meus nervos podem suportar.
Deus, estou só com minha compaixão dentro
de mim. Obscuros são meus membros. Se não fos­
ses tu, como poderia suportar essa angústia, essa
desgraça?
“Ensina-me os teus caminhos”, rezava Moisés.
Apenas algumas semanas haviam passado depois que
os hebreus escravos tinham sido redimidos do Egito;
apenas quarenta dias haviam passado depois que
tinham ouvido a voz que proclamou: “Não terás
outros deuses além de mim. Nãos^farás imagens es­
culpidas”, quando fizeram um bezerro de ouro.
Moisés inflamou-se de cólera, lançou as tábuas ao
chão, quebrando-as. Mas quando, depois deste do­
loroso acontecimento, encontrou-se novamente no
alto da montanha, com as segundas tábuas na mão,
ele desceu na nuvem e passou atrás de Moisés de­
clarando: “Deus é compassivo e bondoso, lento para
irar-se, cheio de amor e verdade, perdoando a ini­
qüidade, a desobediência e o pecado, mas nunca
desculpará o culpado, visitará a iniqüidade dos pais
em seus filhos e nos filhos dos seus filhos, até a
terceira e quarta geração” . Sua compaixão não é
mera emoção. Elá arde com o poder de que só
ele é capaz. Quando se pergunta à alma de um
homem: o que é Deus para ele, só há uma resposta
que sobrevive a todas as teorias que levamos à
sepultura: ele é cheio de compaixão. Não sabemos

153
prqijunciar o Tetragrama, o Grande Nome, mas
aprendemos que significa compaixão 29.
Os adjetivos morais e espirituais que a Bíblia
lhe atribui, tais como zaddik, hasid, ne’eman, tam­
bém emprega para caracterizar homens que levam
uma vida correta. Só um atributo é reservado a
Deus: na Bíblia só ele é chamado de rahum, O
Misericordioso30.
Deus não é tudo em tudo. Ele está em todos
os seres, mas ele não é todos os seres. Ele está
na escuridão, mas ele não é a escuridão. Seu inte­
resse único impregna todos os seres. Ele está em
toda parte, mas também a ausência do divino está
em toda parte. Seus objetivos estão ocultos nos
frios fatos da natureza; seu interesse está envolto
na independência do universo que está tão bem
disposto que muitas vezes somos levados a acreditar
que não há necessidade de consertos ocasionais.
Nossa preocupação se assemelha à escuta de uma
língua estrangeira: percebemos os sons, mas não en­
tendemos o seu sentido. Ao homem, que não é
senão uma exclamação no discurso da criação, pa­
rece que as coisas funcionam e se comportam como
se Deus fosse um estranho cuja presença não é
nem necessária nem desejada. Alguns de nós arro­
gantemente o perseguem e pisoteiam. “O ímpio

29 É antiga doutrina rabínica que o Tetagram a geral­


mente traduzido por Senhor, expressa o atributo divino
do amor, enquanto o nome Elohim expressa o atributo da
justiça, Sifre Deuteronômio § 27; Pesikta, ed. Buber, p .
162a e 164a.
30 A única exceção, Salm o 112,4, é um exemplo óbvio
de imitatio Dei, cf. 111,4. Provavelmente o termo está re­
lacionado com a palavra rehem, ventre, e pode ter a
conotação de amor maternal. N o Talm ud Babilónico, Rah-
mana, O Misericordioso, é freqüentem ente usado para desig­
nar tanto D eus, como a Escritura, a L ei ou a palavra de
D eu s. A L ei é M isericórdia.

154
vangloria-se da sua capacidade; o ambicioso nega-o
e despreza-o. Na sua insolência pensa: Deus nunca
punirá. Todo o seu pensamento é Deus não existe”
(Sl 10;3 -4 ). Outros desesperam em meio ao nevoei­
ro das rígidas leis da necessidade em que muitas
vezes nossas esperanças se congelam mortalmente.

Manifestação e ocultamento

Conhecer a Deus não é procurar no escuro à


semelhança do mundo que vagueia errante em bru­
ma impenetrável. É verdade que onde quer que
vivamos há sempre trevas. Mas embora profundas
e espessas, não são nem sórdidas nem fatais. A
bruma impenetrável de que está encoberto o mundo
é o véu do ocultamento de Deus. Conhecer a Deus
significa sentir a sua manifestação no seu oculta­
mento e ter consciência do seu ocultamento na sua
mais magnificente manifestação.
Deus está no mundo, presente e oculto na es­
sência das coisas. Não fosse a sua presença, não
haveria essência, não fosse o seu ocultamento, não
haveria manifestação.
O hino cantado pela natureza não é dela pró­
pria. Elá arde com um fogo que não contém. Sua
independência, sua unidade, sua beleza, são perfei­
ções emprestadas. Só aqueles que não percebem
que seu conhecimento é um motivo para uma igno­
rância mais alta não sentem a maravilha da sua
força em perdurar, a maravilha de ela não ser con­
sumida. Não vendo a sarça também não escutam
a voz.
Se pudéssemos explicar o universo como um
robô, poderíamos pensar que Deus está separado
dele e sua relação para com o universo seria como
a do relojoeiro para com o relógio. Mas o inefável
eleva seu clamor do meio de todas as coisas. Só

155
a idéia de uma presença divina oculta na ordem
racional da natureza é compatível com nossa visão
científica da natureza e de acordo com o nosso sen­
tido do inefável.
A alma mora dentro, mas o espírito paira sem­
pre acima da realidade. O infinito interesse de
Deus está presente no mundo, mas sua essência é
transcendente. Ele inclui o universo, mas citando
a oração de Salomão na dedicação do Templo: “Eis
que nem os céus nem os céus dos céus podem con­
ter-te” (lR s 8 ,2 7 ). A consciência de Deus como
moradia do universo deve ter sido muito aguda na
época pós-bíblica, se M akom ( “lugar” ) chegou a
ser um sinônimo de Deus.
A alma está dentro: passiva, oculta; o espírito
está acima: ativo, infinito.

156
16

O Deus que se oculta

Para nós, contemporâneos e sobreviventes dos


maiores horrores da história, é impossível meditar
sobre a compaixão de Deus sem perguntar: onde
está Deus?
Sobre as portas do mundo em que vivemos
estão gravadas as armas dos demônios. A marca
de Caim 31 na face do homem ecnpsou a sua seme­
lhança com Deus. Nunca houve tanta miséria, tanta
agonia e tanto terror. Às vezes até parece pecado
que o sol continue a iluminar o mundo. Em época
alguma a terra bebeu tanto sangue. Os homens,
nossos companheiros, revelaram-se espíritos maus,
monstruosos e fatais. A história assemelha-se a
um palco para a dança da força e do mal, sendo
o juízo do homem incapaz de distinguir ambos, e
Deus dirigente do espetáculo ou indiferente a tudo.
A maior insensatez de tudo isso é querer trans­
ferir a responsabilidade pela infeliz sorte do homem
a Deus, acusar o Invisível, quando a culpa é nossa.
Ao invés de admitirmos a nossa própria falta, pro­
curamos, à semelhança de Adão, transferir a culpa
a outro. Durante muitas gerações investimos vio­
lência e agora nos admiramos de nosso fracasso.
Deus era concebido como o guarda encarregado de

31 Ver Gênese Rabba 22,12, ed. Theodor, p p . 219s L .


G in z b e r g , Legends of the Jews, v .V , p . 141.

157
impedir que usássemos nossas armas carregadas.
Como não fez isso, ele é agora imaginado como o
supremo Bode Expiatório.
Vivemos numa época em que muitos de nós
já não nos ofendemos mais com a crescente quebra
das inibições morais. A corrupção da consciência
enche o ar de um odor pungente. O bem e o mal,
que antes eram tão distintos como o dia e a noite,
tornaram-se uma névoa confusa. Mas essa confusão
vem do homem. Deus não se cala. Ele foi silen­
ciado .
Em vez de aprenderem a corresponder aos
mandamentos diretos de Deus com uma consciência
aberta à sua vontade, os homens se alimentam com
as doçuras da mitologia, com promessas de salvação
e imortalidade, como sobremesa do delicioso repas­
to da terra. A fé que os crentes nutrem é de se­
gunda mão: é uma fé nos milagres do passado, um
apego a símbolos e cerimônias. Conhece-se Deus
de ouvir dizer. É uma informação fornecida pelos
dogmas. Até pensadores não dogmáticos apresentam
conceitos gastos e solenes sem ousar proclamar a
espantosa visão do sublime, em cujo horizonte as
indecisões e as dúvidas são quase desprezíveis.
Brincamos com o nome de Deus. Tornamos
os ideais em vão. Rezamos a ele e o enganamos,
louvamo-lo e o desafiamos. Agora colhemos os fru­
tos das nossas faltas. Durante séculos sua voz cla­
mou no deserto. Com quanta habilidade foi apri­
sionada nos templos! Completamente distorcida! E
agora estamos presenciando como esta voz se re­
tira progressivamente, como abandona um povo após
outro, deixando suas almas, desprezando sua sabe­
doria. O gosto do bem quase já desapareceu da
terra.
Somos testemunhas de como muitas vezes na
história homens, grupos ou nações que perderam

158
Deus de vista, agem e têm sucesso, lutam e reali­
zam, mas estão abandonados por ele. Podem mar­
char de uma vitória para outra, mas estão abando­
nados, rejeitados e postos de lado. Ainda que pos­
suam toda glória e poder, sua vida será triste e
sombria. Deus retirou-se da sua vida, enquanto eles
acumulam uma perversidade sobre outra, um mal
sobre outro. O abandono do homem, a proscrição
da Providência marcam o início da calamidade final.
São deixados sós, sem serem molçstados por cas­
tigos nem tranqüilizados por algum sinal de ajuda.
O divino não interfere em suas ações nem inter­
vém em suas consciências. Tendo tudo em abun­
dância, menos a sua bênção, sentem-se na sua pros­
peridade como numa concha em que há só maldição
sem piedade.
O homem foi o primeiro a :se esconder de
D eus32, depois de ter comido o fruto proibido, e
ainda continua a se esconder 33. A vontade de Deus
é de estar aqui, manifesta e próxima. Mas quando
as portas deste mundo são batidas no seu rosto,
sua verdade traída, sua vontade desafiada, ele se
retira, abandonando o homem a si mesmo. Deus
não se retirou por sua própria vontade. Foi ex­
pulso. Deus está exilado.
Mais grave que o ato de Adão comer o fruto
proibido foi o seu ato de esconder-se de Deus de­
pois de tê-lo comido. “Onde estás?” Onde está o
homem? Esta é a primeira pergunta que ocorre na
Bíblia. Nosso problema é o alibi do homem. É
o homem que se esconde, que foge, que tem um
alibi. Deus é menos raro do que pensamos. Quan­
do o procuramos sua distância desaparece.
Os profetas não falam do Deus oculto, mas do

32 G ên 3,8.
33 Jó 13,20-24.

159
Deiis que se esconde. Seu ocultamento é uma fun­
ção, não sua essência, um ato e não um estado per­
manente. Deus abandona seu povo e esconde sua
face, quando este o abandona, violando a aliança
que fez com e le 34. Não é Deus que é obscuro.
É o homem quem o eclipsa. Seu ocultamento de
nós não faz parte da sua essência. “Verdadeiramen­
te, tu és um Deus que te escondes, ó Deus de Israel,
Salvador!” (Is 4 5 ,1 5 ). Um Deus que se oculta
e não um Deus oculto. Ele espera ser descoberto,
ser admitido em nossas vidas.
O efeito direto do seu ocultamento é o endu­
recimento da consciência: o homem ouve e não en­
tende, vê, mas não percebe — . seu coração está
obtuso, seus ouvidos estão pesados35. Nosso dever
é abrir nossas almas a ele, deixá-lo entrar novamente
em nossos atos. Aprendemos a gramática do con­
tato com Deus; aprendemos de Baal Shem 36 que
sua distância é uma ilusão que pode ser eliminada
por nossa fé. Há muitas portas pelas quais deve­
mos passar para entrar no palácio, mas nenhuma
delas está fechada.
Como o ocultamento do homem é conhecido e
percebido por Deus, assim também é percebido o
ocultamento de Deus. Ao notarmos o fato do seu
ocultamento, descobrimos a ele próprio. A vida é
o lugar em que Deus vem esconder-se. Nunca es­
tamos separados daquele que precisa de nós. As
nações erram e se agitam, mas tudo isso produz
apenas ondulações na tranqüilidade profunda, des­
percebida e não apreciada.
O neto do Rabi Baruch estava brincando de
esconder com outro menino. Escondeu-se e ficou

34 D t 3 1 ,1 6 -1 7 .
35 Is 6.
36 Baal Shem — famoso rabino do H assidism o. (N .
do T . ) .

160
no seu esconderijo durante longo tempo, pensando
que o seu amigo o procurasse. Finalmente saiu e
notou que seu amigo tinha ido embora, aparente­
mente não tendo sequer procurado por ele e que
tinha se escondido em vão. Correu para a sala de
estudo de seu avô, chorando e queixando-se de
seu amigo. Ouvindo o fato, o Rabi Baruch desfez-
-se em pranto e disse: “Também Deus diz: ‘Eu
me escondo, mas ninguém me procura’ ” .
Há épocas em que só sofremos derrotas, em
que a fé só tem que suportar horrores. Contudo,
apesar da angústia, apesar do terror, jamais somos
vencidos pelo desânimo supremo.
“Ainda que aprouvesse a Deus destruir-me,
ainda que ele soltasse sua mão e me deixasse cair,
mesmo assim teria prazer, exultaria até em meu
sofrimento; que ele não me poupe, pois não neguei
as palavras do Santo” (Jó 6 ,9 -1 0 ). Jorram torren­
tes nos desertos do desespero. Esta é a orientação
da fé: “Deitado no pó sacia-te com a fé ” 37.

“Ó Deus, com nossos próprios ouvidos ouvimos,


Nossos pais nos contaram
A obra que realizaste em seus dias,
Nos tempos de outrora.
Para implantá-los, com tuas mãos
expulsaste os pagãos,
Abateste povos e os expulsaste.
Pois não foi com sua espada que conquisatrem
a terra,
Nem foi seu próprio braço que os salvou,
Mas tua direita e teu braço
E a luz da tua face, porque os amavas.
És meu rei, ó Deus, liberta Jacó!
Por ti abateremos nossos inimigos,

37 R abi M endel de K otzk parafraseando o Salmo 37,3.

161
11-0 homem não está só
Por teu nome esmagaremos aqueles que se
levantam contra nós.
Não confiarei em meu arco,
Nem será minha espada que me salvará.
Foste tu que nos salvaste de nossos inimigos,
E humilhaste aqueles que nos odiavam.
Em Deus nos gloriamos todo o dia
E louvamos teu nome para sempre. Selah.
E, no entanto, nos rejeitaste e humilhaste.
Não acompanhas mais nossos exércitos,
Fizeste-nos recuar diante do inimigo.
E aqueles que nos odeiam pilham nossos bens.
Entregaste-nos como ovelhas para o matadouro,
Dispersaste-nos entre os pagãos.
Vendes teu povo por um preço vil,
Sem lucrares com sua venda.
Fazes de nós um motivo de insulto
para nossos vizinhos,
Desprezo e vergonha diante dos que nos
rodeiam.
Fazes de nós uma sátira entre os pagãos,
Um escárnio entre os povos.
Continuamente a confusão me acompanha,
E a vergonha cobre meu rosto,
Diante dos clamores do ultraje e da blasfêmia,
Por causa do inimigo vingativo.
Tudo isso nos aconteceu sem que te tivéssemos
esquecido
E sem que fôssemos infiéis à tua aliança.
Nosso coração não se afastou de ti
E nossos passos não abandonaram o teu
caminho.
Lançaste-nos na morada dos dragões,
Cobriste-nos com a sombra da morte.
Se tivéssemos esquecido o nome do nosso
Deus,

162
Se tivéssemos estendido nossas mãos a um
deus estranho,
Certamente Deus o teria percebido,
Ele que conhece os segredos do coração.
Mas é por causa de ti que somos chacinados
todo dia,
Contados como ovelhas para o matadouro.
Desperta, por que dormes, Senhor?
Levanta-te, não nos rejeites para sempre.
Por que escondes tua face, esquecendo nossa
aflição e nossa opressão?
Pois nossa alma está prostrada no pó,
Nosso ventre está colado à terra.
Levanta-te, vem em nosso socorro,
Salva-nos por tua misericórdia” (Sl 4 4 ) .
%

163
17
Além da fé

O perigo da fé

Não ter fé é insensibilidade, ter fé sem dis­


cernimento é superstição. “O simples crê em tudo
o que se diz” (Prov 14,15) 38, esbanjando a sua
fé em coisas exploráveis, mas ainda não exploradas.
Confundindo ignorância com fé, está inclinado a
olhar como elevado tudo o que não é capaz de en­
tender, como se a fé começasse onde termina a
compreensão. Como se fosse suprema virtude con­
vencer-se sem provas, estar sempre pronto a crer.
A fé, necessidade da alma de elevar-se acima
de sua própria sabedoria, de estar, como uma planta,
um pouco acima do solo, é irreprimível, muitas ve­
zes desvairada, caprichosa, cega e exposta ao perigo.

38 "P ara Israel, o herdeiro da religião da verdade, os


filhos de Jacó, o homem da v e rd a d e .. . é m ais fácil supor­
tar o peso do exílio que crer em alguma coisa antes de
examiná-la completa e repetidamente e de limpá-la de toda
escória, mesmo que pareça ser um sinal ou um m ilagre. _A
inegável evidência do amor de Israel à verdade e sua rejei­
ção de tudo o que é duvidoso pode ser vista nas relações
do povo de Israel com M oisés. A pesar de oprimidos pela
escravidão, quando M oisés foi incumbido de levar-lhes a
nova da sua redenção, disse este ao Senhor: eles não acre­
ditarão em mim nem atenderão à minha voz, pois dirão:
o Senhor não te apareceu” (Ê x 4 , 1 ) . S a lo m ã o Í b n A d r e t
d e B a r c e l o n a , 1 2 3 5 -1 3 1 0 , Responsa n° 548.

164
A afinidade da alma com o sagrado é suficientemen­
te forte para eliminar ou reprimir, mas não para
aniquilar a força da gravitação para o que é baixo.
Aqueles que estão seguros de sua fé muitas vezes
tombam sob o seu próprio peso e caídos põem-se
de joelhos adorando, deificando a serpente, que ge­
ralmente jaz lá onde crescem as flores. Quanta
terna devoção, heroísmo e mortificação de si pró­
prio, já foi desperdiçada com o mal! Quantas vezes
o homem já não divinizou Satã, achou magnífico
o mal, apesar de perverso, e cheio de indescritível
majestade! Na verdade fé não é segurança.
É tragicamente verdade que muitas vezes esta­
mos errados a respeito de Deus, crendo no que
não é Deus, num ideal falso, num sonho, numa
força cósmica, em nosso pai, em nós mesmos. Não
devemos jamais deixar de interrogar a nossa fé e
de perguntar o que significa Deus para nós. Não
é ele apenas um alibi para a ignorância? A bandeira
branca da rendição ao desconhecido? É ele um pre­
texto para conforto e despreocupada satisfação? Um
meio para iludir o desânimo, o temor ou o deses­
pero?
De quem podemos esperar ajuda para nossa
fé se até a religião pode ser fraude, se com o sacri­
fício de nós mesmos podemos consagrar até o as­
sassínio? De nossas próprias mentes que tantas ve­
zes nos traíram? De nossa consciência que tão fa­
cilmente erra e falha? Do coração? De nossas boas
intenções? “Aquele que confia em seu próprio co­
ração é um louco” (Prov 2 8 ,2 6 ).

O coração é mais enganoso que todas as coisas,


É excessivamente fraco.
Quem é capaz de conhecê-lo? (Jeremias 1 7,9).

A fé individual não é auto-suficiente. Precisa

165
ser assinada pela ordem de uma orientação ines­
quecível .
Significativamente, o Shema, a confissão prin­
cipal da fé judaica, não está escrito na primeira
pessoa e não exprime uma atitude pessoal: eu creio.
Só lembra a Voz que disse: “Ouve, ó Israel” .

Crer é lembrar

Nem o homem individual nem toda uma ge­


ração pode por suas próprias forças construir a ponte
que leva a Deus. A fé é uma obra de longas épo­
cas, um esforço acumulado através de séculos. Mui­
tas das suas idéias são como a luz de uma estrela
que partiu de sua fonte há muitos séculos. Muitos
hinos, impenetráveis hoje, são a ressonância de vo­
zes de épocas passadas. Há uma memória coletiva
de Deus no espírito humano e é dessa memória
que participamos em nossa fé.
Foi afirmado que a memória grupai de carac­
terísticas adquiridas é um fator importante no de­
senvolvimento do homem. Algumas das nossas ca­
tegorias a priori são coletivas quanto ao caráter e
sem conteúdo individual. Adquirem um caráter in­
dividual mediante o encontro com fatos empíricos.
“Em certo sentido devem ser depósitos das expe­
riências dos antepassados ” 39. A herança da huma­
nidade inclui não só disposições, mas também idéias,
“motivos e imagens que podem surgir novamente
em cada época e clima, sem tradição ou migra­
ção” 40. “A verdadeira história da mente não está
guardada em eruditos volumes, mas no organismo

39 C . G , J u n g — Two Essays on Analytical Psycho­


logy . Londres, 1928.
40 C . G . J u n g — Psychological Types. N ova Iorque,
1926, p . 616.

166
mental vivo de cada um” . Há um cofre do tesouro
em nossa memória de grupo. “Nada se perdeu ex­
ceto a chave deste cofre e mesmo essa eventual­
mente é encontrada” .
As riquezas de uma alma estão guardadas na
sua memória. Elá constitui o teste de personalidade,
não para verificar se um homem segue a moda do
dia, mas se o passado está vivo no seu presente.
Quando quisermos entender-nos a nós mesmos, des­
cobrir o que é mais precioso em nossas vidas pes­
quisemos em nossa memória. A memória é a tes­
temunha da alma para a mente inconstante.
Só aqueles que são espiritualmente imitadores,
somente pessoas que têm medo de ser gratas e de­
masiadamente fracas para serem leais, têm apenas
o momento presente. Para uma pessoa nobre, lem­
brar é uma santa alegria, ser grat% uma emoção su­
perior. Para uma pessoa cujo caráter não é rico
nem forte, a gratidão é uma sensação muito dolo­
rosa . O segredo da sabedoria é nunca perder-se
numa disposição ou paixão momentânea, nunca es­
quecer a amizade por causa de uma mágoa passa­
geira, nunca perder de vista os valores permanentes
por causa de um episódio transitório. As coisas que
passam por nossa vida diária deveriam ser avaliadas
segundo o critério: enriquecem ou não o nosso de­
pósito interior? Só tem valor em nossa experiência
aquilo que é digno de recordação. A recordação é
a pedra de toque de todas as ações.
A memória é a fonte da fé. Ter fé é recordar.
A fé judaica é uma recordação daquilo que acon­
teceu a Israel no passado. Os acontecimentos em
que o espírito de Deus se tornou realidade estão
diante de nossos olhos pintados em cores que nunca
empalidecem. Muito do que a Bíblia prescreve pode
ser compreendido numa palavra: L em bra. “Guar­
da-te de ti mesmo, e cuida tua alma diligentemente

167
para ;que não esqueças as coisas que teus olhos vi­
ram e para que não saiam de teu coração todos
os dias da tua vida; ensina-as aos teus filhos e aos
filhos dos teus filhos” (D t 4 ,9 ) .
Os judeus não preservaram monumentos anti­
gos, guardaram os momentos antigos. A luz que
se acendeu em sua história nunca se extinguiu.
Com vigorosa vitalidade o passado sobrevive em
seus pensamentos, em seus corações, em seus rituais.
A recordação é um ato sagrado: santificamos o
presente lembrando o passado.
Talvez seja por esta razão que em alguns livros
de orações judaicas encontramos dois resumos da
doutrina judaica, um, baseado nos ensinamentos de
Maimônides, contêm os famosos treze princípios e
o outro é uma lista de recordações41. É que as
coisas essenciais do judaísmo não são idéias abstra­
tas, mas acontecimentos concretos. O êxodo do
Egito, a Lei dada no Monte Sinai, a destruição do
Templo de Jerusalém deveriam estar constantemen­
te presentes no espírito de um judeu. Durante mais
de dezoito séculos o povo esteve afastado da Terra
Santa e, contudo, seu apego à Terra de Israel nunca
foi rompido. A alma de Israel jurou: “Se eu te
esquecer, ó Jerusalém, que minha mão direita es­
queça a sua destreza” (Sl 1 3 7 ,5 ).
Não longe de nossa consciência corre um lento
e silencioso rio, rio não do esquecimento, mas da
memória, do qual as almas devem beber constante­
mente antes de entrar no reino da fé. Bebendo
deste rio não precisamos dar um salto para alcançar
o nível da fé. Só devemos estar abertos às águas
do rio para ressoarmos, para recordarmos.
Há um lento e silencioso rio que corre no

41 R abi E . A zka ri — Haredim. Veneza, 1601, p.


18b e 23b.

168
horizonte de toda a história humana. O céu per­
tence ao Senhor, mas o rio é acessível a todos os
homens. E aquele que vive segundo a sua fé en­
contra-se na comunidade de inumeráveis homens de
todas as épocas, de todas as nações que aprenderam
que um homem com Deus é maioria contra todos
os homens do mal, que o amor misericordioso é
mais forte que o poder. Os credos podem dividi-la,
os fanáticos podem negá-la, mas a comunidade da
fé dura eternamente. As guerras não conseguem des­
truí-la, as rivalidades não consegüem vencê-la. Se
o demônio nos oferecesse todos os seus bens como
preço para traí-la, seria desprezado e rejeitado. “Por­
que desde o nascer até o pôr do sol meu nome
é grande entre os gentios e em toda parte se oferece
incenso ao meu nome e uma oferta pura: porque
grande é meu nome entre os gentios, diz o Senhor
dos Exércitos” (Ml 1 ,1 1 ). Essas palavras referem-
-se indubitavelmente aos contemporâneos do pro­
feta. Mas quem eram estes adoradores de Um Deus?
No tempo de Malaquias não havia grande número
de prosélitos. Mas a afirmação declara: “Todos
aqueles que adoram seus deuses não o sabem, mas
na realidade estão me adorando a mim” 42.

A fé como recordação individual

Mas ter fé não significa descansar à sombra


de idéias antigas, concebidas por profetas e sábios,
viver de um patrimônio herdado de doutrinas e
dogmas. No reino do espírito só quem é pioneiro
é capaz de ser herdeiro43. O preço do plágio es-

42 C f. R . N i s s i m G e r o n d i — Derasho th I X . Cons­
tantinopla, 1 5 3 0 (? ). p . 107a.
43 “ As Dezoito Bênçãos começam com as palavras:
‘Bendito sejas tu, Senhor, nosso D eus e D eus dos nossos

169
piritüal é a perda da integridade; auto-engrandeci-
mento é autotraição.
Fé autêntica é mais que um eco de uma tra­
dição. É uma situação criativa; um acontecimento.
Porque Deus não está sempre calado e o homem
não é sempre cego. Na vida de todo homem há
momentos em que se levanta o véu no horizonte
do conhecido abrindo uma visão do eterno. Cada
um de nós já experimentou pelo menos uma vez
na vida a momentosa realidade de D eus. Cada um
de nós já teve alguma vez um lampejo da beleza,
da paz e do poder que flui através das almas dos
que se devotam a ele. Mas tais experiências são
acontecimentos raros. Para algumas pessoas eles são
como estrelas cadentes que passam e são esqueci­
das. Em outros acendem uma luz que nunca mais
se apaga. A recordação dessa experiência e a leal­
dade à resposta de tal momento são as forças que
sustentam nossa fé. Neste sentido, fé ê fidelidade,
lealdade a um acontecimento, lealdade à nossa res­
posta.

Fé é crença

Deve-se distinguir entre crença e mera apreen­


são. Nem todas as idéias que apreendemos aceita­
mos como verdadeiras. Podemos imaginar algo se­
melhante a um elefante que voa, mas não acredita­
mos na sua existência real. Crer é aceitar mental-

pais, o D eus de Abraão, o D eus de Isaac, o D eus de Ja c ó ’


Perguntou-se: Por que é necessário especificar os três no­
mes depois de dizer ‘nossos pais’? A resposta é que a re­
petição serve para indicar que nem Isaac nem Jacó se b a­
searam totalmente em seus pais, mas procuraram encontrar
a D eus por si mesm os. É por isso que falamos do D eus
de Abraão, de Isaac, de Ja c ó ” . R a b i M e i r E is e n s t a d t —■
Panim Me’iroth , n° 39. Am sterdã, 1715.

170
mente uma proposição ou um fato como verdadeiro
com base em autoridade ou evidência. É a convic­
ção da verdade de uma dada proposição ou de um
fato afirmado.
Crença, neste sentido, não é um termo teoló­
gico, mas epistemológico que se aplica a toda es­
pécie de conhecimentos e quem a identifica com
a fé esquece a diferença entre a aceitação de um
julgamento e a aceitação de uma idéia de fé. Será
a fé somente uma atitude mental? Aceitamos, pela
fé, a existência de Deus da mesma maneira como
aceitamos a existência da torre de Pisa? Fé não
é um assentimento a uma idéia, mas um consenti­
mento a Deus.
A fé é uma relação a Deus. Crença é uma
relação a uma idéia ou a um dogma. Diversamente
da crença (que acompanha o confecimento ou apre­
ensão, o assentimento dado ao que conhecemos),
a fé eleva-se acima do conhecimento e da apreen­
são . Não se refere ao cognoscível, mas ao que
transcende o conhecimento. Além disso, a crença
é necessariamente um ato autoconsciente. Ao dizer:
“eu acredito”, há consciência de que é o eu que
aceita algo como verdadeiro. Crença é convicção
pessoal. Mas na desconfiança e temor em que nasce
a fé não há lugar para a autoconsciência. É mons­
truoso conceber a fé como um ato do homem que
dá sua opinião de perito, como um ato de reconhe­
cimento, de dar reconhecimento a Deus.
Um rabino hassídico, longe da sua casa, pas­
sou a noite em caça de um oponente do hassidismo.
Antes do clarear do dia, o dono da casa, conforme
seu costume, levantou-se para estudar o Talmud.
Passavam-se as horas e o rabino continuava na ca­
ma. “É coisa indigna de um homem tido como
um santo deixar passar as horas matinais sem es­
tudar a L ei”, pensava o dono da casa. Quando

171
afinal o rabino se levantou, o anfitrião falou-lhe
sobre seu dormir até tão tarde. “Estou acordado
há muitas horas”, disse o rabino. “Então, por que
não se levantou para estudar?” E o rabino replicou:
“Antes de abrir os olhos e de rezar: ‘Rendo graças
a ti. . . ’ comecei a pensar: Quem é ‘eu’ e quem é
‘tu’ . Como sou indigno de dar graças a ele. Es­
tava acima de minhas forças encontrar uma res­
posta, continuar a rezar ou le v a n ta r ...”
Acreditar sem fé é um ato formal, muitas ve­
zes tão pobre de sentido espiritual como uma prova
da existência de Deus produzida por uma máquina
de calcular. A fé, por outro lado, não é só o as­
sentimento a uma proposição, mas a aposta de toda
uma vida na verdade de uma realidade invisível.
Não se pode reduzi-la a um assentimento do mesmo
modo como não se pode fazê-lo com o amor. Sua
expressão adequada não é uma sóbria afirmação,
mas uma exclamação.

