Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
CAPfTULO 1
IlviAGEM (TSJ1LEM) E SEMELHANÇA (DEMÚ1). A INCORPOREIDADE
DE DEUS E A POLIVALtNCIA DO TERMO IMAGEM
CAP!TULO 2
SOBRE GENESIS 3:5
víduo que, após cometer uma transgressão, foi considerado bom e co
locado como um astro no céu - esta era a intenção e o sentido da
objeção, ainda que não com as mesmas palavras.
Ouça agora nossa refutação. Dizemos que você é um indivíduo atento
ao principio das suas idéias e pensamentos mal-intencionados; que pensa
que compreende um lívro - orientador tanto dos antigos quanto dos
contemporâneos - dedicando-lhe simplesmente alguns momentos de
intervalo entre a bebida e o sexo, como se se tratasse de um livro de
crônicas do cotidiano ou de poesia! Tome seu lugar e observe, pois a
questão não é como você apresentou a princípio, mas, sim, como es
clareceremos. A inteligência que o Criador infundiu no homem - e
que constitui sua perfeição suprema - é a que Adão possuía ames de
s11� rebeldia: por isso declarou- se que foi criado à imagem de Deus e à
sua semelhança e por isso [Deus] falou com ele e lhe ordenou, confor
me foi dito: "E ordenou YHVH Deus ao homem { ...)" (Génesis 2: 16).
Ordens não são dadas a animais irracionais nem a alguém carente de
inteligência. Mediante a inteligência, o homem discernia o verdadeiro
do falso; ele possuía esta capacidade perfeita e completa. Pois bem, a
feiúra e a beleza estão no campo da opinião, não da razão, pois não foi
dito que "o céu é esférico" seja belo, nem que ·a terra é plana" seja feio,
mas que isto é, respectivamente, verdadeiro e falso. Assim, em nossa
língua [hebraico] fala-se do verdadeiro (cóshêt) e do falso (batê� respecti
vamente como verdade (emêt) e mentira (shéke!}, e do belo (naé) e do
feio (meguné) como bem (to0 e mal (.ra). O homem sabe o que é verda
de e o que é mentira por meio da razão, e isto vale para todas as coisas
inteligíveis. Deste modo, quando Adão se encontrava na plenitude e
perfeição de sua razão e inteligência, foi dito, a seu respeito, que ele era
"(...) um pouco menor do que .Elohim [Deus ou anjos) (...)" (Salmos 8:6).
Ele não sabia absolutamente como utilizar e formar opiniões; até mes
mo o que há de mais reprovável - a exposição da nudez - não lhe era
feio nem compreendia a sua feiúra. Após rebelar-se, ceder aos seus ins
tintos imaginativos e às delíéias dos sentidos físicos, como foi descrito:
"(...) que era boa a árvore para comer e desejável para os olhos (.. .)".
(Génesis 3:6), [Adão] foi castigado com a privação da compreensão
racional: isto o levou a transgredir a ordem dada, levando-se em conta
sua inteligência, o que fez com que obtivesse a capacidade de apreensão
das opiniões: afundou na feiúra e na beleza. Então se deu conta daqui
lo que perdeu, do que lhe foi despojado e a qual estado foi reduzido.
Este é o sentido de: " (...) e sereis como .Elohim. conhecedores do bem e
do mal" (Gêne�is 3:5). Não foi dito: ''conhecedores da mentira e da ver
dade"; ou "conscientes da mentira e da verdade", pois o bem e o mal
O CUIA DOS PERPLEXOS 59
(]6 4: 13) que termina com estas palavras: • (...) parou diante de mim,
porém não reconheci seu semblante; um contorno diante dos meus
olhos" (Jó 4:16), ou seja, uma forma imaginária diante dos olhos, du
rante o sono.
3°) Quanto à noção verdadeira de algc, captada pela razão. Somen
te de acorç!o com este terceiro significado é que se pode falar do contor
no de Deus, como por exemplo: "(...) E o contorno deYHVH [ele] olhará
(.. .)" {Números 12:8), cujo significado é: alcançará a verdade divina.
CAP1TULO 4
VER (RAA}. OLHAR (HAB/7) E ENXERGAR (CHAZA)
Saiba que os três verbos - ver (má), olhar (habít)e enxergar (chazá)
- aplicam-se à percepção visual e, metaforlcamente, à apreensão ra•
clona!.
Aquilo que se refere ao verbo veré conhecido de todos. Quando é
dito: "E viu, e els um poço no campo (... )" (Gênesis 29:2), trata-se de
uma percepção visual. Quando é afirmado: • (...) e meu coração viu
muita sabedoria e conhecimento· (Eclesiastes 1 : 16), refere-se a uma
apreensão racional. Segundo, esta metáfora, o verbo verse aplica à di
vindadeassim como em: • (..•) Ili'YHVH (...)" (I Reis 22: 19); "E fez-se
verYHVH (...)" (Gênesis 18: l); "(...) e viu Deus que era bom" (Gênesis
1:21); " (...) Fazei-me verTua glória" {Êxodo 33:18): "E viram o Deus
de Israel (...)" (Êxodo 24:10). Tudo isso é apreensão racional e Jamais
percepção viSual, pois osolhospercebemsomente o corpo [fisico] e ainda
parcialmente, com alguns acidentes, ou seja. a aparência flsica, seu as
pecto e o que deriva dele. Portanto, a divindade não é apreendida pelos
sentidos, como será explicado.
Do mesmo modo, o verbo olhar refere- s e a perceber com os olhos,
como por exemplo: " (...) nã.o olhes por trás ( ...)" (Gênesis 19: 17); "E
olhou sua mulher para trás dele [de Lot] ( ...) " (Gênesis 19:26): "(...) e
olhou para a terra (.. .)" (Isaías, 5:30). Por outro lado, emprega-se em
sentido metafórico [como observa,] à observação racional e à maneira
de ver algo até alcançar sua compreensão. Assim foi dito: "Não obser-
64 MAJ MÔNIDES
CAPITULO 5
SOBRE �ODO 24, : 1 0
"a imagem e semelhança de Adão� , qual seja: nenhum dos seus filhos
anteriores obteve, de fato , a forma humana denominada ''à imagem e
semelhança de Adão" . referente à expressão "à imagem e semelhança de
fl
Deus - à exceção de Set , a quem instruiu e ensinou . que atingiu a
perfeita dimensão humana e para quem foi dito: " (.. . . ) e gerou à sua
semelhança, conforme a sua imagem ( . . .) " . Você já sabe que qualquer
um que nã·o tenha atingido esta forma, cujo sentido esclarecemos não
é um homem, mas uma besta ( bebe.mi) , com forma e t:ra.ços humanos,
dotado da capacidade de causar certos danos e males inexistentes nos
demais animais , porque utiliza a mente e o pensamento - que lhes
foram preparados para alcançar a perfeição não atingida - para todo
tipo de artifícios voltados para o mal, gerando danos e passando�se por
alguém semelhante ao homem ou por uma imitação deste. Assim ernm
os filhos de Adão ant.erio11es a Set. e a respeito deles foi declarado no
Midrásh: " Durante todos os cento e trinta anos em que Adão esteve
admoestado , gerou espíritos� , 1 ou seja, demônios� mas quando a d.ívin
dade o quis , [AdãoJ gerou â sua imagem e semelhança. É isso o que sig
nificam as palavras: "E viveu Adão cento e trinta anos, e gerou à sua
semelhança , conforme a sua imagem ( .. .) " .
Livros dos Pr,o fetas e similares entre as obras dos Sáb ios , para ,c ompreen
der ós termos utilizad os por . tod os eles e todo termo polivale n te se g un
do o sentido adequado ao tema corr esponden te . Esta nossa afirmação é
a. chave para es te tratado e obras semelhantes.
Como exemplo do que explicamos a qui quanto ao termo ma cóm ,
eis a sentença : " Be nd ita seja a glória de YHVH no seu lugar (mimecomõ) " .
Saiba que este termo é o mesmo que na seguinte p assagem :. U Eis aq ui
um Jugar (m.ac6m) " (Êxo do 33 : 2 1 ) , ou sej a , u m grau de contemplação
e de p ercep ção inteledual - e não o cular - (co nsiderando o lugar
indicado [a Mo isés! na montanha , que foi o de isolamen to e do alcan
ce da perfeição) .
(Êxodo 17: 1 6), é uma demonstração do Seu poder e grandeza, que não
precisam ser considerados externos a Deus ou criaturas da Sua Criação,
como se Ele existisse ao mesmo tempo com e sem o trono-isso é, sem
dúVida, uma heresia. Já foi explicado e dito: "Tu, Eterno, permaneces
eternamente, e o Teu trono degeração em geração" (Lamentações 5: 19)
- prova de que o trono é Inseparável de Deus. Desta maneira, aqui e
em passagens semelhantes, a palavra trono expressa a grandiosidade e o
poder de Deus, que não são externos à sua essência - como será escla
recido em alguns capítulos deste tratado.
CAPÍ TULO } Q
9 "Um exemplo esclarecedor: 'Uma comunidade pode alie nar terrenos para
destinar o valo r à co nstrução d, e uma sinagoga , Do mesmo modo , com o d i-
78 1AIMÔ NIDES
n heiro a rrecadado na ve nda d e exempla res dos Liv ros dos Profetas , podem -se
(Mu nk ) .
adquiri r êXe mp lare.$ ela Torá : todavia , ô éo ntrãrio ê p ro ibido '�
10 Po r ".esfera cir cu nda nte • o auto r se re fere â esfera celestia. l mais elevada , que
e nvo l ve todas as de mais . Veja sobre isso nesta P a r te l , nos cap ítulos 70 e 72 .
e na P a rce 2 , capítulo 6 e seguintes .
O GUIA DOS PERPLEXOS. 79
1 2 "Assente a !mulher] est.é ril n a casa. feliz mãe d e filhos., Louvado seja. o Er.er
no, HaJeJu-Jâ (Salmoo 1 1 3:9) .
82 MAJMON!DES
(Atá tacúm) terás misericórdia de Sion (... ) " (Salmos l 02: 1 4) . ou seja.
estabeleça o que Tu designaste : para a nmer icárdia [de Ston] .
Q uando :ma: pessoa resol ve fazer algo Macorda p reali.Zã-l o ,
be/<.imá, diz- deste que despertou (cám) : " Po Js despertou (hekim) meu
filho o meu servo contra mim" (1 Samuel 22:8). Eis uma metáfora para
cransmitir um decreto divinocontra um povo que recebeu uma sentença
de morte: "E me ergui ( VecámtJ, por sobre a casadeJeroboão [laravám)"
(Arnós 7:9) : "E ergueu-se (vecám) por sobre a casa dos ímpios" (lsafas
23: 1 O). É possível que a declaração "Agora, levantar-me-ei" também se
aplique neste caso, bem como •Erguer-te-ás (Atá taalm) e terás miseri·
córdia dê Sion•, no seguinte sentido: "Erguer-me-ei contra teus inlmi·
gos'' . Há muitas passagens com este sentido -- não que [literalmente)
se levante ou se sente - Deus nos livre disso! -, mas como disseram
nossos Sábios: Não hã sentar-se (ieshiva) ou erguer-se (amida) no Mun
do Superior -já que o termo ·erguer-se• virá muitas vezes no sentido
de levantar- se (cám).
CAPÍTULO 13
A CONDIÇÃO DE ERGUER-SE (AMIDÀ)
Amidâ é um termo polivale nte. Tem o sen ido de uma pessoa se erguer
n
e. ass i m perma necer: ÜAo se erguer (beamedó} diante do Faraó (Ginesis
41 1 : 1 6) ; .. Embo tenham se erguido (iaa�, Mo· · Samuel O re
mias 1 5 : 1 ) ; "E ,e fe se �ueu (omêO, diant deles" (G nesis ] 8:8) . E hâ
tamb m o sentido de parar e · nterromper: " Po is eles p_ >rara.m { amedú)
e não respond rarm" Qó 32: 6) · "E parou ( Vetaamõcô de procriar"
(Gênesis 2 9: 35) . Outro é o de permanecer e su portar: .. Para que per
m.a neça:m (iaamedú) por mui os dias O rem ias 3 2 : 1 4) : " E po � rás
suportar (amdc/J • {Êxodo 1 8 : 2 3 ) ; " S u sa bor permaneceu ( am.ádJ
nel · " Uerem ias 4 8 : l l ) , ou · �a. parou e · fixou s� m qualquer aJ e
raç.ã o : E s u a J us iça permanece ( om 'det} pa r-a s m p re (Sa l mos
H 1 : 3) . ou seja , estabeiece-s e perdura et, mame :n e. Toda a amidá
refe11ente ao Todo-Poderoso deve :s.er compreend i d a e rn seu senti d a
ú l t m o , como em : " E lff'CUlll'•Je-ào '1?amedú) seu s pés naq uele d ia
sob e o . onte das Olivei ras" {Zacarias l :4) , e for, a m expostos os
seus motivos , o u s ja . suas ca sas. Is o se rá eluc ' dado mais ad i te
q u ando tratarmos dos diversos si-gn ífü;: ad os do termo Tégue/' 5 (pé) .
Vo]tando a este ti rmo [amidâ) , [deve se entender} as palavras de Deus
1 5 No capitulo 28 da Pane l .
86 MAJMÔNIDES
16 Na Bíblia.
1 7 "E formou YHVH Deus ao homem (Adám), pó da terra {ada.m;Í') (. . •) � (Gé
nesis 2:7) .
18 Aqu i se entende a -expressão .Bene Haelohim como referente a membros de um@
dada ei i te, i nte�ados em mufüen�s " plebéias" - é não como supostos seres
d Ninos, cuja leitu ra super ficial da expressão poderia supor.
CAPITULO 15
PERMANECER OU POSICIONAR-SE (NAT.S'ÁVOU IAT.S'Áv)
19 Deus orientou Moísés p ara que s e p�icJonasse sobre u m pe.nhasco, para dentro
de cuja fenda. deveria e.r,r trar qua11do passasse a Sua glõria. Maimõnides utiliza
este ven;iculo como exemplo do uso concreto do termo natsiiv.
CAPÍTULO 16
ROCHA (TSURJ
20 Na Abel-tu •
2 l Platão. Tlm�u.r. Aristótel . F_tsiC11, Livro l (}v!aimônid ) .
22 rtstôte1es, Ffs/ca {Maimôn 'd ) .
94 MAIMÓNIDES
(nigásh) este povo de mim, com sua boca e com seus lábios me honra"
(Isaías 29: ..1 3) .
Todo termo encontrado nos L.vros Profêticos, cujo significado é o
de aproximação ou abordagem [para descrever a relação] entre o Todo
Poder-oso e o que Dele foi criado, é tomado sempre no último sentido,
posto que_Oeus não ê um corpo {como será demonstr-a do neste trata
do 24 ) . Assim sendo, Ele nào se aproximará nem tocará em nada, e nada
poderá se aproximar Dele ou tocá-Lo. pois o ser desprovido de corpo,
reidade nã.o ocupa lugar no espaço. Portanto, é inaplicâvel [neste caso]
q ualquer aproximação, contato ou distanciamento, bem como uníão
ou separação, toque ou proximidade.
Acredito que você: não tenha dúvidas quanto às palavras a seguir:
H Próximo (caró0 está Deus dos que O invocam" (Salmos 1 45 : 1 8) ; "A
proximidade (kirevárj de Deus nos é desejável" (Isaías 58: 2) ; "A proXi
midade (kirevá� de Deus é boa para mim" (Salmos 73:28) . Todas são
referent;es à aproximação em direção ao conhecimento, ou seja, à sua
apreensão - não a espacial . Deste modo, afirma•se: " ( . . . ) que tenham
Deus próximo (kerovím) de si" (Deuteronómio 4 '. 7) : u Aproxima-te
(keráv) e ouça" (Deuteronômio 5:24) ; " E abordará ( Venigásh) Moisés,
sozinho , o Eterno, e eles não abordarão (igashlÍ) (Êxodo 24:2) . Agora,
ff
se você quiser tomar o que foi dito sobre Mois�s - " E abordará
( venígásh) " - ,como se ele fosse se aproximar do lugar na montanha
onde a Luz - vale diZer: UA glória de Deus" -· surgiu diante dele, tam
bém é possível. Contudo, saiba que o principal é que é indiferente se
uma pessoa está no centro do mundo ou nas alturas da nona esfera 2 -s
(se isto fosse possível) : ele nào se distanciará de Deus, no primeiro caso,
e tampouco se afastará Dele, no último; a aproximação em direção a
Deus ocorre por meio do conhecimento,. e o afastamento ocorre àque
les que Dele se mantêm ignorantes. Entrr: esta aproximação e distan
ciamento há inúmeras gradaçõe.s umas acima das outras. Eis que escla.
:recerei em um dos capítulos deste tratado 26 como isto é uma vantagem
do ; [nosso] ponto de vista.
Certamente, as palavras'. " Toca (Ga; as montanhas e elas fumegarão"
(Salmos 1 44:5) querem dizer metaforie-amente: "Imponha a sua pala-
vra sobre eles" , assim como: " Toque-o ( vegá e/ atsm6)" Üó 2:5) querdízer:
"passe a sua aflição para ele".
Assim também é com o termo toque e o modo como é empregado
em nossa língua, interpretado em cada lugar conforme o seu contexto:
às vezes significa o toque de um corpo em outro, às vezes a apreensão
de conhecimento e a compreensão de um certo assunto. É como com
preender algo que antes não se entendia, ou seja, aproximar-se de um
assunto que antes lhe era distante. Entenda isso.
CAPITULO 19
CHEIO (M4!1)
ser aplicar "a glória de YHVH" como uma luz criada, de modo que se
considere •a glória· em todos os lugares, tal como em •encheu o taber
náculo", não há problema.
CAPfTuLO 20
ELEVAR (RÁME NASS/4
que aqueles que alcançam uma apreensão perfeita de Deus não consi
deram que Ele possua diversos atributos, mas que todos que descrevem
a Sua Força, Grandeza, Poder, Perfeição, Bondade, entre outros remon,
tam a um único sentido, que é a Sua Essénda, e nada além desta.
