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Parte 1

�Abram •os portões e venha a nação justa, guardiã das


crenças."
(Isaías 26:2)

CAPfTULO 1
IlviAGEM (TSJ1LEM) E SEMELHANÇA (DEMÚ1). A INCORPOREIDADE
DE DEUS E A POLIVALtNCIA DO TERMO IMAGEM

Já se pensou que o termo imagem (trélem), em hebraico, signific ava o


contorno (temuná) de uma coisa e o seu aspecto (tôa/1; disto deduziu-se
a existência de um corpo completo [p ara Deus], em relação ao que foi
dito: "Façamos o homem à nossa imagem, segundo nossa semelhanç a "
(Gênesis 1:26). Assim, Deus teria a forma (tsuraj humana, ou seja o
,
mesmo contorno e aspecto. Comprometeram-se com esta idéia e acre ­
ditaram nela. Acharam que, caso se afastassem desta crença, estariam
desmentindo as Escrituras e até mesmo negando a existência de Deus,
se Este não tivesse um coipo dotado de faces e mãos corno os deles, em
contorno e aspecto, salvo que major ·e maiS esplendomso, segundo acre­
ditavam, e Sua matéria tambêm não fosse de "carne e sangue". 1
Isto é
tudo o que pensavam da grande,za da constituição de Deus.
Quanto ao que precisa ser dito para se descartar a corporeidade e afi r­
mar a unicidade verdadeira - cuja veracidade baseia-se na incorporei­
dade-, você terá uma comprovação ao longo deste tratado. Todavia,
meu objetivo neste capítulo é elucidar os termos imagem (t.sélem) e se­
melhança ( demú(J.

1 �Carne e sangue": expNSSão bíblica hebraica referente ao home'm em seu a s•


pecto físico.
54 MAIMÔNIDES

Digo , pois, que , para a forma conhecida e ntre o povo - o contor­


no e o aspe cto da coisa -o termo próprio em hebraico é tõar(aspec­
to). Por exemplo:"( ...) formoso de aspectoe de aparência" (Gênesis 39:6);
"( ...) que aspecto tem Ele?" (I Samuel 28:14); "(...)com o aspecto dos
filhos do rei" Üuízes 8:18) . E da forma artificial se diz:" delineou-o com
giz( ... )e com o compasso contornou-o"(Isaías 44:13). É um t�rmo que
absolutamente não se aplica a Deus, longe de nós!
Quanto a o termo imagem (tsélem), este se aplica à forma natural, ou
seja, à essência constitutiva de uma coisa, o que ela é em si mesma, sua
realidade enquanto s e r . No homem trata-se d o lugar de onde procede a
capacidade de compre ensão, e é afirmado sobre a causadesta compree n ­
são:"( . . ). à imagem de Deus o criou" (Génesis 1:27).
Portanto t\ rliro: "(... ) suas imagens desprezarás" [d os idólatras} (Sal
mos 73:20), pois o desprezo afeta a alma, que é a forma específica, não
o contorno e o aspecto dos me mbros. Portamo, afirmo que o motivo
pelo qual os ídolos são denominados imagens (tselamím) baseia-se n o
fato daquilo que se esperava deles, o que era considerado, não o seu co n ­
torno e aspecto. Digo o mesmo a respeito da expressão: ".imagens das
suas hemorróidas" (1 Samuel 6:5), pois o que se queria delas era o meio
para afastar o mal das hemorróidas, não o seu aspecto. Por fim, se tiver
que admitir• imagens das suas hemorróidas" e . "suas imagens" [dos ído­
los] como expressões do contorno e do aspecto das mesmas, então o ter­
mo imagem deve ser polivalente, refe re nte à forma específica, à forma
artificial e do que deriva dela - como contornos e aspectos dos corpos
naturais.
Assim, o que se qu er dizer com: "Façamos o homem à nossa ima­
gem" refere-se à forma especifica, ou seja , à capacidade de compreen­
são mental, não ao contorno e aspecto. Fica e ntão e xplicada a difere nça
exlstente entre imagem (tsélem) e aspecto (tõar), bem como esclarecido
o termo imagem.
No que se re fe re à semelhança (demtJrj, é um derivado de damó(raiz
do verbo "assemelhar-se")e indica, assim, algo semelhante a de ter m i ­
nada coisa, como foi dito: •Assemelhava-me a uma ave noturna (keát)
no deserto" (Salmos 102:7), não que se assemelhasse em relação às suas
asas e plumagem, mas sim à tristeza de uma e de outro; o mesmo em:
"Nenhuma árvore do jardim de Deus se assemelhava à sua beleza"
(Ezequiel 31:8)- semelhança quanto à questão da beleza; "Têm ve­
neno à semelhança do veneno das serpentes" (Salmos 58:5); "Asseme­
lha-se a um leão ansioso por estraçalhar"(Salmos 17: 12). Em todos há
uma semelhança com idéias, não de contorno ne m de aspecto . Do
O CUIA DOS PERPLEXOS 55

mesmo modo: •À semelhança de um trono" (Ezequiel 1 :26) indica uma


semelhança quanto à sua elevação e grandeza, não à sua quadratura,
largura ou distância entre os pés, como Imaginam os pobres [de espiri·
to]: e o mesmo com respeito à "semelhança entre os animais" (Ezequiel
1:13).
Dado que o homem é ímpar, pelo fato de ser muito diferente naqui•
lo que falta entre os demais seres existentes sob a esfera lunar, a saber,
sua capacidade de compreensão mental - para a qual não emprega n e ­
nhum sentido, nem parte do corpo, nem mão, nem p é -esta tem sido
comparada à capacidade de compreensão divina. que não depende de
qualquer instrumento (mesmo que não exista semelhança de fato, po•
rém, à primeira vista, só aparente). Diz-se do homem que é assim por
causa da mente divina nele colada, pois ele é iJ Imagem
de Deus e à Sua
semelhança - e não que Deus seja um corpo dotado de contorno.
"Porquesab E!ohim qu , no àiaem qu c:omerdesd ie,
abrir-se-ão os vossos olhos e serei como füohlm,
conhecedote do bem e do mal."
(Gênesis 3:5}
1

CAP!TULO 2
SOBRE GENESIS 3:5

Há alguns anos um erudito m apresentou ama objeção importante..


Vejamos qual foi, bem como a nossa.refutação.
Enliiretanto, antes de me ocupar de um:a e de outra, direi o segwn
qualquer hebreu sabe que o t rmo Elohim polivalenc, pois designa a
dM dade, osairtjo eosgov r-antes.JáOnk los,oProsélito 2 (queap�
esteja com ele e com a verda qrn>. esd u) explicou que a expn:s­
são. • - reis como elohim {di ttsm (senhores]). conhecedores do bem d.o
mal" (Génesis 3:5) deve ser ente.ndida em sua última acepção. Por isso
traduziu como: "E sereis: como senhores".
Após a minha proposta para o significado desse termo passemo - à
objeção.
Conforme o ntido literal do texto bibl o, a primeira intenção. no
que diz respeito ao homem, era que se assemelhasse a0$ animais irra­
cionais: incaparz d dif-erendar o bem do mal; e, quando se rebelou, tno
lhe tr-ouxe esta gra de capac· clade exdusiil: do homem: nosso dis eml •
J!
mento, a .mais nobre das capa.cidades das quais somos dotados. incn­
vel ,que o, castigo por sua rebeldia foi reoeb r uma capacidade que anti - s
não possuía: a mteUgéncta! Compam-se a que se coma de certo indip

2 Onkeios: mtd1.1tor do Pentah co para o aram .illo.


58 MAIMÔNIDES

víduo que, após cometer uma transgressão, foi considerado bom e co­
locado como um astro no céu - esta era a intenção e o sentido da
objeção, ainda que não com as mesmas palavras.
Ouça agora nossa refutação. Dizemos que você é um indivíduo atento
ao principio das suas idéias e pensamentos mal-intencionados; que pensa
que compreende um lívro - orientador tanto dos antigos quanto dos
contemporâneos - dedicando-lhe simplesmente alguns momentos de
intervalo entre a bebida e o sexo, como se se tratasse de um livro de
crônicas do cotidiano ou de poesia! Tome seu lugar e observe, pois a
questão não é como você apresentou a princípio, mas, sim, como es­
clareceremos. A inteligência que o Criador infundiu no homem - e
que constitui sua perfeição suprema - é a que Adão possuía ames de
s11� rebeldia: por isso declarou- se que foi criado à imagem de Deus e à

sua semelhança e por isso [Deus] falou com ele e lhe ordenou, confor­
me foi dito: "E ordenou YHVH Deus ao homem { ...)" (Génesis 2: 16).
Ordens não são dadas a animais irracionais nem a alguém carente de
inteligência. Mediante a inteligência, o homem discernia o verdadeiro
do falso; ele possuía esta capacidade perfeita e completa. Pois bem, a
feiúra e a beleza estão no campo da opinião, não da razão, pois não foi
dito que "o céu é esférico" seja belo, nem que ·a terra é plana" seja feio,
mas que isto é, respectivamente, verdadeiro e falso. Assim, em nossa
língua [hebraico] fala-se do verdadeiro (cóshêt) e do falso (batê� respecti­
vamente como verdade (emêt) e mentira (shéke!}, e do belo (naé) e do
feio (meguné) como bem (to0 e mal (.ra). O homem sabe o que é verda­
de e o que é mentira por meio da razão, e isto vale para todas as coisas
inteligíveis. Deste modo, quando Adão se encontrava na plenitude e
perfeição de sua razão e inteligência, foi dito, a seu respeito, que ele era
"(...) um pouco menor do que .Elohim [Deus ou anjos) (...)" (Salmos 8:6).
Ele não sabia absolutamente como utilizar e formar opiniões; até mes­
mo o que há de mais reprovável - a exposição da nudez - não lhe era
feio nem compreendia a sua feiúra. Após rebelar-se, ceder aos seus ins­
tintos imaginativos e às delíéias dos sentidos físicos, como foi descrito:
"(...) que era boa a árvore para comer e desejável para os olhos (.. .)".
(Génesis 3:6), [Adão] foi castigado com a privação da compreensão
racional: isto o levou a transgredir a ordem dada, levando-se em conta
sua inteligência, o que fez com que obtivesse a capacidade de apreensão
das opiniões: afundou na feiúra e na beleza. Então se deu conta daqui­
lo que perdeu, do que lhe foi despojado e a qual estado foi reduzido.
Este é o sentido de: " (...) e sereis como .Elohim. conhecedores do bem e
do mal" (Gêne�is 3:5). Não foi dito: ''conhecedores da mentira e da ver­
dade"; ou "conscientes da mentira e da verdade", pois o bem e o mal
O CUIA DOS PERPLEXOS 59

não são absolutamente da ordem do necessário, como o são a mentira


é a verdade. Preste atenção a esta declaração: "( ...) e foram abertos
(tipacáchna) os olhos de ambos, e souberam que estavam nus' ' (Génesis
3:7). Não foi dito: "e foram abertos os olhos de ambos, e viram", pois
o que era visto antes também foi visto depois - e não havia lá vendas
sobre os Qlhos que depois foram retiradas, mas sim eles passaram a um
novo estado [de consciência] no qual consideraram feio o que antes não
lhes parecera assim.
Saiba que esta palavra - refiro-me a pacôach (abrir) - - somente é
empregada no sentido de revelar o conhecimento, não de recobrar os
sentidos, como por exemplo: "E abriu Deus seus olhos (...) " (Gênesis
21: 19); "E abrirão os olhos dos cegos (.. .)" (Isaías 35:5); "Abriram os
ouvidos, mas não escutaram" (Isaías 42:20); "Têm olhos para ver, mas
não enxergam" (Ezequiel 12:2).
Com respeito ao que foi dito de Adão: "Mude o seu rosto será
enviado [daqui] " Üó 14:20), o significado e a explicação disto são: quan­
e

do mudou seu propósito, foi expulso -- porque a palavra rosto (panim)


é derivada da raíz pan6 {voltar-se) - - pois é com o rosto que o homem
se volta para aqutlo que constitui a sua intenção.Por isso foi dito: quando
mudou de direção e se dirigiu até onde lhe foi dito para que não fosse,
foi expulso do Jardim do Éden. Este foi o castigo pela sua rebeldia,
"medida por medida": foi-lhe permitido comer coisas agradáveis e se
deleitar com calma e tranqüilidade. Todavia, quando seu desejo cres­
ceu e perseguiu seus prazeres e fantasias, como dissemos, e comeu o que
lhe havia sido proibido, foi privado de tudo e obrigado a <:vmer uma
comida pior, que antes não lhe servia de refeição; e ainda mais, à custa
de trabalho duro e muito esforço, conforme foi declarado: "E espinho
e abrolho produzirá para ti (...) ; Com o suor do teu rosto (...)" (Gênesis
3:18-19); e explicado: "E enviou-o, o Eterno Deus, do jardim do Éden,
para trabalhar a terra (...)" (Gênesis 3:23)'. E o fez igual aos animais em
suas refeições e na maior parte das situações, como foi dito: "( ...) e co­
merás a erva do campo" (Gênesis 3:18); afirmou-se , como explicação
para esta passagem: "Mas o homem em glória não perdura, compara-se
aos animais silenciados" (Salmos 49:13).
Louvado seja o Dono da Vontade [Deus), cuja intenção e sabedoria
são inalcançáveis!
CAPfTULO 3
MODELO (TA VENl7) E CONTORNO (TEMUNA)

É opinião corrente que os termos rontomo (temumÍ) e modelo (tavenít)


são sinónimos em hebraico, mas não é verdade. Este último é derivado
de banõ (construir) e designa a construção e estrutura de uma coisa, ou
seja, seu aspecto, seja quadrado, redondo, triangular ou com qualquer
outra configuração. Assim é dito: "(...) do modelodo Tabernáculo e do
modelo de todos os seus utensfüos (...)" (Êxodo 25:9) ; "(...) segundoseus
modelos, como te foi mostrado no monte" (Êxodo 25:40); "Ao modelo
de qualquer pássaro" (Deuteronõmio 4:17); "Ao modelo de uma mão"
(Ezequiel 8:3); "Ao modelo de um salão" (1 Crônicas 28:11). Tudo Isso
se refere ao aspecto [estrutural!. razão pela qual o idioma dos hebreus
jamais emprega este vocábulo para descrições referentes â divindade.
Contorno (temuna'J é um termo que se encaixa em três significados
diferentes:
1°) Quanto à forma de um objeto percebido pelos sentidos, sem in-
tervenção da razão, ou seja, o seu aspecto, como por exemplo: • (...) e
fizerdes estátua segundo o contorno de (temuná� alguma coisa ( ...) "
(Deuteronômio 4:25); " (...) porque não vistes contorno algum (cól­
temuna/ (...)" (Deuteronõmio 4:15).

2°) Quanto à forma imaginária encontrada na imaginação de qual·


quer pessoa depois que [o objeto) se oculta [da percepção] dos senti­
dos, como por exemplo: "Nas visões de representações noturnas (...) •
62 MAIMONJDES

(]6 4: 13) que termina com estas palavras: • (...) parou diante de mim,
porém não reconheci seu semblante; um contorno diante dos meus
olhos" (Jó 4:16), ou seja, uma forma imaginária diante dos olhos, du­
rante o sono.
3°) Quanto à noção verdadeira de algc, captada pela razão. Somen­
te de acorç!o com este terceiro significado é que se pode falar do contor­
no de Deus, como por exemplo: "(...) E o contorno deYHVH [ele] olhará
(.. .)" {Números 12:8), cujo significado é: alcançará a verdade divina.
CAP1TULO 4
VER (RAA}. OLHAR (HAB/7) E ENXERGAR (CHAZA)

Saiba que os três verbos - ver (má), olhar (habít)e enxergar (chazá)
- aplicam-se à percepção visual e, metaforlcamente, à apreensão ra•
clona!.
Aquilo que se refere ao verbo veré conhecido de todos. Quando é
dito: "E viu, e els um poço no campo (... )" (Gênesis 29:2), trata-se de
uma percepção visual. Quando é afirmado: • (...) e meu coração viu
muita sabedoria e conhecimento· (Eclesiastes 1 : 16), refere-se a uma
apreensão racional. Segundo, esta metáfora, o verbo verse aplica à di­
vindadeassim como em: • (..•) Ili'YHVH (...)" (I Reis 22: 19); "E fez-se
verYHVH (...)" (Gênesis 18: l); "(...) e viu Deus que era bom" (Gênesis
1:21); " (...) Fazei-me verTua glória" {Êxodo 33:18): "E viram o Deus
de Israel (...)" (Êxodo 24:10). Tudo isso é apreensão racional e Jamais
percepção viSual, pois osolhospercebemsomente o corpo [fisico] e ainda
parcialmente, com alguns acidentes, ou seja. a aparência flsica, seu as­
pecto e o que deriva dele. Portanto, a divindade não é apreendida pelos
sentidos, como será explicado.
Do mesmo modo, o verbo olhar refere- s e a perceber com os olhos,
como por exemplo: " (...) nã.o olhes por trás ( ...)" (Gênesis 19: 17); "E
olhou sua mulher para trás dele [de Lot] ( ...) " (Gênesis 19:26): "(...) e
olhou para a terra (.. .)" (Isaías, 5:30). Por outro lado, emprega-se em
sentido metafórico [como observa,] à observação racional e à maneira
de ver algo até alcançar sua compreensão. Assim foi dito: "Não obser-
64 MAJ MÔNIDES

vou iniqüidade em Jacob (. . .) " (Números 23 : 2 1 ) , sendo que a iniqüi­


ôade é imperceptível ao olho; � ( . . . ) e observa va Moisés por trás ( . . . ) "
{Exodo 33:8)3 - os Sábios disseram que se trata do mesmo caso : con­
tava-se dele que. suas ações e palavras eram observadas, meticulosamen­
te examinadas; e também: " (. . . ) Observe·o céu ( . . .r (Gênesis 1 5:5) ,. pois
se tratava de uma vis.ão profética. Por sua vez, o verbo olhar sempre é
aplicado metaforicamente à divindade., como em: " ( . . .) pois teve medo
de olhar para Deus" (Êxodo 3 : 6) : " (. . . ) e o contorno [glória] de Deus
olhará ( . . . ) " {Números 1 2 : 8) ; " (. .. ) E a observaçãa do esforço não podes
suportar ( . . . ) " (Habacuque 1 : 1 3) .
Q uanto a enxergar, aplica�se à percepção visual, como •e m : "' ( . . . ) e
enxerguem [a ruína de] Sion com seus olhos" (Miqu.éias 4: 1 1) ; e , meta­
foticamente , à apreensão emocional , como em: " ( . . . } que enxergou Jud�
e Jer usalém" (Isaías 1 : 1 ) ; " (. . . ) a palavra de Deus a Abrão em visão (pro­
.r
fética] ( .. (Gênesis 1 5 : 1 ) ; e foi dito , em sentido análogo: " ( . . . ) e en­
xergaram Deus { . . .) " (Êxodo 24: 1 1) . Saibam disso.

3 �E quando Moisés saía (do acampamento) para a tenda. levantava-se todo o


povo e punha-se de pé, cada um à entrada de sua tenda, e observa va Máisis
pór trás, até ,mtrar . na tenda." (Êxodo 33:8}
·E vistonaram o Deus: d Israel: e h via deba.iixo d eus
pés como uma obra de safira, e oomo vi.são dos C us,
em sua limpidez... ·
, (&odo 24: 1 0)

CAPITULO 5
SOBRE �ODO 24, : 1 0

Antes de realizar investigaçõ - demonstrações em - - untos muito pro­


fundos. o maior dos filósoío (AnstótelesJ fez a seguinte a pologia: o In­
teressado em suas obras não deveria atribuir as m.ves · gações do auto a
p · unção, ao auto-elogio ou ao orgulho próprio nem criticá-lo em as­
suntos que ignorasse; ao contrário, cab ria . reconhec r - sua agilidade e
esforço em d obrir e estabeler:Ar t · _ verdadeiras, segundo as pos­
sibilidades do ser humano. 4
Do mesmo modo, dizemos que uma pessoa não d ve criticar ime­
diatamente um tema tão relevante e importante, sem antes ter fonna�
ção em ciências e filosofia e refinar oom afinco seu comportamento atié
d cilha:r-se de seus impulsos e desejos · agi.nativos. Somente q uan­
do compreender certos pressupostos verd deiros, dommar as regras da
analogia e da d monstração e souber evitar os erros do intelecto é q ue
poderá se lançar investigação deste tema. -ão de erá declarar de
bn -diato, algo do pensamen o que Jhe vier ao coração, nem transmitir
imedla:tament pensamentos e considerá�los aptos. à apreensão da
di\lindade. mas egurar-se, controlar-se e conter-se. a. f:un de avançar
pauJ tin.mrente.

4 Em Arlstõt - · Os Gm t o Mun® (De- C«-.14.


0•
66 MAIMÔN E O�

Decla rou-se so bre ísso : " ( . . . ) E escondeu Moisés suas faces, po rq ue


teve med o d e olhar para Deus" {Ê x o d o 3 : 6) , referin d o-se àqu i l o q u e
p e rcebeu co m o s s e n ti dos, q ua nto a o seu te m o r em ol h ar pa ra a l u z
visível - e não q ue seus olhos a p reend essem a divindad e , q ue s e e l eva
aci ma de tod as as .im perfeições com g rande superiori d ade! Mo ísés foi
elogiado por seu comp ortamento e D eus derramo u sua bondac le sobre
ele - tan to que dele foi dito: " (. . . ) E o cio n torno de YHVH olhará ( . . . ) "
· úmeros 12 : 8 ) ; os Sáb ios asseg uraram q ue foi u ma recomp e nsa por
e]e t er •· escondi do suas f aces " de imed ia to , a fim de não "o l har para
D eus" .
Tod avia , " os nob res (atsil� entre os fil hos de Israel. " (Êxodo 2 4 : 1 1 )
criticaram e transm itiram seus pensamentos imp erf eitos, e so bre eles foi
declar ado : "TI vi1 -dr u v De us de Israel ; e sob s eus p és {... ) " �odo 24 : 1 O) ,
e não simplesmente : " E virarn o Deus de Israe( , posto que o versículo ,
como um todo , apenas detalha o que viram , mas não descr eve como vi ­
ram. Na v�rdade, detaJhou-se o con teúdo da percepção derivada dos sen­
tidos - e o q ue foi percebido levou à crftica antes que houvesse condi­
ções para fazê-Ja. Mereceram o extermínio: con t u do , Moisés .intercedeu
em favor d eles e Deus J hes ou torgou u m prazo , . até que foram queima ­
dos em Ta verl' - segundo a trad ição au têntica , Nadav e Avihú [fi lhos
de Aar ão , irmão de Mo isés] 1 foram queimados na Tenda da Reuni ão
(Levít ico I 0:.2) :
Se esta foi a sentença deles , tanto mais- será a nossa. - qu e somos
inf eriores, e daq ueles que estão abaixo de nôs - que precisamos nos
dedicar e nos ocu par do aperfeiçoamento nos temas e da compreensão
dos press upostos que purificam a apreensão [racional ] de nossos equí­
vocos ; en tão poderemos olhar para o campo sagrado da divi ndade ,
confo rme fo i díto: " E ta m bém os sacerdotes que se aproximam de
YH VH , que se santifiquem , para que não os atinja YHVH" (Êxodo
1 9 :22) . Já Salomão ordenou a maior precaução a quem aspira aJcançar
este grau - e]e · afirmou, advertiu e apresentou neste provérbio� " Cui.­
dado com seus pés [passos] quando for à C3$a de Deus " (Eclesiastes 4 : 1 7) .
Volto para terminar o que havia começado a explicar: quanto- aos " no­
l
bres en.tre os filhos de Israe � , os obstáculos que se ergueram diante de
suas percepções também foram confundidos ao ]ongo de suas ações e
eles declinaram até as coísas corporais, por percepção falha. Foi dito sobre

5 Tavera: Incêndio; conforme explicado em Números l l :3: "E chamou o nome


daquele lugar Taverâ, porque ardeu ( vaard) entre e les o fogo de YHVH" .
O GLJlA DOS PERPLEXOS 67

isso: w ( • • • ) e enxergaram Deus o comerem e beberem" (l!�odo 24: 1 1 ) .


Quanto ao fi · al do seguinte versículo: w ( ••• ) sob seus pé , como lima
obra de pedra de safira ( •.•) " (Êxodo 24: 1 0� . será explicado em al g um
capitlilos d te tratado. 6
Portanto, minha intençao é deixar bem claro que sempre que os ver�
bos ver {n1a) , olhar (habít) ou enxergar (chazi} são empregados neste
entido trat de uma apreensão racional e não de uma pe:rcepção
Visual, post-0 que Deus é imperceptível ao olho,s. Contudo, não há
pmblema s uma pessoa limitada não pr tende alcançar este grau que
almejamo as-e nder e consld ra que todos esses termos, quando assim
, e mpregados, levam à percepção sen s orial de luzes cria das, sejam anjos
ou outra coisa.

6 a capitulo 2:8 desta Pan: 1 e no Cí!ipíruJo 4 da � rte 3.


CAPfTULO 6
HOMEM (ISHJ E MULHER (/SHÂ), lRMÃO (ÁCHJ E IRMÃ (ACHÓ1)

Homem e mulhersão dois termos com os quais foram denominados,


em princípio, o macho e.a femea entre os seres humanos. Posteriormente,
foram estendidos metaforicamente a todo macho e femea das demais
espécies animais. Assim, foi dito: "De todo animal (behema} puro, to•
marãs para ti sete, sete [pares de] homem (ish) e sua mulher (ishtd), e de
todo animal impuro, dois, homem e sua mulher" (Gênesis 7:2) . equjva­
lente a "macho e femea". Posteriormente, o termo mulher [como femea)
foi estendido como metáfora a todo objeto apropriado e adequado a
compor com outro, por exemplo: 'Cinco cortinas estarãojuntas. femea
(ishaJ com sua irmã (achoti} (...)" (Êxodo 26:3). Está claro que irmã
(achói) e irmão (ách) também são empregados metaforicamente como
macho e femea.
CAPÍTULO 6
HOMEM (ISH) E MULHER (/SHÁ). IRMÃO (ÁCH) E IRMÃ (ACHÓ'I}

Homem e mulher são dois termos com os quais foram denominados,


em principio, o macho e a iemea entre os seres humanos. Posteriormente,
foram estendidos metaforicamente a todo macho e fêmea das demais
espécies animais. Assim, fol dito: "De todo animal (behemiÍ') puro, to•
marás para ti sete, sete [pares de] homem (lsh) e sua mulher (ishtô), e de
todo animal Impuro, dois, homem e sua mulher" (Gênesis 7:2). equiva­
lente a "macho e fêmea•. Posteriormente, o termo mulher [como lemea)
foi estendido como metáfora a todo objeto apropriado e adequado a
compor com outro, por exemplo: "Cinco cortinas estarãoJuntas, femea
(ishaj com sua irmã (achotEÍ') (...)" (Êxodo 26:3). Está claro que irmã
(ach6� e irmão (ách) também são empregados metafortcamente como
macho e femea.
CAPÍTULO 7
GERAR (�

Todos conhecem o significado derivado da palavra gerar (i alád/ que é


parir: " (...) e lhe gerarem filhos (...) " (Deuteronômio 2 1 : 15). O termo
foi utilizado posteriormente em sentido metafórico para a geração de
coisas naturais, como em: "Antes de serem gerados (iuladú) os montes"
(Salmos 90:2); também no sentido de fazer germinar o que brota da
terra, por analogia com o parto: " (...) gerou-a (holida) e a fez germinar
(hitsmicha) (...)" (Isaías 55:lU); para novidades no tempo, como se. fos­
sem coisas que nascem: "(...) pois não sabes o que nasce hoje" (Provér­
bios 27:1); finalmente, quanto às novidades no pensamento e àquilo
que deriva das opiniões e explicações, como foi dito: "E irá gerar a
mentira" (Salmos 7: 15); do que foi dito: "( ...) e com as crias (ieldê) dos
estrangeiros pactuaram (.. .)" (Isaías 2:6), ou seja, contentaram-se com
suas opiniões, como afirmou Yonatan ben Uziel no seguinte comentá­
rio: "E pelos costumes dos povos eles se anularam". A respeito disso,
aquele que ensinou algo a alguém e lhe infundiu uma opinião é como
se tivesse gerado este homem, pois é o portador dessa opinião; foi neste
sentido que os discípulos dos profetas foram denominados "filhos dos
profetas" (II Reis 2:3), assim como explicarei quanto à polivalência do
termo ben (filho).
Foi dito, a respeito de Adão, quanto a esta metáfora: "E viveu Adão
cento e trinta anos, e gerou à sua semelhança, conforme a sua imagem,
e chamouseu nome Set" (Gênesis 5:3) ;Já lhe antecipei. o significado de
72 MA.IMÔNIDES

"a imagem e semelhança de Adão� , qual seja: nenhum dos seus filhos
anteriores obteve, de fato , a forma humana denominada ''à imagem e
semelhança de Adão" . referente à expressão "à imagem e semelhança de
fl
Deus - à exceção de Set , a quem instruiu e ensinou . que atingiu a
perfeita dimensão humana e para quem foi dito: " (.. . . ) e gerou à sua
semelhança, conforme a sua imagem ( . . .) " . Você já sabe que qualquer
um que nã·o tenha atingido esta forma, cujo sentido esclarecemos não
é um homem, mas uma besta ( bebe.mi) , com forma e t:ra.ços humanos,
dotado da capacidade de causar certos danos e males inexistentes nos
demais animais , porque utiliza a mente e o pensamento - que lhes
foram preparados para alcançar a perfeição não atingida - para todo
tipo de artifícios voltados para o mal, gerando danos e passando�se por
alguém semelhante ao homem ou por uma imitação deste. Assim ernm
os filhos de Adão ant.erio11es a Set. e a respeito deles foi declarado no
Midrásh: " Durante todos os cento e trinta anos em que Adão esteve
admoestado , gerou espíritos� , 1 ou seja, demônios� mas quando a d.ívin­
dade o quis , [AdãoJ gerou â sua imagem e semelhança. É isso o que sig­
nificam as palavras: "E viveu Adão cento e trinta anos, e gerou à sua
semelhança , conforme a sua imagem ( .. .) " .

7 Em Talmud, Eruvin 18; Gêne.sis Rabli 20:24.


CAPITULO 8
LUGAR (M4CÓM)

Ma.côm. Eis o termo cuj o u so originai ff!fere-se a um lusar particular ou


ao tod o. Po ter:iormente , a l íngua o estendeu foi utilizado para a esta�
tu ra e medida de uma pessoa , ou seja : qua nto â sua excelência em al­
gum assun o como por exemplo: · Fulano ocupa tal Jugar" em tal a s­
sunto. Voe J sabe que este nno é mu o utilizado pe os que domi ­
nam esta lín ua [hebra ica] , como p or exem p lo: " Preen che o lugar
(macóm) do . se s antepassados.� ; . � e pree nchia o l (m c6m) dos seus
ugar
antepassados m sabedo · a ou em temo "� e mais: "Ainda a controvér­
sia pennanece em seu lugar (b1mecom4, • ou seja, em sua categoria. Sobre
isso , é dito metaforicamentJ : " Bendita seja a glória de 'iHVH'. :no seu
lugar (mimecamô) " (Eze q uiel 3 : 1 2) , ou sqj a , de acordo com a. Sua es­
tatura e o Seu verdadeiro poder. Assim ê com t da expressão do "lugar" qu
da se co. m pa­
cabe a. Deus, cujo significado é� ai Sua real categolia. à qual
ra nem se assemelha, como lhe será demons.ttado adiante (ca itulo 56).
Saiba q ·e, quantQ a todo termo poli� n e que for ,exp l!cado neste
tratado , nao destj amos suscitar o q ue fico regi strado somente naq uele
capitulo ; todavia , abrtrem0 um portal e explicaremos os significados
deste termo qu servem aos nossos propósi o , não � · o o interesse
de quem fal u ma língua qualq er ,e ntre outras.. Vooê d · · examinar os
11

8 � O autor dá entender que. para a ,e lucidação d palavras-, seu ob etivo é uni­


cament. · dl.car seus. divmos sen · dos 610$68eos, prescindin � de explicações
74 MAl MÔNJ DES

Livros dos Pr,o fetas e similares entre as obras dos Sáb ios , para ,c ompreen­
der ós termos utilizad os por . tod os eles e todo termo polivale n te se g un­
do o sentido adequado ao tema corr esponden te . Esta nossa afirmação é
a. chave para es te tratado e obras semelhantes.
Como exemplo do que explicamos a qui quanto ao termo ma cóm ,
eis a sentença : " Be nd ita seja a glória de YHVH no seu lugar (mimecomõ) " .
Saiba que este termo é o mesmo que na seguinte p assagem :. U Eis aq ui
um Jugar (m.ac6m) " (Êxo do 33 : 2 1 ) , ou sej a , u m grau de contemplação
e de p ercep ção inteledual - e não o cular - (co nsiderando o lugar
indicado [a Mo isés! na montanha , que foi o de isolamen to e do alcan ­
ce da perfeição) .

de indole f i lológica ou das dive.rsas acepções das mesmas na fala comum �


{Munk) .
CAPÍTULO 9
O TRONO (KISSP)

O sentido original do termo kissê é conhecido, posto que foi no trono


que se sentaram os portadores de grandeza e estatura, como os reis; e
era algo visível, que indicava a medida de quem nele era visto, seu po·
der e grandiosidade. O Micdásh (Santuário) foi denominado trono, visto
que indicava a grandiosidade Daquele que nele se revelava e onde pro­
jetava a Sua luz e glória, como foi dito: "Um trono de glória nas alturas
desde o início é o lugar do nu��u �a11tuáriu" (Jeremias 17:12). Pela
mesma razão, os Céus foram chamados de trono, pois o seu significado
-para quem os entende e compreende - é o do poder Daquele que
lhes deu existência, que os movimenta e que governa o mundo abaixo
por Sua influência benéfica, como foi dito: "Assim diz o Eterno: 'Os
Céus são o Meu trono . (.
. )'" (Isaías 66:1); ou seja , eles testemunham a
Minha eXistência, grandeza e poder. enquanto o significado deste tro­
no é que está pronto para o que é grandioso, que lhe é visível . Nisso
precisam acreditar os que buscam a verdade, e não que exista um corpo
sobre o qual a Divindade se apóia(que é muito elevada!), pois lhe deve
estar claro e comprovado que, se Ele é incorpóreo , como poderia ocu­
par um lugar e se apoiar sobre um corpo? O fato é como eu desejo lhe
mostrar: todo lugar tornado nobre pela Divindade e separado por Sua
luz e esplendor, assim como o Micdásh ou os Céus , é chamado de trono.
Contudo, tomado num sentido mais amplo da língua, como na pas­
sagem: • (...) Porque levantou Deus a mão e jurou sobre o Seu trono ( .. .)"
76 MAlMÔNIOES

(Êxodo 17: 1 6), é uma demonstração do Seu poder e grandeza, que não
precisam ser considerados externos a Deus ou criaturas da Sua Criação,
como se Ele existisse ao mesmo tempo com e sem o trono-isso é, sem
dúVida, uma heresia. Já foi explicado e dito: "Tu, Eterno, permaneces
eternamente, e o Teu trono degeração em geração" (Lamentações 5: 19)
- prova de que o trono é Inseparável de Deus. Desta maneira, aqui e
em passagens semelhantes, a palavra trono expressa a grandiosidade e o
poder de Deus, que não são externos à sua essência - como será escla­
recido em alguns capítulos deste tratado.
CAPÍ TULO } Q

DESCER (� E S UBI R (ALA)

Já dissemos que, ao , nos referirmos neste tratado ao sentido polivalente


de uma pala vra, nossa intençà.o não é registrar todos os seus signífic a­
dos - afina l , esta não é uma obr a de lingüística -- mas mencionar, dentre
os significados, aqueles que são necessários aos nossos propósítos, e não
outra coisa. Desta ordem são as palavras descer (iarád; e subir (ala) .
Descida (Jeridi} e subida (Aliá) - eis duas palavras da língua hebraica
cu j os significados são conhecidos. Quando um corpo se move de um
lugar par a outro mais baixo, é dito que desce; e quando este se move de
um lug� par a outro mais alto, é dito que sobe. . Posteriormente, estes
dois ve rbos foram emp regados no sentido metafórico de grand iosidade
e . pode r: quando a posição de um homem é rebaixada , é dito que desce,
e quando ele c resce em posição , é dito que sobe. Assim, o Todo-Pode­
I 'OSO diz: "O pe regrino que está no meio de ti se elevará acima de ti, muito
acima, e tu descerâs muito baixo " (Deuteronômio 28 : 43) ; "( . . .) O Eter­
no , Teu Deus, te colocará adma de todas as nações da terra '' (Deutero­
nô mio 28 :1) ; "E engra n deceu. o Etemo a Salomão para o alto " (I Cr ô­
nicas 29 :25) ; e você conhece as expressões dos Sãbios: "[Deve-se] ele~
var (maalín) o que é sagrado , e não rebaixar (moridinr. 9

9 "Um exemplo esclarecedor: 'Uma comunidade pode alie nar terrenos para
destinar o valo r à co nstrução d, e uma sinagoga , Do mesmo modo , com o d i-
78 1AIMÔ NIDES

Assim também se d iz do rebaixaménto i ntelectual , a sab er: q uando


um homem vo l ta a s ua atenção para u m ass unto m ui to i n ferior, d iz-se
que ele desce u , reba ixo u -se ; e q uando volta a s ua atenção para um a s­
s un to su perior e honrado , d i z -se q ue ele su biu , elevo u -se.
Q uando est ivemos - a ma ioria das pessoas - numa posição a bai­
xo do q ue há de mais baixo no m undo , se comparados com a esfera
10
circundan te, e o T o do -Poderoso no to po das alturas, segundo a ver­
dade da Sua existência, grandiosidade e poder (não em relação à altura
do mundo) , e obstinou -se o Todo -Poderoso conceder -nos sabedoria e
insp ira ç ão profética a uns poucos de nós, chamou o estado profético
par a o profeta e a revelação da Presença Divina, em um determinado
luga r de ieridá, descida; e o fim de ambos de aliá, subida. T oda descida
,
e . subida referentes ao Criador, deve. m ser entendidas neste sentido.
,
Novamente quando recai uma calamidade sobre uma nação ou r e­
,
gião por ob ra da vontade divina - advertindo-se que os livros profêti�
cos, antes de relatarem tal . cala midade, contam que Deus "' v isitou "
as ações de u m dado povo pa ra . e m seguida , baixa r um castigo so­
bre ele - e ntão també m se e mprega aqui o termo descída, pois o ho­
me m to ma -se tão ruj m e desp rezível a ponto de suas ações serem visi­
tadas e, por elas, ser punido por vo ntade d iv ina. Isso já foí esclarec ido
nos liv ros p ro fétkos e m que f oj decla rado : "( . . .) O que é a pessoa para
,
que dela te le mb res? E o ser hu ma no , pa ra que o consideres?" (SaJmos
8 :5) , nu ma a lusão ao te ma tratado. Portanto , neste sentido que f oi
e mp regado o te r mo desc ida, co nforme se afirmou : "Vi nde, desçamos e
co nfu nda mos ah sua li ngua ( . ..) • (Gênes1s 1 1 :7 ) ; u E
desceu YHVH para
ver ( . . .)" (Gê nesis 1 1:5) " pois , e verei ( . ..)" (Gê nesi_s 18:21) .
; Descerei
O sig ni ficado em tudo isso é a vi nda da pu nição aos homens daqui
debaixo .