Fé e credo

Como dissemos acima, não devemos equiparar


o processo da fé com a sua expressão. Correspon­
dentemente, a /«' ou o ato de crer deve ser distin­
guido de credo ou daquilo em que cremos. Tam­
pouco racional quanto um ato de inspiração, a fé
se torna um dogma ou uma doutrina quando cris­
talizada numa opinião. Em outras palavras, o que
é expresso e ensinado como um credo não é senão
a adaptação do espírito incomum à mente comum.
Nosso credo é, tal como a música, uma tradução
do inexprimível numa forma de expressão. O ori­
ginal é conhecido só por Deus.
A fé é um ato de audácia espiritual, enquanto

172
usando termos necessariamente chegamos a um acor­
do com nosso desejo de segurança intelectual, de
estabilidade e tranqüilidade.
Os princípios supremos do pensamento e da
ação são inacessíveis à análise. Todas as ciências
especiais são obrigadas a admitir certo número de
pressuposições que não podem ser provadas. Tais
pressuposições baseiam-se numa certeza intuitiva po­
sitiva ou são aceitos pela razão negativa de que não
são negadas por nenhuma experiêçcia. Ninguém é
capaz de explicar racionalmente por que sacrificar
sua vida e felicidade por causa do bem. A convic­
ção de que devemos obedecer a imperativos éticos
não deriva de argumentos lógicos. Origina-se de
uma certeza intuitiva, de uma certeza de fé. Todas
as religiões positivas baseiam-se em fundamentos de
certo modo comparáveis. Os axicSfnas e os dogmas
só podem ser expressos em metáforas (o princípio
da preservação da energia é um exemplo) porque
se referem a algo que transcende a experiência e
nossos meios de expressão são derivados da expe­
riência .
A adequação dos dogmas depende de se eles
pretendem formular ou aludir. No primeiro caso
apenas aparentam e enganam, no segundo indicam
e iluminam. Para serem adequados devem manter
uma relação telescópica com o tema ao qual se re­
ferem. Devem apontar para os mistérios ao invés
de representá-los. Só podem marcar o caminho, mas
não o fim do pensamento. Os dogmas, se não fo­
rem pontos de sinalização do cominho, são obstá­
culos. São alusivos ao invés de informativos ou des­
critivos . Se tomados literalmente são superficiais,
estreitos, triviais ou se transformam em mitos ven­
tríloquos. Assim, por exemplo, o dogma da criação
foi freqüentemente reduzido a um conto e despo­
jado de sua verdadeira significação, quando como

173
alusão a um fato supremo é de inexaurível impor­
tância .
Há muitas experiências para as quais não te­
mos nomes, muitos estratos da fé para os quais não
temos dogmas. Procurando um meio para trans­
mitir o inexprimível, o homem se dispõe a embarcar
num veículo que segue para qualquer direção e do
qual depois é difícil desembarcar.
Um jovem queria ir a Nova Iorque. Esperan­
do carona na estrada, parou um carro que passava:
“Você vai em direção leste, para Nova Iorque?”
— “Não, estou indo para o oeste, para Chicago” .
— “Bem, então vou a Chicago” .

A idolatria dos dogmas

Muitas vezes o homem transforma um dogma


em deus, uma imagem esculpida que adora, à qual
dirige suas preces. Prefere crer em dogmas a crer
em Deus, servindo-os não por amor aos céus, mas
por causa de um credo, o diminutivo da fé.
Os dogmas são a partilha da mente pobre na
realidade divina. Um credo é quase tudo o que tem
um homem pobre. Pele por pele, dará sua vida por
tudo o que tem. Pode até estar disposto a tirar
a vida de outras pessoas se essas recusarem com­
partilhar de sua doutrina.

São os dogmas desnecessários

São os dogmas desnecessários? Não podemos


estar em relação com a realidade divina se não por
raros e fugitivos momentos. Como podem ser guar­
dados esses momentos para as longas horas da vida
funcional, quando os pensamentos que, como abe­

174
lhas, nos alimentam no inescrutável deserto da vida,
quando perdemos a visão e o impulso? Os dogmas
são como o âmbar em que são embalsamadas as abe­
lhas, outrora vivas, e que podem ser eletrificadas
quando nossas mentes estiverem expostas à energia
do inefável. Pois os problemas com que constante­
mente nos debatemos são: como comunicar esses
raros momentos de percepção a todas as horas da
nossa vida? Como confiar a intuição a conceitos, o
inefável às palavras, a comunhão |io entendimento
racional? Como transmitir a outros nossas percep­
ções e uni-los numa união de fé? É o credo que
tenta responder a esses problemas44.
“Meu filho, ouve os ensinamentos de teu pai
e não esqueças aquilo que te ensina tua mãe” (Prov
1 ,8 ). Nosso credo é como uma mãe que nunca se
impacienta com nossa loucura e ftbssas faltas, que
nunca se esquece, mesmo que nossa fé desapareça
no esquecimento.
Há muitos credos, mas uma só fé universal.
Os credos podem mudar, desenvolver-se, desapare­
cer, mas a substância da fé permanece a mesma
em todos os tempos. A hipertrofia do credo pode
esmagar e marcar o fim da fé. Um mínimo de
credo e um máximo de fé é a síntese ideal.

Fé e razão

Impelidos pela audácia da fé, deixando atrás


as altitudes da sabedoria, os homens de fé são oca­
sionalmente tomados por dúvidas: não será a fé
um castelo no ar em comparação com a razão, que
é inexpugnável e sólida como uma fortaleza? Mui-

44 E stes problemas serão discutidos num volume que


fará seqüência ao presente.

175
tas vezes homens de fé estão prontos a trocar visões
incomparáveis e inalienáveis por noções fabricadas
em produção de massa 45. Mas não há taxa de câm­
bio para tais visões, pois querer avaliar a fé em
termos de razão é como querer compreender o amor
como um silogismo e a beleza como uma expressão
algébrica.
O que pretendemos com nosso ceticismo? Vê-
-lo na tela do televisor? Que a fé se cristalize em
moeda corrente do conhecimento?
Raramente conseguimos levantar uma torre que,
apoiando-se sobre a base de silogismos, alcance a
altura da fé. Querer traduzir as visões da fé em
termos de especulação é como querer construir um
avião com rocha maciça.
Não devemos esquecer que em nossas tenta­
tivas de defender a crença, estamos analisando o
credo em vez da fé, cujo conteúdo é fino demais
para ficar retido na peneira da lógica.
A razão não é a medida de todas as coisas,
não é o poder que tudo controla na vida de um
homem; não é o pai de todas as afirmações. O
grito de um homem ferido não é produto de um
pensamento discursivo. A ciência não pode ser esta­
belecida em termos de arte nem a arte em termos
de ciência. E por que a fé, para ser válida, deveria
depender da justificação da ciência?
A consciência de Deus, como já vimos, não
penetra na mente por meio de silogismos e a cer­
teza da fé não pode ser apresentada na bandeja de
prata da especulação. A plausibilidade lógica não
cria a fé, como também não a refuta a implausibi-
lidade lógica.

45 “ O s teólogos ficaram gratos por pequenos favores


e não se preocupam muito com o tipo de D eus que o
cientista lhes oferece, se é que lhes oferece algum ” . B .
R u s s e ll — The Scientific Outlook, p. 115.

176
A razão procura integrar o desconhecido com
o conhecido. A fé procura integrar o desconhecido
com o divino. Seu fruto sazonado não é o juízo
frio, mas a adesão, a ação, o cântico e a aproxima­
ção a ele. Enquanto o historiador explica os so­
frimentos de Israel pela geografia política da Pa­
lestina, que, situada na encruzilhada de três conti­
nentes, estava exposta à ambição dos conquistadores,
o profeta fala do plano divino de permitir que Is­
rael fosse afligido para expiar não só os próprios
pecados, mas também os pecados dòs pagãos.
Quando transformada em credo, a fé é tradu­
zida em termos convencionais de razão. Tais ter­
mos vêm e vão e o que é lúcido hoje, pode ser
uma caricatura amanhã. O grande conflito da ra­
zão não é com a fé, mas com o credo.
%

“ Dá-nos conhecimento. . . ”

“Não pode haver mal maior para alguém que


a aversão ao raciocínio. Mas a aversão ao raciocínio
e a aversão aos homens nasce da mesma fonte. . .
Preocupai-vos pouco de Sócrates, mas muito mais
da verdade e se achardes que digo algo de verdade
concordai com ela, se não, oponde-vos a mim com
todas as vossas forças” ( Fédon 8 7 .9 1 ) .
Na tradição judaica a razão foi sempre consi­
derada como um dos dons principais de Deus ao
homem. Será muito difícil descobrir na história
do pensamento judaico alguma tendência de cons­
pirar contra suas conclusões ou de contestá-las. A
primeira coisa pela qual os judeus rezam três vezes
ao dia, não é o pão de cada dia, nem a saúde e
nem o perdão dos pecados, mas o conhecimento:
“Dá-nos conhecimento, entendimento, percepção”.
Se a única garantia de um credo consistisse

177
12 - O homem não está só
no áéu entrincheiramento atrás da muralha de uma
obstinada crença, seria sinal de que no fundo dela
haveria medo e não fé, desconfiança e não confian­
ça. A verdade não tem nada que temer a razão. O
que abominamos é a presunção que tantas vezes
acompanha o super-racionalismo, a razão condicio­
nada pela vaidade, a razão subserviente à paixão.
Era opinião predominante entre òs grandes pen­
sadores judeus da Idade Média que não pode haver
conflito entre os ensinamentos que nos foram mi­
nistrados pela revelação e as idéias adquiridas pela
razão. A idéia da sua intrínseca harmonia era, na
concepção desses pensadores, uma implicação neces­
sária do monoteísmo. O que está contido na men­
sagem divina não pode deturpar a realidade nem
contradizer nenhuma verdade ensinada pela ciência,
porque tanto a razão como a revelação se originam
da sabedoria de Deus que criou toda a realidade
e conhece toda a verdade. Um desacordo essencial
entre razão e revelação pressuporia a existência de
dois seres divinos, cada qual representando uma
fonte diferente e independente.
Portanto, a fé nunca poderá obrigar a razão
a aceitar algo que é absurdo .
Nem a fé nem a razão abrangem tudo nem
tampouco são auto-suficientes. As percepções da fé
são gerais e vagas e necessitam de uma conceituação
para serem comunicadas à mente, para serem inte­
gradas e para que adquiram coerência. A razão é
um coeficiente necessário da fé, que empresta forma
àquilo que muitas vezes se torna violento, cego e
exagerado pela imaginação. A fé sem razão é muda;
a razão sem fé é surda.
Mas será que realmente cremos? Certa vez
um Hassid46 começou a recitar os treze princí­

46 H assidism o é um movimento religioso judaico, de

178
pios de Maimônides: “Creio firmemente que o Cria­
dor, bendito seja o seu nome, é o Criador e Se­
nhor de todos os seres criados. . . ” De repente pa­
rou: “Posso dizer que creio firmemente? Se assim
fosse, eu não estaria tão revoltado, não seria tão
profano; não rezaria com tanta frieza. . . Mas se
não creio firmemente, como ouso proferir uma men­
tira. . . Não, não direi mais isso; mentir é pior
que não crer. . . Mas isso significaria que não creio.
Entretanto, eu creio!. . . ” Fez nov^ pausa e final­
mente encontrou a saída. Resolveu dizer: “Que
eu possa crer firmemente. . . ”
Esdras, o Escriba, o grande restaurador do Ju­
daísmo, de quem os rabinos diziam ser digno de
receber a Torá se já não tivesse sido recebida por
Moisés (Sanhedrin 2 1 b ) , confessava sua falta de
fé perfeita. Conta-nos que depois de ter recebido
um decreto real do rei Artaxerxes concedendo-lhe
permissão de partir de Babilônia com um grupo de
exilados: “Proclamei um jejum junto ao rio Àhava
para nos humilharmos diante de nosso Deus a fim
de obtermos dele uma feliz viagem para nós, nossos
filhos, e todos os nossos haveres. Pois, eu tinha
vergonha de pedir ao Rei uma escolta de soldados
e cavaleiros para proteger-nos contra os inimigos
durante o percurso, porque tínhamos dito ao rei
que a mão de Deus se estende protetora sobre to­
dos aqueles que o procuram” (Esdr 8 ,2 1 -2 2 ).

Fé é reciprocidade

A fé não é um refúgio num santuário, mas uma


interminável peregrinação do coração. Desejos au­
dazes, canções ardentes, pensamentos corajosos, um.

caráter pietista, que surgiu na Ucrânia no século X V I I I .


(N . do T . ) .

179
impulso que domina o coração, que se apodera da
mente — tudo isso impele a servir aquele que res­
soa em nossos corações como um sino. Ele está
esperando para entrar em nossas vidas vazias e ago­
nizantes . Confiar em nossa fé seria idolatria. Só
temos o direito de confiar em Deus. A fé não é
uma garantia, mas um constante esforço, uma cons­
tante escuta da voz eterna.
A fé não é uma característica da mentalidade
humana: auto-extinção da curiosidade, ascese da ra­
zão, qualidade psicológica que se refere só ao ho­
mem. Sua essência não se revela na maneira como
a exprimimos, mas na concordância da alma com
o que é importante para Deus, na entrega do nosso
amor àquilo que Deus aprova, em sermos arrebata­
dos pela onda dos seus pensamentos, em sermos
elevados acima do desolado horizonte do desespero
humano. A fé só é real quando não for unilateral,
mas recíproca. O homem pode confiar em Deus,
se Deus puder confiar no homem. Podemos ter
confiança nele porque ele tem confiança em nós47.
Ter fé significa justificar a fé de Deus no homem.
É tão importante que Deus creia no homem quanto
o é que o homem creia em Deus. Assim, fé é cons­
ciência de reciprocidade e parceria divina, uma for­
ma de comunhão entre Deus e o homem.

Religião é mais que vida interior

Temos a tendência de definir a essência da re­


ligião como um estado de alma, algo de íntimo, um
sentimento absoluto, e supomos que uma pessoa
religiosa esteja dotada de uma espécie de sentimen­
to tão profundo que não aflora à superfície dos atos

1,7 Em Deuteronômio 32,4 atribui-se fé a D eus.

180
comuns, como se a religião fosse uma planta que só
pode vingar no fundo do oceano. Como já vimos,
a religião não é um sentimento a respeito de algo
que existe, mas uma resposta àquele que nos pede
viver de certa maneira.
Na sua própria origem é uma consciência de
dever, de estarmos destinados a fins superiores. A
compreensão de que a vida é a esfera dos inte­
resses não só do homem, mas também de Deus.
A fé não atinge o seu fim ao alcançar a certeza
da sua existência. A fé é o início' de uma intensa
aspiração a entrar em síntese com aquele que está
além do mistério, de unir todo o poder que está
dentro de nós com toda a realidade espiritual acima
de nós. Mas qual é a língua desta comunhão, sem
a qual nosso impulso permanece inarticulado?
Aprendemos que o que Deu&pede do homem
é mais que uma atitude interior, que ele dá ao ho­
mem não só a vida, mas também uma lei, que sua
vontade é ser servido e não só adorado, obedecido
e não só cultuado. A fé nos invade como uma força
que nos impele à ação, à qual respondemos com­
prometendo-nos a uma devoção constante, entregan-
do-nos à presença de Deus. Permanece uma filia­
ção por toda vida, uma lealdade que implica limi­
tação, submissão, autocontrole e coragem.
O Judaísmo insiste em estabelecer uma unida­
de entre fé e credo, entre piedade e Halakha4S,
entre devoção e ação. A fé é só uma semente, en­
quanto a ação é seu desenvolvimento ou sua deca­
dência. A fé desencarnada, a fé que procura viver
em esplêndido isolamento é apenas um espírito,
para o qual não há lugar em nosso mundo psico-
físico.
O que o credo é em relação à fé, a H alakha

48 Halakha[ é a lei, a norm a.

181
é em relação à pied ad e. Como a fé não pode existir
sem um credo, a piedade não pode subsistir sem
uma norma de ação. Como a inteligência não pode
ficar separada da instrução, a religião não pode ser
divorciada do procedimento. O Judaísmo é vivido
em atos e não só em pensamentos.
Uma norma de vida — o objeto da busca
mais urgente do homem que corresponda à sua dig­
nidade, deve levar em consideração não só sua ca­
pacidade de explorar as forças da natureza e apreciar
a beleza das suas formas, mas também seu sentido
único do inefável. Deve prever não só a satisfação
das necessidades, mas também a realização dos fins.

182
H
II.

O PROBLEM A DA VIDA
18

O problema das necessidades

*
Da admiração à piedade

Se o homem está fundamentalmente preso e


ligado nas raízes do seu ser, está desligado e de­
simpedido em seus pensamentos e ações, livre para
agir e livre para abster-se. Tem85*© poder de deso­
bedecer. Mas uma árvore se conhece pelos seus
frutos, não pelas suas raízes. Não há árvores feias,
mas há frutos bichados. Assim, há somente uma
questão digna da suprema preocupação: como viver
num mundo saturado de mentiras e permanecer im­
poluto, como não se deixar dominar pelo desespero,
como não fugir, mas combater e conseguir manter
a alma pura e até ajudar para a purificação do
mundo?
Esta força, esta orientação não pode ser arran­
cada das estrelas. A natureza é demasiadamente in­
diferente ou demasiadamente velha para ensinar ao
homem confuso como distinguir o certo do errado.
O sentido do inefável é necessário, mas não é su­
ficiente para encontrar o caminho que leva da admi­
ração à adoração, da vontade à realização, do temor
à ação.
A filosofia ocidental sofreu sua trágica derrota
em conseqüência da predileção dos seus grandes mes­

185
tres pelo problema do conhecimento. Dirigida pela
idéia de que quem sabe como pensar também sa­
berá como viver, a filosofia, desde a época de Só­
crates, tem sido primariamente uma indagação sobre
como pensar certo. Particularmente, à partir da
época de Descartes concentrou sua atenção sobre o
problema do conhecimento, esquecendo cada vez mais
o problema da vida. Efetivamente, quanto menos
importância tivesse um problema para a vida, tanto
mais respeitável e digno de exploração parecia aos
filósofos.
Entretanto, pensar sobre os problemas últimos
é mais do que uma técnica particular. É um ato
da personalidade to ta l49, um processo em que estão
envolvidas todas as faculdades da mente e da alma,
que está necessariamente atingido pelo clima pessoal
em que se passa. Pensamos da maneira como vive­
mos. Para pensar o que sentimos temos que viver
o que pensamos. Se a cultura há de ser algo mais
que o produto de uma estufa, deverá brotar do solo
da vida cotidiana e por sua vez atingir o reduto
interno da personalidade humana. A cultura deve
crescer de dentro para fora, partindo da existência,
do procedimento e das condições concretas do
homem.

O problema do neutro

O problema da vida não está em saber como


precaver-se contra as fraudulências, ou na percepção
de quanto erramos no tratamento com os outros.
Começa na relação para conosco mesmos, com o
tratamento das nossas funções fisiológicas e emo­
cionais. A primeira coisa que entra em questão na

49 C f. cap. 8 acima.

186
vida do homem não é o fato do pecado, dos atos
errados e corruptos, mas os atos naturais, as necessi­
d a d es. Nossas posses não constituem um problema
menor que as nossas paixões. Portanto, a primeira
tarefa não é como agir em relação ao mal, mas como
agir em relação ao neutro, como tratar as neces­
sidades .

A experiência das necessidades

A vontade permaneceria adormecida na natu­


reza humana, se não fosse o fato de que existe uma
maneira de estimulá-lo constantemente. Esta é a
experiência das necessidades, o sentimento de pres­
são e urgência decorrente de causas internas ou ex­
ternas, para cuja satisfação o hoipem necessita mo­
bilizar suas forças latentes.
Portanto, as necessidades são o sistema de co­
municações do homem com o seu mundo interior
e exterior. Levam à consciência as necessidades da
vida, determinam também os objetivos que o ho­
mem escolhe para o planejamento e a ação. Muitas
vezes, embora nem sempre, as coisas do mundo que
se encontram ao redor dele, permanecem fora do
seu alcance visual enquanto não se tornarem objetos
das suas necessidades.
Absorvido em seus pensamentos e sentimen­
tos, o homem pode excluir-se do seu ambiente. É
nas suas necessidades que se encontra novamente
com o mundo. As necessidades são as encruzilhadas
da vida interior e exterior. Portanto, devemos tra­
tar o problema da vida mediante uma análise das
necessidades.
Especificamente, a necessidade denota a ausên­
cia ou carência de algo indispensável ao bem-estar
de uma pessoa, evocando o desejo urgente de satis­

187
fação'-50. Psicologicamente, onde quer que haja uma
necessidade há um desejo de satisfazê-lo e quando
não se sente um desejo, não foi expressa a necessi­
dade. Ignoti nulla cupido. “Não se deseja o que
não se conhece” (Ovídio, Ars A matoria, I I I . 1.3 9 7 ).
Só desejamos aquilo que conhecemos.

Quando encontramos uma jóia, logo


Nos inclinamos porque a vimos.
Mas pisamos sobre o que não vemos
Sem nem sequer pensar no fato
( Shakespeare, M edida por medida,
Ato II, cena 1 ) .

A vida — um aglomerado de necessidades

Todo ser humano é um aglomerado de necessi­


dades. Mas estas necessidades não são as mesmas
para todos os homens, tampouco são imutáveis em
cada homem. Há um mínimo fixo de necessidades
para todos os homens, mas não existe um máximo
fixo para cada homem. Diversamente dos animais, o
homem é um campo de imprevisível emergência e
multiplicação de necessidades e interesses, sendo al­
gumas inatas à natureza do homem, enquanto ou­
tras são provocadas pela propaganda, pela moda,
pela inveja ou aparecem como adulteração de ne­
cessidades autênticas. Geralmente não distinguimos
entre necessidades autênticas e necessidades artifi­
ciais . Tomando erroneamente um simples capricho

50 O termo “ necessidade” geralmente é empregado em


dois sentidos: um indica uma carência real, uma condição
objetiva e o outro a consciência de tal carência. Aqui o
termo é usado no segundo sentido, em que necessidade é
sinônimo de interesse, ou seja, uma capacidade não satis­
feita que corresponde a uma condição não realizada.

188
por uma aspiração somos envolvidos em desagradá­
veis tensões. Muitas obsessões são a perpetuação
de tais equívocos. Com efeito, há mais pessoas que
morrem na epidemia das necessidades que na epi­
demia de uma doença.
Se a evolução biológica do homem pode ser
explicada como uma adatação ao seu ambiente, o
progresso da civilização deve ser definido como um
ajustamento das condições ambientais às necessida­
des humanas. Não há desejos materiais que a ciên­
cia e a tecnologia não prometam satisfazer. Impe­
dir a expansão das necessidades do homem, que por
sua vez são provocadas pelo progresso tecnológico
e social, significaria estancar a corrente sobre a qual
navega a civilização. Mas se essa corrente não for
controlada pode aniquilar a própria civilização, pois
a pressão das necessidades transformadas em inte­
resses agressivos é a constante causa das guerras e
aumenta na proporção direta do progresso tecnoló­
gico. A moral tenta julgar e distinguir entre inte­
resses justos e interesses injustos, mas aparece tarde
demais para poder ser eficaz. Quando os interesses
se entrincheiraram não há princípios que consigam
desalojá-los. A alma é demasiadamente incerta,
cheia de desejos e ressentimentos, rebelde, incons­
tante e relutante para aceitar a hegemonia da razão.

A inadequação da ética

O mais premente e o mais ignorado de todos


os problemas — como viver — não se resolve
com a aprendizagem de normas adequadas. O co­
nhecimento da ética está tão longe de identificar-se
com a virtude quanto o está a erudição em teoria
musical de transformar alguém em artista. Pode-se
ter muito estudo e ser perverso, ser uma autorida­
de em teoria ética e ser patife, saber condenar o

189
ódio è ao mesmo tempo ser incapaz de dominá-lo.
Não se vive a vida à maneira de um debate entre
as faculdades membros da alma, em que a mais
persuasiva ganhasse a discussão. A vida é muitas
vezes uma guerra em que as forças desordenadas
de paixões loucas, caprichosas são lançadas numa
batalha. É uma guerra que não se pode ganhar
pela nobre magia de simplesmente lembrar uma
regra de ouro. Como poderia uma sábia abstração
competir com a ira, a astúcia, a insaciabilidade e
o favoritismo do ego para consigo mesmo?
E verdade que nossa razão responde a argu­
mentos racionais. Mas a razão é um estranho soli­
tário na alma, enquanto as forças irracionais se
sentem em casa e estão sempre em maioria. Por
que sofrer em nome da virtude? Por que agir con­
tra a natureza e escolher o que é correto quando
o prazer abunda do lado do vício? Por que renun­
ciar àquilo que naturalmente se deveria preferir ou
por que suportar voluntariamente o que natural­
mente se evitaria?
A ética supõe que o homem consulta sua ca­
pacidade de julgamento, que decida sobre a atitude
a tomar à luz de princípios gerais e que execute
fielmente a sábia decisão. Assim fazendo, não só
subestima a dificuldade de aplicar normas gerais a
situações particulares, muitas vezes intrincadas, per­
plexas e ambivalentes, mas ainda supõe que todo
homem combine dentro de si poderes judiciais e
executivos. Além disso, enquanto nos aponta aquilo
para o que lutamos, a teoria ética nada nos diz
sobre como ganhar a batalha. Diz-nos o que de­
vemos fazer, mas não nos diz como dominar a lou­
cura e a insensatez. É bem verdade que a ética
pede a aquisição de bons hábitos e não só o conhe­
cimento . Mas não há nenhuma soma de hábitos
que possa abranger a totalidade da vida.

190
O perigo da vida

Diante das grandes e graves emergências da


vida geralmente nos encontramos despreparados, ape­
sar da nossa educação ter o objetivo de preparar­
mos para as lutas a enfrentar no futuro. Ninguém
pode rasgar os véus do futuro para ver as exigências
que lhe estão reservadas. Ninguém é capaz de cal­
cular as voltas por onde girará nebulosa espiral
da vida, nem de predizer a que profundidades a
inveja, a paixão e o desejo de prestígio pode levar
uma pessoa. O que deveríamos fazer antes de re­
pelir um impulso inesperado do subconsciente de
vingar-nos, de insultar, de ferir? Basta um pensa­
mento viciado para atacar e espalhar-se como um
cancro na raiz de todos os ouíftos pensamentos.
Uma pessoa atingida pelo mal transforma-se rapi­
damente em maioria contra uma multidão de pessoas
imparciais em relação ao mal. O homem não é
feito para a neutralidade, para. ficar insensível ou
indiferente. O mundo não pode permanecer um
vácuo. Se não fizermos dele um altar para Deus,
será invadido pelos demônios.
Com sua ilimitada e incontrolada capacidade
de ferir, com sua imensa expansão de poder, e por
outro lado com o rápido declínio da compaixão, a
vida se tornou sinônimo de perigo. Em quem confiar
para proteção contra nós mesmos? Como reabas­
tecer a exígua corrente da integridade das nossas
almas? Incontáveis são as situações em que teste­
munhamos como desfalece o poder de julgamento
em espíritos errantes, como a integridade colide
com um desejo vil que surge no caminho.

“O que ousam os homens fazer!


O que podem os homens fazer!

191
O que fazem diariamente os homens,
sem saber o que estão fazendo!”
( Shakespeare, M uito barulho por nada,
Ato IV , cena 1 ,1 .1 9 ).

Uma das lições que tiramos dos acontecimen­


tos de nossa época é a de que não podemos habi­
tar tranqüilamente sob o sol da civilização, que o
homem é o menos inofensivo de todos os seres. É
como se a cada minuto estivéssemos dominados por
uma tensão semelhante àquela que medeia entre
o relâmpago e o trovão. A nossa ordem moral asse-
melha-se a portentosos e velhos carvalhos cujas raí­
zes estão carcomidas. Bastou uma tempestade para
transformar a civilização num incrível inferno.
As árvores não morrem por causa da idade,
mas por causa das barreiras que impedem os raios
do sol de atingi-las, por causa dos galhos que per­
dem o autodomínio, estendendo-se mais que as raí­
zes são capazes de suportar. Pode ser que hoje
raramente contemplamos o céu ou o horizonte.
No entanto, há relâmpagos que até mesmo as ár­
vores mais robustas não deixam de temer. Só os
loucos têm medo de temer e de escutar a cons­
tante queda da força e do tempo sobre suas ca­
beças, enquanto a vida é sepultada sob as ruínas.

As necessidades não são santas

Hoje as necessidades são consideradas como al­


go de sagrado, como se elas contivessem a quintes­
sência do que é eterno. As necessidades são nossos
deuses. Trabalhamos e nenhum esforço poupamos
para satisfazê-las. A supressão de um desejo é con­
siderada sacrilégio que deverá inevitavelmente vin-
gar-se sob a forma de alguma desordem mental.

192
Adoramos não um, mas todo um panteão de ne­
cessidades e chegamos ao ponto de não ver na mo­
ral e nas normas espirituais nada mais que desejos
pessoais disfarçados.
É realmente grotesco que, enquanto na ciência
a visão antropocêntrica da terra como centro do uni­
verso e do homem como fim de todo ser foi aban­
donada há muito tempo, na vida real se continue
a adotar uma visão egocêntrica do homem e de suas
necessidades como medida de todo^ os valores, sem
nada para determinar seu modo de vida, exceto suas
próprias necessidades. Se a satisfação das necessi­
dades humanas tivesse que ser tomada como me­
dida de todas as coisas, o mundo, que jamais se
ajusta às nossas necessidades, deveria ser conside­
rado como um erro abissal. A natureza humana é
insaciável, e o progresso nunca eünsegue acompa­
nhar o ritmo da evolução das necessidades.