Eis que dedi,c arei alguns capítulos 28 aos nomes e atributos [de
Deus] ; na verdade, a intenção neste capítulo foi mostrar que rám e nissá
não devem ser compreendidos no sentido de elevação espacial. mas sim
de posição.
to" ( t:xodo 34:6) - sendo que o sentido de seu rosto'' r, ecai sobre o
Eterno. Assim interpretaram os ''sábios": que "seu ros o" refere-se a Deus.
e, se isto lembra claramente as hagadót Iexplicações metafóricas ] , aqui
não é o lugar delas - ainda que reforcem. um pouco o nosso p onto de
vista - e o sentido de "seu rosto" aplica-se ao Santíssimo ( Cadosh Baruch
Hu) . Esta explicação e. s tâ de acordo com o meu ponto de vista: que
Moisés (que a paz esteja com ele) solicitara determinada percepção -
denominada "a visão do rosto" - mas lhe foi d ito: . �E o Meu rosto não
será visto" ( Êxodo 33:23) ; então lhe foi permitido ter uma per,cepção
inferior â solicitada , a saber, aquela que percebeu como "a visão das
costas" , nas pal.avras: "E verás Minhas costas" (Êxodo 33:23) . Já expu
semos este assunto no Mishnê Tor:á,'ZS , e m que foi afirmado que o Eterno
Deus encobriu dele esta percepção denom inada ilvisão do rosto w e subs
tituiu-a p o,r outra:, a saber: o conhecimento dos movimentos atribuí
dos a Deus , dos quais se pensa que são muitos,. tal como será expHca
do. 30 Q uando digo "encobriu dele� [ de Moisés ] . quero dizer que e-sta é
uma percep çã o ocu]ta, inacessível por sua natureza, e que todo homem
integro cuja mente está concentrada naquilo que a sua natureza permi
te alcançar e pede por outra, além desta, terâ sua percepção atrapalhada
ou a p erderá - como será ex p licado em um dos capítulos deste Trata
do3 1 - a menos que a Ajuda Divma o acompanhe· , como nas se guintes
p alavras: "E deitarei minha p alma sobre ti a.tê que Eu tenha passado"
(Êxodo 33:22) .
Entretanto, o Targuní3 2 seg uiu seu p ró p rio método acerca destes as
suntos, a saber, q ue em toda ex p ressão relacionada à Divin dade q ue im
plica corp oreidade ou propriedades co rp orais, hã uma eli pse inerente;
e o mesmo ocorre quando a ex p ressão é ap licada à DNindade. Sobre as
p alavras: "E eis que YHVH estava sobre ela Ia escada ] " {Gênesis 28: 1 3) ,33
[ele p arafraseia ] : "A pala,vrà de Deus vinha do alto"; e [ novamente ] so-
bre as palavras: "Vigie o Eterno entre mim e ti" (Génesis 31:49), (ele
parafraseia]: "A Glória de Deus contemplará"; e assim prossegue seu
método (que a paz esteja sobre ele). E deste modo fez a respeito das
palavras: "E passou YHVH diante dele e chamou• (Êxodo 34:6), [pa
rafraseou]: •Epassou ( Va!aav6r} Deus a sua Presença Divina diante de
seu rosto e chamou", posto que aquilo que •passou", em si mesmo, era
Indubitavelmente material; ai o sentido de •seu rosto" recai sobre Moshé
Rabênu {Moisés, Nosso Mestre) e o signiflcado de "seu rosto" (aipanáVJ
é [o mesmo que) "diante dele" (letanáV), como em: " E passou ( �taavói}
o presente diante dele (aipanáVJ" (Gênesis 32:22). Este também é um
belo e bom significado, e o escrito seguinte reforça a explicação de
Onkelos, o Prosélito (de abençoada memória): "E será, quando passar
(baavóry a minha glória" (Êxodo 33:22) -já explicado que aquUo que
"passa" é atribuído ao Eterno, mas não é o próprio Deus (elevado seja o
Seu nome!); e sobre a Glória [divina) é dito: "Até que passe (adavrl)".
Portanto, se é impossível não levar em conta as elipses - como
Ünkelos, que sempre as considerava, ora acrescentando o termo "gló
ria·, ora ·palavra". ora "Presença Divina". conforme o contexto em cada
caso - eis que nós também acrescentaremos aqui o termo faltante •voz•,
e a frase ficará: "E passou a voz de Deus diante do seu rosto e chamou·
{;á explicamos. no início deste capítulo, o uso metafórico para a "voz"
da "passagem", narrada em Êxodo 36:6: •Efizeram passar (vaiaavíru)
uma voz (c6� pelo acampamento"). Assim "a voz" será quem "chamou·.
Não deve haver objeção a se relacionar o "chamado" à "voz", posto que
estes mesmos termos encontram-se no relato sobre a palavra rte Deus
dita a Moisés: "Ouvia a voz(có� falando com ele" {Números 7:89); e,
assim como a "fala" foi relacionada à ·voz", do mesmo modo relacio
namos aqui o "chamado" à ..voz". Já mencionamos como a relação da
"fala" e do "chamado" à "voz" se explica: "Uma voz fala: Chame! E fa
lou: O que chamarei?" {Isaías 40:6). Este sentido, conforme seu con
texto, é: "E passou uma ·voz' vinda de Deus e chamou: 'Deus! Deus!'".
Eis que a palavra "Deus" é repetida no chamado, pois é Ele quem é
chamado, como em: "Moisés! Moisés!" (Êxodo 3:4); e em: "Abrahão!
Abrahão!" (Gênesis 22:11). Esta também é uma explicação muito bela.
E não venha levantar a objeção de que este assunto profundo, dificil
deser compreendido, sofre muitas interpretações, porque isso em nada
nos prejudica. Cabe-lhe escolher qual delas você deseja: ou ficar com
esta grande cena que é, indubitavelmente, toda a •visão profética•, e todo
o esforço de compreensão racional - o que [Moisés) pediu, o que lhe
foi ocultado e o que alcançou - tudo racional, sem o uso dos sentidos,
! 06 MAlMÔNlDES
sairá (tetsê) a Torá [a Lei] n {Isaías 2:3) , e ainda: "O sol saiu (iatsá) sobre
a terra" (Gênesis 19:23) , isto é, apareceu a hu.
Segundo esta metáfora, toda •·expressão de saída" deve se referir ao
Toda-Poderoso: "Eis que o Eterno sai (iotsé} do Seu lugar" (Isaías 26: 2 1 ) ;
ou seja, a Sua palavra, antes oculta, agora é manifesta, a saber· renovou
se o que nos renovará após a inexistência,35 pois tudo o que se renova
por si prôptio é Deus, conforme suas palavras: "Por Sua palavra foram
criados os cêus e, pelo sopro de Sua boc-a , tudo que nele-S exis-e" (Sal
mo& 33:6) . Embora semelhante às ações vindas dos reis, que se valem
de seus instrumentos - as palavras [ordens] - para fazer-em valer suas
vontades, o Todo-Poderoso não necessita de instrumento para agir, posto
que Sua atividade o corre tão somente conforme a Sua vo ntade; tam
pouco há qualquer espécíe de fala , como será explicado. 36
Não obstante u ma entre as atividades [do termo] "saída" m anifes�
tar-se metaforicamente. conforme expl icamos com a expressão UEis que
o Eterno sai do seu lugar " , e.sta também pode ser aplicada à desconti
nuidade desta açào , como ''retorno" de acordo com a Sua von tade, nes
tas palavris: "Andarei , retomarei (ashúVa) ao meu lugar" {Oséias 5 : 1 5) ,
cujo sentido é a saída da Presença D ivina (Shechina} do nosso meio,
fazendo com que sejamos privad os da sua Proteção Divina (Hashgacha) ,
conforme foí dito com uma triste finalidade: " E esconderei o meu ros
to dele, e será por presa• (Deuteronômio 3 1 : 1 7) , pois quando a Prote
çã o Divina desaparece , [ o homem] ficará abando nad o e exposto a tudo
o que pode vir e acontecer, e a sua sorte - o bem e o mal - estará sujeíta
ao acaso, conforme indicado nas palavras: "Irei, retornare i ao Meu lu
gar" . Como é dura esta determ inação!
36 Cap!tuloS, 55 e 59.
CAPITULO 24
O ANDAR (HALICHA)
37 "Os dizeres dos Rabis [os Sábios do . 1àlmud} . . . Maimônides i nterrompe mais
u ma vez aqui suas explicações sobr� o,s termos poli valentes para falar d o :sen
tido que deve ser dbpensado ao ·movimento' atribu ído a Deus. Este cápitulo
e o próximo , que em alguns manuscritos constituem um só, relacionam-se aã
capítulo 24, poiis sem dúvida o que mo"e o autor a este respeito é o significa•
do do verbo haMch (andar) " (Munk, ci tado por Maeso} ..
38 "EsÍlil a.fin,uJção de Ma imõn ldes, inescapável e absol utamente ev! denciad a pelas
leis da natureza , na l inguagem bf blíca e sua interpretação, é u_m pri ncí pio
admitido n ivem.lmente. · ão obstante, deve-se lembrar o empenho ext raor
dinário de Onkelos, em se u Targum (tradução do Pentateuco do hebraico pai-.1
o ara maico) , para atenuar ao máximo o a n cro pomorfismo de Deus no texto
bibliço, que é o cema deste ca pít ulo" (MaesQ) .
! 16 MAIMON IDES
43 Veja no capítulo 1 3.
120 MAIMÔNlOES
47 Parte 3. capítulo 8.
48 Aristóteles, Física l :9.
49 No �entido de ''transparência� (NT).
50 Arts�ót.eJes. De Anima. Ljvro 2, capítulo 7.
51 Parte 2 , capítuJ.� 1 3 e 19.
5.2 Capítulo 9.
53 Parte 2, capitulo 2. 6 .
CAPÍTULO 29
AFLIÇÃO (ÉTSEl1
gua dos seres hu manas" . 54 Isto claro e e:xp ·cito. Posto qu , a res.
p f· da rebelião d "'geração do Diluv io" , a To r · (Pentateu co) não es
c la rece se um mensageiro l hes fõra e nvia do n aq u e le m o m e n o , nem
adv rtências , o u ameaças de mot te. afi.nna-se so - - o ocorrido q ue Deus
es va irado corn -· es .. em Seu co - çãoi'' - Da mesma maneira , quando
foi da Sua vontade que nunc mai$, haveria u.m H DHúvio.. , não disse a
um profeta : "Vã , - conte-lhes isso" , neste caso se d iria : "ao se u coração " .
Entretanto, a lnte rpretação pa ra " E pesou- l he ao Seu cot ção" con
for.m.e o, terceiro sen ido será a segu i nte: o ser h umano desobedec u a
vontade de Deus a seu r�ito , posto que "coração (lê� " também pode
ser c hamado de vontade. como sera explicado obre a poli val " nc ia do
ter _o � coração". 55
54 Capítulo 26.
55 Càipltuto 39.
CAPITULO 3Q
COMER (ACHÓL)
61 Segundo a Tora, Deus fez Abião olhar para fora e disse: "Olha p ara os céus, e
oon� as est relas, se podes contá-las · {Gênesis 15:5).
6 .2 A1exandre de A f rodisia foi um �célebre comentarista de Aristóteles do f inal
do século li e l nfcio do século ID da Era Comum, que desfru.tou de grande
autoridade entre os gregos e o� árabes. Maimõnides o cita dezenas de vezes.
muitas vezes somente por seu primeiro nome ( ...) • {Maeso) .
O CUJA DOS PERPLEXOS 12 9
lavam suas cabeças e corpos, privam �se do lazer e têm dificuldades para
se manter; por sua ve-z, têm aversão às cidades e menosprezam suas d i
versões, preferindo as condições ruins, às quais estão acostumados, àque
las boas que desconhecem: e vo cê não os convencerá a morar em palá
c ios, vestir [roupas de] seda ou banhar-se com óleos e perfumes. . O
mesmo pode se dizer com relação às crenças oom as quais uma pessoa
está acostumada e com as quais cresceu , devido ao amor e apegc por
elas e à rep ulsão pelo que é díferente.
Este também é o motivo pelo qual o indMduo deixará de alcançar o
que ê verdadeiro e se indinarâ para o que j á e.stá habituado. Assim ocor
reu com as pessoas comuns no que diz respeito à corporeidade .[ de Deus]
, e a muitos assuntos teolôgiéos, oomo explicaremos. 6 3 Tudo ísso ocorre
em decorrência dos costumes e estudos referentes às Escrituras , às quais
veneram e nas quais acred itam, cujo sentido literal sobre a corporeida
de e outras co isas imaginadas faltam com a verdade,. pois elas devem ser
interpretadas como metáforas e enigmas. Estas são as causas e eu volta
rei a elas mais adiante. 6.ii
E não pense que aquilo que estamos falando sobre os lim ites ineren
tes ao intel ecto humano sejam afi rmações fundamentadas apenas na
Tora , pois este assunto também tem sido tratado pelos filósofos, que o
compreenderam corretamente, independente de inclinações de opinião
ou crença. Isto é um fato incontestável, a não ser por quem ignora aquilo
que já foí demonstrado.
Eis que este capítulo pretendeu ser u ma introdução para a proposi
•ç ão que virâ a seguir.
63 Capitu!Q 4. 7.
64 Capitulo 46.
CAPÍTULO 32
O INTELECTO E OS ÓRGÃOS DOS SENTIDOS
Saiba você, que atenta a este tratado, que o que ocorre com as percep
ções mentais - naquilo em que dependem da matéria - é semelhante
ao que ocorre com as percepções sensoriais, a saber: quando você olhar
à sua volta irá perceber tudo o que o seu sentido da visão for capaz de
apreender: mas se forçar os olhos, exigir demais deles e tentar enxergar
a uma grande distância, ou examinar algum escrito ou impresso muito
leve 4ue uãu há como enxergar, forçando a sua visão para compreendê
lo, além de não conseguir enxergá-lo, você também diminuirá a sua
capacidade anterior de percepção, ou seja, enfraquecerá o seu sentido
de visão e não conseguirá mais ver como antes deste esforço. O mesmo
ocorrerá com todo aquele que se voltar para a investigação intelectual
de uma teoria e m particular, pois se forçar o intelecto e exigir demais
da sua capacidade de reflexão, ficará atemorizado e não conseguirá en
tender nem o que antes era capaz de compreender, pois todas as_capa
cidades físicas são da mesma natureza - as condições são as mesmas.
O mesmo acontece com respeito às percepções mentais, a saber: se
você admitir a dúvida - e não se equivocar , acreditando que há demons
tração para aquilo que é incapaz de ser demonstrado, não passar a rejei
tar e negar com um desmentido qualquer proposição cujo contrário não
foi demonstrado e não se esforçar para apreender aquilo que não é c a
paz de entender - então terá atingido a perfeição humana e estara no
nível de Rabi Akiva (que a paz esteja sobre ele) , que " entrou em paz e
132 MA.IMÔN!DES
saiu em paz" 65 dos estudos teológicos. Caso você se esforce para ir alem
da sua capacidade de apreensão ou passe a desmentir teorias cujo con
trário não foi demonstrado -· ou cuja demonstração, mesmo que re
mota, é possível - então estará no nível de Elisha Acher, ou seja, não
somente deixará de alcançar a perfeição tomo irá. regrndir para o nível
máximo de imperfeição; assím, recairão sobre você as forças das fanta
sias e inclinações para as imperfeições, vícios, indecências e perversida
des, transtornando o intelecto e obscurecendo sua luz - do mesmo
modo que oooue às visões fantasiosas que desmentem tantas coisas por
conta da fraqueza de espírito, observadas nos enfermos e naqueles que
insistem em olhar para objetos muito brilhantes ou pequenos demais.
Afirma-se a este respeito: "Mel encontras te: come o que te basta, para
que não te fartes e tenhas que vomitá-ln" (Provêrbios 25: 1 6) . Os Sá
bios também aplicaram isto a Elisha Acher. E quão maravilhosa é esta
metáfora! Como já dissemos, 66 ela compara [este tipo de oonhecimen�
to] ao que se conhece sobre a alimentação e menciona o mais doce dos
alimentos, o mel, que, por sua própria natureza, se consumido em ex
cesso írrita o estômago e provoca o vômito. É como dizer que, qu. a nto
à natureza deste tipo de conhecimento - com toda a sua nobreza,
importância e tudo o que vem da perfeição - caso não se permaneça
dentro dos seus limites, tampouco se adotem os cuidados devidos, este
se converterá em imperfeição, assim como o mel: se consumido com
moderação alimenta e dâ prazer, mas, em excesso, é posto para fora.
Não foi dito: "para que não te fartes e destrua-o" . Porém: u • • • e tenhá que
vomitá-lo".
O mesmo tema é ilustrado pelas palavras: "Comer mel em demasia
não é bom ( . .. ) " (Provérbios 25:27) ; "Não queiras ser demasiado sábio:
por que queres te destruir?" (Edesiastes 7: 1 6) · "Cuida dos teus passos
quando fores ã casa de Deus" (Eclesiastes 4 : 1 7) . David ilustra o mesmo
assunto com as seguintes palavras: "E nào tenho a pretensão de lidar
com aquilo que está acima e além da mínha compreensão" (Salmos
1 3 1 : 1) . E nas palavras dos Sábios: "Aquilo que te é misterioso não in
vestiga, e não procures o que te estãs oculto: investiga aquilo que te foí
65 Alusão a uma passa, gem metafórica do Ta!mud em que se falava de quatro Sábios
que mtraram no Pareies {Paraíso) : Ben Azai, Ben Zomã, Elisha Acher e Rabi
Akjva. Ben Azai olhou de relance e morreu: Ben Zomá enlouqueceu. Acher
torno u� herege. Rabi Akiva �entrou em paz e saiu ern paz" (NT).
1 6 6 Capítulo 30.
O CUIA DOS PERPLEXOS 133
71 No próximo capítulo.
72 Capítulos 26 e 47.
73 Na Abertura desta Parte 1.
O CUIA DOS PERPLEXOS 137
burrico selvagem, o homem nascerá" (Jó 11: 12); e uma pessoa que
possui algum potencial relevante não necessariamente fará com que este
se converta em ato, mas é possível que permaneça imperfeita em decor
rência de obstáculos ou pouco estudo. Conforme as palavras: "Não serão
muitos os sábios" (Jó 32:9); e nossos Sábios (de abençoada memória)
disseram: "Vi os que são elevados (venêalia) e estes são pouco�• ,75 visto
que os obstáculos até a perfeição são muitos, e suas importunações,
múltiplas. E quando surgirá a disposição perfeita e o tempo livre ao
estudo para que o potencial desde indivíduo se converta em ato?
Terreiromotívo-A extensão dosestudospreliminares. O homem, con
forme a sua natureza, deseja alcançar os fins, mas muitas vezes os estu
dos preliminares lhe pesam ou são problemáticos. Saiba que, se o ho
mem chegasse a um destes fins sem os estudos preliminares que o p�
cedem, estes não seriam preliminares, mas perturbadores e totalmente
supérfluos. E se você acordasse qualquer pessoa, até mesmo o mais in
gênuo dos indivíduos, como se acorda quem dormia e lhe dissesse: "Você
não almeja agora conhecer como são os céus, em quantos são, como é
o seu contorno e o que há dentro deles? E o que são os anjos? E como
o mundo inteiro foi criado, qual é o seu propósito e a relação entre a
partes que o compõem? E o que é a alma e como esta se renova dentro
do corpo? E se a alma do ser humano se separa [do corpo)?E neste caso,
como será isso? Por quais meios e com qual finalidade?", e tudo o que
estas investigações implicarem, ele sem dúvida lhe responderia: "Sim!",
pois naturalmente almejaria conhecer estas coisas em seus verdadeiros
sentidos. Contudo, pretenderia satisfazer este desejo e chegar a este
conhecimento com apenas uma ou duas palavras que você lhe dissesse.