Qua nto ao p ri me i ro sígn ificado , a saber , quanto à reve lação proféti­


ca e à glória [d ivi na ] , os exemplos são muitos: "E Eu descer ei e ali con­
ve rsa rei co ntígo (. . .)" (Núme ros l :] 7 ) �E desceu o Eterno sobre o
:
mo nte Sinai ( . . .) " (Êxodo 19 :20 ) " ( . ..) des ce rá o Eterno aos olhos de
;
todo o povo ( . . .)" (Êxodo 19 : 1 1 ) "'E subiu diante dele Deus, do lugar
;

n heiro a rrecadado na ve nda d e exempla res dos Liv ros dos Profetas , podem -se
(Mu nk ) .
adquiri r êXe mp lare.$ ela Torá : todavia , ô éo ntrãrio ê p ro ibido '�

10 Po r ".esfera cir cu nda nte • o auto r se re fere â esfera celestia. l mais elevada , que
e nvo l ve todas as de mais . Veja sobre isso nesta P a r te l , nos cap ítulos 70 e 72 .
e na P a rce 2 , capítulo 6 e seguintes .
O GUIA DOS PERPLEXOS. 79

em que lhe fal ou" (Gênesis 3 5 : 1 3) ; � ( . .. . ) e subiu Deus da fre n te d e


Abraão" (Gê nesí s 1 7 :22).
Entretanto , quando foi dito: • E Moisés subiu a Deus (. .. )" (Êxodo
1 9 : 3) , trata-se de um terce iro sig nificado , relacionado também ao seu
sign ificado literal , "su b ir ao topo do monte " , o nde sob re Moisés des­
ceu uma l uz criada: 1 1 não que exista um lugar por sobre o q ual Deus se
eleve ou venha a descer - elevar-se-á [para longe) s i m é da imaginação
d os muitos ignorantes!

11 Isto é, uma representação da Presença D Mna, a Shechiná.


CAPITULO 11
A CONDIÇÃO DE SENTAR-SE (JESHIVAJ

O principio sobre o qual repousa este termo em nossa língua [hebraica]


--- para o assento de uma pessoa em um dado lugar - é: "E Eli Hacohên
(o Sacerdote E!.i) senta~se em um ass-ento" (I Samuel 1 : 9) . Posto que se
refere a uma pessoa que se senta em posíção de repouso absoluto , quanto
à sua posição e conforto, este termo foi aplicado a tudo o que permane­
ce em repouso e é imutável , como a referência à promessa de Jerusalém
erguida e perma nente , em condiçao de superioridade: " ( ... ) E será
erguida e assentada (iosh vea) no seu lugar (. .. ) " (Zacarias 1 4 : 1 O) ; e ain­
da: " Faça sentar (moshiv1J a [mulher] estéril na casa (. . .)" , 1 2 o u seja, Ele
a ergue e a mantém.
O termo é aplicado a Deus em seu sen;t ido último: "Tu, Etemo , per­
n
manecerás (teshev) para sempre (Lamentações 5 : 1 9) ; " ( . .. ) que perma­
neces (haiosheVJj nos Céus n (Salmos 123: 1 ) ; " ( . . . ) permanece (ioshêvj nos
Céus" (Salmos 2 : 4) -- perpétuo e pem:lanente, de modo algum suj eito
a mudança, imutável em Sua essência, é nada há Neie passível de mu­
dança ; e não mudará a Sua relação com os outros seres, pois não há ,
entre Ele e q,u alquer outro ser, r1!lação a ser modificada por si mesma

1 2 "Assente a !mulher] est.é ril n a casa. feliz mãe d e filhos., Louvado seja. o Er.er­
no, HaJeJu-Jâ (Salmoo 1 1 3:9) .
82 MAJMON!DES

(como será explicado adiante). Portanto, a perfeiç.ão da Sua essênciaé


total e absolutamente im utável, como Ele deixou claro e declarou:" P or­
que Eu, o Eterno, não mudo" (Malaquias 3:6), isto é, não há em Mim
mudançade qualquer espécie . Esta é a idéia expressa pelo termo íeshívá
. quando se refere a Deus.
Na verdade, em muitos lugares [o termo) é relacionado aos Céus,
considerando-os isentos de m udançaou substituição, vale dizer, que não
mudarão como os indivíduos que existem e perecem no mundo terre•
no. Quando empregado nas relações do Deu sTodo-Poderoso, ou seja,
como homõnimo às relações existentes com as espéciesdos seres vivos e
perecíveis, também se diz sentar [permanecer], pois estas são tão cons­
tantes, organizadas e reais como os seres celestiais . Portanto:" Que per­
manece (haioshê0 sobre o cí.rculo da Terra" (I saías 40:22} - - que se
perpet ua, permanentemente, sobre a esfera terrestre - - vale dizer: que
aponta para as cois as existentes dentro daesfera . Também foi dito: "O
Eterno acimado Dilúvio permaneceu (iasháv}" (Salmos 29:10} . E m
outras palavras: mesmo com amudança e deterioração das coi sas
terrenas, não ocorre a Deus qualquer mudançapor sua relação [com o
mundo]. De fato, a sua relação com qualquer coisa - quer seja exis­
tente ou perecível - permanece a mesma, posto que diz respeito às
espécies existentes e não aos indivíduos . Fica então estabelecido que todo
uso do termo ieshívá, quando aplicado aDeus, encontra-se neste sen•
tido .
CAPÍTULO 12
CONDIÇÃO DE LE ANTAR-SE (KIJWA}

Kimá é um rmo pol iva l nt . Um dos u ignill.c-a dos - do verbo


levantar-se - oontrapõ -s à condição de- sentar�se (ieshivi} : "E não se
te,,.ranrou (ká.m) nem se move d ame dele ( . . .) " {Ester 5:9). Dele deri a
outro significad o , o de confirmar e estabel r algo: ü Confirmará (lakêm)
o Eterno a sua palavra� (I Samuel 1 : 2 3) : " E contJrmou-se ( Vaiacám) o
8
ca mpo de Efron. ( . . . ) '' ; 1 3 (, . . ) confirmar-se-á ( vecá:m) a c:asa q ue está
na adade ( . . . ) : 1 4 '"E estabelecer-se-á ( vecamá,I em suas m· os o reino de
Israer (1 Sam e1 2 :20). E sempre no segu n ,e sentido q u :se di i kim:í;
e
com ref rência ao Todo -Poderoso: UAgo ra Jevan�me-ei (Acúm) l -
d iSse o Etern o" (Salmos 1 2 : 7 ) , - o mesmo que dizer: agora confirma-
1:1ei minha palavra e meu desígnio para o bem e para o mal ; Elguer-te-ás M

(Atá tacúm) terás misericórdia de Sion (... ) " (Salmos l 02: 1 4) . ou seja.
estabeleça o que Tu designaste : para a nmer icárdia [de Ston] .
Q uando :ma: pessoa resol ve fazer algo Macorda p reali.Zã-l o ,
be/<.imá, diz- deste que despertou (cám) : " Po Js despertou (hekim) meu

13 · E conft rmou: -se o campo d e Efrron (. . . ) para Abrão, p o eompra. a os oJhos


de C h , d to d os os q u e v i n ham pel a po rta da sua Cid de" (Gên esls
23: 1 7 - 1 8) ,
14 " ,( ... ) e confl.rm.ar�se-â a ais q 1.1 es tá n a dd d e q u tem mu ro, e m perpe,ui-
dade. p ra q uel'e que a c.om prou , par su r
raç&s (••• (Le icleo 25 :30) .
84 MAIMÔNIOES

filho o meu servo contra mim" (1 Samuel 22:8). Eis uma metáfora para
cransmitir um decreto divinocontra um povo que recebeu uma sentença
de morte: "E me ergui ( VecámtJ, por sobre a casadeJeroboão [laravám)"
(Arnós 7:9) : "E ergueu-se (vecám) por sobre a casa dos ímpios" (lsafas
23: 1 O). É possível que a declaração "Agora, levantar-me-ei" também se
aplique neste caso, bem como •Erguer-te-ás (Atá taalm) e terás miseri·
córdia dê Sion•, no seguinte sentido: "Erguer-me-ei contra teus inlmi·
gos'' . Há muitas passagens com este sentido -- não que [literalmente)
se levante ou se sente - Deus nos livre disso! -, mas como disseram
nossos Sábios: Não hã sentar-se (ieshiva) ou erguer-se (amida) no Mun­
do Superior -já que o termo ·erguer-se• virá muitas vezes no sentido
de levantar- se (cám).
CAPÍTULO 13
A CONDIÇÃO DE ERGUER-SE (AMIDÀ)

Amidâ é um termo polivale nte. Tem o sen ido de uma pessoa se erguer
n
e. ass i m perma necer: ÜAo se erguer (beamedó} diante do Faraó (Ginesis
41 1 : 1 6) ; .. Embo tenham se erguido (iaa�, Mo· · Samuel O re­
mias 1 5 : 1 ) ; "E ,e fe se �ueu (omêO, diant deles" (G nesis ] 8:8) . E hâ
tamb m o sentido de parar e · nterromper: " Po is eles p_ >rara.m { amedú)
e não respond rarm" Qó 32: 6) · "E parou ( Vetaamõcô de procriar"
(Gênesis 2 9: 35) . Outro é o de permanecer e su portar: .. Para que per­
m.a neça:m (iaamedú) por mui os dias O rem ias 3 2 : 1 4) : " E po � rás
suportar (amdc/J • {Êxodo 1 8 : 2 3 ) ; " S u sa bor permaneceu ( am.ádJ
nel · " Uerem ias 4 8 : l l ) , ou · �a. parou e · fixou s� m qualquer aJ e ­
raç.ã o : E s u a J us iça permanece ( om 'det} pa r-a s m p re (Sa l mos
H 1 : 3) . ou seja , estabeiece-s e perdura et, mame :n e. Toda a amidá
refe11ente ao Todo-Poderoso deve :s.er compreend i d a e rn seu senti d a
ú l t m o , como em : " E lff'CUlll'•Je-ào '1?amedú) seu s pés naq uele d ia
sob e o . onte das Olivei ras" {Zacarias l :4) , e for, a m expostos os
seus motivos , o u s ja . suas ca sas. Is o se rá eluc ' dado mais ad i te
q u ando tratarmos dos diversos si-gn ífü;: ad os do termo Tégue/' 5 (pé) .
Vo]tando a este ti rmo [amidâ) , [deve se entender} as palavras de Deus

1 5 No capitulo 28 da Pane l .
86 MAJMÔNIDES

a Moisés: "E tu permaneces (amód} aqui comigo" (Deuteronômio 5:28):


e [de Moisés para os hebreus]: "Eu permaneço (omêd} entre o Eterno e
vós" (Deuteronômio 5:5).
CAPITULO 14
A POLIVALÊNCIA DO TERMO ADÁM

Quanto ao termo polivalente Adám, que é o nome do "primeiro ho­


mem" , derivado, segundo está escrito, 16 de adamá, terra, 1 1 este também
denomina a espêcie: "Não lutará comigo o Meu espírito por causa do
homem (Adám)" (Gênesis 6 : 3) ; "Quem conhece o espírito dos seres hu­
manos (bene Adam) " (Eclesíastes 3:2 1 ) ; "O homem (Adám) não é me­
h
lhor do que um animal selvagem (Ecleslastes 3: 1 9) . Há também o sen"
tido de multidão, vale dizer: o povo, exceto os privilegiados: "sejam povo
(benê Adá.m) ou sejam nobres (benê ish) � (Salmos 49:3) .
E há um terceiro sentido: "E vtram os filhos dos senhores (benê
haelohím) as fil has dos homens (benót Adám) ·· 13 (Gênesis 6:2) ; "Porem,
como homem (adám) , você deve morrer" (Salmos. 82:7

16 Na Bíblia.
1 7 "E formou YHVH Deus ao homem (Adám), pó da terra {ada.m;Í') (. . •) � (Gé­
nesis 2:7) .
18 Aqu i se entende a -expressão .Bene Haelohim como referente a membros de um@
dada ei i te, i nte�ados em mufüen�s " plebéias" - é não como supostos seres
d Ninos, cuja leitu ra super ficial da expressão poderia supor.
CAPITULO 15
PERMANECER OU POSICIONAR-SE (NAT.S'ÁVOU IAT.S'Áv)

Embora as raiZes de natsáve iatrávsejam distintas, o significado é o mes­


mo em todos os seus usos, como você sabe. O termo, polivalente, às
vezes será usado no sentido de permanecer e posicionar-se, como em •E
permaneceu 14tetatsá0 sua irmã de longe (.. .)" (Êxodo 2:4); "Posicio­
(
naram-se (ltiatsevú) os reis da terra (...)" (Salmos 2:2); " (...) saíram,
posicionados (nitsavím) (Números 16:27). Também denota eleva­
(...)"
çao e permanencia, como em: " (...) Sua palavra é permanente (nitsá0
nos Céus• (Salmos 1 19:89), ou seja, elevada e permanente. Tudo o que
deriva deste termo, no que diz respeito ao Criador, carregaeste sentido:
"E eis que o YHVH permanecia (nitsá0 sobre ela (...)" (Gênesis 28: 13),
a saber, elevado e permanente sobre ela - a •escada" cuja primeira e x ­
tremidade está nos Céus e a última n aTerra - por onde galgará todo
aquele que subir, até que alcance Aquele que está necessariamente so­
bre ela, posto que está, Elevado e Permanente, no topo da "escada".
Está evidente em meu tratado que "sobre ela" é usado no sentido
metafórico e "Os anjos de Deus" são os profetas, dos quais assim se fala:
"e enviou um anjo" (Números 20:16); " E subiu um anjo de YHVH de
Guilgal para Bochim" UuiZes 2:1). Quão adequada é a afirmação "su­
biam e desciam"! -a "subida" (alia) antes da "descida" (ieríd;f'J, posto
que, após a "subida" e a chegada nas alturas do conhecimento através
da "escada", haverá a "descida" daquilo que foi encontrado sobre o as­
sunto - com o objetivo de orientar e ensinar as pessoas do mundo.
90 MA! MONIOES

Eis o real significado deste termo , conforme Já expli.camos !no capitu­


lo 1 0 ] .
Voltemos ao nosso tema : ''permanecia (nits.áv) sobre ela" sign ifica
"para sempre, permanente, perpétuo" - não uma permanência mate­
rial , como em·: � (. . . ) e te pon& de pé ( venitravta) sobre a rocha ( . .. ) " (Êxodo
33:2 1) . 1 9 Já lhe foí explicado que nitsáv e amád têm aqui o mesmo sig­
nificado , como foi dito : " E is que Eu estou/permaneço (omêd) diante de
ti, ali sobre a rocha em Horeb ( . . .)" (Êxodo 1 7 : 6) .

19 Deus orientou Moísés p ara que s e p�icJonasse sobre u m pe.nhasco, para dentro
de cuja fenda. deveria e.r,r trar qua11do passasse a Sua glõria. Maimõnides utiliza
este ven;iculo como exemplo do uso concreto do termo natsiiv.
CAPÍTULO 16
ROCHA (TSURJ

Tsuré um termo polivalente. Significa monte:" E baterás na rocha/monte


(batsur) � (Êxodo 17:6); e também pedra dura, como a pedra sílex:
"Facas de pedras (tsurim)" (Josué 5:2). Em seguida é empregado com
o significado da fonte da qual foram cortadas as pedras originais:
"Olhai para a rocha (tsur) de que fostes cortados" (Isaías 51 :1 ). Daqui
deriva-se a metáfora do último significado, que denomina a raiz e a
origem de todas as coisas . Sobre isso se afirmou (após as palavras:
"Olh a i para a roch a de que fostes cortados"): "Olh ai para Abr ahão
vosso pai ( . .)"
. (Isaias 51 :2), conforme se explica : a rocha • de que
fostes cortados" é "Abrahão vosso pai" . Por isso, sigam por seus ca ­
minhos, acreditem na sua instrução e conduzam-se à sua maneira ,
pois é evidente que a natureza·da fonte encontra-se naquiloque dela
é extraído.
Portanto, o Todo-Poderoso é denominado Rocha neste último
sentido, pois Ele é o Início e a Causa Ativa (Hassibá Hapoéiei'J de
tudo o que existe além Dele, conforme é dito: "A Rocha, perfeit a é
sua obra" (Deuteronômio 32:4); "A Rocha que te formou, omitiste
e esqueceste do Deus que te gerou" (Deuteronômio 32:18); " (...)
senão que Sua Rochaos vendera ( . .)" . (Deuteronômio 32:30); "Não•
há rocha como nosso Deus" (I Samuel 2:2); "Rocha Eterna" (Isaías
26:4). " E te porás de pé sobre a Rocha" (Êxodo 33:21), ou seja, apóie­
se e firme-se na convicção de que Deus é a origem , que Ele é a fonte
92 MAIMÔNIDES

que você alcançará, conforme esclarecemos [no capítulo 8) por meio


d e Suas próprias palavras: " Eis um lugar junto a Mim" (Êxodo
33:21).
CAPfTULO 17
SOBRE O E SINO DE TEOLOGIA E CffiNCIAS ATURAIS

N pense que somente :no, nsmo de teologia ( cho:chmá elohiÍj ao povo


que emas nos conter, mas também no da maior parte das ciências
naturaiS (�t hatéva) J·
compartilhamos as segwrnes palavras [ dos
S biosJ : ª _ad d Maasre .&reshit (o Rela o da Criação) em dois� .20 Este
prl ncfpio não vai somente entre os adeptos da Torá, mas tam bém n­
á
t:re o antigos filósofos e s bio das outras na9ões. , q , e oCl.dtavam os p rln­
d p los e falavam na fonna de enigmas· Platão e os qu vtenm antes cha­
m - am a matéri· de feminino e a forma de masculín o. l 1
Voe sabe q e os princípios [dos seres] existentes e p :reciveis são três:
.matéria. forma e uma privaçao p:rópEia à matéria - p o q ue se assim
não fosse. esta se a incapaz d receber forma; port:an o , a privação :faz
par dos prindp os. Ao receber forma, cessa uma privação e a ma ,·ria
pas a a ter outn - e assim por diante , como explicado nas ciênc ias na­
tu ra is.22
E se eles {os filósofos] , qu nao sofrem de perda d da.reza questio­
navam estes termos e estudav m seu simbolismo , ta nto mais se e-pera

20 Na Abel-tu •
2 l Platão. Tlm�u.r. Aristótel . F_tsiC11, Livro l (}v!aimônid ) .
22 rtstôte1es, Ffs/ca {Maimôn 'd ) .
94 MAIMÓNIDES

que nós, comunidade de homens religiosos, evitemos elucidar algo que


seja de difícil compreensão parao povo, tampouco permitamos que se
imagine a verdade como algo contrário do que se pretende aqui. Preste
atenção nisso também.
CAP1TUlO } 8,

APROXIMAR-SE (CARÃ11, TOCAR ( 14CÃ) E ABORDAR ( �CÂS'}2'

Estes três termos - aproxima.ç ão (kerivi) , toq ue (negui§J e abordagem


(neguishá) - às vezes a parecem no sentido de contato e aproximação
no espaço; e outras vezes como apreensão do conheeimento pela inte­
l igência , do mesmo modo como um corpo, se aproxima d outro. a
verdade , o pri meiro sentido d kerivti é d ap oximação · pacial. " E foi
quando se 'Proximou (tará� do aca mpamento" (Êxodo 3 2 : 1 9) ; " E o
Faraõ aproximou-se (hikerfiif ' (Exodo 1 4 : 1 0) : o de nceulâ � da rnqne
de um corpo em outro: - tOCDu ( vat.a.fâ} seus pés {hxodo 4:25) : �E
º

rocou ( vafa.glJ sobre minha boca" {lsaias 1 6 : 1): e o d e neguishá é d e uma


pessoa d irtgl r�se a outra abordá - la : .. E abordou -. o ( vaigásh) Judá "
(Gênesis 4 4 : 1 8) . O segundo sentido destes três termos é o da apreen­
são de co,nh cimento e de contato oorn a compreensão , n o com o es­
paço. Q uanto a neguiá, no que se refere à apreensão do conhecimento, .
afinna-se: " Porque o seu j u ízo rocara (na1JJ os Céus· Oeremias 5 1 :9) ;
e quanto a kerivá: " E a causa q ue for d ificil para vós • .aproximem-na
( takeri vün) de m t m" (De u � ronõmi o 1 : 1 7 ) , com o se d clarasse : " fa •
çamos c o m q ue , e ]e sa i ba � , posto ,q u e mpregado para u m a. i.nfor•
maç ão conhecida: e qua nro a neguish.t. " E aproximou -se ( vajgásh)
brahà-o e disse" (Gênes 1 8: 2 3) . relacionado à profecia e à V:isào
profética , oomo será expHcado ad iant , 23 " Visto qu aproxima

23 Capl ulo 2 · da: Parte l e aipítulo 4 1 da Parti 2.


96 MA!MÔNIOES

(nigásh) este povo de mim, com sua boca e com seus lábios me honra"
(Isaías 29: ..1 3) .
Todo termo encontrado nos L.vros Profêticos, cujo significado é o
de aproximação ou abordagem [para descrever a relação] entre o Todo­
Poder-oso e o que Dele foi criado, é tomado sempre no último sentido,
posto que_Oeus não ê um corpo {como será demonstr-a do neste trata­
do 24 ) . Assim sendo, Ele nào se aproximará nem tocará em nada, e nada
poderá se aproximar Dele ou tocá-Lo. pois o ser desprovido de corpo,­
reidade nã.o ocupa lugar no espaço. Portanto, é inaplicâvel [neste caso]
q ualquer aproximação, contato ou distanciamento, bem como uníão
ou separação, toque ou proximidade.
Acredito que você: não tenha dúvidas quanto às palavras a seguir:
H Próximo (caró0 está Deus dos que O invocam" (Salmos 1 45 : 1 8) ; "A
proximidade (kirevárj de Deus nos é desejável" (Isaías 58: 2) ; "A proXi­
midade (kirevá� de Deus é boa para mim" (Salmos 73:28) . Todas são
referent;es à aproximação em direção ao conhecimento, ou seja, à sua
apreensão - não a espacial . Deste modo, afirma•se: " ( . . . ) que tenham
Deus próximo (kerovím) de si" (Deuteronómio 4 '. 7) : u Aproxima-te
(keráv) e ouça" (Deuteronômio 5:24) ; " E abordará ( Venigásh) Moisés,
sozinho , o Eterno, e eles não abordarão (igashlÍ) (Êxodo 24:2) . Agora,
ff

se você quiser tomar o que foi dito sobre Mois�s - " E abordará
( venígásh) " - ,como se ele fosse se aproximar do lugar na montanha
onde a Luz - vale diZer: UA glória de Deus" -· surgiu diante dele, tam­
bém é possível. Contudo, saiba que o principal é que é indiferente se
uma pessoa está no centro do mundo ou nas alturas da nona esfera 2 -s
(se isto fosse possível) : ele nào se distanciará de Deus, no primeiro caso,
e tampouco se afastará Dele, no último; a aproximação em direção a
Deus ocorre por meio do conhecimento,. e o afastamento ocorre àque­
les que Dele se mantêm ignorantes. Entrr: esta aproximação e distan­
ciamento há inúmeras gradaçõe.s umas acima das outras. Eis que escla.­
:recerei em um dos capítulos deste tratado 26 como isto é uma vantagem
do ; [nosso] ponto de vista.
Certamente, as palavras'. " Toca (Ga; as montanhas e elas fumegarão"
(Salmos 1 44:5) querem dizer metaforie-amente: "Imponha a sua pala-

24 Capítulo 4 cl!a Parte 2.


25 A esfera celestiaJ mais elevada. Veja no capitulo 4 da Parte 2.
26 Capítulo 59 da Parte l e capitulo 36 da Parte 2.
O CUIA DOS PERPLEXOS 97

vra sobre eles" , assim como: " Toque-o ( vegá e/ atsm6)" Üó 2:5) querdízer:
"passe a sua aflição para ele".
Assim também é com o termo toque e o modo como é empregado
em nossa língua, interpretado em cada lugar conforme o seu contexto:
às vezes significa o toque de um corpo em outro, às vezes a apreensão
de conhecimento e a compreensão de um certo assunto. É como com­
preender algo que antes não se entendia, ou seja, aproximar-se de um
assunto que antes lhe era distante. Entenda isso.
CAPITULO 19
CHEIO (M4!1)

Maieé um termo polivalente utilizado na língua [hebraica] para um oor­


p que atua sobre outro e o pieenohe: "E eJ1cheu ( vatemalé) seu câ nta­
"'
ro (Gênes"s 24: 1 6) ; .. Endl i (me16'} um ome?I del " (&odo 1 6:32) .
entr outros rexemplosJ . Esta palavra também é utiliz ada no sentido de
conclusão e encerramento de um período de tempo determinado: " E
completaram-se ( Vaimeieú) seus dtas (Gênesis 25:24) : " E se completa­
ram pam ele ( Vaime/eú-lõ} quarenta dias· (Gênesis 50:3) . S.ignifica a"ín­
da a perfeição e finalidade da capacidad d pensam nto: Cheio (malê)
w

da benção de YHYH " {D - uteronômio 33: 2 3) : ''A tes encheu (mll/J


da sabedoria do coração" �xodo 35 :3S): .. Estava cheio ( 14J'ma,J; de
sab dona, inteligência e conhecimento• (I Rei s 7: l ) .
É afirmado neste sentido: " Cheia (Melo) estã toda a terra da Sua g?ó­
rla'' (Isaias 6:4), , vale dizer: leda a terra d.á evidências da Sua Perfeição,
ou seja, atesta-na. Assim cambém se diz: WE a glória de YHVH encheu
(mal� o Tabernáculo� (bodo 0:34) . Todo "termo de completude que fi

se encontra aplicado a Deu deve ser entendido neste sentido, e não


como um corpo preenchendo um espaço. Po,r outro lado, se você qui-

27 Medida de um reue de ellp s&j ceifüd� correspondente d cima parte d uma


eftf (pouco mau de 39 Uuos.).
100 M.'JMÔNrDES

ser aplicar "a glória de YHVH" como uma luz criada, de modo que se
considere •a glória· em todos os lugares, tal como em •encheu o taber­
náculo", não há problema.
CAPfTuLO 20
ELEVAR (RÁME NASS/4

Rám é um termo polivalente que significa elevação espacial, mas tam·


bém de posição, a saber: grandeza, honra e reconhecimento. Quanto
ao primeiro sentido: •EleVllntOu·se ( liátarám) [a arca) de sobre a terra"
(Gênesis 7: 17). No segundo sentido: •Elevei (harimoCJ, um escolhido
dentre o povo" (Salmos 89:20); "Posto que te eleveí (harimotícha) do
pó" (I Reis 16:2); "Posto que ce elevei (harfmotícha) dentre o povo" (I
Reis 14:7). Toda vez que a palavra haramá é aplicada a Deus, refere-se
ao sentido último: •Elevado (Rum;FJ nos Céus é Deus" (Salmos 57:12).
Assim também nassá pode significar elevação espacial ou em posto
e dignidade. No primeiro sentido: "E elevaram (vaissú) seu alimento
sobre seus jumentos• (Génesis 42:26). Há muitos exemplos como este.
referentes a carregar e mudar, posto que se trata de uma elevação espa·
eia!. No segundo sentido: • Eserá elevado ( �linru:sé) o seu reino" (Nú­
meros 24:7}; "E levou-os e elevou-os (vaínassem}" (Isaías 63:9); "E por
que voselevais (titena=') • (Números 16:3). Toda vez que o termo nessiá
estiver relacionado ao Todo-Poderoso, ele estará no seu sentido último:
•Eleva-te (.ftimuii),juiz da Toerra" (Salmos 94:2); Assim
• d1sse o Altíssimo
e Elevado (Nisd°J" (Isaías 57:15), isto é, quanto à altura do posto, posi·
ção e elevação, porém não no sentido espacial.
Talvez você encontre dificuldades quando eu falo "a altura do pos·
to, posição e elevação•, e poderá dizer: "Como você atribuisentidos di­
ferentes a um único termo?". Eis que lhe será esclarecido mais adiante
l 02 MAIMôN!DES

que aqueles que alcançam uma apreensão perfeita de Deus não consi­
deram que Ele possua diversos atributos, mas que todos que descrevem
a Sua Força, Grandeza, Poder, Perfeição, Bondade, entre outros remon,
tam a um único sentido, que é a Sua Essénda, e nada além desta.
Eis que dedi,c arei alguns capítulos 28 aos nomes e atributos [de
Deus] ; na verdade, a intenção neste capítulo foi mostrar que rám e nissá
não devem ser compreendidos no sentido de elevação espacial. mas sim
de posição.

28 Capítulos 5 1 a 68 desta Pane l (NT) ,


CAPITULO 21
PASSAR (AV�

Avál'. seu primeiro significado refere-se ao deslocamento do corpo no


espaço, principalmente no seu primeiro sentido -quanto ao mOVimen­
to dos seres vivos ao longo de uma linha reta: "E ele passou (aváJJ cllan­
te deles" (Gênesls 33:3); •Passa (Avó,1 diante do povo" (Êxodo 17:5)
- e são multes (os exemplos]. Em seg,ulda a metáfora [aplica-se] ãs vozes
no ar: •Efizerampassar( l4iiavíru) uma voz pelo acampamento" {t,codo
36:6); "Que eu ouço passando (maavirlm) o povo de Deus• (I Samuel
2:24). Em seguida a metáfora [aplica-se] à vinda da Luz e da Presença
Divina (Shechini). vistas pelos profetas em ºvisão profética", conforme
foi descrito: "E eis que um forno fumegante e uma tocha de fogo passou
(avár) por estas metades (dos animais]" (Gênesis 15:17) - els que foi
em "visão profética·, posto que o início da narrativa diz: "E um sono
pesado caiu sobre Abrão (Gênesis 15: l2)". E quanto a esta metáfora é
af'"irmado: "E passarei(avart:J, pela terra do Egito"(Êxodo 12:12) e tudo
o que lhe é slmílar.
Representa também outra metáfora referente a quem faz uma ação.
exagera nela e ultrapassa o limite, conforme foi dito: "E é como um ca ­
valheiro perpassado (avaro) pelo vinho" Ueremias 23:9). Também é uma
metáfora relacionada a quem falha em uma ação, cuja intenção e obje­
tivo eram outros: "E ele atirou a flecha, que ultrapassou (/ehaavir6) [o
outro]" (I Samuel 20:36). E me parece que a (segulnte] passagem está
conforme esta metáfora: "E passou (v.aiaavór} Deus diante do seu ros-
104 MA.CMÔNWiES

to" ( t:xodo 34:6) - sendo que o sentido de seu rosto'' r, ecai sobre o
Eterno. Assim interpretaram os ''sábios": que "seu ros o" refere-se a Deus.
e, se isto lembra claramente as hagadót Iexplicações metafóricas ] , aqui
não é o lugar delas - ainda que reforcem. um pouco o nosso p onto de
vista - e o sentido de "seu rosto" aplica-se ao Santíssimo ( Cadosh Baruch
Hu) . Esta explicação e. s tâ de acordo com o meu ponto de vista: que
Moisés (que a paz esteja com ele) solicitara determinada percepção -
denominada "a visão do rosto" - mas lhe foi d ito: . �E o Meu rosto não
será visto" ( Êxodo 33:23) ; então lhe foi permitido ter uma per,cepção
inferior â solicitada , a saber, aquela que percebeu como "a visão das
costas" , nas pal.avras: "E verás Minhas costas" (Êxodo 33:23) . Já expu­
semos este assunto no Mishnê Tor:á,'ZS , e m que foi afirmado que o Eterno
Deus encobriu dele esta percepção denom inada ilvisão do rosto w e subs­
tituiu-a p o,r outra:, a saber: o conhecimento dos movimentos atribuí­
dos a Deus , dos quais se pensa que são muitos,. tal como será expHca­
do. 30 Q uando digo "encobriu dele� [ de Moisés ] . quero dizer que e-sta é
uma percep çã o ocu]ta, inacessível por sua natureza, e que todo homem
integro cuja mente está concentrada naquilo que a sua natureza permi­
te alcançar e pede por outra, além desta, terâ sua percepção atrapalhada
ou a p erderá - como será ex p licado em um dos capítulos deste Trata­
do3 1 - a menos que a Ajuda Divma o acompanhe· , como nas se guintes
p alavras: "E deitarei minha p alma sobre ti a.tê que Eu tenha passado"
(Êxodo 33:22) .
Entretanto, o Targuní3 2 seg uiu seu p ró p rio método acerca destes as­
suntos, a saber, q ue em toda ex p ressão relacionada à Divin dade q ue im­
plica corp oreidade ou propriedades co rp orais, hã uma eli pse inerente;
e o mesmo ocorre quando a ex p ressão é ap licada à DNindade. Sobre as
p alavras: "E eis que YHVH estava sobre ela Ia escada ] " {Gênesis 28: 1 3) ,33
[ele p arafraseia ] : "A pala,vrà de Deus vinha do alto"; e [ novamente ] so-

29 Esta obra magna.Jurfclic.i de Maimônides, escrita em hebraico, p retendeu sis­


tematizar todo o conteúdo do Ta:lmu.d. Aq ui o autor se raefere ao Sefer Hamadá
(Livro do Saber), Tratado l:esode Hatorá {Funda_mentos da Tora) , capítulo 1 .
p arágrafo 10.
30 Ca pítulo 54.
31 Ca pftulo 32.
32 Targum de Onkelos, q ue traduziu o Pentateuco para. o aramaico.
33 Refere-se ao famoso sonho de Jacob, sobre uma escada q1.1.1� ia da terra ao céu,
com anjos de Deus subindo e descendo por ela.
O CUIA OOS PERPLEXOS l05

bre as palavras: "Vigie o Eterno entre mim e ti" (Génesis 31:49), (ele
parafraseia]: "A Glória de Deus contemplará"; e assim prossegue seu
método (que a paz esteja sobre ele). E deste modo fez a respeito das
palavras: "E passou YHVH diante dele e chamou• (Êxodo 34:6), [pa­
rafraseou]: •Epassou ( Va!aav6r} Deus a sua Presença Divina diante de
seu rosto e chamou", posto que aquilo que •passou", em si mesmo, era
Indubitavelmente material; ai o sentido de •seu rosto" recai sobre Moshé
Rabênu {Moisés, Nosso Mestre) e o signiflcado de "seu rosto" (aipanáVJ
é [o mesmo que) "diante dele" (letanáV), como em: " E passou ( �taavói}
o presente diante dele (aipanáVJ" (Gênesis 32:22). Este também é um
belo e bom significado, e o escrito seguinte reforça a explicação de
Onkelos, o Prosélito (de abençoada memória): "E será, quando passar
(baavóry a minha glória" (Êxodo 33:22) -já explicado que aquUo que
"passa" é atribuído ao Eterno, mas não é o próprio Deus (elevado seja o
Seu nome!); e sobre a Glória [divina) é dito: "Até que passe (adavrl)".
Portanto, se é impossível não levar em conta as elipses - como
Ünkelos, que sempre as considerava, ora acrescentando o termo "gló­
ria·, ora ·palavra". ora "Presença Divina". conforme o contexto em cada
caso - eis que nós também acrescentaremos aqui o termo faltante •voz•,
e a frase ficará: "E passou a voz de Deus diante do seu rosto e chamou·
{;á explicamos. no início deste capítulo, o uso metafórico para a "voz"
da "passagem", narrada em Êxodo 36:6: •Efizeram passar (vaiaavíru)
uma voz (c6� pelo acampamento"). Assim "a voz" será quem "chamou·.
Não deve haver objeção a se relacionar o "chamado" à "voz", posto que
estes mesmos termos encontram-se no relato sobre a palavra rte Deus
dita a Moisés: "Ouvia a voz(có� falando com ele" {Números 7:89); e,
assim como a "fala" foi relacionada à ·voz", do mesmo modo relacio­
namos aqui o "chamado" à ..voz". Já mencionamos como a relação da
"fala" e do "chamado" à "voz" se explica: "Uma voz fala: Chame! E fa ­
lou: O que chamarei?" {Isaías 40:6). Este sentido, conforme seu con­
texto, é: "E passou uma ·voz' vinda de Deus e chamou: 'Deus! Deus!'".
Eis que a palavra "Deus" é repetida no chamado, pois é Ele quem é
chamado, como em: "Moisés! Moisés!" (Êxodo 3:4); e em: "Abrahão!
Abrahão!" (Gênesis 22:11). Esta também é uma explicação muito bela.
E não venha levantar a objeção de que este assunto profundo, dificil
deser compreendido, sofre muitas interpretações, porque isso em nada
nos prejudica. Cabe-lhe escolher qual delas você deseja: ou ficar com
esta grande cena que é, indubitavelmente, toda a •visão profética•, e todo
o esforço de compreensão racional - o que [Moisés) pediu, o que lhe
foi ocultado e o que alcançou - tudo racional, sem o uso dos sentidos,
! 06 MAlMÔNlDES

conforme explicamos acima; 34 ou ficar com a percepção visual de um


objeto criado [material] cuja contemplação levaria à totalidade da
apreensão racionat conforme interpretou Onkelos (se é que esta per­
cepção visual não é também uma "vísão profética", como ocoueu com
Abrahã.o em Gênesis 1 5: 1 7: "E eis que um forno fumegante e uma tocha
de fogo que passou . . . '') ; ou, ainda, ficar também com a percepç.ão au­
n
ditiva, e esta ''voz será aquela que "passou diante de seu rosto" - o que,
sem dúvida , também é material. Escolha a idéia que quiser, p ois a in­
tenç.ão é que não acredite que o sentido das seguintes palavras: "E pas­
sou" seja o mesmo de: ª Passa diante do povo'' (Êxodo 1 7: 5) , pois o
Eterno Deus não é corpo nem pode lhe ser atribuído movimento assim
como não se poder dizer que Ele "passou" conforme o primeiro signi­
ficado do termo.