Quem conhece suas reais necessidades?


Não podemos estabelecer nossos juízos, deci­
sões e orientações para a ação em dependência das
nossas necessidades. A verdade é que o homem que
descobriu tanto sobre tantas coisas não conhece seu
próprio coração, nem sua própria voz. Muitos dos
interesses e necessidades que alimentamos nos são
impostos pelas convenções da sociedade, ao invés
de serem inatas à nossa essência. Se algumas delas
são necessidades reais, outras são fictícias e adota­
das em conseqüência das convenções, da propaganda
dra filosofal no conceito das necessidades. Mas quem
ou da pura inveja.
O pensamento moderno acredita possuir a pe-
é que conhece suas reais necessidades? Como dis­
tinguir as necessidades autênticas das fictícias, ne­
cessidades reais de pretextos?

193
13 - O homem não está só
Via de regra tomamos consciência de nossas
aspirações autênticas súbita e inesperadamente. Não
no início, mas já tarde no decorrer de nossa vida.
Como só raramente entendemos o que queremos
antes que já seja quase tarde demais, nossos senti­
mentos não podem ser indicadores do que é essen­
cial. Somos todos zelosos e prontos para dominar
as forças hostis da natureza, para combater o que
é hostil à nossa sobrevivência física, as doenças, os
inimigos, o perigo. Mas quantos de nós são zelosos
e estão dispostos a subjugar o mal dentro de nós
ou a combater o crime quando não ameaça nossa
própria sobrevivência, a decadência da alma, o ini­
migo dentro das nossas necessidades?
Tendo absorvido uma enorme quantidade de ne­
cessidades e tendo ao mesmo tempo aprendido a
apreciar grandes valores tais como a justiça, a liber­
dade, a fé, como interesses particulares, começamos
a perguntar-nos se podemos confiar nas necessidades
e interesses. Se é verdade que há interesses que
todos os homens têm em comum, a maioria dos
nossos interesses particulares, tais como são afirma­
dos na vida cotidiana, dividem-nos e antagonizam-
-nos ao invés de nos unir.
O interesse é um princípio subjetivo, um prin­
cípio que divide. É a excitação do sentimento que
acompanha uma atenção especial dada a algum obje­
to . Mas prestamos atenção suficiente às exigências
da justiça universal? Na verdade, o interesse pelo
bem-estar universal é geralmente bloqueado pelo in­
teresse do bem-estar particular, especialmente quan­
do tiver que ser alcançado ao preço da renúncia
aos interesses pessoais. É justamente porque a for­
ça dos interesses tiraniza nossas vidas, determina
nossas idéias e ações, que perdemos de vista os
valores mais importantes.

194
Necessidades verdadeiras
e necessidades falsas

Curta é a distância que separa a necessidade


tia voracidade. As condições do mal fazem ferver
dentro de nós más necessidades, sonhos loucos.
Poderemos permitir-nos seguir todas as nossas ne­
cessidades inatas, mesmo o nosso desejo de poder?
Na trágica confusão de intergsses em que se
encontra enredado cada um de nós, nenhuma outra
distinção parece tão indispensável quanto a distin­
ção entre interesses verdadeiros e interesses falsos.
Mas os conceitos de verdadeiro e falso, para serem
normas em nosso tratamento dos interesses, não
podem eles próprios ser interesses. Determinadas
que são pelo temperamento, pelos preconceitos, pela
história e pelo ambiente de cada indivíduo e de
cada grupo, as necessidades, ao invés de serem
nossas normas, constituem nossos problemas. Em
vez de constituírem a fonte das normas, elas ca­
recem de normas.
Como poderia erigir-se a ambição individual ou
nacional em medida objetivamente necessária e exi­
gível, se nações inteiras podem ser levadas a ali­
mentar maus interesses? Se fosse criado um estado
universal e a humanidade por maioria de votos de­
cidisse que um grupo étnico particular deve ser
exterminado, porque isso é do interesse da huma­
nidade, tal decisão seria certa? Ou seria correta a
declaração de uma nação credora de que 2 + 2 = 5?
Uma ação é certa, uma afirmação é verdadeira in­
dependentemente de ser conveniente ou não.
Verdadeiro não é o que é oportuno, como tam­
pouco é necessariamente certo o que desejamos para
a satisfação de prementes necessidades. O que é
certo pode corresponder ao nosso interesse atual,

195
majbi não é o nosso interesse em si mesmo que é
certo. O certo está acima do sentimento de inte­
resse. Pode exigir que se façam coisas das quais
não sentimos necessidade, coisas exigidas, mas não
desejadas.
Quem emprega as realidades da vida como
meios para satisfazer seus próprios desejos não tar­
dará a perder sua liberdade e será degradado a um
mero instrumento. Adquirindo as coisas, torna-se
escravo delas. Subjugando os outros, perde sua
própria alma. A cobiça desenfreada tem como que
duas faces; uma irônica e sutil vingança atrás de
um sorriso cativante. Dificilmente podemos erigir
as necessidades, um fator desconhecido, variável, va­
cilante e eventualmente degradante em regra uni­
versal, como suprema e perene norma ou padrão
para a vida.
Sentimo-nos presos no confinamento das ne­
cessidades pessoais. Quanto mais cedemos às satis­
fações, tanto mais profundo será o nosso sentimen­
to de opressão. Para ser iconoclasta das necessida­
des idolizadas, para desafiar nossos próprios inte­
resses imorais, que podem parecer vitais e ter sido
acalentados por longo tempo, devemos ter a força
de dizer não a nós mesmos em nome de um sim
mais alto. Mas nossas mentes são tardias, lentas e
errantes. O que é que nos pode dar o poder de
dominar a deferência para com as falsas necessida­
des, de detectar as falácias espirituais, de repelir
os falsos ideais e de lutar contra a desatenção ao
que não é aparatoso, mas é santo? As necessidades
não podem ser tratadas uma a uma, isoladamente,
mas devem ser estudadas todas de uma só vez, em
sua raiz. Para entender o problema das necessi­
dades, temos que enfrentar o problema do homem,
que é o sujeito das necessidades. O homem está
animado por mais necessidades que qualquer outro

196
ser. Estas parecem situar-se além da sua vontade
c são independentes da sua volição. São a fonte e
não o produto do desejo. Conseqüentemente só po­
deremos julgar as necessidades se conseguirmos en­
tender o sentido da existência 51.

51 C í. cap. 15 — 0 IN T E R E S S E D IV IN O — Preo­
cupação tran sitiva.

197
10 -

O sentido da existência

A inconsciência favorita do homem

Todas as nossas teorias serão falsas, lançarão


areia em nossos olhos, se não tivermos a coragem
de confrontar-nos não só com o mundo, mas tam­
bém com a alma e começarmos a admirar-nos da
nossa falta de admiração, do fato de estarmos vivos,
de tomarmos a vida como coisa evidente.
O confronto com a alma é uma abertura inte­
lectual que abre a mente a incalculáveis problemas,
cujas respostas não são fáceis. Por isso o homem
moderno crê encontrar sua segurança evitando le­
vantar tais questões. As questões supremas torna-
ram-se o objeto favorito da sua inconsciência. Como
a dedicação às coisas tangíveis é altamente compen­
sadora, não procura dar atenção às questões impon­
deráveis e prefere levantar uma torre de Babel so­
bre a estreita base de uma profunda inconsciência.
A inconsciência da realidade última é um es­
tado mental que é possível enquanto o homem en­
contra tranqüilidade na sua dedicação a objetivos
parciais. Mas quando a torre começa a estremecer,
quando a morte destrói o que parecia poderoso e
independente, quando nos dias maus as delícias da
luta não substituídas pelo pesadelo da futilidade,
toma consciência do perigo de uma atitude, eva­
siva, do vazio dos pequenos objetivos. Sua apre-

198
cnsão, se não tiver esbanjado a vida atrás de pe­
quenos prêmios, abre-lhe a alma para as questões
que tentou evitar.

O sentido da existência

Mas o que está em jogo na vida humana que


corre o perigo de ser perdido? O sentido da vida.
Jim todos os atos que pratica, o homem procura
um sentido. As árvores que plari'ta, os instrumen­
tos que inventa são respostas a uma necessidade ou
a uma finalidade. Pela sua própria essência a cons­
ciência é a dedicação a um fim. Entregue à tarefa
de unir o ser com o sentido, as coisas com as idéias,
a mente pergunta-se se o sentido é algo que ela
pode inventar e valorizar, algo que deve ser con­
quistado ou se há um sentido para a existência en­
quanto existência, independentemente do que pos­
samos acrescentar-lhe. Em outras palavras, será que
existe sentido só no que o hom em faz, mas não no
que ele é? Tomando consciência de si mesmo, o
homem não pára no conhecimento do “eu sou”,
mas é levado a querer saber o “que” ele é. O
homem pode ser caracterizado como um sujeito à
procura de um predicado, um ser em busca de um
sentido da vida, de toda a vida e não só de ações
ou episódios isolados que ocorrem de vez em
quando.
O sentido denota uma condição que não pode
ser reduzida a uma relação material nem apreendida
pelos órgãos sensitivos. Sentido é compatibilidade
com uma idéia. É , além disso, aquilo que um fato
é em vista de algo mais. É a plenificação de um
objeto com valor. A vida é valiosa para o homem.
Mas o é somente para ele? Ou há alguém mais
necessitado dela?

199
A suposição suprema

Impregnada na mente há a certeza de que exis­


tência e sentido estão relacionados entre si, que a
vida é avaliável em termos de sentido. O desejo
de sentido e a certeza da legitimidade da nossa luta
para atingi-lo são tão intrinsecamente humanos como
a vontade de viver e a certeza de estar vivo.
Apesar dos erros e frustrações, continuamos
perseguidos por essa busca irreprimível. Nunca po­
demos aceitar a idéia de que a vida é vazia e sem
sentido.
Se na base da filosofia não se encontra um
autodesprezo da mente, mas a preocupação do es­
pírito em torno da sua suprema suposição, nosso
fim é examinar para conhecer. Ao procurarmos tran­
qüilizar-nos com um brilhante subterfúgio, estamos,
muitas vezes, tentando defraudar a suposição origi­
nal. Mas por que pensaríamos em duvidar, se dei­
xarmos de conjeturar? A filosofia é aquilo que o
homem tenta fazer com sua suprema suposição so­
bre o sentido da existência.
Os animais estão contentes quando suas ne­
cessidades estão satisfeitas. O homem insiste não
só em ser satisfeito, mas também em ser capaz de
satisfazer, em ser uma necessidade e não só em ter
necessidades. As necessidades vêm e desaparecem.
Mas há uma ansiedade que permanece: H á necessi­
dade de mim? Não há homem algum que não tenha
sentido essa ansiedade.

O homem não é fim de si mesmo

É um fato muito significativo que o homem


não é suficiente a si próprio, que a vida não tem
sentido para ele enquanto não estiver a serviço de

200
uma finalidade acima dela, enquanto não tiver valor
para alguém mais. O eu pode ter a mais alta taxa
de câmbio, mas os homens não vivem da moeda
senão dos bens alcançáveis por meio dela. Acumu­
lar e investir no eu é cultivar um sentido colossal
de futilidade da vida.
O homem não é fim de si mesmo, incluindo
tudo em si. A segundo máxima de Kant, de nunca
usar os seres humanos simplesmente como meios,
mas considerá-los como fins, só indica como uma
pessoa deve ser tratada por outras pessoas, não
como ela deve tratar-se a si mesma. Se uma pes­
soa pensa ser um fim em si mesma, usará os outros
como meios. Além disso, se a idéia de que o ho­
mem é um fim for tomada como medida do seu
valor, não se poderá esperar que ele sacrifique sua
vida ou seus interesses pelo bem de um outro, nem
mesmo de um grupo. Deverá tratar a si mesmo
da mesma maneira que espera que o tratem os ou­
tros. Por que um grupo ou todo um povo haveria
de merecer o sacrifício de nossa vida? Para uma
pessoa que se considera como fim absoluto mil vidas
não valerão mais que sua própria vida.
Um pensamento sofisticado pode possibilitar ao
homem simular-lhe que ele é suficiente a si mesmo.
Mas o caminho que conduz à insanidade está co­
berto de tal tipo de ilusões. O sentimento de fu­
tilidade que nasce com o sentimento de ser inútil,
de não ser necessitado neste mundo é a causa mais
comum de psiconeurose. A única maneira de evitar
o desespero é ser uma necessidade ao invés de ser
uma finalidade. Efetivamente, a felicidade pode ser
definida como a certeza d e ser necessitado. Mas
quem precisa do homem?

201
O homem existe por causa da sociedade

A primeira resposta que vem à mente é uma


resposta de caráter social — a finalidade do homem
é servir à sociedade ou à humanidade. Nesse caso
o valor último de uma pessoa seria determinado
por sua utilidade para os outros, pela eficiência de
sua obra social. Mas a respeito de sua atitude ins­
trumentalista, o homem espera que os outros o
tomem não por aquilo que ele possa significar para
eles, mas como um ser que tem valor em si mesmo.
Mesmo quem não se considera como fim absoluto
se revolta contra o fato de ser tratado como meio
para um fim, como útil para outros homens. Os
ricos, os homens do mundo, querem ser amados por
si mesmos, por sua essência, o que quer que ela
signifique, e não por suas realizações ou suas pos­
ses. Tampouco os velhos e doentes esperam ajuda
por causa do que nos possam dar em troca. Quem
tem necessidade dos velhos, dos doentes incuráveis,
cujo sustento constitui uma sangria no tesouro do
Estado? Além disso, é evidente que tal serviço não
exige toda a vida de um homem e, portanto, não
pode ser a resposta última à sua procura de sen­
tido da vida como um todo. O homem tem mais
para dar que os outros homens são capazes ou estão
dispostos a receber. Dizer que a vida poderia con­
sistir em cuidar dos outros, num incessante serviço
ao mundo, seria demagogia vulgar. O que podemos
dar aos outros é geralmente menos e poucas vezes
mais que uma migalha.
Há na alma avenidas que o homem percorre
sozinho, caminhos que não levam à sociedade, um
mundo de intimidade que se retrai aos olhares do
público. A vida compreende não só terra arável,
produtiva, mas também montanhas de sonhos, um
subsolo de tristeza, torres de suspiros que dificil­

202
mente poderão ser usados para o bem da sociedade,
a menos que se converta o homem numa máquina
em que cada parafuso deve ter a sua função ou
ser eliminado. Um estado que, procurando utilizar
0 indivíduo, exige para si tudo o que há no homem,
é um estado exploratório.
E se a sociedade concretizada no estado se
revelasse corrompida e meus esforços para curar
seu mal fossem inúteis, será que a minha vida como
indivíduo seria por isso totalmente sem sentido?
Se a sociedade decidisse recusar meus serviços e
até confinar-me ao isolamento, de maneira que eu
tivesse que morrer com toda a certeza, sem poder
exercer nenhuma influência sobre o mundo que
amo, sentir-me-ei obrigado, por isso, a terminar
minha vida?
A existência humana não pode derivar seu sen-
1ido último da sociedade, porque a própria socieda­
de necessita de sentido. E tão legítimo perguntar
se há necessidade da humanidade como perguntar
se há necessidade de mim.
A humanidade começa com o homem indi­
vidual tal como a história nasce de um aconteci­
mento singular. É sempre um homem por vez que
temos em mente quando proclamamos “mal a nin­
guém, bem a todos”, ou quando tentamos cumprir
o mandamento “ama o teu próximo como a ti mes­
mo” . O termo “humanidade”, que em biologia in­
dica a espécie humana, tem um significado inteira­
mente diferente no reino da ética e da religião.
Aqui a humanidade não é concebida como uma es­
pécie, um conceito abstrato destituído da sua reali­
dade concreta, mas como uma abundância de indi­
víduos específicos; como uma comunidade de pes­
soas e não como um rebanho ou uma multidão de
desconhecidos.
Se é verdade que o bem de todos vale mais

203
quefío bem de um só, contudo é o indivíduo con­
creto que dá sentido à raça humana. Não julga­
mos que um ser humano tem valor por ser mem­
bro da raça. O oposto é que é a verdade: a raça
humana tem valor porque é composta de seres hu­
manos .
Embora dependamos da sociedade como do ar
que nos sustenta e embora outros homens compo­
nham o sistema de relações em que a curva das
nossas ações tem o seu curso, é como indivíduos
que somos dominados por desejos, temores e espe­
ranças, que somos desafiados, que somos chamados
e que somos dotados do poder da vontade e de
uma centelha de responsabilidade.

O auto-aniquilamento do desejo

De todos os fenômenos que se verificam na


alma, são os desejos que têm a taxà, de mortali­
dade mais elevada. Como plantas aquáticas, eles
crescem e vivem nas águas do esquecimento, impa­
cientemente ansiosos por desaparecer. A intenção
de morrer é inerente ao desejo. Afirma-se para
ser extinto e ao atingir sua satisfação chega ao
seu fim, cantando o seu próprio hino fúnebre.
Essa intenção suicida não se verifica em todos
os atos humanos. Os pensamentos, os conceitos,
as leis, as teorias nascem com o objetivo de per­
manecer. Assim, por exemplo, um problema não
deixa de ser importante depois que foi encontrada
a sua solução. A intenção de permanência, o es­
forço para compreender o que é válido, para formar
conceitos cuja força e valor continuam para sem­
pre, são coisas inerentes à razão. Portanto, não é
considerando as idéias, mas fazendo o levantamento
da nossa vida interior e descobrindo o cemitério

204
de necessidades e desejos outrora ardentemente aca­
lentados, que nos tornamos intimamente conscien-
les da temporalidade da existência.

Em busca do permanente

Há, entretanto, uma curiosa ambigüidade na


maneira em que se mantém essa consciência. Se
não há nada de que o homem esteja mais intima­
mente certo que a temporalidade da existência, ra­
ramente se resigna ao papel de mero cumpridor
de desejos.
Caminhando sobre uma rocha que constante­
mente desaba atrás de cada um de seus passos e
prevendo a inevitável ruptura que terminará a sua
caminhada, o homem não consegu% refrear sua amar­
ga ansiedade de saber se a vida não é nada mais
que uma série de processos fisiológicos e mentais,
de ações e formas de comportamento momentâneos,
um fluxo de vicissitudes, desejos e sensações, que
escorrem como os grãos de areia através de uma
ampulheta, marcando o tempo uma só vez e desa­
parecendo sempre.
Chega a perguntar-se se no fundo a vida não
é como a face de um relógio de sol que sobrevive
a todas as sombras que giram sobre a sua face.
Não será a vida senão uma mistura de fatos sem
relação entre si? Um caos disfarçado pela ilusão?

Desesperada ansiedade

Não há neste mundo alma alguma que, ainda


que vaga ou raramente, não tenha compreendido que
a vida é sombria se não se espelhar em algo que
seja duradouro. Andamos todos à procura de uma

205
convicção de que existe algo que seja digno das
lutas e trabalhos da vida. Não há alma alguma
que não tenha sentido a ânsia de conhecer algo
que dure mais que a vida, a luta e a agonia.
Com toda a sua angústia, com suas fracas luzes
em meio ao nevoeiro, o homem sente-se desampa­
rado e contraditório. Será que a sua vontade de
ser bom pode curar as feridas da sua alma, seu
pavor e a sua frustração? É demasiadamente óbvio
que sua vontade é uma porta aberta para uma
casa dividida em si mesma, que suas boas intenções,
depois de durarem por algum tempo, tocam a lama
da vaidade, como o horizonte da sua vida que al­
gum dia tocará a sepultura. Existe alguma coisa
além do horizonte das nossas boas intenções?
A busca humana de um sentido para a exis­
tência é essencialmente uma busca do que é per­
manente, uma busca de continuidade. Em certo
sentido a vida humana é, muitas vezes, uma corrida
contra o tempo, esforçando-se por perpetuar as ex­
periências, ligando-se a valores ou estabelecendo re­
lações que não pereçam logo. Sua busca não é um
produto do desejo, mas um elemento essencial da
sua natureza, característica não só da sua mente,
mas também da sua própria existência. Isso pode
ser demonstrado pela análise da estrutura da exis­
tência como tal.

O que é a existência?

Embora a existência como categoria geral seja


indefinível, é-nos conhecida de maneira imediata
e, apesar da sua indefinibilidade, não está totalmen­
te sem relação com a mente. Não é um conceito
vazio, pois mesmo como uma categoria muito geral
não pode ser completamente despojada de algumas

206
relações. Há sempre um mínimo de sentido em
nossa noção de existência.
A característica mais intrínseca da existência é
a independência. O que existe, existe na realidade,
no tempo e no espaço, e não só em nossas mentes.
Atribuindo existência a uma pessoa, implicamos que
a pessoa é mais que uma mera palavra, nome ou
idéia, que ela existe independentemente de nós e
do nosso pensamento, enquanto aquilo que é um
produto da nossa imaginação, coijpo os quiméricos
Brobdingnags ou os Yahoos, depende inteiramente
da nossa mente. Não existe quando não pensamos
nele. Mas a existência assim descrita é um conceito
negativo que nos diz o que não é a existência e
a coloca fora da relação para conosco. Mas qual
é o conteúdo positivo da existência? Será que exis­
tência não implica uma relação nlfcessária para com
algo além de si mesma?

A temporalidade da existência

É óbvio que a relação da existência com o


tempo é mais íntima e única que sua relação com
o espaço. Não há nada no espaço que seja tão
necessário à existência ou dela faça parte tão inti­
mamente que não possamos abandoná-lo sem incor­
rer em qualquer prejuízo radical. A existência não
implica na posse de nenhuma propriedade, nenhum
domínio de outros seres. Até mesmo a posição que
ocupamos no espaço pode ser livremente trocada
por outra. Mas os anos da nossa vida são de im­
portância absoluta para nós. O tempo é a única
propriedade que o eu possui realmente. Portanto,
a temporalidade é uma característica essencial da
existência.
Mas o tempo é a mais frágil de todas as coi­

207
sas: uma mera sucessão de instantes perecíveis. É
algo que nunca conseguimos segurar; o passado
passou para sempre, o que está por vir está fora
do nosso alcance e o presente desaparece antes que
possamos percebê-lo. Paradoxal verdade — nunca
possuímos a única propriedade que temos.

O caráter ininterrupto da existência

A temporalidade ou evanescência da existência


é, na verdade, dolorosamente óbvia para todos nós.
Arrastados pela correnteza mortal do tempo, que
não nos permite nem continuar no presente nem
voltar a qualquer momento do passado, a única
perspectiva que nos cerca constantemente é a de
cessar de existir, de ser lançado fora da corrente.
Mas é só a temporalidade que é intrinseca à exis­
tência? Não é a permanência, até certo ponto, igual­
mente intrínseca à existência? Existência implica
em duração, continuidade. Existência é ininterrup-
ção, não um ano agora e outro depois, dispersão,
mas extensão contínua. Por mais relativa e limi­
tada que possa ser a ininterrupção da vida, é, tal
como a temporalidade, uma das duas características
constitutivas da existência.
Há um elemento de constância na estrutura
interna da existência que conta para a permanência
dentro da temporalidade, e é só o aspecto dura­
douro da realidade que é capaz de ser objeto de
um juízo lógico. Pois só esse aspecto constante
de uma coisa que permanece a mesma, independen­
temente das mudanças que a coisa em si possa so­
frer, pode ser apreendido pelas categorias da nossa
razão. Em outras palavras, nossas categorias são
os espelhos em que as coisas são refletidas na luz
da sua constância. Não há nada que a mente apre­

208
cie mais que a continuidade. Medimos os valores
pela sua duração.
Até a nossa consciência do tempo depende de
um princípio que é independente do tempo. Temos
consciência do tempo medindo-o, dizendo um mi­
nuto, uma hora, um dia. Mas para medir o tempo,
lemos que estar de posse de um princípio de me­
dição que deve ser constante. Não podemos me­
di-lo diretamente comparando uma extensão de tem­
po com outra, pois nunca são dadas duas partes
de tempo simultaneamente. Assim, o tempo por
si mesmo não pode fornecer uma consciência de
si, pois para ser uma consciência de si deveria estar
igualmente presente em todos os estágios do tempo.
Por isso a consciência do tempo pressupõe um prin­
cípio que não é temporal e não d esaParece> como
cada instante, para dar origem ao seguinte instante.
O tempo para a sua continuação depende de um
princípio que é independente do tempo, pois o
tempo em si não oferece permanência. O rio do
tempo corre ao longo de uma “terra sem tempo” .

O segredo da existência

O segredo da existência reside nessa relação


da temporalidade com a continuidade. Pois ao ten­
tarmos explicar a vida orgânica, seja postulando
uma misteriosa “força vital”, seja exclusivamente
por leis físico-químicas, o problema básico continua
sem resposta: o que é que faz com que essa força
ou essas leis persistam permanentemente? Será que
a força impulsora da vida é a vontade de viver?
Nesse caso, qual é a relação da vontade de viver
com tal princípio? Além disso, será verdade que
a existência é o resultado de uma decisão delibe­
rada? Meu organismo cresce, multiplica-se e desen-

209
14 - O homem não está só
volve-se porque assim o quer? Será que o ímpeto,
o empenho a audácia e a aventura que caracterizam
a vida são o resultado de uma escolha? Se assim
for, não estamos conscientes disso. Pelo contrário,
sabemos que a vontade humana jamais cria a vida.
Ao gerar a vida, somos instrumentos e não senhores
dela. Somos testemunhas e não autores do nasci­
mento e da morte. Sabemos que algo anima e ins­
pira um organismo vivo. Mas o que é? Usar o con­
ceito de uma subcônscia vontade de viver, de uma
vontade que não conhecemos, é recorrer a um deus
ex machina, o artifício por meio do qual na tragédia
antiga se introduzia um deus na cena a fim de
encontrar uma solução sobrenatural para uma difi­
culdade dramática, mas com a diferença de que aqui
o deus aparece dissimulado com a pretensão de ser
um ente natural.
Qual é o elemento permanente em nossas vi­
das? O que continua permanente através de todas
as mudanças? O corpo cresce e declina. As paixões
são todas arrastadas pela correnteza do esqueci­
mento. O que o homem que se encontra no li­
miar da morte, olhando para trás, considera per­
manente em tudo o que aconteceu e passou? Será
a nossa vontade de viver? Nossa preocupação re­
flexiva?

Ser é obedecer

Olhando para a nossa própria existência, somos


forçados a admitir que a essência da existência não
está na nossa vontade de viver. Temos que viver
e vivendo obedecemos. A existência é um cumpri­
mento e não um desejo. Uma concordância e não
um impulso. Sendo, o b ed ec em o s.
Lutamos, sofremos, vivemos e agimos não por-

210
i|ue temos vontade de assim fazer. Nossa própria
vontade é obediência, é uma resposta, um cumpri­
mento. Só subseqüentemente chegamos a querer
o que devem os. A vontade é aparência, nosso cum­
primento é “a coisa em si mesma” . Não é a vida
do corpo um processo de obediência? O que é
o pensamento senão submisão à verdade, cumpri­
mento das regras da lógica? O fato de que existe
lógica, independentemente da vontade que deseja
que algo seja verdade, exercendo um poder coerci-
livo e implacável sobre nossas mentes não é expli­
cável como produto da vontade ou da mente. Os
atos do pensamento lógico dependem da mente,
mas o fato de que deve haver lógica, de que a
mente só pode pensar de acordo com suas regras,
6 algo que não depende do poder da mente.
%

A meta suprema

Caracterizamos a busca humana de um sentido


para a existência como sendo uma busca de algo
duradouro e permanente e mostramos que a relação
com o duradouro e permanente está na base de toda
a existência. Entretanto, a piedade natural da obe­
diência não é uma resposta à busca do homem. Se
o homem está preso e unido ao permanente na
raiz do seu ser, está, como dissemos acima, livre
e desimpedido nos seus pensamentos e atos. É
livre para agir, é livre para refrear. Tem o poder
de desobedecer. É por causa desta sua independên­
cia que o homem é perseguido pelo medo de que
sua vida seja sem valor e pelo desejo de um sen­
tido supremo.
Todo ser humano abriga dentro de si uma
aspiração à permanência, mas poucos compreendem
o sentido do permanente e duradouro. Há somente

211
uma verdade, mas existem muitas maneiras de en­
tendê-la e interpretá-la mal. Há uma só meta, mas
existem muitos modos de não atingi-la.
Qual é a meta suprema? O prolongamento da
existência na sua forma presente com seus prazeres
e preocupações? A perpetuação do eu com suas
fraquezas, vaidades e temores? Não amamos a tota­
lidade do ego a tal ponlo que nossa maior aspira­
ção seja preservá-lo para sempre. Efetivamente, co­
meçamos a pensar em imortalidade quando nos sen­
timos angustiados pela perpetuação dos outros e
não na ânsia pela nossa própria perpetuação. O
pensamento da imortalidade começa na compaixão,
numa preocupação transitiva por aqueles que mor­
reram .
A verdadeira aspiração não é a de que perdure
o eu e tudo o que nele está contido, mas que per­
maneça tudo aquilo para o qual o eu existe. O
homem pode ser um pesadelo, mas também o cum­
primento de uma visão de Deus. Foi-lhe dado o
poder de superar-se a si mesmo, de responder por
todas as coisas e de agir por um Deus. Todos os
seres obedecem à lei. O homem tem a capacidade
de cantá-la. Seu supremo legado consiste em com­
por um cântico dos feitos que só Deus compreende
plenamente.

Tempo e eternidade

O caminho para o permanente não está no ou­


tro lado da vida. Não começa onde termina o tem­
po. O permanente não começa além, mas sim, den­
tro do tem po, dentro do momento, dentro do con­
creto. O tempo pode ser visto sob dois aspectos:
sob o aspecto da tem poralidade e sob o aspecto da
etern idade.