Agora suponha que você o forçasse a abrir mão das suas atividades por
uma semana, até que compreendesse todas essas coisas: ele não o faria,
pois lhe bastariam fantasias ilusórias, contentar-se-ia com elas e não
permitiria que lhe dissessem que lá existe algo que necessita de muitos
estudos introdutórios e um longo período de investigação.
Você sabe que estes assuntos estão relacionados entre si, ou seja, que
nada há na existência além de Deus e todas as Suas obras - isto é, tudo
o que existe à exceção Dele - e não há modo de alcançá-Lo a não ser
por meio de Suas obras, que são os guias para se conhecer a Sua existên
cia e tudo o que é necessário para se acreditar Nele, o que deve ser afir
mado e o que deve ser negado a Seu respeito. Portanto, é obrigatório e
necessário examinar todas as evidências tais como são, até inferir de cada
espécie os princípios verdadeiros e corretos que nos sirvam em nossas
investigações teológicas. Muitos serão os princípios obtidos da nature
za dos números e das figuras geométricas referentes a certos aspectos que
devem estar à parte de Deus - e a nossa teoria procede assim. E quan
to aos temas da astronomia e das ciências naturais, não acho que você
deva interromper [o estudo) sobre questões obrigatórias para se conhe
cer a relação entre o mundo e o seu direcionamento por Deus, segundo
o que é verdadeiro e não imaginado. Há muitos assuntos especulativos
que, embora não se possa extrair deles princípios para esta ciência [a
teologia), exercitarão o intelecto e lhe propiciarão a propriedade de
produzir demonstrações e o conhecimento da verdade sobre a essência
das coisas (e serão removidos os equívocos existentes na maioria das
teorias especulativas, que confundem questões acidentais com essenciais,
além de se permitir que, em decorrência disso, se erradiquem as falsas
teorias), associando-os também ao modelo destas coisas, conforme elas
são de fato - e se não são a raiZ da teologia, possuem outras utilidades
com respeito a assuntos relacionados.a esta.Portanto, é necessariamen
te impossível para aquele que aspira a perfeição humana deixar de se
instruir, primeiro. na arte da Lógica, em seguida, nas demais discipli
nas [da matemática] na seqüência apropriada, então, nas disciplinas das
ciências naturais e, por fim, nas de teologia.
Já nos deparamos com muitos que fatigaram suas mentes com pou
cas destas disciplinas e também [outros que] . se as suas mentes não se
debilitarem, é possível que sejam interrompidos pela morte no início
dos escudos preliminares. E se de forma alguma nos fosse dado o co
nhecimento por meio da tradição, nem fôssemos orientados sobre al
gum aspecto por meio de metáforas, mas obrigados a formar uma idéia
perfeita das características essenciais das coisas e acreditar naquilo que
quiséssemos acreditar somente por meio de demonstração (e isso só é
possível após extensos estudos preliminares) , isto iria levar a maior par
te das pessoas à morte e estas não saberiam que existe um Deus· para
todo o universo, muito menos se lhes caberia obrigatoriamente um
julgamento ou o distanciamento da imperfeição; ninguém estaria a salvo
desta desgraça mortal, a não ser "um de uma cidade e dois de uma fa
mília" (Jeremias 3: 14). E quanto aos poucos que são "os remanescentes
a quem Deus chama" Ooel 3:5), estes não obteriam a perfeição, o seu
objetivo final, a não ser após os estudos preliminares. Salomão já dei
xou claro que a necessidade destes estudos é obrigatória e é impo�ível
alcançar a verdadeira sabedoria senão por meio de sua prática habitual,
conforme suas palavras: "Se o ferro está embotado e absolutamente es-
142 MAIMÔNIOES
Não pense que tudo o que estabelecemos nos capítulos anteriores a res
peito da importância e obscuridade do tema, bem como sobre a difi
culdade de compreendê-lo e a necessidade de se evitar transmiti-lo às
pessoas comuns, inclua afastá-las da [noção de) incorporeidade e não
passividade [de Deus) 78 -de forma alguma! - assim como é necessá
rio educar os jovens e instruir as pessoas comuns acerca da crença de
que Deus é Um e que não se deve cultuar outro, eles também devem ser
ensinados, por meio da tradição, que Deus é incorpóreo; que não há
similaridade algumaentre Ele e Suas criaturas em nenhum aspecto; que
a Sua existência não se compara à existência daquelas; que a Sua vida
não é como a vida delas; que a Sua sabedoria não é como a daqueles
que são sábios; e que a diferença entre Ele e Suas criaturas não é muita
ou pouca, mas sim de espécie de existência, ou seja: é preciso estabele
cer, para tudo, que a nossa sabedoria e capacidade e as Dele não dife
rem em muito ou pouco, em maior ou menor força ou por outros as
pectos semelhantes, pois a força e a fraqueza pertencem necessariamen
te à mesma espécie e pertencem a uma mesma definição. Do mesmo
modo, toda relação só é viável entre duas coisas da mesma espécie - e
78 Capítulo 58.
148 MAIMÔNIDES
82 "Ou seja, na idéia de outros seres associados a Deus, o que leva ao dualismo
ou ao politeísmo· (Maeso).
CAPÍTULO 36
QUANTO AOS "ATRIBUTOS" DE DEUS
não ser com relação a avodá zará (idolatria) : e não encontrará alguém
chamado de "inimigo","adversário" ou "que odeia" a Deus, a não ser o
"ovéd avodá zará (idólatra). Foi dito: "Sirvais outros deuses( ...) e se
acenderá o furor do Eterno contra vós" (Deuteronômio 11: 16-17);" Para
que não cresça o furor do Eterno, teu Deus" (Deuteronômio 6:15); "Para
O irritardes pelas obras de vossas mãos" (Deuteronômio 31:29); "Eles
me provocaram ao zelarem por aquilo que não é Deus; provocaram a
Minha ira com a suas adorações vãs( ...)"(Deuteronômio 32:21) ; "Por
que Deus zeloso é o Eterno (..)"
. (Deuteronômio 6:15): " Por que pro
vocaram a Minha ira com seus ídolos?" Geremías 8:19); "Porque O pro-
83 Capítulo 54 e seguintes.
84 No sentido de cultuar (NT).
J52 MAIMÔNIDES
Causa entre eles [os idólatras). Isto já foi esclarecido em nossa obra
maior85 e sobre isso nenhum dos que possuem a nossa Torá discorda.
Entretanto, estes hereges (mesmo acreditando na existência de Deus)
aplicavam a sua heresia a uma lei (ch6c) exclusiva do Todo-Poderoso:
ao serviço [religioso) e à veneração, conforme as palavras: "E servireis
ao Eterno (...) " �xodo 23:25), a fim de que a Sua existência persistisse
na crença das pessoas comuns; eles aplicaram esta lei ao que era dife
rente [de Deus), o que poderia levar à inexistência do Todo-Poderoso
na crença das pessoas comuns - pois estas só realizavam as práticas
rituais, sem compreender o seu sentido e a Verdade oferecida por meio
destas - e obrigatoriamente poderia levá-los à morte, como está escri
to nesta passagem: "Não deixarás com vida todo que tiver alma" (Deu
teronômio 20: 16), ou seja, que esta falsa opinião seja erradicada para
que não corrompa outros, conforme está dito: "Para que não vos ensi
nem fazer (.. .)" {Deuteronômio 20:18). Estes são denominados ''ini
migos, os que nos odeiam, adversários", e é afirmado que quem age assim
•provoca o zelo, a ira e o aumento da cólera" de Deus. E como será a
situação de quem aplica a sua heresia ao próprio Deus e acredita no
contrário do que éde fato? Em outras palavras: que não acredita na Sua
existência, ou acredita que são dois, ou que é corpóreo, ou passivo (mo
vido por forças externas), ou que a Ele é relacionada qualquer imperfei
ção que seja. Este, sem dúvida, é pior do que um ovêd avodá zará (idó
latra), pelo fato de pensar que é um intermediário ou alguém capaz de
"fazer o bem" ou "fazer o mal" .
Saiba que você, caso venha a acreditar que Deus seja corpóreo ou algo
relacionado ao corpo, estará "provocando o Seu zelo, Sua ira, acenderá
o fogo da Sua cólera, será aquele que O odeia, Seu inimigo e Seu adver
sário" de maneira muito mais contundente do que o idólatra. Se vier à
sua mente que há desculpa para quem acredita na corporeidade (de
Deus) - seja por ter crescido (sido educado) com ela, seja por igno
rância ou por inteligência limitada - o mesmo deve valer para o idó
latra, pois este não adorará a não ser por ignorância ou por ter crescido
[sido educado) assim: "o costume dos seus antepassados em suas mãos"·.86
E se você disser que o sentido literal das Escrituras os induz a esta dú
vida, então saiba que, na verdade, os idólatras foram levados ao seu culto
87 Fala-se aqui de Ana. que viria a ser a mãe do profeta Samuel . Muito aflita e
nervosa. ela orava silenciosamente pedindo por um filho homem . Ao vê-la
naquele estado, osacerdote Elí pMmeiroadvertiu-a. tomando-apor embriagada .
Quando percebeu que. na verdade, ela estava nervosa, disse-lhe para seguir
em paz e que Deus lhe concedesse o que pedia. Ana se acalmou e o seu rosto
refletiu esta tranqüilidade (NT).
l 56 MAJMÔNIDES
como neste caso: "Se não te maldizss diante das tuasfaces (aipanêcha)"
Üó 1:11). Também é dito no seguinte sentido: "E o Eterno falava a
Moisês face a face (panim elpanim)" (Êxodo 33:11), ou seja: um pre
sente diante do outro, sem intermediação, como em: "Vem, entreolhe·
mo-nos nas faces" (II Reis 1 4:8): e "Face a face falou o Eterno convosco"
(Deuteronômio 5:4). Em outro lugar, quando foi dito: "Som de pala
vras vós ouvistes, porém imagem não vistes, tão somente uma voz"
(Deuteronômio 4: 12). está claro que [ouvir a voz] corresponde a "face
a face":89 e também as palavras "E o Eterno falava a Moisés face a face"
(Êxodo 33: 11) têm o mesmo sentido das da seguinte passagem: •E
[Moisés] ouvia a voz [de Deus] que falava com ele" (Números 7:89).
Eis quejá lhe foi esclarecido que a audição da voz [de Deus] sem a in
termediação de um aajo equivale à expressão "face a face". No sentido
desta passagem: ··E as Minhas faces não serão vistas" (Êxodo 33:23),
significa que a verdadeira existência [de Deus) não poderá ser compreen
dida.
O termo hebraico panim (faces) também é um advérbio de lugar -
" diantede ti" (lefanécha) ou "entn-suas mãos" (véiniadêcha) -eé muito
empregado com relação a Deus: "Diante (Lifnê) do Eterno" (Génesis
18:22). Ainda neste sentido temos: "E as minhas faces não serão vis
tas" (Êxodo 33:23), conforme a interpretação de Ünkelos: "E os que
estão diante de Mim não poderão ser vistos" . em uma indicação de que
existem também criaturas superiores cujas existências não podem ser
percebidas pelo ser humano, qua.is sejam, as Inteligências Separadas90 e
a relação destas com Deus -que estão diante Dele e sempre entre Suas
mãos, ou seja, a força da Hashgachá (Proteção Divina) está sempre com
eles. De fato, o que se pode apreender da realidade - quero dizer, se
gundo Onkelos-é oque estáabaixo daquele nível de existência, a saber:
coisas dotadas de matéria e forma. Sobre estas se afirma: "E verás o que
há atrás de mim",91 ou seja, aqueles seres; é como se eu me incllnasse e
os colocasse atrás de mim (metaforicamente: sem contato com o Ser
Divino). Eis que, mais adiante,92 você ouvirá a minha interpretação para
o pedido de MoshéRabênu (Moisés, nosso Mestre), que a paz esteja com
ele.
Paním (faces) também é um advérbio de tempo - "antes" (códem)
ou ·em outro tempo" (lifnê): •Antigamente (Leranim) em Israel" {Rute
4:7); "Em tempos passados (lefanim) fundaste a terra" (Salmos 102:26).
Finalmente, panJm também denomina atenção ou cuidado (hizaher}
e Proteção Divina (Hashgacha1: "Não favorecerás [quando não tem ra
zão) as faces do mendigo (fené-dáÍ) • (Levítico 19: 15); "Ecolocar-se-Ao as
suas faces (unessú faním)�· {Isaías 3:3); "Que não coloca a face {issá
faním)94" (Deuteronômio 10:17) - e são muitos [os exemplos]. Neste
sentido também é declarado: "Coloque o Eterno o Seu rosto (Paná0
sobre ti e ponha em tl a pai". cujo sentido é: que a Hashgachá (Proteção
Divina) nos acompanhe.
Chái é o termo para um ser que floresce e sente: "Todo réptil que Vive
(chá1r (Gênesis 9:3). Também denomina a cura de uma enfermidade
muito grave: "E viveu (vaiech1} de sua enfermidade" (Isaías 38:9); "No
acampamento até reviverem (chaiotám} " {Josué 5:8); e também: "Car
ne Viva (chá1)" (Levítico 13:10). Mávec significa "morte" e "grave en
fermidade": •E morreu ( Miiamát) �e,,
coração dentro dele, e tomou- se
qual uma pedra" (I Samuel 25:37), a saber: sua enfermidade era grave.
Sobre isso, foi explicado por um "filho de uma mulher de Tsarfát":104
"E sua enfermidade era muito grave, até que não lhe restava ma.is alma
vivente· (I Reis 17: 17), e é como se fosse dito: "E morreu ( Miimát} •,
ou seja, sofria de umaenfermidade muito grave e estava próximo à morte,
assim como aconteceu a Navál quando ouviu o relato de sua mulher. 105
104 Trata- se de Acháv (Acabe) que. seguindo a orientação do Profeta Elias. foi
à cidade de Tsarfát. onde foi como que adotado por uma viúva. oonforme
a passagem bíblica: "Então veio a palavra do Etemo para ele dizendo: Le
vante-se e vá para Tsarfata, que pertence a Sidon, e estabeleça-se lá, onde
ordenei a uma mulher viúva para te sustentar" (I Reis 17:9). Desde então,
Acháv passa a ser tratado como filho da viúva (NT).
105 Ma.tmõnides refere-se aqui ao episódio emque Abtgall viu David e lhe dis•
se, a respeito do seu marido, Navál: "Não se importe o meu senhor com
este homem de Bllalál, a saber. com Navál; porque o que slgnlftca o seu
168 MAIMÔNIDES
nome. isto ele é. Naval é oseu nome e a inlàmia (neva/d) está com ele· (l
Samuel 25:25).
I06 Segundo Maeso, tradutor de O Cuia dos Perplexos para o espanhol. trata- se
respectivamente de apoplexia e "sufocamento histérico" e então cita Munk,
tradutor para o francês: "Trata-se da enfermidade denominada pelos anti
gos 'estrangulamento ou sufocamento do útero'. mencionada por Aristóte
les, Galeno e Plínio; e é 'uma afecção deste órgão, na qual as mulheres ex
perimentam movimentos espasmódicos e parecem sentir como se houves•
se uma bola na garganta /,globus hystericus) as sufocando'".
I 07 Talmudda Babilônia, Kidushin.
I 08 Talmudda Babilônia. Bemchót.
CAPITULO 43
CANTO (CANÁF)
{Rute 3:9), cujo significado interpreto: "Estenda teu segredo sobre tua
.
serva. .
Quanto a isso, para mim canáfé uma metáfora para o Criador e os
anjos, pois os anjos não possuem corpos, de acordo com a nossa opi
nião, como será explicado.110Assim, o sentido das palavras "Que vieste
buscar refúgio sob suas asas" {Rute 2: 12) é: "Que Vieste buscar refúgio
sob o seu segredo' '. E sempre que o termo canáfse aplica aos anjos, tem
o sentido de ocultar. Você deve ter prestado atenção às palavras "Com
duas cobria seu rosto e com duas cobria seus pés" {Isaías 6:2), isto é: a
causa da sua existência (a saber: do anjo) está demasiado oculta e es
condida: "seu rosto" refere-sea esta causa e "seus pés" às coisas das quais
ele (a saber: o anjo) é a causa, conforme esclareci 111 sobre o uso do ter
mo polivalente résual (pé), estas cois3S também estão escondidas, pois
as ações das Imel!gências112 são ocultas: estas somente são explicadas
por meio de estudo, por doismotivos, um referente a nós e outro a eles,
a saber: a debilidade da nossa percepção e a dificuldade de apreensão
da [Inteligência) Separada em sua verdadeira realidade. E com relação
às palavras "E com duas voava" (Isaías 6:2), mais adiante esclarecerei,
em um capitulo à parte,113 por que se faz a relação do movimento do
vôo com os anjos.
116 Capítulo 4.
117 Capítulo 55.
CAPfTULO 45
OUVIR (SHAMÁ)
seja atendida, ou não responder ao seu clamor nem atender ao seu pe
dido: "Escutarei (Sham6a Eshmá) seu clamor" ('Êxodo 22:22); "E Eu
escutarei ( �shamáu), porque Eu sou misericordioso" (Êxodo 22:26);
"Inclina, Eterno, teu ouvido e escuta (veshami)" Gl Reis 19:16); "E não
escutou (shamd) , o Eterno, vossa voz, e não inclinou os ouvidos para vós"
(Deuteronômio 1:45); "Também quando multiplicarem a oração, Eu
não escutarei (shoméa)" (Isaías 1 : 15); "Porque Eu não te escuto (shoméa) "
Oeremias 7:16); e são muitos [os exemplos].
Eis que lhe apresentarei, sobre estas metáforas e imagens, aquilo que
saciará a sua sede e esclarecerá suas dúvidas, e lhe serão explicadas todas
as questões até que não tenha mais qualquer dúvida sobre o tema.119
119 Maimõnides refere-se aqui a todos os sentidos físicos, não somente à audi
ção (NT).
CAPÍTULO 46
SOBRE A ATRIBUIÇÃO DE SENTIDOS E SENSAÇÕES A DEUS
121 sedacá: aqui, no sentido de uma boa ação, uma esmola (NT).