34 No segundo parágrafo deste capítulo.


CAPÍTULO 22
VlR (8�

O termo "vinda" (BiaJ na lingua hebraica refere-se à chegada de alguém


a um certo lugar ou até oucra pessoa, como em: • V
eio (B;ÍJ teu irmão
com esperteza" (Gênesis 27:35). Também significa a entrada de alguém
e m determinado lugar, como em: "E veio ( l/2iiavõ) José para casa"
(Gênesis 43:26): "E será quando entrardes (tavõu) na terra" (txodo
12:25). O termo ainda é uma metáfora para a chegada de um assunto
em geral incorpóreo: "Pois virá (iavõ) tua palavra e te honraremos"
Üuh: es 13:17); "O que virá (iavõu) sobre ti" (Isaías 47: 13). Por fim,
aplica- se a algumas privações: •E veio ( 1/2iiavõ) o mal (... ) e veio ( vaiavó)
a escuridão" Üó 30:26). Posto que esta rpetáfora é aplicada para algo
em geral incorpóreo, também pode aplicar-se ao Deus Criador - para
a vinda da Sua palavra ou da sua Presença DMna (ShechinaJ conforme
é dito: "Eis que Eu venho (bá) a ti, na espessura de uma nuvem" (txodo
19:9); "Porque o Eterno Deus de Israel t!fltrou (ba, por ela" (Ezequiel
44:2). A tudo o que lhe é semelhante, designa a chegada da Shechina�
"E virá ( Uvi} o Eterno meu Deus, todos os santos com Ele" (Zacarias
14:5), a saber, a Vinda (bó) da Sua palavra, qual seja, a confirmação das
Suas promessas feitas por intermédio dos Seus profetas. Eis o que é dito:
"Todos os santos com Ele·, como se dissesse: "E veio a palavra do Eter­
no, meu Deus, por intermédio de todos os santos [que estão] com ele'",
referindo- se a Israel.
CAPÍTULO 23
SAÍDA (JETSJÁ)

letslá {saída) vem em contraposição a hiá (vinda} . Este termo refere-se


â saída de um corpo de um lugar onde estava em descanso para outro
- seja este corpo um ser vivo ou não: "Eles saíram (iatsú) da cidade"
M
(Gênesis 44:4) ; "Quando sair (tetsi) fogo (Êxodo 22:5) . Aplica-se tam­
bém metaforicamente à manifestação de algo incorpóreo: ''A palavra saiu
(iatsaj da boca do rei" (Ester 7:8) ; " Pois sairã (iets-ê) a notícia sobre a
ra1nha (Ester 1 : 1 7) , ou seja, a noUcla será transmitida; - Pois de Sion
fl

sairá (tetsê) a Torá [a Lei] n {Isaías 2:3) , e ainda: "O sol saiu (iatsá) sobre
a terra" (Gênesis 19:23) , isto é, apareceu a hu.
Segundo esta metáfora, toda •·expressão de saída" deve se referir ao
Toda-Poderoso: "Eis que o Eterno sai (iotsé} do Seu lugar" (Isaías 26: 2 1 ) ;
ou seja, a Sua palavra, antes oculta, agora é manifesta, a saber· renovou­
se o que nos renovará após a inexistência,35 pois tudo o que se renova
por si prôptio é Deus, conforme suas palavras: "Por Sua palavra foram
criados os cêus e, pelo sopro de Sua boc-a , tudo que nele-S exis-e" (Sal­
mo& 33:6) . Embora semelhante às ações vindas dos reis, que se valem
de seus instrumentos - as palavras [ordens] - para fazer-em valer suas
vontades, o Todo-Poderoso não necessita de instrumento para agir, posto

35 Em hebrai.co : Hitchadi!sh má menitchadêsh ac'har sheló haiá.


l JO MAIMONIDES

que Sua atividade o corre tão somente conforme a Sua vo ntade; tam­
pouco há qualquer espécíe de fala , como será explicado. 36
Não obstante u ma entre as atividades [do termo] "saída" m anifes�
tar-se metaforicamente. conforme expl icamos com a expressão UEis que
o Eterno sai do seu lugar " , e.sta também pode ser aplicada à desconti­
nuidade desta açào , como ''retorno" de acordo com a Sua von tade, nes­
tas palavris: "Andarei , retomarei (ashúVa) ao meu lugar" {Oséias 5 : 1 5) ,
cujo sentido é a saída da Presença D ivina (Shechina} do nosso meio,
fazendo com que sejamos privad os da sua Proteção Divina (Hashgacha) ,
conforme foí dito com uma triste finalidade: " E esconderei o meu ros­
to dele, e será por presa• (Deuteronômio 3 1 : 1 7) , pois quando a Prote­
çã o Divina desaparece , [ o homem] ficará abando nad o e exposto a tudo
o que pode vir e acontecer, e a sua sorte - o bem e o mal - estará sujeíta
ao acaso, conforme indicado nas palavras: "Irei, retornare i ao Meu lu­
gar" . Como é dura esta determ inação!

36 Cap!tuloS, 55 e 59.
CAPITULO 24
O ANDAR (HALICHA)

A Ha!ichá também está entre os termos - e estes são muitos - que


expressam movimentos particulares de um s er vivo: "E Jacob andou
(halách) por seu caminho" (Gênesis 32:2). Também é uma metáfora para
a expansão de corpos mais sutis do que os dos seres vivos: "E as águas
foram andando (halóch) e minguando" (Gênesis 8:5); "E andou .
( Vatihalách) fogo na terra" (Êxodo9:23). Em seguida, aplica-se à pro-
,.pagação e manilestação de algo, e, se este é absolutªmente incorpóreo,
afirma -se: "A sua voz, como uma serpente andará (ielêch)" (Jeremias
46:22); e também: "A voz do Eterno Deus andando (mit'halêch) pelo
jardim" (Gênesis 3:8) - esta é a ·voz'' da qual se diZ que estava "an­
dando".
Segundo esta metáfora, tod a "expressão do [processo de] andar" re­
ferente ao Todo-Poderoso deve se referir a algo incorpóreo, seja uma ex­
pansão, seja uma retração da Proteção Divina (Hashgacha], assemelhan ­
do-se ao [movimento) de um ser vivo quando este se desvia diante de
algo; este é o seu "andar". E é pela "ocultação do rosto" que se retrai a
Proteção da Presença Divina, conforme as palavras: "E Eu, certamente,
esconderei o Meu rosto" (Deuteronômio 31: 18). Assim também é de•
signado corno •o andar" o caso de retirar-se de cena, conforme as pala­
vras: "Andarei (Ílech), voltarei para o meu lugar" (Oséias 5:15).
Contudo, nas palavras "E acendeu-se a irado Eterno contra eles; e
Ele andou (ieléch)" �úmeros 12:9), há dois sentidos em um só, a sa·
112 MAIMÔNIDES

ber: a retirada d a Proteção Divina, expressada por: "e Ele andou"; e o


d e Ele haver dirigido a palavra. juntamente com Sua revelação e mani­
festação, por meio desta " ira acesa" que "andou" e estendeu-se até eles,
cuja conseqüência foi: "Eis que Miriam estava leprosa, branca como a
neve"(Números 12:10).
A metáfora para a"expressão do [processo] de andar" também é apli­
cada às condutas apropriadas, sem qualquer relação com o corpo, con­
forme as passagens: "E andares( vehaláchta) por Seus caminhos" (Deu­
teronômio 28:9); "Após o Eterno, vosso Deus, andareis (telechú) " (Deu­
teronômio 13 :5); "Andem e andemos (Lêchu venelch;f) na luz de Deus!"
(Isaías 2:5).
CAPITULO 25
HABITAR (SHACHÁN)

Sabe-se que o sentido da palavra shachán é o da constância em perma­


necer em um local: "E ele habitava (shochén) em Elonê [nas planicles
de] Mamrê" (Génesis 14: 13); "E aconteceu que quando habitava
(bishecón) em Israel" (Gênesis 35:22). Isto é público e notório. O sen­
tido de habitar em um lugar é o da constãncia e permanência no lugar
- neste lugar -, pois é pelo prolongamento da permanência de um
ser vtvo em determinado lugar, seja comum ou particular, que se pode
afumar que ele habita lá, ainda que esteja em movimento. Também serve
de metáfora para um ser inanimado, ou melhor, para tudo o que se es­
tabeleceu e permaneceu ligado a outra coisa. Disso também se afirma
que é "expressão de uma morada", mesmo que a coisa sobre a qual se
estabeleceu não seja um lugar ou um ser vivo, conforme as palavras: • Que
habite (dshcán) sobre ele uma nuvem· Oó 3:5). Não há dúvida de que
a "nuvem• não é um ser vivo, tampouco um "dia" é um corpo, mas uma
divisão de tempo.
É assim que estametáfora se apllca :ao Todo-Poderoso, de acordo com
o que foi explicado: quanto à permanência da sua Presença (Shechin;F)
ou Proteção Divina (Hashgacha") em qualquer lugar onde persiste a
Shechiná ou em qualquer objeto que conte com a Hashgachá, con­
forme foi dito: "E habitou ( Vaishecón) a honra de Deus" (Êxodo
24: 16): "E habitarei ( VeshachántJ) entre os filhos de Israel" (Êxodo
29:45); "E com a benevolência (do Eterno] que habitou (shochenl} na
114 MA!MONIDES

sarça" (Deuteronômio 33: 1 6 ) . E tudo o que for proveniente deste mo­


vimento, que esteja relacionado ao Todo-Poderoso, é no sentido da p e r ­
manência da sua Presença DiVina - a saber, Sua Luz criada - n o lu­
gar, ou a permanência da Proteção Divina em um objeto, conforme o
seu contexto.
CAPÍTULO 26
SOBRE O VERDA D E IRO SENTIDO DO TERMO "' MOVIMENTO "
QUANDO APLICADO A DEUS

Você já conhece a posição deles 37 no que se refere a todos os tipos de


interpretação relativa a este assunto: " Falou a Terá conforme a l fng ua
dos seres humanos" , 38 ou sej a , q ue assim d evem ser vistos , com relação
ao Todo- Poderoso , to d o conteúdo e forma passíveis <!le entendimento
por todo ser h umano na primeira tentativa de comp reensão. Isto d es­
creve os atributos q ue lcvum à co rporeidad e . orie ntando - os que Deu s
existe, pois, numa primeira tentativa d e compreensão, a s pessoas comuns
não conceberão a ex.istência senão apenas como ligada a um corpo, e aqui­
lo que é incorpóreo ou que estã ausente no corpo não existe para eles.

37 "Os dizeres dos Rabis [os Sábios do . 1àlmud} . . . Maimônides i nterrompe mais
u ma vez aqui suas explicações sobr� o,s termos poli valentes para falar d o :sen­
tido que deve ser dbpensado ao ·movimento' atribu ído a Deus. Este cápitulo
e o próximo , que em alguns manuscritos constituem um só, relacionam-se aã
capítulo 24, poiis sem dúvida o que mo"e o autor a este respeito é o significa•
do do verbo haMch (andar) " (Munk, ci tado por Maeso} ..
38 "EsÍlil a.fin,uJção de Ma imõn ldes, inescapável e absol utamente ev! denciad a pelas
leis da natureza , na l inguagem bf blíca e sua interpretação, é u_m pri ncí pio
admitido n ivem.lmente. · ão obstante, deve-se lembrar o empenho ext raor­
dinário de Onkelos, em se u Targum (tradução do Pentateuco do hebraico pai-.1
o ara maico) , para atenuar ao máximo o a n cro pomorfismo de Deus no texto
bibliço, que é o cema deste ca pít ulo" (MaesQ) .
! 16 MAIMON IDES

Tudo o que para nós é perfeição re ,ere-se a D us - para nos ensmar


que o Eterno é perfeito em rodas as marieiras de perfe ição. · que abso ­
lutament não hã falta o u aus:ência Nele_ E tudo o que a p soas co­
muns considerarem fa l ha ou a u sência , não se at ribu i rá a El : nem a
com. ida . bebid a , so, n o . e n ferm�dade . injustiça o u coisa mel bante.
Porém, tudo o que elas considerarem como perfe ição consider�o assim,
mesmo qu não seja [consid erado] p rfeição em nosso melo ; no entan­
to, para Deus, aquilo que todos consideram p r feição decididamente
são fal has. Contudo, alguns atribuiram esta nossa imperfeição pessoa l,
humana, · Deus, o qu · , segundo, ,e J , seria um falha na S . lei.
Você sabe que o rnovirnento · u ma das capacidades d e um ser vivo
e é indispensâvel para seu aperfeiçoamento , pois assim. como precisa
comer. b ber e repo · o que perd . tti m ta mb m p� do movimen­
to para se oltac ao que l!he é bom habítual, bem , o omo para se livrar
do que 1h mau e àqu i lo que contrapõe. E na o há diferença entre
atribuir a Deu.s a com i a e a bebida e atribu�r o movimen to. Todavia,
segund.o · " U:ngua dos serses humanos" - · - ou seja, a crença popular -
a comida a bebida eram uma falha da lei div na , enquanto o movi­
mento não , embora o que motiv o movimen •O seja a necessidade. Já
foi expl icado no mod lo :39 que tud o o que se move e tern u ma ce rta
medida de grandeza , sem duvi da alguma ,. dM,s [vel; e foi explicado em
seguida , 0 q ue Deus ê 1 corpóreo não tem medida de grandeza� tam­
bém n ão se Lhe pode . tri buir m oVimento ou descanso , pois só descan­
s-a aquel q ue se locomove por s u caminho. Todos estes e nnos que
ensinam sobre os mo, imentos do seres vivos o aplicados a Dell'S da
maneira , c omo dissemos - assim como se Lhe atribui a vida - pois o
moVimento é um acidente ineren . ao ser v ivo. Não há d úvida d e que,
o se excluir a corpo, v tdade , e)()cl u i -se tudo isso , saber: descer, subir,
andar, parar, .l evantar. rodear, sent , morar, sair, entrar. p,assM •e rudo o
que se pareça com isso.
Eis o assunto . Est nder-se mai preciso , rf o para exercitar o pen ­
samento das pessoas comuns , mas porque é n essário esciar cer aque­
les que se dedicam ao ap rfeiçoarn nto pessoal e deles retirar. com certa
ampl i:tud - que1es oonoeitos prov nientes dos · - us anos de j uventude. ,
como fizemos..

39 Anst:ót . Física, livro 6, capitulo 4, , e Hvro 8. ca p it ulo 5 (Maimõnídes) .


40 Artst6 · el . Fmca. final d:a obra �mnômdes) .
CAPITULO 27
(CONTINUAÇÃO DO TEMA DISCUTIDO NO CAPÍTULO ANTERIOR)

Ünkelos, o Prosélito, perfeito no domínio do hebraico e do aramaico,


esforçou-se para remover a corporeidade e tudo o que, no Pentateuco,
pudesse sugerir isto, interpretando- o conforme o se u contexto. E tudo
o que pode ser encontrado, a partir destes termos, passível de ser inter­
pretado como um, entre outros tipos de movimento, ele apresenta no
sentido de manifestações ou aparições de luz criada, _a saber: a Shechiná
(Presença Divina) o u a Hashgachá (Proteção Divina). Portanto, para
"Descerá o Eterno" (Êxodo 19: 11), sua tradução é: "Manifestar-se- á o
Eterno"; "E desceu o Eterno" (Êxodo 19:20); "E o Eterno se manifes­
tou" (e não: "E o Eterno aterrissou"); "Descerei, pois, e Verei" (Genesis
18:21): "Manifestar-me-ei, pois, e Verei", e assim prossegue em sua
interpretação.
Por outro lado, ele traduziu "Eu descerei contigo ao Egito" (Gênesis
46:4) como "Eu baixarei contigo ao Egito" [ou seja, literalmente) - o
que é maravilhoso, pois denota a perfeição deste senhor, a excelência da
sua interpretação e de sua compreensão das coisas como elas são. Eis
que, com esta tradução, abre-se diante de nós um entre os grandes te­
mas da profecia:
O início desta narrativa afl!111a: "E falou Deus a Israel em visões da
noite e disse: Jacob, Jacob! (...) E disse: Eu sou o Deus (...) Eu descerei
contigo ao Egito" (Génesis 46:2-4); e quando ficou claro que este iní­
cio se referia às "visões da noite", Ünkelos não deixou de relatar de
l lS Ml\lMÔNrDES

maneira literal - ou seja, a verdade - pois era exatamente , e ste o fato


descrito ; mas não traduziu da mesma fonna o acontecido em. : u E des­
ceu o Eterno sobre o Monte Sinai" {Êxodo 1 9:20) um relato sobre
aquilo que se renovou entre as coisas existentes. Aqui [Onkelos] acres­
centou as Hmanifestações "e afastou-se, assim, do que poderia sugerir a
lidéia] de reãlidade do movimento e das coisas da ímaginação. Ou seja;
o relato do que lhe foi dito permaneceu fiel ao fato - e isto é maravi­
lhoso!
E com isso yocê irá se dar conta de que há uma grande diferença entre
"no sonho" ou "'nas visões da noite", e "na cena• ou "na manifestação" ,
bem como entre o que será simplesmente díto aqui: ''Eis a palavra do
Eterno sobre m:i m , dizendo" Oeremías 1 :4) , e: "E falou-me o Eterno,
dizendo" {Deut.eronõmio 2: 2) .
É também possível, na minha opinião, que Onkelos tenha interpre­
tado "Elohim" , conforme está dito aqui, como anjo, e por isso mante­
ve: "Eu baixarei contigo ao Egito". Não se afaste da crença de]e de que
" Elohim." era um anjo que af i rmou [a Jacob] : "E disse: 'Eu sou Deus, o
Deus de teu pai" (Gênesis 46:3) , pois esta sentença ta..;.,bém foi profe­
rida por intermédio de um anjo. Assim sendo, veja o que [Jacob} rela­
ta; "E disse-me um anjo de Deus no sonho: Jacob!. E eu disse: A q ui
estou · (Gênesis 3 1 : 1 1) ; e as seguintes palavras no final do diálogo: "Eu
Súu o Deus de Ber-El, onde erigiste urn. monurnenro a mim , onde a mim
fizeste uma promessa" (Gênesis 3 1 : 1 3) . Não hâ dúvida de que Jacob
prometeu a Deus e não a um anjo; entretanto, assim dizem os profetas:
o relato das palavras que lhe foram proferidas por um anjo. em nome
de Deus, na lín gua p or El.e ralada p ara eles. E em todas estas [ p assa g ens]
há uma elipse. como se tivesse sido dito: �Eu, o enviado do Deus de teu
pai" : "Eu sou o en víado do Deus q ue se revelou para ti ern Bet-E!" , e
similares.
E eis que muito se dirá aqui sob:re a profecia e seus níveis◄ 1 e sobre os
anjos. � 2 conforme a intenção deste Tra t ado.

4 l Parte 2, capítulos 32 a 36.


42 Parte 1, capitulo 49; P.irte 2, capítulos 6 e 7: e Pane 3, capítulos 1 a 7.
CAPITULO 28
PÉ (RÉGUEL)

Réguel é um termo polivalente. Denom i n a o pé • d e um ser vivo: " Pê


(régue� por pé (réguef' (Êxodo 2 1 :24) . Também tem o sentido de se
seguir alguém: "Sai tu e todo o povo que está a teus pês (beraglêtha) "
(Êxodo 1 1 :8) , ou seja, aqueles que te seguem. Recai também no senti­
do de causalidade: " E te abençoou o Eterno pelos meus pés (leraglzj "
(Gênesfs 30 : 30) , isto é, por minha causa, por mim , pois o que ocorre a
um se deve a outro , que, por sua vez , é a causa desta ocorrência - e isto
acontece com freqüência ; "Ao pé/passo (/eréguel) do trabalho que está
diante de mim , e ao pé/passo (leréguel} dos meninos" (Gênesis 3 3 : 1 4) .
Caso seja dito : " E erguer�se-ão seus pés (ragláv) .naque]e d ia sobre o
Monte das Oliveiras" (la.carias 1 4 :4) . si g n ifica que foram expostos os
seus motivos, 43 a saber: as maravilhas que então estavam p ara ser v.istas
neste lugar. cuja causa era Deus, ou seja, Ele era o agente da ação. E p ara
esta interpretação inclinou-se lonatà n ben Üzie] {que a paz: esteja sobre
ele) ao afümar: " E [Elel irá se manifestar em Sua bravura neste dia no
Mome das Ol iveiras" ; assnn, (Ionatãn] trad uzirá toda ação de contato,
e movi mento por ªSua bravura" [Seu poder] , pois a intenção de todas
elas se l'efere às ações decorrentes da vontade de Deus.

43 Veja no capítulo 1 3.
120 MAIMÔNlOES

De fato, a interpretação das p alavras "E havia debaixo de Seus pés


(rag!â0 como uma obra de pedra de saflra" (Êxodo 24: 1 0) , por Onkelos,
como vocé já sabe, é que o termo "Seus pés (rnglá� " está em Iugar do
assento conforme suas palavras: "E sob o trono da Sua honra" . Com­
_preenda e admire-se com o distanciamento que Onkelos assume da
corporeidade [de Deus] e de tudo o que nela resulta, até mesmo de lon­
ge, po.is ele não disse: "E sob o Seu trono" , porque isto estaria ligando
literalmente o trono a Deus e implicaria que Ele se apóia em um corpo,
o que, por sua vez, implicaria [a Sua] corporeidade: mas [Onkelos] :re­
,.
laciona o "trono à "Sua honra" . ou seja, à Shechiná (Presença DiVina) ,
que é luz criada. Portanto, [OnkelosJ escreveu seu Ta.rgum (tradução)
para "Porque a mão sobre o Trono de D eus" (Êxodo 1 7 : 1 6) como "Da
Shechiná (Presença Divina) de Deus sobre o trono de Sua glória''. E assim
você compreenderá a linguagem popular quando esta se r-efere a " O
Trono d a Glória".
Acabamos desviando do tema deste capítulo para algo que será ex­
plicado em outros. � 4 Voltemos, então, para o tema deste.
De fato , como ê de seu conhecimento quanto à interpretação de
Onkelos, o princípio do seu método é o distanciamento da corp orei­
dade [referente a Deus] . Entretanto, não nos foi esclarecido o que per­
ceberarn 45 e o que se p:retende com esta metáfora. Na verdade, Onkelos
sempre evitou entrar neste assunto; apenas afastou e isolou a corporei­
dade,já. que isto é demonstrado, obrigatório por fé e convicção (emunÁ) ,
decretado e determinado como o necessário sobre o tema. Entretanto,
a explicação do sentido desta metáfora é dúbia: pode ser que te:nha sido
esta ou outra a intenção. Estas coisas ainda estão ocultas, não há esda­
recimento pa:ra e'las entre os fundamentos da crença (Judaica] nem ê
simples a sua compreensão pelas p essoas comuns - por isso [Onkelos]
evitou abordâ-las.
Entr,etanto, para nós. conforme o tema deste tratado, não é possível
deixar de explicí;l.r isto. Diremos então q ue, com as palavras "debaixo
dos seus pés (rag]á'I) ", se quer dizer "por Sua causa e por causa Dele" ,
conformejá expl icamos,' 6 E o q ue eles (veja em Êxodo 24: 9-1 0) com-

44 Veja os ca pítulos 64 e 70,


45 Refere'--Sé a: "E subiram Moisés e Aarão, Nadab e Abihu, e setenta anciãos de
Israel. e visionaram o Deus de Israel: e havia debaixo de Seus pés como uma
obra de pe dra de safira, e como a visão dos cél,IS, em sua limpidez" {Exodo
24:9- 10).
4 6 No primeiro pará,grafo deste capíwlo.
O CUIA. DOS PERPLEXOS 121

preenderam é a verdadeira natureza da Primeira Matéria como uma


emanação do Todo-Poderoso, que é a causa da sua existência. Preste
atenção a e.stas palavras: " Como urna obra de pedra (livená'ij de safira" .
pois é como se a descriçã.o da visão fosse: w Como a brancura (kelivená�
da safira" , e acresoenta-se o termo "obra (maasse) " , pois a matéria, como
você já sabe, 47 é sempre passiva, move-se segundo a sua natureza e só ê
ativa devido a um acidente - parece que a forma sempre se move por
conta própria, no entanto ela é movida por acidente, conforme expli­
cado nos livros de ciências naturais 4 8 - e por isso se diz " como uma obra
(kemaassi; • . Por outro lado, a expressão "a brancura da safira" refere-se
ao brilho (zohai:} , 49 não à percepção da cor branca, pois a "brancura"
da safira não vem do branco, mas tão somente da transparência - e
esta não é vista, conforme se explica nos livros de ciências naturais, 50
porque, se assim o fosse, não se poderia ver nem receber todas as outras
[cores] : portanto, como a matéria era transparente, permitia que se vis­
sem todas [as cores] e deixava transpassar cada uma delas, uma após a
outra. Isto se refere à Primeira MatêrJa, que, segundo sua própria es­
sência, carece de qualquer fonna e por isso r,ecebe todas as formas uma
após a outra. Assim sendo, o que e)es viram foi a Primeira Matéria e
relacionaram-na ao Eterno, sendo esta a primeira das Su:as criações su­
jeita à gênese e à destruição, a qual Ele criou do nada - sobre isso novas
explicações virã. o mais adiante. 51
Saiba que você precisa de uma explicação como esta até mesmo para
a interpretação de Onkelos, que disse: UE sob o trono da Sua honra" , o
que significa: na verdade a Primeira Matéria também está sob os céus,
i.Jeuum.inados utrono" , conforme ficou estabelecido anteriormente. 52 Eu
não me atentar ia a esta interpretaç-ão maravilhosa, da qual ouviremos
em alguns capítulos deste Tratado.� ou encontraria este sentido se não
fosse por Rabi Eliezer ben Hurcanos. A intenção fundamental de toda
pessoa inteligente deve ser o distanciamento da [idéia de] corporeidade
referente a Deus e se concentrar ern todas estas percepções como men­
tais e não sensoriais. Entenda e compreenda isSo.

47 Parte 3. capítulo 8.
48 Aristóteles, Física l :9.
49 No �entido de ''transparência� (NT).
50 Arts�ót.eJes. De Anima. Ljvro 2, capítulo 7.
51 Parte 2 , capítuJ.� 1 3 e 19.
5.2 Capítulo 9.
53 Parte 2, capitulo 2. 6 .
CAPÍTULO 29
AFLIÇÃO (ÉTSEl1

Étsev é um termo polivalente que significa dor e sofrimento: "Com


dor (Beétsev) darás à luz" (Gênesis 3: 16). Também significa raiva:
"E jamais ficaram irados contigo (atsavõ) teus pais"(I Reis 1 :6)- e
não sentiram raiva; "Pois ficara irado (neetsáv) com David" (I Samuel
20:34)- ficara com raiva por causa dele.Outro sentido é o da de­
sobediência: "Rebelaram-se e desobedeceram (veitsevú) o Santíssimo"
(Isaías 63: 1 O); "Desobedeceram-no (laatsiVuhu) no deserto" (Salmos
78:40); "E se me vires no caminho da desobediência (otsêv) " {Salmos
139:24); "Todo os dias às minhas palavras desobedecem (ieatsêvu)" (Sal­
mos 56:6).
Sobre o segundo e terceiro sentidos é dito: "E pesou-lhe ao Seu cora­
ção" (Gênesis 6:6). Conforme o segundo sentido(rajva). significa que
Deus irou-se com eles devido à maldade das suas ações, conforme as
palavras "ao Seu coração"; e assim também foi dito no caso de Noé: "E
disse o Eterno ao Seu coração" (Gênesis 8:21) - ouça o seu sentido:
com respeito ao ser humano, quando este "fala em seu coração" ou "fala
ao seu coração" trata-se de algo que não é expresso nem comunicado ao
seu semelhante. Do mesmo modo, refere-se a todo assunto que Deus
desejava tratar e não falou a profeta algum naquele momento e m que se
passou o ocorrido, segundo a Sua vontade, conforme foi dito: •e disse
o Eterno ao Seu coração" - corresponde à maneira humana de tratar
um assunto pessoal, conforme a norma "Falou a Torâ conforme a lín-
1 24 MAlMôNlOEs

gua dos seres hu manas" . 54 Isto claro e e:xp ·cito. Posto qu , a res.­
p f· da rebelião d "'geração do Diluv io" , a To r · (Pentateu co) não es­
c la rece se um mensageiro l hes fõra e nvia do n aq u e le m o m e n o , nem
adv rtências , o u ameaças de mot te. afi.nna-se so - - o ocorrido q ue Deus
es va irado corn -· es .. em Seu co - çãoi'' - Da mesma maneira , quando
foi da Sua vontade que nunc mai$, haveria u.m H DHúvio.. , não disse a
um profeta : "Vã , - conte-lhes isso" , neste caso se d iria : "ao se u coração " .
Entretanto, a lnte rpretação pa ra " E pesou- l he ao Seu cot ção" con­
for.m.e o, terceiro sen ido será a segu i nte: o ser h umano desobedec u a
vontade de Deus a seu r�ito , posto que "coração (lê� " também pode
ser c hamado de vontade. como sera explicado obre a poli val " nc ia do
ter _o � coração". 55

54 Capítulo 26.
55 Càipltuto 39.
CAPITULO 3Q
COMER (ACHÓL)

O primeiro sentido, da palavra achól na língua [hebraica] refere-se à ob­


tenção de alimento por pa.rte de um ser vivo, para o que não há neces­
sidade de exemplos. Em seguida, a língua vê o processo de comer de
dois modos: o primeiro sentido é o do consumo, do objeto comido , ou
seja. a perda da sua forma original; e o segundo sentido é o do cresci­
mento de um ser vivo de acordo com aquilo que seu organismo extrai
do aiímento, a manutenção da sua preservação e existência, bem oorno
a reposição das forças físicas por meio deste. Conforme o primeiro sen­
tido, a "expressã.o do processo de comer" é uma. metáfora para todo
consumo e perda [da forma original] , e em geral para tudo o que perde
a sua forma: KE vos consumini (.achlaj a terra de vossos inimigos" (Levítico
26:38) : � Uma terra que consome (ochélet) seus moradores" (Números
1 3:32) : "'Sereis consumidos pela espada (reucbl!Í) � {Isaías 1 :20) ; '' Om­
sumini ( To.chá!} a espada" (II Samuel 2:.26) ; UE ardeu neles o fogo do
Eterno , e consumiu ( vatochá� parte dos indignos que havia no acampamen­
to� (Números 1 1 : 1); "Fogo consumido.r (ochli) é Ele" (Deuteronômio 4:24) ,
a saber: que destJrói os rebeldes como o fogo destrói o que estiver ao seu
alcance. Hã muitos exemplos. Conforme o último sentido, a "expressão do
processo de comer" é uma metáfora para a sabedoria e o estudo, e em geral
para todas as percepções mentais por meio das quais se preserva a forma 56

56 Conforme definido, no capítu]o 1 .


MA! MÔN ID.ES
I 26

hu mana [mental! em p erfeito es tado , assim como o alimen to mantém


o corpo na s ua mel hor condição: " Venham, comprem e comam" (Isaías
5 5 : 1) ; H O uçam o meu chamad o e co mam o que é b om " {Isaías 5 5 : 2) :
" C omer m u ito mel não é bom " (Provérbios 2 5 : 27) ; " Meu filho , coma
mel porque é bom, e o favo de mel é doce ao teu paladar; assim é a
obtenção de sabedoria par a tua alma" (Isaías 2 4 : 1 3- 1 4) . Assim se apli­
ca tamb ém a m uitas das declarações dos Sábios [do Talmud ] , isto é, que
utiliza m o termo � comida" no lugar de " sa bedoria ": " Venham comer
carne gorda na casa de Ravá " ;57 e disseram: "Toda com ida e bebida da
qual se fala neste livro não é outra coisa senão Sabedoria nss (e em algu­
mas versões: Tora) ; e muitos 59 chamam a sabedoria de " água " : "Oh, . todo
r
aquele que tem sede, venha para as águas (Isaías 55: 1 ) .
Assim como isso foi f eito freqüentemente n.a língua [hêbráica] e pa­
receu se estabelecer como se fosse o significado original, o mesmo ocor­
reu com os termos "fome " e "sede " no sentido de falta de sabedoria e
apreensão: E E n viar ei fo me à ter ra , não a fome de pão e não a sede de
água, mas de ou vi r as pa lavras de Deus � (Amós 8 :1 1 ) ; "Sedenta está mi­
nha a l ma de Deus , do Deus vivo " (Salmos . 42 :3} - e sã, o muitos os
exemplos. E traduziu Io natá n ben Uz ie) {que e steja em paz) as palavras
"E t irareis água co m alegria das fontes da salvação ( Ushávtern máim
bessassón, mimaai nê haieshua'f (Isaías 12 :3) , co mo: "E receber e is uma
nova i nst rução co m alegria dos eleitos e ntre os justos " . Preste atenção
na sua inte r p retação de "água " co mo a sabedoria que virá naque les dias;
e das " fo ntes (maainé)" co mo " dos o lhos (meeinê) da congregação " , 60 a
sabe r: os líde res , que são os Sábios; nas palavras: " dos eleitos e ntre os
justos " , ejs que a �justiça " é a ve rdadeira " salvação � . E veja quanto sen­
tido te m cada palav ra deste passúc (frase referente à sabedoria e ao es­
)
tudo . P reste ate nção nisso .