212
O tempo é a orla da eternidade. O tempo
('■ a eternidade sob forma de borlas. Os momentos
tia nossa vida são como luxuosas borlas. Estão
presas à vestimenta e são feitas do mesmo tecido,
r, mediante a vida espiritual que compreendemos
que o infinito pode ser confinado numa linha men­
surável .
A vida sem integridade assemelha-se a fios sol-
los que facilmente se desprendem da vestimenta
principal, enquanto nos atos de piedade aprendemos
a ver que cada instante é como um fio que sai da
eternidade para formar uma delicada borla. Não
devemos deixar cair os fios, mas entretecê-los com
a textura eterna.
Os dias da nossa vida, ao contrário de fu­
gazes, são representantes da eternidade e devemos
viver como se o destino de tod& o tempo depen­
desse totalmente de um só momento.
Visto como temporalidade, a essência do tempo
e separação, isolamento. Um momento temporal é
sempre solitário, sempre exclusivo. Dois instantes
nunca podem estar juntos, nunca podem ser con­
temporâneos . Visto como eternidade, a essência do
tempo é união, comunhão. É no tempo e não no
espaço que podemos comungar, adorar, amar. É no
tempo que um dia pode valer mil anos.
As intuições criativas desenvolvem-se durante
uma vida inteira para durar um momento. Con­
tudo, permanecem para sempre. Pois permanecer
significa estar em comunhão com Deus, “aderir a
ele” (D t 1 1 ,2 2 ). Um momento não tem outro mo­
mento contemporâneo dentro do tempo. Mas na
eternidade cada momento pode tornar-se contempo­
râneo de Deus.
É por isso que acima dissemos que o bem é
um fato ontológico. O amor, por exemplo, é mais
que cooperação, mais que sentir e agir conjunta-

213
ménte. Amar ê ser juntamente, um modo de exis­
tência, não só um estado de alma.
O aspecto psicológico do amor, sua paixão e
emoção, é apenas um aspecto de uma situação onto­
lógica. Quando um homem ama outro, constitui
uma união que é mais que uma adição, mais que
um mais um. Amar é unir-se ao espírito de uni­
dade, elevar-se a um novo nível, entrar numa nova
dimensão, uma dimensão espiritual. Porque, como
vimos, o que quer um homem faça a outro homem,
fá-lo também a Deus.
Significativamente a Bíblia descreve o amor da
seguinte maneira: “Amarás o Senhor, teu Deus,
com todo o teu coração, com toda a tua alma, com
toda a tua m eo d ” . O que significa m eod? Só pode
significar o que significa em toda parte na Bíblia
o advérbio “mento” num grau superlativo. Dese­
jando qualificar o verbo “amar”, o texto de re­
pente sentiu a falta de força de expressão. Diz pro­
gressivamente: “com todo o teu coração” . E ainda
mais: “com toda a tua alma” . Mas também essa
expressão não era suficiente e então disse: “com
toda a tua m uitidade. \ . ”

214
20
A essência do homem

A unicidade do homem
\
Tudo o que existe obedece. Só o homem ocu­
pa um status único. Como ser natural ele obedece,
como ser humano freqüentemente tem que escolher.
Confinado na sua existência, é livre na sua vontade.
Seus atos não emanam dele como os raios da ener­
gia emanam da matéria. Colocado na encruzilhada
dos caminhos, o homem deve repetidamente decidir
que direção tomar. O curso de sua vida é impre­
visível . Ninguém pode escrever sua autobiografia
antecipadamente.
Será o homem que ocupa uma posição tão es­
tranha no grande reino do ser uma exceção da or­
dem universal? Um proscrito? Um capricho da na­
tureza? Um fragmento de fio que caiu do tear da
natureza e depois foi entretecido da maneira estra­
nha corno o vemos? A astronomia e a geologia en­
sinaram-nos a desprezar a pretensiosa vaidade do
homem. Mesmo sem o auxílio da astronomia e da
geologia, o salmista deve ter-se sentido oprimido
pelo sentimento da própria insignificância, quando
lançou a melancólica interrogação:
Quando contemplo teus céus, obra de teus dedos,
A lua e as estrelas que criaste,
Que é o homem para dele te lembrares?
E o filho do homem para dele te ocupares?
(Sl 8 ,3 -4 ).

215
'; Entretanto, se o valor e a posição do homem
no universo devem ser definidos como um dividido
pelo infinito, sendo que o infinito designa o número
de seres que povoam o universo, se o homem =
1
------- como explicamos o fato de que o infinitésimo
00

homem é evidentemente o único ser deste planeta


capaz de fazer tal equação?
Uma formiga nunca é tomada de admiração,
tampouco uma estrela se considera uma coisa sem
importância. Imenso é o escopo da astronomia e
da geologia. Mas o que é a astronomia sem o
astrônomo? O que é a geologia sem o geólogo?
Se tivéssemos que caracterizar um indivíduo
como William Shakespeare em termos de medição,
certamente nos serviríamos da descrição de Edding-
ton sobre a posição do homem no universo e di­
ríamos que Shakespeare, quanto ao tamanho se en­
contra quase exatamente a meio caminho entre um
átomo e uma estrela. Para avaliar a sua existência
vegetativa, é importante saber, por exemplo, que
o homem consiste de cem milhões de células. Mas
para avaliar a essência do homem, a única coisa
que conta para a sua ansiedade em avaliar a sua
existência, devemos distinguir o que é único nele.
Refletindo sobre o universo infinito talvez pu­
déssemos resignar-nos com a posição trivial de ser­
mos uma coisa sem importância. Mas reconsiderando
nossa reflexão descobrimos que não somos apenas
carregados e circundados pelo universo da signifi­
cação. O homem é uma fonte de sentido imenso
e não só uma gota no oceano do ser.
A espécie humana é demasiadamente poderosa,
demasiadamente perigosa para ser uma simples brin­
cadeira ou capricho do Criador. Indubitavelmente,
o homem representa algo de único no grande corpo

216
do universo: como que um produto, uma massa
:inormal de tecido que não só começou a interagir
com outras partes, mas também, até certo ponto,
foi capaz de modificar o próprio estado destas.
Qual é a sua natureza e função? É algo maligno,
um tumor, ou é como que um cérebro do uni­
verso?
A espécie humana mostra às vezes sintomas
de perversidade e o seu desenvolvimento não for
controlado, pode destruir todo o corpo por causa
da sua expansão. Em termos de tempo astronô­
mico, nossa civilização encontra-se na sua infância.
A expansão do poder humano apenas começou e
o que o homem fizer com o seu poder poderá
tanto salvar como destruir nosso planeta.
A terra pode ter pouca importância no universo
infinito. Mas se tiver alguma sigfiificação, é o ho­
mem quem tem a sua chave. Pois uma coisa o
homem, sem dúvida, parece possuir: a ilimitada e
imprevisível capacidade de desenvolver um universo
interior. Na sua alma há mais potencialidade que
em qualquer outro ser que conhecemos. Olhemos
para uma criança e tentemos imaginar a multiplici­
dade de acontecimentos que originará. Uma criança
chamada Bach foi dotada de poder suficiente para
exercer fascínio sobre muitas gerações de homens.
Mas há qualquer potencialidade a saudar ou qual­
quer surpresa a esperar de um bezerro ou de um
potro? Efetivamente, a essência do homem não está
no que ele é, mas naquilo que ele é capaz de ser.

Nas trevas da potencialidade

Entretanto, as trevas da potencialidade são o


viveiro da angústia. Há sempre mais de um cami­
nho a seguir e somos forçados a ser livres — somos

217
liyres contra nossa vontade -— e temos a audácia
de escolher, raramente sabendo como e por quê.
Nossas faltas brilham como luzes de mil formas,
mas o certo está abaixo do solo. Somos minoria
no grande reino do ser e com nossa tendência de
adaptar-nos, freqüentemente procuramos unir-nos
com a multidão. Somos minoria dentro da nossa
própria natureza e na agonia e luta das paixões
muitas vezes preferimos invejar os animais. Com-
portamo-nos como se o reino animal fosse nosso
paraíso perdido, ao qual tentamos voltar por mo­
mentos de prazer, acreditando que a felicidade con­
siste no estado animal. Temos um incessante desejo
de ser como as bestas, uma nostálgica admiração do
animal dentro de nós. Segundo um cientista con­
temporâneo: “A maior tragédia do homem ocorreu
quando ele deixou de andar sobre quatro pés e se
separou do mundo animal, assumindo uma posição
ereta. Se o homem tivesse continuado a andar ho­
rizontalmente e os coelhos tivessem aprendido a
andar verticalmente, muitos dos males do mundo
não existiriam” .

Entre Deus e os animais

O homem está em continuidade tanto com o


resto da natureza orgânica como com a infinita efu­
são do espírito de D eus. Minoria no reino do ser,
o homem encontra-se numa posição intermediária
entre Deus e o animal. Incapaz de viver sozinho,
tem que comungar com os dois.
Tanto Adão como os animais foram abençoa­
dos pelo Senhor, mas o homem, além disso, foi
ainda incumbido de conquistar a terra e dominar os
animais. O homem está sempre diante da alterna­
tiva de escutar ou a Deus ou a serpente. É sem­

218
pre mais fácil invejar o animal, adorar um totem
v ser dominado por ele do que atender à Voz.
Nossa existência oscila entre a animalidade e
a divindade, entre o que é mais e o que é menos
que a humanidade: abaixo está a evanescência, a
Iutilidade e acima a porta aberta do tesouro divino
onde depositamos a moeda da piedade e do espírito,
i is restos imortais de nossas vidas mortais. Estamos
constantemente entre as mós da morte, mas somos
lambém contemporâneos de Deus.
O homem está “um pouco abaixo dos anjos”
( Sl 8,5) e um pouco acima dos animais. Como
um pêndulo, oscila para lá e para cá sob a ação com­
binada da gravidade e do movimento, da gravitação
do egoísmo e do movimento do divino, de uma
visão de Deus nas trevas da carne e do sangue.
Não conseguiremos entender o assentido da nossa
existência se não atendermos a nossos compromissos
com essa visão. Mas só olhos vigilantes e fortale­
cidos contra a ofuscação e o superficial ainda con­
seguem perceber a visão de Deus na noite de lou­
cura, falsidade, ódio e malícia humana que invade
a alma.
Por causa do seu imenso poder, o homem é
potencialmente o mais perverso dos seres. Muitas
vezes domina-o a paixão da crueldade, que só o
temor de Deus pode amainar, acessos sufocantes
de inveja que só a santidade pode abrandar.
Se o homem não for mais que humano, será
menos que humano. O homem é apenas um breve
e crítico estágio entre o animal e o espiritual. Seu
estado é constantemente vacilante, ora se eleva, ora
cai. Não existe humanidade sem desvio. Ainda
está por aparecer o homem emancipado.
O homem é mais que aquilo que ele é para
si mesmo. Pode ser limitado na sua razão, per­
verso na sua vontade, mas encontra-se numa re­

219
la(ção com Deus que ele pode trair, mas não pode
romper e que constitui o sentido essencial da sua
vida. Ele é o nó em que se entrelaçam o céu e
a terra.
Quando arrebatados pela alegria de agir con­
forme nosso agrado, seguindo qualquer desejo, acei­
tando toda oportunidade para agir segundo aprou­
ver ao corpo, sentimo-nos perfeitamente satisfeitos
em andar sobre quatro pés. Mas há momentos na
vida de cada um em que começamos a perguntar­
mos se os prazeres do corpo ou os interesses do
eu podem servir como perspectiva sob a qual devem
ser tomadas as decisões.

Acima das nossas necessidades

Apesar das delícias que estão ao nosso alcance,


recusamo-nos a trocar nossas almas por recompensas
egoístas e a viver dos lucros, mas sem consciência.
Mesmo aqueles que perderam a capacidade de com­
paixão não perderam a capacidade de horrorizar-se
com a sua incapacidade de sentir compaixão. O
teto caiu, mas as almas ainda estão penduradas por
um cabelo de horror. De quando em quando cada
um de nós tenta julgar sua vida.
Nem aqueles que perderam a visão da virtude
estão privados do horror ao crime. Através do des­
gosto e do pavor chegamos ao conhecimento de que
viver segundo necessidades egoístas é matar o que
ainda resta vivo do nosso temor. Só há uma ma­
neira de purificar o ar poluído do nosso mundo:
viver acima das nossas próprias necessidades e inte­
resses. Somos carnais, ambiciosos, egoístas, vaido­
sos e por isso viver por necessidades não egoístas
significa viver acima dos nossos próprios meios.
Como podemos ser mais do que somos? Onde en­
contrar recursos que dêem às nossas almas um va-

220
Ini excedente que não é nosso? Viver acima das
liiissiis necessidades significa ser independente de
lim\ssidades egoístas. Mas como conseguirá o ho­
mem romper o círculo do seu eu?
A possibilidade de eliminar a consideração de
a mesmo depende, em última análise, da natureza
do eu. É mais uma questão metafísica que psi­
cológica. Se o eu existisse por causa de si mes­
mo, essa independência não seria possível nem de-
vjável. Só se pode afirmar essa possibilidade su­
pondo que o eu não é o centro, ''mas apenas um
mio, que ele não é nem seu princípio nem seu fim.
O homem é sentido, mas não seu próprio sen-
lido. Nem sequer conhece seu próprio sentido, pois
o sentido não sabe o que significa. O eu é uma
necessidade, mas não sua própria necessidade.
Todas as nossas experiências^ão necessidades
que se desfazem quando as necessidades são satis-
leitas. Mas a verdade é que também a nossa exis­
tência é uma necessidade. Somos da mesma matéria
da qual são feitas as necessidades e nossa pobre
vida está cercada por uma vontade. O que é p er­
manente em nossa vida não é a paixão nem o pra­
zer, nem a alegria, nem o sofrimento, mas a res­
posta a uma necessidade. O permanente em nós não
é nossa vontade de viver. Há uma necessidade das
nossas vidas e vivendo nós a satisfazemos. Perma­
nente não é nosso desejo, mas nossa resposta a essa
necessidade, uma concordância e não um impulso.
Nossas necessidades são temporais, enquanto o fato
de sermos necessitados é permanente.

Quem tem necessidade do homem?

Começamos nossa indagação com a questão do


homem individual — qual o sentido do homem

221
individual — e estabelecemos sua unicidade no fato
de estar repleto de imensas potencialidades, das
quais toma consciência mediante sua experiência
das necessidades. Também mostramos que ele não
encontra a felicidade utilizando suas potencialidades
para a satisfação das suas próprias necessidades, que
seu destino é ser uma necessidade.
Mas quem tem necessidade do homem? Te­
rão as montanhas necessidade dos nossos poemas?
Será que as estrelas desapareceriam se deixassem
de existir os astrônomos? A terra pode continuar
a existir sem o auxílio da espécie humana. A na­
tureza está repleta de oportunidades para satisfazer
todas as nossas necessidades, exceto uma — a ne­
cessidade de ser necessitado. No seu ininterrupto
silêncio o homem é como que o meio de uma sen­
tença e todas as suas teorias são como pontos que
indicam seu isolamento dentro de si próprio.
Diversamente de todas as outras necessidades,
a necessidade de ser necessário é um empenho para
dar e não para obter satisfação. É um desejo de
satisfazer um desejo transcendente, uma aspiração
de satisfazer uma aspiração.
Todas as necessidades são unilaterais. Quando
estamos com fome, estamos necessitados de alimen­
to, mas o alimento não tem necessidade de ser con­
sumido. As coisas belas atraem nossas mentes, sen­
timos necessidade de observá-las, mas elas não têm
necessidade de serem observadas por nós. A maior
parte da vida é prisioneira dessa unilateralidade.
Se analisarmos um espírito de tipo médio, veremos
que é dominado pelo esforço de talhar a realidade
à medida do ego, como se o mundo existisse para
agradar o nosso ego. Todos nós temos mais rela­
ções com coisas que com pessoas e mesmo quando
tratamos com pessoas comportamo-nos em relação
a elas como se fossem coisas, instrumentos, meios

222
,i serem usados para nossos fins egoístas. Quão ra-
uimcnte consideramos uma pessoa como pessoa! So-
nii is todos dominados pelo desejo de apropriar e de
possuir. Só uma pessoa livre compreende que o
verdadeiro sentido da existência se experimenta em
d;ir, em doar, indo ao encontro de uma pessoa face
.1 face, satisfazendo as necessidades de outras
pessoas.
Ao compreendermos o excedente do que vemos
iiei ma do que sentimos, nossa mpnte se evade e
;ile o coração é insuficiente. Por que estamos des­
contentes com viver simplesmente por viver? Quem
nos fez sedentos do que é mais que a existência?
Em toda a parte estamos circundados pelo ine-
líível. Nossa familiaridade com a realidade é um
mito. No mais íntimo da nossa alma até a beleza
é uma liga misturada com o veraadeiro metal da
eternidade. Não há terra, nem céu, nem primavera,
nem outono. Só há uma interrogação, a eterna in­
terrogação de Deus ao homem: onde estás? A reli­
gião começa com a certeza de que nos é pedida
alguma coisa, de que há finalidades que têm ne­
cessidade de nós. Diversamente de todos os outros
valores, os fins morais e religiosos evocam em nós
um sentido de obrigação. Apresentam-se como ta­
refas e deveres e não como objetos de percepção.
Assim, a vida religiosa consiste em servir a fins
que têm necessidade de nós. O homem não é um
espectador inocente no drama cósmico. Há em nós
mais afinidade com o divino do que somos capazes
de crer. As almas dos homens são luzes do Se­
nhor, acesas no caminho cósmico, e não fogos de
artifício produzidos pela combustão dos componen­
tes explosivos da natureza, e cada alma é indispen­
sável a ele. O homem é necessário, é uma necessi­
dade de Deus-

223
211

O problema dos fins

Necessidades biológicas e culturais

Atribuindo às necessidades uma grande propor­


ção na gênese das experiências artísticas e religiosas
e dos juízos morais, estamos inclinados a superesti­
mar a sua importância e a supor que todos os ideais
que conhecemos ou alimentamos são projeções das
nossas próprias necessidades, que os atos de justiça,
as criações da beleza são cristalizações de interesses
— da mesma forma como cinzeiros, cadarços, lâm­
padas fluorescentes — e que seu valor consiste em
serem desejáveis.
Se considerarmos mais atentamente nosso pro­
blema, torna-se óbvio que há uma diferença estru­
tural entre necessidades biológicas e necessidades
culturais52. No primeiro caso a necessidade — ou
a demanda — cria o objeto; no segundo caso é o
objeto que cria a necessidade. O “interesse” que
a necessidade tem na arte criativa poderá oferecer
aos artistas as possibilidades físicas para produzir,
mas não é tal “interesse” em si que produz a arte.
Será que Van Gogh realizou a sua obra em resposta
52 É necessário distinguir estas necessidades das ne­
cessidades artificiais. C f. cap. 18 acima — O P R O B L E M A
D A S N E C E S S ID A D E S — A vida, um aglomerado de ne­
cessidades .

224
iin apelo de possíveis compradores ou ao entusiasmo
ilns admiradores? Por acaso nosso desejo de ver
uni novo Shakespeare para expressar a tensão da
iiDKsa época deu realmente origem a tal novo gênio?
Apesar disso continuamos a sustentar a teoria de
iiiie a arte é produto de uma necessidade, a necessi­
dade de auto-expressão do artista ou a necessidade
tlr gozo da arte por parte da sociedade.

O mito da auto-expressão

Analisemos o processo do gozo da arte. Ini-


i iulmente podemos equivocar-nos considerando-a co­
mo sendo motivada pela necessidade de encontrar­
mos expressão para sentimentos Isentes em nossa
:1 1ma. Mas isso significaria que unia obra de arte
não pode produzir emoções em nós se já não as ti­
vermos experimentado na vida real, que não somos
capazes de responder a um motivo se já não o ti­
vermos registrado, embora vagamente, em nosso co­
ração .
A verdade é que não nos dirigimos à arte para
satisfazer, mas para nutrir interesses e sentimentos.
Uma obra de arte nos introduz em emoções que
nunca tivemos antes. Enquanto não formos surpre­
sos por ela, a obra de arte é desinteressante, enfa­
donha. As grandes obras, ao invés de satisfazer,
produzem necessidades dando ao mundo novas as­
pirações. Expressando coisas das quais nem sequer
temos consciência, as obras de arte inspiram novos
objetivos, visões imprevistas.
Ou será que o ato criativo do artista se ori­
gina de uma necessidade de auto-expressão? É evi­
dente que um artista empenhado em satisfazer suas
necessidades pessoais é de pouco interesse para a
sociedade. Sua obra se torna importante para o

225
15 - O homem não está só
mundo quando no processo da expressão consegue
alcançar objetivos que são importantes para os ou­
tros. Se Honoré de Balzac estivesse interessado so­
mente em satisfazer seu desejo de dinheiro e pres­
tígio, suas obras não teriam interessado a ninguém
além dele próprio. Sua significação tornou-se uni­
versal por ter conseguido criar tipos e situações,
cuja importância pouco tem a ver com suas próprias
necessidades particulares.
O segredo da personalidade criativa não está na
cega necessidade de auto-expressão. Só proclama o
seu ímpeto de auto-expressão aquele que não tem
nada a dizer. Deve haver algo a ser expresso, uma
emoção, uma visão, um objetivo que produza a
necessidade de expressá-lo. O objetivo é o número
básico, a necessidade é apenas o coeficiente.

Objetivos e necessidades

A vida humana consiste em necessidades, as­


sim como uma casa consiste em tijolos. Mas assim
como um amontoado de tijolos não constitui uma
casa, da mesma forma a vida não é um acúmulo de
necessidades. A vida como um todo relaciona-se
com uma finalidade, com um objetivo. É verdade
que, ao contrário do que ocorre com uma casa, o
homem é mais do que um meio para um fim, mas
é sua relação a objetivos, sua capacidade de com­
preender que a vida sem objetivos não vale a pena
ser vivida, que parece indicar o status peculiar da
sua existência. O que distingue o homem é que
ele se relaciona com fins e não só com necessidades.
As necessidades são correlativas: são esforços
para realizar ou manter fins, funções de fins e não
meras emanações de causas. Definir as necessidades
sem referência aos fins ou valores aos quais se
relacionam é como supor que há percepções normais

226
'.cm objetos percebidos. As necessidades são a re-
Inção do homem para com os valores e objetivos.
IVi- um interesse é tornar-se consciente de tal re­
lação .
Os fins são exigências que muitas vezes são in­
dependentes de necessidades. Como a nossa per­
cepção sensitiva não cria, mas só registra as coisas
percebidas, assim o sentimento de necessidade é
apenas uma resposta interna a um fim objetivo. Os
sentimentos, as percepções são nossas; os fins, as
coisas são do mundo. E o mundo e do Senhor.
A moralidade e a religião não começam como
sentimentos dentro do homem, mas como respostas
i objetivos e situações fora do homem. É sempre
( m relação a uma situação objetiva que julgamos
e afirmamos que algo é certo ou errado. E é em
resposta ao que está além do inefável que o homem
diz sim a Deus.
Um homem livre não se considera a si mesmo
como um repositório de necessidades fixas, mas vê
sua vida como uma orientação em direção a fins.
Ter uma meta em vista, procurar atingi-la e conti­
nuar ampliando-a é a forma da vida civilizada. É
típico do libertino adaptar os fins às suas necessi­
dades egoísticas. Está sempre pronto a seguir suas
necessidades. Efetivamente, todos podem aprender
a ter necessidades, a desejar alimentos, vestimenta
e outras coisas dispendiosas, que satisfazem os ape­
tites ou os gostos. Mas os homens livres não obe­
decem cegamente às necessidades. Pesam e compa­
ram os seus respectivos méritos, e procuram satis­
fazer aquelas que contribuem para a intensificação
e o enriquecimento de valores superiores. Em ou­
tras palavras, aprovam só aquelas necessidades que
servem para atingir fins bons. Não dizem: “As
necessidades justificam os fins” . Mas, ao contrário:
“Os fins justificam as necessidades” . Para serem

227
capazes de deixar de lado a satisfação de uma ne­
cessidade por causa de outra ou por causa de prin­
cípios morais, estéticos ou religiosos devem, até cer­
to ponto, ser independentes das necessidades.
O fatalismo psicológico que ensina que existe
uma única maneira, a maneira animal, é uma falácia
paralisante à qual jamais se submeterá o espírito
humano. A mente não c um repositório de idéias
fixas, mas sim uma orientação para ou uma pers­
pectiva sob a qual se apreende o mundo. Tam­
pouco a alma é escrava de interesses, vivendo sob
a ordem mesmeriana de interesses predeterminados.
Há mais de um fim no itinerário da vida de
cada pessoa. Alguns são paradas no caminho, en­
quanto outros são desvios que confundem nossa ca­
minhada. Cegos para a meta principal, geralmente
vagueamos atrás de fins egoístas e limitados, se­
guindo modos que nos agradam, tecendo a tela das
necessidades com o entrelaçamento negligente de há­
bitos e desejos.
Muitas coisas da civilização só servem para dar
estabilidade ou até para estimular metas competi­
tivas e não para ajudar a busca de fins espirituais.
Encobrimos o homicídio com nossa vontade de vi­
ver e não recuamos diante da injustiça em nosso
zelo por satisfazer ambições egoístas.

O erro da panpsicologia

Na Idade Média as ciências eram consideradas


ancillae th eo lo g ia e. Hoje se pretende que os pro­
blemas da metafísica, da religião, da ética e da arte
sejam essencialmente problemas de psicologia. Há
uma tendência que poderíamos chamar de panpsico­
logia. Afirma que a psicologia pode explicar a ori­
gem e o desenvolvimento das leis, dos princípios e
valores da lógica, da religião e da ética, reduzindo

228
,i forma e o conteúdo do pensamento e do compcr-
lamento a processos psíquicos subjetivos, a impul­
sos e funções do desenvolvimento psíquico.
O equívoco dessa concepção está em confundir
os valores, as leis ou princípios com o contexto
psíquico em que elas se apresentam à nossa aten­
ção . É engano identificar o conteúdo do conheci­
mento com as reações emocionais que acompanham
a sua aquisição, ou identificar os conceitos com fun­
ções mentais. Nossa afirmação ou ^pegação de uma
conclusão, nosso sim ou não dado a uma idéia é
um ato em que queremos afirmar a verdade com
base na necessidade lógica ou na certeza intuitiva.
E justamente a imunidade de emoção que nos per­
mite sustentar que conhecemos a verdade.
O próprio panpsicólogo sustenta isso. As leis
devem ser por ele aplicadas aos processos, aos va­
gos, múltiplos e caóticos processos psicológicos, se
quiser classificá-los, interpretá-los e torná-los inte­
ligíveis. Mas essas leis, para serem universalmente
válidas, devem poder ser defendidas lógica e epis-
temologicamente. Devem ser categorias e não pro­
cessos psíquicos. Caso contrário, não seriam senão
uma matéria a mais para a análise psicológica, sem
qualquer valor cognitivo. Assim sendo, não somos
forçados a admitir que existem atos cognitivos cuja
validade é independente de impulsos?
Do ponto de vista da panpsicologia teríamos
que negá-lo. Mas não temos mais direito de dizer
que as categorias lógicas são o produto de impulsos
do que dizer que os impulsos são produto das ca­
tegorias. As categorias são fatos da consciência hu­
mana que são tão inegáveis quanto os impulsos.
Com efeito, parece que dependemos mais das cate­
gorias para compreender os impulsos que necessita­
mos de impulsos para o desenvolvimento das nos­
sas categorias.

229
A consciência do bem e do mal

O bem e o mal não são conceitos psicológicos,


embora a maneira como são compreendidos seja in­
fluenciada pelas condições psicológicas da persona­
lidade humana, do mesmo modo como as formas
particulares pelas quais são realizadas são freqüen­
temente determinadas por condições históricas, po­
líticas e sociais. Mas o bem e o mal como tais não
denotam funções da alma ou da sociedade, e sim
metas e fins e na sua essência são independentes
da cadeia da causalidade psíquica 53.
Na sua consciência de bem e mal ou no cumpri­
mento de preceitos religiosos, mesmo que para isso
tenha que frustrar interesses pessoais, o homem não
considera sua atitude como sendo mera expressão
de um sentimento. Tem certeza de refletir uma
exigência objetiva, de lutar por uma meta que é
válida independentemente do seu próprio gosto.
Devemos, contra o fato empírico de tal consciência,
condená-la como uma idéia pretendida, ou devemos
dizer que nossas teorias sobre a relatividade de to­
dos os fins morais são o resultado do declínio da
atenção, condicionado pelo tempo, aos fins últimos?
Naturalmente, a consciência de exigência que
há no homem não prova que as formas particulares
pelas quais ele procura alcançar seus fins morais
ou religiosos são absolutamente válidas. Mas o fato
de tal consciência pode indicar que está destinado
a lutar por fins válidos. A concepção do homem
a respeito desses fins está sujeita a variações, mas
o fato do seu relacionamento a eles permanece para
sempre.
As ações morais podem, naturalmente, ser ex-

53 C f. acima cap. 13 — UM D E U S — O bem


o mal.

230
plicadas por motivos egoísticos. Sendo um ser so­
cial, o bem-estar de um indivíduo depende do bem-
-cstar de todos os outros membros do grupo. As­
sim, qualquer serviço que ultrapassa os limites das
minhas necessidades imediatas pode ser um investi­
mento para meu próprio benefício pessoal. Nesse
caso o altruísmo é egoísmo disfarçado e os atos mo­
rais não diferem do atendimento generoso que todo
comerciante inteligente presta a seus clientes. O
sacrifício dos meus interesses pessoais por causa de
outro seria simplesmente um exefhplo do tipo de
renúncias que pratico em vista dos meus próprios
interesses, deixando de satisfazer algumas necessi­
dades para conseguir a satisfação de outras. Adap­
tar meu comportamento aos interesses de outras
pessoas à medida que isso for conveniente para
mim seria afinal tudo o que sou^moralmente obri­
gado a fazer.
Mas o que constitui a consciência do bem e
do mal, do certo e do errado, é a exigência de agir
não por causa de mim, de fazer o que é certo,
mesmo que isso não me traga nenhuma vantagem.
A utilidade de um ato bom pode servir de incen­
tivo para cumprir uma obrigação moral, mas cer­
tamente não se identifica com ela.

A arma secreta de Deus

A vida do homem não é movida só por uma


força centrípeta em torno do ego, mas também
é impelida por forças centrífugas para fora do cen­
tro do ego . Seus atos não são relacionados só com
ele, mas se dirigem também para além dele.
Até na busca de fins particulares, o homem
é obrigado a estabelecer ou supor valores univer­
sais. O homem encontra-se sob uma ordem de em­

231
pregar suas capacidades para objetivos não egoístas,
uma ordem que é obrigado a seguir, sob pena de
sofrer se assim não fizer. Essa ordem não é o
produto, mas a origem da civilização. A vida ci­
vilizada é o resultado dessa necessidade, desse im­
pulso para irmos além das necessidades imediatas
em nossos esforços, além de objetivos individuais,
tribais ou nacionais.
O impulso para construir uma família, para
servir a sociedade ou para dedicar-se à arte ou à
ciência pode, muitas vezes, nascer do desejo de satis­
fazer nossos próprios apetites ou ambições. Mas,
visto do alto da torre de observação da história,
a utilidade egoísta dos atos exigidos, a possibili­
dade de considerá-los como instrumentos para al­
cançar as nossas próprias finalidades egoístas, é a
arma secreta de Deus na sua luta com a insensibi­
lidade humana.
Muitas vezes alimentamos o falso prazer de
acreditar que os outros nos estão servindo quando,
na realidade, somos nós que servimos aos outros.
Não é nossa mente individual que é a medida do
sentido da realidade. Aquele que planta uma ár­
vore para quem a planta? Para gerações futuras
cujo rosto nunca viu? Os fins superiores dissimu­
lam-se astutamente como objetivos de utilidade ime­
diata. É como se uma divina astúcia operasse na
história humana, usando nossos instintos como pre­
textos para alcançar objetivos que são universal­
mente válidos, um esquema para utilizar as forças
inferiores do homem a serviço de fins superiores.
A bondade não consiste em ser um objeto de
interesse, em ser usufruída ou desejada por algumas
ou muitas pessoas. Uma ação não é boa porque nos
agrada ou porque pensamos que ela é boa. Con­
forme já foi indicado acima, o bem e o mal são
relações dentro da realidade. Bom é o que Deus

232
quer; bom é o que une o homem dentro de si
mesmo, o que une um homem com outro, o que
une o homem com Deus.