T
122 "(...} ou seja. algo de valor ínfimo. O grão de caroba. cujo nome científico
é ceratonia siliqua. figurava entre os pesos dos farmacêuticos árabes e equi•
valia a quatro grãos de cevada (...)" (Munk, citado por Maeso).
123 Veja em Aristóteles, Física. livro 5, capítulos 2 e 25 (Maeso).
O GUI A DOS PERPLEXOS !77
percepções) aos Profetas para que estes nos comuniquem, Ele nos é des
crito como ouvindo e vendo, em outras palavras: que Ele "percebe" aque
las coisas vistas e ouvidas, e então as conhece; e também nos é descrito
que Ele fala, ou seja: que certas coisas são transmitidas Dele para os
Profetas, e este seria o caso da Profecia. Isso será suficientemente escla
recido.124 Assim como não pensaremos outra coisa da nossa existência
que não seja mediante o queproduzimos por contato, do mesmo modo
Deus é descrito como ativo (e posto que as pessoas comuns não consi
deram como um ser vivo senão aquele dotado de alma, também nos
dirão que Ele possui alma, - apesar de o termo "alma" ser polivalente,
como foi explicado 125 - e é por isso que Ele vive).
Já que todas estas atividades não podem ser realizadas senão através
dos órgãos corporais, todos estes foram aplicados a Ele metaforicamente,
pois é por meio deles, dos pés e das solas dos pés, que há movimento
espacial; por meio do ouvido, do olho e do nariz existem a audição, a
visão e o olfato: pela boca, língua e voz existem a fala e a matéria da fala;
e as mãos, os dedos, a palma e o braço são os órgãos utilizados para se
produzir algo. Em suma: que a Ele (que está acima de qualquer imper
feição!) foram atribuídos metaforicamente estes órgãos corporais para
expressar, por meio deles, as suas ações; e estas ações Lhe foram atribuí
das metaforicamente para exprimir, por meio destas, uma dada perfei
ção, que não tem relação com o movimento. Um exemplo: eis que a
Deus são atribuídos metaforicamente olhos, ouvidos, mãos, boca e lín
gua a fim de mostrar, assim, visão, aud'ição, atividade e fala; e a visão e
a audição indicam apenas a percepção. Sobre isso você encontrará na
língua hebraica que a percepção de um sentido estará no lugar da per
cepção de outro, conforme foi dito: "Vejam a palavra de Deus" Gere
mias 2:31), como se fosse: "Ouçam [a palavra de Deus]", pois o pre
tendido era: "Percebam o sentido da Sua fala". Assim também: "Veja o
cheiro do meu filho" (Gênesis 27:27) , como se fosse dito: "Sinta o cheiro
do meu filho", pois o pretendido era a percepção do seu cheiro. E neste
sentido está dito: "E todo o povo via os trovões" (Êxodo 20: 18), embo
ra esta passagem também seja uma "visão profética", como é sabido e
notório pelo povo [de Israel]. E a atividade e a fala foram atribuídas
metaforicamente a Ele, para expressar?. influência emanada Dele, como
será explicado. 126
127 Idem.
128 Capítulo 53.
129 Capítulos 26 e 33.
130 Como se fosse: "Acendeste a Minha ira (NTI.
131 Capitulo 39.
O CUIA DOS PERPLEXOS 179
sões: " Comovem-se minhas entranhas por Ele" Oeremias 31:19); "A
emoção deTuas entranhas"(Isaías 63: 15), aqui quer dizer também"co
ração" , pois o termo "entranha" é usado em sentido geral e particular:
significa os intestinos em particular, bem como todo órgão interno em
geral, inclusive o coração, como fica demonstrado na expressão: "E tua
Terá está dentro das minhas entranhas• (Salmos 40:9), o que equivale
a dizer: "Dentro do meu coração". Por isso que em: "Comovem-se
minhas entranhas"; "A emoção de tuas entranhas" , o termo (hamiá:
gemido, comoção) se aplica de fato mais ao coração do que aos demais
órgãos: "Comove-me o coração" Oeremias 4: 19). É por isso que o ombro
não é aplicado metaforicamente a Deus, porque é um instrumento de
transporte, como é notório, e também porque o objeto transportado
estaria em contato com ele. Com muito mais motivo os órgãos de ali
mentação132 não foram atrib uídos metaforicamente a Deus, pois são
reconhecidos como imperfeitos logo de início.
A condição de todos os órgãos, na verdade, é uma só, tanto (os] e x
ternos como (os) internos: todos são instrumentos para as diversas ati·
vidades da alma. Destes, há aqueles necessá.rios à conservação do indi·
víduo por um tempo, como todos os órgãos internos; outros são ne
cessários à manutenção da espécie: os órgãos de reprodução; outros ainda
são para a restauração da condição do indivíd uo e para a perfeição de
su as atividades, como as mãos, os pés e os olhos -todos para a perfei
ção de movimento, ação e percepção.De fato, a necessidade de movi
mento para os animais existe para levá-los àquilo que lhes traz bem-estar
e livrá-los do que lhes é prejudicial . A necessidade real dos sentidos é
conhecer o que é prejudicial e o que é benéfico. O ser humano também
necessita de habilidades para preparar seu alimento, vestuário e habita
ção, pois isso é imprescindível à sua natureza, ou seja ,ele precisa prepa
rar aquilo que lhe é benéfico; eis que também serão encontradas algu
mas habilidades em uns tantos animais, cada uma conforme a sua ne
cessidade.
Eu não vejo como qualquer pessoa possa duvidar de que Deus de
nada necessita para preservar a Sua existência ou restaurar a Sua condi
ção. Portanto, Ele não possui órgãos , é incorpóreo; de fato, S uas ações
(ocorrem] por meio da Sua essência, não por órgãos.Sem dúvida, as
potencialidades compõem os órgãos; portanto, Ele não possui potên•
cia - ou seja, nada há Nele, além da Sua essência, que possa fazê-lo
143 Pa"e 3, capitulo ), "onde o autor afirma que se trata de 'rostos humanos'
semelhantes aos de certos animais. ·Chaidf são os·seres celestes' de Ezequiel,
que. segundo o autor. designam as esferas e não os anjos (ou Inteligências
das esferas). As causas do movimento das esferas. então, são quatro: sua
esfericidade, alma, Inteligência e a lntellgéncia Separada Suprema, ou Deus,
a quem os anjos · ou inteligências separadas - aspiram como ideal · (Munk,
em Maeso).
144 Para os primeiros capítulos da Parte 3.
CAPITULO 50
SOBRE A CONVICÇÃO DA CRENÇA
Você que se interessa por este tratado, saiba que a crença não é um con
ceito dlto pela boca, mas representado pela alma, quando se acredita
em algo tal como é representado. Caso lhe bastar, com relação aos con
ceitos verdadeiros ou que você supõe verdadeiros, expressá-los oralmente
sem representá-los [mentalmente) nem acreditar neles- inclusive sem
buscar a verdade neles - isto é muito fácil: assim como encontrará mui
tos entre os ignorantP..s , que professam crenças que nbsolutamente não
compreendem. Entretanto, se lhe vem ao coração elevar-se para um grau
superior - o grau do pensamento especulativo - e convencer-se de
que Deus é Um, de Unidade verdadeira, até admitir que nada compos
to se encontre Nele, nem pensar em qualquer possibilidade a respeito
Dele; saiba que a Ele não cabe nenhum atributo de forma alguma e em
absoluto, e assim como Dele se afasta a idéia de corporeidade, também
se apartará da Sua essência a posse de qualquer atributo.
Entretanto, se alguém acredita que Ele é Um e possui muitos atri
butos, este diz que Ele é Um, mas em seu pensamento acredita que Ele
seja muitos . Esta é a doutrina dos cristãos: "Ele é Um , mas Ele é três , e
os três são um",145 como se dissesse: "Ele é Um, mas possui muitos atri-
butos, e Ele e Seus atributos são um", mesmo que se aparte dacorporei
dade e acredite na formaabsolutamente simples . Como se anossa in
tenção e investigação fosse: " Como diremos?" e não: "Como acredita
remos?". Não há crença a não ser por meio darepresentação, pois a
crençaestá naconvicção naquilo que é representado, que está forada
mente conforme estao representa. Se estaé aconvicção, ou seja, que o
contrário disso é absolutamente impossível: e não se encontrar namente
espaço paraarejeição destacrençanem se admitir apossibilidade do
seu contrário, então esta é verdadeira.
E quando· você se livrar dos desejos e hábitos , adquirir compreensão
e se capacitar naquilo que eu lhe direi nos próximos capítulos sobre se
apartar dos atributos [a Deus]. você necessariamente irá se convencer
daquilo que falamos e será daqueles que concebem a "Unidade de
Deus" (Ichud Hashém); e não será como quem fala isso pela boca,
mas não concebe asuaidéiae pertence à categoriasobre os quais se
diz: "Tu estás próximo dos seus lábios e longe das suas entranhas"146
(Jeremias 12:2). Contudo , é necessário ser umapessoa da categoria
daqueles que concebem e emendem averdade - aindaque não aex
pressem -, conforme orientam os virtuosos nestas palavras:"Ponderai
em vossos c orações enquanto estais em vossos Jeitos e suspirai - Seia"
(Salmos 4:5) .
152 Aqui o sofismo, ao que parece, é utilizado em seu sentido pejorativo, como
uma filosofia vã que se desenvolve como pura prolixidade, sem seriedade
ou solidez - provavelmente referindo-se ao estilo verbomigjoo e pomposo
empregado pelos mutakdlemim em suas obras; contudo, o sofismo caracte
riuiva•se, dentro da mosofia grega entre os séculos V e IV AEC, por
ensinamentos e doutrinas de diversos mestres da eloqUlncia, denominados
sofistas, que, além de ministrarem a.:las de oratória e cultura geral para os
cidadãos gregos, partlclpavam de acirrados debates filosóficos, religiosos e
políticos da época.
153 Capltulos 53 e 64.
CAPÍTULO 52
AS CINCO ESPÉCIES DE ATRIBUTOS
154 Capítulo 5 l.
200 MAIMÔNIDES
cado em diversos lugares sobre este tema ,158 o movimento é inerente aos
corpos; porém, Deus é incorpóreo e não há relação entre Ele e o tempo,
tampouco entre Ele e o espaço.
Eis, portanto , o espaço para a investigação e especulação: será que
existe entre Deus e algo de Suas criaturas qualquer relação verdadeira
que Lhe possa ser atribuída? De fato não há correlação entre Ele e algu·
ma de Suas criações - isto fica patente logo de início, pois uma das
propriedades entre dois correlatos é a mesma reciprocidade, e a existência
do Eterno, bendito seja, é necessária, enquanto a existência dos demais
é uma possibilidade , como será explicado; 159 assim sendo , não há cor
relação . Na verdade, pensa-seque é possível haver alguma relação entre
eles, mas não é, pois é impossível representar uma relação entre a men
te e a visão - embora , na nossa opinião , ambos estejam compreendi
dos em uma mesma existência - então, como se pode representar uma
relação entre Ele e os outros, se nada há, absolutamente, em comum
entre eles? Na nossa opinião, atribui-se existência a Ele e às outras coi·
sas por absoluta associação, IW posto que, de fato, a relação sempre se
encontra necessariamente entre duas coisas pertencentes a uma mesma
espécie; entretanto, quando pertencem a uma mesma classe, 161 não há
relação entre elas. Não se afirma: "Este avermelhado é mais forte - ou
mais fraco - do que este esverdeado (ou equivalente) ", apesar de am·
bos pertencerem a uma mesma classe: a cor. Então, quando duas coisas
pertencem a duas classes distintas, não há absolutamente qualquer re
lação entre elas , nem sequer em princípio, apesar de pertencerem a uma
mesma espécie.Eis um exemplo: não há relação entre uma centena de
cõvados 162 e o calor de uma pimenta, pois o último é da classe da qua
lidade, enquanto o primeiro é da classe da quantidade; também não há
relação entre a sabedoria e a doçura , ou entre a modéstia e a amargura,
apesar de todos estes pertencerem a uma mesma espécie, mais geral, de
qualidade. E como pode haver relação entre Deus e Suas criaturas, con
siderando-se a grande diferença quanto ãs suas verdadeiras existências,
em que não há distância maior de sentido do que esta? Se houvesse re-
lação entre eles, seria necessário que Deus estivesse sujeito a um aciden
te derivado desta: mesmo que não fosse um acidente à essência de Deus,
ainda seria, certamente, algum acidente. Assim, não há qualquer forma
de se aplicar um atributo a Deus, mesmo que seja por meio de uma
relação, pois, na verdade, este, que é o mais evidente entre os atributos,
é o que mais necessita de cuidado na sua atribuição a Deus, pois não
implica necessariamente pluralidade em referência ao Eterno nem
mudança na Sua essência, decorrente da mudança das coisas a Ele rela
cionadas.
QUINTA ESPtCIE: entre os atributos necessários, eis que uma coisa é
descrita por suas ações. Por "suas ações• não quero dizer a sua capaci
dade inerente para um certo ofício - como se lhe dissesse: um "car
pinteiro" ou "ferreiro" - pois estes pertencem à espécie de qualidade
mencionada [anteriormente): mas por "suas ações" quero dizer a ativi
dade executada, como se afirmasse: "Reuven, aquele que produziu
artesanalmente esta porta, construiu aquele determinado muro e teceu
aquela roupa". Esta espécie de atributo está apartada da essência à qual
está relacionada, e por isso é evidente que pode ser aplicada a Deus,
depois que você souber que estas diferentes atividades não emanam
necessariamente das diversas coisas presentes na essência do agente,
como será explicado; 163 mas todas as diferentes atividades de Deus
emanam da Sua essência, e não de algo acrescido a esta, como já escla
recemos. 164
Eis o que fica claro neste capítulo: que Deus é Um em todos os as
pectos, não há pluralidade Nele e nada acrescido à Sua essência: e os
muitos atributos de significados parciais, encontrados nos livros [da
Blblia] e que nos orientam sobre Deus, trazem o aspecto da pluralidade
de Suas ações, não uma pluralidade em si mesmo, e alguns deles nos
guiam para a Sua perfeição, conforme aquilo que consideramos ser a
perfeição, como explicamos. 165 E. quanto a ser ou não possível que uma
essência simples que não admite pluralidade em si mesma faça diferen
tes ações, isto será explicado por meio de exemplos.
decorrência das várias atividades [de Deus]. mas afirmam que, certa
mente, uma essência pode realizar diversas atividades, contudo seus
atributos essenciais não derivam das suas atividades, pois é Impossível
que Deus tenha criado a si mesmo.
E quanto a estes atributos, aqueles que os consideraram •essenciais"
estão divididos a respeito de seus números, pois cada um segue deter
minada passagem dasEscrituras. Mencionar-te-ei aqueles sobre os quais
todos concordam, considerandocomo algo derivado da razão e nãoda
linguagem das palavras de um profeta . Eis que são quatro atributos: viver,
poder, saber e querer. Eles dizem que são quatro coisas diferentes e são
perfeições, sobre as quais seria mentira afirmar que Deus esteja positi
vamente isento delas e seria Impossível incluí-las em Suas atividades.
Esta é a explicação deles.
Contudo, saiba que a idéia da sabedoria aplicada a Deus equivale à
da vida, pois todo aquele que percebe a si mesmo é, ao mesmo tempo,
vivo e sábio; istoquando se entende por "sabedoria" a autoconsciência.
[Quanto a Deus] o Ser que compreende é, em si mesmo, o Ser percebi
do,166 sem dúvida - posto que, conforme a nossa opinião, nãoé com
posta de duas partes: uma que percebe e outra que não percebe, como
uma pessoa, que é constituída de uma alma que percebe e de um corpo
que não compreende. E quando queremos dizer: "sábio", é no sentido
de autoconsciente, sendo sabedoria e vida uma coisa só. Entretanto, eles
não atentam a esta idéia, mas se voltam para as criaturas de Deus .
Assim também é, sem dúvida, com o podere a vontade: não há modo
de cada um deles existir em Deus na Sua essência, de modo que Ele não
tenha poder sobre si nem possa atribuir-se uma vontade - não é pos
sível alguém imaginar tal coisa; mas estes atributos, na verdade, são
considerados quanto às diversas relações entre Deus e Suas criaturas, ou
seja, que Ele tem poder para criar , vontade para conceder existência
conforme o Seu desejo e entendimento sobre aquilo que trouxe à exis
tência. Portanto, já lhe expliquei que estes atributos também não se
referem à Sua essência, mas às Suas criaturas .
Sobre isso, nós, a verdadeira comunidade de unitaristas,167 declara
mos: assim comorejeitamos que exista algo acrescido à essência de Deus,
por meio do qual Ele teria criado os céus, ou algo diferente peloqual
criou os elementos, ou ainda uma terceira coisa pela qual criou as lnte-
ligências, tampouco afirmamos que Ele tenha poder por meio de algo
acrescido [à Sua essência]. ou por outra coisa tenha vontade, ou ainda
por meio de uma terceira compreenda Suas criaturas; mas afirmamos
que Ele é uma essência simples, sem absolutamente qualquer elemento
. adicional - esta essência criou e conhece tudo o que criou, não por
qualquer elemento acrescido; e quanto a estes diversos atributos, não
importa se são referentes às Suas atividades ou às diversas relações entre
Ele e os seres _movidos, assim como também já esclarecemos168 quanto
ao verdadeiro sentido da relação, conforme o modo de pensar dos seres
humanos. 169
É nisto que devemos acreditar quanto aos atributos citados nos L i
vros dos Profetas ou quanto a alguns destes atributos que apontam para
a perfeição, como uma analogia às perfeições tal como as entendemos,
conforme explicaremos.170
que compreende Deus "encontrará graça aos Seus olhos", não quem so
mentejejua e reza. Todo aquele que O conhece, é desejado e objeto da
Sua presença: 172 e aquele que O ignora é objeto da Sua ira173 e afastado.
Conforme a dimensão de sabedoria e ignorância, serão a vontade e a
ira, a aproximação e o distanciamento. Já saímos da intenção do capí
tulo, então retornemos ao tema.
Quando [Moisés] pediu para compreender os atributos [de Deus) e
o perdão sobre a nação, que foi perdoada, e em seguida pediu para al
cançar a essência de Deus, da seguinte forma: "Mostra-me a Tua gló
ria" (Êxodo 33:18) , foi-lhe atendido o primeiro pedido, qual seja: "Faze
me conhecer Teus caminhos" (Êxodo 33:18), com a resposta: "Eu farei
passar todo o Meu bem diante de ti" (Êxodo 33: 19); e para a segunda
questão foi lhe respondido: "Não poderás ver o Meu rosto (...)" (Êxodo
33:20). Quanto à expre.ssão: "Todo o Meu bem (...)", esta encerra uma
alusão à apresentação, diante Dele, de todos os seres existentes, dos quais
foi dito: "E viu Deus tudo o que fez e eis que era muito bom" (Gênesis
1:31); por "apresentação diante Dele" quero dizer que compreende suas
naturezas, suas mútuas conexões e o próprio modo de governá-las, tan
to no geral como no particular; e se refere a este assunto ao dizer: "Em
toda a Minha casa, ele é [o mais] fiel!" {Números 12:7), em outras pa
lavras: ele compreendeu que toda a realidade do mundo [de Deus] está
genuinamente estabelecida (pois as falsas teorias não se estabelecem).