57 Ta!mud , Baba Batro 22 .


58 Ta lmud , Kohele t Rabá , cap ítulo 3 , versículo 13 .
59 Ta lmud , Baba Cama 17 , 82 .
60 Núme ros 15 :24 .
CAPITULO 31
SOBRE OS LIMITES DO INTELECTO HUMANO

Saiba que a percepção do intelecto humano ocorre conforme a sua ca­


pacidade e naturez a . Na realidade este é incapaz de perceber algumas
coisas existentes e não pode fazê-lo, pois, para estas, os portões da per­
cepção estão trancados; são coisas das quais a mente apreende um as­
pecto e ignora os demais, ou seja, não quer dizer que, por ter capacida­
de de compreensão, compreenderá tudo . Assim é com os órgãos dos
sentidos, que são incapazes de perceber a qualquer distância imaginá­
vel , bem como as demais capacidades físicas: um homem, por exem­
plo, apesar de poder transportar duas cargas, é incapaz de transportar
dez. As diferenças entre seres da mesma espécie no tocante às capacida­
des de percepção sensorial e força física são de conhecimento de todos.
Contudo, há um limite: não se pode atingir qualquer di.stãncia imagi­
nável ou [carregar] qualquer medida desejável.Isto também se aplica às
faculdades mentais humanas: há grandes diferenças entre as pessoas�
o que também já está mais do que claro para aqueles que dominam o
tema - posto que um indivíduo é capaz de compreender um assunto
por si mesmo enquanto outro é absolutamente incapaz; e mesmo que
isto lhe seja ensinado por um longo período de tempo , através de todo
tipo de métodos e exemplos, não conseguirá aprender de forma algu­
ma, pois não é suficientemente inteligente para isso. Esta diferença tam­
bém não é absoluta: sem dúvida alguma, a capacidade intelectual hu­
mana tem um limite que não há como ultrapassar.
1 28 MAI MONIOES

Há co isas que uma pessoa sabe q ue estão a l é m da co mpreensão hu­


mana e sua alma não a nseia conhecê-las , con vencida de q ue lhes são ina­
c essíveis e que não há por onde e n trar a fim de alcançar o seu entendi­
mento - por exemplo , ign oramos o número de astros no céu6 1 e se estes
exístem a os pares ou isolados; também ignoramos o número de espé­
cies animais , m inera is e vegetais , e assim por dia nte. Por ou ro lado ,
e xi stem coisas cuj o desejo huma no de com preensão é imenso, e u m
notável esforço intelectual para pesqu isá- las e ten tar explicá-las ocorre
em tod o gr upo de investigad ores em todas as épocas. S o b re estes assun­
tos as teorias são muitas, há discordâncias entre os pesqu isadores e no­
vas dúvidas surgem , p ois suas inte l igê ncias anse iam por comp reende­
las - q uer d izer, são pessoas apaíxonadas pelo tema ; assim sendo , todo
i ndividuo acha que encontrou a mane ira de sa ber a verd ade sobre um
dado assunto. Entretanto , a capacid ade intelectual h umana não tem
como prová- lo , já que uma coisa demonstrada não fica sujeita a discor­
dância, desmentjdo ou obstáculo ; somente urn �gnoran te d iscordará e
sua discordância será denominada a contradição evidente (hamachlóket
hamoftil} . Assim, você encontrará pessoas que d iscordam que a . terra é
esférica, q ue o movimento da esfera [celeste ! é circular e assim por diante
- estas pessoas nós desconsideramos ..
Quan to às questões sobre as quais costuma incorrer esta confusão ,
muitos são os assuntos teológicos, poucos são os naturais e não há dú­
vidas quanto aos es tudados pelas ciências exatas .
Alexandre de Afrodisia f>i afirmava que as causas para as discordâncias
nes tes as sun tos são três : a pri meira delas é o apego ao p oder e à polern i -
a , q ue impedem o indivíduo de apreender a verd ade como ela ê; a se­
gu nda é a sutile za ineren te ao assunto , bem como a sua profundidade e ·
dificuldade de com preensão ; a terceira é a pró pr· a ignorância e capací­
dade limitada do investígador para compreender o as sunto em questão
- assim est abeleceu Alexandre. Em nossa época hã uma quarta causa
não mencionada por ele, pois não existia, qual seja: o costume e o est u­
do. As pessoas naturalmente gostam daquilo a que estão acostumadas e
que as atrai . Você pode observar isso entre os camponeses: eles raramente

61 Segundo a Tora, Deus fez Abião olhar para fora e disse: "Olha p ara os céus, e
oon� as est relas, se podes contá-las · {Gênesis 15:5).
6 .2 A1exandre de A f rodisia foi um �célebre comentarista de Aristóteles do f inal
do século li e l nfcio do século ID da Era Comum, que desfru.tou de grande
autoridade entre os gregos e o� árabes. Maimõnides o cita dezenas de vezes.
muitas vezes somente por seu primeiro nome ( ...) • {Maeso) .
O CUJA DOS PERPLEXOS 12 9

lavam suas cabeças e corpos, privam �se do lazer e têm dificuldades para
se manter; por sua ve-z, têm aversão às cidades e menosprezam suas d i­
versões, preferindo as condições ruins, às quais estão acostumados, àque­
las boas que desconhecem: e vo cê não os convencerá a morar em palá­
c ios, vestir [roupas de] seda ou banhar-se com óleos e perfumes. . O
mesmo pode se dizer com relação às crenças oom as quais uma pessoa
está acostumada e com as quais cresceu , devido ao amor e apegc por
elas e à rep ulsão pelo que é díferente.
Este também é o motivo pelo qual o indMduo deixará de alcançar o
que ê verdadeiro e se indinarâ para o que j á e.stá habituado. Assim ocor­
reu com as pessoas comuns no que diz respeito à corporeidade .[ de Deus]
, e a muitos assuntos teolôgiéos, oomo explicaremos. 6 3 Tudo ísso ocorre
em decorrência dos costumes e estudos referentes às Escrituras , às quais
veneram e nas quais acred itam, cujo sentido literal sobre a corporeida­
de e outras co isas imaginadas faltam com a verdade,. pois elas devem ser
interpretadas como metáforas e enigmas. Estas são as causas e eu volta­
rei a elas mais adiante. 6.ii
E não pense que aquilo que estamos falando sobre os lim ites ineren­
tes ao intel ecto humano sejam afi rmações fundamentadas apenas na
Tora , pois este assunto também tem sido tratado pelos filósofos, que o
compreenderam corretamente, independente de inclinações de opinião
ou crença. Isto é um fato incontestável, a não ser por quem ignora aquilo
que já foí demonstrado.
Eis que este capítulo pretendeu ser u ma introdução para a proposi­
•ç ão que virâ a seguir.

63 Capitu!Q 4. 7.
64 Capitulo 46.
CAPÍTULO 32
O INTELECTO E OS ÓRGÃOS DOS SENTIDOS

Saiba você, que atenta a este tratado, que o que ocorre com as percep­
ções mentais - naquilo em que dependem da matéria - é semelhante
ao que ocorre com as percepções sensoriais, a saber: quando você olhar
à sua volta irá perceber tudo o que o seu sentido da visão for capaz de
apreender: mas se forçar os olhos, exigir demais deles e tentar enxergar
a uma grande distância, ou examinar algum escrito ou impresso muito
leve 4ue uãu há como enxergar, forçando a sua visão para compreendê­
lo, além de não conseguir enxergá-lo, você também diminuirá a sua
capacidade anterior de percepção, ou seja, enfraquecerá o seu sentido
de visão e não conseguirá mais ver como antes deste esforço. O mesmo
ocorrerá com todo aquele que se voltar para a investigação intelectual
de uma teoria e m particular, pois se forçar o intelecto e exigir demais
da sua capacidade de reflexão, ficará atemorizado e não conseguirá en­
tender nem o que antes era capaz de compreender, pois todas as_capa­
cidades físicas são da mesma natureza - as condições são as mesmas.
O mesmo acontece com respeito às percepções mentais, a saber: se
você admitir a dúvida - e não se equivocar , acreditando que há demons­
tração para aquilo que é incapaz de ser demonstrado, não passar a rejei­
tar e negar com um desmentido qualquer proposição cujo contrário não
foi demonstrado e não se esforçar para apreender aquilo que não é c a ­
paz de entender - então terá atingido a perfeição humana e estara no
nível de Rabi Akiva (que a paz esteja sobre ele) , que " entrou em paz e
132 MA.IMÔN!DES

saiu em paz" 65 dos estudos teológicos. Caso você se esforce para ir alem
da sua capacidade de apreensão ou passe a desmentir teorias cujo con­
trário não foi demonstrado -· ou cuja demonstração, mesmo que re­
mota, é possível - então estará no nível de Elisha Acher, ou seja, não
somente deixará de alcançar a perfeição tomo irá. regrndir para o nível
máximo de imperfeição; assím, recairão sobre você as forças das fanta­
sias e inclinações para as imperfeições, vícios, indecências e perversida­
des, transtornando o intelecto e obscurecendo sua luz - do mesmo
modo que oooue às visões fantasiosas que desmentem tantas coisas por
conta da fraqueza de espírito, observadas nos enfermos e naqueles que
insistem em olhar para objetos muito brilhantes ou pequenos demais.
Afirma-se a este respeito: "Mel encontras te: come o que te basta, para
que não te fartes e tenhas que vomitá-ln" (Provêrbios 25: 1 6) . Os Sá­
bios também aplicaram isto a Elisha Acher. E quão maravilhosa é esta
metáfora! Como já dissemos, 66 ela compara [este tipo de oonhecimen�
to] ao que se conhece sobre a alimentação e menciona o mais doce dos
alimentos, o mel, que, por sua própria natureza, se consumido em ex­
cesso írrita o estômago e provoca o vômito. É como dizer que, qu. a nto
à natureza deste tipo de conhecimento - com toda a sua nobreza,
importância e tudo o que vem da perfeição - caso não se permaneça
dentro dos seus limites, tampouco se adotem os cuidados devidos, este
se converterá em imperfeição, assim como o mel: se consumido com
moderação alimenta e dâ prazer, mas, em excesso, é posto para fora.
Não foi dito: "para que não te fartes e destrua-o" . Porém: u • • • e tenhá que
vomitá-lo".
O mesmo tema é ilustrado pelas palavras: "Comer mel em demasia
não é bom ( . .. ) " (Provérbios 25:27) ; "Não queiras ser demasiado sábio:
por que queres te destruir?" (Edesiastes 7: 1 6) · "Cuida dos teus passos
quando fores ã casa de Deus" (Eclesiastes 4 : 1 7) . David ilustra o mesmo
assunto com as seguintes palavras: "E nào tenho a pretensão de lidar
com aquilo que está acima e além da mínha compreensão" (Salmos
1 3 1 : 1) . E nas palavras dos Sábios: "Aquilo que te é misterioso não in­
vestiga, e não procures o que te estãs oculto: investiga aquilo que te foí

65 Alusão a uma passa, gem metafórica do Ta!mud em que se falava de quatro Sábios
que mtraram no Pareies {Paraíso) : Ben Azai, Ben Zomã, Elisha Acher e Rabi
Akjva. Ben Azai olhou de relance e morreu: Ben Zomá enlouqueceu. Acher
torno u� herege. Rabi Akiva �entrou em paz e saiu ern paz" (NT).
1 6 6 Capítulo 30.
O CUIA DOS PERPLEXOS 133

permitido e não te ocupes com os mistérios".67 Com isto quiseram di­


zer que só se deve empregar o intelecto para aquilo que é possível ao ser
humano compreender, pois se ocupar daquilo que está além do enten­
dimento humano é muito prejudicial, conforme já explicamos.68 Para
isso se voltaram os Sábios com as palavras: "Todo aquele que contem­
pla quatro coisas (...)" - e concluem: • (...) Todo aquele que não reve­
rencia a honra do seu Criador", apontando para aquilo que já esclare­
cemos, ou seja, que o homem não deve se destruir pela especulação de
concepções falsas: e quando tiver dúvidas ou não encontrar evidências
sobre o assunto pretendido, não deve rejeitá- lo, negá-lo ou se apressar a
desmenti-lo, mas persistir e "reverenciar a honra do seu Criador", abs­
ter-se e conter:;:"E isto já foi esclarecido.
Não é a intenção destes escritos pelos quais se expressaram os Profe­
tas e os Sábios (de abençoada memória) trancar inteiramente o portão
da especulação e impedir o intelecto de apreender aquilo que está à al­
tura da sua compreensão, como poderiam pensar os imperfeitos e os
estúpidos, que consideram sua imperfeição e estupidez como "perfei­
ção" e "sabedoria", quando estas nada mais são do que imperfeição e
falta de religiosidade, pois "tomam escuridão por luz e luz por escuri­
dão".69 A única intenção é afirmar que há um limite para a inteligência
humana que deve ser respeitado.
E não seja por demais meticuloso com as expressões usadas, neste
capítulo e similares, no que se refere ao intelecto, pois a intenção é orien­
tar sobre o assunto em questão e não desvendar a sua essência; eis que,
para esmiuçar o assunto, há outros capítulos.70

67 Talmud da Babilônia, tratado Chaguigá 3, 21- 22, conforme Ben $ira.


68 No primeiro parágrafo deste capítulo.
69 Isaías 5:20.
70 Capítulos 68 e 72.
CAPITULO 33
SOBRE OS MÉTODOS PARA O ENSINO DATEOLOGIA

Saiba que a iniciação neste ramo do conhecimento - vale dizer: a teo­


logia (hachochmá haelohít) -é muito arriscada , assim como é explicar
as questões relativas aos enigmas presentes nos textos proféticos e in­
terpretar as metáforas empregadas em seus relatos , das quais os livros
dos Profetas estão repletos. Por sua vez é preciso educar as crianças e
instruir os menos inteligentes segundo a respectiva capacidade de en­
tendimento; e aqueles que demonstrarem inteligência perfeita e apti­
aão para um nivel mais elevado de estudo -ou seja, que tenham nível
'
de compreensão comprovado e genuína capacidade de argumentação
intelectual - deverão avançar gradualmente até alcançar a perfeição,
seja por meio de alguém que lhes desperte para o conhecimento, seja
por conta própria.
Entretanto ,ao iniciar-se na teologia [o estudante] não só ficará con­
f,uso quanto às suas crenças como as negará totalmen"te. É o caso, na
minha opinião, de alguém que alimenta um bebê lactante com pão
de trigo , carne e vinho: este certamente morrerá, não por se trata­
rem de alimentos nocivos e impróprios ao consumo humano, mas
porque aquele que os recebe é muito fraco para digeri-los e deles não
pode se beneficiar. Assim também acontece com as teorias verda­
deiras: estas não foram escondidas e, então, apresentadas na forma
de enigmas, e nenhum homem sábio preparou um método para
ensiná-las sem qualquer tipo de esclarecimento porque contivessem
136 MAIMÔNIDES

algum mal oculto ou por contradizerem os fundamentos da Torá, como


imaginariam os tolos que pensam ter alcançado o nível [apropriado) de
especulação; elas foram ocultadas porque, no início, a capacidade de
apreensão do intelecto é limitada, e [os Sábios) revelaram só um pou•
co, a fim de ensinar aos capazes de compreendê-las. Estes assuntos fo.
ram denominados sodót (mistérios) e sitrê Torá (segredos da Torá), como
explicaremos.71
Este também é o motivo pelo qual "falou a Torá conforme a língua
dos seres humanos", conformejá expusemos,72 pois esta [a Torá] per·
mite que os jovens, as mulheres e todo o povo se iniciem por ela e a
estudem; como estes são incapazes de compreender o verdadeiro senti­
do destas palavras, a eles é suficiente a [autoridade da) tradição quanto
a todo assunto cujas crenças são [por esta) estabelecidas e a toda repre
sentação cuja existência é capaz de ser apreendida pelo intelecto, em­
bora não alcance a sua verdadeira essência. E quando um homem a l ­
cançar a perfeição e "lhes forem revelados o s sitrê Torá - seja por um
semelhante seja por conta própria - e gradualmente chegar a compreen•
dê-los, alcançará um ruvel em que acreditará nestes conceitos verdadei­
ros pelos caminhos do pacto verdadeiro, seja por demonstração, onde a
demonstração é possível; seja por fortes argumentos, onde estes são
possíveis. Então estes assuntos, que antes lhe pareciam fantasias ou
metáforas, apresentar-se-lhe-ão em seu verdadeiro sentido e compreen­
derá assim a sua essência.
Já foram mencionadas muitas vezes e m nosso tratado73 as palavras
[dos Sábios): "E não [exporás) a [Maa.s:s-é] Mercavá para um, isolada·
mente, a não ser que este sejasábio e tenha capacidade de discemimen•
to", e então •só lhe serão revelados os princípios fundamentais". Por­
tanto, não se deve introduzir uma pessoa neste assunto a nao ser que a
sua capacidade intelectual assim o permita e sob estas duas condições:
a primeira delas é que ele seja um Sábio, quer dizer, que possua 0s estu·
dos dos quais tenha extraído os fundamentos necessários à especulação;
a segunda é que tenha discernimento, seja inteligente, de natureza pura,
capaz de captar um conceito à mais breve indicação -que seja u m caso,
denominado [pelos Sábios), de quem "conhece por si mesmo• (meVJn
midaatô).

71 No próximo capítulo.
72 Capítulos 26 e 47.
73 Na Abertura desta Parte 1.
O CUIA DOS PERPLEXOS 137

Eis que lhe explicarei, no capítulo seguinte, os motivos pelos quais


devemos evitar ensinar às pessoas simples os caminhos da especulação
genuína [teologia] e iniciá-las no modelo da essência destes conceitos
tais como são; e este tema é de tal relevância que se faz obrigatório que
assim seja e não de outro modo. Então eu lhe digo:
CAPÍTULO 34
CINCO MOTIVOS PELOS QUAIS A TEOLOGIA NÃO DEVE SER ENSI­
NADA A TODOS

Cinco são os motivos para se evitar abrir o estudo de temas teológicos


por meio da indicação daquilo que é relevante destacar e da apresenta·
ção disso às pessoas comuns:
'Primeiro motivo - A dificulâade inerence ao assuntó, sua suWezae;
profundidade . Sobre isso foi dito: "Longe de onde estava e profundo!
profundo; quem pode.rã encontrá- lo?· (Eclesiastes 7:24), e também: "E
a sabedoria, onde será encontrada?" (Jó 28: 12). É inadequado que
sejam iniciados em um estudo com tanta profundidade e dificulda•
de de compreensão. Entre as metáforas conhecidas em nossa nação
está a ecniiJ:!aração da sabedoria à água;7 e [os nossos Sábios] deram a
esta metáfora outros significados, entre eles: "Aquele que sabe nadar
retira pérolas do fundo do mar, e aquele que não sabe nadar se afogai
por isso, só deve entrar sozinho na água para nadar quem treinou seus
fundamentos".
Segundo motivo -A limitação intelectual, no início, de todas as pes·
soas. Isto ocorre porque nãolhes é dada a perfeição máxima de imedia•
to, mas esta é potencial e inicialmente não existe de fato: "E, como um

74 Veja no último parágrafo do capítulo 30.


140 MAJMÔNIDES

burrico selvagem, o homem nascerá" (Jó 11: 12); e uma pessoa que
possui algum potencial relevante não necessariamente fará com que este
se converta em ato, mas é possível que permaneça imperfeita em decor­
rência de obstáculos ou pouco estudo. Conforme as palavras: "Não serão
muitos os sábios" (Jó 32:9); e nossos Sábios (de abençoada memória)
disseram: "Vi os que são elevados (venêalia) e estes são pouco�• ,75 visto
que os obstáculos até a perfeição são muitos, e suas importunações,
múltiplas. E quando surgirá a disposição perfeita e o tempo livre ao
estudo para que o potencial desde indivíduo se converta em ato?
Terreiromotívo-A extensão dosestudospreliminares. O homem, con­
forme a sua natureza, deseja alcançar os fins, mas muitas vezes os estu­
dos preliminares lhe pesam ou são problemáticos. Saiba que, se o ho­
mem chegasse a um destes fins sem os estudos preliminares que o p�
cedem, estes não seriam preliminares, mas perturbadores e totalmente
supérfluos. E se você acordasse qualquer pessoa, até mesmo o mais in­
gênuo dos indivíduos, como se acorda quem dormia e lhe dissesse: "Você
não almeja agora conhecer como são os céus, em quantos são, como é
o seu contorno e o que há dentro deles? E o que são os anjos? E como
o mundo inteiro foi criado, qual é o seu propósito e a relação entre a
partes que o compõem? E o que é a alma e como esta se renova dentro
do corpo? E se a alma do ser humano se separa [do corpo)?E neste caso,
como será isso? Por quais meios e com qual finalidade?", e tudo o que
estas investigações implicarem, ele sem dúvida lhe responderia: "Sim!",
pois naturalmente almejaria conhecer estas coisas em seus verdadeiros
sentidos. Contudo, pretenderia satisfazer este desejo e chegar a este
conhecimento com apenas uma ou duas palavras que você lhe dissesse.
Agora suponha que você o forçasse a abrir mão das suas atividades por
uma semana, até que compreendesse todas essas coisas: ele não o faria,
pois lhe bastariam fantasias ilusórias, contentar-se-ia com elas e não
permitiria que lhe dissessem que lá existe algo que necessita de muitos
estudos introdutórios e um longo período de investigação.
Você sabe que estes assuntos estão relacionados entre si, ou seja, que
nada há na existência além de Deus e todas as Suas obras - isto é, tudo
o que existe à exceção Dele - e não há modo de alcançá-Lo a não ser
por meio de Suas obras, que são os guias para se conhecer a Sua existên­
cia e tudo o que é necessário para se acreditar Nele, o que deve ser afir­
mado e o que deve ser negado a Seu respeito. Portanto, é obrigatório e

75 Talmud. Sucá 45a: San'hedrin 97.


O CUIA DOS PERPLEXOS 141

necessário examinar todas as evidências tais como são, até inferir de cada
espécie os princípios verdadeiros e corretos que nos sirvam em nossas
investigações teológicas. Muitos serão os princípios obtidos da nature­
za dos números e das figuras geométricas referentes a certos aspectos que
devem estar à parte de Deus - e a nossa teoria procede assim. E quan­
to aos temas da astronomia e das ciências naturais, não acho que você
deva interromper [o estudo) sobre questões obrigatórias para se conhe­
cer a relação entre o mundo e o seu direcionamento por Deus, segundo
o que é verdadeiro e não imaginado. Há muitos assuntos especulativos
que, embora não se possa extrair deles princípios para esta ciência [a
teologia), exercitarão o intelecto e lhe propiciarão a propriedade de
produzir demonstrações e o conhecimento da verdade sobre a essência
das coisas (e serão removidos os equívocos existentes na maioria das
teorias especulativas, que confundem questões acidentais com essenciais,
além de se permitir que, em decorrência disso, se erradiquem as falsas
teorias), associando-os também ao modelo destas coisas, conforme elas
são de fato - e se não são a raiZ da teologia, possuem outras utilidades
com respeito a assuntos relacionados.a esta.Portanto, é necessariamen­
te impossível para aquele que aspira a perfeição humana deixar de se
instruir, primeiro. na arte da Lógica, em seguida, nas demais discipli­
nas [da matemática] na seqüência apropriada, então, nas disciplinas das
ciências naturais e, por fim, nas de teologia.
Já nos deparamos com muitos que fatigaram suas mentes com pou­
cas destas disciplinas e também [outros que] . se as suas mentes não se
debilitarem, é possível que sejam interrompidos pela morte no início
dos escudos preliminares. E se de forma alguma nos fosse dado o co­
nhecimento por meio da tradição, nem fôssemos orientados sobre al­
gum aspecto por meio de metáforas, mas obrigados a formar uma idéia
perfeita das características essenciais das coisas e acreditar naquilo que
quiséssemos acreditar somente por meio de demonstração (e isso só é
possível após extensos estudos preliminares) , isto iria levar a maior par­
te das pessoas à morte e estas não saberiam que existe um Deus· para
todo o universo, muito menos se lhes caberia obrigatoriamente um
julgamento ou o distanciamento da imperfeição; ninguém estaria a salvo
desta desgraça mortal, a não ser "um de uma cidade e dois de uma fa­
mília" (Jeremias 3: 14). E quanto aos poucos que são "os remanescentes
a quem Deus chama" Ooel 3:5), estes não obteriam a perfeição, o seu
objetivo final, a não ser após os estudos preliminares. Salomão já dei­
xou claro que a necessidade destes estudos é obrigatória e é impo�ível
alcançar a verdadeira sabedoria senão por meio de sua prática habitual,
conforme suas palavras: "Se o ferro está embotado e absolutamente es-
142 MAIMÔNIOES

tragado, empreenderás a força? É mais vantagem utilizar a sabedoria"


(Ec!esiastes 10:10); "Ouve o conselho e recebe a [instrução) moral
(mussáry, para que te tomes sábio no futuro" {Provérbios 19:20).
Eis aqui outra razão obrigatória para se estudar e conhecer as disci­
plinas preliminares. É que surgirão muitas dúvidas para quem quiser
obter a derishá (estudo interpretativo) de maneira apressada, pois do
mesmo modo conhecerá as dificuldades, vale dizer: a demolição de um
corpo de conhecimentos é semelhante à de um edifício; não obstante,
sua construção e a remoção das dúvidas só são possíveis após o estabe­
lecimento de muitos princípios obtidos porestudospreliminares. Aquele
que [aborda as questões da teologia e) especula sem qualquer estudo
preliminar é como uma pessoa que caminha em direção a um certo local
e, no meio do caminho, cai num buraco muito profundo de onde não
consegue sair e acaba morrendo; teria sido melhor abandonar a cami­
nhada e permanecer onde estava. Salomão descreveu muito bem, nos
Mishlê (Livro dos Provérbios), os problemas dos preguiçosos e sua ler­
deza, e sempre fez da preguiça a metáfora da falta de disposição para a
obtenção de sabedoria. Ele estava falando daquele que almejava com­
preender os fins e não se dispunha a conhecer os estudos preliminares
que poderiam levá-lo ao objetivo pretendido; apenas desejava alcançá­
los. [Salomão] disse: "O desejo do preguiçoso irá matá-lo, pois suas mãos
se recusam a trabalhar. Passa o dia inteiro desejando, mas ojusto dará e
não perecerá" (Provérbios 21:25-26), ou seja, se os desejos dele são a
causa da sua morte, isto acontece porque ele não se dispõe a satisfazer
estes desejos, pois insiste em desejar somente, esperando que algo lhe
chegue sem que faça uso dos instrumentos necessários para alcançá-lo;
melhor seria renunciar a este desejo. Preste atenção ao final dametáfora
e observe como esta explica o inicio. Nas palavras de Salomão: "Mas o
justo dará e não perecerá" - eis que o ''.iusto", em contraposição ao
"preguiçoso", está de acordo com os nossos esclarecimentos, pois se
afirma que, entre as pessoas, ojusto é aquele que dará, para cada coisa,
o que lhe é devido, vale dizer: o seu tempo é inteiramente dedicado a
derishá e não o desperdiça com outra coisa além disso. É como afirmar:
"E o justo dará seus dias à sabedoria e deles não perecerá", equivalente
a outra das recomendações de Salomão: "Não entregues teu vigor às
mulheres" (Provérbios 31:3). E a maioria dos eruditos, os reconheci­
dos em suas ciências, padecem desta enfermidade, a saber: desejam os
fins e falam sobre eles sem se preocupar com os estudos que lhes são
preliminares; e há entre eles os que, por estupidez ou desejo de poder,
chegam a menosprezar aquelas disciplinas que são incapazes de com­
preender ou negligenciam a sua necessidade, tentando demonstrar que
O CUIA DOS PERPLEXOS 143

são prejudiciais ou supérfluas. Porém, por meio da reflexão, é esclarecida


a verdade.

Quarto motivo - As disposições naturais. Está demonstrado que as


76 e
virtudes morais são pré-condições para asvirtudes racionais, não há
como alcançar pensamentos racioAais perfeitos a não ser poi, um ho­
,mem instruído nas virtudes morais, ponderado e equilibrado. Existem
muitas pessoas cuja disposição de temperamento inata torna absoluta­
mente impossível alcançar a perfe-ição: como aquele cujo coraçãoé, por,
natureza, excessivamente quente e não consegue evitar a cólera, mesmo
que faça um grande esforçopara dominá-ia;e aquele cujos testículos
são quentes, úmidos ede consistência vigorosa, cujos vasos seminais'
produzem muito sêmen, pois é improvável que seja isento de pecado
mesmo qu� faça um grande esforço para se conter. Você também en­
contrará pessoas levianas e imprudentes, cujos movimentos sãomuito
agitadose desordenados, indicando uma índole falha e um tempera­
mento ruim, impossivel de ser analisado - estas jamais alcançarão a
perfeição e ocupar-se da teologia com elas é uma completa tolice por
. parte de quem se dispõe a isso. Porque esta ciência, como você sabe, não
é como a medicina (chochmát harefu6t) ou o cálculo (chochmát tishb6ret}
e nem todos estão preparados para ela, conforme as razões já por nós
mencionadas, e é impossível (apreendê-la] sem uma preparação moral,
com a introdução de boas condutas, até que a pessoa alcance o máxi­
mo de retidão e perfeição: "Porque para o Eterno o sinuoso é abominá­
vel e os retos são o Seu segredo" (Provérbios 3:32). Por isso este estudo
é desaconselhável para os rapazes; nem lhes é possível recebê-lo, em
decorrência das suas naturezas tempestuosas e da preocupação com a
chama do crescimento e desenvolvimento [físicos] . até que esta preo­
cupação perturbadora se esgote e eles adquiram ponderação e equilí­
brio, bem como dominem seus corações com humildade no que diz
respeito aos seus temperamentos. Então eles mesmos alcançarão este
nível , qual sej a, a percepção de Deus: o· estudo da teologia denominado
MaassêHamercavá (Relato das Carruagens Divinas)', conforme foi dito:
"O Eterno apóia os alquebrados de c-◊ração• (Salmos 34:19); e ainda:
"Em um lugar elevado e santo Eu habito, ejunto ao oprimido e abati·
do de espírito (...)" (Isaías 57:15)

76 "Sobre a divisão aristotélica das virtudes, em morais e r.,cionaisou intelectuais,


veja em Aristóteles. Etica. a NicômaCtJ. Livro l, capitulo 13; Livro 2. capítulo
4 e seguintes; e Livro 4, capítulo 2. Veja também em Maimõnldes, Oito Ca­
pítulos. no início do seu comentário ao Tratado Avót, capítulo 2" {Maeso).
144 MAJMÔNIDES

E sobre isso (nossos Sábios) comentaram as palavras d o Taimud­


"Transmitam-lhe os fundamentos dos capítulos" -da seguinte forma:
"Não transmitam os fundamentos dos capítulos a não ser para o AvBêt­
Din (Presidente do Tribunal) e isso se ele tiver o coração preocupado
com o próximo", e o caminho para isso é: pela modéstia, submissão e
grande temor de pecar, combinados à sabedoria.
E l á está escrito: "Não transmitam os sitrê Torá (segredos da Torá) a
não ser (...) para um homem que seja conselheiro, grande sábio e inte­
ligente em se expressar" . Estas qualidades não pod em ser adquiridas sem
que exista uma disposição natural para elas. Você sabe que h á entre as
pessoas aquele que, embora dos mais inteligentes, é muito fraco em acon­
selhar. Ehá aquele que tem o conselho certo e a conduta adequada para
as coisas necessárias à ordem pública e para governar as pessoas: uma
pessoa assim é chamada de ·conselheiro", contudo não entende ques­
tões de ordem intelectual, ainda que básicas; ele é muito tolo e não há
como fazê-lo entender: "Por que há um preço na mão de um tolo para
adquirir sabedoria, se coração não tem?" (Provérbios 17: 16). Há ainda
aquele que é inteligente e de natureza pura, capaz de revelar idéias de
maneira concisa e precisa: uma pessoa assim é chamada de "inteligente
em se expressar", embora não tenha podido se envolver com o estudo
das ciências. Por fim há aquele que, de fato, instruiu-se nas ciências e é
chamado de "grande sábio", conforme comentaram (os Sábios]: "Quan­
do se põe a falar, faz com que todos emudeçam". Então observe como
estes (Sábios), em seus livros, condicionaram a perfeição d e uma pes­
soa em relação às suas condutas políticas e disciplinas especulativas (teo­
logias) ao mérito na tural, entendimento e boa capacidade narrativa para
se comunicar por meio de alusões -só assim "lhe transmitem os Sítrê
Torá (Segredos da Torá) ".
E lá [também] está escrito: "E disse Rabi Iochanán a Rabi Elazar:
Vem e vou te ensinar Maassê Mercavá (Relato das Carruagens Divinas),
e este respondeu: Mas eu ainda não tenho idade". Em outras palavras:
"Não envelheci e ainda sinto a ebulição da natureza e a imprudência da
juventude". Veja como, em conjunto com aquelas boas qualidades, a
idade é condição - e como seria possível, então, introduzir, nestes as•
suntos, as pessoas simples do povo, "crianças e mulheres"?
Quinto motivo - A ocupação com asnecessidades materiais, que são
a primeira perfeição,77 em particular quando os homens se ocupam com

77 Parte 3, capitulo 27.


O CUIA DOS PERPLEXOS 145

amulher e os filhos e muito mais, se aisso se somar o desejo por coisas


supérfluas, que têm um forte atrativo por conta dos maus hábitos e cos•
tumes. Atê mesmo no homem perfeito, conforme já mencionamos, caso
se ocupe demasiado com as coisas necessárias (e aindamais com as des­
necessárias) e cresçao seu desejo por elas, o seu interesse pelaespecula­
ção [teologia] enfraquecerá e se cristalizará; suavontade será parar, aba­
ter-se e desinteressar-se: ele não alcançará o que o seu potencial indica
ou adquirirá um conhecimento confuso e alienado de compreensão e
concisão.
Por estes motivos seriamuito conveniente que estes assuntos se res•
tringissem a um grupo seleto de pessoas, e não se estendessem às pes­
soas comuns; paraisso devem ser ocultados do iniciante e deve se evitar
que se ocupe deles, assim como se evitaque umacriançapequenarece­
baalimentos sólidos e carregue peso.
CAPÍTULO 35
TODOS DEVEM SABER QUE DEUS É INCORPÓREO E NÃO É PASSIVO

Não pense que tudo o que estabelecemos nos capítulos anteriores a res­
peito da importância e obscuridade do tema, bem como sobre a difi­
culdade de compreendê-lo e a necessidade de se evitar transmiti-lo às
pessoas comuns, inclua afastá-las da [noção de) incorporeidade e não­
passividade [de Deus) 78 -de forma alguma! - assim como é necessá­
rio educar os jovens e instruir as pessoas comuns acerca da crença de
que Deus é Um e que não se deve cultuar outro, eles também devem ser
ensinados, por meio da tradição, que Deus é incorpóreo; que não há
similaridade algumaentre Ele e Suas criaturas em nenhum aspecto; que
a Sua existência não se compara à existência daquelas; que a Sua vida
não é como a vida delas; que a Sua sabedoria não é como a daqueles
que são sábios; e que a diferença entre Ele e Suas criaturas não é muita
ou pouca, mas sim de espécie de existência, ou seja: é preciso estabele­
cer, para tudo, que a nossa sabedoria e capacidade e as Dele não dife­
rem em muito ou pouco, em maior ou menor força ou por outros as­
pectos semelhantes, pois a força e a fraqueza pertencem necessariamen­
te à mesma espécie e pertencem a uma mesma definição. Do mesmo
modo, toda relação só é viável entre duas coisas da mesma espécie - e

78 Capítulo 58.
148 MAIMÔNIDES

Isto tambémjá foi explicado pelas ciências naturais.79 Entretanto, tudo


o que se relaciona a Deus difere dos nossos atributos em todos os sen­
tidos, de maneira que absolutamente não podem ser associados em uma
mesma definição. Assim, não se pode dizer que, entre a Sua existência
e a dos demais seres, exista outra relação que não o uso polivalente do
termo "existência", como explicarei.80 E este ensinamento é suficiente
para que os pequenos (jovens) e as pessoas comuns formem suas opi­
niões: existe um Ser Perfeito que não é um corpo nem uma força em
um corpo - e este ser é Deus, isento de qualquer espécie de imperfei­
ção e, portanto, isento de passividade.
De fato, as questões relativas aos "atributos· [de Deus] - como d e ­
vem ser descartados e qual é o sentido dos que a Ele são atribu!dos: a
maneira pela qual Ele criou as coisas, o descrição do modu como go­
verna o mundo e como é o Seu cuidado com relação às coisas por Ele
criadas: a Sua intenção, percepção e conceito de tudo o que é conheci­
do; as profecias e como estas são classificadas em níveis; e fmalrnente,
quanto ao conceito dos Seus nomes que, embora sejam muitos, impli­
cam [a idéia de] Um - todas estas são questões profundas. São, de fato,
os sítrê Torá, os segredos mencionados freqüentemente nos Livros dos
Profetas e nas palavras dos nossos Sábios (de abençoada memór ia); e
estas são as coisas sobre as quais é desnecessário falar delas para além
dos fundamentos dos capítulos, conformejá mencionamos,81 e apenas
para o tipo de pessoa tambémjá descrito. De fato, a negação da corpo­
reidade [de Deus], a remoção da comparação [com as coisas criadas) e
da noção de passividade de Deus é uma questão auto-evidente para toda
pessoa, conforme a sua capacidade; e a transmissão da tradição para os
pequenos (jovens]. mulheres, tolos e intelectualmente incapazes, de
acordo com o que lhes for transmitido: que Ele é Um. existente antes
da Criação e que nada será cultuado além Dele. Pois não há unicidade
a não ser fora da corporeidade, posto que a matéria não é "um", mas
composta de matéria e forma, ou seja, •dois" por definição, além de ser
passível de divisão. Quando as pessoas aceitarem isso e evoluírem neste
tema, e estiverem confusas com os textos dos Livros dos Profetas, estes
assuntos serão esclarecidos e então serão iniciadas nos princípios da in­
terpretação, chamando a sua atenção para a polivalência e aplicação me-

79 Aristóteles. Flsica. Livro 7, capítulo 4.


80 Capítulos 52, 56 e 57.
81 Na Abertura desta Parte I e no capítulo 34.
O CUIA DOS PERPLEXOS 149

tafórica dos termos discutidos neste tratado, atéque se estabeleça a ver•


dade da crença na unicidade de Deus e nos Livros dos Profetas -uma
crença perfeita em suas mãos. Àquele que limitar a sua mente para en,
tender os sentidos dos pessukim (passagens da Bíblia) ou para a com•
preensão de que um mesmo termo pode mudar de significado confor
me o contexto, lhe diremos: "O sentido deste passúc (passagem bíblica)
é compreendido pelos Sábios, mas a você cabe saber qu e Deus (louva­
do e glorificado seja) é incorpóreo e não é passivo, pois a passividade
implica mudança e a Ele não se aplicam mudanças> que Ele não se com

para a coisa alguma, qualquer que seja; que nenhuma definição pode
incluir Deus associado a qualqueroutra coisa; que toda palavra da pro•
fecia é verdadeira e tem sua interpretação, cujo princípio ainda será ex•
plicado". Você não precisa deixar que uma pessoa acredite na corporei­
dade [de Deus] ou em qualquer coisa relacionada a esta corporeidade,
assim como não precisa deixá-la acreditar na inexistência de Deus, na
associação a Ele82 ou no culto a outros que não a Deus.