A vida é tridimensional

A vida é tridimensional. Todo ato pode ser


examinado por dois eixos de coordenadas, sendo
o homem a abscissa e Deus a ordenada. Tudo o
que o homem fizer a outro homem, fá-lo também
a Deus. Para os que estão atentos àquele que se
encontra além do inefável, a relação de Deus para
com o mundo é um fato presente, uma implicação
absoluta do ser, o supremo na realidade, que se
verifica mesmo que nesse momento não seja perce­
bido ou reconhecido por ninguém. ^Aqueles que o
rejeitam ou traem não diminuem sua validade.
O que é certo ou o que é moralmente bom
é um fim que supera nossa experiência das necessi­
dades. Está acima das forças da emoção sentir ade­
quadamente a suprema grandeza do fim moral.
Nossos esforços para expressá-lo estão condicionados
pelas limitações da nossa natureza. Contudo, nem
sempre fica perdida a visão desta grandeza abso­
luta. Ao estudar a história dos esforços do homem
para realizar o fim moral, não devemos confundir
sua visão com sua interpretação. O entendimento
do que é certo ou falso tem variado no decorrer
dos tempos. Mas a consciência d e qu e há uma dis­
tinção entre certo e errado é permanente e univer­
sal. Ao formular leis, o homem, muitas vezes, falha
e não consegue encontrar as maneiras adequadas
de praticar a justiça, nem conservar sempre uma
idéia clara do seu sentido. Mas mesmo quando falha
na sua visão, não perde totalmente a consciência
do que alguma vez existiu na visão. O homem sa­

233
be que. a justiça é uma norma à qual devem obe­
decer as suas leis para merecerem o nome de jus­
tiça. Não sabemos de nenhuma tribo, de nenhum
código que afirme que é bom odiar ou que está certo
piejudicar-se mutuamente. A justiça é algo que to­
dos os homens são capazes de apreciar.
Para conservar viva essa idéia, devemos esfor­
çar-nos para preservar e aumentar o sentido do ine­
fável, para lembrar constantemente a superioridade
do dever à nossa vontade e de conservar viva nossa
consciência de viver na grande fraternidade de todos
os seres em que somos todos iguais perante a rea­
lidade última. Nosso interesse exclusivo já não é
mais a obediência ao ego, pois nossa preocupação
agora é outro problema: como cumprir o que se
pede de nós.
O universo não é algo abandonado nem a vida
algo desaçnparado. O homem não é o senhor do
universo, nem sequer o dono do seu próprio des­
tino. Nossa vida não é propriedade nossa, mas
posse de Deus. É essa propriedade divina que faz
da vida uma coisa sagrada.
O que dissemos da justiça vale igualmente da
religião. Não é o seu coração a fonte daquela luz
em que o homem piedoso vê suas simples palavras
transformarem-se em sinais de eternidade. Não são
mãos humanas que constroem a fortaleza em que
se abriga o homem piedoso quando estremecem to­
das as torres. A realidade do sagrado não depende
da sua vontade de crer. A religião não lhe gover­
naria o coração se fosse simplesmente obra da sua
mente ou produto dos seus sentimentos.

234
22

O que é a religião

Como estudar a religião

Há uma perpétua tentação para o espírito ana­


lítico de classificar a religião em categorias limita­
das, de marcar seus fatos com rótulos preconce­
bidos, como se a realidade tivesse que se enquadrar
nas cômodas marcas — registradas ®as nossas teo­
rias — •, como se aquilo que não pode ser compa­
rado e carimbado como mana, tabu, totem etc. ti­
vesse que ser ignorado ou negado. Cada fato par­
ticular da fé ou do ritual é analisado como se fosse
uma conta bancária, uma matéria de cálculo em
que cada pormenor é explicável e cada transação
uma operação computável.
Alguns cientistas, tendo atingido uma soberana
independência crítica em relação ao assunto, apli­
cam à religião um método paleontológico, como se
essa fosse um fóssil escavado do solo ou uma planta
trazida numa expedição a lugares exóticos. Na ver­
dade, quando arrancada da profundidade da pie­
dade, geralmente existe numa simbiose com outros
valores tais como a beleza, a justiça, a verdade.
Certos estudiosos de religião operam com ca­
tegorias tomadas dos observadores antropológicos de
crenças e rituais primitivos, como se o caráter total,
a natureza genuína da humanidade se revelasse nesse
seu estágio primitivo. Parecem orientados por uma

235
doiitrina que glorifica o homem primevo que era
natural e despojado das artes da vida civilizada.
Conseqüentemente insistem em compreender os pro­
fetas em termos de homem selvagem.
Era doutrina básica da antropologia antiga que
na sociedade primitiva não havia lugar para as ati­
vidades espontâneas do indivíduo, que os pensamen­
tos e ações do indivíduo sempre lhe eram impostos
pelas pressões sociais. Essa doutrina é uma pressu­
posição subjacente da teoria sociológica em que a
sociedade, suas tentativas e instintos para sobreviver
são consideradas como a causa mística da religião.
Essa doutrina foi rejeitada pela antropologia
atual que afirma que mesmo nos níveis inferiores
da civilização o indivíduo não foi totalmente opri­
mido. A nós nos parece evidente que as grandes
idéias nasceram apesar das pressões sociais, apesar
das circunstâncias. Moisés teve que enfrentar lutas
não só contra o faraó, mas também contra o seu
próprio povo. A proibição de fazer imagens escul­
pidas teve que ser imposta a massas que reclamavam
um bezerro de ouro. A essência da religião está
fora da compreensão da sociologia.
Por outro lado, a psicologia da religião, idea­
lizando informações neutras e indiferentes, pretende
chegar a uma compreensão da religião aplicando
questionários a um grupo típico de pessoas ou então
tomando as opiniões e a mentalidade de uma pessoa
média como perspectiva de julgamento. Mas será
que a ausência de preconceito poderá compensar a
falta de compreensão do assunto? Será que indife­
rença é o mesmo que objetividade?
Como é que chegamos a formar um conceito
certo de história ou de astronomia? Para tanto não
nos dirigimos ao homem da rua, mas àqueles que
dedicam sua vida à pesquisa, àqueles que são peri­
tos no pensamento científico e que absorveram to­

236
dos os dados referentes ao assunto. Da mesma
forma, para obtermos um conceito adequado da re­
ligião, devemos procurar aqueles que têm a mente
voltada para a realidade espiritual, aqueles cuja vida
é religião e que são capazes de distinguir entre ver­
dade e felicidade, espírito e emoção, fé e autocon­
fiança. Do ponto de vista de um espírito para o
qual a enigmática santidade da religião não cons­
titui uma certeza, mas um problema, dificilmente
podemos esperar mais que uma idéia exterior, um
relance distante de algo que para ò homem piedoso
é prementemente atual e eminentemente real.
Os peritos em religião estão em perigo de as­
semelhar-se aquele estudante de Yeshivah54 que
afirmava entender e dominar todas as artes. Per­
guntado se sabia nadar, respondeu: “Não sei nadar,
mas sei o que é nadar. . . ”
Semelhante é a situação de pessoas que se de­
dicam à prosódia e são peritos em escandir versos.
Vangloriam-se de uma arte que é fácil para um
poeta naturalmente dotado. Ao contrário dos peri­
tos, o poeta ainda que saiba compor uma poesia
perfeita, pode não saber ensinar a teoria da versi­
ficação. Mas é capaz de ensinar alguém que seja
naturalmente dotado como ele, por meio de uma
simples alusão. Assim as palavras do homem pie­
doso acendem centelhas nas almas de pessoas aber­
tas à religião, centelhas que se transformam em lu­
zes nos seus corações55.

É a religião uma função da alma?


Aqueles que não conseguem libertar-se da idéia
de que a moralidade e a religião são a resposta do
próprio homem a uma necessidade egoísta, o resul-
54 Yeshivah = academia talm údica. (N . do T . ) .
55 J ud a s H a l e v i , Kusari, V . 16.

237
tadò de um desejo de segurança e de imortalidade
ou a tentativa de vencer o medo, são semelhantes
a pessoas que pensam que os rios, como os canais,
foram construídos pelo homem para a navegação.
É verdade que necessidades econômicas e fatores
políticos ensinaram o homem a explorar as vias flu­
viais. Mas serão os rios em si produtos do gênio
humano?
Muita gente pensa que alimentamos nosso cor­
po para aliviar os tormentos da fome, para acalmar
os nervos irritados de um estômago vazio. Na ver­
dade, não comemos porque sentimos fome, mas por­
que a ingestão de alimento é essencial para a manu­
tenção da vida, de vez que fornece as energias ne­
cessárias para as várias funções do corpo. A fome
é o sinal para comer, sua ocasião e seu regulador,
mas não a sua causa verdadeira. Não confundamos
o rio com a navegação, a nutrição com a fome, ou
a religião com o uso que dela faz o homem.
Ás teorias psicológicas que pretendem que a
religião surgiu de um sentimento ou de uma necessi­
dade parecem esquecer que tal causa não tem eficá­
cia suficiente para produzir a religião. Não vêem
que, por exemplo, o sentimento de dependência ab­
soluta ou de medo da morte não tendo absoluta­
mente nenhuma qualidade religiosa, sua relação com
a religião não pode ser a de causa e efeito. Esse
sentimento pode contribuir para a receptividade do
homem para a religião, mas por si mesmo é incapaz
de criá-la. Como a autêntica intenção religiosa com
a qual está unido tal sentimento deve originar-se
de outra fonte, é evidente que essas teorias não
explicam o problema.

238
Magia e religião

A essência da religião não está na satisfação


de uma necessidade humana. É verdade que o ho­
mem, na sua tentativa de explorar as forças da na­
tureza em seu próprio benefício, não recua nem
diante da idéia de forçar seres sobrenaturais a fazer
seus gostos. Mas tais intenções e práticas são ca­
racterísticas não da religião, e sim da magia, que
é “o parente mais próximo da ciêpcia” e o inimigo
mortal da religião, seu oposto totál.
Se é impossível provar que a magia sempre
precedeu a religião e que pelo reconhecimento da
sua falsidade inerente, a idade da magia “deu lugar
à idade da religião”, a sobrevivência da magia den­
tro da religião é um fato demasiadamente evidente
para passar despercebido. Seu peMgo para a religião
foi reconhecido no Pentateuco, onde é condenada
com toda a ênfase como um pecado horrendo, bem
como pelos profetas a cujos olhos era equivalente
à idolatria e pelos rabinos que tomaram severas
medidas para eliminá-la da vida judaica. E a luta
teve que continuar através dos tempos.
Abraão não estava disposto a sacrificar seu fi­
lho único para satisfazer uma necessidade pessoal
e Moisés não aceitou o Decálogo para alcançar a fe­
licidade. O segundo mandamento: “Não farás ima­
gens esculpidas”, efetivamente, ao invés de satisfazer,
desafiou as “necessidades religiosas” de muitos po­
vos através dos tempos. Tampouco os profetas es­
tavam desejosos de agradar ou de concordar com
os sentimentos populares. A religião profética pode
ser caracterizada como sendo o próprio oposto do
oportunismo.
Definir a religião primariamente como busca
de satisfação ou salvação pessoal é fazer dela um
refinado tipo de magia. Enquanto o homem vir na

239
religião a satisfação de suas próprias necessidades,
uma garantia de imortalidade ou um estratagema
para proteger a sociedade, não é a Deus que está
servindo, mas a si próprio. Quanto mais afastada
do ego, mais real é a sua presença. Um modo certo
de passar ao largo dele é pensar que Deus é uma
resposta a uma necessidade humana, como se não só
os exércitos, as fábricas e os cinemas, mas até Deus
tivesse que ocupar-se do ego.
Sempre houve pessoas que pensaram que “é
conveniente que haja deuses e se é conveniente acre­
ditemos que os deuses existem” (Ovídio, Ars Ama-
toria, Livro I, 1 .6 3 7 ). Foi a tais pessoas que se
dirigiu Amós.

“Ai de vós que desejais o dia do Senhor!


Para que quereis o dia do Senhor?
Ele é trevas e não luz.
Como um homem que foge de um leão.
E cai sobre um urso;
Entra em sua casa,
Apóia a mão na parede,
E uma serpente morde-o!
Não será o dia do Senhor trevas em vez
de luz?
Escuridão sem um raio de luz?”
(Am 5,18-20).
Crer em Deus é lutar por ele, lutar contra
tudo o que seja contra ele dentro de nós, inclusive
nossos interesses, quando em choque com sua von­
tade. Deus só se torna nossa necessidade, nosso
interesse, nossa preocupação quando, esquecendo o
ego, começarmos a amá-lo. Mas o caminho do amor
leva ao medo se transgredirmos seu mandamento
incondicional, se esquecermos sua necessidade da
justiça do homem.

240
O lado objetivo da religião

Toda investigação se origina de uma pergunta


básica que determina o curso da nossa mente. Mas
o número de interrogações disponível para nossa
pesquisa é limitado. São convencionalmente repe­
tidas em quase todas as pesquisas científicas. Como
instrumentos são transmitidas de um cientista a ou­
tro. Não olhamos o mundo mediante nossos pró­
prios olhos, mas mediante as lentçg dos nossos an­
tepassados intelectuais. Nossos olhos estão cansa­
dos de olhar através de óculos usados por outra
geração. Estamos cansados de olhar os seres por
cima, de olhar de través as suas relações com outras
coisas. Queremos ver a realidade como ela é, e
não só perguntar: qual é sua causa? qual é a sua
relação com suas fontes? com & sociedade? com
motivos psicológicos? Estamos cansados de reunir
dados e compará-los. Com efeito, quando as ques­
tões que antes eram sutis e penetrantes estiverem
gastas, o objeto investigado não reage mais à inda­
gação. Depende muito da força impulsora de uma
nova interrogação. A interrogação é uma invocação
do enigma, um desafio ao objeto examinado, pro­
vocando a resposta. Uma nova interrogação é mais
que a projeção ou a visão de uma nova meta. É
o primeiro passo em direção a ela . Saber o que
queremos conhecer é o primeiro pré-requisito de
uma pesquisa.
O homem moderno raramente enfrenta as coi­
sas como elas são. Na interpretação da religião nos­
sos olhos se voltam para as suas relações com os
vários campos da vida e não para a sua própria
essência e realidade. Investigamos a relação da re­
ligião com a economia, a história, a arte, a libido.
Indagamos sobre sua origem e desenvolvimento, so­
bre seus efeitos, sobre a vida psíquica, social e po-

241
16-0 homem não está só
lítica. Olhamos a religião como se ela fosse apenas
um instrumento e não uma entidade. Esquecemos
de perguntar: o que é a religião em si? O aspecto
objetivo da religião geralmente fica de lado. No
primeiro plano aparece, grande e saliente, seu com­
plemento subjetivo, a resposta humana. Escutamos
o eco e esquecemos o sino, perscrutamos a religio­
sidade e esquecemos a religião, observamos a expe­
riência e descuidamos a realidade que antecede a
experiência. Entender a religião através da análise
dos sentimentos que inspira é não entender sua es­
sência. É a mesma coisa que pretender apreender
uma obra de arte descrevendo nossa impressão dela
ao invés de compreender seu valor intrínseco. O
valor interno de uma obra de arte subsiste indepen­
dentemente da nossa resposta a ela. A essência de
uma obra de arte não é equivalente nem comensu­
rável com a impressão que produz, com o que é
refletido no gozo da arte. O estrato da experiência
interior e o reino da realidade objetiva não se en­
contram no mesmo nível.

Não há neutralidade

Restringir o mundo da fé ao reino do esforço


ou da consciência humana implicaria que uma pes­
soa que recusa a tomar conhecimento de Deus po­
deria isolar-se dele. Mas não há neutralidade pe­
rante Deus. Ignorá-lo significa desafiá-lo. Até o
vazio da indiferença produz uma preocupação, e
a amargura da blasfêmia é uma perversão do res­
peito a Deus. O mundo da fé não é fruto da ima­
ginação nem produto da vontade. Não é um pro­
cesso interior, um sentimento ou um pensamento,
e não deve ser considerado como um acúmulo de
episódios na vida do homem. Pensar que o homem

242
está diante de Deus pela duração de uma expe­
riência, meditação ou cumprimento de um ritual
é absurdo. A relação do homem com Deus não é
um episódio. O que acontece entre Deus e o ho­
mem dura toda a vida.
Religião como instituição, o Templo como fim
supremo ou, em outras palavras, a religião pela re­
ligião, é idolatria. O fato é que o mal integra tanto
a religião como a realidade profana. Uma santidade
estreita campanilística pode ser uma fuga do dever,
uma acomodação ao egoísmo.
A religião existe por causa de Deus. O lado
humano da religião, seus credos, rituais e institui­
ções é um meio, e não o fim. O fim é “praticar
a justiça, amar a misericórdia e andar em humildade
com teu Deus” . Quando o lado humano da religião
se converte em fim, a injustiça s#>torna um meio.

A dimensão sagrada

O que dá origem à fé não é um sentimento,


um estado de espírito, uma aspiração, mas um fato
perene no universo, algo que é anterior e indepen­
dente do conhecimento e da experiência humana
— a dimensão sagrada de toda a existência. O lado
objetivo da religião é a constituição espiritual do
universo, os valores divinos investidos em cada ser
e expostos ao espírito e à vontade do homem. Uma
relação ontológica. É por isso que o lado objetivo
ou divino da religião foge à análise psicológica e
sociológica.
Todas as ações não são apenas agentes na sé­
rie interminável de causa e efeito. Também afe­
tam e interessam a Deus, com ou sem intenção hu­
mana, com ou sem o consentimento humano. Toda
a existência encontra-se na dimensão da santidade

243
e ridda de vivo pode ser concebido como estando
fora dela. Toda a existência encontra-se diante de
Deus aqui e em toda parte, agora e sempre. Não
somente um voto ou uma conversão, não somente
a concentração da mente em Deus engajam o ho­
mem com Deus. Todos os atos, pensamentos, sen­
timentos e acontecimentos são de seu interesse.
Tal como o homem vive no reino da natureza
e está subordinado às suas leis, assim se encontra
ele na dimensão da santidade. Não pode fugir das
suas fronteiras, da mesma forma como não pode
deixar a natureza. Não consegue separar-se da di­
mensão sagrada nem pelo pecado, nem pela estu­
pidez, nem pela apostasia, nem pela ignorância.
Não há possibilidade de fugir de Deus.

A piedade é a resposta

Ter fé é entrar conscientemente numa dimen­


são em que nos mantemos em nossa própria exis­
tência. A piedade é uma resposta, o correlato sub­
jetivo de uma condição objetiva, e consciência de
viver dentro da dimensão sagrada, a compreensão
de que o que começa como experiência no homem
transcende a esfera humana, transformando-se num
fato objetivo fora dele mesmo. É neste poder de
transcender a alma, o tempo e o espaço, que o ho­
mem piedoso vê a distinção dos atos religiosos.
Se, para as nossas mentes, a oração fosse apenas
uma articulação de palavras, tendo uma importância
apenas psicológica e nenhum valor metafísico, nin­
guém perderia seu tempo numa hora de crise rezan­
do e iludindo-se a si próprio .
É a própria existência do homem que está em
relação com Deus. As relações do homem com o
estado, a sociedade, a família etc. não penetram

244
todos os estratos da sua personalidade. Na sra
solidão final, na hora da aproximação da morte,
desaparecem como palha levada pelo vento. É na
dimensão do sagrado que ele se encontra firme,
o que quer que lhe aconteça.

A modéstia do espírito

Temos a tendência de impressionar-nos com o


que é aparatoso, com o que é óbvio. O grito estri­
dente do animal enche o ar, enquanto a voz baixa
e tranqüila do espírito só é ouvida nas raras horas
de oração e devoção. Da janela do bonde podemos
observar a caça às riquezas e ao prazer, o assalto
dos fracos, rostos que exprimem suspeita ou des­
prezo. Por outro lado, o que é sianto vive nas pro­
fundezas. O que é nobre se retrai quando exposto
à luz, a humildade desaparece quando toma cons­
ciência de si e a disposição para o martírio perma­
nece escondida no segredo das coisas futuras. Ca­
minhando sobre a lama, vivemos na natureza, en-
tregando-nos aos impulsos e às paixões, à vaidade
e à arrogância, enquanto nossos olhos vêem a pe­
rene luz da verdade. Estamos sujeitos à gravitação
terrestre, mas encontramo-nos diante de Deus.
Na dimensão do sagrado o espiritual é uma
ponte lançada sobre um pavoroso abismo, enquanto
no reino da natureza o espiritual paira como nuvem
flutuante no ar, demasiadamente tênue para trans­
portar o homem sobre o abismo. Quando um navio
é envolvido por um tufão e a boca do redemoinho
espumante se abre para engolir a presa tremente,
não é o homem piedoso, absorto em súplicas, mas
o timoneiro que intervém na esfera apropriada com
meios apropriados, lutando com instrumentos físi­
cos contra forças físicas. Que sentido há em implo-

245
rar 4 misericórdia de Deus? Palavras não detém
a água, nem a meditação acaba com a tempestade.
A oração nunca está entrelaçada diretamente na ca­
deia de causa e efeito físicos. O espiritual não in­
terfere com a ordem natural das coisas. O fato de
que homens de intrépida sinceridade põem na ora­
ção o melhor de sua alma nasce da convicção de
que há um reino em que os atos de fé são pode­
rosos e fortes, que há uma ordem em que as coi­
sas do espírito podem ter grandes conseqüências.
Há fenômenos que parecem sem importância
e acidentais no reino da natureza, mas que têm um
grande sentido na dimensão da santidade. Adorar
a violência, usar a força bruta é natural, enquanto
o sacrifício, a humildade e o martírio são coisas
inauditas sob o ponto de vista da natureza. É na
esfera do sagrado que um pensamento ou um sen­
timento pode surgir como uma perene aproximação
da verdade, em que as orações são passos em dire­
ção a ele aere p eren n ior.
Vivemos não só no tempo e no espaço, mas
também no conhecimento, encontrando-nos próximos
a ele não só mediante a nossa fé, mas também, e
antes de tudo, mediante a nossa vida. Todos os
acontecimentos refletem-se nele. Toda a existência
é coexistência com Deus. O espaço e o tempo não
são os limites do mundo. Nossa vida ocorre aqui
e no conhecimento de Deus.

246
23

Definição da religião judaica

Deus tem necessidade do homem

Procuramos compreender a religião enquanto


fenômeno universal. Cabe-nos agora definir a con­
cepção judaica de religião. Com% foi dito acima,
a religião — seu lado humano — começa com um
sentido de obrigação, “com a consciência de que
algo é exigido de nós”, com a consciência de um
compromisso supremo. É, além disso, uma cons­
ciência de “Deus que pede nossa devoção constan­
temente, insistentemente, que sai ao nosso encontro
logo que desejamos conhecê-lo” . A consciência re­
ligiosa caracteriza-se por dois aspectos — deve ser
uma consciência de um com prom isso suprem o e
deve ser uma consciência de uma reciprocidade su­
prema .
Só há uma maneira de definir a religião ju­
daica. É a consciência do interesse de Deus pelo
hom em , a consciência de uma aliança, de uma res­
ponsabilidade que pesa sobre ele e sobre nós. Nos­
sa tarefa é colaborar com o seu interesse, realizar
sua visão da nossa tarefa. Deus precisa do homem
para atingir seus fins e a religião, tal como a en­
tende a tradição judaica, é uma maneira de servir
a esses fins, dos quais necessitamos, ainda que não

247
tenhamos consciência disso, fins cuja necessidade
devemos aprender a sentir.
A vida é uma sociedade entre Deus e o ho­
mem . Deus não está distante nem é indiferente
às nossas alegrias e sofrimentos. As necessidades
vitais autênticas do corpo e da alma do homem são
preocupações divinas. É por isso que a vida hu­
mana é santa. Deus é um sócio e um partidário
na luta do homem pela justiça, pela paz e pela san­
tidade, e é por necessitar do homem que ele fez
uma aliança perpétua com o homem, um vínculo
mútuo que une Deus e o homem, um relaciona­
mento que liga tanto Deus como o homem.
“Neste dia obtivestes do Senhor a declaração
de que ele é vosso Deus, prometendo andar em
seus caminhos, obedecer às suas leis e mandamentos
e escutar sua voz. E neste dia o Senhor obteve de
vós a declaração de que sois seu povo, exclusivo,
como vos prometeu, e que obedeceríeis a seus man­
damentos” (Dt 2 6 ,1 7 -1 8 ).
Algumas pessoas pensam que a religião se rea­
liza como percepção de uma resposta a uma oração,
quando na verdade ela se verifica em nosso conhe­
cimento de que Deus participa da nossa oração.
A essência do judaísmo é a consciência da recipro­
cidade entre Deus e o homem, da união com aquele
que subsiste em eterna alteridade. Pois a missão
de viver é sua e nossa, como o é igualmente a res­
ponsabilidade. Temos direitos e não só obrigações.
Nosso supremo dever é nosso supremo privilégio.
Interpretando Malaquias 3,18, disse o Rabi
Aha ben Ada: “Então distinguireis novamente o
justo do perverso” significando: “o que tem fé do
que não tem fé; o que serve a Deus do que não
o serve”, que significa: “o que serve à necessidade
de Deus do que não serve à necessidade de D eus.
Não se deve fazer da Torá uma pá para cavar, um

248
instrumento para uso pessoal ou uma corva para
glorificar-se a si próprio” (Midrash Tehillim, ed.
Buber, pp. 2 4 0 s ).
Sua necessidade é um interesse que ele mesmo
se impôs. Deus tem agora necessidade do homem,
porque ele próprio livremente o fez participante da
sua empresa, “participante na obra da criação” .
“Desde o primeiro dia da criação o Santo, bendito
seja, desejou entrar em sociedade com o mundo
terrestre” para habitar com suas criaturas no mundo
terrestre ( N úm eros R abba, cap. 13,6; cf. G ênese
Rabba, cap. 3,9) . Explicando Gên 17,1, o Midrash
observou: “Na opinião do Rabi Johanan nós neces­
sitamos da sua honra: na opinião do Rabi Simeão
ben Lakish, ele necessita da nossa honra” ( G ênese
R abba, cap. 30; diversamente Teodoro, p. 2 7 7 )SÓ.
“Quando Israel cumpre a vaptade do Onipo­
tente, acrescenta forças ao poder celeste, conforme
está dito: ‘A Deus damos forças’ (Sl 6 0 ,1 4 ). Mas
quando Israel não cumpre a vontade do Onipoten­
te, enfraquece, se assim se pode dizer, o grande
poder daquele que está no alto, conforme está es­
crito: “Enfraqueceste a Rocha que te gerou” ( P e-
sikta, ed. Buber, X X V I, 166b; comparar as duas
versões) .
A relação do homem com Deus não é uma
relação de confiança passiva na sua Onipotência,
mas uma relação de ajuda ativa. “Os ímpios con­
fiam em seus deuses. . . os justos são o apoio de
Deus” ( G ênese Rabba, cap. 6 9 ,3 ).
Por isso os Patriarcas são chamados “o carro
do Senhor” ( G ênese R abba, cap. 4 7 ,6 ;8 2 ,6 ).
“Ele se gloria em mim, ele se compraz em mim;
Ele será minha coroa de beleza.

56 Rabi Johanan e Rabi Simeão Ben Lakish são dois


rabinos palestinenses do século III-IV , importantes para o
Talmud Palestinense. (N . do T . ) .

249
Sua glória repousa em mim, e a minha nele.
Ele está perto de mim quando chamo por ele’ .
(O Hino da Glória).
A extrema audácia deste paradoxo foi expressa
numa interpretação tanaítica57 de Isaías 43,12: “Vós
sois minhas testemunhas, disse o Senhor, e eu sou
Deus” — quando vós sois minhas testemunhas eu
sou Deus, e quando não sois minhas testemunhas
não sou Deus 58.

O pathos divino

O Deus dos filósofos é todo indiferença, subli­


me demais para ter um coração ou para lançar um
olhar ao nosso mundo. Sua sabedoria consiste em
ser cônscio de si mesmo e esquecido do mundo.
Ao contrário, o Deus dos profetas é todo preocu­
pação, misericordioso demais para ficar insensível
à sua criação. Ele não só governa o mundo com
a majestade do seu poder. Ele está pessoalmente
interessado e até excitado pelo comportamento e o
destino do homem. “Sua misericórdia está sobre
todas as suas obras” (Sl 1 4 5 ,9 ).
Estes são os dois pólos do pensamento pro­
fético: a idéia de que Deus é um santo, diferente
e separado de tudo o que existe e a idéia do ines­
gotável interesse de Deus pelo homem, às vezes,
iluminado pela sua misericórdia, outras vezes, escu­
recido pela sua ira. Ele é ao mesmo tempo trans­
cendente, acima da inteligência humana, e cheio de
amor, compaixão, tristeza ou ira.
Deus não julga os atos do homem impassivel-

57 Tanaítas (palavra aramaica) é a designação dos rabi­


nos contemporâneos da compilação da M ishna, isto é, dos
três primeiros séculos da era cristã. ( N . do T . ) .
58 Sifre Deuteronômio 346; cf. a interpretação de Sal­
mos 123,1.