Portanto, a compreensão de que estas ações são os atributos de Deus e,
por meio delas, Ele é conhecido. A prova de que Ele é compreendido
por Suas ações é que foi dado compreender [a Moisés) tão-somente os
atributos das Suas ações: "Deus piedoso e misericordioso, tardio em irar
se (...)" (Êxodo 34:6). Assim, está claro que os "caminhos" que [Moisés]
pediu para conhecer e, efetivamente, lhe foi dado conhecer, são as ações
que emanam de Deus. Nossos Sábios as chamam de midót (qualidades
morais) e falam de treze midót. Este termo também é usado quando a
referência é ao ser humano: "Quatro miâótdos que dão tsedacá (cari
dade) 174 " (Ética dos Pais 5: 13), "quatro midót dos que vão ao Bet
Hamidrásh (Casa de Estudos) " (Ética dos Pais 5:14), são muitos os
exemplos. Não significa que Deus possua midót, mas sim que realiza
ações semelhantes às que derivam das nossas midót, isto é, das nossas
disposições anímicas -não que Ele seja dotado de disposições anímicas.
l 77 " Não no sentido específicodo termo -ainda que tenham existidoem Israel,
como Samuel, aqueles que ostentaram ambas as qualificações -mas. sim ,
no sentido genérico de 'representante , porta-voz de Deus'. Veja Eclesiastes
7:27" (Maeso).
O CUIA DOS PERJ'WC05 213
que fizeram a seus deuses, e pequeis contra o Eterno, vosso Deus" (Deu
teronômio 20: 18),querdizer: não pense que isto seja crueldade ou desejo
de vingança, mas sim uma ação exigida pela razão humana, a fün de
aniquilar todo aquele que se desvia do caminho da verdade e para que
sejam afastados todos os obstáculos que se interpõem à perfeição, que é
perceber Deus.
Contudo, é necessário que os atos de misericórdia, perdão , clemên
cia e graça, advindos do governante de uma nação, sejam muito mais
freqüentes d o que os de punição, posto que as "treze mid6t (qualidades
morais)" são todas "qualidades de misericórdia", exceto uma, a saber:
"Visita a iniqüidade dos pais nos filhos" (Êxodo 34:7), pois o escrito:
"o culpado não desculpará" (Êxodo 34:7) significa: ·o desarraigado não
arraigará", como na expressão: "E culpada, sobre a terra se assentará"
(Isaías 3:26).
Saiba que a expressão "Visita a iniqüidade dos país nos filhos" se
refere, de fato, ao pecado de avoda zará (idolatria) e não a outro. A evi
dência disto está nas palavras dos Dez Mandamentos: "Sobre terceiras
e sobre quartas gerações, aos que Me odeiam" (txodo 20:5) - e s o
mente o idólatra será denominado "aquele que odela":178 "Porque to
das as abominações que o Eterno odeia, elas têm feito a seus deuses"
(Deuteronômio 12:31). E, na verdade, bastam para Deus as "quartas
gerações", porque é o extremo daquilo que é possível ao homem ver da
sua descendência: a "quarta geração". E quando forem mortos os cida
dãos idólatras de uma nação, serão mortos desde o ancião até o seu
bisneto, que é a quarta geração: é como dizer, dentre o conjunto dos
seus mandamentos - que estão incluídos em seus atos, sem dúvida -
que será morta a geração dos idólatras, mesmoque sejam crianças,jun
tamente com seus pais e avós. E encontramos este mandamento com
freqüência na Torá, como o que foi ordenado para a "cidade banida":
"Então ferirás aos moradores daquela cidade ao fio da espada, destruin
do-a, e a tudo o que estiver nela" (Deuteronômio 13: 16) - tudo isso
para apagar este registro, que gera um grande prejuízo, conforme já
explicamos.
E nos afastamos novamente do tema do capítulo, mas explicamos
por que aqui bastou, com respeito às ações de Deus , a menção apenas
destas (treze midórj, a saber: porque Ele as considera necessárias para o
governo das nações, posto que a maior elevação do homem é asseme-
180 Capitulo 52 .
181 Veja na Parte 2. capítulo 4. e na Parte 3, capitulo 14 .
218 MAIMÔNIDES
que Deus não está sujeito a mudança e nada pode renová-Lo de forma
alguma, tampouco Deus se submete ao tempo, de modo que exista
qualquer analogia entre Ele e Suascriaturas relacionada ao tempo, e possa
ser "Primeiro• e "Último•. Portanto, estes termos todos são usados ·con
forme a linguagem dos seres humanos·.
Do mesmo modo, quando dizemos "Um" ,186 seu significado é de que
nada se assemelha a Ele, e não que o atributo da unidade se aplique à
Sua essência.
186 "Escuta, Israel! YHVH é nosso Deus, YHVH é Um!" (Deuteronômio 6:4).
CAPITULO 58
A DEus· Só PODEM SER APLICADOS ATRIBUTOS NEGATIVOS
(COM MAIS PROFUNDIDADE DO QUE NOS CAPITULO$ ANTERIORES)
não pertence à espécie vegetal nem mineral. Além disso, caso veja a casa
de um homem, e souber que lá há um corpo, embora não saiba o que é,
então perguntar: "O que há nesta casa?", e lhe responderem: "Não é
mineral nem vegetal", então você já terá alguma identíficação e saberá
que se trata de um ser dotado de alma - mesmo que ignore que ser é
este. Eis que, deste modo, os atributos negativos têm algo em comum
com os positivos: é impossível que não ofereçam alguma identificação,
embora esta não consista da identificação, mas sim da remoção, do
negado, do conjunto daquilo que pensávamos que não deveria ser ne•
gado. Na verdade, aquilo que distingue os atributos negativos dos po
sitivos é que estes, embora não identifiquem o ser, voltam-se para uma
parte do conjunto do objeto que desejamos conhecer -seja esta uma
parte da sua essência ou um de seus acidentes; e os atributos negativos
não nos informam coisa alguma da essência que desejamos conhecer,
qualquer que seja esta, exceto por acidente, como exemplificamos.
Após esta introdução eu direi, por comprovação, que Deus é uma
existência necessária, e não há composição Nele, como será demons
trado, 188 pois apenas apreendemos que Ele é, mas não o que é. Assim
sendo, é falso afirmar que Ele tenha um atributo positivo, pois não há
Nele existência externa à Sua realidade, de tal modo que o atributo
possa indicar que haja, que Ele seja composto e indique suas duas
partes, nem que Ele tenha acidentes e que o atributo também possa
indicá-los; portanto, não há absolutamente nenhum atributo positivo
aplicável a Deus.
Na verdade, os atributos negativos são aqueles necessários para orien
tar a razão para aquilo que devemos acreditar a respeito de Deus; posto
que, da parte destes, não se chega a qualquer pluralidade, e orientam a
razão até o limite do que é possível ao homem apreender sobre Deus.
Eis um exemplo:já nos foi demonstrada a existência necessária de algo
externo àquelas coisas apreendidas pelos sentidos, cuja compreensão é
captada pela razão, e afirmamos que "este existe", no sentido de: sua
inexistência é um equívoco. Em seguida, percebemos que a existência
deste ser não é como a existência dos elementos, por exemplo, cujos
corpos são inanimados, então afirmamos que "Ele vive", cujo sentido
é: Ele não está morto. Depois disso nos convencemos de que a existên•
eia deste ser também não é como a existência doscéus, que são um corpo
vivo, e dizemos então que Ele é incorpóreo. Também percebemos que a
céus não são leves, pesados ou passivos, portanto não são sujeitos à ação;
tampouco são dotados de sabor e aroma ou algum atributo negativo
similar - tudo isso devido à nossa ignorância a respeito da sua maté
ria. E o que dizer de nossos intelectos, quando nos esforçamos por
apreender Aquele que é isento de matéria, o mais simples dentre a sim
plicidade, de existência necessária, carente de causa e que nada há que
possa ser adicionado à Sua essência perfeita (cujo sentido da Sua perfei
ção é a ausência de imperfeição, conforme já explicamos)? Pois somen
te compreendemos que Ele é, que existe Um ser ao qual não se assem e
lham quaisquer das criaturas que trouxe à existência, e nada tem em
comum com elas, e não há pluralidade Nele nem fraqueza de conceder
existência ao que Lhe é diferente: e cuja relação com o universo é a do
marinheiro com a embarcação (eis que esta também não é uma relação
ou comparação apropriada, mas tão somente para orientar a razão de
que Deus governa as criaturas no seguinte sentido: Ele as perpetua e as
mantêm em ordem, como é necessárioY. Eis que este tema ainda será
explicado com uma amplitude maior.
Louvado seja Aquele porque, na contemplação da essência divina
pelos intelectos, suas percepções se resumem a uma compreensão e
entendimento limitados; e quando examinam como os atos de Deus
procedem da Sua vontade, a compreensão deles se apresenta como ig
norãncia; e quando as linguagens se esforçam em engrandecê-Lo por
meio de atributos, toda eloqüência se resume à fraqueza e limitação.
CAPITULO 59
MAIS EXPLICAÇÕES SOBRE OS ATRIBUTOS POSITNOS E NEGATIVOS
os que são limitados para a especulação, isto não ficará claro por meio
de demonstração e o assunto permanecerá duvidoso: aquilo pode ou não
ser encontrado em Deus? Outro ainda, entre os cegos, aplicará isto a
Deus como atributo positivo, embora sua negativa esteja clara. Do
mesmo modo, demonstrarei191 que Deus é incorpóreo: alguém duvi
dará e não saberá se Ele é corpóreo ou incorpóreo: outro ainda declara
rá que Ele é corpóreo e se colocará diante Dele com esta crença. Veja
quanta diferença entre estas três pessoas! O primeiro, sem dúvida, está
mais próximo de Deus, o segundo, mais distante e o terceiro, mais dis
tante ainda. Caso apresentemos um quarto indivíduo e lhe esteja claro,
por demonstração, a impossibfüdade de Deus ser afetado por algo, e
para o primeiro, o que rejeita a corporeidade, isto não está claro, então
o quarto, sem dúvida, está mais próximo de Deus do que o primeiro, e
assim por diante. Quando se encontrar um homem para quem estiver
esclarecido, por demonstração, a impossibilidade de muitas coisas com
relação a Deus que, entre nós, são tidas corno possíveis de se encontrar
Nele ou Dele emanarem - mesmo que acreditemos que sejam neces
sárias -este homem será mais perfeito do que nós, sem dúvida.
Já lhe expliquei que sempre que lhe for demonstrado um atributo
negativo de Deus, mais você se aperfeiçoará; e sempre que acrescentar a
Deus um atributo positivo, será fantasioso e se afastará do seu entendi
mento verdadeiro. f por tais meios que se deve aproximar da Sua apreen
são, através do estudo e da pesquisa, até que seja conhecida a falsidade
de tudo cuja aplicação a Deus é inadmissível: não se aplicará um atri
buto positivo a Deus como se fosse algo acrescido à Sua essência, ou
que [a aplicação de um atributo a Deus) seja tido como algo perfeito
no que se refere a Deus, pelo fato de o considerarmos perfeito em rela
ção a nós, pois todas as perfeições são, até certo ponto, capacidades·
adquiridas e nem toda capacidade é encontrada em qualquer ser com
potencial de adquiri-las. Saiba que, se você aplicar algum atributo po
sitivo a Deus, estará se afastando Dele de dois modos: primeiro, tudo o
que se atribui positivamente somente é perfeição para nós; e segundo,
Ele não é dotado de nada além, pois a Sua essência é a Sua perfeição,
conforme explicamos.192
E conforme é reconhecido por todos, somos incapazes de chegar à
percepção de Deus, exceto por meio de atributo negativo, e este nada
lhe é aplicado. Eis que lhe apresentarei, em alguns capítulos deste trata
do, a demonstração acerca da impossibilídade de haver composição em
Deus, e que, em última instância, Ele é a simplicidade plena.
Não afirmo que quem aplica atributos positivos a Deus tem urna
percepção limitada Dele, admite a associação [de Deus com outras
coisas] ou O concebe diferentemente do que Ele é; mas, sim, que esta
pessoa remove a existência de Deus da sua crença sem se dar conta. Eis
a explicação: um indivíduo com a percepção limitada de algo é aquele
que apreende um tanto e ignora outro tanto - corno aquele que, no
que diz respeito ao ser humano, percebe os atributos instintivos e não
os racionais - mas não há pluralidade na verdadeira existência de Deus,
portanto não é possível se compreender algo e ignorar outra coisa sobre
Ele . Do mesmo modo, aquele que associa urna coisa à outra é o mesmo
que representará a realidade de urna entidade tal como é, e atribuirá esta
mesma realidade a outra entidade -e os atributos, na opinião de quem
os considera, não constituem a essência de Deus, mas são elementos
acrescidos à mesma. Pois bem, para quem concebe uma coisa diferen
temente do que ela é, torna-se necessariamente _impossível perceber algo
dela de maneira correta. Assim, se uma pessoa considera que o paladar
é da ordem da quantidade, eu não posso dizer que ela compreende o
paladar de ma neira diferente do que este é, mas sim que ignora a sua
realidade, não conhece este termo, nem sabe a que se aplica. Este é um
assunto bastante delicado: compreenda-o.
Em decorrência desta explicação,você entenderá que quem tem uma
perr:epção limit�d� de Deus e quem está longe de compreendê-Lo é
aquele para quem a aplicação de atributos negativosa Ele não ficou clara,
o que, para outros, está demonstrado. Portanto, quanto menos atribu•
tos negativos uma pessoa admite, maior é a limitação da sua percep
ção, conforme explicamos no início deste capítulo. Por outro lado,
aquele que aplica um atributo positivo a Deus nada sabe deste além do
próprio termo que aplica, porque a entidade sobre a qual ele imagina
que o atributo se aplica não existe, pois é algo inventado, falso. É como
se aplicar este termo a algo ausente, que na realidade não existe. Eis um
exemplo: um homem que ouviu o termo "elefante" e sabia que se trata
va de um animal, pediu para conhecer a sua forma e realidade. Então
um outro - enganado ou enganador -disse -lhe: "Trata-se de um
animal dotado de uma pata e três asas, que vive nas profundezas do mar,
seu corpo é transparente, seu rosto tem a mesma largura, forma e con
torno do rosto de um ser humano, fala como um ser humano, ora voa
no ar e ora nada corno um peixe•. Não direi que ele descreveu um ele-
238 MAIMÔNIDES
fante diferentemente do que este é , nem que tem uma percepção limi
tada doelefante, mas sim que esta coisa que ele imaginou por meio destes
atributos é algo inventado, falso; não existe, na realidade, um ser assim,
mas é algo ausente chamado pelo nome de algo existente - como o
grifo,200 o centauro e outros seres imaginários semelhantes, que recebem
um nome de criaturas existentes, seja este um nome simples ou com
posto. É o mesmo caso nosso, a saber: Deus (louvado seja o seu Nome!)
existe e está demonstrado que Sua existência é necessária, da qual se
depreende obrigatoriamente a Sua absoluta simplicidade, como expli
carei.201 Contudo, considerar que esta essência simples de existência
necessária, conforme foi dito, seja dotada de atributos e outros elemen
tos inerentes é algo absolutamente absurdo, como foi provado por de
monstração. E se afirmarmos que esta essência, chamada Deus. por exem
plo, é uma entidade à qual são aplicados muitos atributos, então no
mearemos algo que absolutamente não existe. Assim, reflita: quão peri
goso é aplicar atributos positivos a Deus!
Portanto, aquilo que é necessário que se acredite a respeito dos atribu
tos contidos no Livro da Torá ou nos Livros dos Profetas é que to
dos eles servem para orientar sobre a perfeição divina, e não para
outra coisa, ou para descrever ações procedentes de Deus, conforme ex
plicamos.202
203 Maimõnides apresentou as letras hebraicas deste nome de Deus por exten
so, provavelmente para enfatúar que se trata do assim chamado -Teuagra
ma lmpronunciãvel". aplicado exclusivamente a Ele. Assim como os atri
butos discutidos nos capltulos anteriores, todos os demais nomes se apli·
cam às Suas ações e não a Ele (NT).
204 Literalmente: "NomeExplícitoº. Se levarmos em consideraçãoque Meforásh
pode ser ainda MufnJsh. também significa "Nome Consagrado· ou ºNome
Separado· (N11.
205 Capitulo 54.
206 Chirtk. sinal gráfico abaixo da consoante que representa a vogal "!" (NT).
240 MAIMôNIDES
207 Camàtf. sinal gráfico a baixo da consoante que representa a vogal •a" na
pronúncia sefaradí, atualmente a mais utilizada : também tem o som de "oi
na pronúncia ashkenazí (NT).
208 Abrão neste momento se volta para um dos três homens que estavam para•
dos diante dele, à porta da sua tenda. Segundo a tradição, eram três anjos
na forma de homens (NT).
209 Os Cohanim, descendentes de Aarão, consagrados a Deus (NT).
21O lom Kipur, o Dia da Expiação (NT).
21 I Provavelmente Maimônides se refere ao hebraico bíblico. Na época, a lín
gua hebraica era restrita a poucos. Ela renasceu no final do século XIX,
voltando a se tomar uma língua viva e corrente nos dias atuais (NT).