82 "Ou seja, na idéia de outros seres associados a Deus, o que leva ao dualismo
ou ao politeísmo· (Maeso).
CAPÍTULO 36
QUANTO AOS "ATRIBUTOS" DE DEUS

Quanto aos•atributos", eis que lhe explicarei83 em qual sentidoserá dito


que uma coisa qualquer agrada a Deus ou provoca a Sua ira e irritação,
pois era assim que algumas pessoas diZiam que Deus os queria bem ou
que irava-se e irritava-se com eles. Entretanto , este não é o tema deste
capítulo, mas sim o que eu passarei a expor.
Saiba que, ao examinar toda a Torá e todos os Livros dos Profetas,
vocé não encontrará expressões de "acender o furor.. , ira" ou "ze!o",8' a
00

não ser com relação a avodá zará (idolatria) : e não encontrará alguém
chamado de "inimigo","adversário" ou "que odeia" a Deus, a não ser o
"ovéd avodá zará (idólatra). Foi dito: "Sirvais outros deuses( ...) e se
acenderá o furor do Eterno contra vós" (Deuteronômio 11: 16-17);" Para
que não cresça o furor do Eterno, teu Deus" (Deuteronômio 6:15); "Para
O irritardes pelas obras de vossas mãos" (Deuteronômio 31:29); "Eles
me provocaram ao zelarem por aquilo que não é Deus; provocaram a
Minha ira com a suas adorações vãs( ...)"(Deuteronômio 32:21) ; "Por­
que Deus zeloso é o Eterno (..)"
. (Deuteronômio 6:15): " Por que pro­
vocaram a Minha ira com seus ídolos?" Geremías 8:19); "Porque O pro-

83 Capítulo 54 e seguintes.
84 No sentido de cultuar (NT).
J52 MAIMÔNIDES

vocaram seus filhos e suas filhas'' (Deuteronômio 32: 19); "Porque um


fogo se acenderá na minha ira" (Deuteronômio 32:22); "O Eterno se
vinga dos seus adversários e guarda rancor dos seus inimigos" (Naum
1:2); "E paga [em vida] aos que O odeiam" (Deuteronômio 7:10); "Até
desterrar a seus inimigos de diante dele" (Números 32:21); "Porque o
Eterno, teu Deus, odeia" (Deuteronômio 16:22); "Porque todas as abo­
minações que o Eterno odeia" {Deuteronômio 12:31). Estas são ape­
nas algumas das citações, mas se você procurar tudo o que há sobre este
tema em todos os livros, irá encontrá-las.
Certamente os Livros dos Profetas deram grande ênfase a isto por­
que se trata de um falso conceito em relação a Deus (Louvado seja), a
saber: é avodá zará (idolatria). Pois quem acredita que Reuvên está de
pé quando ele está sentado não terá se desviado mais da verdade do que
aquele que acredita que o fogo está abaixo do ar, que a água está abaixo
da terra, que a terra é plana e coisas semelhantes; e este segundo desvio
da verdade é como o daquele que acredita que o sol é composto de fogo,
que a esfera celeste contém um só hemisfério e coisas semelhantes; e este
terceiro desvio da verdade é como o daquele que acredita que os anjos
comem e bebem, ou coisa parecida; e este quarto desvio da verdade é
como o daquele que acredita que é obrigado a cultuar algo que não seja
Deus. Pois tudo isso não é mais do que a ignorância e a heresia aplica­
das a um assunto tão importante, vale di.zer: uma posição importante
de alguém na existência é maior do que a daquele que ocupa uma po­
sição inferior. Sobre a heresia vale dizer: acreditar em algo em lugar
daquilo que realmente é; e sobre a ignorância é o mesmo que afirmar:
ignorar aquilo que é possível conhecer. A ignorãncia daquele que des­
conhece a medida de um cone ou a esfericidade do sol não se compara
à daquele que não sabe se Deus existe ou absolutamente inexiste; e a
heresia daquele que pensa que um cone equivale à metade (de um cilin­
dro) ou que o sol é redondo não se compara à daquele que pensa que
Deus é mais do que Um.
Você sabe que todo aquele que é idólatra não o faz convencido de
que inexiste uma diVindade além [dos seus ídolos]; ninguém se conven­
ceu, em épocas passadas, nem jamais irá se convencer em tempos vin­
dourosque a imagem, porele forjada, de metal, pedra e madeira foi quem
criou os céus e a terra e os governa, pois, na verdade, cultua um ídolo
sabendo que se trata de algo imaginado como intermediário entre ele e
Deus, conforme foi explicado e· declarado: "Quem não irá Te venerar,
Rei das nações?" Oeremias 10:7); "E em todo lugar está incensado, ofe­
recido em Meu nome (.. .)" (Malaquias 1 : 11) - uma alusão à Primeira
O GUIA DOS PERPLEXOS J 53

Causa entre eles [os idólatras). Isto já foi esclarecido em nossa obra
maior85 e sobre isso nenhum dos que possuem a nossa Torá discorda.
Entretanto, estes hereges (mesmo acreditando na existência de Deus)
aplicavam a sua heresia a uma lei (ch6c) exclusiva do Todo-Poderoso:
ao serviço [religioso) e à veneração, conforme as palavras: "E servireis
ao Eterno (...) " �xodo 23:25), a fim de que a Sua existência persistisse
na crença das pessoas comuns; eles aplicaram esta lei ao que era dife­
rente [de Deus), o que poderia levar à inexistência do Todo-Poderoso
na crença das pessoas comuns - pois estas só realizavam as práticas
rituais, sem compreender o seu sentido e a Verdade oferecida por meio
destas - e obrigatoriamente poderia levá-los à morte, como está escri­
to nesta passagem: "Não deixarás com vida todo que tiver alma" (Deu­
teronômio 20: 16), ou seja, que esta falsa opinião seja erradicada para
que não corrompa outros, conforme está dito: "Para que não vos ensi­
nem fazer (.. .)" {Deuteronômio 20:18). Estes são denominados ''ini­
migos, os que nos odeiam, adversários", e é afirmado que quem age assim
•provoca o zelo, a ira e o aumento da cólera" de Deus. E como será a
situação de quem aplica a sua heresia ao próprio Deus e acredita no
contrário do que éde fato? Em outras palavras: que não acredita na Sua
existência, ou acredita que são dois, ou que é corpóreo, ou passivo (mo­
vido por forças externas), ou que a Ele é relacionada qualquer imperfei­
ção que seja. Este, sem dúvida, é pior do que um ovêd avodá zará (idó­
latra), pelo fato de pensar que é um intermediário ou alguém capaz de
"fazer o bem" ou "fazer o mal" .
Saiba que você, caso venha a acreditar que Deus seja corpóreo ou algo
relacionado ao corpo, estará "provocando o Seu zelo, Sua ira, acenderá
o fogo da Sua cólera, será aquele que O odeia, Seu inimigo e Seu adver­
sário" de maneira muito mais contundente do que o idólatra. Se vier à
sua mente que há desculpa para quem acredita na corporeidade (de
Deus) - seja por ter crescido (sido educado) com ela, seja por igno­
rância ou por inteligência limitada - o mesmo deve valer para o idó­
latra, pois este não adorará a não ser por ignorância ou por ter crescido
[sido educado) assim: "o costume dos seus antepassados em suas mãos"·.86
E se você disser que o sentido literal das Escrituras os induz a esta dú­
vida, então saiba que, na verdade, os idólatras foram levados ao seu culto

85 Maimõnides. Mishne Tora. Livro 1 . "Sobre a Avodá Zará (Idolatria)", ca­


pitulo 1.
86 Talmud da Babilônia, Chulín, 13a.
154 MAIMÔNIDES

por fantasias e conceitos falsos. Do mesmo modo, não há desculpa para


aquele que não as recebe dos verdadeiros teólogos, caso seja incapaz de
especular: pois eu não considero herege quem não demonstra a rejeição
da corporeidade [de Deus). mas sim quem não acredita nesta rejeição;
ainda mais quando esta pode ser encontrada nas interpretações de
Onkelos e de Ionatán ben Uziel (que a paz esteja sobre eles), que se afas­
tam da corporeidade [de Deus) de todas as maneiras possíveis. E esta
foi a intenção deste capítulo.
CAPÍTULO 37
FACES (PANJMJ

Panim é um termo polivalente e amaior parte dos seus significados é


metafórica. Eis que [primeiramente) denominao rosto de todo ser vi­
vente: " E todas as faces se tomaram pálidas· (Jeremias 30:6): " Por que
vossas faces estão tão más hoje?"(Gênesis 40:7) -são muitos [os exem­
plos]. Também denominaa ira: "E suas faces (sua ira] já não eram as
mesmas" (I Samuel 1:18).87 Faz-se muito uso do termo no sentido da
i.-a e irritação de Deus: "As faces de Deus osdividiu" {Lamentações 4: 16);
"As faces de Deus sobre os malfeitores" (Salmos 34: 17) ; "Minhas faces
se irão e Eu te darei descanso" (Êxodo 33:14): "E Eu colocarei as Mi­
nhas faces sobre aquele homem e sobre suafamília" (Levítico 20:5)-
e são muitos (os exemplos] . Denomina aindaa existênciae presençade
uma pessoa: "Diante dasfaces(al-penei de todos os seus irmãos, ele caiu
[morreu]" (Gênesis 25:18): "E diantedasfaces(a!-pen!/ de todo o povo,
Eu serei glorificado" (Levítico 10:3), ou seja, na presença deles, assim

87 Fala-se aqui de Ana. que viria a ser a mãe do profeta Samuel . Muito aflita e
nervosa. ela orava silenciosamente pedindo por um filho homem . Ao vê-la
naquele estado, osacerdote Elí pMmeiroadvertiu-a. tomando-apor embriagada .
Quando percebeu que. na verdade, ela estava nervosa, disse-lhe para seguir
em paz e que Deus lhe concedesse o que pedia. Ana se acalmou e o seu rosto
refletiu esta tranqüilidade (NT).
l 56 MAJMÔNIDES

como neste caso: "Se não te maldizss diante das tuasfaces (aipanêcha)"
Üó 1:11). Também é dito no seguinte sentido: "E o Eterno falava a
Moisês face a face (panim elpanim)" (Êxodo 33:11), ou seja: um pre­
sente diante do outro, sem intermediação, como em: "Vem, entreolhe·
mo-nos nas faces" (II Reis 1 4:8): e "Face a face falou o Eterno convosco"
(Deuteronômio 5:4). Em outro lugar, quando foi dito: "Som de pala­
vras vós ouvistes, porém imagem não vistes, tão somente uma voz"
(Deuteronômio 4: 12). está claro que [ouvir a voz] corresponde a "face
a face":89 e também as palavras "E o Eterno falava a Moisés face a face"
(Êxodo 33: 11) têm o mesmo sentido das da seguinte passagem: •E
[Moisés] ouvia a voz [de Deus] que falava com ele" (Números 7:89).
Eis quejá lhe foi esclarecido que a audição da voz [de Deus] sem a in­
termediação de um aajo equivale à expressão "face a face". No sentido
desta passagem: ··E as Minhas faces não serão vistas" (Êxodo 33:23),
significa que a verdadeira existência [de Deus) não poderá ser compreen­
dida.
O termo hebraico panim (faces) também é um advérbio de lugar -
" diantede ti" (lefanécha) ou "entn-suas mãos" (véiniadêcha) -eé muito
empregado com relação a Deus: "Diante (Lifnê) do Eterno" (Génesis
18:22). Ainda neste sentido temos: "E as minhas faces não serão vis­
tas" (Êxodo 33:23), conforme a interpretação de Ünkelos: "E os que
estão diante de Mim não poderão ser vistos" . em uma indicação de que
existem também criaturas superiores cujas existências não podem ser
percebidas pelo ser humano, qua.is sejam, as Inteligências Separadas90 e
a relação destas com Deus -que estão diante Dele e sempre entre Suas
mãos, ou seja, a força da Hashgachá (Proteção Divina) está sempre com
eles. De fato, o que se pode apreender da realidade - quero dizer, se­
gundo Onkelos-é oque estáabaixo daquele nível de existência, a saber:

88 Traduz-se aqui o termo hebraico ievarchêca por ·maldizer·, "blasfemar" ou


"amaldiçoar", embora, em princípio, signifique "abençoar". Entretanto. como
está no contexto de um diálogo entre Deus e Satã, e esta é uma fala do ólti·
mo, poderia se considerar que, ao falar em bênção, este esta.ria sendo cínico e.
portanto, querendo dizerjustamente o contrário (NT).
89 Deus estava "face a face" com o povo de Israel, ou seja. estavam presentes um
diante do outro (NT).
90 Inteligências Separadas • denominação para seres abstratos cujo objetivo é
tentar se aproximar ao máximo da Primeira Causa (Deus) como ideal de per­
feição: por sua vez guiam as esferas celestes. Conforme Maimõnides explica
na Parte 2 de O Cuia dosPerplexos, o conceito de Inteligências Separadas pode
ser equiparado ao dos anjos na tradiçãojudaica (NT).
O CUIA DOS PERPLEXOS 157

coisas dotadas de matéria e forma. Sobre estas se afirma: "E verás o que
há atrás de mim",91 ou seja, aqueles seres; é como se eu me incllnasse e
os colocasse atrás de mim (metaforicamente: sem contato com o Ser
Divino). Eis que, mais adiante,92 você ouvirá a minha interpretação para
o pedido de MoshéRabênu (Moisés, nosso Mestre), que a paz esteja com
ele.
Paním (faces) também é um advérbio de tempo - "antes" (códem)
ou ·em outro tempo" (lifnê): •Antigamente (Leranim) em Israel" {Rute
4:7); "Em tempos passados (lefanim) fundaste a terra" (Salmos 102:26).
Finalmente, panJm também denomina atenção ou cuidado (hizaher}
e Proteção Divina (Hashgacha1: "Não favorecerás [quando não tem ra­
zão) as faces do mendigo (fené-dáÍ) • (Levítico 19: 15); "Ecolocar-se-Ao as
suas faces (unessú faním)�· {Isaías 3:3); "Que não coloca a face {issá
faním)94" (Deuteronômio 10:17) - e são muitos [os exemplos]. Neste
sentido também é declarado: "Coloque o Eterno o Seu rosto (Paná0
sobre ti e ponha em tl a pai". cujo sentido é: que a Hashgachá (Proteção
Divina) nos acompanhe.

91 • l/4tcchezli iat devatrd(, Targum (traduç!o) de Onkelos para: "E verás as


minhas costas" (Exodo 33:23).
92 Veja no capítulo 54 e compare ao capítulo 21.
93 A expressão na,s;J fanfm também significa "ser parcial" ou proteger um dos
lados de uma disputa (NT).
94 Ou seja: "não recebe boas ações como suborno pelos pecados" (Deuteronô­
mio 10:17).
CAPfTULO 38
ATRÁS (ACHÁR)

Acháré um termo polivalente. Significa "as costas": "Sobre as costas do


Tabernáculo" (Êxodo 26:12); "'E saiu a lança por detrás dele (meacharáv') "
(II Samuel 2:23). Também é usado como advérbio de tempo no senti­
do de "depois'': "E depois dele ( �acharáv') não surgiu outro como ele"
(II Rei s 23:25); "Depois (Acháry destas coisas" (Gênesis 15:1) - e são
muitos [os exemplos].Este termo também tem o sentido de ir atrás de
uma coisa, trilha,· pelos <:a111i11hu� (imitar) da virtude de uma pessoa:
"Atrás(Acharê) do Eterno, vosso Deus, andareis" (Deuteronômio 13:5);
"Atrás (Acharê) do Eterno andarão" (Oséias 11: 1 O), isto é , seguirão
conforme a Sua Vontade , trilharão pelos caminhos das Suas ações e
se comportarão conforme as Suas virtudes: "Andou atrás (achar€) da
prescrição" (Oséias 5: 11): e quanto à seguinte expressão: "E verás
Minhas costas (Achorái)" (Êxodo 33:23), perceba como "aquele que Me
segue, que se parece Comigo e se subm ete à Minha vontade - ou seja:
todas as Minhas criaturas - como explicarei em alguns capítulos deste
uacado".95

95 Veja o capitulo 54 e reveja o capitulo 21.


CAPITULO 39
CORAÇÃO (LEI-?

Lev é um termo polivalente. Denomina o órgão que é o princípio da


vida de todo ser que possui um coração: "E cravou-os no coração de
Avshalom" (II Samuel 18:14). E como este órgão está no meio do cor­
po, serve de metáfora para o centro de qualquer coisa: "Até o
coração
(Ie0 dos céus• (Deuteronômio 4:11); •No coração (befabáq do fogo"
(Êxodo 3:2).
Eis que [coroção] também significa "pensamento" (mschshavlÍ): "Não
foi meu coração (/ib1' contigo?" (II Reis 5:26), ou seja: "Eu estava pre·
sente em pensamento quando aconteceu isso e isso"; e no mesmo sen­
tido: "E não errareis indo atrás de teus corações (Jevavchêm)• {Números
15:39) , isto é, se vocês seguirem seus pensamentos; •Cujo coração (ashér
Jevavô) se desvie hoje" (Deuteronômio 29: 17), ou seja, cujo pensamento
se desvie. O termo também denomina "conselho (posição}": "Todo o
restante de Israel era um coração (Jev ecnád} para fazer de David o rei" (I
Crônicas 12:38); isto é, estavam todos em uma só posição [de consen·
so]; "E os tolos. porfalta de coração (bachassar Je0. morrerão" (Provér•
bios 10:21) ou seja, morrerão por assumirem uma posição insensata;
"Não se desviará (iecherál} meu coração (levav1' durante os meus dias"
Üó 27:6), cujo sentido é: minha posição não se desviará deste sentido,
pois o princípio deste versículo é "à minhajustiça me apegarei e não a
largarei". Na minha opinião, o sentido do termo "iecheráí (desviar) é
o mesmo que em: "Escrava desposada (necheréfeq com um homem"
162 MAIMÔNIOES

(Levítico 19:20), o que equivale ao termo árabe "muncharafat", ou seja,


[uma escrava] cujo estado de escravidão se converteu em vínculo mÁ-
trimonial.
O termo /êvtambém significa "vontade" (ratsón): "E darei avós pas­1
tores conforme o Meu coração (Libi)" Oeremias 3:15): "Teu coraçio
(Levavchaj tem sinceridade, assim como o meu coração?" (II Reis
1O:15), o que significa: tua vontade é tão sincera como a minha? Este
termo já foi utilízado como metáfora para Deus no seguinte sentido:
"Conforme está no Meu coração (Bilevavi) e na minha alma, fará" G
Samuel 2:35), ou seja: você agirá conforme a minha vontade; "Meus
olhos e Meu coração (Lib1) lá estarão todos os dias" G Reis 9:3): minha
Hashgachá (Proteção Divina) e minha vontade.
O termo ainda denomina a inteligência: "E o estúpido será dotado
Üó 1 1 : 12), ou seja, será dotado de inteligência; e
de coração (ielavêvJ"
também: "O coração do sábio está à sua direita" (Eclesiastes 10:2) -
sua inteligência está voltada para os pensamentos perfeitos: e são mui­
tos [os exemplos]. Este termo é utiÍizado neste sentido, como metáfora
para Deus, quando se refere à inteligência, mas não quando se refere à
vontade - cada coisa conforme o seu contexto. E também em: "E
considerarás no teu coração (levavecha')" (Deuteronômio 4:39); e em:
"E não considerou em seu coração (iibô)" (Isaías 44: 19), e tudo o que
for semelhante a isso, conforme afirmado: "Não vos tem dado o Eter­
no coração para saber" (Deuteronômio 29:3), ou em Deuteronômio
4:35: "A ti foi mostrado para saber".
De fato, na passagem: "E amarás o Eterno, teu Deus, com todo o
teu coração (Jevavecha)" (Deuteronômio 6:5), na minha opinião o seu
significado é: com todas as forças do seu coração, ou seja, com todas as
potencialidades d o seu corpo, pois o princípio de todas elas provém do
coração. Portanto, o sentido é: a finalidade que você colocará em todas
as suas ações será perceber Deus, conforme explicamos em nosso Co­
mentário sobre a Mishna.g6 e [em nossa obra] Mishnê Torá.91

96 Maimônides. Oito Capítulos. Ed. Maayanot, capítulo 5.


97 lesodê Hatorá, capítulo 2. parágrafo 2: e Halchúc De6c, capítulo 3, pará­
grafo 2.
CAPÍTULO 40
SOPRO.VENTO, ESPÍRITO (RÚACH,

Rúach é um termo polivalente. Denomina o "ar" (avír}, isto é, um dos


Quatro Elementos: "E o sopro de Deus (Rúach Elohim) se movia" (Génesis
1:2). E também o "vento": "E o vento (rúach) oriental transportou o
gafanhoto" (Êxodo 10:13}; " 14nto do poente (Rúach-iám} " (Êxodo
1 O: 19); e são muitos [os exemplos). Eis que também denomina o "so­
pro de vida": "Um sopro de vida (rúach) que vai e não volta" (Salmos
78:39) ; "Em que havia sopro de vida (rúach chaím}" (Gem,si� 7:15). É
utilizado também para aquilo que permanece do indivíduo após a morte
e não perece: "E o espírito (rúach) voltará para Deus, que o deu" (Ecle­
siastes 12: 7). E ainda denomina a emanação da Inteligência DMna que
se derramou sobre os Profetas, os qua.is, em decorrência disto, proferi­
ram suas profecias, como lhe explicaremos quando tratarmos da profe­
cia, sobre aquilo que for adequado revelar neste tratado: 98 "E tirarei uma
parte do espírito (min-harúach) que está sobre ti e colocarei sobre eles"
(Números 1 1 : 17); "E foi assim, como pousou sobre eles o espírito
(harúach)" (Números 1 1:25); "O Espírito (Rúach) de Deus falou atra­
vés de mim" (II Samuel 23:2); e são muitos [os exemplos}. Outro sen­
tido para o termo é o da "intenção" (cavaná) e da "vontade" (ratsón):

98 Veja na Parte 2, d9 capítulo 32 até o final.


164 MAIMÔNIOES

"O tolo colocará parafora todo o seuespírito(ruchõ)" (Provérbios 29: 11),


ou seja, sua intenção e vontade; e do mesmo modo: "E o espírito (rúach)
do Egito se esvaecerá em si mesmo, e devorarei o seu conselho" (Isaías
19:3), ou seja, suas intenções serão frustradas e perderão a noção de
como governar; assim como: "Quem compreendeu o Espírito (Rúach)
de Deus? E quem é o homem cujo conselho pode nos dar a conhecer?"
(Isaías 40:13). ou seja, quem é capaz de conhecer como está organiza­
da a Sua vontade ou percebeu o Seu modo de governar o mundo exis­
tente, para que nos faça saber? Esclareceremos este tema nos capítulos
referentes ao Governo [do universo).99 Assim, toda vez que o termo
hebraico "rúach" estiver relacionado a Deus, será interpretado median­
te o quinto sentido;100 e algumas vezes conforme o sentido final, que é
a "vontade" , como explicamos. Portanto, deverá ser interpretado em
cada passagem de acordo com o contexto em que estas expressões estão
colocadas.

99 Veja na Parte 3. capítulos 18 a 26.


100 Veja neste capítulo: • (...) a emanação da Inteligência Divina que se derra­
mou sobre os Profetas, os quais, em decorrência disto, proferiram suas pro­
fecias (...)" (NT).
CAPÍTULO 41
ALMA (NÉFESH}

Néfesh é um termo polivalente. Denomina a alma animal comum a todo


ser dotado de sentidos: "Em que haja [nele] alma (néfesh) viva" (Génesis
1 :30). Também se refere ao sangue: "E não comerás a alma (néfesh) com
a carne• (Deuteronômio 12:23). Significa ainda a alma falante, ou seja,
a forma humana: "Viva o Eterno, que fez para nós esta alma" (Jeremias
38:16). Este termo também denomina aquilo que permanece do ser
humano após a morte: "E estará a alma do meu senhor ato.da ao peso
da vida" (I Samuel 25:29). Finalmente, significa vontade: "Para disci·
(
plinar os seus ministros na alma (benafsh6 (Salmos 105:22), ou seja,
em sua vontade; e do mesmo modo: "E não será entregue à alma
(benéfesh) de seus inimigos" (Salmos 41 :3), isto é, não será entregue à
vontade deles; e, segundo a minha opinião, é o mesmo que em: "Se está
em vossas almas (nafshechêm) enterrar a minha morta" (Génesis 23:8),
quer dizer, se assim é sua intenção e sua vontade; assim como em: "Ain•
da que Moisés e Samuel se pusessem diante de Mim, não teriam Minha
alma (nafsh1) para este povo" Geremias 15: 1), cujo sentido é: não te·
nho disposição para eles, ou seja, não pretendo preservá-los. E toda c i ­
tação do termo •néfesh• referente a Deus vem no sentido de "vontade·,
conformejá nos foi apresentado'º' com as seguintes palavras: "Confor-

101 Capitulo 39.


166 MA!MôNlOES

me está no Meu coração e na Minha alma ( Uvenafsh1} , fará" (I Samuel


2:35), ou seja, conforme a minhavontade e a minha intenção [de Deus].
É neste sentido a interpretação de: "E ceifará Sua alma (nafshõ) da
aflição de Israel" Ouízes 10:16), [ou seja]. Sua vontade deixou de afli­
gir "Israel". Este passúc (passagem bíblica) não foi traduzido por Ionatán
ben Uziel, pois ele o entendeu conforme o primeiro sentido, deduzin­
do daí a passividade [de Deus] e, então, deixou de traduzi-lo. Entre­
tanto, caso tivesse compreendido conforme o último sentido, a tradu­
ção ficaria bastante clara, pois, na passagem que o precede,102 quando
a sua Hashgachá(Proteção Divina) os havia abandonado [aos israelitas]
até morrerem, estes clamaram pedindo salvação, mas não foram salvos;
no entanto, quando vieram em teshuvá (arrependimento, retorno) e au­
mentou sua miséria e o seu inimigo prevaleceu sobre eles, Ele se com­
padeceu e sua vontade cessou de prosseguir com a aflição e a miséria
sobre eles. E entenda oseguinte, porque é muito importante! A prepo­
sição bêt na expressão: "Baamál Israel" está no l ugar de•min" (de), como
se fosse dito: "Meamál Israel". Aqueles que dominam a língua103 já
apresentaram muitos exemplos: "E o que ficar dacarne (babassár) e
do pão (uvaléchem)" (Levítico 8:32): "E se pouco restar dos anos
(bashaním)" (Levítico 25:52): "Do peregrino (baguêr) e do cidadão
(uveezrách) da terra" (Êxodo 12:19): e são muitos [os exemplos].

102 Em Juízes. do capitulo 7 em diante.


103 A gramática da língua hebraica (NT).
CAPITULO 42
VIDA (CHÁ]) E MORTE (MÁVE1)

Chái é o termo para um ser que floresce e sente: "Todo réptil que Vive
(chá1r (Gênesis 9:3). Também denomina a cura de uma enfermidade
muito grave: "E viveu (vaiech1} de sua enfermidade" (Isaías 38:9); "No
acampamento até reviverem (chaiotám} " {Josué 5:8); e também: "Car­
ne Viva (chá1)" (Levítico 13:10). Mávec significa "morte" e "grave en­
fermidade": •E morreu ( Miiamát) �e,,
coração dentro dele, e tomou- se
qual uma pedra" (I Samuel 25:37), a saber: sua enfermidade era grave.
Sobre isso, foi explicado por um "filho de uma mulher de Tsarfát":104
"E sua enfermidade era muito grave, até que não lhe restava ma.is alma
vivente· (I Reis 17: 17), e é como se fosse dito: "E morreu ( Miimát} •,
ou seja, sofria de umaenfermidade muito grave e estava próximo à morte,
assim como aconteceu a Navál quando ouviu o relato de sua mulher. 105

104 Trata- se de Acháv (Acabe) que. seguindo a orientação do Profeta Elias. foi
à cidade de Tsarfát. onde foi como que adotado por uma viúva. oonforme
a passagem bíblica: "Então veio a palavra do Etemo para ele dizendo: Le­
vante-se e vá para Tsarfata, que pertence a Sidon, e estabeleça-se lá, onde
ordenei a uma mulher viúva para te sustentar" (I Reis 17:9). Desde então,
Acháv passa a ser tratado como filho da viúva (NT).
105 Ma.tmõnides refere-se aqui ao episódio emque Abtgall viu David e lhe dis•
se, a respeito do seu marido, Navál: "Não se importe o meu senhor com
este homem de Bllalál, a saber. com Navál; porque o que slgnlftca o seu
168 MAIMÔNIDES

Alguns [autores) da Andaluzia afmnaram que é semelhante ao caso


daquele cuja respiração está suspensa até que não se percebe mais qual­
quer suspiro - como ocorre a alguns enfermos da "doença do silên­
cio" ou de "estrangulamento do útero" 106 - até que não se saiba se a
pessoa está morta ou viva, e isto perdura por um dia ou dois.
E também se tem usado muito este termo no sentido de aquisição
de sabedoria: "E será vida (chayím) para tua alma" (Provérbios 3:22);
"Porque o que me acha encontra a vida (chayím)" (Provérbios 8:35);
"Porque são vida (chayim) para quem as encontra" (Provérbios 4:22)
- e são muitos [os exemplos]. E neste sentido as opiniões verdadeiras
foram chamadas de chayím( vida) e as equivocadas, mávet(morte). São
as palavras do Eterno: "Vê que, hoje, pus diante de ti a vida e o bem, a
morte e o mal ( .. .)" (Deuteronômio 30: 15) já foi explicado que
"bom" é "vida" e "mal" é "morte", bem como suas interpretações. Por•
tanto, entende-se das Suas palavras: " Para que vivais" (Deuteronômio
8: 1), de acordo com a interpretação tradicional: 101 "Para que seja bom
para ti" {Deuteronômio 6:18). A fim de ampliar esta metáfora na lín­
gua [hebraica). [nossos Sábios] afirmaram: "Os justos, ainda que em
suas mortes , são chamados de 'vivos'; e os perversos, ainda que em suas
vidas, são chamados de 'mortos'".108 Saiba disto!

nome. isto ele é. Naval é oseu nome e a inlàmia (neva/d) está com ele· (l
Samuel 25:25).
I06 Segundo Maeso, tradutor de O Cuia dos Perplexos para o espanhol. trata- se
respectivamente de apoplexia e "sufocamento histérico" e então cita Munk,
tradutor para o francês: "Trata-se da enfermidade denominada pelos anti­
gos 'estrangulamento ou sufocamento do útero'. mencionada por Aristóte­
les, Galeno e Plínio; e é 'uma afecção deste órgão, na qual as mulheres ex­
perimentam movimentos espasmódicos e parecem sentir como se houves•
se uma bola na garganta /,globus hystericus) as sufocando'".
I 07 Talmudda Babilônia, Kidushin.
I 08 Talmudda Babilônia. Bemchót.
CAPITULO 43
CANTO (CANÁF)

Canáfé um termo polivalente e usado na maior parte das vezes como


metáfora. Seu primeiro significado refere-se às asas de seres vivos ala­
dos: "Toda ave com extremidade (caná/J que voe nos céus" (Deutero­
nômio 4: 17). Em seguida serve de metáfora para os cantos e extremi­
dades das roupas: "Nos quatro cantos (canfó(J da tua vestimenta" (Deu­
teronômio 22: 12). E ainda para os confins da terra e suas extremida­
des, distantes de onde estamos localizados: "E para que te ocupes dos
cantos (canfó(J da terra" Üó 38: 13); "Do canto (mikenáÍj da terra can­
ções ouvimos" (Isaías 24:16). lbn Ganách109 também afirmou que é
usado no sentido de ocultar, equivalente à expressão em árabe • cana/tu
alshaf, que significa "ocultei alguma coisa"; e sobre "Não te ocultarão
mais teus mestres" {Isaías 30:20), explicou: "E não se ocultarão de ti
'teus mestres', e não lhes serão desconhecidos• - e esta interpretação é
adequada. Na minha opinião é como em: "Não descobrirá a coberta
(kenái) do seu pai" (Deuteronômio 23: 1), ou seja, não descobrirá o
segredo do seu pai; e: "Estende teu manto (chenalkha) sobre tua serva"

109 lona Mari.nu.s (Merwan) lbn Canách. (995-1059), famoso gramático e


dicionarista espanhol nascido em Córdoba, que estudou em Lucena e resi­
diu em Zaragoza. Malmõnldes se refere aqui à sua obra Sefer Hashora.shfm
(Livro das Ralus), vocábulo canáf(N1).
J70 MAIMÔNIDES

{Rute 3:9), cujo significado interpreto: "Estenda teu segredo sobre tua
.
serva. .
Quanto a isso, para mim canáfé uma metáfora para o Criador e os
anjos, pois os anjos não possuem corpos, de acordo com a nossa opi­
nião, como será explicado.110Assim, o sentido das palavras "Que vieste
buscar refúgio sob suas asas" {Rute 2: 12) é: "Que Vieste buscar refúgio
sob o seu segredo' '. E sempre que o termo canáfse aplica aos anjos, tem
o sentido de ocultar. Você deve ter prestado atenção às palavras "Com
duas cobria seu rosto e com duas cobria seus pés" {Isaías 6:2), isto é: a
causa da sua existência (a saber: do anjo) está demasiado oculta e es ­
condida: "seu rosto" refere-sea esta causa e "seus pés" às coisas das quais
ele (a saber: o anjo) é a causa, conforme esclareci 111 sobre o uso do ter­
mo polivalente résual (pé), estas cois3S também estão escondidas, pois
as ações das Imel!gências112 são ocultas: estas somente são explicadas
por meio de estudo, por doismotivos, um referente a nós e outro a eles,
a saber: a debilidade da nossa percepção e a dificuldade de apreensão
da [Inteligência) Separada em sua verdadeira realidade. E com relação
às palavras "E com duas voava" (Isaías 6:2), mais adiante esclarecerei,
em um capitulo à parte,113 por que se faz a relação do movimento do
vôo com os anjos.