250
mente, num espírito de fria indiferença. Seu jul­
gamento está imbuído de um sentimento de íntima
preocupação. Ele é o pai de todos os homens e
não apenas um juiz. Ele é o amante comprometido
com o seu povo e não apenas um rei. Deus tem
um relacionamento apaixonado com o homem. Seu
amor ou sua ira, sua misericórdia ou seu descon­
tentamento são a expressão da sua profunda parti­
cipação na história de Israel e de todos os homens.
Assim, a profecia consiste na proclamação do
pathos divino, expresso na linguagem dos profetas
como amor, misericórdia ou ira. Atrás das várias
manifestações do seu pathos há um motivo, uma
necessidade: a necessidade divina da justiça hu­
mana .
Os deuses pagãos tinham paixões animais, de­
sejos carnais, eram mais caprichosos e licenciosos
que os homens. O Deus de Israel tem paixão pela
justiça. Os deuses pagãos tinham necessidades egoís­
tas, enquanto o Deus de Israel só tem necessidade
da integridade do homem. A necessidade de Mo­
loque era a morte do homem, a necessidade do Se­
nhor é a vida do homem. O pathos divino que os
profetas tentaram expressar de muitas maneiras não
era um nome para a sua essência, mas para os mo­
dos da sua reação ao procedimento de Israel, que mu­
daria se Israel modificasse seus caminhos.
A onda de pathos divino que invadiu as almas
dos profetas como uma paixão impetuosa, assusta­
dora, estremecedora, ardente, levou-os ao perigoso
desafio da autoconfiança e contentamento do povo.
Antes de todos os hinos e pregações consultavam o
interesse de Deus pelo povo, a fonte da qual bro­
tavam todas as torrentes de ira 59.

59 C f. A . H e s c h e l — Die Prophetie. Cracóvia, 1936.


pp. 56-87; 127-180.

251
A Bíblia não é uma história do povo judeu,
mas a história da procura do homem justo por Deus.
Visto que a espécie humana como um todo não
seguiu o caminho da justiça, foi a um indivíduo
— Noé, Abraão — a um povo: Israel ou ao resto
de um povo, que foi dada a missão de satisfazer
essa busca fazendo de todo homem um homem
justo.
Há no mundo um chamado eterno: Deus está
implorando o homem. Alguns se espantam, outros
permanecem surdos. Todos somos procurados. Um
ar de expectativa paira sobre a vida. Algo é pedido
ao homem, a todos os homens.

“O que deseja Deus?”

Durante milhares de anos pensou-se que divin­


dade e trevas se identificavam: um ser egoísta e
cheio de desejos cegos; um ser que o homem reve­
renciava, mas em quem não confiava; que se revelava
aos loucos, mas não aos mansos. Durante milhares
de anos admitiu-se como um fato que a suprema
divindade era hostil ao homem e que só podia ser
apaziguada por oferendas de sangue, até que vieram
os profetas que não suportaram mais ver a derrota
de Deus nas mãos do terror e proclamaram que as
trevas eram a sua morada e não a sua essência, que
foi clara como o sol meridiano a sua voz que res­
pondeu à pergunta: o que deseja Deus?

Música?
“Afastai de mim o ruído de vossos cânticos,
Pois não prestarei ouvidos à melodia
de vossas liras” (Am 5 ,2 3 ).
Oração?
“Quando estenderdes vossas mãos,

252
Afastarei meus olhos de vós.
Por mais orações que façais,
Não as escutarei.
Vossas mãos estão cheias de sangue”
(Is 1,15-16).
Sacrifício?
“Terá o Senhor tanto prazer em holocaustos e
sacrifícios como na obediência à voz do Se­
nhor?” ( lSam 15,22).
“E agora, ó Israel, o que o Senhor teu Deus
pede de ti senão que temas o Senhor teu Deus,
que andes em seus caminhos, que o ames, que
sirvas o Senhor teu Deus com toda a tua men­
te e coração e observes os mandamentos do
Senhor e suas leis que te ordeno hoje, para o
teu bem ?” (D t 10,12).
%

A necessidade religiosa

Como quase todos admitem, a religião corres­


ponde a uma necessidade particular da personalidade
humana. Do mesmo modo como há necessidades de
saúde e bem-estar, de conhecimento e de beleza,
de prestígio e de poder, assim há também uma ne­
cessidade de religião. Tal interpretação da religião,
para ser válida, deve provar que a necessidade reli­
giosa é diferente de todas as outras necessidades e
impossível de ser satisfeita por qualquer outra ma­
neira que não seja a sua própria. Deve ainda de­
monstrar que tal como os objetivos não religiosos,
como o poder, o bem-estar e o prestígio, não podem
ser atingidos por meio da religião, da mesma forma
a necessidade religiosa não pode ser satisfeita pela
realização destes objetivos não religiosos.
Para satisfazer às necessidades não religiosas
exploramos as forças da natureza em nosso pro-

253
veitò'. Mas exploramos também alguma coisa a fim
de satisfazer nossas necessidades religiosas? Qual
é então a maneira de satisfazer a necessidade reli­
giosa? Quais são os fins que o homem procura
atingir na religião?
Há em todo ser humano uma inextinguível ne­
cessidade de algo permanente, uma necessidade de
adorar e reverenciar. A divergência começa apenas
no objeto e na maneira da adoração. Mas essa inex­
tinguível necessidade é freqüentemente desvirtuada
em auto-exaltação ou num desejo de encontrar uma
garantia para a imortalidade pessoal. O judaísmo
mostra que ela é uma necessidade d e ser necessi­
tado por D eus. Ensina que todo homem necessita
de Deus porque Deus está necessitado do homem.
Nossa necessidade dele não é senão um eco da sua
necessidade de nós.
Há, naturalmente, o constante perigo de crer
no que desejamos ao invés de desejar o que cremos,
de acalentar nossa necessidade como se fosse Deus
em vez de adotarmos Deus como nossa necessidade.
Por isso devemos avaliar nossas necessidades à luz
dos fins divinos.

Os fins desconhecidos

E natural e comum preocupar-se com objetivos


pessoais e nacionais. Mas será igualmente natural
e comum preocupar-se com as necessidades de ou­
tras pessoas ou estar interessado em fins universais?
As necessidades convencionais, como o prazer, são
facilmente assimiladas por osmose social. As ne­
cessidades espirituais têm que ser implantadas, fo­
mentadas e cultivadas pela visão dos seus fin s.
Não precisamos elevar-nos acima de nós mesmos
para sonhar em sermos fortes, valentes, ricos, em

254
sermos senhores de um império ou de “um reino
de soldados ” . Mas temos necessidade de sermos
inspirados para sonhar os sonhos de Deus: “Deve­
rás ser santo porque eu, teu Deus, sou santo. . . ”
“Serás para mim um reino de sacerdotes, um povo
santo ” .
É Deus quem nos ensina nossos fins últimos.
Abraão pode não ter sentido necessidade de aban­
donar sua casa e seu país, como também o povo
de Israel não teve vontade de deixar suas panelas
de carne no Egito pela idéia de ir para o deserto.
Se analisarmos as potencialidades do homem,
torna-se evidente que sua unicidade e seu sentido
essencial se encontra na sua capacidade de satis­
fazer finalidades que vão além do seu ego, en­
quanto sua preocupação natural é: o que podem
fazer os outros pelo meu ego? A fieligião ensina-lhe
a considerar o que pode ele fazer pelos outros e
a compreender que o ego de nenhum homem é
digno de ser fim último.
Há um hino antigo com o qual concluímos
nossas orações diárias e que exprime nossa concep­
ção dos fins últimos. É um hino que pode ser con­
siderado o hino nacional do povo judeu.
“Por isso esperamos, Senhor nosso Deus, para
breve ver tua glória majestosa, quando serão elimi­
nadas da terra as abominações e exterminados os
falsos deuses; quando o mundo será formado sob
o reino do Todo-poderoso, e toda a humanidade
invocará teu nome e todos os maus se voltarão para
ti. Que todos os habitantes do mundo reconheçam
e saibam que todo joelho deve dobrar-se diante de
ti, que toda língua deve jurar-te obediência. Que
se ajoelhem e prostrem diante de ti, Senhor nosso
Deus, e honrem o teu nome glorioso, que todos
eles aceitem o jugo do teu reino sobre eles para
sempre. Pois teu é o reino e por toda a eternidade

255
reinarás na glória, como está escrito em tua Torá:
‘O Senhor será Rei por todo o sempre’ . E foi dito
ainda: ‘O Senhor reinará sobre toda a terra; na­
quele dia o Senhor será Um e seu nome Um’ ” 60.

A transformação dos fins


em necessidade

A educação religiosa judaica consiste em con­


verter os fins em necessidades pessoais ao invés de
converter as necessidades em fins, de tal maneira
que, por exemplo, o fim de pensar na vida das ou­
tras pessoas se converta em preocupação minha.
Entretanto, se esses fins não forem assimilados
como necessidades, mas permanecerem meros deve­
res, não aderentes ao coração, obrigados, mas não
vividos, haverá um estado de tensão entre o eu e
o dever. O ato moral perfeito traz uma semente
dentro de sua flor: o sentido de exigência objetiva
dentro da preocupação subjetiva. Assim, a justiça
é boa não porque sentimos necessidade dela. Pelo
contrário, devemos sentir necessidade da justiça por­
que ela é boa.
As religiões podem ser classificadas em reli­
giões de auto-satisfação, religiões de auto-aniquila-
mento e religiões de participação. No primeiro tipo,
o culto é uma busca de satisfação de necessidades
pessoais, tais como a salvação ou o desejo da imor­
talidade. Na segunda classe todas as necessidades
pessoais são excluídas e o homem procura dedicar
sua vida a Deus ao preço do aniquilamento de to­
dos os desejos, acreditando que o sacrifício humano
ou pelo menos a total abnegação é a única forma

60 C f ., por exemplo, no Sidur — Livro de rezas para


todo o ano israelita, citado na nota 13. (N . do T . ).

256
verdadeira de culto à divindade. A terceira forma
de religião, abandonando a idéia de considerar a
Deus um meio para atingir fins pessoais, insiste
em que há uma sociedade entre Deus e o homem,
que as necessidades humanas constituem preocupa­
ção de Deus e que os fins divinos devem conver­
ter-se em necessidades humanas. Rejeita a idéia de
que o bem deve ser feito com desinteresse próprio,
de que a satisfação experimentada na prática do
bem corrompe a pureza da ação. O judaísmo pede
a participação plena da pessoa no'serviço do Se­
nhor. Ao invés de boicotar os atos da vontade,
o coração deve responder com alegria e com irres­
trito prazer.

O praze% das boas ações

Embora não seja a sua fonte, o prazer pode


e deve ser um subproduto da ação moral ou reli­
giosa. O que é bom ou santo não é necessaria­
mente aquilo que eu não desejo, e o sentimento
de prazer e satisfação não priva uma boa ação de
sua qualidade de bondade. O coração e o espírito
são rivais, mas não inimigos irreconciliáveis e sua
reconciliação é um dos grandes objetivos na luta
pela integração. É verdade que a idéia de justiça
e a vontade da justiça são gêmeas. Mas uma pes­
soa moral é alguém que ama o amor do bem. Não
é verdade que o amor e a obediência não podem
viver juntos, que o bem nunca nasce do coração.
Estar livre de interesses egoísticos não quer dizer
ser neutro, indiferente ou estar empenhado na auto-
-superação. Deus não mora acima do céu. Ele ha­
bita, temos certeza, em todo coração disposto a
deixá-lo entrar.
O sentido da obrigação moral permanece im-

257
17-0 homem não está só
potente se não for mais forte que todas as outras
obrigações, mais forte que a obstinada força dos
interesses egoísticos. Para poder competir com as
inclinações egoísticas, a obrigação moral deve estar
aliada com a mais elevada paixão do espírito.
Para ser mais forte que o mal, o imperativo
moral deve ser mais poderoso que a paixão pelo
mal. Uma norma abstrata, uma idéia etérea não é
capaz de neutralizar a gravitação do ego. Uma
paixão só pode ser vencida por outra paixão mais
forte.
Do fato de que se adota e acalenta um fim
como interesse pessoal não se segue que o fim seja
de origem psicológica, da mesma forma como a
nossa utilização da teoria do quantum não prova
que ela se originou de motivos utilitários. Assim,
o fato de Deus se tornar uma necessidade humana
não vicia a objetividade e a validade da idéia de
Deus.
A solução do problema das necessidades não
está em criar uma necessidade para acabar com to­
das as outras necessidades, mas em criar uma ne­
cessidade para acalmar todas as outras necessidades.
Há em cada homem um sopro de Deus, uma força
mais profunda que a camada da vontade e que
pode ser estimulada a transformar-se numa aspira­
ção tão forte que seja capaz de dirigir e até de
se opor a todos os ventos.

258
24
O grande anseio

O anseio por uma vida espiritual

Todos os pensamentos e sentimentos sobre o


mundo tangível e cognoscível não esgotam a inter­
minável inquietação que há dentro de nós. Existe
um excedente de intranqüilidade sobre nossos de­
sejos palpáveis. Sentimo-nos sós**com os homens,
com as coisas, com nossos próprios desejos. As
metas são maiores que a capacidade da nossa com­
preensão.
Estamos em luta com os sonhos e os planos
de Deus.
Qual é a essência do nosso sentimento a res­
peito de Deus? Não poderíamos defini-lo como um
anseio que não conhece satisfação, um anseio de
encontrar algo que não sabemos sequer como de­
sejar?
Estamos acostumados a viver com desejos efê­
meros, mas também sabemos que a vida é um pouco
superior aos nossos interesses cotidianos, que quan­
do conseguimos terminar com uma autocomplacên-
cia, invade-nos uma felicidade que não é só nossa.
Desiludidos de satisfações ilusórias, nossos corações
se embriagam com um infinito anseio que nossas
mentes não conseguem entender plenamente.
Como a força vital que nos dá o poder de
lutar e de subsistir, de ousar e de vencer, que nos

259
impele a experimentar a contrariedade e o perigo,
assim há nas almas sedentas um impulso de morrer
antes que viver de fraudes e distorções. Para o
homem piedoso Deus é tão real como a vida e
assim como ninguém se daria por satisfeito apenas
com conhecer e ler a respeito da vida, da mesma
forma ele não se contenta com supor ou provar
logicamente que Deus existe. Quer sentir e entre-
gar-se a ele. Não só obedecer, mas também ache­
gar-se a ele. Seu desejo é provar todo o trigo do
espírito antes de ser moído pela mó da razão.
Prefere ser subjugado pelos símbolos do inconce­
bível a manusear as definições do superficial.
Estimulado pelo desejo do inatingível, o ho­
mem piedoso não se contenta em ficar confinado
ao que é. Seu desejo é não só conhecer mais do
que pode oferecer a razão ordinária, mas também
ser mais do que é; transformar a alma num barco
para a realidade transcendente, compreender com
os sentidos o que está oculto à mente, exprimir por
símbolos o que a língua é incapaz de dizer e o que
a razão é incapaz de conceber, experimentar como
realidade o que vagamente transluz na intuição.

A nobre nostalgia

O anseio de vida espiritual, a consciência do


mistério onipresente, a nobre nostalgia de Deus
raramente sofreu retração na alma judaica. Encon­
trou numerosas e variadas expressões em idéias e
doutrinas, em costumes e hinos, em ideais e aspi­
rações. É parte do legado dos salmistas e dos pro­
fetas. Escutemos o salmista: “Como a corça anseia
pelas fontes d’água, assim minha alma suspira por
ti, Senhor. Minha alma está sedenta de Deus, do
Deus vivo; quando irei e estarei diante de D eus?”

260
(4 2 ,2 -3 ). “Minha alma suspira e até desfalece pe­
los átrios do Senhor; meu coração e minha carne
cantam de alegria pelo Deus vivo” ( 8 4 , 3 ) . “Pois
um dia em teus átrios vale mais que m il” (84,11).
“Em tua presença há plenitude de alegria” ( 16, 11).
Será o judaísmo uma religião terrena? “Sou
um peregrino na terra” (119, 19) , declara o salmista.
“Quem tenho nos céus senão a ti? Não quero mais
ninguém na terra” ( 7 3 , 25 ) . “Minha carne e meu
coração desfalecem; mas Deus é^a rocha do meu
coração e minha herança para sempre” ( 7 3 , 2 6 ) .
“Quanto a mim, minha felicidade é a proximidade
de Deus” ( 7 3 , 2 8 ) . “Ó Deus, tu és meu Deus;
com ardor te procurarei; minha alma está sedenta
de ti, minha carne suspira por ti numa terra seca
e sequiosa, onde não há água. . . pois tua amorosa
bondade é melhor que a vida. M?hha alma se sacia
de fino e pingue manjar... Em meu leito lembro-me
de ti e em minhas vigílias noturnas medito em ti. . .
minha alma se aconchega a ti, tua direita é meu
apoio” ( 6 3 , 2 . 4 . 6 . 7 . 9 ) .
A consciência de Deus é incompatível com a
autojustificação, com a idéia de tomar muito a sério
as próprias obras. “Se eu for culpado, ai de mim,
e se sou inocente, não ousarei levantar minha ca­
beça. Estou cheio de vergonha; vê minha miséria”
(Jó 10,15).
Há muitas leis na Bíblia que prescrevem o ofe­
recimento de sacrifícios no santuário. Mas, ainda
que os profetas insistam que os verdadeiros “sa­
crifícios para Deus são um espírito arrependido, um
coração arrependido e contrito” (Sl 51,19), não
há nenhum mandamento de contrição. Seria neces­
sário tal preceito?
É possível não sofrer do fundo do coração
num mundo como este?

261
“A terra está entregue às mãos dos maus. . .
Os tabernáculos dos assaltantes são prósperos.
E os que provocam a Deus estão seguros” .
A auto-satisfação é algo muito difícil de man­
ter juntamente com o conhecimento da miséria co­
existente. Quem é capaz de pensar que suas pró­
prias faltas desaparecem com desculpas mesquinhas
ou sentir-se feliz pretextando incapacidade moral?
“Não é enorme a tua malícia?
E infinitas as tuas iniqüidades?
Não deste água ao sedento,
Recusaste o pão ao faminto.
Sendo homem poderoso que possuía a terra,
Sendo homem de alta posição que nela habitava,
Despediste as viúvas de mãos vazias
E quebraste os braços dos órfãos”
(Jó 2 2 , 5 . 7 9 ) .
“Não há nada mais são que um coração con­
trito” . O sentido da contrição não deve prejudicar
a consciência do nosso poder espiritual, da nobreza
eterna que acompanha a responsabilidade eterna.
Um homem culto havia perdido todas as suas
fontes de renda e estava à procura de um meio para
ganhar a vida. Os membros da sua comunidade,
que o admiravam pela sua cultura e pela sua pie­
dade, sugeriram-lhe que servisse como preceptor da
comunidade nos dias do Temor. Mas ele se consi­
derava indigno de servir como mensageiro da co­
munidade, aquele que devia apresentar as orações
dos seus irmãos ao Todo-poderoso. Foi ter com o
seu mestre o Rabi de Husiatin e contou-lhe sua afli­
tiva situação, o convite que recebera de servir como
preceptor nos dias do Temor e o seu receio em
aceitá-lo e rezar pela sua congregação.
“Seja receoso e reze”,
foi a resposta do rabi.

262
Descontentamento perpétuo

O objetivo da piedade judaica não está em es­


forços fúteis para a satisfação de necessidades, às
quais porventura cedemos ou que não podem ser
satisfeitas de outra maneira, mas em manter e atear
o descontentamento com nossas aspirações e obras,
em manter e alimentar uma aspiração que não co­
nhece satisfação. Assim, o judaísmo é causa e não
resultado de uma necessidade, uma exigência obje­
tiva ao invés de um interesse subjetivo. Ensina o
homem a jamais dar-se por satisfeito, a desprezar
a satisfação, a suspirar pelo máximo, a apreciar ob­
jetivos aos quais geralmente é indiferente. Planta
nele uma semente de infinita ansiedade, uma neces­
sidade de necessidades espirituais, ao invés de uma
necessidade de obras. Ensina-lhe g contentar-se com
o que tem, mas nunca com o que é.
A maioria de nós somos infelizes não porque
estamos insatisfeitos com o que somos, por exem­
plo, insensíveis às aflições ou privações de outras
pessoas, mas por estarmos descontentes com o que
possuímos. A religião é a fonte da insatisfação
com o eu.
A felicidade, conforme acima indicado, não é
sinônimo de satisfação, de presunção, mas é essen­
cialmente a certeza de ser necessitado, de ter a
visão da meta ainda por atingir. O que produz a
futilidade e o desespero é a auto-satisfação.
Os animais saciam-se e satisfazem-se consigo
mesmos, enquanto os homens só podem estar satis­
feitos consigo mesmos quando seu espírito começa
a decair e a atolar-se no pântano das ações superes­
timadas. Auto-satisfação, auto-realização é mito que
almas anelantes devem considerar degradante. Tudo
o que é criativo tem sua origem numa semente de
infinito descontentamento. O progresso moral é

263
possível por causa da insatisfação dos homens com
os costumes, as sanções e as maneiras de compor­
tamento de sua época e raça. Uma nova compreen­
são começa quando chega o fim da satisfação, quan­
do tudo o que foi visto ou dito parecer uma dis­
torção para quem vê o mundo pela primeira vez.
A auto-satisfação é a beira do abismo, do qual
os profetas procuram afastar-nos. Quando o povo
de Israel ainda se encontrava no deserto, antes de
entrar na Terra Prometida, já foi exortado a lutar
contra os perigos da auto-satisfação. “Quando eu
os tiver introduzido na terra que jurei a seus pais
que lhes daria, uma terra abundante em leite e
mel, e eles comerem e engordarem, e se voltarem
para deuses estranhos e os adorarem, desprezando-
-me e violando minha aliança. . . ” (D t 3 1 , 2 0 ) . Por­
que é este o caminho da ruína e da desgraça:

“Jesurum engordou e recalcitrou.


Engordaste e te fartaste” (D t 32 ,1 5) .

Se quiséssemos retratar a alma de um profeta


pelas emoções que nele não tiveram lugar, certa­
mente a auto-satisfação seria mencionada em pri­
meiro lugar. Os profetas de Israel eram como que
geysers de desgosto que perturbam nossa consciên­
cia até hoje, obrigando-nos a sentir o sofrimento
dos outros.

“Ai daqueles que vivem tranqüilamente em Sião


E confiam na montanha de Samaria. . .
Deitados sobre leitos de marfim.
E se estendem em suas poltronas,
E comem os cordeiros do rebanho
E os novilhos do estábulo;
Cantam ao som da harpa,
E como Davi, inventam instrumentos de música;

264
Bebem vinho em taças
E se ungem com óleos preciosos:
Mas não sentem os sofrimentos de José”
(Am 6 , 1 . 4- 6) .

Aspirações

Juntamente com as potencialidades guardadas


em nossa natureza, possuímos também a chave para
libertá-las e desenvolvê-las. Essa chave são as nos­
sas aspirações. Para alcançarmos qualquer valor, te­
mos que esperá-lo, procurá-lo e desejá-lo. A pedra
não se esforça para transformar-se em estátua e
quando transformada em estátua a forma é forçada
na pedra e não esperada. Mas o homem não vive
só de necessidades senão também %le aspirações por
algo que não sabe sequer como exprimir.
Uma pessoa é aquilo a que aspira. Para co­
nhecer-me a mim mesmo, pergunto-me: quais são
os fins que me esforço por alcançar? Quais são os
valores pelos quais mais me interesso? Quais são
as grandes aspirações que eu gostaria que me ani­
massem e impelissem?
Quem está satisfeito consigo nunca aspirou real­
mente pelo ardor, sua vida pelo amor, sabendo que
o autocontentamento é sombra e não luz. A grande
aspiração que se volta para a eternidade é uma
aspiração para louvar, para servir. E quando as on­
das desta aspiração se avolumam dentro das nossas
almas todas as barreiras caem por terra; a crosta
da nossa insensibilidade, a histeria da vaidade, as
orgias da arrogância.
Pois não é só o eu que estremece, não é um
impulso da minha alma, mas uma vibração eterna
que nos arrasta a todos.
Nenhum código, nenhuma lei, nem mesmo a

265
lei fie Deus, pode estabelecer uma norma para toda
a nossa vida. Não basta ter idéias certas. Pois é
a vontade e não a razão que tem o poder executivo
no reino da vida. A vontade é mais forte que a
razão e não se submete cegamente aos ditames dos
princípios racionais. A razão pode forçar a mente
a aceitar intelectualmente as suas conclusões. Mas
qual é a força que pode fazer-me gostar de fazer
o que devo fazer?
Um jovem foi ser aprendiz de ferreiro. Apren­
deu a segurar a tenaz, a manusear o malho, a bater
na bigorna e a puxar o fole para alimentar o fogo.
Concluindo o seu aprendizado, foi escolhido para
empregado na ferraria do palácio do rei. Mas pouco
durou a felicidade do jovem rapaz. Descobriu que não
tinha aprendido como acender o fogo. De nada lhe
valia toda a sua arte e conhecimento no manejo
dos instrumentos.

266
25

Uma norma de vida

Os objetivos supremos não têm voz

Verificamos esta amarga realidade: a vida é


um perigo constante; a segurança moral e mesmo
física é um mito. Poucos de nós sabem o que fazer
com a vida, com a nossa força e a nossa vontade,
com nossa inteligência e nossa libáMade. O coração
é frágil e cego; sem orientação, torna-se selvagem
e desesperado.
É mais fácil lutar contra os vírus e os germes
que contra a insensibilidade do coração ou contra
a imperceptível decadência interna. Sem auxílio, o
que fazemos senão maltratar e prejudicar? Quem
nos ajudará se destruirmos o que homem algum
jamais poderá reconstruir?
Nossos corações não produzem o desejo de ser
justo ou santo. Se a mente está dotada com a ca­
pacidade de compreender fins superiores e de di­
rigir nossa atenção a eles, independentemente de
qualquer vantagem material, a vontade está natural­
mente inclinada a sujeitar-se a fins egoísticos, inde­
pendentemente das percepções da mente. Não há
nada em que se possa confiar menos que no poder
de abnegação do homem.
Tampouco a mente está sempre imune das per­
suasões dos interesses do eu. Desta forma, os fins
últimos, ou não são apreendidos, ou a mente não

267
os deixa falar. Cabe à religião articular esses fins
que não têm voz.
Fazer a paz com todas as nossas realidades
significaria entregar-nos ao ego. É fácil converter
a alma numa casa de loucos e pensar que é um
santuário. O espírito que suspira pelo sopro divino,
que deseja ser mais forte que a veemência das pai­
xões, deve equipar-se com armas que a mente sozi­
nha não pode produzir.
O anseio do homem pela liberdade interior
vem acompanhado de um sentimento de desgosto
pelas necessidades artificiais. Cada um de nós, nal­
gum momento da vida, entendeu a sabedoria da
máxima antiga de que “não ter desejo nenhum é
divino; e ter o mínimo possível de desejos é estar
próximo da divindade” (Diógenes Laércio, Sócrates,
séc. I I ). Se só os santos podem ser como o Rabi
Hanina, com relação ao qual todo dia sai uma voz
do monte Horeb proclamando: “O mundo inteiro
é alimentado por causa do meu filho Hanina; mas
meu filho Hanina se satisfaz com uma pequena
quantidade de alfarrobas de um sábado ao outro”
(Berakot 17b), todos os homens podem aceitar
o conselho de que “devemos procurar diminuir nos­
sos desejos em vez de aumentar nossos meios” .

Nem divinização nem aviltamento

Há duas soluções opostas que através dos tem­


pos foram propostas para o nosso problema: uma
diviniza o desejo, outra degrada-o. Por um lado
houve aqueles que, subjugados pela obscura força
da paixão, acreditavam ter no seu delírio uma ma­
nifestação dos deuses e celebravam a sua satisfação
como um rito sagrado. As orgias dionisíacas, os
ritos da fertilidade, a prostituição sagrada, são exem-

268
pios extremos de uma idéia que no subconsciente
nunca desapareceu.
Os expoentes do outro extremo, alarmados com
o poder destrutivo das paixões desenfreadas, ensi­
naram o homem a ver torpeza e mal no desejo, Sa­
tanás no arrebatamento da carne. Seu conselho é
reprimir os apetites e seu ideal é a renúncia de si
mesmo e a ascese. Alguns gregos diziam: “A pai­
xão é um deus, E ros” . Os budistas afirmam: “O
desejo é mau” .
Para o espírito judeu, que não^é seduzido nem
horrorizado pelo poder das paixões, os desejos não
são bons nem maus, mas tal como o fogo, não com­
binam com a palha. Não devem ser nem extintas
nem alimentadas de combustível. Em vez de cultuar
o fogo e ser por ele consumidos, devemos deixar
que das chamas nasça uma 1uz.^^4í necessidades
são oportunidades espirituais.

Espírito e carne

A fidelidade ao judaísmo não implica em des­


prezo das legítimas necessidades, numa tirania do
espírito. A prosperidade é uma meta digna de as­
piração e uma recompensa prometida à vida cor­
reta. Embora não haja uma exaltação da nossa na­
tureza animal, não falta o reconhecimento dos seus
direitos e do seu papel. Há uma sincera preocupa­
ção pelo seu bem-estar, suas necessidades e limi­
tações .
O judaísmo não despreza o aspecto carnal.
Não nos obriga a abandonar a carne, mas a con­
trolá-la e a orientá-la, a satisfazer as necessidades
naturais da carne de tal maneira que o espírito não
seja molestado por frustrações antinaturais. Não
temos nenhum mandamento de sermos piromanía-

269
cosfjda alma. Pelo contrário uma necessidade que
serve para a intensificação da vida sem prejuízo a
outros, é obra do Criador, e a destruição ou muti­
lação arbitrária ou ignorante da sua criação é van­
dalismo. “Comer, beber e gozar do seu trabalho
é um dom de Deus ao homem” (Ecl 3, 13 ).
Vida correta evidentemente implica em con­
trole e relativo domínio das paixões, mas não re­
núncia a todas as satisfações. O que é decisivo não
é o ato do domínio, mas como utilizar este domínio
sobre as paixões. Nosso ideal não é um domínio
implacável, mas uma diligente alteração das necessi­
dades. A paixão é um monstro de muitas cabeças
e o objetivo só é atingido mediante cuidadosa me­
tamorfose. Não por meio de amputação ou muti­
lação .
O judaísmo não está ligado a nenhuma dou­
trina de pecado original e não tem conhecimento
de uma malícia inerente à natureza humana. No
seu vocabulário a palavra “carne” não assumiu a
coloração de pecaminosidade. As necessidades car­
nais não são concebidas como sendo radicadas no
mal. Em parte alguma da Bíblia se encontra uma
indicação da idéia de que a alma é prisioneira de
um corpo corrupto, que procurar satisfação neste
mundo significa perder a alma ou faltar à aliança
com Deus, que a fidelidade a Deus exige a renúncia
aos bens terrenos.
Nossa carne não é má. Elá é matéria para apli­
cação do espírito. O carnal é algo a ser superado
e não aniquilado. Tanto o céu como a terra são
sua criação. Nada na criação pode ser rejeitado e
de nada se deve abusar. O inimigo não está na
carne. Está no coração, no ego.
Para a Bíblia o bem é equivalente à vida. O
ser é intrinsecamente bom. “Deus viu que era
bom” . A Torá é concebida como uma “Árvore da

270
Vida”, representando a equivalência da vida e do
bem. “No caminho da justiça está a vida” (Prov
12 , 2 8 ) .

Na vizinhança de Deus

Não há conflito entre Deus e o homem, não


há hostilidade entre o espírito e o corpo, não há
uma separação entre o santo e o profano. O homem
não existe separado de Deus. O hümano é a fron­
teira do divino.
A vida passa nas proximidades do sagrado e
é esta proximidade que confere à existência a sua
suprema significação. Em nossas relações com o
que é imediato entramos em contato com o mais
distante. Até a satisfação de nStessidades físicas
pode ser um ato sagrado. Talvez a mensagem es­
sencial do judaísmo é que fazendo o que é finito
podemos perceber o que é infinito. Devemos chegar
à percepção do impossível no possível, à percepção
da vida eterna nos atos cotidianos.
Deus não está oculto num templo. A Torá
veio para dizer ao homem desatento: “Não estás
só, vives constantemente em santa vizinhança”. Lem­
bra-te: “Ama a teu próximo — Deus — como a
ti mesmo” . Não se nos pede abandonar a vida e
dizer adeus a este mundo, mas conservar acesa nele
a chama e deixar que sua luz se reflita em nossas
faces. Não deixemos que nossa cobiça cresça e cons­
titua uma barreira para essa vizinhança. Deus está
à espera em todo caminho que leva da intenção
para a ação, do desejo à satisfação.
O homem está dotado do poder de ser supe­
rior ao seu próprio eu. Não precisa sentir-se de­
samparado diante da “má inclinação” . Ele é capaz
de dominar o mal. “Deus fez o homem ereto”.