O GUIA DOS PERPLEXOS 241
nome derivado: ele aponta para uma idéia e um ser tácito, ao qual esta
idéia está atrelada. Como foi demonstrado que Deus não é um ser ao
qual se associam idéias, sabemos que esses nomes derivados relacionam
se à Sua atividade ou apontam diretamente para a Sua perfeição. É por
este motivo que Rabi Chanina se enervava com a expressão "o Grande,
Poderoso e Temível", as duas razões mencionadas anteriormente:212 que
estes levam a pensar em atributos essenciais, ou seja, que seriam perfei
ções existentes em Deus. À medida que estes nomes, derivados das ações
de Deus, multiplicaram-se, induziram alguns a imaginar que Ele pos
sui tantos atributos quanto o número de ações derivadas destes. Por isso,
foi prometida aos seres humanos a concreti.zação daquilo que lhes re
moverá esta dúvida -e foi dito: "Naquele dia YHVH será Um, e o Seu
nome, Um" (Zacarias 14:9), o mesmo que dizer: assim como Ele é Um,
do mesmo modo será chamado, então, por um único nome que apon
tará somente para a Sua essência, e não será [um nome) derivado. Nos
Pirké RabiEliezer (Capítulos de Rabi Eliezer, capítulo 3) foi dito: "An
tes de o Universo ter sido criado havia somente Hacadósh Baruch Hu (o
Santíssimo, Bendito Seja) e o Seu nome". Veja como ele deixou claro
que todos aqueles nomes derivados surgiram após o surgimento do
universo; e isto é verdade, pois todos estes nomes surgiram em de
corrência das Suas ações existentes no universo. De fato, quando você
examinar a Sua essência, separada de toda ação, não haverá Nele
absolutamente nenhum nome derivado, mas apenas um nome em
particular que indica a Sua essência. Não existe entre nós outro
"nome" que não seja derivado, exceto este, qual seja: • Yõd Hé Váv
Hê". que é o Shém Hamt:forásh al.>suluto - e nem pense em algo dife
rente disso.
E que não alcance o seu pensamento a loucura dos escribas de cmeiót
(amuletos, talismãs}, nem aquilo que possa ouvir deles ou que seja en
contrado em seus livros excêntricos, sobre os nomes que elaboraram,
os quais a nada levam absolutamente, e que chamam de ··shemóf (no
mes}; e acreditam que estes necessitam de • kedushá e tahará (santifi
cação e purificação) e que fazem milagres. Não convém que estas coisas
sejam sequer ouvidas por uma pessc:? integra, quanto mais acreditar
nelas.
Nada pode ser chamado ·de Shém Hameforásh a não ser este Tetra
grama ("Nome de Quatro Letras") escrito, mas não pronunciado, por
meio de suas letras. E sobre o que está dito em Sifrê,213 "Assim aben
çoarei aos filhos de Israel" (Números 6:23), seu significado é: "Assim"
nesta língua [hebraico] e "Assim" - por meio do Shém Hameforásh; e
lá está escrito: "No Micdásh (Templo Sagrado) conforme está escrito e
na Nação por seus substitutos"; e no Taimudé dito: "'Assim' - por meio
do Shém Hameforásh. Você pergunta: 'Por meio do Shém Hameforásh
ou por um nome que o substitua?' e o Taimud dirá: 'E porão o Meu
nome' (Números 6:27) - 'O Meu nome, que Me é exclusivo'".
Eis quejá lhe foi explicado que o Shém Hameforásh é este Tetragra·
ma e que somente ele leva à essência de Deus, sem associação a outra
coisa, e sobre o qual nossos Sábios afirmaram: "Que Me é exclusivo".
Apresentar-lhe-ei a razão que induziu as pessoas a acreditarem no con
teúdo dos "shemót", bem como explicarei o cerne desta questão e reve
larei os seus segredos, de modo que não lhe reste dúvida, a menos que
você queira se enganar. Veremos isto no próximo capítulo.
nos utilizamos hoje do "Alef-Dálet".215 Este " Nome de Doze Letras" sem
dúvida também denotava um sentido mais distinto do que o de "Alef
Dálet". Não era proibido ou impedido a qu alquer dos homens de sabe
doria , mas ensinado a todo aquele que quisesse estudá-lo. O mesmo não
ocorria com oTetragrama, quejamais era ensinado por quem o conhe
cia, a não ser "para seu filho e seu discípulo, uma vez por semana". A
respeito dos homens sem princípios que estudavam este ''Nome de Doze
Letras" e assim corrompiam suas crenças (assim como ocorre a todo
aquele que não é íntegro ao descobrir que a coisa não é como imagina
va no início), é também ocultavam este " nome". ensinando-o somente
aos "modestos entre os sacerdotes", a fim de abençoa r, por meio deste,
as pessoas no Micdásh (Templo Sagrado), posto que também já não se
lembravam mais do Shém Hameforásh no Mikdásh, em decorrência da
corrupção das pessoas, nossos Sábios disseram: "Com a morte de Shimon
Harsadic(Simão , o Justo), seus irmãos de sacerdócio cessaram de a ben
çoar pelo Nome"; em vez disso, abençoavam por este " Nome de Doze
Letras".E também: "De início, transmitiam o Nome de Doze Letras a
todas as pessoa s; quando se multiplicaram os corrompidos , passara m a
transmiti-lo aos 'modestos entre os sacerdotes'; e estes o inseriram nas
melodias dos seus irmãos de sacerdócio·.E disse Ra bi Tarfon: "Certa
vez subi com meu avô materno ao púlpito; inclinei meu ouvido em
direção ao sacerdote e ouvi que o inseria [o Nome de Doze Letras] nas
melodias de seus irmãos de sacerdócio".
Havia também, entre eles, um "Nome de Quarenta e Duas Letras" .
Qualquer pessoa sensata sabe que é absolutamente impossível que uma
palavra contenha 42 letras; de fato, eram muitas palavra s, cujo total de
letras era 42. Não há dúvida de que estas frases levam necessa riamente
a conceitos que se aproximam da verdadeira concepção da essência de
Deus da maneira que afirmamos.216 Na verdade, estas frases com tantas
letras eram consideradas como "um nome·, porque apontavam para um
único conceito, como se fosse um nome simples: e se multiplicara m as
frases com o intuito de tornar a idéia compreensível, pois épossível que um
conceito seja compreendido através de muitas frases. Preste atenção a isto,
Saiba que o que era ensinado eram estes conceitos, a os quais estas
frases se dirigem, e não apenas a pronúncia das letras que, em si mes-
Iniciaremos com uma proposta. Estas foram as suas palavras [de Moisés],
que a paz esteja sobre ele: "E dirão para mim: 'Qual é o Seu Nome?'. O
que direi a eles?" (Êxodo 3: 13). Como este assunto estava inserido nes
ta questão para que [Moisés) perguntasse de que maneira deveria
respondê-la? Na verdade, suas palavras: "E eles não me crerão nem
ouvirão a minha voz, pois dirão: Não apareceu a você o Eterno" (Êxodo
4:1) são bem claras, pois é evidente que se peça a qualquer um que rei
vindica a condição da profecia para que a demonstre. Mais do que isso:
se a questão era como se apresentava - ou seja, que este é apenas um
nome que deve ser pronunciado - não se pode fugir da dúvida se [o
povo de] Israel já conhecia este nome ou jamais o ouvira; caso este já
lhe fosse conhecido, não haveria por que [Moisés] não contá-lo, pois o
seu conhecimento equivaleria ao de Israel e, sejamais o tivessem ouvi
do, qual a prova de que este é o nome de Deus, mesmo que o conheci
mento do seu nome fosse comprovado? Além disso, quando Ele, após
ensinar [a Moisés] este nome, falou-lhe: "Vai-te, junta os anciãos de
Israel... E ouvirão a tua voz" (Êxodo 3:16-18), [Moisés] contestou e
afirmou: "Eles não me crerão nem ouvirão a minha voz" (t'.xodo 4:1),
embora Deus houvesse lhe afirmado anteriormente: "E ouvirão a tua
voz". Em seguida, Deus lhe perguntou: "O que é isso em tua mão? E
ele respondeu: Uma vara" (Êxodo 4:2).
248 MAIMÔNIDES
Para que você entenda e se lhe esclareça esta dúvida, preste atenção
no que vou lhe dizer. Você já conhece a profusão de teorias dos sabea
nos219 naqueles tempos, d e que todos os seres humanos, exceto alguns
indiVíduos, eram•ovdê avodá zará (idólatras), isto é: acreditavam em
fantasmas, em espíritos qu e baixavam e na ação de talismãs. Este era o
discurso de todo aquele que reivindicava autoridade para si naqueles
tempos: que possuía argumentação e demonstração para afirmar que
há um Deus no universo como um todo (tal como ocorrera com
Abrahão) ou que, sobre ele , baixavam espíritos de um astro, de um anjo
ou algo parecido. Contudo, um homem reivindicar para si a condição
de profeta e afirmar que Deus falou com ele e o enviou, isto jamais se
ouviu antes de MoshéRabênu {Moisés, nosso Mestre) . Não se engane a
respeito daquilo que recai sobre os Patriarcas, de que Deus lhes falou e
apareceu diante deles, não considere isto uma profecia a ser transmiti
da aos seres humanos ou para dirigi-los como se Abrahão, Isaac, Jacob
ou qualquer outro que os antecedera houve sse dito às pessoas: "Deus
me falou: Façam assim ou Não façam" ou "[Deus] me enviou até vocês".
Istojamais aconteceu, mas lhes era dito aquilo o que lhes cabia e não
outra coisa , vale dizer: sobre suas perfeições e retidõ es para aquilo que
fariam bem, assim como sobre aquilo que lhes cabia com relação aos
seus descendentes, nada além disto.Eles orientavam as pessoas por meio
da argumentação e do estudo, conforme nos fica claro pelas palavras:
"E às almas que haviam adquirido em Charán" (Gênesis 12:5).22º
Quando Deus se revelou a Moshé Rabénu e lhe ordenou a falar ao
povo e fazer chegar esta mensagem, [Moisés] respondeu: "Primeiro me
perguntarão se eu lhes provarei que há um Deus no universo e xistente ,
219 Habitantes de Sabá ou Sheba, nome bíblico de uma região do sul daArábia,
que corresponde hoje, em parte, à região do lêmen. Segundo algumas pas
sagens do-Gênesis e das Primeiras Crônicas, Sheba. tataraneto de Noé. era
o ancestral do Povo de Sabá. Segundo outras passagens. todavia, era des·
cendente de Abrahão. Sheba colonizou a Etiópia há aproximadamente três
mil anos. Naquele tempo, a Rainha de Sabá fez sua famosa visita ao Rei
Salomão. Situada ao longo da rota comercial entre a Índia e a África, Sheba
era conhecida como uma região muito próspera. Foi conquistada pela
Etiópia em 525. Em 572 tomou-se uma província persa e, com o surgi
mento de Maomé, caiu sob controle islâmico e perdeu a sua identidade.
Veja sobre as teorias dos sabeanos na Parte 3, capítulo 29 (NT).
220 "E tomou Abrão e Sarai. sua mulher, e a Lot, filho de seu irmão, e a todos
os bens que havia ganhado. eàs almas que haviam adquirido em Charán, e
saíram para ir à terrade Canaã; e chegaram à terra de Canaã· {Gênesis 12:5).
O CUIA DOS PERPLEXOS 249
para depois dizer que Ele me enviou". Isso porque as pessoas, exceto
alguns indivíduos, eram incapazes de apreender a existência de Deus e
o máximo que suas inteligências compreendiam não passava da esfera
celeste, com seus poderes e ações, pois ainda não conseguiam se apartar
do sensório nem haviam alcançado a perfeição intele ctual. Então Deus
transmitiu [a Moisés) um conhecimento que poderia serapreendido por
eles e assim demonstrar a Sua existência - e este é "EheiêAshér Eheiê"
(Serei o que Serei) , um nome derivado da raiz verbal • haM" que signi
fica "existir", pois "haiá' indica o sentido de havaiá (existência, ser) -
e não há diferença entre "ser" e "existir" na língua hebraica. Todo o
mistério reside na repetição da própria palavra que aponta para a exis
tência na forma de predicado. "Ashéi' (o que) requer a menção de um
predicado a ele atrelado, posto que é um termo incompleto que neces
í
sita ser composto, como no caso de "iladí' e "ilat , em árabe. O pri
meiro nome - o sujeito -é denominado "Eheié' e o segundo nome,
o seu predicado, é ·Eheii' , ou seja, Ele mesmo, o que demonstra que o
sujeito é o seu próprio predicado. Assim fica esclarecida a expressão: Ele
existe, mas não pela existência.221 Portanto, sua explicação, e significa
do, é o seguinte: oSer que é o Ser, ou seja, o Ser deExistência Necessária.
É a isto que, necessariamente, leva esta demonstração: que existe um
ser cuja existência é necessária, quejamais deixou nem deixará de exis
tir, conforme demonstrarei claramente.zzz
E quando Ele deu a conhecer [a Moisés) asprovas por meio das quais
se estabeleceria a Sua existência entre os seus sábios - porque a isso
segue: "Vai-te.junta osanciãos de Israel" (Êxodo 3: 16) - e lhe garantiu
que eles entenderiam o que Ele lhe transmitira, e aceitariam, conforme
suas palavras: "E ouVirão a tua voz" (Êxodo 3:18), Moisés respondeu
nos seguintes termos: "Suponha que aceitem que há um Deus existente
por meio destas provas inteligíveis: como provarei que este Deus exis
tente me enviou?" Então lhe foi entregue um sinal.223 Já foi explicado
que o sentido das palavras "Qual é o seu nome?" (Êxodo 3: 13) é: "Quem
é aquele que você pensa que lhe enviou?" . Portanto, foi perguntado
"Qual é o seu nome?", para engrandecê-Lo e glorificá-Lo em sua fala,
como se dissesse: "A Tua essência e a Tua verdade não podem ser igno
radas por ninguém se me perguntarema respeito do Teu nome: Do que
se trataquando se dirigem a Elepelo nome?". Na·verdade [Moisés] evitou
que fosse dito a Deus que havia quem ignorasse a Sua existência; então
os apresentou como ignorantes do Seu nome, mas não Daquele cha
mado por este nome.
Domesmo modo, o nome láé da ordem da eternidade e da existên
cia.22' Shadáié derivado d e •daí (suficiente): "E o material para a obra
lhes era suficiente (daiám) " (Êxodo 36:7); o ·shin"22" equivale a •ashél'
[contraído], como em •shecvár" (quejá).226 Portanto. seu significado é
··ashér daí (que é suficiente), cuja intenção é: Ele não necessita da exis
tência daquilo que criou nem da preservação das suas criaturas, pois a
Sua existência lhe basta. Também o nome Chassín (Forte, Imune) deri
va d e "côach" (força): "Force (chass6n) como os carvalhos" (Amós 2:9).
Do mesmo modo, Tsur (Rocha) é um termo polivalente, como já ex
pli<:: amos.221
Eis que Já lhe expliquei que todos os nomes são derivados (ou ditos
polivalentes, como Tsure similaFes) e não há "nome" de Deus que não
seja derivado, exceto o Tetragrama - e este é o Shém Hameforásh, que
não denota nenhum atributo, mas apenas a Sua existência e não outra
coisa, Portanto, denota a Existência Absoluta, que é eterna, vale dizer:
de existência· necessária.
Preste atenção naquilo que se alcançou pormeio do que foi exposto.
228 Vejamos o contexto: "Eis que Eu envio um anjo (malàch) diante de ti. para
guardar-te no caminho e para levar-te ao lugar que aprontei. Guarda-te
diante dele, escuta sua voz e não te rebeles contra ele, pois·não perdoará
vossos delitos, porque Meu nome es<á nele" (Êxodo 23:20-21).
229 Parte 2, capítulos 6 e 34.
252 MAIMÔNIDES
Não acredito que você - após ter alcançado este nível e se convencido
de que Ele existe, mas não pela existência; e que é Um, mas não pela
unidade - precise que eu lhe explique o quanto é inadmissível que se
atribua a palavra a Deus, levando em conta, sobretudo, o consenso em
nossa nação232 de que a Torá é criada, ou seja, que a palavra relacionada
a Ele é criada. De fato, se está relacionada a Deus para se tomar a locu
ção ouvida por Moshé Rabenu (Moisés, nosso Mestre), é porque Ele a
criou e produziu do mesmo modo como criou tudo o que é Sua criação
e obra. Mais adiante lhe farei chegar muitas coisas a respeito da Profe
cia;233 contudo, minha intenção aqui é lhe mostrar que atribuir a pala
vra a Deus equivale a Lhe atribuir todas as ações semelhantes às nossas.
Todas as mentes serão instruídas de que existe um conhecimento divi
no apreendido pelos profetas -os quais diziam que Deus falou com
eles e lhes dirigiu a palavra - até que saibamos que estes assuntos que
nos chegam de Deus não são apenas frutos dos pensamentos e reflexões
(dos profetas]. como explicarei, emborajá tenhamos feito anteriormente
menção a este assunto.234
CAPITULO 66
SOBRE O SENTIDO DA ESCRITURA ATRIBUÍDA A DEUS
"E as tábuas eram obra de Deus" (Êxodo 32: 16), quer dizer: sua rea
lidade era natural, não artificial, pois todas as coisas naturais são de
nom inadas "obra de Deus" [como em]: "Também estes viram a obra
de Deus"(Salmos 107:24). Conforme são citadas todas as coisas na
turais - como a planta, o animal, os ventos, a chuva e assim por
diante - d i z -se: "Quão imensa é a multiplicidade de Tuas obras,
Eterno!" (Salmos 104:24) e mais destacado do que isto são as pala
vras: "Os cedros do Líbano por Ele plantados" (Salmos 104:16), pois
com o a realidade destes é natural e não artificial, afirma-se que Deus
os plantou.
Assim também as palavras "Escritura . de Deus" (Êxodo 32:16)e o
modo como ocorre a relação entre esta Escritura e Deus já foram expli
cados naspalavras: "Escritas com o dedo de Deus· �xodo 31:18), sendo
que a expressão · com o dedo de Deus" equivale ao que foi dito dos céus:
"Obra dos Teus próprios dedos" (Salmos 8:4), sobre o quê foi esclareci
do que estes (os céus] foram criados pela "fala": "Pela palavra de Deus
os céus foram feitos· (Salmos 33:6). Já lhe expliquei que a Escritura
expressa a realidade das coisas por meio de amirá(dito)e dibúr(fala),
pois esta própria coisa da qual se diz que "foi feita pela fala" também se
diz que é "obra do dedo [de Deus)". Portanto, a expressão "escritas com
o dedo de Deus" equivale à expressão ·escritas pelo desejo de Deus", ou
seja: por Sua vontade e desejo.
258 MAIMÔNIDES
244 Eis aresposta de Naval: "Quem é David , quem é o filho de Jessé? Muitos
são hoje os servos que fogem ao seu senhor. Então eu tomaria o meu pão ,
a minha água e a carne das minhas reses que degolei para os meus tosquia·
dores e daria a homensque nãosei de onde vêm?" (! Samuel 25: 10-1 1) (Nl).
245 • . . . em seis dias o Eterno fez os céus e a terra, e no sétimo dia folgou e
descansou" (Êxodo 31 : 17).
246 Capítulo 41.
CAPÍTULO 68
DEUS É. A UMA SÓ VEZ. INTELECTO. SER INTELIGENTE E INTELI
GfVEL
253 "Ainda que brevemente, o autor apresenta aqui uma advertência bastante
oportuna ao recordar que esta obrahavia sido escrita para aqueles que adqui·
riram uma sólida formação filosófica , particularmente no campo da Psico
logia, requi;ito que deverá ser levado em conta por todo aquele que desejar
aproveitar a sua leitura . Resta dizer que o leitor deve ainda possuir uma
cultura ainda maior no campo da tradição bíblica judaica" {Maeso).