110 Capítulo 49.


111 Capitulo 28.
112 Maimõnides considera os anjos da tradição Judaica equivalentes às Inteli­
gências Separadas. roncelto utlllzado por Aristóteles. Esta equivalência está
exposta em O Cuia dos Perplexos -Parte 2 (NT).
113 Capitulo 49.
CAPITULO 44
OLHO (Ál/VJ

Áin é um termo polivalente. Denomina a fonte de água: "Sobre a fonte


(éin) das águas do deserto" (Gênesis 16:7). Também denomina o olho
que vê: "Olho por olho" (Êxodo 21 :24). Este termo significa, ainda,
proteção, conforme foi dito porJeremias: "Toma- o , e teusolhos (einêcha),
coloque- o s sobre ele" Ueremias 39: 12), cujo sentido é: proteja- o . E é
usado neste sentido metafórico quando se refere a Deus em qualquer
lugar: "Meus olhos (einá1' e meu coração Já estarão todos os dias" (I Reis
9:3). ou seja, minha proteção e minha intenção, conforme já explica­
mos anteriormente; 114 "Sempre osolhos (eini/ do Eterno teu Deus estão
nela" (Deuteronômio 1 1 : 12). isto é, a sua Proteção Divina sempre está
sobre ela; · Osolhos(einê) de Deus, que percorrem toda a terra" (Zacarias
4 : 10), ou seja, a Proteção Divina se estende por tudo o que há na terra,
como será explicado nos capítulos que tratarão da Hashgachá (Prote·
ção Divina). 1 15
No entanto, quando a palavra "eináim" (olhos) estiver ligada ao ter­
mo "reiá' ou •cheziá, como em: "Abra, Eterno, Teus olhos (Einêcha) e
veja" (II Reis 19:16; Daniel 9:18); "Seus olhos (Eináv) vêem" (Salmos

114 Capitulo 39.


115 Na Parte 3, do capitulo 17 em diante.
172 MAIMÔNIDES

11:4), significa sempre umapercepção menta!, 116 e não dos sentidos;


pois toda sensação é passiva, como você sabe, eEle (Louvado seja) é ativo
e não passivo, como explicarei.117

116 Capítulo 4.
117 Capítulo 55.
CAPfTULO 45
OUVIR (SHAMÁ)

Shamá é uma palavra polivalente que pode se aplicar à audição d o ou­


vido , bem como ao sentido de escutar.118 Quanto ao sentido da audi­
ção: " Não seja ouvido (ishama') de tua boca•(Êxodo 23:13); "E a voz
foi ouvida (nishma') na casa do Faraó" (Gênesis 45:26); e são muitos [os
exemplos). Igualmente freqüente é o uso do termo no sentido de" escu­
tar'': "E não escutaram (shamú) a Moisé s" (Êxodo 6:9); "Se o escutarem
(ishmeú) e o servirem" (Jó 36: 11); "E a vós escutaríamos (nishm;fJ?
(Neemias 13:27); "E não escutar(ishmif) as tuas palavras" (Josué 1:18).
A palavra também tem o sentido de compreensão: " Nação que não
ouvirá (tishma') sua língua" (Deuteronômio 28:49), cujo significado é:
não compreenderá as suas palavras.
E toda palavra "de escuta (shemia') ", seestiver conforme a sua expres­
são literal - que é o primeiro significado -quando se refere a Deus
aponta para o terceiro sentido: "E ouviu ( Vaishmif) o Eterno" {Núme­
ros 11:1); "Porquanto [Ele] ouviu (Beshamà} vossas queixas" (Êxodo
16:7) - são todos casos de apreensão intelectual; e se parecer, confor­
me a sua expressão literal , que se trata do segundo sentido, então é um
relato sobre Deus responder ao clamor do suplicante para que a sua prece

118 Escutar - no sentido de aceitar ou obedecer (NT).


174 MAIMÔN!OES

seja atendida, ou não responder ao seu clamor nem atender ao seu pe­
dido: "Escutarei (Sham6a Eshmá) seu clamor" ('Êxodo 22:22); "E Eu
escutarei ( �shamáu), porque Eu sou misericordioso" (Êxodo 22:26);
"Inclina, Eterno, teu ouvido e escuta (veshami)" Gl Reis 19:16); "E não
escutou (shamd) , o Eterno, vossa voz, e não inclinou os ouvidos para vós"
(Deuteronômio 1:45); "Também quando multiplicarem a oração, Eu
não escutarei (shoméa)" (Isaías 1 : 15); "Porque Eu não te escuto (shoméa) "
Oeremias 7:16); e são muitos [os exemplos].
Eis que lhe apresentarei, sobre estas metáforas e imagens, aquilo que
saciará a sua sede e esclarecerá suas dúvidas, e lhe serão explicadas todas
as questões até que não tenha mais qualquer dúvida sobre o tema.119

119 Maimõnides refere-se aqui a todos os sentidos físicos, não somente à audi­
ção (NT).
CAPÍTULO 46
SOBRE A ATRIBUIÇÃO DE SENTIDOS E SENSAÇÕES A DEUS

Já mencionamos, em um dos capítulos deste tratado, 120 que há uma


grande diferença entre a correção encontrada em um objetoe a demons­
tração do seu caráter e essência, pois a primeira poderá ser verificada
até mesmo por meio de seus acidentes, atividades e das grandes dife­
renças entre este e os demais objetos.
Eis um exemplo disso: caso você pretenda descrever um rei de uma
detenuir,a<.la região a um súdito de sua terra que não o conheça, você
poderá descrevê-lo e informá-lo da sua existência de diversas maneiras,
por exemplo: "Ele é aquele ho�em alto, de aparência clara e cabelosgri­
salhos"; esta é uma descrição por seus acidentes. Ou dirá: "Ele é quem
você verá cercado de uma grande multidão, a cavalo e a pé, com espa­
das desembainhadas ao seu redor, com bandeiras em suas cabeças, e
trombetas estarão tocando diante dele": ou: " É aquele que mora no
palácio no país tal desta regjão"; ou ainda: "Foi ele quem ordenou a
construção desta muralha ou daquela ponte": e fatos semelhantes a es­
tas atividades e a elas relacionados. É possível ainda se comprovar sua
existência por aspectos menos concretos do que estes, como no caso de
alguém lhe perguntar: "Esta terra tem um rei?" , e você lhe responderá:
"Sim, sem dúvida!"; "E qual prova há disso?", e lhe dirá: "Eis que vou

120 Capítulo 33.


J 76 MAIMÔNIDES

lhe fazer entender; quando você vir um homem fisicamente fraco e


pequeno e, diante dele, uma enorme quantidade de peças de ouro e outro
homem grande e fisicamente forte; e primeiro, diante do último, pe­
dir-lhe uma tsedaca121 [no valor] de um peso degrão de caroba,m e este
não o fizer , mas maltratá-lo e expulsá-lo com insultos; então, se o po­
bre (homem] não temesse o rei, apressar-se-ia em matá-lo ou derrubá­
Jo, ou recolheria o que pudesse daquela riqueza; esta é a prova de que
esta nação tem um rei". Assim você terá provado a existência deste por
meio do regime dos assuntos nacionais, cuja causa é o temor ao rei e às
suas punições . Nada há em nosso exemplo que descreva o rei ou com­
prove a sua existência de fato .
O mesmo acontece quanto ao conhecimento de Deus pelas pessoas
comuns em todos os Livros dos Profetas e naTorá, pois, quando surgiu
a necessidade de orientar a todos sobre a existência de Deus e a Sua per­
feição em tudo - a saber: que Ele não existe somente como existem a
terra e os céus, mas como um Ser vivo, sábio, poderoso, ativo e dotado
de tudo o que acreditamos ser necessário à Sua existência, conforme
explicarei em seguida - foram apresentadas às pessoas teorias de que
Ele existe em uma dimensão física e vive conforme a noção de movi­
mento, pois as pessoas comuns consideram somente o corpo como uma
forte e indubitável prova da sua verdadeira existência; e tudo o que não
é corpo, mas está neste, para elas existe, pois necessita deste corpo para
existir; de fato, [para elas] aquilo que não é corpo nem está nele é algo
que absolutamente inexiste , conforme a representação inicial do ser
humano, em particular por meio da imaginação. Assim também as
pessoas comuns desconsiderarão a vida como algo diferente do movi­
mento, e tudo o que não apresenta movimento voluntário espacial não
é vida, apesar de o movimento não fazer parte da definição de vida, mas
ser um acidente ligado a esta . 123
Eis a percepção entre nós conhecida a respeito dos sentidos, quais
sejam: a audição e a visão. Não conhecemos nem representamos algo
na comunicação da alma de uma pessoa à de outra senão pela fala, ou
seja, o som articulado pelos lábios, língua e demais instrumentos da fala.
E quando querem nos mostrar que Deus "percebe" e transmite [Suas

121 sedacá: aqui, no sentido de uma boa ação, uma esmola (NT).
T
122 "(...} ou seja. algo de valor ínfimo. O grão de caroba. cujo nome científico
é ceratonia siliqua. figurava entre os pesos dos farmacêuticos árabes e equi•
valia a quatro grãos de cevada (...)" (Munk, citado por Maeso).
123 Veja em Aristóteles, Física. livro 5, capítulos 2 e 25 (Maeso).
O GUI A DOS PERPLEXOS !77

percepções) aos Profetas para que estes nos comuniquem, Ele nos é des­
crito como ouvindo e vendo, em outras palavras: que Ele "percebe" aque ­
las coisas vistas e ouvidas, e então as conhece; e também nos é descrito
que Ele fala, ou seja: que certas coisas são transmitidas Dele para os
Profetas, e este seria o caso da Profecia. Isso será suficientemente escla­
recido.124 Assim como não pensaremos outra coisa da nossa existência
que não seja mediante o queproduzimos por contato, do mesmo modo
Deus é descrito como ativo (e posto que as pessoas comuns não consi­
deram como um ser vivo senão aquele dotado de alma, também nos
dirão que Ele possui alma, - apesar de o termo "alma" ser polivalente,
como foi explicado 125 - e é por isso que Ele vive).
Já que todas estas atividades não podem ser realizadas senão através
dos órgãos corporais, todos estes foram aplicados a Ele metaforicamente,
pois é por meio deles, dos pés e das solas dos pés, que há movimento
espacial; por meio do ouvido, do olho e do nariz existem a audição, a
visão e o olfato: pela boca, língua e voz existem a fala e a matéria da fala;
e as mãos, os dedos, a palma e o braço são os órgãos utilizados para se
produzir algo. Em suma: que a Ele (que está acima de qualquer imper­
feição!) foram atribuídos metaforicamente estes órgãos corporais para
expressar, por meio deles, as suas ações; e estas ações Lhe foram atribuí­
das metaforicamente para exprimir, por meio destas, uma dada perfei­
ção, que não tem relação com o movimento. Um exemplo: eis que a
Deus são atribuídos metaforicamente olhos, ouvidos, mãos, boca e lín­
gua a fim de mostrar, assim, visão, aud'ição, atividade e fala; e a visão e
a audição indicam apenas a percepção. Sobre isso você encontrará na
língua hebraica que a percepção de um sentido estará no lugar da per­
cepção de outro, conforme foi dito: "Vejam a palavra de Deus" Gere­
mias 2:31), como se fosse: "Ouçam [a palavra de Deus]", pois o pre­
tendido era: "Percebam o sentido da Sua fala". Assim também: "Veja o
cheiro do meu filho" (Gênesis 27:27) , como se fosse dito: "Sinta o cheiro
do meu filho", pois o pretendido era a percepção do seu cheiro. E neste
sentido está dito: "E todo o povo via os trovões" (Êxodo 20: 18), embo­
ra esta passagem também seja uma "visão profética", como é sabido e
notório pelo povo [de Israel]. E a atividade e a fala foram atribuídas
metaforicamente a Ele, para expressar?. influência emanada Dele, como
será explicado. 126

124 Parte 2. capítulos 32 a 48.


125 Capítulo 4L
126 Parte 2. capítulo 12.
) 78 MAIMÔNIDES

Eis a explicação para cada órgão corporal [atribuído a Deus) a ser


encontrado nos Livros dos Profetas: um órgão d e locomoção espacial
expressa a vida; um órgão dos sentidos indica percepção; um órgão tá·
til indica atividade; e um órgão de fala indica a emanação das Inteli­
gências sobre os Profetas, como será explicado.127 A orientação comida
em todas estas metáforas é estabelecer, para nós, que existe um Ser vi­
vente, atuante sobre tudo o que existe fora Dele e que també� "perce­
be" sua própria atividade. Explicaremos,128 quando nos iniciarmos na
negação dos a.tributos [aplicados aDeus) , como tudo isso se reduz a uma
só noção: a essência única de Deus; pois a única intenção desce capítu•
lo é esclarecer em que sentido estes órgãos físicos estão relacionados a
Ele - que está acima de qualquer imperfeição! - que todos eles ser­
vem para expressar suas próprias atividades - que para nós são perfei­
tas - e são aplicados a Deus porque desejamos afirmar que Ele é per­
feito em qualquer aspecto da perfeição, conforme foi dito pelos Sábios:129
"Falou a Torá conforme a língua dos seres humanos".
De fato, os órgãos de locomoção atribuídos a Deus são, conforme
as passagens: "O escabelo para meus pés" (Isaías 66:1): "E o lugar das
solas dos meus pés" (Ezequiel 43:7). Com respeito aos órgãos táteis
atribuídos a Deus: "Mão de Deus" (Êxodo 9:3); "Com o dedo de Deus"
(Êxodo 31:18); "Obra dos Teus dedos" (Salmos 8:4); "E sobre mim
estendes a palma de Tua mão" (Salmos 139:5); "E o braço de Deus, a
quem foi revelado?" (Isaías 53:1); "Tua destra, Eterno" (Êxodo 15:6).
E quanto aos órgãos da fala atribuídos a Deus: "A boca de Deus falou"
(Isaías 1:20); "E abriu Seus lábios comigo" Oó 11:5); "A voz de Deus,
com força" (Salmos 29:4); "E Sua língua é como fogo devorador" (Isaías
30:27) . Quanto aos órgãos dos sentidos atribuídos a Deus: "Seus olhos
vêem, Seu mirar analisa as pessoas" (Salmos 1 1:4); "Os olhos de Deus
observam" (Zacarias 4:1. 0); "Inclina, Eterno, Teu ouvido e ouve" (II Reis
19:16); "Acendestes um fogo em meu nartz" 130 Oeremias 17:4). E não
Lhe foram atribuídos metaforicamente órgãos internos, à exceção do
coração, sendo este um termo polivalente131 qul! também significa "in­
teligência"; e é o princípio da vida de um ser vivo, conforme as expres-

127 Idem.
128 Capítulo 53.
129 Capítulos 26 e 33.
130 Como se fosse: "Acendeste a Minha ira (NTI.
131 Capitulo 39.
O CUIA DOS PERPLEXOS 179

sões: " Comovem-se minhas entranhas por Ele" Oeremias 31:19); "A
emoção deTuas entranhas"(Isaías 63: 15), aqui quer dizer também"co­
ração" , pois o termo "entranha" é usado em sentido geral e particular:
significa os intestinos em particular, bem como todo órgão interno em
geral, inclusive o coração, como fica demonstrado na expressão: "E tua
Terá está dentro das minhas entranhas• (Salmos 40:9), o que equivale
a dizer: "Dentro do meu coração". Por isso que em: "Comovem-se
minhas entranhas"; "A emoção de tuas entranhas" , o termo (hamiá:
gemido, comoção) se aplica de fato mais ao coração do que aos demais
órgãos: "Comove-me o coração" Oeremias 4: 19). É por isso que o ombro
não é aplicado metaforicamente a Deus, porque é um instrumento de
transporte, como é notório, e também porque o objeto transportado
estaria em contato com ele. Com muito mais motivo os órgãos de ali­
mentação132 não foram atrib uídos metaforicamente a Deus, pois são
reconhecidos como imperfeitos logo de início.
A condição de todos os órgãos, na verdade, é uma só, tanto (os] e x ­
ternos como (os) internos: todos são instrumentos para as diversas ati·
vidades da alma. Destes, há aqueles necessá.rios à conservação do indi·
víduo por um tempo, como todos os órgãos internos; outros são ne­
cessários à manutenção da espécie: os órgãos de reprodução; outros ainda
são para a restauração da condição do indivíd uo e para a perfeição de
su as atividades, como as mãos, os pés e os olhos -todos para a perfei­
ção de movimento, ação e percepção.De fato, a necessidade de movi­
mento para os animais existe para levá-los àquilo que lhes traz bem-estar
e livrá-los do que lhes é prejudicial . A necessidade real dos sentidos é
conhecer o que é prejudicial e o que é benéfico. O ser humano também
necessita de habilidades para preparar seu alimento, vestuário e habita­
ção, pois isso é imprescindível à sua natureza, ou seja ,ele precisa prepa­
rar aquilo que lhe é benéfico; eis que também serão encontradas algu­
mas habilidades em uns tantos animais, cada uma conforme a sua ne­
cessidade.
Eu não vejo como qualquer pessoa possa duvidar de que Deus de
nada necessita para preservar a Sua existência ou restaurar a Sua condi­
ção. Portanto, Ele não possui órgãos , é incorpóreo; de fato, S uas ações
(ocorrem] por meio da Sua essência, não por órgãos.Sem dúvida, as
potencialidades compõem os órgãos; portanto, Ele não possui potên•
cia - ou seja, nada há Nele, além da Sua essência, que possa fazê-lo

132 Capitulo 26.


CAPÍTULO 47
SOBRE A ATRIBUIÇÃO DE AUDIÇÃO, VIS.À.O E OLFATO A DEUS. MAS
NÃO O PALADARE O TATO: O PENSAMENTO E NÃO A IMAGINAÇ.Ã.O

Já mencionamos diversas vezes135 que tudo o que as pessoas comuns


imaginam é uma imperfeição ou é impossível de se atribuir a Deus; e
que os livros dos Profetas não os aplicaram a Deus - mesmo que o seu
conceito esteja relacionado com atributos que se aplicam metaforica­
mente a Ele, pois se imaginou ou que alguns destes eram perfeitos ou
que era possível imaginá-los assim. E é necessário. conforme csto supo
sição, que esclareçamos por que foram atribuídos metaforicamente a
Deus a audição, a visão e o olfato, mas não o paladar e o tato, sendo
que, com respeito à sua grandeza, o conceito quanto a estes cinco sen­
tidos é um só; e todos os sentidos são imperfeitos no que tange à per­
cepção - até mesmo para quem só percebe por meio deles -, pois são
passivos, sujeitos a interrupções e dores, assim como os demais órgãos.
E quando dizemos que Deus vê, estamos afirmando que Ele percebe as
coisas visíveis; e que Ele ouve, que percebe as coisas audíveis; assim tam­
bém seria possível Lhe atribuir paladar e tato, por meio dos quais se
entenderia que Deus percebe as coisas palatáveis e as táteis, pois o con­
ceito para a percepção de todos é um só; e caso você exclua, dentre eles,
uma só percepção, será obrigado a excluir todas {a saber: os cinco sen-

135 Capítulos 26 e 46.


184 MAIMÔNIDES

tidos); e caso se atribuaaDeus umasó percepção dentre eles, ou seja, a


percepção obtida por um dos sentidos, você será obrigado aatribuir
todas as cinco. Encontramos em nossos livros as expressões: "E Deus
viu"; "e Deus ouviu"; "E Deus cheirou", mas não: "E Deus sentiu o
gosto", "E Deus tocou". Diremos que arazão paraisso é proveniente
do que está arraigado naimaginação das pessoas: que Deus não terá com
os corpos um encontro corpo- acorpo, físico, posto que nem com os
olhos daimaginação é possível vê-Lo. E estes dois sentidos - o pala­
dar e o tat o - só obtêm suas sensações quando hã contato. Não obstan­
te, os sentidos davisão , audição e olfato adquirem suas sensações mes­
mo que os corpos aserem percebidos por suas qualidades estejam dis­
tantes . Por isso, naimaginação das pessoas comuns eraconveniente
relacioná-los aDeus. E mais, pois o significado e aintenção daatribuição
metafóricadestes sentidos aDeus é expressar aSuapercepção das nossas
atividades; e aaudição e avisão bastam para isso, ou seja: que se perceba,
por meio destas, tudo oque o outro fará ou dirá ou, como [nossos Sábios)
disseram como advertênciae aviso, em geral pelaseguinte repreensão:
"Saibao que está acimade ti: um olho que vê e um ouvido que ouve".136
E você sabe, pelo caminho daverdade, que todos estes conceitos são
um só conceito, e que, se pelo lado de Deus, afastam o -n os dapercep­
ção do paladar e do tato, pelo mesmo lado serão afastados avisão, a
audição e o olfato, pois todos implicam percepções físicas, impressões
e questões sujeitas amudança; entretanto, alguns deles parecerão im­
perfeitos de imediato, e de outros se pensará que são perfeitos. Assim
como será vistaaimperfeição daimaginação, mas não a dareflexão e
do raciocínio; e não será atribuído como metáforaa De us [o termo)
"raión" (idéia) - que significa"imaginação" -, mas serão atribuídos
metaforicamente [os termos) "machshavá (pensamento) e •tevuná
(entendimento), conforme foi dito: "Que pensou (chasháv) Deus" (Je­
remias 49:20); "E no seu entendimento (uvítevunatô) esticou os céu s"
(Jeremias l O:12). Eis que acontecerá aos órgãos internos o mesmo que
aos órgãos externos dos sentidos, dos quais alguns se aplicam metafori­
camente aDeus e outros não; e tudo isso está "conforme a línguados
seres humanos": o que era considerado perfeito atribuiu-se aEle, e o
que eravisto como imperfeito não se Lhe atribuiu . Naverdade, não há
atribu to verdadeiro em si mesmo digno de ser acrescido à Suaessência,
como será demonstrado.137

136 Pirkê Avot (Ética dos Pais). capitulo 2, Mishná 1.


137 Capitulo 50.
CAPÍTULO 48
O TARCUM DE ONKELOS PARA OS TERMOS "OUVIR" (SHAMA) E
"VER" (RAAj

Você observará que Ünkelos, o Prosélito, atentou a tudo o que se refere


à questão da audição relacionada a Deus, e interpretou o seu sentido
segundo o modo como a questão se aplicava a Deus, ou seja, o que Ele
percebia; e se houvesse de fato um clamor e uma prece, Onkelos inter­
pretava em função de Ele os ter recebido ou não. Assim, sempre traduz
"Ouviu Deus" por "Foi ouvido diante de Deus", e, quanto ao sentido
do clamor, traduz "Ouvirei o seu clamor" (Êxodo 22:22) por "Atende­
rei". E desse modo prossegue na sua interpretação, não se desviando disto
em lugar algum. Em relação àquilo que deriva da visão relacionada a
Deus, Ünkelos traduziu por meio de interpretações surpreendentes e a
sua intenção e concepção não me ficaram claras, pois em alguns luga­
res ele interpreta "E viu
( lkraá) Deus" como •E cont emplou ( lkchaza)
Deus" e, em outros, como "E foi revelado (Ugil) diante de Deus". No
entanto, sua interpretação "E contemplou Deus" trata de uma visão
literal, sendo que [o termo] "chazá"em aramaico é polivalente, pois tem
tanto o significado de apreensão mental quanto aponta para a percep­
ção dos sentidos. E eu fico pasmo porque ele, após apreender o seu sen­
tido, afastou-se em alguns lugares [do literal) e traduziu por: "E foi re­
velado diante de Deus".
Então, quando refleti sobre o que encontrei a respeito das versões
do Targum (junto àquilo que ouvi nos meus tempos de estudo), pude
186 MAIMÓN!OF.S

ver que quando o termo "visão" aparece associado a injustiça, prejuízo


ou violência, interpreta-se: "E foi revelado diante de Deus", e, claro,
quando o termo" chazá" naquela língua [aramaico] determina a per­
cepção de receber a coisa tal como ela é . Por isso. quando a visão surge
relacionada a injustiça, [Onkelos] não diz: " E contemplou", mas: "E
foi revelado diante de Deus".
Eis que·descobri que toda "visão· relacionada a Deus em toda a Torá
tem, em sua [de Onkelos] tradução interpretativa, "E contemplou'' ,
exceto aquelas que lhe exporei: "Viu o Eterno a minha aflição"(Gênesis
29:32) por "Pois foi revelada diante de Deus a minha aflição";" Pois Eu
tenho visto tudo o que Labão fez a ti"(Gênesis 31:12) por "Pois (tudo
o que Labão fez a ti] foi revelado diante de Mim" (sendo esta a fala de
um anjo, (Onkelos) não atribui a este a percepção (direta). o que im­
plicaria total compreensão, por parte deste, de uma situação que se cons­
titui em uma injustiça); ''E viu Deus os filhos de Israel" (Êxodo 2:25)
por "E foi revelada diante de Deus a escravização dos filhos de Israel";
"Tenho visto a aflição de meu povo" (Êxodo 3:7) por "Tem se revelado
diante de Mim, Deus, a escravização de Meu povo"; "E também vi a
opressão" (Êxodo 3:9) por "E então se revelou diante de Mim a sua
aflição";" e que viu sua aflição" (Êxodo 4:31)por"pois foram reveladas
diante Dele as suas aflições"; "Tenho visto a este povo" (Êxodo 32:9)
por "Tem me sido revelado este povo", cujo sentido é: "Vi sua rebel­
dia" , como em: "E viu Deus os filhos de Israel(Êxodo 2:25), cujo sen­
tido é: "Ele viu sua aflição e trabalho duro"; "E viu o Eterno e irri­
tou-se" (Deuteronômio 32:19) por " E foi revelado diante Dele";
' 'Quando vir que o poder do inimigo" (Deuteronômio 32:36)por
"Quando forem revelados diante Dele" - e este também é um caso
de injustiça e do poder crescente do [inimigo) odiado sobre eles. E
em tudo [Onkelos] é consistente e se respalda em: " E olhar para o tra­
balho opressor não poderás"(Habacuque 1:13). Assim, toda "escravi­
zação" e toda rebel.ião serão traduzidas por: "Serão reveladas diante Dele"
ou "Serão reveladas diante de mim".
Entretanto, esta boa e apropriada interpretação , que não admite dú­
vida, falha em três lugares em que, segundo esta norma e conform e esta
explicação, sua interpretação deveria ser: "E foi revelado diante de Deus",
e eu as encontro nas versões [do Targum de Onkelos] como "E contem­
plou Deus". E estas são: " E o Eterno viu que era grande a maldade do
homem" (Gênesis 6:5); "E viu o Eterno a terra, e eis que estava corrom­
pida"(Gênesis 6: 12); "E viu o Eterno que Lêa era desprezada" (Gênesis
29:31). Parece-me que este deve ser um erro que ocorreu nas versões,
pois não possuímos o manuscrito [original) de Onkelos para que se diga:
O CUIA DOS PERPLEXOS 187

"Talvez quisesse dizer isto com esta interpretação". Entretanto, a tradu­


ção de: "Deus verá para si o cordeiro" (Gênesis 22:8) por: " Diante de
Deus será revelado o cordeiro" foi feita para que não se pensasse que Ele
tivesse que buscá-lo e encontrá-lo, ou porque também considerou in­
decente associar naquela língua [aramaico] a Percepção Divina a um
dos animais irracionais. É necessário exigir muito da gramática das
versões [do Targum) sobre isto; e se você encontrar estas passagen s cita­
das desta forma , desconheço qual tenha sido a intenção a respeito.
CAPITULO 49
SOBRE OS ANJOS

Os anjos também são incorpóreos, são inteligências separadas da ma­


téria; de fato foram feitos, criados por Deus, do modo como será expli­
cado.138 E e m Bereshit Rabá,139 [nossos Sábios] afirmaram: "'E a l â m i ­
na (chamejante) da espada que se volviá(Gênesis 3:24) corresponde a
'e o chamejante fogo teu atendente' (Salmos 104:4); 'que se volvia' cor­
responde a 'que eles se volviam: ora homens. ora mulheres; ora espíri­
tos, ora aqjos'". Eis yue esLe Lemajá havia sido explicado: que eles [os
anjos] não são dotados de matéria nem têm um contorno corpóreo
estável além da inteligência, mas todos [apenas são percebidos] por v i ­
são profética e conforme a ação do poder imaginativo, como será men­
cionado na explicação sobre o verdadeiro significado da profecia.140 E
quanto às palavras dos nossos Sábios: •ora m ulheres", justificam-se
porque os profetas também viram os anjos e m visão profética na forma
de m ulheres. em alusão à passage m de Zacarias: "E e is que duas mulhe ­
res saíram e havia vento em suas asas . ( . )''
. (Zacarias 5:9) .
Você já sabia que a percepção está limpa de matéria, completamen­
te isenta de corporeidade, é muito difícil para o ser humano e exige muito

138 Parte 2, capítulos 2 e 6.


139 Talmud. Bereshit Rabá, seção 21.
140 Parte 2 . do capítulo 32 em diante.
190 MAIMÔNIDES

estudo, em particular para uma pessoa que não diferencia o racional do


imaginário; e a maior parte das pessoas apóia-se apenas na imaginação,
pois elas consideram existente ou passível de existência tudo o que ima­
ginam, e aquilo que não cair na rede da imaginação, para elas, é inexis­
tente ou não pode exjstir; então estas pessoas - e a maioria dos pensa­
dores especulativos é assim -jamais alcançam o verdadeiro significa­
do de uma questão ou o esclarecimento de uma dúvida.
E também, com respeito a isso, os Livros dos Profetas contêm ex­
pressões cuja compreensão literal dos seus significados implica a cor­
poreidade dos anjos e seus movimentos: estes apresentam uma forma
humana, recebem ordens de Deus, cumprem a Sua palavra e fazem o
que Ele quer por meio do Seu comando; tudo isso com o objetivo de
dirigir a mente para a existência deles (dos anjos], e para o fato de que
são vivos e perfeitos, conforme explicamos141 em referência a Deus.
Entretanto, caso o indivíduo se limitasse a percebê-los desta maneira,
na imaginação das pessoas comuns a verdadeira essência deles seria se­
melhante à de Deus, posto que também são ditas coisas sobre o Todo­
Poderoso em seu sentido literal: que Ele é um corpo vivo que se movi­
menta e tem forma humana. E para indicar à mente que a categoria da
sua existência [dos anjos] está abaixo da categoria de Deus, foram mes­
cladas às suas formas algo da forma dos animais irracionais, até que se
compreenda que a existência do Criador é mais perfeita do que a deles,
assim como o ser humano é mais perfeito do que o animal irracional. E
não lhes atribuirão a forma de animais de modo algum, a não ser pelas
asas, pois não se concebe o vôo sem asas, como não se concebe a cami­
nhada sem os pés, porque estas potencialidades não podem vir a existir
senão necessariamente por meio destes fatores. E escolheu-se o movi­
mento do vôo para representar que eles possuem vida, pois este é o mais
perfeito entre os movimentos espaciais dos animais irracionais e o mais
glorioso entre eles; e o ser humano o considera absolutamente perfeito,
a ponto de desejar voar para que lhe seja mais fácil escapar do perigo e
se voltar rapidamente para o que lhe é conveniente, mesmo que esteja
distante. Por isso relacionou-se a eles (os anjos) este movimento; e ain­
da porque a ave évisível e depois desaparece, aproxima-se e se afasta em
um breve período de tempo. Assim, estas são características que preci­
sam ser atribuídas aos anjos, como será explicado mais adiante. 142

141 Capítulo 46.


142 Parte 2, capitulo 42.
O CUJA DOS PERPLEXOS 19J

Não atribua de forma alguma esta perfeição imaginada - a saber: o


movimento de vôo - a Deus, sendo este um movimento de animais
irracionais. E não se engane com a expressão: "E montou e m um
querubim e voou" (Salmos 18:10). pois foi o "querubim" quem "voou";
e a intenção desta metáfora é indicar a rapidez do ocorrido, como em:
"Eis que Deus estámontado sobre uma nuvem ligeira e vem ao Egito"
(Isaías 19: 1). ou seja: a rapidez com que a punição recairá sobre eles.
Você tampouco deve se iludir pelo que encontrar, em particular em
Ezequiel, em "rosto de touro, rosto de leão, rosto de águia· (Ezequiel
1: 1O) e "a sola da pata de um bezerro" {Ezequiel 1:7), pois tudo isso
tem um outro significado, como lhe será explicado;
143
além disso, ele
[o profeta Ezequiel) atribui estas características apenas aos "seres celes­
tiais" (chaió�. Estas questões serão esclarecidas com Indicações suficien­
tes para despertar a sua atenção.144
Quanto ao movimento do võo, encontrado freqüentemente na Bí­
blia, este só pode ser imaginado por meio de asas; assim, a eles [os an­
jos] são atribuídas asas para confirmar a sua existência, não a sua verda­
deira essência.
Saiba que se atribui o võo a tudo que se movimenta muito rapida­
mente, pois expressa a velocidade do movimento, conforme foi dito:
"Como voa a águia" {Deuteronõrnio 28:49), pois a águia voa mais rá­
pida e velozmente do que qualquer outra ave, servindo assim de metá­
fora. Entenda bem que as asas são a causa do võo, por isso estas serão
vistas em mesmo número de causas do movimento. Entretanto, não é
este o objetivo deste capitulo.

143 Pa"e 3, capitulo ), "onde o autor afirma que se trata de 'rostos humanos'
semelhantes aos de certos animais. ·Chaidf são os·seres celestes' de Ezequiel,
que. segundo o autor. designam as esferas e não os anjos (ou Inteligências
das esferas). As causas do movimento das esferas. então, são quatro: sua
esfericidade, alma, Inteligência e a lntellgéncia Separada Suprema, ou Deus,
a quem os anjos · ou inteligências separadas - aspiram como ideal · (Munk,
em Maeso).
144 Para os primeiros capítulos da Parte 3.
CAPITULO 50
SOBRE A CONVICÇÃO DA CRENÇA

Você que se interessa por este tratado, saiba que a crença não é um con­
ceito dlto pela boca, mas representado pela alma, quando se acredita
em algo tal como é representado. Caso lhe bastar, com relação aos con­
ceitos verdadeiros ou que você supõe verdadeiros, expressá-los oralmente
sem representá-los [mentalmente) nem acreditar neles- inclusive sem
buscar a verdade neles - isto é muito fácil: assim como encontrará mui­
tos entre os ignorantP..s , que professam crenças que nbsolutamente não
compreendem. Entretanto, se lhe vem ao coração elevar-se para um grau
superior - o grau do pensamento especulativo - e convencer-se de
que Deus é Um, de Unidade verdadeira, até admitir que nada compos­
to se encontre Nele, nem pensar em qualquer possibilidade a respeito
Dele; saiba que a Ele não cabe nenhum atributo de forma alguma e em
absoluto, e assim como Dele se afasta a idéia de corporeidade, também
se apartará da Sua essência a posse de qualquer atributo.
Entretanto, se alguém acredita que Ele é Um e possui muitos atri­
butos, este diz que Ele é Um, mas em seu pensamento acredita que Ele
seja muitos . Esta é a doutrina dos cristãos: "Ele é Um , mas Ele é três , e
os três são um",145 como se dissesse: "Ele é Um, mas possui muitos atri-

145 É sabido, notório e não há dúvida de que o conceito da Trindade e o que


deriva disso constitui a principal diferença entre oJudaísmo e o cristianismo.
194 MAIMÔNIOES

butos, e Ele e Seus atributos são um", mesmo que se aparte dacorporei­
dade e acredite na formaabsolutamente simples . Como se anossa in­
tenção e investigação fosse: " Como diremos?" e não: "Como acredita­
remos?". Não há crença a não ser por meio darepresentação, pois a
crençaestá naconvicção naquilo que é representado, que está forada
mente conforme estao representa. Se estaé aconvicção, ou seja, que o
contrário disso é absolutamente impossível: e não se encontrar namente
espaço paraarejeição destacrençanem se admitir apossibilidade do
seu contrário, então esta é verdadeira.
E quando· você se livrar dos desejos e hábitos , adquirir compreensão
e se capacitar naquilo que eu lhe direi nos próximos capítulos sobre se
apartar dos atributos [a Deus]. você necessariamente irá se convencer
daquilo que falamos e será daqueles que concebem a "Unidade de
Deus" (Ichud Hashém); e não será como quem fala isso pela boca,
mas não concebe asuaidéiae pertence à categoriasobre os quais se
diz: "Tu estás próximo dos seus lábios e longe das suas entranhas"146
(Jeremias 12:2). Contudo , é necessário ser umapessoa da categoria
daqueles que concebem e emendem averdade - aindaque não aex­
pressem -, conforme orientam os virtuosos nestas palavras:"Ponderai
em vossos c orações enquanto estais em vossos Jeitos e suspirai - Seia"
(Salmos 4:5) .