271
Se perguntarmos “por que criou ele a má inclina­
ção. . . o Senhor nos dirá: Sois vós que a tornais
má” 61.
Pode-se servir a Deus com o corpo, com suas
paixões e até com “o impulso mau” {S ifre D eute­
ronôm io, 3 2 ) . Só é necessário saber distinguir en­
tre a escória e o ouro. Este mundo só adquire gosto
quando recebe um pouco de mistura do outro mun­
do. Sem a nobreza do espírito, a carne pode real­
mente converter-se num foco de trevas.
O caminho que leva ao sagrado passa através
do profano. O espiritual apóia-se sobre o carnal,
como “o espírito que paira sobre a face das águas”.
A vida judaica é uma vida vivida de acordo com
um sistema de controles e equilíbrios.

O santo dentro do corpo

Santidade não significa um ar que paira na


solene atmosfera de um santuário, uma qualidade
reservada aos atos supremos, um advérbio do espi­
ritual, a distinção dos eremitas e sacerdotes. No
seu grande Código, Maimônides, ao contrário do
editor da Mishna, chamou a seção que trata das
leis do culto do Templo “O livro do Serviço”, en­
quanto à seção referente às Leis da pureza e da
dieta chamou de “O Livro da Santidade” . A força
da santidade é subterrânea, situa-se no somático. A
semente da santidade está primariamente na ma­
neira como satisfazemos as necessidades físicas. Ori­
ginariamente santo ( K a d o sh ) significava o que foi
separado, isolado, segregado. Na piedade judaica
assumiu um novo sentido, denotando uma qualidade
envolvida, imersa em atos comuns e terrenos, pri­

61 Tanhuma Bereshit /G ê n e se / n° 7.

272
mariamente atos executados pelo indivíduo; atos
particulares e simples e não cerimônias públicas.
“O homem deveria sempre considerar-se como se
o Santo habitasse no seu corpo, pois está escrito:
‘O Santo está dentro de vós’ (Os 11,9), por isso
não se deve mortificar o corpo” (Taanit 11b) 62.
O homem é a fonte e o iniciador da santidade
no mundo. “Se um homem se santificar um pouco,
Deus o santificará cada vez mais; se ele se santi­
ficou a partir de baixo, será santificado a partir de
cima” (Yoma 39a).
O judaísmo ensina-nos que até a satisfação de
necessidades animais pode ser um ato de santifica­
ção. O gozo do alimento pode ser uma forma de
purificação. Algo da minha alma pode morrer afo­
gado num copo d’água se seu conteúdo for bebido
como se a única coisa im portante no mundo fosse
a minha sede. Mas podemos chegar um pouco mais
perto de Deus, quando nos lembrarmos dele ainda
mais intensamente na excitação e na paixão.
A santificação não é um conceito celestial.
Não existe um dualismo de terreno de um lado e
sublime de outro. Todas as coisas são sublimes.
Todas foram criadas por Deus e sua continuação
na existência, sua cega aderência às leis da necessi­
dade é, conforme dissemos acima, um modo de obe­
diência ao Criador. A existência das coisas no uni­
verso é um rito supremo.
Um homem que vive, uma flor que floresce
na primavera, é um cumprimento da ordem de Deus:
“Existam !” Vivendo estamos diretamente cumprin­
do a vontade de Deus, numa forma que está acima
de nossa escolha ou decisão. A nossa própria exis-

62 Taanit (jejum ) e Yoma (d ia da E xpiação), citado


logo a seguir, são títulos de tratados da M ishna. (N . do
T.).

273
18-0 homem não está só
tênciâ está em contato com sua vontade. A vida
é santa e constitui uma responsabilidade tanto de
Deus como do homem.

Não sacrificar, mas santificar

O autor da vida não nos pediu que desprezás­


semos nossa curta e pobre vida, mas que a eno­
brecêssemos, não que a sacrificássemos, mas que
a santificássemos. Disse Rabi Ananias ben Akasias 63:
“O Santo, bendito seja, quis purificar Israel; por
isso lhe deu a Torá e muitas mitzvoth (normas
de vida), conforme foi dito: O Senhor quis, por
causa da justiça (de Israel), magnificar-se e glori­
ficar a Torá” (Is 42,21) 64. Antes de cumprir um
mandamento, bendizemos e louvamos aquele “que
nos santificaste com teus mandamentos” . Nos sá­
bados e nas festas rezamos: “Santifica-nos com teus
mandamentos ” .
Para os adeptos dos antigos cultos orgíacos o
vinho era um meio usado para estimular o delírio,
“o que torna o homem delirante” (Heródoto 4.79).
Para os ascetas o vinho é pernicioso, é uma fonte
de mal. Para os judeus o vinho está, mais que qual­
quer outra coisa, relacionado com o termo e o ato
da santificação (Kiddush). Sobre o vinho e o pão
invocamos a santidade do Sábado. “Santifica-te nas
coisas que te são permitidas” (Yebamot 20a) 65,
não só ritual, nas formas prescritas pela Torá. “Em
todos os teus caminhos procura reconhecê-lo” (Prov
3 , 6) .

63 Rabino tanaíta. (N . do T . ) .
64 Mishna Makkot 3,16. (T ratado da Mishna sobre a
fustigação. N . do T ) .
65 Yebamot, título do tratado da Mishna sobre o le-
v irato.

274
A santificação como razão para andar nos seus
caminhos não é um conceito de pragmatismo reli­
gioso — a teoria segundo a qual os efeitos tangí­
veis servem como critério para a validade dos man­
damentos . O bem deve ser feito por causa de Deus
e não para promover a perfeição do homem.
“Diz: ‘os olhos do sábio estão na sua cabeça’
(Ecl 2 , 1 4 ) . Dir-se-á: onde poderiam estar senão na
c abeça?. .. Mas quer dizer o seguinte. Aprende­
mos que um homem não deve caminhar quatro cú­
bitos de cabeça descoberta, a razão para tanto sendo
que a Shekhinah está sobre a cabeça. Então, os
olhos do sábio. . . estão voltados para a sua cabeça,
para aquilo que está sobre sua cabeça e assim sabe
que a luz acesa sobre sua cabeça precisa de óleo,
pois o corpo humano é um pavio e a chama arde
sobre ele. E o rei Salomão advSrte e diz: ‘Não
deixa faltar óleo na tua cabeça’ (E cl 9, 8) , porque
a luz sobre a sua cabeça precisa de óleo, que con­
siste em boas obras e por isso os olhos do sábio
estão voltados para a cabeça e não para outra parte”
(Zohar I I I , 187a).
Aprendemos que o homem é necessário, que
nossas necessidades autênticas são exigências divi­
nas, símbolos de necessidades cósmicas. Deus é o
sujeito de todos os sujeitos. A vida é sua e nossa.
Ele não nos lançou no mundo e nos abandonou.
Ele participa dos nossos trabalhos. Compartilha das
nossas ansiedades. Um homem que tem uma ne­
cessidade não é o sujeito exclusivo e último da ne­
cessidade: Deus tem necessidade juntamente com
ele. Tomando consciência de uma necessidade, de­
vemos perguntar-nos: Deus tem necessidade junta­
mente comigo? Ter Deus como sócio das nossas
ações é lembrar-nos de que nossos problemas não
são exclusivamente nossos. A existência judaica é
uma vida compartilhada com Deus.

275
Viver dentro de uma ordem

A preocupação por uma vida correta, o pro­


blema do que deve ser feito aqui e agora constitui
o centro da religião judaica. Este tem sido o tema
principal da literatura judaica desde os profetas até
a época dos Hassidin, tratado com um sentido de
urgência como se a vida fosse um contínuo estado
de emergência.
Com melancolia e depois de numerosas e elo­
qüentes lições de derrotas, começamos hoje a com­
preender que não há soluções improvisadas para
problemas perpétuos; que a única segurança contra
perigos constantes é a constante vigilância, a cons­
tante orientação. Tal orientação, tal vigilância é
dada àquele que vive às sombras do Sinai, àquele
cujas semanas, dias e horas seguem o ritmo da
Torá.
O que constitui a forma de vida judaica não
é tanto a execução de boas obras isoladas, um pas­
so dado agora e outro depois, mas antes o segui­
mento de um caminho, um estar a caminho; não
tanto os atos de cumprimento quanto o estado de
estar comprometido com o dever, de fazer parte de
uma ordem em que os atos isolados, as formações
de sentimentos religiosos, os sentimentos esporádi­
cos, os episódios morais, fazem parte de todo um
modelo de vida.

A totalidade da vida

O homem piedoso crê que todos os aconteci­


mentos estão secretamente interrelacionados, que o
alcance de tudo o que fazemos supera o horizonte
da nossa compreensão, que tudo na história lança
seu peso nos pratos da balança de Deus, que todo
ato significa um grau na escala do sagrado, indepen­
dentemente do fato se o homem que o pratica visa
ou não tal objetivo. Os profetas de Israel consi­
deravam como sendo de interesse divino justamente
as situações não rituais, as condições profanas. Para
eles a totalidade das atividades humanas, tanto so­
ciais como individuais, de todas as circunstâncias
interiores e exteriores, constituem a esfera do inte­
resse divino . Portanto, o âmbito da Torá é a vida
em sua totalidade, tanto o que é vulgar como o que
é sagrado .

O não-heróico

O judaísmo é uma teologia do ato comum, das


trivialidades da vida, que não tfSta tanto do pre­
paro para o excepcional como da condução das
coisas triviais. A característica predominante da
maneira de vida judaica é a de ser uma piedade
despretensiosa, imperceptível, e não extravagância,
mortificação, ascese. Desta forma, o seu objetivo é
enobrecer o que é comum, conferir uma beleza hie­
rática às coisas profanas, combinar o relativo com
o absoluto, unir o pormenor com o todo, adaptar
nosso próprio ser à sua pluralidade, aos seus con­
flitos e contradições, à unidade que tudo transcende,
ao sagrado.

A autoridade interior

Também a vida psíquica é um processo de de­


senvolvimento e de desperdício. Suas necessidades
não podem ser satisfeitas com injeções insuficientes
e inconstantes. Não sendo um animal de hiberna­
ção, o homem não pode viver com reservas arma-

277
zenédas. Pode ter uma memória cheia e uma alma
vazia. Os homens que não são livres horrorizam-se
com a idéia de aceitar um regime espiritual. Asso­
ciando o controle interno com a tirania externa, pre­
ferem sofrer a sujeitar-se à autoridade espiritual.
Só homens livres, que não têm a tendência de cano­
nizar todos os caprichos, não identificam o autocon­
trole com a auto rendição, sabendo que ninguém é
livre se não for senhor de si mesmo, que quanto
mais liberdade gozarmos, de mais disciplina necessi­
tamos 66.
A idéia do deixa-correr, ou seja, a ausência de
controle ou direção na esfera íntima é uma ilusão.
A vida interior está povoada de inúmeras forças
insaciáveis e competitivas. Aqui o poder não pode
ficar vago. Se os princípios forem eliminados, logo
um desejo inferior tenta ocupar o poder. Sob pena
de cair no ridículo, o imenso reino da vida não
pode ser colocado sob o controle da ética ou da
jurisprudência. Como dotar o homem de capaci­
dade para dominar a totalidade da vida, eis o su­
premo desafio da inteligência.
A resposta a este desafio é a vida de piedade.
Para aprender a viver devemos dirigir-nos ao ho­
mem piedoso.

66 C f. A. J . H e s c h e l , The Earth is the Lord's.


N ova Iorque, 1950, p . 63.
26

O homem piedoso

Ò que é piedade?

Desde tempos imemoriais a piedade tem sido


estimada como um dos ideais mais elevados do ca­
ráter humano. Em todos os tempos e lugares os
homens procuraram adquirir a piedade e nenhum
esforço ou sacrifício lhes pareceu grande demais
para alcançá-la. Será isso mera ilusão, uma fuga
da imaginação? Não! Trata-se de uma virtude real,
de algo sólido que se pode observar claramente e
que tem uma influência real. Sendo, pois, um fato
específico da existência que encontramos na vida,
merece indiscutivelmente um exame. O fato cie ser
geralmente negligenciada ou esquecida pela pesquisa
científica deve-se em parte às dificuldades metodo­
lógicas que envolve tal tipo de estudo, porém mais
fundamentalmente ao fato de que ela apresenta as­
pectos teológicos, que são de certo modo repelentes
para a mentalidade moderna. Para alguns a piedade
sugere uma fuga da vida normal, um abandono do
mundo, uma separação, uma negação dos interesses
culturais, sendo relacionada com um tipo de com­
portamento antiquado, clerical, artificial. Em outros
a palavra desperta afetação, se não hipocrisia e fa­
natismo ou parece indicar um sintoma de uma ati­
tude doentia e até absurda em relação à vida. Ju l­
gam que uma atitude como a piedade deve ser re-

279
jeitáda no interesse da sanidade mental e da liber­
dade espiritual.
Apesar disso existe entre nós o homem pie­
doso. Ele não desapareceu da face da terra. Efe­
tivamente, com mais freqüência do que geralmente
se supõe, encontram-se na vida normal situações
que revelam com toda a evidência uma atitude de
piedade. A presença da piedade entre nós é, portan­
to, um fato incontestável. Porque, pois, nos deixa­
ríamos dominar por um preconceito, deixando de
estudar tal fenômeno ou pelo menos esforçando-nos
para compreendê-lo?

Método de análise

Para começar, podemos perguntar: o que é pie­


dade? É alguma disposição ou qualidade psíquica
do espírito? É um estado mental? Uma atitude?
Uma prática? Quais são suas características essen­
ciais? Qual é o seu sentido e o seu valor? Qual é
a sua significação? Quais são as suas aspirações?
Trata-se de um fenômeno único1 ou de uma circuns­
tância acidental que acompanha outros fatos da vida
humana? Como se apresenta a vida interior de um
homem piedoso? Quais são os conceitos básicos
e as percepções que se verificam nos atos de pie­
dade?
Numa análise como esta não consideramos a
fé implícita incluída em sistemas gerais de fé e de
culto, mas não adquirida independentemente pelos
indivíduos. Tampouco se trata de examinar criti­
camente qualquer doutrina ou credo. Nosso obje­
tivo é analisar o homem piedoso e examinar não
sua posição com relação a qualquer forma especí­
fica de religião institucionalizada, mas suas atitudes
diante das forças elementares da realidade. O que

280
significa Deus na sua vida? Qual é a sua atitude
para com o mundo, a vida, suas forças interiores
e suas posses?
A piedade não é um conceito psicológico. O
termo não faz parte da nomenclatura psicológica,
da mesma forma como não pertencem a ela os con­
ceitos lógicos de verdadeiro e falso, os conceitos
éticos de certo e errado e os conceitos estéticos de
belo e feio. A piedade não indica uma função, mas
um ideal da alma. Como a sabedoria e a veracidade,
está sujeita ao caráter individual do homem apre­
sentando nuanças das suas qualidades próprias. As­
sim há tipos de piedade apaixonada ou sóbria, ativa
ou quietista, emocional ou intelectual. Mas, embora
a piedade nunca seja independente da estrutura fí­
sica do indivíduo, é fútil querer explicá-la por
qualquer tendência ou preconceito da vida mental.
Está muito longe de ser o resultado de qualquer
disposição psíquica ou função orgânica. Certas dis­
posições podem influenciá-la ou intensificá-la, mas
não a criam.
Como ato, a piedade faz parte da corrente da
vida psíquica. Entretanto, o seu conteúdo espiri­
tual não se identifica com o ato em si. É universal
e distinta da função psíquica subjetiva. A piedade
é uma maneira espiritual objetiva de pensar e viver.
Houve épocas em que a piedade era tão comum
como é hoje o conhecimento da tabuada.
Para compreender a piedade, temos que anali­
sar a consciência que acompanha os atos de um
homem piedoso e classificar os conceitos latentes
na sua mente. É desnecessário acentuar o fato de
que a validade de tal análise não é prejudicada pela
possibilidade de que conceitos derivados de uma
análise geral podem não se encontrar em cada ato
de piedade. 0 fato de um poeta não estar familia­
rizado com as regras que governam a sua arte, ou

281
1

não'; aplicá-las em cada poema, não significa que


não existem normas para a composição poética.
Para o fim que temos em vista, não precisamos
ocupar-nos dos aspectos psicológicos da questão.
Estes têm sua importância própria que exigiria um
estudo especial. Nosso objetivo é fixar a atenção
sobre os aspectos essenciais e constitutivos que são
comuns aos diferentes tipos de piedade, deixando
de lado os coloridos acidentais e as circunstâncias
sem importância que a acompanham e que variam
nos diferentes casos. Nossa tarefa será descrever
a piedade como ela é, sem pretender explicá-la ou
sugerir sua derivação de outros fenômenos. Não
analisaremos psicologicamente o seu desenvolvimen­
to ou suas peculiaridades tais como aparecem na
vida de um indivíduo. Não tentaremos traçar seu
desenvolvimento histórico através dos tempos e na
matriz das diferentes civilizações. Procuraremos ex­
por seu conteúdo espiritual e determinar seus con­
ceitos e manifestações em relação às realidades prin­
cipais da vida comum.

Uma atitude do homem todo

Rotular a piedade como uma capacidade, uma


qualidade potencial da alma, seria semelhante a de­
finir a arquitetura como uma habilidade.
É impossível entender os fatos por meio de
uma simples especulação sobre suas origens. Esta­
ríamos igualmente nos desviando do caminho certo,
se a denominássemos de disposição, estado emocio­
nal, uma vibração de sentimentos românticos. Isso
seria semelhante a caracterizar a lua como melan­
colia, ou julgar a navegação pelo perigo que repre­
senta para a vida humana. Chamá-la de virtude mo­
ral ou intelectual seria o mesmo que querer fixar

282
a sombra de um cavalo em fuga, não se conseguindo
segurar nem o cavalo nem a sombra. A piedade não
consiste em atos isolados, em experiências esporá­
dicas e efêmeras. Tampouco se limita a um só
estrato da alma. Ainda que se manifeste em atos
particulares, está acima das distinções entre inte­
ligência e emoção, vontade e ação. Sua fonte pa­
rece ser mais profunda que o alcance da razão e
estender-se mais longe que a consciência. Embora
se revele em atitudes isoladas tais como devoção,
reverência ou desejo de servir, átias forças essen­
ciais localizam-se numa camada da alma muito mais
profunda que a órbita de qualquer uma dessas ati­
tudes. É algo de incessante, imutável na alma, uma
perpétua atitude interior de todo o homem. Como
uma brisa na atmosfera, ela percorre todos os atos,
expressões e pensamentos. È ui^ sentido da vida
que se manifesta em cada traço do caráter, em
cada modo de ação.

A única vida digna de ser vivida

A piedade orienta-se para algo acima de si pró­


pria. Agindo na vida interior, refere-nos sempre a
algo que transcende o homem, algo que passa além
do instante atual, algo que supera o que é visível
e disponível. Impedindo constantemente o homem
de afundar nos sentidos e na ambição, é o fiel de­
fensor de algo mais importante que o interesse e
os desejos, a paixão ou a carreira. Ainda que não
negue o encanto e a beleza do mundo, o homem
piedoso compreende que a vida transcorre sob hori­
zontes amplos, horizontes que se estendem além do
alcance da vida de um indivíduo ou mesmo da vida
de uma nação, de uma geração ou até de uma
época. Seu olhar percebe algo que indica a reali-

283
dadé divina. Nas pequenas coisas sente o impor­
tante, nas coisas comuns e simples sente o supremo;
na agitação do que passa sente a tranqüilidade do
eterno. Embora a piedade esteja em relação com o
que o homem conhece e sente sobre os horizontes
da vida, excede incomparavelmente o total obtido pe­
la adição das suas diferentes experiências inteletuais
e emocionais. Sua essência é realmente algo mais
que uma teoria, um sentimento ou uma convicção.
Para aqueles que a ela aderem, a piedade é o cum­
primento do destino, a única vida digna de ser
vivida, o único caminho da vida que eventualmente
não lança o homem no caos bestial.
A piedade é, portanto, um modo de vida. É
a orientação do interior humano para a santidade.
É um interesse predominante pelo valor supremo
de todos os atos, sentimentos e pensamentos. Com
o seu coração aberto e atraído por certa gravitação
espiritual, o homem piedoso como que se move para
o centro da tranqüilidade universal e sua consciên­
cia está numa posição que lhe permite escutar a
voz de Deus.
A vida de todo homem é dominada por certos
interesses e está essencialmente determinada pela
aspiração por aquelas coisas que mais o preocupam
e interessam. O interesse principal do homem pie­
doso é a preocupação com a preocupação de Deus,
que assim se torna a força impulsora que controla
o coeso de suas ações e decisões, que modela suas
aspirações e seu comportamento. E um equívoco
ver em atos isolados de percepção ou consideração
os elementos decisivos do comportamento humano.
Na verdade, é a direção da mente e do coração,
o interesse geral de uma pessoa que a leva a ver
ou descobrir certas situações e esquecer outras.
Conforme vimos anteriormente, o interesse é uma
apreensão seletiva baseada sobre idéias anteriores,

284
percepções, reconhecimentos ou predileções preceden­
tes. O interesse de um homem piedoso é determi­
nado por sua fé, de maneira que a piedade é a fé
traduzida em vida, o espírito encarnado numa per­
sonalidade .

O anonimato interior

A piedade é o oposto direto do egoísmo. Vi­


vendo na visão do inexprimivelmônte puro, o ho­
mem piedoso volta suas costas para a sua própria
vaidade humana e aspira a sujeitar as forças do egoís­
mo ao poder de Deus. Tem consciência tanto da
usura da vida humana como da pobreza e insuficiên­
cia do serviço humano, e assim para proteger a in­
tegridade e pureza interna da de\^ção contra a po­
luição da interferência do eu mesquinho, ele pro­
cura a auto-exclusão, o esquecimento de si mesmo
e o anonimato interior do serviço. Deseja ser in­
consciente do fato de que está se consagrando ao
serviço de Deus. O homem piedoso não pretende
nenhuma recompensa. Odeia mostrar-se ou apare­
cer de qualquer maneira e é avesso a mostrar suas
qualidades, até à sua própria mente. Está absorto
na beleza do que adora e dedica-se a fins cuja
grandeza supera sua capacidade de adoração.

Não é um hábito

A piedade não é um hábito que se prolonga


numa rotina familiar. É antes um impulso, um jato,
um estímulo do eu. Sem certo ardor, zelo, presteza,
vigor ou empenho, torna-se uma coisa atrofiada.
Ninguém que alguma vez tenha sido impelido pela
sua força conseguirá livrar-se do seu ímpeto. Em

285
moráentos de tensão o homem piedoso poderá tro­
peçar; poderá errar ou desviar-se. Em sua fra­
queza poderá temporariamente sucumbir ao agradá­
vel, ao invés de ficar fiel à verdade, seguir o apa­
ratoso, em vez do que é simples e sólido. Entre­
tanto, sua aderência ao que é santo apenas vacila,
mas nunca se rompe. Na verdade, tais quedas são
freqüentemente seguidas de um novo impulso em
direção à meta. A queda provoca novo estímulo.

Sabedoria e piedade

Embora implique em certa profundidade espi­


ritual, a piedade não é um produto da inteligência
inata. Suas forças brotam da pureza do coração e
não do acume da inteligência. Ser piedoso não sig­
nifica necessariamente ser sagaz ou judicioso. En­
tretanto, como tendência predominante, apresenta
características que são peculiares da sabedoria no
sentido antigo do termo. Tanto a piedade como a
sabedoria incluem certo autocontrole, autodomínio,
abnegação, força de vontade e firmeza de propó­
sitos. Mas embora estas qualidades sejam instru­
mentos para a busca da piedade, não constituem sua
natureza. O que constitui a sua essência é a con­
sideração do transcendente, a devoção a Deus. Tan­
to para o homem piedoso como para o sábio o do­
mínio de si mesmo é uma necessidade vital. Mas
ao contrário do sábio, o homem piedoso julga que
ele próprio não é um senhor autônomo, senão um
mediador que administra sua vida em nome de
Deus.

286
Fé e piedade

A piedade não só aceita o mistério, mas tam­


bém procura inseri-lo no esforço humano, empe­
nhando-se por elevar o humano ao nível do espi­
ritual. A isso não se deve chamar experiência, mas
atuação sobre a experiência. Não é uma preocupa­
ção com o sentido e sua exploração, mas um esforço
para harmonizar a vida com um sentido que se
aceitou.
O homem piedoso é sensível à tudo que é so­
lene no que é simples, ao que é sublime no sensual.
Mas não visa a penetrar no sagrado. Ao contrário,
procura ser penetrado e atuado pelo sagrado, de­
sejoso de entregar-se a ele, de identificar-se com
cada tendência no mundo que se orienta para a
realidade divina. Para a piedade % que pesa não é
a vista, mas a impressão; não é a noção, mas o sen­
timento; não é o conhecimento, mas a apreciação;
não é a ciência, mas a veracidade. A piedade não
é um pensamento sobre o que virá, mas uma ten­
tativa real. Não se identifica com a prática de ritos
e cerimônias. É antes o cuidado e a afeição que há
na sua prática, o toque pessoal, o oferecimento da
vida. A piedade é a realização e a verificação do
transcendente na vida humana.
A piedade é uma questão de vida. Não só um
sentido da realidade do transcendente, mas a tomada
de uma atitude adequada em relação a ele. Não só
uma visão, uma forma de crença, mas uma adapta­
ção, uma resposta ao chamado, um modo de vida.
A piedade situa-se inteiramente dentro do subjetivo
e nasce da iniciativa humana. É geralmente prece­
dida pela fé e assim constitui a realização da fé,
um esforço para pôr em prática as idéias da fé,
para seguir as suas sugestões. Não deseja apenas
aprender a verdade da fé, mas também concordar

237
com* ela; não só encontrar a Deus, mas aderir a ele,
concordar com a sua vontade, ressoar as suas pala­
vras e responder à sua voz.
E da piedade que nasce a revelação do eu su­
perior, a manifestação do que é mais delicado na
alma humana, dos elementos mais puros da aven­
tura humana. Trata-se essencialmente de uma ati­
tude em relação a Deus e ao mundo, em relação
aos homens e às coisas, em relação à vida e ao
destino.

Na presença de Deus

O homem piedoso está dominado pela cons­


ciência da presença e proximidade de Deus. Em
toda parte e sempre vive diante dos seus olhos,
esteja ou não atento à sua proximidade. Sente-se
envolvido pela graça de Deus como por um imenso
espaço que o circunda. A consciência de Deus lhe
é tão íntima quanto a pulsação do seu coração,
muitas vezes profunda e calma, outras vezes avas­
saladora, intoxicante, inflamando a alma. A mo­
mentosa realidade de Deus encontra-se nele como
paz, força e infinita tranqüilidade, como uma ines­
gotável fonte de ajuda, como compaixão ilimitada,
como porta aberta à espera da oração. Por vezes
a vida de um homem piedoso é de tal modo en­
volvida por Deus que seu coração transborda como
se fosse uma taça na mão de Deus. Esta presença
de Deus não é como a proximidade de uma mon­
tanha ou a vizinhança de um oceano, cuja vista
podemos deixar fechando os olhos ou afastando-nos
do local. Pelo contrário, esta convergência para
Deus é inevitável, ineludível. Tal como ocorre com
o ar do espaço que nos cerca, respiramos continua­
mente a presença de Deus, ainda que nem sempre
estejamos conscientes dessa incessante respiração.

288
Deus está entre o homem e o mundo

A insistência sobre as coisas que são degraus


no caminho que leva à santidade, a preocupação
com a grande e maravilhosa visão da sua presença,
não significa necessariamente uma fuga das formas
comuns da vida, nem quer dizer que se perca de
vista a beleza do mundo ou os valores profanos.
O amor da piedade ao Criador não exclui o amor
à criação, mas inclui uma consideração específica
de todos os valores. Deus vem intes de todas as
coisas e todos os valores são vistos através dele.
O mero esplendor ou aparência não atrai o homem
piedoso. Inclina-se para aquilo que é bom aos olhos
de Deus e tem como valioso o que está de acordo
com a sua paz. Não se deixa enganar pelo ilusório
nem dissuadir pelo inconveniente ,%Vestes brilhantes,
rostos sorridentes ou milagres da arte não o encan­
tam quando encobrem o vício ou a blasfêmia. Os
maiores edifícios, os mais belos templos e monu­
mentos da glória mundana lhe são repulsivos quan­
do construídos com o suor e as lágrimas de escra­
vos ou erigidos pela injustiça e pela fraude.
A hipocrisia e a pretensa devoção lhe merecem
mais aversão que a iniqüidade aberta. É nas mãos
calosas e sujas de seus devotados pais ou nos cor­
pos torturados e nos rostos contundidos dos que
foram perseguidos, mas guardaram sua fé em Deus,
que descobre a última grande luz na terra.