CAPITULO 69
DEUS COMO PRIMEIRA CAUSA. FORMA E FINALIDADE
254 "A denominação Primeira Causa de que o autor fala aqu;, multo familiar
aos filósofos ,rabes e escolésticos, esU intimamente ligada ao sistema de
Aristóteles, que aponta para o Primeiro Motor, ou seja , Deus, como o liml•
te máximo ao qual nossa Inteligência necessariamente alcança ao remontar
a série dos seres e causas. Esta Primeira Causa é, segundo o Estaglrlta (Aris
tóteles). uma conclição necessária da Ciência, que seria impossível se as
causasse estendessemaoinfinito, pois o ilimitado escapa à Ciência· (Munk).
Veja Aristóteles, Física. livro 8. capitulo 5: Metallslca, livro 2. capitulo 2 e
livro 12. do capitulo 7 em diante.
266 MAIMÔNIDES
ferença entre dizer Causa ou Agente. Isto porque, se você também to·
mar a Causa em estado potencial, esta será anterior ao seu efeito no
tempo; quando em ação, seu efeito necessariamente coexiste com ela .
Caso você tome o Agente em ação , este coexistirá necessariamente com
o resultado da Sua ação: o construtor, antes de construir a casa, não é
um construtor de fato, mas potencial (assim como a matéria desta casa
antes de ser construída é uma casa em potencial}; ao construir, ele en•
tão se torna um construtor de fato e necessariamente a coisa construída
passa a existir. Assim, nada ganhamos em preferir o termo "Agente" a
"Causa" ou "Razão". Na verdade, o propósito aqui é estabelecer a equi
valência entre os dois termos: assim como chamamos Deus de Agente
- ainda que o resultado da Sua ação inexista , pois não há obstáculos
ou barreiras que O impeçam de fazer o que desejar - também é evi·
dente que, neste mesmo caso, podemos chamá-Lo de Causa ou Razão,
ainda que não exista efeito .
A razão pela qual os filósofos chamaram Deus de Causa ou Razão,
em vez de Agente, não é devido à sua conhecida teoria da eternidade do
universo, mas por outros motivos que eu agora lhe descreverei breve
mente. Já foi explicado, pelas ciências naturais 255
, que podem ser en·
contradas quatro causas para tudo o que resulta de uma causa, e estas
são: a matéria, a forma, o agente e a finalidade , que podem ser pró·
ximas ou distantes.256 Cada uma destas quatro será chamada de ra
zão ou causa. Dentre as suas opiniões, uma com a qual concordo é
que Deus é o Agente, a Forma e a Finalidade. Por isso, eles [os filó
sofos] afirmaram que Deus é Causa (ou Razão), a fim de integrar
estas três causas , a saber: que Deus é o Agente, a Forma e a Finali
dade do universo. Minha intenção neste capítulo é lhe esclarecer como
se pode afumar isso a respeito de Deus. Não se incomode agora se Ele
originou o universo ou se este procede necessariamente Dele, segundo
as teorias dos filósofos, uma vez que muito será dito ainda a respeito
deste assunto.257
Contudo, minha intenção aqui é estabelecer que Deus é, ao mesmo
tempo, Agente de cada uma das atividades existentes n o mundo e do
próprio universo como um todo. Assim, afirmo quejá foi explicado pelas
ciências naturais258 que também é preciso requerer uma causa para cada
um daqueles quatro tipos de causas, de modo que, para cada coisa,
encontram-se imediatamente quatro causas diretas para as quais tam
bém haverá outras causas e, para estas, outras - até se chegar às pri
meiras causas. Em outras palavras: há uma coisa movida por um deter
minado agente. para o qual há outro agente, e assim por diante, até se
chegar ao Primeiro Motor, que é o verdadeiro Agente de todas as coisas
intermediárias. Assim, se a letra [hebraica] áleffor movida pela letra bêt,
o bêt, pela letra guímef, o guímel, pela letra dáler, e o dálet, pela letra hê
- dado que não se pode seguir até o infinito, ficamos no hê, a título de
exemplo - não há dúvidasde quealetra héé o motor do álef, bêt, guímel
e dálet . Logo, diremos com certeza que o movimento do álefé produ
zido pelo hê. É neste sentido que toda ação existente está relacionada à
Divindade, ainda que a sua movimentação seja efeito da ação de uma
das causas diretas, como explicaremos. Portanto, Deus, como Agente,
é a causa mais distante.
Ao investigarmos todas as formas naturais sujeitas à geração e à
corrupção, descobrimos também ser impossível queuma forma não seja
precedida por outra que prepare uma dada matéria para recebê-la; e esta
segunda forma também é precedida por outra, até que alcancemos a
forma original. necessária para a existência daquelas formas interme
diárias quesão as causas daquela mais próxima de nós. Esta forma ori
ginal para toda a existência é Deus, bendito seja. Nem pense que, ao
afirmarmos que Deus é a forma original de todo o universo. estejamos
nos referindo à "forma final", mencionada por Aristóteles em sua obra
denominada Metafisica, como não sujeita à geração e à corrupção, pois
esta forma é natural e não uma Inteligência Separada. Afinal, não dize
mos que Deus é a forma original do universo, imaginando que Ele seja
uma forma dotada de matéria ou a forma destinada para aquela m a
téria, como se fosse para um corpo. Não estamos falando neste sen
tido! Contudo, assim como todo ser existente dotado de forma é,
de fato, definido pela mesma e, quando esta é perdida, também a
sua existência perece e desaparece, assim também é a própria relas
ção entre Deus e todos os princípios mais remotos da existência, pois
é pela existência do Criador que tudo existe e Ele estende a Sua per
manência por meio daquilo que estabelece como Emanação ou In
fluência(Shéfa), conforme demonstrarei em alguns capítulos deste
vezes são contados como um globo que contém muitas esferas, como
está claro aos estudiosos do assunto e conforme explicarei.265 Entretan
to, meu propósito aqui é mostrar que elessempre entenderam que Aravót
está acima de tudo e é dela que se fala em: "[Aquele] que monta nos céus
em teu auxílio" (Deuteronômio 33:26).
Lemo� em um texto de Chaguigá [no TalmudBabilônico]: "Aravór,
sobre o qual reside o Alto e Sublime", pois está dito: Aquele que monta
em Aravót (Salmos 68:5); Como sabemos que {Aravórj são os céus?
Porque está escrito 'que monta em Aravól, bem como 'que monta nos
céus' (Deuteronômio 33:26) ' '. Portanto, fica claro que a alusão é sem
pre à esfera circundante, sobre a qual você ouvirá o que há para saber.
Preste atenção às suas palavras [dos Sábios]: "sobre o qual reside" e não
"no qual reside". pois dizer este último seria como declarar que Deus
necessariamente ocupa um espaço ou existe como potência na esfera
[celeste] - como imaginavam as seitas dos sabeanos, 266 para as quais
Deus era o espírito da esfera. Portanto, as palavras dos Sábios - "Aravót,
sobre o qual reside o Alto e Sublime" - demonstram que Deus está
separado da esfera e não é uma potência nela.267
Saiba que a metáfora de que Deus "monta (rochéll) nos céus'' é uma
imagem surpreendente e maravilhosa, pois quem monta é muito supe
rior à sua montaria (dizemos "muito superior" apenas por conveniên
cia, pois quem monta não pertence à mesma espécie da montaria266).
O cavaleiro também é aquele que move o animal e o dirige como quer,
pois o último é um instrumento utilizado de acordo com a vontade do
primeiro, que é independente, separado e externo ao cavalo. Do mes
mo modo, Deus (Exaltado seja o seu Nome!) é o Motor da esfera supe
rior; tudo o que se move dentro dela se deve a Ele que, no entanto, é
separado, e não uma potência dentro da esfera.
[No Talmu<Íj em Génesis Rabá, a respeito da palavra de Deus: "Sua
morada é o Deus de sempre" (Deuteronômio 33:27), nossos Sábios
explicam: "Ele é a morada do seu mundo, mas o mundo não é a Sua
morada", ao que acrescentam: "O cavalo depende do cavaleiro, mas este
independe do cavalo", conforme está escrito: "Pois Tu montas sobre Teus
cavalos" (Habacuque 3:8). Expressam-se literalmente assim. Então pres-
tenção não é dizer que nos céus há outras substâncias além de eles pró
prios, mas sim que as potencialidades que originam uma certa coisa e a
mantêm organizada vêm daqueles céus. A demonstração para o que eu
lhe digo está nas palavras dos Sábios: "Aravót, na qual há retidão, eqüi
dade e justiça; tesouros de vida, de paz e de bênção; almas d os justos:
almas e espíritos daqueles que nascerão no futuro; e o orvalho por meio
do qual Hakadósh Baruch Hu (O Santo, bendito seja Ele) ressuscitará
os mortos no futuro•. Está claro que, de tudo o que foi citado aqui, nada
é material nem ocupa espaço {pois não se trata de "orvalho• no sentido
literal). Observe o modo como eles falaram sobre isso: "na qual", vale
dizer: "em Aravót"; não afirmaram que estavam "sobre" - é como se
tivessem dito que as coisas existentes no universo na verdade são origi
nárias de potencialidades emanadas de Aravót, sendo que D eus lhes
estabeleceu um início e lá as plantou - entre as quais estão os "tesou
ros de vida", o que é correto e inteiramente verdadeiro, pois toda Vida
existe nte em um ser vivo na verdade procede dali, conforme mencio
naremos em seguida.269 Observe o modo como [os Sábios] incluem as
"almas dosjustos; almas e espíritos daqueles que nascerão no futuro"
- quão glorioso é isto para aqueles que o compreendem! As "almas"
que permanecem após a morte não são a "alma" presente no indivíduo
ao nascer, pois no momento do seu nascimento esta tem apenas um
propósito em potem:ia1;270 o que é separado apôs a morte é consid era
do atuante de fato. Tampouco a "alma" nascente equivale ao "espírito"
nascente; por isso foram considerados, no nascimento, como "almas e
espíritos", e mbora quando separados (do corpo) sejam uma coisa só. Já
explicamos271 aqui a polivalência do termo [hebraico] "rúach" {sopro,
vento, espírito) , assim como tratamos da polivalência destes termos no
final do [nosso] SeferMadá272 (Livro da Sabedoria).
Saiba que as muitas ciências que pertenciam ã nossa nação para o ver
dadeiro entendimento destes assuntos se perderam com o passar do
tempo, devido ao domínio de povos bárbaros sobre nós e ao fato de estes
assuntos não serem permitidos a todas as pessoas, conformejá escla.re
cemos,278 exceto as palavras das Escrituras. Vocêjá sabe que até mesmo
o tradicional Talmud não existia ante.5 na forma de livro, país a regra
propagada entre a nação [judaica] era: "As palavras que te comuniquei
oralmente, não estás autorizado a transmiti-las por escrito" 279 - esta
sabedoria da religião [judaica) estava definitivamente certa, pois evitou
aquilo que, por fim, viria a ocorrer, a saber: muitas opiniões e parece
res: dúvidas a respeito das expressões e erros de escrita por parte do reda-
277 Maimõnides expõe, nos últimos seis capítulos desta Parte 1. uma sinopse
da doutrina do Kalám - sistema de teologia racional dos muçulmanos co
nhecidos como mutakálemim • antes de explicar as doutrinas dos peripaté·
Cicos (disclpulos da fllosoOa aristotélica) sobre a existência, unicidade e
incorporeidade de Deus. na Parte 2. Este capitulo apresenta algumas indi
cações históricas relativas à origem do Kalám, cuja influência sobre alguns
teólogosjudeus do Oriente é notória ejustifica, portanto, que Maimônides
trate deste assunto (NT).
278 Capitulo 34.
279 Talmud Babilônico, Tratado Cuitín 60b.
278 MAI MÔNIOES
ses iniciais, mas sim a forma que esta deveria ter, de modo que servisse
de prova para a veracidade das suas opiniões e impedisse a refutação das
mesmas. Quando declararam necessária a idéia de que a realidade d e
veria ter uma forma determinada, buscaram evidências para sustentar
os argumentos que confirmassem suas hipóteses, de modo a compro
var esta opinião e impedir sua refutação. Foi assim que agiram os pen
sadores que estiveram à frente desta proposta e a redigiram em livros,
afirmando que o corpo da especulação os levara a isto, sem qualquer
idéia preconcebida. Contudo, aqueles que consultaram estas obras pos
teriormente desconheciam isso: eles encontraram, nestas obras antigas,
fortes evidências e um grande esforço para sustentar uma coisa ou refu
tar outra, entretanto consideraram que era absolutamente desnecessá
rio sustentar ou refutar algo que estivesse no ãmbito da religião e que os
primeiros [mutakálemim] somente não haviam agido assim com o único
propósito de confundi r as opiniões dos filósofos e suscitar dúvida na
quilo que estes consideravam como demonstrado. Aqueles que apoia
vam esta posição não avaliavam nem sabiam que estavam equivocados,
pois, na verdade, seus predecessores se esforçaram muito para sustentar
o que deveria ser afirmado e refutar o que deveria ser rejeitado daquilo
que consideravam prejudicial à posição que queriam demonstrar, ain
da que, para isso, necessitassem de cem premissas - e estes primeiros
mutakálemím cortaram o mal pela raiz. Em síntese, eu lhe afirmo que é
como Temistius292 diz: a realidade não deve perseguir as opiniões, mas
as verdadeiras opiniões devem perseguir a realidade.
Quando tive a oportunidade de me debruçar sobre as obras dos
mutakálemim-assim como, na medida do possível, interessei-me pelas
obras dos filósofos - pareceu-me que os métodos de todos eles eram
da mesma espécie, ainda que esta possa ser dividida em partes. O prin
cípio de todos é que não há prova de como a realidade é de fato, pois se
trata de um costume cujo oposto também é intelectualmente plausível;
por muitas vezes eles também foram guiados pela imaginação, à qual
chamaram de intelecto. À medida que forem expostos os princípios293
e avaliadasas suas demonstrações de que o universo foi criado,294 e uma
vez determinado isso, fica estabelecido, sem dúvida, que para este há
prova perfeita, seja o universo eterno ou criado. Por esta razão, você
sempre perceberá nas minhas obras a respeito dos livros do Talmud,
quando tenho a oportunidade de mencionar os fundamentos da cren
ça [judaica] ou busco estabelecer a existência de Deus, que recorro a
argumentos inclinados a favor da teoria da eternidade [do universo] -
não que eu acredite nesta, contudo quero estabelecer o princípio da
existência de Deus em nossa crença por meio de um método demons
trativo absolutamente incontestável, a fim de não apoiar este conceito
verdadeiro e transcendental em uma base sobre a qual alguém possa
tentar demolir e contradizer, e que outro pense que, de fato, este carece
de qualquer fundamento. Isto vale, sobretudo, para as demonstrações
dos filósofos baseadas naquelas três questões tomadas da natureza da
realidade manifesta, que não podem ser ignoradas, exceto por algumas
opiniões preconcebidas. Por outro lado, as evidências dos mutaká/emim
estão baseadas em princípios que se contrapõem à natureza da realida
de manifesta, a ponto de estes precisarem declarar que nada tem uma
natureza fixa.
Eis que destacarei, neste Tratado, um capítulo em que falo da cria
ção do universo e exponho algumas evidências a respeito da mesma. 300
Lá chegarei à conclusão - que todo mutakálimeesforçou-se por atin
gir - sem rejeitar as leis da natureza, nem polemizar com Aristóteles
naquilo que por ele foi demonstrado. Enquanto a evidência oferecida
por alguns mutakálemim sobre a criação do u.niverso - que é a mais
vigorosa entre as suas demonstrações301 - só põde ser apresentada pela
total rejeição das leis da natureza e contraposição a tudo o que foi ex
plicado pelos filósofos, eu apresentarei a minha evidência sem contra
dizeras leis da natureza nem precisar me sobrepor àquilo que é percebi
do pelos sentidos.
Achei por bem lhe apresentar302 as proposições gerais dos mutaká
Jemim por meio das quais eles estabelecem a criação do universo, a exis·
tência de Deus, Sua unicidade e incorporeidade. Eu lhe exporei os seus
métodos e explicarei o que é inferido de cada uma das suas proposições,
para, em seguida,303 apresentar as proposições e os métodos dos filóso
fos a respeito. Não me peça para demonstrar, neste Tratado, estas pro-
Saiba que este universo como um todo nada mais é do que um organis
mo, ou seja, todo o globo da esfera celeste, com tudo o que há dentro
dele é, sem dúvida, uma individualidade,306 como o são Reuvên e
Shimón. A sua variedade de substâncias -vale dizer: o próprio globo
e tudo o que está contido nele - equivale metaforlcamente à variedade
de substâncias que constituem um ser humano. Por exemplo: assim
como Reuvén é um Individuo composto de diferentes substâncias -
como carne e ossos - com uma variedade de humores307 e estados de
espírito, do mesmo modo este globo é composto de esferas [celestes].
dos quatro elementos e seus derivados. Não há absolutamente qualquer
vazio nele, pois é Inteiramente sólido. Seu ponto central é o globo ter
restre; as águas envolvem a super!Icie terrestre, o ar envolve a água, o
306 Platão, em sua obra Ti=u, também apresenta o universo como uma única
individualidade, um ser animado e orgãnico. de forma esférica. Esta tam
bém é a base da cosmologia de Aristóteles exposta no tratado Do Céu e do
Mundo (...) A idéia de macrocosmos e microcosmos que aparece esporadi
camente nasalegorias do T aimude dos midrashim ocorre sobretudo no tra
tado Avot de Rabi Natan, capítulo 31, e no Seru- ltrsirá (O Livro da Cria
ção), e também é aceito por muitos fllõsofos judeus medievais (Munk).
307 Os quatro temperamentos: fleumático, melancóllco, sangüíneo e colérico
(NT).
288 MAIMÔNIOêS
de Deus, conforme será explicado:318 por meio disso também será es
clarecido que, de fato, Um criou um.
Assim comoé impossível que os órgãos humanos existam por si
próprios e permaneçam órgãos humanos de fato - vale dizer: que o
figado, o coração ou a carne existam por conta própria - da mesma
maneira é impossível que os componentes do universo existam uns sem
os outros neste mundo. ao qual nos referimos, de modoque ofogoexista
sem a terra e esta sem océu ou vice-versa.