146 No sentido de "coração-, como está explicado no capítulo 39 (NT).


CAPITULO 51 147
SOBRE OS ATRIBUTOS

Na existência, há muitas questões claras e explícitas: entre elas, há con­


ceitos básicos e perceptíveis e há outros, próximos àqueles, que, caso o
ser humano tivesse permanecido em seu estado primitivo, não teria
havido necessidade de demonstração - como a existência do movimen­
to e das capacidades do homem; as manifestações de produção e d e s ­
truição; a natureza das coisas percebidas pelos sentidos , o calor do fogo
e a frteza da agua; e cantas outras coisas semelhantes. Entretanto, quan­
do surgiram idéias estranhas -seja de alguém equivocado, seja de quem
pretendia algo com isso, seguindo estas idéias contrárias à natureza exis­
tente e negando o que é perceptível ou desejando que se passasse a con­
siderar algo inexistente -, os filósofos precisaram estabelecer as coisas
manifestas e anular a realidade daquelas que eram supostas. Como se
sabe, Aristóteles fundamentou o movimento na época em que este h a ­
via sido negado, e demonstrou a nulidade do átomo quando estabele­
ceram a sua existéncia. E desta categoria faz parte anegação dos atribu­
tos aplicados a Deus.
Isso porque o conceito básico é que o atributo não compartilha d a
esséncia do objeto ao qual é atribuído, mas é algo que incide sobre a

147 Do capitulo 51 a 60. o autor discorrerá sobre os atributos e a obr!gatorie•


dade de não aplicá-los a Deus (NT).
196 MAIMÔNIDES

sua essência e, portanto, é um acidente. E se o atributo fosse da mesma


essência do objeto ao qual fora atribuído, seria simplesmence uma re­
dundância, como se fosse declarado: "O homem é o homem". Ou a
explicação de um nome, como se se dissesse: "O homem é um ser ra-
. cional", pois o ser racional é a essência e a realidade do homem, e não
há um terceiro elemento além destes: o "ser" e "racional" definem o
homem, a quem a vida e a razão são atribuídas: pois o sentido deste
atributo é o significado do nome e não outra coisa, como se fosse dito
que a coisa, cujo nome é "homem", é algo composto de vida e razão.
Eis quejá foi explicado que o atributo não escapa de uma, entre duas
noções: ou será a essência do objeto ao qual é atribuído e significará o
seu nome - e nós não descartamos a sua aplicação a Deus, embora de
um outro modo, como será explicado; 148 ou será diferente do objeto ao
qual é atribuído e algo acrescido a este, então será considerado um aci­
dente para aquela essência. Entretanto, excluir a denominação "acidente"
dos atributos do Criador não elimina o seu sentido, pois tudo o que é
acrescido à essência atinge, mas não integra, a sua existência -e este é
o caso do acidente (além do que, caso houvesse muitos atributos, have­
ria muitas coisas anteriores [à Criação)). E não há qualquer unidade a
não ser que se acredite em uma essência simples, sem qualquer compo­
sição nem multiplicidade de elementos, mas Um só: por qualquer lado
que você queira olhar para Ele e por qualquer critério pelo qual queira
examiná-Lo, irá descobri-Lo Um, absolutamente indiVisível, seja por
qualquer motivo; Nele você não encontrará multiplicidade fora da mente
[objetivamente] ou dentro dela [subjetivamente], como lhe será demons­
trado neste tratado. 149
Nosso tratado chega, então, àqueles entre os especuladores 150 que
dizem que os atributos de Deus não são nem a Sua essência nem algo
fora dela. Isto é como alguns afirmam: "As condições (ou como quei­
ram: as condições gerais 151) não existem nem estão ausentes"; e outros
ainda: "A substância simples [átomo) não ocupa espaço, mas provoca

148 Capitulo 52.


149 Parte 2, capítulo 22.
150 Segundo Maeso, "Maimônides nãose refere aqui aos filósofos propriamente
ditos, mas aos teólogos que aplicam a especulação filosófica ao dogma reli­
gioso, concretamente os mutakálemim·, seguidores muçulmanos da dou­
trina do Kalám.
151 Comparar à Pa.rte 3, início do capítulo 18.
O CUIA DOS PERPLEXOS l97

um limite [espacial]"; e também: "De modo geral, o homem não pos­


sui a ação, mas possui a aquisição·. Todas estas coisas são palavras ditas
à toa, pois existem como palavras, não como idéias, e tampouco po­
dem existir fora da mente. No entanto - como você e todo aquele que
não se ilude sabem - estas [teorias) são preservadas pela verborragia,
com exemplos equivocados defendidos por aclamações e pela produ­
ção de calúnias e mentiras de todo tipo, derivadas da dialética(mach/óket
nitsúach)e do sofismo (taaná) . 152 Entretanto, quando alguém se voltar
aos seus enunciados e apoiá-los conforme estes procedimentos, com sua
alma debruçada sobre isso, nada encontrará além de confusão e inca­
pacidade mental, pois se esforçará para provar aquilo que não existe e
criar um melo-termo entre dois opostos que, claramente, não têm meio­
termo; ou existe meio-termo entre o ser e o não-ser? Ou entre as iden­
tidades de duas coisas, em que uma delas é a outra ou o seu oposto, há
meio-termo?
E quanto ao que estamos nos referindo, de fato é necessário nos
protegermos das fantasias e do que comumente se afirma sobre o que
todas as substãncias existentes representariam: que algumas seriam es ­
senciais e que toda a sua essência necessariamente possuiria atributos; e
quejamais se encontraria uma essência de um corpo sem um atributo.
Ao persistirem nesta fantasia, as pessoas imaginaram que Deus também
era composto por elementos divisíveis, quais sejam: Sua essência e as
coisas acrescidas a ela. Algumas pessoas insistiram nesta comparação e
acreditaram que Ele é um corpo que possui atributos; outras se afasta­
ram deste caminho, negaram a corporeidade [de Deus]. mas mantive­
ram os atributos. Tudo isso foi motivado pela perseguição à literalidade
dos livros da Torá, como explicarei nos próximos capítulos sobre este
tema. 153

152 Aqui o sofismo, ao que parece, é utilizado em seu sentido pejorativo, como
uma filosofia vã que se desenvolve como pura prolixidade, sem seriedade
ou solidez - provavelmente referindo-se ao estilo verbomigjoo e pomposo
empregado pelos mutakdlemim em suas obras; contudo, o sofismo caracte­
riuiva•se, dentro da mosofia grega entre os séculos V e IV AEC, por
ensinamentos e doutrinas de diversos mestres da eloqUlncia, denominados
sofistas, que, além de ministrarem a.:las de oratória e cultura geral para os
cidadãos gregos, partlclpavam de acirrados debates filosóficos, religiosos e
políticos da época.
153 Capltulos 53 e 64.
CAPÍTULO 52
AS CINCO ESPÉCIES DE ATRIBUTOS

Todo objeto ao qual necessariamente se aplica um atributo, pelo qual


se diz que é de tal ou qual modo, deve pertencer obrigatoriamente a uma
dentre estas cinco espécies:
PRIMEIRA ESP!lCJE: o objeto é descrito por su a definição. Uma pessoa
é descrita corno ser racional. Esta descrição aponta para a essência e
autenticidade do objeto, ejá explicarnos154 que se trata do significado
do nome e não outra coisa. Com respeito a Deus, esta espécie de atri­
buto está descartada por todos, pois não há, para Ele, causas anteriores
que sejam a causa e que definam a Sua existência; por isso é notório,
nas declarações de todos os pensadores esclarecidos, que Deus não é pas­
sível de definição.
SEGUNDA ESP!lCIE: um objeto é descrito por parte de sua definição.
Urna pessoa é descrita por seu instinto animal ou racionalidade. Isto é
condição necessária, pois quando dizemos "todo homem é racional",
seu sentido é de que há racionalidade em todo aquele que apresenta a
condição humana. Com respeito a Deus, esta espécie de atributo está
descartada, pois se nisto houvesse uma parte da S ua essência, então sig­
nificaria que ela é composta. A falsidade desta espécie de descrição [quan­
to a Deus) equivale à falsidade da que a precede.

154 Capítulo 5 l.
200 MAIMÔNIDES

TERCEIRA ESPÉCIE: um objeto é descrito por algo diferente da sua


autenticidade e essência, de modo que esta (descrição) não é algo que
complemente a sua essência ou a estabeleça. Portanto, esta tem uma
qualidade (de um gênero mais geral) que representa um, entre outros
acidentes. Caso se encontrasse em Deus uma descrição desta espécie,
Ele seria o substrato dos acidentes, entretanto, a idéia de que Ele pos­
suiria uma qualidade a afasta decididamente da sua autenticidade e es­
sência. Surpreende que os que falam de atributos a Deus descartem, em
relação a Ele, a comparação e a qualificação; e sõ podem afirmar, basea­
dos na premissa "Ele não pode ser qualificado", que Ele não possui
qualquer qualidade. Todo atributo que for relacionado necessariamen­
te a uma certa essência, a ela está necessariamente associado: caso apre•
sente uma essência, é idêntico a esta ou uma qualidade desta.
As espécies de qualidade são quatro, como vocêjá sabe. 155 E eu lhe
apresentarei um exemplo de atributo de cada uma destas espécies, para
lhe explicar a impossibilidade de existência de atributos aplicados a Deus:
Primeiro exemplo: descrever um homem por uma entre suas quali­
dades racionais, morais ou disposições que o apresentem como um ser
vivo e dotado de alma, quando se diz, por exemplo, que "fulano é car­
pinteiro", "afastado do pecado (casto]" ou "enfermo". Não importa se
dissermos "o carpinteiro", "o sábio" ou "o médico": todas são disposi­
ções da alma. Tampouco há diferença se você disser: •o afastado do
pecado" ou •o misericordioso", pois toda profissão, ciência e modo de
conduta permanente são disposições da alma. Tudo isto é claro para
quem domina, ao menos um pouco, o manejo da Lógica.
Segundo exemplo: descrever algo por sua potência natural ou pela
ausência desta, como ao afirmar: "o macio e o duro". É indiferente di­
zer "o macio e o duro" ou "o forte e o fraco" - todas são disposições
naturais.
Terceiro exemplo: descrever um homem por sua qualidade afetiva ou
suas emoções, como quando se diz: "Fulano é colérico", "irritável", •co·
varde", "misericordioso" - sem que estas condutas sejam permanen·
tes. Quanto a este tipo de atributo, você poderá descrevê- l o pela visão,
paladar, olfato, calor e frio, secura e umidade.
Quarto exemplo: descrever uma coisa com relação à sua magnitude
quantitativa, como quando se diz: •o comprido e o curto", "o curvo e o
reto", e coisas semelhantes.

155 Conforme o "Livro das Categorias". de Aristóteles.


O CUIA DOS PERPLEXOS 20I

Quando atentar a todos estes atributos e semelhantes, descobrirá que


não podem ser aplicados a Deus: Ele não possui magnitude para que
Lhe seja atribuída uma qualidade, como a representada pela quantida­
de; não é sujeito a afetos para que Lhe atribuam a qualidade de ser
movido por emoções; não tem disposições (físicas) para que Lhe atri­
buam potência ou algo semelhante; não é um ser dotado de alma [ani­
mal) para ter alguma disposição [anímica) ou capacidades como a cle­
mência, a modéstia ou outras semelhantes; tampouco está sujeito àquilo
que afeta um ser dotado de alma, como a saúde e a doença. Eis quejá
lhe expliquei que todo atributo que sevolta à qualidade no sentido mais
genérico não se aplica a Deus.
Portanto, estas três espécies de atributos - que apontam para a es­
sência, parte da essência ou a uma qualidade encontrada na essência -
já ficou claro que não se aplicam a Deus, pois todas elas sugerem com­
posição, e provaremos, por demonstração, 156 a sua impossibilidade de
aplicação a Deus.
QUARTA ESPl!CIE: Entre as descrições, esta descreve um objeto em sua
relação com outra coisa, por exemplo, sua relação com determinado
tempo, espaço ou com outra pessoa: descrever Reuven como pai de
fulano, sócio de beltrano, morador em um certo lugar ou existente em
um determinado tempo. Esta espécie de atributo não implica ne­
cessariamente pluralidade nem mudança na essência do objeto des­
crito; pois este Reuven de quem se faz referência é sócio de Shimón,
pai de Chanoch, senhor de Levi, colega de Iehudá, mora em uma de­
terminada casa e nasceu em um determinado ano;157 e estas formas de
relação nao sao essenciais nem inerentes ãs essências, como as qualida­
des. Em princípio, pode parecer correto aplicar a Deus esta espécie de
atributo, contudo, ao se verificar e esmiuçar o assunto, ficará notória a
sua impossibilidade.
Assim, não há relação entre Deus e o tempo e o espaço, isto está cla­
ro, pois o tempo é um acidente ligado ao movimento Úá que nele per­
cebemos o antes e o depois, e é passível de contagem) e , como está expli-

156 Parte 2, capitulo 1.


157 Na tradução do árabe para o hebraico, lbn Tibon substituiu os nomes ára­
bes usados nos exemplos de Maimõnides por nomes hebraicos, sem que
isso modificasse o sentido. Assim, se mantivermos os nomes árabes neste
trecho, temos: "pois este Zaid de quem se faz referência é sócio de Amru,
pai de Bekr, senhor de Khaiid, colega de [outro] Zaid, mora numa deter­
minada casa e nasceu em um determinado ano" (Nn.
202 MAJMÔNIOES

cado em diversos lugares sobre este tema ,158 o movimento é inerente aos
corpos; porém, Deus é incorpóreo e não há relação entre Ele e o tempo,
tampouco entre Ele e o espaço.
Eis, portanto , o espaço para a investigação e especulação: será que
existe entre Deus e algo de Suas criaturas qualquer relação verdadeira
que Lhe possa ser atribuída? De fato não há correlação entre Ele e algu·
ma de Suas criações - isto fica patente logo de início, pois uma das
propriedades entre dois correlatos é a mesma reciprocidade, e a existência
do Eterno, bendito seja, é necessária, enquanto a existência dos demais
é uma possibilidade , como será explicado; 159 assim sendo , não há cor­
relação . Na verdade, pensa-seque é possível haver alguma relação entre
eles, mas não é, pois é impossível representar uma relação entre a men­
te e a visão - embora , na nossa opinião , ambos estejam compreendi­
dos em uma mesma existência - então, como se pode representar uma
relação entre Ele e os outros, se nada há, absolutamente, em comum
entre eles? Na nossa opinião, atribui-se existência a Ele e às outras coi·
sas por absoluta associação, IW posto que, de fato, a relação sempre se
encontra necessariamente entre duas coisas pertencentes a uma mesma
espécie; entretanto, quando pertencem a uma mesma classe, 161 não há
relação entre elas. Não se afirma: "Este avermelhado é mais forte - ou
mais fraco - do que este esverdeado (ou equivalente) ", apesar de am·
bos pertencerem a uma mesma classe: a cor. Então, quando duas coisas
pertencem a duas classes distintas, não há absolutamente qualquer re­
lação entre elas , nem sequer em princípio, apesar de pertencerem a uma
mesma espécie.Eis um exemplo: não há relação entre uma centena de
cõvados 162 e o calor de uma pimenta, pois o último é da classe da qua­
lidade, enquanto o primeiro é da classe da quantidade; também não há
relação entre a sabedoria e a doçura , ou entre a modéstia e a amargura,
apesar de todos estes pertencerem a uma mesma espécie, mais geral, de
qualidade. E como pode haver relação entre Deus e Suas criaturas, con­
siderando-se a grande diferença quanto ãs suas verdadeiras existências,
em que não há distância maior de sentido do que esta? Se houvesse re-

158 Em es�ial em Aristóte.les. F;sica, livro 4, capítulo 6.


159 Capítulo 57 da parte !; na abertura da Parte 2 e no capitulo 1 da mesma .
160 Por serem homônimos (N1) .
161 Mas de espécies diferentes (N1).
162 Côvado: o mesmo que ·cúbito· ou ·antebraço", equivale a pouco mais de
50 cm (N1).
O CUIA DOS PERPLEXOS 203

lação entre eles, seria necessário que Deus estivesse sujeito a um aciden­
te derivado desta: mesmo que não fosse um acidente à essência de Deus,
ainda seria, certamente, algum acidente. Assim, não há qualquer forma
de se aplicar um atributo a Deus, mesmo que seja por meio de uma
relação, pois, na verdade, este, que é o mais evidente entre os atributos,
é o que mais necessita de cuidado na sua atribuição a Deus, pois não
implica necessariamente pluralidade em referência ao Eterno nem
mudança na Sua essência, decorrente da mudança das coisas a Ele rela­
cionadas.
QUINTA ESPtCIE: entre os atributos necessários, eis que uma coisa é
descrita por suas ações. Por "suas ações• não quero dizer a sua capaci­
dade inerente para um certo ofício - como se lhe dissesse: um "car­
pinteiro" ou "ferreiro" - pois estes pertencem à espécie de qualidade
mencionada [anteriormente): mas por "suas ações" quero dizer a ativi­
dade executada, como se afirmasse: "Reuven, aquele que produziu
artesanalmente esta porta, construiu aquele determinado muro e teceu
aquela roupa". Esta espécie de atributo está apartada da essência à qual
está relacionada, e por isso é evidente que pode ser aplicada a Deus,
depois que você souber que estas diferentes atividades não emanam
necessariamente das diversas coisas presentes na essência do agente,
como será explicado; 163 mas todas as diferentes atividades de Deus
emanam da Sua essência, e não de algo acrescido a esta, como já escla­
recemos. 164
Eis o que fica claro neste capítulo: que Deus é Um em todos os as­
pectos, não há pluralidade Nele e nada acrescido à Sua essência: e os
muitos atributos de significados parciais, encontrados nos livros [da
Blblia] e que nos orientam sobre Deus, trazem o aspecto da pluralidade
de Suas ações, não uma pluralidade em si mesmo, e alguns deles nos
guiam para a Sua perfeição, conforme aquilo que consideramos ser a
perfeição, como explicamos. 165 E. quanto a ser ou não possível que uma
essência simples que não admite pluralidade em si mesma faça diferen­
tes ações, isto será explicado por meio de exemplos.

163 Capitulo 53.


164 Capítulo 46.
165 Capítulos 26 e 47.
CAPITULO 53
OS ARGUMENTOS DAQUELES QUE DEFENDEM A APLICAÇÃO DE
ATRIBUTOS A DEUS, E SUA REFUTAÇÃO

O que induziu as pessoas a acreditarem na existência de atributos para


o Criador é semelhante ao que as levou a crerem na Sua corporeidade,
e isto porque quem nisto acredita não o fez por especulação racional,
mas seguiu a literalidade da Escritura; é o mesmo caso dos atributos.
Quando encontraram, nos Livros dos Profetas e da Torá, atributos apli•
cados a Deus, tomaram isto em seu sentido literal, acreditando que Ele
possuía atributos. E é como se O exaltassem além da corporeidade e não
além das coisas [associadas] a esta, que são os acidentes, ou seja: as dis­
posições anímicas, que são todas qualidades, pois quanto a todo atri­
buto próprio de D eus - para quem acredita nos atributos [aplicados a
Deus] - você descobrirá que vêem no sentido de qualidade; mesmo
que não deixem isto claro, isto se assemelha ao que costumam entender
no que tange a todo ser dotado de alma viva. E sobre tudo isso é dito: .
"Falou a Torá conforme a língua dos seres hum anos". De fato, a inten­
ção é descrever Deus à perfeição, mas não conforme aquela perfeição
dos seres dotados de alma, entre as criaturas; em sua multiplicidade, são
atributos pertencentes às diversas ações de Deus.
Não é pela diversidade de ações que se depreende a diversidade do
que existe no agente. Dar-lhe-ei um exemplo de acordo com o que ocorre
conosco, ou seja: mesmo que não seja dotado de vontade, se este for um,
dele resultarão necessariamente diversas ações, quanto mais não seria
206 MAIMÔNIDES

se agisse por meio da vontade. E o exemplo é o fogo: este derrete alguns


objetos e endurece outros, cozinha, clareia e escurece; e caso uma pes­
soa descreva o fogo como algo que clareia, escurece, queima, cozinha,
endurece e derrete, estará dizendo a verdade, e quem desconhece a na­
tureza do fogo pode pensar que este tem seis capacidades diferentes: uma
que escurece, outra que clareia, uma terceira que cozinha, uma quarta
que queima, uma quinta que derrete e uma sexta que endurece; todas
estas são ações mutuamente opostas e cada uma exclui a outra. Contu­
do, quem conhece a natureza do fogo sabe que há uma qualidade ativa
que atua sobre todas estas ações, e esta é o calor. Se este é o caso de algo
feito pela natureza, quanto mais será por norma no caso do agente [que
atua) pela vontade, e mais ainda em se tratando de Deus - que se ele­
va acima de qualquer descrição! Quando Nele percebemos relações a
coisas diversas - posto que em nós o elemento da sabedoria não está
associado com o de poder, que, por sua vez, nada tem a ver com o da
vontade - como poderemos deduZir disso que haveria em Deus diver­
sos elementos que Lhe são próprios, até que existisse um pelo qual "sai­
ba", outro pelo qual "queira" e outro pelo qual "exercite o poder"? Pois
este é o sentido dos atributos dos quais está se falando. Eis que alguns
explicam assim e apresentam os elementos acrescidos à essência divina,
e alguns não, mas compreendem por meio da fé, embora não expres­
sem isso numa linguagem inteligível, porém afirmam que Deus é po­
deroso em Sua essência, sábio em Sua essência, vivo em Sua essência,
dotado de vontade em Sua essência.
Vou lhe dar um exemplo da capacidade racional existente no homem:
esta é uma só, não múltipla; nela estão compreendidas as ciências e os
ofícios, e, por meio disso, [o homem] costura, trabalha como carpin­
teiro, tece e constrói, adquire a ciência do Cálculo e governa um Esta­
do; estas atividades diversas derivam de uma capacidade simples e não
múltipla; e são muito numerosas, quase infinitas, vale dizer: o número
de ofícios originados da capacidade racional. Assim sendo, não é
inadmissível, com respeito a Deus, que estas diversas atividades venham
de uma essência simples, que não é múltipla nem contém absolutamente
qualquer elemento adicional. Então todo atributo encontrado nos Li­
vros de Deus, bendito seja, é um atributo da Sua atividade, não da Sua
essência; ou guia para a perfeição absoluta e não significa que lá haja
uma essência composta de elementos diversos. E se, por um lado, Suas
qualidades não admitem o termo "composição", por outro lado esta idéia
não está descartada de uma essência dotada de atributos.
Na verdade permanece um espaço de dúvida que os levou a isso e
que lhe explicarei. Aqueles que acreditam nos atributos não o fazem em
O CUIA DOS PERPLEXOS 207

decorrência das várias atividades [de Deus]. mas afirmam que, certa­
mente, uma essência pode realizar diversas atividades, contudo seus
atributos essenciais não derivam das suas atividades, pois é Impossível
que Deus tenha criado a si mesmo.
E quanto a estes atributos, aqueles que os consideraram •essenciais"
estão divididos a respeito de seus números, pois cada um segue deter­
minada passagem dasEscrituras. Mencionar-te-ei aqueles sobre os quais
todos concordam, considerandocomo algo derivado da razão e nãoda
linguagem das palavras de um profeta . Eis que são quatro atributos: viver,
poder, saber e querer. Eles dizem que são quatro coisas diferentes e são
perfeições, sobre as quais seria mentira afirmar que Deus esteja positi­
vamente isento delas e seria Impossível incluí-las em Suas atividades.
Esta é a explicação deles.
Contudo, saiba que a idéia da sabedoria aplicada a Deus equivale à
da vida, pois todo aquele que percebe a si mesmo é, ao mesmo tempo,
vivo e sábio; istoquando se entende por "sabedoria" a autoconsciência.
[Quanto a Deus] o Ser que compreende é, em si mesmo, o Ser percebi­
do,166 sem dúvida - posto que, conforme a nossa opinião, nãoé com­
posta de duas partes: uma que percebe e outra que não percebe, como
uma pessoa, que é constituída de uma alma que percebe e de um corpo
que não compreende. E quando queremos dizer: "sábio", é no sentido
de autoconsciente, sendo sabedoria e vida uma coisa só. Entretanto, eles
não atentam a esta idéia, mas se voltam para as criaturas de Deus .
Assim também é, sem dúvida, com o podere a vontade: não há modo
de cada um deles existir em Deus na Sua essência, de modo que Ele não
tenha poder sobre si nem possa atribuir-se uma vontade - não é pos­
sível alguém imaginar tal coisa; mas estes atributos, na verdade, são
considerados quanto às diversas relações entre Deus e Suas criaturas, ou
seja, que Ele tem poder para criar , vontade para conceder existência
conforme o Seu desejo e entendimento sobre aquilo que trouxe à exis­
tência. Portanto, já lhe expliquei que estes atributos também não se
referem à Sua essência, mas às Suas criaturas .
Sobre isso, nós, a verdadeira comunidade de unitaristas,167 declara­
mos: assim comorejeitamos que exista algo acrescido à essência de Deus,
por meio do qual Ele teria criado os céus, ou algo diferente peloqual
criou os elementos, ou ainda uma terceira coisa pela qual criou as lnte-

166 Isto é explicado mais detalhadamente no capítulo 68.


167 Que professam e acreditam que Deus é Um {NT).
208 MAIMÔNlOES

ligências, tampouco afirmamos que Ele tenha poder por meio de algo
acrescido [à Sua essência]. ou por outra coisa tenha vontade, ou ainda
por meio de uma terceira compreenda Suas criaturas; mas afirmamos
que Ele é uma essência simples, sem absolutamente qualquer elemento
. adicional - esta essência criou e conhece tudo o que criou, não por
qualquer elemento acrescido; e quanto a estes diversos atributos, não
importa se são referentes às Suas atividades ou às diversas relações entre
Ele e os seres _movidos, assim como também já esclarecemos168 quanto
ao verdadeiro sentido da relação, conforme o modo de pensar dos seres
humanos. 169
É nisto que devemos acreditar quanto aos atributos citados nos L i ­
vros dos Profetas ou quanto a alguns destes atributos que apontam para
a perfeição, como uma analogia às perfeições tal como as entendemos,
conforme explicaremos.170

168 Capítulo 52.


169 Ou seja, é equ ivocado atribuir qualidades a Deus do mesmo modo como
estas são atribuidas aos demais seres existentes (NT).
170 Capitulo 59.
CAPITULO 54
OS ATRIBUTOS SÃO APLICADOS ÀS AÇÕES DE DEUS

Saiba que o Senhor dos Sábios, Moshé Rabênu (Moisés , nossoMestre),


que a paz esteja sobre ele, fez dois pedidos e obteve resposta para am­
bos. O primeiropedidofeitoa Deus foi que ofizesse compreender a
essência divina e a sua verdade: e osegundo pedido- que, aliás, foi
feitoantes - foi que ofizesse compreender seus atributos. Deus res­
pondeu a ambas as soUcitações com a promessa de lhe fazer compreen­
der todos os Seus atributos, e estes sãoSuas ações: e fez Moisés com­
preender que nãose pode atingir aessência divina em si mesma, mas,
por meioda especulação, ele poderia alcançar omáximopossível a um
homem. 171 E oque ele (Moisés, que a paz esteja com ele) atingiu, n e ­
nhum homem, antes ou depois dele, pôde alcançar.
Seu pedidode compreensãodos atributos de Deus está na frase:
"Faze-me conhecerTeus caminhos, e saberei (...)" (�xodo33:13).
Observe as coisas maravilhosas que estãosob esta expressão: sua fala
"Faze-me conhecerTeus caminhos, e saberei (...) • aponta para a essên­
cia divina, conhecidapor seus atributos, pois quando[Moisés) soube
os "caminhos•, compreendeu Deus. E suas palavras: •(...) A recompensa
dos que acham graça a Teus olhos (.. ). " (Êxodo 33: 13) indica que aquele

I7I Veja os capítulos 8 e 16.


210 MAIMÔNIDES

que compreende Deus "encontrará graça aos Seus olhos", não quem so­
mentejejua e reza. Todo aquele que O conhece, é desejado e objeto da
Sua presença: 172 e aquele que O ignora é objeto da Sua ira173 e afastado.
Conforme a dimensão de sabedoria e ignorância, serão a vontade e a
ira, a aproximação e o distanciamento. Já saímos da intenção do capí­
tulo, então retornemos ao tema.
Quando [Moisés] pediu para compreender os atributos [de Deus) e
o perdão sobre a nação, que foi perdoada, e em seguida pediu para al­
cançar a essência de Deus, da seguinte forma: "Mostra-me a Tua gló­
ria" (Êxodo 33:18) , foi-lhe atendido o primeiro pedido, qual seja: "Faze­
me conhecer Teus caminhos" (Êxodo 33:18), com a resposta: "Eu farei
passar todo o Meu bem diante de ti" (Êxodo 33: 19); e para a segunda
questão foi lhe respondido: "Não poderás ver o Meu rosto (...)" (Êxodo
33:20). Quanto à expre.ssão: "Todo o Meu bem (...)", esta encerra uma
alusão à apresentação, diante Dele, de todos os seres existentes, dos quais
foi dito: "E viu Deus tudo o que fez e eis que era muito bom" (Gênesis
1:31); por "apresentação diante Dele" quero dizer que compreende suas
naturezas, suas mútuas conexões e o próprio modo de governá-las, tan­
to no geral como no particular; e se refere a este assunto ao dizer: "Em
toda a Minha casa, ele é [o mais] fiel!" {Números 12:7), em outras pa­
lavras: ele compreendeu que toda a realidade do mundo [de Deus] está
genuinamente estabelecida (pois as falsas teorias não se estabelecem).
Portanto, a compreensão de que estas ações são os atributos de Deus e,
por meio delas, Ele é conhecido. A prova de que Ele é compreendido
por Suas ações é que foi dado compreender [a Moisés) tão-somente os
atributos das Suas ações: "Deus piedoso e misericordioso, tardio em irar­
se (...)" (Êxodo 34:6). Assim, está claro que os "caminhos" que [Moisés]
pediu para conhecer e, efetivamente, lhe foi dado conhecer, são as ações
que emanam de Deus. Nossos Sábios as chamam de midót (qualidades
morais) e falam de treze midót. Este termo também é usado quando a
referência é ao ser humano: "Quatro miâótdos que dão tsedacá (cari­
dade) 174 " (Ética dos Pais 5: 13), "quatro midót dos que vão ao Bet
Hamidrásh (Casa de Estudos) " (Ética dos Pais 5:14), são muitos os
exemplos. Não significa que Deus possua midót, mas sim que realiza
ações semelhantes às que derivam das nossas midót, isto é, das nossas
disposições anímicas -não que Ele seja dotado de disposições anímicas.

1 72 Veja o capítulo 18.


173 Veja o capítulo 36.
174 Em um sentido mais amplo, denota um ato dejustiça social {NT).
O CUIA DOS PERPLEXOS 211

De fato, bastou [a Moisés] a menção destas "treze midót', apesar de


já ter compreendido "Todo o Meu bem", a saber: todas as ações divi­
nas, quais sejam, os atos de Deus referentes à norma de existência dos
seres humanos e Seu governo sobre estes. Esta era a intenção última da
sua pergunta, conforme o seu final: "E como há de se saber que acha­
mos graças aos Teus olhos, eu e Teu povo?" (�xodo 33:16), ou seja:
[como saberão] que preciso governá-los nas atiVidades e caminhar com
eles pelo caminho da Tua ação ao governá-los?
Já lhe expliquei que os "caminhos" e as "qualidades morais" são uma
mesma coisa: as ações que emanam de Deus para o universo; e tudo o
que se compreende de uma de Suas ações, aplica-se a Ele o atributo desta
ação emanada Dele e denominada pelo termo a ela aplicado. Eis um
exemplo: posto que se compreende o cuidado da conduta de Deus na
formação de um embrião de um ser vivo, e na inserção de capacidades
nele e no ser que se desenvolve após o seu nascimento, de modo a evitar
a sua morte e destruição, protegendo-o de todo dano e auxiliando-o em
suas funções necessárias, 175 o que deriva desta ação é apreendido entre
nós apenas como um efeito e sentimento benignos, que denominamos
"ato de misericórdia" (rachmanu�. E sobre a misericórdia de Deus,
bendito seja, denominado "O Misericordioso", está escrito: "Como um
pai misericordioso com os filhos" (Salmos 103:13); e: "Poupá-los-ei
como um homem poupa seu filho· (Malaquias 3: 17). Isto não signifi­
ca que Ele seja afetado e experimente o sentimento de misericórdia, mas
como uma atitude de pai para filho, derivada de ternura, benignidade
e afeto pleno, emanados de Deus em favor dos Seus devotos - não em
decorrência de um afeto ou de alguma alteração.176 Assim como quan•
do damos algo a alguém que nada pode exigir de nós, diZ·se em nossa
lingua [hebraica) "chanina" (graça, clemência), conforme as palavras:
"Sejam dementes com eles" Ouízes 21 :22); "Deus, com sua graça"
(Génesis 33:5); "Que Deus me fez graça" (Génesis 33:11), e são mui·
tos os exemplos. Ele traz à existência e governa a quem nada exige Dele,
para lhe conceder existência e governá-lo, e por Isso é chamado de
"Misericordioso". Do mesmo modo, encontramos, nas Suas ações para
com os seres humanos, grandes calamidades que recaem sobre alguns
indivlduos a fim de matá-los, ou um evento geral que extermina farol•

I75 Veja na Parte 2. capítulo 17.


176 "O afeto ou passividade implica uma mudança no suje.lto afetado e, por·
tanto, nenhuma passividade ou qualidade afetiva desta índole pode ser atri­
buída a Deus (Munk). Veja o capítulo 35 e o inlclo do capitulo 55.
212 MAIMÔNIOES

lias ou regiões, destrói o filho e o neto, sem deixar um campo cultivado


ou u m só nascido - como quando ocorrem as inundações de terras,
terremotos, tempestades destruidoras, o movimento de um povo sobre
os demais a fim de aniquilá-los pela espada e apagar suas memórias
[genocídio) - e muitas destas ações só decorrem de um de nós contra
outros por grande ira, imensa inveja ou desejo de redenção de sangue
(vingança). Em virtude destas ações, Deus é denominado" zeloso e vin­
gador, rancoroso e possuidor de ira" (Naum 1:2): ou seja: as nossas ações
derivadas destes sentimentos partem de uma disposição anímica - a
inveja, o desejo de vingança, a retaliação ou a ira - mas de Deus, de
acordo com o merecido pelos punidos, não porque Deus possua algu­
ma forma de afeto [sentimento], pois Ele está acima de qualquer im­
perfeição! Assim, todas as ações de Deus se assemelham àquelas de­
correntes dos seres humanos em virtude dos seus afetos e disposições
animicas, porém , não decorrem de Deus devido a qualquer coisa adi­
cionada à Sua essência.
É necessário que o governante de uma nação, se for um profeta ,m
adapte-se a estes atributos, e que aquelas ações decorram dele com
moderação e conforme a sentença legal; ele não deve seguir os impul­
sos afetivos, nem soltar as rédeas da ira, tampouco reforçar em si os afe­
tos (pois o impulso afetivo é mau). mas proteger-se deles conforme a
capacidade humana. Assim, algumas vezes e para algumas pessoas, será
"clemente e misericordioso" não apenas por conta da clemência e da
misericórdia, mas de acordo com aquilo que é evidente. Outras vezes e
para outras pessoas, será " zeloso e vingador, rancoroso e possuidor de
ira•, conforme o merecimento destas, mas não por motivo de ira; até
que ordene que uma pessoa seja queimada, não por ira, cólera ou des­
prezo por esta, mas conforme aquilo que se lhe mostre justo e conside­
rando o que resultará desta ação para o máximo benefício do povo como
um todo.
Você com certeza verificará, nas escrituras da Torá, que quando foi
ordenada a destruição dos " sete povos", foi dito: "Não deixarás com vida
todo o que tiver alma" (Deuteronômio 20:16), seguido imediatamente
de: "Para que não vos ensinem a fazer segundo todas as abominações

l 77 " Não no sentido específicodo termo -ainda que tenham existidoem Israel,
como Samuel, aqueles que ostentaram ambas as qualificações -mas. sim ,
no sentido genérico de 'representante , porta-voz de Deus'. Veja Eclesiastes
7:27" (Maeso).
O CUIA DOS PERJ'WC05 213

que fizeram a seus deuses, e pequeis contra o Eterno, vosso Deus" (Deu­
teronômio 20: 18),querdizer: não pense que isto seja crueldade ou desejo
de vingança, mas sim uma ação exigida pela razão humana, a fün de
aniquilar todo aquele que se desvia do caminho da verdade e para que
sejam afastados todos os obstáculos que se interpõem à perfeição, que é
perceber Deus.
Contudo, é necessário que os atos de misericórdia, perdão , clemên­
cia e graça, advindos do governante de uma nação, sejam muito mais
freqüentes d o que os de punição, posto que as "treze mid6t (qualidades
morais)" são todas "qualidades de misericórdia", exceto uma, a saber:
"Visita a iniqüidade dos pais nos filhos" (Êxodo 34:7), pois o escrito:
"o culpado não desculpará" (Êxodo 34:7) significa: ·o desarraigado não
arraigará", como na expressão: "E culpada, sobre a terra se assentará"
(Isaías 3:26).
Saiba que a expressão "Visita a iniqüidade dos país nos filhos" se
refere, de fato, ao pecado de avoda zará (idolatria) e não a outro. A evi­
dência disto está nas palavras dos Dez Mandamentos: "Sobre terceiras
e sobre quartas gerações, aos que Me odeiam" (txodo 20:5) - e s o ­
mente o idólatra será denominado "aquele que odela":178 "Porque to­
das as abominações que o Eterno odeia, elas têm feito a seus deuses"
(Deuteronômio 12:31). E, na verdade, bastam para Deus as "quartas
gerações", porque é o extremo daquilo que é possível ao homem ver da
sua descendência: a "quarta geração". E quando forem mortos os cida­
dãos idólatras de uma nação, serão mortos desde o ancião até o seu
bisneto, que é a quarta geração: é como dizer, dentre o conjunto dos
seus mandamentos - que estão incluídos em seus atos, sem dúvida -
que será morta a geração dos idólatras, mesmoque sejam crianças,jun­
tamente com seus pais e avós. E encontramos este mandamento com
freqüência na Torá, como o que foi ordenado para a "cidade banida":
"Então ferirás aos moradores daquela cidade ao fio da espada, destruin­
do-a, e a tudo o que estiver nela" (Deuteronômio 13: 16) - tudo isso
para apagar este registro, que gera um grande prejuízo, conforme já
explicamos.
E nos afastamos novamente do tema do capítulo, mas explicamos
por que aqui bastou, com respeito às ações de Deus , a menção apenas
destas (treze midórj, a saber: porque Ele as considera necessárias para o
governo das nações, posto que a maior elevação do homem é asseme-