Uma vida em harmonia


Com a presença de Deus

Tudo o que o homem piedoso faz está relacio­


nado com o divino. Até as coisas mais insignifican­
tes tangenciam sua passagem. Respirando usa sua

289
19-0 homem não está só
força, pensando usa do seu poder. Move-se sempre
sob o pálio invisível da recordação e o maravilhoso
peso do nome de Deus está constantemente sobre
sua mente. A palavra de Deus lhe é tão vital como
o ar ou o alimento. Nunca está só, nunca está sem
companhia, pois Deus está ao alcance do seu co­
ração. Na aflição ou sob o impacto de algum cho­
que repentino pode momentaneamente sentir-se num
caminho desolado, mas basta que volte levemente
seus olhos para descobrir que seu sofrimento está
compensado pela compaixão de Deus. O homem
piedoso não precisa de nenhuma comunicação mila­
grosa para torná-lo consciente da presença de Deus.
Tampouco é necessária uma crise a fim de desper­
tá-lo para o sentido e para o apelo desta presença.
Sua consciência poderá ficar temporariamente enco­
berta ou oculta por alguma mudança violenta, mas
nunca desaparecerá. E esta consciência de estar
sempre vivendo sob o olhar vigilante de Deus que
leva o homem piedoso a ver alusões de Deus nas
mais variadas coisas que encontra na sua caminhada
cotidiana. Muitos acontecimentos comuns podem ser
aceitos por ele tanto pelo que são, quanto como
delicadas alusões ou bondosas lembranças de coisas
divinas. Com essa atenção come e bebe, trabalha
e se diverte, fala e pensa. Pois a piedade é uma
vida vivida em harmonia com a presença de Deus.

O valor da realidade
Esta harmonia revela-se na maneira segundo
a qual ele considera e avalia todos os fenômenos.
O homem tem por natureza a inclinação de avaliar
as coisas e os acontecimentos de acordo com a
finalidade para que servem. Na vida econômica
um homem é avaliado segundo a sua eficiência,
pelo seu valor no trabalho e pela sua posição social.

290
Cada objeto do universo é considerado uma utili­
dade ou instrumento, sendo o seu valor determi­
nado pela quantidade de trabalho que é capaz de
executar ou o grau de prazer que oferece, de sorte
que a medida de todas as coisas é a sua utilização.
Mas será que o universo foi criado apenas para
uso do homem, para a satisfação de seus desejos
animais? Evidentemente é cruel e impensado subme­
ter outros seres ao serviço dos nossos interesses,
vendo que cada existência tem seu próprio valor
interno e que utilizá-los sem considerar sua essência
individual é profaná-los e desprezar sua real digni­
dade . A loucura desta mentalidade instrumental
manifesta-se na vingança que se segue inevitavel­
mente. Ao tratar todas as outras coisas como instru­
mentos, o homem eventualmente se transforma a si
próprio em instrumento de algo que não entende.
Escravizando os outros, ele próprio mergulha na
servidão, servindo os senhores da guerra ou os pre­
conceitos que serão impostos sobre ele. Esbanja a
sua vida servindo a paixões que os outros astuta­
mente nele excitam, pensando ingenuamente que
esta é a sua liberdade.
O valor intrínseco de todos os entes ■ — ho­
mens ou mulheres, árvores ou estrelas, idéias ou
coisas — não está totalmente sujeito a nenhum dos
nossos objetivos. Têm em si mesmos um valor
completamente independente de qualquer função que
os torna úteis aos nossos fins. Isso é particular­
mente verdadeiro do homem, pois é a sua essência,
esse segredo do seu ser em que se fundam a sua
existência e o seu sentido, que exigem nosso res­
peito . Por isso, ainda que não saibamos de que
maneira ele possa ser útil ou não conheçamos ne­
nhum meio de subordiná-lo a qualquer fim ou obje­
tivo, devemos estimá-lo somente por isso pelo seu
valor intrínseco e independente.

291
Uma atitude em relação
à realidade total

Além disso, a piedade é uma atitude em rela­


ção à realidade total. O homem piedoso está atento
à dignidade de cada ser humano e às relações com
o valor espiritual que até as coisas inanimadas pos­
suem inalienavelmente. Tendo capacidade para per­
ceber as relações das coisas com os valores trans­
cendentes, será incapaz de desprezar qualquer uma
delas escravizando-as ao seu próprio serviço. O se­
gredo de cada ser é o cuidado e o interesse divino
nele investido. Em cada acontecimento há algo de
sagrado em jogo. Esta é a razão da reverência com
que o homem piedoso trata a realidade. Isso ex­
plica a sua solenidade e a sua conscienciosidade ao
tratar as coisas tanto grandes como pequenas.

Reverência

A reverência é uma atitude específica em re­


lação a algo precioso e valioso, em relação a alguém
que é superior. É um cumprimento da alma; uma
consciência de um valor sem gozo deste valor e sem
procurar nenhuma vantagem pessoal. Há uma trans­
parência única nas coisas e nos fatos. O mundo é
transparente. Não há véu algum que possa ocultar
completamente a Deus. O homem piedoso está sem­
pre atento para ver através da aparência das coisas
um traço do divino. Por isso a sua atitude para
com a vida é de esperançosa reverência.
Por causa desta atitude de reverência, o ho­
mem piedoso está em paz com a vida, apesar dos
seus conflitos. Condescende pacientemente com as
vicissitudes da vida, porque vislumbra espiritual­
mente o seu possível sentido. Cada experiência

292
abre a porta para um templo de novas luzes, ainda
que o seu vestíbulo seja escuro e sombrio. O ho­
mem piedoso aceita as provações da vida e sua
necessidade de angústias, porque sabe que isso faz
parte da totalidade da vida. Tal aceitação não sig­
nifica complacência ou resignação fatalística. Ele
não é insensível. Pelo contrário, é agudamente sen­
sível à dor e ao sofrimento, à adversidade e ao mal
em sua própria vida e na dos outros. Mas possui
a força interior de elevar-se acima das aflições, e
com a compreensão do que esses males são na rea­
lidade, as aflições lhe parecem uma espécie de arro­
gância . Nunca sabemos qual é o sentido último
das coisas. Distinguir muito nitidamente o que jul­
gamos bom ou mau na experiência é desonesto. É
melhor amar que entristecer-se e, com a consciência
amorosa do longo alcance de tudo^o que atinge nos­
sas vidas, o homem piedoso nunca superestimará o
peso aparente dos acontecimentos do momento.

Gratidão

O homem natural sente uma sincera alegria ao


receber um presente, ao ganhar algo que não me­
receu. O homem piedoso sabe que nada do que
tem foi merecido. Nem mesmo suas percepções,
seus pensamentos e palavras, nem sequer sua vida
lhe pertence merecidamente. Sabe que não tem
direito a nenhum dos dotes que recebeu. Assim,
sabendo que merece muito pouco, nunca se arroga
nada. Como sua gratidão é mais forte que seus
desejos, pode viver com alegria e paz de espírito.
Cônscio da evidência da bênção de Deus em tudo
o que recebe, o homem natural tem duas atitudes
em relação à vida: alegria e tristeza. O homem
piedoso tem só uma atitude, porque para ele a

293
tristeza representa uma arrogante e presunçosa de­
predação das realidades fundamentais. A tristeza
implica que o homem pensa ter direito a um mun­
do melhor, mais agradável. A tristeza é uma re­
cusa e não um oferecimento; uma censura e não
uma apreciação; uma retirada e não uma busca.
As raízes da tristeza encontram-se na pretensão,
no fastio e no desprezo do bem. O homem triste,
vivendo irritado e queixando-se constantemente do
seu destino, sente hostilidade em toda parte e pa­
rece nunca perceber a ilegitimidade das suas pró­
prias queixas. Tem um sentido muito agudo para
perceber as incoerências da vida, mas nega-se obsti­
nadamente a reconhecer a delicada graça da exis­
tência .

Os atos comuns são aventuras

O homem piedoso não considera a vida como


coisa evidente. As graves ocupações não conseguem
encobrir-lhe o milagre da vida e a consciência de
que vive através de Deus. Nenhuma rotina da vida
social ou econômica consegue embotar sua atenção
para o inefavelmente maravilhoso na natureza e na
história. A história é para ele uma perpétua impro-
vização do Criador, que sofre contínuas e violen­
tas interferências do homem. Seu coração está fixo
neste grande mistério representado por Deus e pelo
homem. Assim, sua riqueza principal não é al­
guma experiência isolada, mas a própria vida. Toda
experiência excepcional serve apenas como buraco
de fechadura para a chave da sua fé. Não depende
do excepcional, pois para ele os atos comuns cons­
tituem aventuras no campo do espiritual e todos os
seus pensamentos normais são como que sensações
do sagrado. Em todas as coisas sente o calor oculto

294
do bem, e encontra sinais de Deus quase em cada
objeto ordinário sobre o qual cai o seu olhar. Por
isso suas palavras trazem esperança para um mundo
sórdido e desesperado.

Responsabilidade

O âmbito em que o homem piedoso se sente


envolvido não é um campo isolado como, por exem­
plo, o dos atos éticos, mas cobre \oda a vida. A
vida é para ele um desafio do qual nunca poderá
libertar-se. Nenhum subterfúgio de sua parte lhe
possibilitará fugir e evadir-se dela. Nenhuma esfera
de ação, nenhum período da vida pode ser subtraí­
do a ela. Desta maneira a piedade não pode con­
sistir somente em atos específico^ tais como ora­
ções ou observâncias rituais. Está relacionada e é
concomitante com todas as ações, acompanha e dá
forma a todas as ocupações da vida. O homem não
pode desincumbir-se da sua responsabilidade perante
Deus por uma excursão ao reino da espiritualidade,
fazendo da vida um episódio de uma rapsódia es­
piritual. O sentido da responsabilidade é o andaime
cm que se firma ao continuar diariamente a cons­
truir a vida. Cada um de seus atos, cada incidente
da mente, se verifica neste andaime. Incessante­
mente o homem está trabalhando, seja construindo,
seja demolindo sua vida, sua casa, sua esperança
em Deus.
Responsabilidade implica em liberdade. O ho­
mem que depende do ambiente, de laços sociais,
da disposição interior, pode, contudo, gozar de li­
berdade diante de Deus. O homem só é verda­
deiramente independente e livre diante de Deus.
Mas a liberdade por sua vez implica em respon­
sabilidade. O homem é responsável pela maneira

295
como írása a natureza. É impressionante a falta de
consideração que o homem moderno tem da sua
responsabilidade em relação a este mundo. Encon­
tra diante de si um mundo repleto e transbordante
de maravilhosos materiais e forças e sem hesitação
ou escrúpulo lança mão de tudo o que estiver a
seu alcance. Onívoro em seus desejos, ilimitado
em seus esforços, persistente em seus objetivos,
o homem está progressivamente mudando a face
da terra. Parece não haver ninguém que negue ou
desafie a sua eminência. Iludidos por esta apa­
rente grandeza, nem sequer pensamos se há um
fundamento para nosso suposto direito de possuir
nosso universo. Nossos caprichosos desejos e im­
pulsos, por naturais que sejam, não constituem ne­
nhum título de propriedade. Esquecidos disso, con­
sideramos nosso direito como coisa evidente e lan­
çamos nossas mãos sobre tudo, sem jamais nos per­
guntarmos se isso não é rapina. As centrais elé­
tricas, as fábricas, os supermercados familiarizam-nos
com a exploração da natureza em nosso proveito.
Enganados pela familiaridade, a armadilha invisível
da mente, facilmente nos entregamos à ilusão de
que estas coisas estão à nossa disposição e pouco
pensamos que o sol, a chuva, os cursos d’água, de
forma alguma são fontes de recursos de nosso di­
reito. Só despertamos da nossa ilusão quando ines­
peradamente somos colocados diante de coisas ob­
viamente fora do alcance do poder ou da jurisdição
humana, tais como as montanhas ou os oceanos ou
acontecimentos incontroláveis como a morte súbita,
terremotos ou outras catástrofes.
Na realidade o homem não tem poderes ilimi­
tados sobre a terra, assim como não os tem sobre
as estrelas e os ventos. Não tem poder completo
nem sequer sobre si mesmo. Em sentido absoluto,
nem o mundo nem sua própria vida lhe pertencem.

296
E nas coisas que consegue controlar mais ou menos,
o que controla não é a essência, mas apenas a apa­
rência, como é evidente para quem quer que olhe
com olhos descobertos uma flor ou uma pedra.
Surge, então, a interrogação: Quem é o senhor?
Quem é o dono de tudo o que existe? “A terra
é do Senhor” . O homem piedoso olha as forças
da natureza, os pensamentos da sua própria mente,
a vida e o destino como propriedade de Deus. Este
modo de ver orienta a sua atitude em relação a
todas as coisas. Não murmura quarido as calami­
dades caem sobre ele ou quando o invade o deses­
pero. Sabe que tudo na vida é de interesse divino,
porque tudo o que é, é posse divina.

Um sçflom perpétuo

O homem piedoso compreende, também, que


tudo o que possa ter à sua disposição lhe foi dado
de presente. Há uma diferença entre uma posse e
um presente. Posse é isolamento. A própria pala­
vra exclui os outros do uso do objeto possuído sem
o consentimento do possuidor, e aqueles que insis­
tem na posse em última instância perecem na auto-
-excomungação e isolamento. Por outro lado, ao
receber um presente, quem o recebe, obtém, além
do presente, também o amor do doador. Um pre­
sente é um vaso que contém a afeição que se des­
faz assim que o recebedor começar a considerá-lo
como uma propriedade. O homem piedoso afirma
que tem um presente perpétuo de Deus, pois em
tudo o que lhe acontece sente o amor de Deus.
Em todas as mil e uma experiências que constituem
o seu dia está consciente deste amor que intervém
na sua vida.

297
'AO - O homem não está só
O sentido do sacrifício

O homem comum tem a tendência de não ver


nenhuma indicação da presença do divino na vida.
Na sua presunção e vanglória considera-se como o
dono. Isso é um sacrilégio para o homem piedoso
e o seu método de proteção contra tal alucinação
é a ascese e o sacrifício. Liberta-se de toda idéia
de ser dono, desistindo, por causa de Deus, de coi­
sas que são desejadas e apreciadas e privando-se,
por causa dos outros que necessitam da sua ajuda,
de coisas que são valiosas para ele. Portanto, sacri­
ficar não é abandonar o que nos foi dado, lançar
fora os dons da vida. É , pelo contrário, devolver
a Deus o que dele recebemos, usando-o a seu ser­
viço. Assim, dar é uma forma de agradecer.
Tanto a autodesapropriação como o ofereci­
mento são elementos essenciais do sacrifício. O
mero oferecimento sem a autodesapropriação seria
sem participação pessoal e facilmente poderia cair
num ato ritual superficial em que o aspecto me­
cânico é mais importante que o aspecto pessoal.
Terminaria na exteriorização e perfunctoriedade do
sacrifício, como tantas vezes aconteceu na história
da religião. Por outro lado a autodesapropriação
sozinha tende a fazer da ascese um fim em si mes­
ma e se transforma em fim em si mesma perde
sua relação com Deus. A verdadeira ascese não é
apenas privar-nos a nós mesmos, mas dar a Deus
o que é valioso para nós.
A pobreza tem sido um freqüente ideal dos
homens piedosos. Mas um homem pode ser pobre
de bens materiais e agarrar-se ainda mais tenaz­
mente às suas ambições e bens intelectuais. A mera
pobreza por si mesma não é um bem, pois a amar­
gura da pobreza, muitas vezes, perturba o equilíbrio
dos valores no caráter humano, enquanto o gozo

298
dos dons de Deus pelo homem justo lhe dá forças
para servir e meios para dar. O objetivo do sacri­
fício não está na autopauperização como tal, mas
em entregar todas as aspirações a Deus, criando
assim um lugar para ele no coração. Além disso,
é uma imitatio Dei, pois é feito segundo a maneira
do Doador divino e lembra ao homem que ele é
criado à semelhança do divino, sendo assim rela­
cionado a Deus.
*
A afinidade com o divino

Mas isso apresenta outro problema. Como de­


vemos entender esta afinidade do homem com o
divino? Um indício da afinidade do homem com
Deus é a sua persistente aspiraçíto a ir além de
si mesmo. O homem tem a capacidade de dedicar-
-se a um fim superior, a possibilidade de uma von­
tade de servir, de dedicar-se a uma tarefa que está
acima dos seus próprios interesses e da sua própria
vida, de viver por um ideal. Este ideal pode ser
a família, um amigo, um grupo, a nação, como tam­
bém a arte, a ciência ou o serviço social. Em mui­
tas pessoas esta vontade de servir é suprimida, mas
no homem piedoso desabrocha e floresce. Em mui­
tas vidas esses ideais parecem becos sem saída, mas
no homem piedoso são passagens que conduzem a
Deus. Se tais ideais se converterem em ídolos, fins
em si mesmos, aprisionarão e cercarão a alma. Mas
para o homem piedoso são aberturas que deixam
entrar a luz desde longínquas paragens para ilumi­
nar muitos pormenores insignificantes. Para ele os
ideais são passos na caminhada, mas jamais o des­
tino .

299
O tesouro de Deus

Finalmente, a piedade é fidelidade à vontade


de Deus. Quer seja entendida ou não, esta von­
tade é aceita como boa e santa e obedecida na fé.
A vida é um mandato e não o usofruto de uma
renda; uma tarefa e não um jogo; uma ordem e
não um favor. Ao homem piedoso a vida nunca
se apresenta como uma cadeia fatal de acontecimen­
tos que seguem necessariamente um ao outro, mas
como uma voz que traz um apelo. É um fluxo de
oportunidades de servir. Cada experiência é um
sinal para um novo dever. Assim tudo o que en­
trar na vida constitui para ele um meio de renovar
a devoção. Portanto, a piedade não é um excesso
de entusiasmo. Significa a decisão de seguir um
rumo de vida definido, em busca da vontade de
Deus. Todos os pensamentos e planos do homem
piedoso giram em torno desta preocupação. Nada
consegue distraí-lo ou afastá-lo do caminho. Todo
aquele que parte para este caminho não tardará a
aprender quanto é imperioso o espírito. Sente-se
obrigado a servir e ainda que, algumas vezes, possa
tentar fugir, a força desta necessidade inevitável-
mente o fará voltar ao caminho certo, à procura
da vontade de Deus. Antes de agir, pára a fim de
pesar os efeitos do seu ato na balança de Deus.
Antes de falar, considera se suas palavras lhe serão
agradáveis. Desta maneira, no domínio de si mesmo
e com sincero esforço, com sacrifício e sinceridade,
mediante a oração e a graça, avança no seu caminho.
Para ele o caminho é mais importante que a meta.
Seu destino não é realizar, mas contribuir e sua von­
tade de servir caracteriza todo o seu procedimento.
Sua preocupação com a vontade de Deus não se limi-
ao ao campo das suas atividades. Seu grande desejo
é colocar toda a sua vida à disposição de Deus. É

300
nisso que encontra o verdadeiro sentido da vida.
Sentir-se-ia infeliz e perdido sem a certeza de que
a sua vida, por mais insignificante que seja, tem
uma finalidade no grande plano e sua vida recebe
novo valor ao sentir-se engajado na realização de
objetivos que o afastam de si mesmo. Desta ma­
neira sente que em tudo o que faz está subindo,
degrau após degrau, uma escada que leva à reali­
dade suprema. Ajudando uma criatura está ajudan­
do o Criador. Socorrendo a um pobre, trata de
um interesse de Deus. Admirando o bem, reve­
rencia o espírito de Deus. Amando o que é puro
é atraído para ele. Promovendo o que é justo,
está encaminhando as coisas em direção à sua von­
tade, em que devem terminar todos os fins. Subin­
do por esta escada, o homem piedoso atinge o es­
tado do esquecimento de si mêSmo, sacrificando
não só seus desejos, mas também sua vontade, pois
percebe que o que importa é a vontade de Deus
e não a sua própria perfeição ou salvação . Assim,
a glória da dedicação do homem ao bem se trans­
forma num tesouro de Deus na terra.

Nosso destino é servir

O maior problema não é como continuar, mas


como exaltar nossa existência. O anseio por uma
vida além da sepultura é presunçoso se não houver
um anseio de vida eterna antes da descida à se­
pultura. A eternidade não é um perpétuo futuro,
mas um perpétuo presente. Ele plantou em nós a
semente da vida eterna. O mundo do futuro não
é só um depois daqui, mas também um aqui, agora.
Nosso maior problema não é como continuar,
mas como voltar. “Como poderei retribuir ao che-
116, 12). Quando a vida é uma resposta, a morte

301
é unia chegada em casa. “Preciosa é aos olhos do
Senhor a morte dos seus santos” (Sl 116, 14) .
Porque nosso maior problema é apenas uma resso­
nância da preocupação de Deus: Como poderei re­
tribuir ao homem toda a sua generosidade para co­
migo? “Pois a misericórdia de Deus permanece
para sempre ” .
Este é o sentido da existência: reconciliar a li­
berdade com o serviço, o passageiro com o perma­
nente, entrelaçar os fios da temporalidade no tecido
da eternidade.
A mais profunda sabedoria que o homem pode
alcançar é saber que seu destino é ajudar, servir.
Temos que vencer para sucumbir. Devemos adqui­
rir para dar. Devemos triunfar para sermos subju­
gados. O homem deve entender para crer, conhe­
cer para aceitar. A aspiração é ter, mas a perfeição
é dar. Este é o sentido da morte: a suprema dedi­
cação de si mesmo ao divino. Assim entendida,
a morte não será distorcida pelo desejo da imor­
talidade, pois este ato de entregar é reciprocidade
da parte do homem pelo presente da vida dado por
Deus. Para o homem piedoso morrer é um privi­
légio .

302
ÍNDICE

Pág.
5 Apresentação

I. O Problema de Deus

15 1. O S E N T ID O D O IN E F Á V E L

A consciência da grandeza, 15 — O sentido do


inefável, 16 — O encontro com o inefável, 17
— E xiste alguma via de acesso à essência?, 17
— A disparidade entre alm ^ e razão, 19.

22 2. A A D M IR A Ç Ã O , B A SE D O C O N H E C IM E N T O

Razão e admiração, 22 — A filosofia começa


com a admiração, 24 — O mistério dentro da
razão, 25 — Experiência sem expressão, 27 —
A raiz da razão, 28.

29 3. O M U N D O É UM A A LU SÃ O

Um a introspecção cognitiva, 29 — Uma percep­


ção universal, 29 — O caráter alusivo do ser,
32.

34 4. SE R É S IG N IF IC A R

A universalidade da reverência, 34 — A reve­


rência — um imperativo categórico, 36 — A
Significação fora da mente, 37 — Suposição e
certeza de significação, 38 — A ciência — uma
entrada no infinito, 39 — T odo conhecimento
é apenas uma partícula, 40 — Será o inefável
uma ilusão, 42.

303
44 5. CONHECIMENTO POR APRECIAÇÃO
Uma percepção no fim da percepção, 44 — O
modo da utilidade, 45 — 0 desejo do maravi­
lhoso, 46 — O mundo como objeto, 47 •—•
E stará o mundo à mercê do homem?, 48 —
Cantamos por todas as coisas, 50.

51 6. U M A IN T E R R O G A Ç Ã O Q U E T R A N SC E N D E
A S P A LA V R A S

Não sabemos como perguntar, 51 — Parã quê?


Por quê?, 52 — Quem é “ e u ” ?, 53 — Sou o
que não sou, 56 —• N ão há sujeito para inter­
rogar, 56.

58 7. O D E U S D O S F IL Ó S O F O S

D eus como problema especulativo, 58 — Será


a ordem a coisa mais im portante?, 61 — Filo­
sofia da religião, 62.

64 8. A Q U E ST Ã O SU PR E M A

O que a admiração suprema dá ao homem, 64


— A religião começa com o sentido do inefável,
65 — A questão suprema, 66 — A situação que
determina a interrogação, 68 — Além das coi­
sas, 69 — Uma presença espiritual, 71.

73 9. N A P R E SE N Ç A D E D EU S

D a Sua presença é Sua essência, 73 — A au­


rora da fé, 74 — O que fazer com a admiração,
74 — Quem é o enigma? 76 — Interrogação
invencível, 77 — E m busca de uma alma, 78
— A prem issa da glorificação, 80 — Deixemos
a intuição acontecer, 81 •— Deus está solicitando
o homem, 82 — A invasão da grande realidade,
83.

86 10. D Ü V ID A S

304
91 1L. A FÉ

A fé não é um atalho, 91 — Caminhos da fé,


92 — Alguns de nós enrubescem, 94 — A pro­
va da fé, 96 — Um ato do espírito, 98.

101 12. O Q U E E N T E N D E M O S P O R D IV IN O

O perigo das palavras, 101 — Padrões de ex­


pressão, 103 — O que entendemos por divino,
104 — O atributo da perfejção, 105 — A idéia
do universo, 107 — Fraternidade cósmica, 108
— O reino do ser e o reino dos valores, 109
— O uno não é D eus, 111.

115 13. UM D E U S

A atração do pluralismo, 115 — A unidade como


objetivo, 116 — N ão se né§a a pluralidade, 117
— Para onde irei, 118 — Escuta, ó Israel, 119
•— Um significa único, 121 — Um significa so­
mente, 123 — Um significa o mesmo, 123 —
O bem e o mal, 125 -—Ele é tudo em toda
parte, 127 — A unidade de D eus e a unidade
do mundo, 129.

130 14. D E U S É O S U JE IT O

O “ e u ” é um “ algo”, 130 — O pensamento de


D eus não tem fachada, 132 —- A visão de D eus
sobre o homem, 134 — D eus é incognoscível?,
135 — N osso conhecimento é uma alusão, 137
■— Conhecimento ou entendimento, 138.

140 15. O IN T E R E S S E D IV IN O

O problem a da existência, 140 — V ida é preo­


cupação, 141 — Preocupação transitiva, 142 —
A s três dimensões, 144 — A necessidade de
esquecer-se a si mesmo, 145 — Liberdade é
êxtase espiritual, 146 •—■ O interesse divino, 148
— Expressão contínua, 149 — A civilização pen

305
dente de um fio, 151 — Compaixão, 153 —
Manifestação e ocultamento, 155.

O D E U S Q U E SE O C U LT A

ALÉM DA FÉ

O perigo da fé, 164 — Crer é lembrar, 166


— A fé como recordação individual, 169 •— Fé
e crença, 170 — Fé e credo, 172 — A idola­
tria dos dogmas, 174 — São os dogmas desne­
cessários?, 174 — Fé e razão, 175 — “ Dá-nos
conhecimento”, 177 — Fé é reciprocidade, 179
— Religião é mais que vida interior, 180.

II. O Problema da Vida

O P R O B L E M A D A S N E C E SSID A D E S

D a admiração à piedade, 185 — O problema


do neutro, 186 — A experiência das necessida­
des, 187 — A vida •— um aglomerado de ne­
cessidades, 188 — A inadequação da ética, 189
— O perigo da vida, 191 — A s necessidades
não são santas, 192 — Quem conhece suas reais
necessidades?, 193 — N ecessidades verdadeiras
e necessidades falsas, 195.

O SE N T ID O D A E X IS T Ê N C IA

A inconsciência favorita do homem, 198 — O


sentido da existência, 199 — A suposição su­
prema, 200 — O homem não é fim de si mes­
mo, 200 — O homem existe por causa da so­
ciedade?, 202 — O auto-aniquilamento do de­
sejo, 204 — Em busca do permanente, 205 —
D esesperada ansiedade, 205 — O que é a exis­
tência, 206 — A temporalidade da existência,
207 — O caráter ininterrupto da existência, 208
— O segredo da existência, 209 ■— Ser é obe-
decer, 210 — A meta suprema, 211 — Tempo
e eternidade, 212.

215 20. A E S S Ê N C IA D O H O M E M

A unicidade do homem, 215 — N as trevas da


potencialidade, 217 — Entre D eus e os animais,
218 — Acima das nossas necessidades, 220 —
Quem tem necessidade do hom em ?, 221.

224 21. O P R O B L E M A D O S F IN S .^

Necessidades biológicas e culturais, 224 — O


mito da auto-expressão, 225 — O bjetivos e ne­
cessidades, 226 —■ O erro da pan-psicologia, 228
— A consciência do bem e do mal, 230 — A
arma secreta de D eus, 231 — A vida é tridi­
mensional, 233.
%
235 22. O Q U E É A R E L IG IÃ O

Como estudar a religião, 235 — É a religião


uma função da alm a?, 237 — M agia e religião,
239 — O lado objetivo da religião, 241 — N ão
há neutralidade, 242 —■ A dimensão sagrada,
243 — A piedade é a resposta, 244 — A mo­
déstia do espírito, 245.

247 23. D E F IN IÇ Ã O D A R E L IG IÃ O JU D A IC A

D eus tem necessidade do homem, 247 — O


pathos divino, 250 — “ O que deseja D e u s? ”,
251 — A necessidade religiosa, 252 — O s fins
desconhecidos, 254 ■— A transformação dos fins
em necessidades, 256 — O prazer das boas
ações, 257.

259 24. O G R A N D E A N S E IO

O anseio por um a vida espiritual, 259 —■ A


nobre nostalgia, 260 — Descontentamento per­
pétuo, 263 — Aspirações, 265.

307
UMA NORMA DE VIDA
O s objetivos supremos não têm voz, 267 — Nem
divinização nem aviltamento, 268 — E spírito e
carne, 269 — N a vizinhança de D eus, 271 —
O Santo dentro do corpo, 272 — N ão sacrifi­
car mas santificar, 274 — Viver dentro de uma
ordem, 276 — A totalidade da vida, 276 —
O não-heróico, 277 — A autoridade interior, 277.

O H O M E M P IE D O S O

O que é piedade?, 279 — M étodo de análise,


280 — Um a atitude do homem todo, 282 —
A única vida digna de ser vivida, 283 — O
anonimato interior, 285 — N ão é um hábito,
285 •— Sabedoria e piedade, 286 — Fé e pie­
dade, 287 — N a presença de D eus, 288 ■—
D eus está entre o homem e o mundo, 289 —
Uma vida em harmonia com a presença de D eus,
289 — O valor da realidade, 290 — Um a ati­
tude em relação à realidade total, 292 — Reve­
rência, 292 — Gratidão, 293 — O s atos comuns
são aventuras, 294 — Responsabilidade, 295 —
Um dom perpétuo, 297 — O sentido do sacri­
fício, 298 — A finidade com o divino, 299 —
O tesouro de D eus, 300 — N osso destino é
servir, 301.

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