Como o individuo humano é composto de uma única força que
conecta seus órgãos uns aos outros e os governa , dando a cada um aquilo
de que necessita, cuidando da sua recuperação e repelindo oque pode
prejudicá-lo - o que os médicos explicam e denominam de "a força
que governa o corpovivo" e que, freqüentemente, chamam de "nature
za" - assim também o universo comoum todo consiste de uma única
força que liga uns aos outros, protege suas espécies para que nãopere
çam, cuida dos indíVíduos de cada espécie na medida do possível, bem
como protege alguns seres permanentes.319 Cabe investigar se esta for
ça atua ou nãopor intermédio da esfera celeste.
Nocorpo de cada ser humano há partes direcionadas a certos pro
pósitos: os órgãos de nutrição , para a manutenção do indivíduo: os
órgãos sexuais, para a preservaçãoda espécie; as mãos e os olhos, neces
sários para localizar e apreender osalimentos e outros. Hátambémcoisas
sem função determinada, mas que estão unidas àqueles órgãos e lhes
servem de extensão. A constituiçãopeculiar destas extensões é indispen
sável à manutenção º" forma daqueles órgãos, a fim de que possam
realizar as atividades para as quais se destinam . Estas se estendem até as
extremidades conforme a necessidade da matéria - comoos pêlos do
corpo e a cor da pele, que são irregulares - e é comum que algumas
estejam ausentes, produzindo também grandes diferenças entre os in
divíduos {o que nãoocorre com os órgãos: você nãoencontrará uma só
pessoa com um figado dez vezes mais pesado do que o de outra, mas
encontrará um homem sem barba ou sem pêlos em determinadas par
tes do corpo, ou com uma barba dez ou vinte vezes mais longa do que
a de outro homem - a variação em termos de pêlos e cor depele é muito
comum). O mesmo ocorre com oprópriouniverso: há espécies dire
cionadas à permanência, perenes e regulares, que apresentam poucas
ma fixa que lhes permita dizer que uma dada espécie de acidente per
dura e outra não.
Eles foram induzidos a esta opinião por não admitirem que exista
uma natureza geral de cujas propriedades a substância deriva tais como
seus acidentes, pois preferem dizer que Deus criou estes acidentes ins
tantaneamente, sem a intervenção da natureza ou de outra coisa qual
quer; dito isto, para eles é obrigatório que um acidente seja instantâ
neo. Caso se afirme que [um acidente] dura uma certa medida e depois
desaparece, uma pergunta torna-se obrigatória: o que causou este desa
parecimento? E se se afirma que Deus o fez desaparecer conforme a Sua
vontade, para eles isto é inadmissível, pois o agente não-produz o desa
parecimento: supondo que a ausência precisasse de um agente, quando
este deixasse de atuar seu efeito também desapareceria (por um lado,
isto é verdade). Isto os induziu a defender que não existe uma lei natu
ral necessária à existência ou inexistência de algo, e passaram a apoiar a
teoria da criação sucessiva de acidentes. Segundo alguns deles, se a von
tade de Deus é que uma substância desapareça, Ele não criará um aci
dente nela - então esta desaparecerá. Outros consideram que, se a
vontade de Deus é destruir o universo, Ele criará o acidente do exter
mínio -sem uma substância como base - na existência do universo.
Segundo esta proposição, uma roupa, que imaginamos tê-la tingi
do de vermelho, para eles, não fomos nós que a tingimos, de forma al
guma; Deus fez aparecer esta cor na roupaao colocá-la em contato com
o pigmento vermelho. Embora imaginemos que esta cor pertença à
roupa, P.les :,fi rmam que este não é o caso, mais do que isso: dizem ain
da queDeus ditou a regra de que não se cria uma cor escura, por exem
plo, a não ser que a roupa seja posta em contato com anil; esta tonali
dade que Ele cria quando se coloca o pigmento escuro em contato com
a roupa a ser tingida não perdura, mas desaparece após um determina
do tempo e é criado outropigmento idêntico. Deus também teria dita
do a regra de que, após o desaparecimento do tom escuro, não se ria
criado o avermelhado ou o esverdeado, mas somente outra tonalidade
escura. Segundo este princípio, aquilo que sabemos hoje sobre deter
minadas coisas é obrigatoriamente diferente do que sabíamos ontem,
pois o que existia desapareceu e foram criadas novas caraterístfcas idên
ticas. Eles afirmam que isto é assim porque o conhecimento é um aci
dente. Do mesmo modo, quem acredita que a alma é um acidente deve
admitir obrigatoriamente, por exemplo, que, em cada ser anímic9, sur·
gem cem mil almas a cada momento; afmal, você sabe que, para eles, o
tempo é composto por instantes indivisíveis.
304 MAJMÔNIDES
acidente da morte criado por Deus deve ser criado, segundo eles, em
cada um destes átomos. Nós encontramos dentes de pessoas mortas que
existem há milhares de anos, o que seria uma evidência de que Deus
não os fez desaparecer e, em decorrência disto, recriaria o acidente da
morte neles ao longo de todos estes milhares de anos -sempre que uma
morte desaparece , outra é criada. Esta é a opinião da maioria dos mu
takálemim.
Alguns da seita Mutazi la afirmam que determinadas ausências de
propriedades são irreais; eles admitem que a fadiga é a ausência de força
e a ignorãncia 'é a ausência de conhecimento. Todavia, isto não se es·
tende a toda ausência: eles não dirão que a escuridão é a ausência de luz
nem que o repouso é a ausência de movimento, mas que algumas são
reais e outras são ausências de propriedades, conforme for mais conve
niente à crença deles - assim como fizeram com relação à perman ê n
cia dos acidentes: alguns duram por um tempo maior e outros não
perduram por dois instantes. A única intenção deles é condicionar a
realidade às suas opiniões e crenças.
Oitava proposição: não existe um único ser sem substãncia e aciden•
te . A forma física também é um acidente.
Os mutakálemim afirmam que existe apenas substância e acidente e
que as formas físicas também sâo acidentes. A explicação para esta pro•
posição é que, para eles, todos os corpos são compostos de átomos idên
ticos (conforme explicamos a respeito da primeiraproposição) e, na v e r
dade, a diferença entre uns e outros ocorre tão somente devido aos aci
dentes. Assim, para eles a condição animal e a humana, a percepção e a
racionalidade são, todas elas, acidentes semelhantes à escuridão e à cla
ridade, à amargura e à doçura - de modo que um indivíduo de uma
espécie difere de um de outra espécie da mesma forma que dois indiví
duos da mesma espécie podem diferir. Disto também se infere que as
substâncias do céu , dos anjos e inclusive óo Trono de Glória (por com
paração), bem como as substâncias de qualquer verme da terra ou ve
getal que se escolha sâo todas idênticas; de fato, só diferem devido aos
acidentes e são todas compostas de átomos.
Nona proposição: nenhum acidente serve de base para outro.
Os mutakálemim afirmam que nenhum acidente serve de base para
os demais. Portanto, nâo se pode dizer que um seja sustentado por ou
tro e este, por sua vez, por uma substância; na verdade, todos os aci
dentes estão diretamente apoiados na substância. Eles rejeitam [a rela
ção indireta entre acidente e substância] porque, neste caso, seria ne
cessário que, para que o acidente final pudesse existir, ele fosse antecedido
O CUL� DOS PERPLEXOS 307
isto pode ser modificado, de modo que o fogo possa resfriar, mover-se
para baixo e ainda permanecer sendo fogo; e a água possa aquecer, mover
se para o alto eainda permanecer sendo água. É sobreisto que está fun
damentada toda esta teoria.
Por outro lado, todos os mutakálemim concordam que a reunião
simultânea de dois opostos em uma mesma substância é absurda, im
possível e inadmissível pelo intelecto; também reconhecem que não há
como a substância existir sem acidentes (segundo alguns deles, o inver
so também é racionalmente inadmissível). Eles ainda afirmam ser im
possível uma substância converter-se em acidente e vice-versa, tampouco
uma matéria penetrar em outra, admitindo que estas coisas são rejeita
das pela razão.
De fato, tudo o que os eles indicam como cois;is ;ih�oh,ramente in
concebíveis, bem como aquilo que consideram passível de ser represen
tado, éverdadeiro. Entretanto, os filósofos argumentam: "Se vocês con
sideram uma coisa impossível por ser inimaginável e outra possível
porque pode ser imaginada, o que é possível para vocês o é pela imagi
nação e não pelo intelecto. Portanto, com esta proposição vocês pro
vam o necessário, o possível e o impossível, ora pela imaginação - e
não pelo intelecto - ora pelo princípio do senso comum", conforme
destacou Abu Nasr326 ao referir-se àquilo que os mutakálemim chamam
de "intelecto".
Portanto, para os mutakálemim aquilo que pode ser imaginado é
possível - correspondendo ou não à realidade - e o que é inimaginável
deve ser desconsiderado. Esta proposição só pode ser considerada como
verdadeira devido às nove proposições precedentes, e foi em seu favor
que se fez necessário citá-las anteriormente. Para que você compreenda
a razão disto, descreverei e apresentarei o que está por trás destes prin
cípios, na forma de uma discussão ocorrida entre um mutakálimee um
filósofo.
O mutakálime perguntou ao filósófo: "Por que percebemos a subs
tância do ferro como decididamente dura, forte e escura, enquanto a
da manteiga é, com certeza, macia e clara?"
Observação
Saiba, você que é uma pessoa interessada neste Tratado, que conhe
ce a alma e suas capacidades e compreende cada coisa conforme o seu
contexto: você entende que a maioria dos seres vivos possui imagi n a
ção (de fato, todos os seres vivos completos - vale dizer: que possuem
coração - obviamente têm imaginação) e o ser humano não se dife
rencia por possuir esta capacidade. A ação da imaginação não é como a
do intelecto, mas o seu oposto: o intelecto analisa as coisas complexas:
diferencia suas partes; interpreta-as e as descreve em suas realidades e
causas; de um objeto infere muitos conceitos, diferenciando uns dos
outros, assim como a imaginação diferencia dois indivíduos humanos
reais.Por meio d o intelecto, distingue-se um conceito geral de outro,
particular - e uma prova só é demonstrada no ãmbito d o geral. Pelo
intelecto também se discerne entre o aspecto essencial e o acidental. A
imaginação não possui qualquer uma destas ações: só percebe o parti·
cular inserido no seu contexto geral conforme a percepção dos senti·
dos; ou combina coisas que se encontram dispersas na realidade, unin
do umas às outras e compondo um corpo ou uma das capacidades
corpóreas. Por exemplo: alguém pode imaginar um homem com cabe
ça de cavalo, asas e outras coisas - isto se chama ficção e invenção, sem
qualquer correspondência com a realidade. A percepção imaginativa
tampouco é capaz de escapar à matéria e abstrair urna forma sequer; logo,
nada se prova por intermédio da imaginação.
Então preste atenção àquilo que podemos extrair das ciências preli
minares e como é importante o que delas recebemos, no que di.2 respei
to às proposições.
Saiba que há certas coisas que uma pessoa é incapaz de descrever
quando as examina por intermédio da imaginação, considera-as tão
inconcebíveis quanto a reunião de dois opostos. Em seguida estabelece
uma· prova demonstrativa disto e deduz a sua existência. Por ·exemplo:
imagine um grande globo, da dimensão que quiser, mesmo que seja do
tamanho da esfera circundante; em seguida, suponha que nele há um
eixo que passa pelo seu ponto central; então, imagine dois indivíduos
parados em cada uma das duas extremidades do eixo, de modo que seus
pés estejam alinhados com o eixo - podendo estar ou não no plano
O CUIA DOS PERPLEXOS 3I I
327 O Tratado das $,pões Cônicas, uma das principais obras cientificas da Anti·
güidade, tomou o matemático grego Apolônio de Perga (262-190 AEC) a
mais eminente figura da ciência grega no campo da geometria pura (NT).
312 MAIMÔNIOES
329 Erva de flores vermelhasque aparece na primavera cujo chá, usado para fazer
baixar a febre, é muito amargo (NT).
330 Existência, unicidade e incorporeidade de Deus; e a ·criação do universo
(NT).
CAPITULO 74
SETE MÉTODOS DOS MUTAKÁLEMIMPARA PROVAR A CRIAÇÃO DO
UNIVERSO E A EXIsrtNCIA DE DEUS
334 Décima proposição: uma forma possível não pode ser provada apenas por
estar em conformidade com as leís da natureza.
O CUJA DOS PERPLEXOS 319
340 Abu Bakr ibn AI-Sa'ig (1085/90-1139). filósofo espanhol também conhe
cido como lbn Bayya ou Avempace, destacou-se especialmente como co•
mentarista da obra de Aristóteles (NT).
322 MAIMÔNIDES
determina duas resoluções para dois entes. Eu já lhe adverti que isto é
explicar uma coisa obscura por meio de outra ainda mais obscura,341
uma vez que a vontade mencionada por eles é inconcebível, inclusive
para alguns deles; e, para quem acredita nisso. surgem dificuldades i n
superáveis. Não obstante, eles a tomam como prova da unicidade.
Quarco método: eles afirmaram que a existência de uma ação aponta
necessariamente para um agente e que uma pluralidade de agentes é
inadmissível, não importa se dois, três, 20 ou outro número qualquer.
Isto é claro e evidente. Entretanto, se você objetar que isto não aponta
para a inexistência de múltiplas divindades, mas apenas para o desco
nhecimento do número delas, sendo possível que exista um ou muitos
[deuses), esta prova poderia ser complementada com o seguinte argu
mento: a existência de Deus não é uma possibilidade, pois sua existên
cia é necessária - e isto anularia, portanto, a possibilidade da plurali
dade. Eis a argumentação do autor desta prova, cujo equívoco é expli
cito, pois a existencia de Deus não é uma possibilidade, mas o nosso CQ
nhecimento arespeito Dele sim, uma vez que a possibilidade do conheci
mento não equivale à da existência. Pode ser que Ele não seja três, como
imaginam os cristãos, tampouco Um, como nós pensamos. Isto está
claro para quem está familiarizado com o conhecimento de como são
obtidas conclusões a partir das premissas dadas.
Quinto métodd. um dos mutakálemim recentes imaginou haver en
contrado um método demonstrativo para a Unicidade, qual seja, a teo
ria da necessidade. Eis a sua explicação: se Um é capaz de criar os seres
existentes, uma �cgunda divlndado, serta supérfiua e desnecessária; e se
este universo não pudesse ser realizado nem organizado a não ser pelos
doisjuntos, cada um deles conteria uma incapacidade, o que exigiria a
necessidade de um outro [anterior); portanto, seriam essencialmente
limitados. Na verdade, esta teoria pode ser considerada um ramo do
método da mútua anulação.
Deve-se rebater esta espécie de prova com a seguinte argumentação:
nem todo aquele que não age fora do âmbito de sua atuação pode ser
chamado de incapaz. Não chamaremos qualquer pessoa de fraca pelo
fato de esta ser incapaz de movimentar mil pesos, assim como não atri
buímos a Incapacidade a Deus pelo fato de Ele não poder se materiali
zar, criar outro como Ele ou, ainda, um quadrado cuja diagonal seja
equivalente a um de seus lados. Tampouco diríamos que Deus seria
º"
não é um. Contudo, quem refuta a corporeidade [de Deus] pelo fato
de o corpo ser composto matéria e forma - uma composição
sabidamente inadmissível no que diz respeito a Deus - na minha opi
nião não é um mutakálime, tampouco este ponto de vista está baseado
nos fundamentos do Ka!ám; porque esta é uma demonstração verda·
deira baseada na teoria da matéria, da forma e da concepção das pro
priedades destas, ou seja, trata•se de uma teoria filosófica que abordarei
e explicarei quando citar as provas dos filósofos a este respeito. Portan
to, a nossa intenção, com este capítulo, é apre$entar os argumentos dos
mutakálemim para refutar a corporeidade [de Deus] conforme suas
proposições e métodos argumentativos.
Primeiro mdtodo: Eles afirmam que, se Deus fossse corpóreo, a verda
deira propriedade da Divindade existiria plenamente em todaspartículas
desce corpo - vale dizer: em cada um dos seus átomos - ou toda a sua
existência estaria concentrada em um dos átomos. Neste último caso, qual
seria utilidade dos demais átomos? A existência de um corpo assim não
farta sentido; e, no caso da sua existência preencher cada um dos áto-
328 �WMÔNIDES
mos deste corpo, estes seriam muitas divindades e não um único Deus
- e elesjá explicaram que Ele é Um. Ao examinar este argumento, você
descobrirá que está baseado na primeira e quinta proposições.'J42 Alguém
poderá question á -los: "O corpo de Deus não é composto de átomos,
isto é, não é composto de substãncias que Ele próprio criou, como vocês
afirmaram, mas sim algo único, contínuo e indiVisível, exceto pelo pen
samento; e não há como provar por pensamentos, uma vez que tam
bém se pode imaginar que o corpo dos céus pode ser rasgado e dividi
do. O filósofo dirá que isto é fruto da imaginação e uma inferência
daquilo que é aparente - isto é, os corpos existentes entre nós - sobre
o oculto".
Segundo métodd. para eles isto é importante - a inadmissibilidade
da semelhança. "Deus não se compara a nenhuma das Suas criaturas: se
tivesse um corpo, seria comparável aos demais seres corpóreos. Os mutaká
lemim se estenderam demasiado neste ponto e afirmaram: Se dissermos
'corpo, mas não como os demais corpos', estaremos nos contradizen
do, pois todos os corpos são semelhantes no que diz respeito à corpo
reidade e, na verdade, diferenciam-se uns dos outros por outros moti
vos - vale dizer: os acidentes". Para eles, isto também se faz necessário,
caso contrário Deus já teria criado outro como Ele.
Este ponto de vista falha em dois aspectos. Primeiro pode-se dizer:
"Não aceito a teoria da inadmissibilidade da semelhança; qual é a sua
prova de que é impossível comparar Deus a qualquer uma das suas cria
turas em algum aspecto? A não ser que (por Deus!) você se refira às
palavras dos livros proféticos - isto é: a refutação da semelhança neste
caso - então a incorporeidade será recebida por tradição e não por um
meio racional". E se os mutakálemim contestarem: "Se Deus fosse se
melhante a alguma de Suas criaturas, não teria criado outro como Ele?",
a resposta será: "Não em todos os aspectos; e não nego que, em Deus,
há muitas propriedades e aspectos". pois quem acredita na corporeida
de [de Deus] não escapa disto.
Por sua vez, este argumento falha em um segundo aspecto: já foi
estabelecido e admitido por quem estudou filosofia e se aprofundou nas
teorias filosóficas que o termo "corpo" se aplica às esferas [celestes] e aos
corpos materiais terrenos apenas por homonímia, porque a matéria das
1
343 Ddcuna proposfç§o: uma forma possível não pode ser provada apenas por
estar em conformidade com as leis da natureza.
330 MAIMÔNIDES