178 Capítulo 36.


214 MAIMÔNIOES

lhar-se o máximo possível a Deus, ou seja, que tomemos nossas ações


semelhantes às Dele, conforme (nossos Sábios] explicaram sobre o s e n ­
tido de: " Santos sereis" (Levítico 19:2), dizendo: "Assim como Ele é
clemente, tu deves ser clemente; assim como Ele é misericordioso, tu
deves ser misericordioso".
A intenção geral é afirmar que os atributos aplicados a Deus são
atributos das Suas atiVidades, não que Ele seja dotado de qualquer qua­
lidade.
CAPÍTULO 55
A REJEIÇÃO DE TODO ATRIBUTO QUE POSSA SIGNIFICAR CORPO­
REIDADE, PASSIVIDADE, AUSÍ::NCIA E COMPARI\ÇÃO ENTRE DEUS
E AS CRIATURAS

]á nos foi indicado em diversos lugares deste tratado179 que tudo o


que implica corporeidade, evidentemente deve ser necessariamenteapar­
tado de Deus, assim como todo afeto, poistoda passividade implica mu­
dança, e o agente que provoca estas afeições não é o afetado, sem dúvi­
da; e se Deus pudesse ser afetado de algum modo em decorrência de
passividade, algo estranho a Ele estaria nele atuando e modificando- o .
Também é necessariamente evidente que se aparte d e Deus toda ausên­
cia, tampouco que exista alguma perfeição que seja ausente Dele num
momento e presente em outro; pois, se assim fosse, Ele seria perfeito
em potência, e toda potência estaria conectada necessariamente a uma
ausência, e tudo oque passa da potência para a ação só pode ocorrer se
a ação existente para este processo for retírada de outro. Portanto, éobri­
gatório que todasas perfeições de Deus sejam ativas e nada exista Nele
em estado de potência, de forma alguma. O que também é necessaria­
mente evidente que seja apartado de Deus é qualquer comparação com
as criaturas; isto é algo já sentido por qualquer pessoa, e também está
revelado nos Livros dos Profetas a respeito da rejeição desta compara-

179 Capítulos 1. 9. 18 a 22. 26 a 28. 35, 36. 46 a 48.


216 MAIMÔNIOES

ção: "A quem, pois, me compararei e me equivalerei?" (Isaías 40:25);


"Com quem comparareis a Deus?" (Isaías 40:18); "Ninguém é como
Tu, Eterno!" Oeremias 10:6) - e são muitos os exemplos.
Em resumo, tudo o que leva a uma destas quatro espécies deve ser
necessariamente apartado de Deus por meio de provas claras, e estas são:
tudo o que leva à corporeidade, ou o que leva à passividade e mudança,
ou o que leva à ausência. Portanto, não há Nele algo inativo que depois
retorne à ação, ou algo que leve à comparação com Suas criaturas. Estas
coisas se incluem naquilo que advém das ciências naturais acerca do
conhecimento de Deus, pois todo aquele que desconhece estas ciências
ignora a imperfeição dos afetos, e não compreenderá o que é potencial
e o que é atuante, tampouco a ausência inerente a tudo o que está em
estado de potência; nem quP. aquilo quP." potP.nr.ial f>. infP.rior àquilo quP.
se move para que esta potência passe ao estado de ação, e que este tam•
bém é inferior àquilo que, em seu processo, já se move em estado de
ação. Caso saiba destas coisas, mas desconheça suas provas, ignorará as
particularidades que necessariamente decorrem destas premissas gerais;
por isso não terá prova da existência de Deus nem da necessidade de
Dele separar estas espécies.
Após a apresentação desta proposta, iniciarei outro capítulo no qual
explicarei a falsidade do pensamento dos que crêem nos atributos es•
senciais aplicados a Deus. Na verdade, só compreenderá quem tenha
conhecimento prévio da arte da Lógica e da natureza da existência.
CAPITULO 56
OS ATRIBUTOS DE EXISTÊNCIA. VIDA, PODER. SABEDORIA E VON­
TADE

Saiba que a semelhança é umarelação entre duas coisas; e em quaisquer


duas coisas entre as qua.is não se estabelece uma relação, também não
há como se configurar semelhança entre elas; do mesmo modo, não há
relação entre coisas que carecem de semelhança entre si. Eis um exem­
plo: não se pode dizer que determinado calor se parece com determina­
da cor, ou que este somse assemelha àquela doçura. Isto é auto·eviden·
te . À medida que cessa a relação entre nós e Deus180 - vale dizer: entre
Ele e as demais coisas - necessariamente a semelhança também cessa .
Saiba que quaisquer duas coisas pertencentes à mesma espécie -cujo
caráter é idêntico, mas que se diferenciam pelo tamanho , maior ou
menor, por vigor ou fraqueza, ou algo parecido -são necessariamente
semelhantes, mesmo que pertençam a gêneros diferentes. Eis um exem­
plo: o grão de mostardae aesfera de astros fixos181 são semelhantes r:ias
três dimensões: embora a última sejaextremamente grande e a primei·
ra extremamente pequena , o conceito de existência das dimensões em
ambas é o mesmo. Assim, também, a cera que se funde no sol e a fonte
do fogo são semelhantes em calor; apesar de o calor da primeiraser

180 Capitulo 52 .
181 Veja na Parte 2. capítulo 4. e na Parte 3, capitulo 14 .
218 MAIMÔNIDES

extremamente forte e o da última ser extremamente fraco, a questão


evidente é que esta qualidade [o calor) é a mesma em ambas.
Assim, é claro que aquele que acredita na existência de atributos es­
senciais aplicáveis ao Criador - que Ele existe, vive, pode, sabe e quer
- deve entender que estes não se relacionam a Ele e a nós do mesmo
modo; que a diferença entre estes atributos e os nossos é de magnitude,
perfeição, permanência e estabilidade, de modo que a existência de Deus
é mais estável. Sua vida é mais permanente, Seu poder é maior, Sua sa­
bedoria é mais perfeita e Sua vontade é mais abrangente do que a nossa
existência, vida, poder. sabedoria e vontade; não há uma mesma defi­
nição que se aplique a ambos, como pretendido por eles. Isto é inadmis·
sível, pois a expressão "maior do que" é usada apenas entre duas coisas
sobre as quais se aplica uma mesma definição, e. se assim for, implica
semelhança; e sobre a opinião daqueles que atribuem a Deus atributos
essenciais, assim como se considera necessário que a essência de Deus
não se compara às demais essências, do mesmo modo é evidente que os
atributos essenciais nos quais acreditam não se comparam aos [demais)
atributos, e não podemser reunidos numa mesma definição; porém não
o farão assim, pois consideram que podem reuni-los numa mesma de­
finição, ainda que não exista semelhança entre ambos.
Já está claro, para quem compreende e conceito de semelhança, que,
de fato, quando se fala de Deus e das criaturas, a •existência" se aplica
tão-somente como um termo polivalente. Do mesmo modo, quanto à
sabedoria, poder, vontade e vida de Deus e a todo ser dotado dos mes­
mos atributos, trata-se apenas de polivalência, pois não há termo de
semelhança entre eles de forma alguma. Nem pense que estes atributos
são empregados como termos híbridos, pois os termos dos quais se diz
que são hibridos são aplicados a duas coisas que se assemelham em um
sentido, qual seja, um acidente em ambos, e não faz parte da essência
em qualquer um deles. Estas coisas relacionadas a Deus não são aciden­
tes, de acordo com qualquer filósofo, e os nossos atributos são todos
acidentes. segundo a opinião dos Mutakálemlm. 182 E eu queria saber
onde está a semelhança, para reuni- los numa mesma definição e serem
denominados do mesmo modo, como eles pensam? Esta é uma prova
cabal de que, a respeito dos atributos relacionados a Deus, não há qualquer
relação entre o sentido destes e o daqueles aplicadoo a nós, absolutamente
e de forma alguma; afora a polivalência dos nomes, não há mais nada.

182 Veja no capitulo 73. quarta proposição.


O CUIA DOS PERPLEXOS 2 l9

Assim sendo, pois, não há como você acreditar em coisas acrescidas


à essência [de Deus} por semelhança àqueles atributos que são aplica­
dos sobre nossas essências, pelo fato de compartilharem dos mesmos
nomes. Este assunto é de grande importância entre os que são dele sa­
bedores. Guarde-o e entenda-o bem, para que esteja preparado para
aquilo que quero que compreenda .
CAPITULO 57
A EXISTÊNCIA. UNIDADE E ANTERIORIDADE [ETERNIDADE} NÃO
SÃO ATRIBUTOS DIVINOS
(COM MAIS PROFUNDIDADE DO QUE NOS CAPÍTULOS ANTERIORES)

Sabe-se183 que a existência é um acidente que ocorre sobre um ser exis­


tente, e portanto é um elemento acrescido à sua essência . Isto é algo
evidente e necessário a tudo cuja existência se deve a uma causa, pois a
existência é algo acrescido à sua essência . Entretanto, para aquele que
independe d e causa para existir - e este é Deus e somente Deus, ben­
dito seja (pois é a isso que nos referimos quando dizemos que Sua exis­
tência é necessária) - Sua existência é Sua ve rdadeira essência e Sua es­
sência é Sua existência; não se trata de uma essência decorrente da exis­
tência, tampouco que Sua existência seja algo acrescido à Sua essência,
pois Deus é necessariamente existência eterna, sem se renovar e sem que
qualquer acidente O afete. Portanto, Ele não existe pela existência (assim
como também é vivo - não pela vida; poderoso - não pelo poder: e
sábio - não pela sabedoria; pois tudo se reduz. a uma unidade , sem haver
pluralidade Nele, como explicarei).
Você ainda precisa saber mais: que a unidade e a pluralidade são
acidentes que afetam o ser existente, seja plural ou unitário - o que já

183 Capítulo 73. quarta proposição.


222 MAIMÔNIOES

foi explicado na Metafísica [de Aristóteles] . E assim como a contagem


não pertence à essência das coisas contadas, do mesmo modo a unida­
de não pertence à coisa unitária, pois todos estes casos são acidentes,
classificados na categoria da quantidade divisível, quesobrevêm aos seres
. existentes aptos a receber o que decorre disso. Quanto à Existência
Necessária, esta é verdadeiramente simple s e isenta de qualquer com­
posição; assim como é uma mentira atribuir a Deus o acidente da plu­
ralidade, do mesmo modo é um equívoco Lhe atribuir o acidente da
unidade, porque a unidade não é algo acrescido à Sua essência; Ele é
Um - mas não por meio da unidade.
Estas questões sutis, praticamente inacessíveis à razão, não devem ser
baseadas nos termos usuais, que são a grande causa de erro, e é extre­
mamente difícil encontrarmos uma expressão em qualquer língua, pois
não são adequadas a este assunto, a não ser de modo impreciso. Con­
forme nos esforçamos para demonstrar que Deus não é plural, é impos­
sível dizer algo diferente de "Um", apesar de o '"um" e o "plural" serem
termos que denotam quantidade. Por isso, devemos compreender este
assunto e orientar a razão para a verdade daquilo que afirmamos: Um,
mas não pelo atributo da unidade.
Assim, dizemos Cadm6n (anterior) para indicar que Ele não é passí­
vel de renovação: todavia, quando dizemos "anterior", é no sentido
impreciso, como está claro e visível, pois é considerado "anterior" aquele
que está atrelado ao tempo, que é um acidente do movimento decor­
rente do corpo; 184 e também é da dimensão da adesão, pois dizer "ante­
rior" como acidente do tempo equivale a "comprido e curto", como
acidentes de uma linha; e a todo aquele que não está submetido ao aci·
dente do tempo, não se pode afirmar de fato que seja "anterior" nem
"novo", assim como não se pode dizer, da doçura, que esta é "curva" ou
"reta'' , tampouco que o som é "salgado" ou "insípido".
Estas coisas não estão ocultas para quem está habituado ao entendi·
mento dos assuntos em sua realidade, investigando-os por meio da ra­
zão e interpretando-os, não pela generalidade que lhes é indicada pelos
termos. E tudo aquilo que for encontrado nas Escrituras, em que se
atribui a Deus os te rmos "Primeiro" e "Último",185 equivale a Lhe atri•
buir um olho ou uma ore lha. A intenção desta declaração é reafirmar

184 Capítulo 52.


185 "(..,) Eu sou o Primeiro e Eu sou o Último, e. além de mim, não há Deus"
(]saias 44: 6).
O CUIA DOS PERP\.fXOS 223

que Deus não está sujeito a mudança e nada pode renová-Lo de forma
alguma, tampouco Deus se submete ao tempo, de modo que exista
qualquer analogia entre Ele e Suascriaturas relacionada ao tempo, e possa
ser "Primeiro• e "Último•. Portanto, estes termos todos são usados ·con­
forme a linguagem dos seres humanos·.
Do mesmo modo, quando dizemos "Um" ,186 seu significado é de que
nada se assemelha a Ele, e não que o atributo da unidade se aplique à
Sua essência.

186 "Escuta, Israel! YHVH é nosso Deus, YHVH é Um!" (Deuteronômio 6:4).
CAPITULO 58
A DEus· Só PODEM SER APLICADOS ATRIBUTOS NEGATIVOS
(COM MAIS PROFUNDIDADE DO QUE NOS CAPITULO$ ANTERIORES)

Saiba que a verdadeira descrição de Deus ocorre por meio de atributos


negativos, que dispensam uma linguagem imprecisa e não implicam
qualquer tipo de imperfeição no que se refere a Ele. Na verdade, Sua
descrição por meio de atributos positlvos implica polivalência e imper·
feição, conforme já explicamos.187
É preciso que lhe expliquemos, desde o início, como as negações são,
de certo modo, atributos, e como se diferenciam dos atributos positi­
vos; em seguida, explicar-lhe-ei como só se pode descrever Deus pormeio
de negações e não de outra maneira.
Direi, portanto, que o atributo não pertence exclusivamente ao ser
ao qual é atribuído, de modo que este não se compare, por meio da­
quele, a qualquer outro ser; mas quelhe pertencerá mesmo quando este
ser for comparável a outros e não detiver exclusividade. Por exemplo: se
vir um homem, de longe, então você perguntar: "O que estou vendo?",
e lhe for dito: "Um ser dotado de alma", com certeza este será um atri­
buto aplicado ao ser visto: e mesmo que não o torne diferente de todos
os outros seres, cabe-lhe alguma identificação, qual seja, que o ser visto

187 Capítulos 54 a 57.


226 MAIMÔNIDES

não pertence à espécie vegetal nem mineral. Além disso, caso veja a casa
de um homem, e souber que lá há um corpo, embora não saiba o que é,
então perguntar: "O que há nesta casa?", e lhe responderem: "Não é
mineral nem vegetal", então você já terá alguma identíficação e saberá
que se trata de um ser dotado de alma - mesmo que ignore que ser é
este. Eis que, deste modo, os atributos negativos têm algo em comum
com os positivos: é impossível que não ofereçam alguma identificação,
embora esta não consista da identificação, mas sim da remoção, do
negado, do conjunto daquilo que pensávamos que não deveria ser ne•
gado. Na verdade, aquilo que distingue os atributos negativos dos po­
sitivos é que estes, embora não identifiquem o ser, voltam-se para uma
parte do conjunto do objeto que desejamos conhecer -seja esta uma
parte da sua essência ou um de seus acidentes; e os atributos negativos
não nos informam coisa alguma da essência que desejamos conhecer,
qualquer que seja esta, exceto por acidente, como exemplificamos.
Após esta introdução eu direi, por comprovação, que Deus é uma
existência necessária, e não há composição Nele, como será demons­
trado, 188 pois apenas apreendemos que Ele é, mas não o que é. Assim
sendo, é falso afirmar que Ele tenha um atributo positivo, pois não há
Nele existência externa à Sua realidade, de tal modo que o atributo
possa indicar que haja, que Ele seja composto e indique suas duas
partes, nem que Ele tenha acidentes e que o atributo também possa
indicá-los; portanto, não há absolutamente nenhum atributo positivo
aplicável a Deus.
Na verdade, os atributos negativos são aqueles necessários para orien­
tar a razão para aquilo que devemos acreditar a respeito de Deus; posto
que, da parte destes, não se chega a qualquer pluralidade, e orientam a
razão até o limite do que é possível ao homem apreender sobre Deus.
Eis um exemplo:já nos foi demonstrada a existência necessária de algo
externo àquelas coisas apreendidas pelos sentidos, cuja compreensão é
captada pela razão, e afirmamos que "este existe", no sentido de: sua
inexistência é um equívoco. Em seguida, percebemos que a existência
deste ser não é como a existência dos elementos, por exemplo, cujos
corpos são inanimados, então afirmamos que "Ele vive", cujo sentido
é: Ele não está morto. Depois disso nos convencemos de que a existên•
eia deste ser também não é como a existência doscéus, que são um corpo
vivo, e dizemos então que Ele é incorpóreo. Também percebemos que a

188 Ver Parte 2, capitulo l.


O CUIA DOS PERPLEXOS 227

existência deste ser não é como a eXistência da razão, que é incorpórea


e vivente, mas passível [de uma causa] , e afirmamos que Ele é anterior,
cujo sentido é: não há uma causa para a sua eXistência. Notamos ainda
que este ser existente, cuja eXistência não é outra senão a sua essência, a
Ele basta de fato que seja uma existência em si mesma, e Dele emanam
muitas ex.istências - não como a emanação de calor do fogo nem como
a luz proveniente do sol, mas uma emanação que permanece estável ,
constante e ordenada, mediante um governo estabelecido, conforme
explicaremos. 189 Em decorrência destas coisas, afirmamos que Ele tem
Poder, Sabedoria e Vontade, e a intenção com estes atributos é dizer que
Ele não é fraco, ignorante, desnorteado ou que abandona [Suas criatu•
ras] . A intenção, ao dizermos que: •não é fraco". é que basta a Sua eXis·
tência para conceder existência às coisas diferences Dele; "não é igno­
rante", é que Ele "percebe", ou seja, "vive", pois todo aquele que perce­
be, vive; •não é assustado ou negligente", é que todos aqueles seres exis·
tentes que caminham em uma determinada ordem e governo não são
abandonados ou vivem ao acaso, mas que vivem como tudo aquilo que
é governado segundo o pretendido -comintenção e vontade. Por fün,
compreendemos que não há outro igual a este ser existente e afirma­
mos: "Ele é Um", cujo sentido é a negação da pluralidade.
Eis quejá lhe expliquei que todo atributo aplicado a Deus é um atrl•
buto de ação: e se o seu sentido for o da percepção da sua essência e não
da sua ação, será a negação da sua ausência, se esta for a intenção. E não
faça uso destes atributos negativos nem os aplique a Deus da maneira
que você já conhece: quando, às vezes, nega- se de uma coisa algn 1111e
não há como encontrar nela, como é descrito o muro, por exemplo,
afirmando-se que ele "não vê".
Você, que se interessa por este tratado, sabe que sobre este céu -
que é um corpo em movimento do qualjá conhecemos seus palmos e
cõvados,190 bem como as medidas das suas partes e a maior parte dos
seus movimentos - nossos intelectos estão fatigados de todo esforço
para apreender o seu caráter, ainda que saibamos que é dotado necessa­
riamente de matéria e forma, e cuja matéria não é como a nossa: por­
tanto, não poderemos descrevê-lo a não ser por termos imprecisos e não
por meio de uma afirmação positiva concreta. Assim, diremos que os

189 Parte 2. capítulo 12.


190 Medidas de comprimento que corresponde m , respectivamente. a 22 cm e
66 cm-(NT) .
228 MAIMÔNIOES

céus não são leves, pesados ou passivos, portanto não são sujeitos à ação;
tampouco são dotados de sabor e aroma ou algum atributo negativo
similar - tudo isso devido à nossa ignorância a respeito da sua maté­
ria. E o que dizer de nossos intelectos, quando nos esforçamos por
apreender Aquele que é isento de matéria, o mais simples dentre a sim­
plicidade, de existência necessária, carente de causa e que nada há que
possa ser adicionado à Sua essência perfeita (cujo sentido da Sua perfei­
ção é a ausência de imperfeição, conforme já explicamos)? Pois somen­
te compreendemos que Ele é, que existe Um ser ao qual não se assem e ­
lham quaisquer das criaturas que trouxe à existência, e nada tem em
comum com elas, e não há pluralidade Nele nem fraqueza de conceder
existência ao que Lhe é diferente: e cuja relação com o universo é a do
marinheiro com a embarcação (eis que esta também não é uma relação
ou comparação apropriada, mas tão somente para orientar a razão de
que Deus governa as criaturas no seguinte sentido: Ele as perpetua e as
mantêm em ordem, como é necessárioY. Eis que este tema ainda será
explicado com uma amplitude maior.
Louvado seja Aquele porque, na contemplação da essência divina
pelos intelectos, suas percepções se resumem a uma compreensão e
entendimento limitados; e quando examinam como os atos de Deus
procedem da Sua vontade, a compreensão deles se apresenta como ig­
norãncia; e quando as linguagens se esforçam em engrandecê-Lo por
meio de atributos, toda eloqüência se resume à fraqueza e limitação.
CAPITULO 59
MAIS EXPLICAÇÕES SOBRE OS ATRIBUTOS POSITNOS E NEGATIVOS

É um direito, daquele que questiona, perguntar: posto que não há meio


de se apreender a verdadeira essência de Deus e a demonstração impli­
ca necessariamente quesomente se pode apreender que Ele existe, e que
os atributos positivos são impossíveis, como ficou demonstrado, sobre
o que recai a diferença entre aqueles que apreendem? Será que aquilo
que compreenderam Moshé Rabênu (Moisés, nosso Mestre) e Sheiomô
(o rei Salomao) é o mesmo a ser apreendido por um indivíduo com
algum conhecimento de sabedoria, sendo impossível acrescentar-lhe
algo? Daquilo que é conhecido dos teólogos da Torá e dos füósofos, a
diferença neste assunto é grande. Saiba que é este o caso, e que a dife­
rença entre os que compreendem é enorme, pois assim como todo aquele
a quem se adicionam atributos mais se individualiza e quem atribui se
aproxima da verdadeira apreensão daquele, do mesmo modo todo aquele
que adiciona um atributo negativo em relação a Deus se aproxima da
Sua apreensão e está mais próximo Dele do que aquele que nada nega
- a partir daquilo que jâ lhe foi explicado sobre a demonstração do
que deve ser negado.
Assim, um homem se esforçará durante muitos anos para compreen­
der um determinado conhecimento e verificar seus princípios até s e
convencer da sua verdade, e todo o resultado deste conhecimento será
uma atribuição negativa em referência a Deus - algo que se sabe, por
demonstração: que é impossível de ser aplicado a Ele. Para outro, entre
230 MAIMÔNIDES

os que são limitados para a especulação, isto não ficará claro por meio
de demonstração e o assunto permanecerá duvidoso: aquilo pode ou não
ser encontrado em Deus? Outro ainda, entre os cegos, aplicará isto a
Deus como atributo positivo, embora sua negativa esteja clara. Do
mesmo modo, demonstrarei191 que Deus é incorpóreo: alguém duvi­
dará e não saberá se Ele é corpóreo ou incorpóreo: outro ainda declara­
rá que Ele é corpóreo e se colocará diante Dele com esta crença. Veja
quanta diferença entre estas três pessoas! O primeiro, sem dúvida, está
mais próximo de Deus, o segundo, mais distante e o terceiro, mais dis­
tante ainda. Caso apresentemos um quarto indivíduo e lhe esteja claro,
por demonstração, a impossibfüdade de Deus ser afetado por algo, e
para o primeiro, o que rejeita a corporeidade, isto não está claro, então
o quarto, sem dúvida, está mais próximo de Deus do que o primeiro, e
assim por diante. Quando se encontrar um homem para quem estiver
esclarecido, por demonstração, a impossibilidade de muitas coisas com
relação a Deus que, entre nós, são tidas corno possíveis de se encontrar
Nele ou Dele emanarem - mesmo que acreditemos que sejam neces­
sárias -este homem será mais perfeito do que nós, sem dúvida.
Já lhe expliquei que sempre que lhe for demonstrado um atributo
negativo de Deus, mais você se aperfeiçoará; e sempre que acrescentar a
Deus um atributo positivo, será fantasioso e se afastará do seu entendi­
mento verdadeiro. f por tais meios que se deve aproximar da Sua apreen­
são, através do estudo e da pesquisa, até que seja conhecida a falsidade
de tudo cuja aplicação a Deus é inadmissível: não se aplicará um atri­
buto positivo a Deus como se fosse algo acrescido à Sua essência, ou
que [a aplicação de um atributo a Deus) seja tido como algo perfeito
no que se refere a Deus, pelo fato de o considerarmos perfeito em rela­
ção a nós, pois todas as perfeições são, até certo ponto, capacidades·
adquiridas e nem toda capacidade é encontrada em qualquer ser com
potencial de adquiri-las. Saiba que, se você aplicar algum atributo po­
sitivo a Deus, estará se afastando Dele de dois modos: primeiro, tudo o
que se atribui positivamente somente é perfeição para nós; e segundo,
Ele não é dotado de nada além, pois a Sua essência é a Sua perfeição,
conforme explicamos.192
E conforme é reconhecido por todos, somos incapazes de chegar à
percepção de Deus, exceto por meio de atributo negativo, e este nada

19l Parte 2. capítulo l.


192 Capítulo 52.
O CUIA DOS PERPLEXOS 231

informa acerca da verdade daquilo ao qual se refere; todas as pessoas


declararam - as dos passado e as do presente - que Deus não pode
ser percebido pelo intelecto: além Dele, ninguém apreende o que Ele
é; e a Sua apreensão equivale à nossa absoluta incapacidade de
apreendê-Lo. Todos os filósofos afirmam: "Fomos vencidos pela Sua
graça e nos é oculta a intensidade da Sua manifestação, assim como o
sol é encoberto aos olhosdos fracos para percebê-lo•. Já se escreveu sobre
isto e, portanto, é desnecessário repetir aqui. O que de melhor pode ser
dito a respeito desta questão está expresso nos Salmos: "A Ti é dedicado
todo louvor" {Salmos 65:2), cujo sentido é: o louvor é o seu silêncio.
Esta é a expressão mais eloqüente sobre este assunto, pois tudo o que
dissermos sobre Deus, com a intenção de engrandecê-Lo ou louvá-Lo,
carrega em si mesmo um fardo no que se refere a Ele, e nisto contem­
plaremos uma certa imperfeição. Portanto, o mais digno é o silêncio e
a limitação à percepção racional, conforme ordenaram e afirmaram os
íntegros: •Ponderai em vossos corações enquanto estais em vossos lei­
tos, e suspirai" {Salmos 4:5).
Vocêjá conhece a famosa passagem {quem dera todas as passagens
fossem como esta!) que citarei literalmente {apesar de ser conhecida) ,
para lhe aproximar do seu conteúdo. [Os Sábios] disseram:193 "Uma
certa pessoa, ao fazer suas orações na presença de Rabi Chanlna, cla­
mava: Ó Deus grande, poderoso e temível, magnífico e forte, venerado
e destemido! E o rabino lhe disse: 'Você Já encerrou todos os louvores
ao teu Senhor? Pois bem, se MoshéRaMnu (Moisés, nosso Mestre) não
tivesse enunciado os três primeiros atributos na Torá194 e os homens da
Grande Assembléia (KnéssetHaguedoJÍ'j não os tivessem estabelecido na
terllá (oração), nem sequer poderíamos pronunciá-los, e você profere e
esgota a todos eles? A qual parábola isto se compara? A um rei de carne
e sangue que possuísse milhões de moedas de ouro e fosse louvado por
estas serem de prata - eis que isto lhe seria uma ofensa!". Esta é a ex­
pressão deste homem devoto.
Em princípio, observam-se o seu silêncio e o seu repúdio à multi­
plicidade de atributos positivos e então se constata que estes, se deixa­
dos à nossas próprias mentes, jamais seriam proferidos e deles nada
diríamos. Contudo, à medida que se faz necessário uma expressão aos

193 Talmud, Bemchot.


194 "Porque o Eterno. vosso Deus. é o Deus dos deuses, o Senhor dos senho•
)
res, o Deus grande, poderostH temível ( ... " (Deuteronômio IO: 17).
232 MAIM◊NIDES

seres humanos que se lhes apresente de uma determinada forma, con­


forme o declarado: "Falou a Torá conforme a língua dos seres huma­
nos", para que Deus lhes seja descrito conforme a suas próprias capaci­
dades, nossa posição é que devemos nos limitar a estas [três) expressões
e não pronunciarmos o Seu nome por meio delas, exceto quando as le­
mos na Torá. Entretanto, quando também vieram os homens da Gran­
de Assembléia - que eram profetas -e as mencionaram na ordem da
tefilá, nossa posição é de que devemos proferir somente estas menções.
O mais importante que pode se depreender disto é que há duas razões
pelas quais devemos empregá-las em nossas orações: a primeira, por­
que vieram da Torá, e a segunda. porque os profetas195 as incluíram na
ordem da telilá. Caso não houvesse a primeira, não as recordaríamos, e,
se não houvesse a segunda razão, não as teríamos extraído dos textos
para utilizá-las em nossas orações. E ainda se lhe multiplicam os atri­
butos!
Eis que tambémjá lhe foi explicado sobre estas palavras que nem
tudo o que encontramos a respeito dos atributos relacionados a Deus
nos Livros dos Profetas devemos incluir e proferir em nossas orações,
pois não se afirma somente: "Se MoshéRabênu {Moisés, nosso Mestre)
não nos tivesse dito estas palavras, seríamos incapazes de proferi-las",
mas há outra condição: "E vieram os homensda Grande Assembléia e
as incluíram na tefilá - só então nos foi permitido usá-las em nossas
orações. E não como fazem os verdadeiros ignorantes, que tanto se
empenham nos louvores, ampliam e multiplicam palavras nas orações
por eles compostas e nos discursos que acumulam, acreditando que se
aproximam de Deus por meio destes. Eles aplicam atributos a Deus
que, caso fossem atribuídos a qualquer ser humano, implicariam
uma deficiência deste. Eles não compreendem estas questões tão
amplas e importantes, estranhas à inteligência do homem comum,
e adotam o Eterno Deus como base de suas linguagens; aplicam
atributos e se referem a Deus em tudo o que imaginam ser adequa­
do, empenhando-se em louvá-Lo deste modo, como se pudessem afetá­
Lo com suas crenças. E conforme encontram algo escrito nas palavras
de um profeta sobre isso, sentem-se autorizados a se dirigir às Escritu·
ras (que, de todo modo, precisam serinterpretadas) e se voltam ao seu
sentido literal, inferindo expressões e criando·adendos, sobre os quais
constroem seus textos. Este abuso é freqüenteentre os poetas, oradores

195 Neste caso, "os homens da Grande Assembléiaº (NT).


O CUIA DOS PERPLEXOS 233

e aqueles que pensam que escrevem um cântico, a ponto de comporem


coisas, entre as quais, algumas são uma completa heresia e outras são
da ordem da estupidez e da imaginação deficiente. fazendo com que
uma pessoa que as ouça, ria delas e chore ao pensar como tais coisas
podem ser ditas em referência a Deus! Caso eu não me compadecesse
com a deficiência dos que assim se expressam, citar-lhe-ia alguns deles
para qúe você ficasse ciente dos pecados que há neles, mas estas são
composições cujas debilidades são explícitas para quem é capaz de com­
preender.
É preciso que você observe e afirme: se Jashón hará (más línguas,
calúnia) e hotsaát shdm rá (difamação) são graves desobediências, tanto
mais é abusar da linguagem em referência a Deus e Lhe aplicar atribu­
tos - sobre os quais Ele é tão superior! Não direi que é uma desobe­
diência, mas "um insulto e uma blasfêmia, mediante um equívoco" por
parte da multidão de ouvintes e do ignorante que os declara. De fato,
aquele que percebe a imperfeição destas composições e. não obstante,
as profe.re, na minha opinião está entre aqueles dos quais se diz: "E os
filhos de Israel usaram palavras que não cabiam ao Eterno, seu Deus"
(TI Reis, 17:9); e: "Para falar erroneamente de Deus" (Isaías 32:6). E se
você for daquele que "reverencia a honra do seu Criador", 196 é absolu­
tamente desnecessário que lhes dê ouvidos, muito menos reproduza o
que diZem e, tampouco, comporte-se como eles. Vocêjá conhece a e x ­
tensão do delito daquele que "lança palavras e m direção ao Alto·.197 É
absolutamente desnecessário incluir atributos positivos a Deus, a fim
de engrandecê-Lo em seus pensamentos, ou que se afaste daquilo que
os homens da Grande Assembléia incluíram na ordem das tefilót (ora­
ções} e brachót (bênçãos), pois isto é mais do que suficiente para toda
obrigação, como foi dito por Rabi Chanina. De fato, com relação àquilo
que está nos Livros dos Profetas, será lido ao se mencioná- l o s , e aqui
devemos acreditar no que já foi explanado:198 são atributos aplicados
às suas ações ou que apontam para a negação daquilo que inexiste em
Deus. Esta questão também não deve ser divulgada às pessoas comuns,
pois é uma espécie de reflexão evidente para indivíduos aos quais a gran­
deza do Criador não está em proferir o que é indigno, mas sim em pen­
sar sobre o que é procedente.

196 Ver capítulo 32.


197 Ou seja, "lança calúnia contra o Deus Supremo" (NT}.
198 Capítulos 53 e 58.
234 MA!MôJ\qOES

Voltemos à conclusão da observação sobre as sábias palavras de Rabi


Chanina. Ele não disse: " A qual parábola isto se compara? A um rei de
carne e sangue que possuísse milhões de moedas de ouro e fosse louva­
do por cem moedas" - pois assim esta parábola indicaria que as per-
. feições de Deus seriam mais perfeitas do que as daqueles que as atribuem
a Ele, sendo, portanto, da mesma espécie - o que não é desta forma,
conforme já explicamos. A sabedoria desta parábola está nas seguintes
palavras: "( ...) moedas de ouro e fosse louvado por estas serem de pra­
ta", para indicar que aqueles [atributos) que entre nós são perfeitos em
nada se relacionam a Deus, porém, quando se referem a Ele, são todos
imperfeitos , conforme foi exposto e afirmado nesta parábola: "Eis que
isto Lhe seria uma ofensa" . Já lhe fiz saber que tudo o que você possa
pensar como perfeição da parte destes atributos, quando for da espécie
que cabe a nós, é imperfeição no que se refere a Deus. Salomão já nos
instruiu o suficiente sobre esta questão , e afirmou: "Porque Deus está
no céu e tu estás na terra; portanto, sejam poucas as tuas palavras" {Ecie­
siastes 5:2).
CAPITULO 60
ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE ATRIBUTOS POSITIVOS E NEGA­
TIVOS APLICADOS A DEUS

Quero lhe apresentar alguns exemplos, neste capítulo, que corroborem


o seu conhecimento de que é adequado multiplicar os atributos nega­
tivos relativos a Deus, bem como se afastar da crença nos seus atributos
positivos. Suponha que um homem saiba que existe uma embarcação,
mas nada sabe a respeito da mesma: é uma substánc1a ou um acidente?
Fica claro, para outro homem, que não se trata de um acidente; em
seguida, um outro entende que não é um mineral; outro, que não é
um animal; outro, que não é um vegetal unido à terra; outro, que
não é um corpo de composição natural; outro, que não é dotada de
uma forma plana como tábuas e portas; outro, que não é uma esfe­
ra; outro, que não tem pontas; outro, que não é arredondada nem
dotada de arestas; e outro, ainda, que não é sólida. Portanto, fica
claro, para este último, que praticamente se chegou à forma de uma
embarcação tal como é, por meio daqueles atributos negativos; e é
semelhante a compará- la à forma de quem a descreve como uma
substãncia de madeira oca, longa e composta de muitas peças de
madeira, ou seja, descrita através de atributos positivos. De fato, com
respeito aos indivíduos precedentes que nos serviram de exemplo, cada
um deles está maJs distante do formato da embarcação do que o seguinte,
até que o primeiro indivíduo do nosso exemplo não saiba nada, além
do nome.
236 MAIMÔNJDES

Do mesmo modo, você se aproximará da compreensão e percepção


de Deus por meios de atributos negativos. Seja muito cuidadoso em
adicionar atributos negativos àquilo que deve ser negado por meio de
demonstração e não somente por palavras, porque, por meio daquilo
que lhe for demonstrado sobre a negação de uma coisa considerada
existente em Deus, você se aproximará Dele mais um degrau, sem dú­
vida. É neste sentido que houve homens muito próximos de Deus e
outros decididamente distantes -não que exista um lugar para Deus
do qual uma pessoa se aproxime ou se distancie, como pensariam os
cegos. Preste bem atenção, entenda isso e assim ficará satisfeito. Eis que
já lhe mostrei o caminho: se por ele caminhar, aproximar-se-á de Deus;
siga nele, se quiser.
Na verdade, aplicar atributos positivos a Deus encerra um grande
perigo, pois já foi esclarecido que tudo o que poderíamos considerar
como perfeição (inclusive se esta perfeição Nele eXistisse, na opinião dos
que falam em atributos) não é da mesma espécie que pensamos, mas é
assim chamada apenas por compartilhar do mesmo nome, conforme
explicamos. 199 Eis que se trata necessariamente de uma questão de ne­
gação. Caso você afirme: "Ele conhece uma ciência que não varia nem
é múltipla, por meio da qual são conhecidas muitas coisas que se mo·
dificam e se renovam com freqüência, sem que a ciência se renove; e o
conhecimento de Deus acerca de uma coisa se dá antes, durante e após
a existência desta - é um conhecimento imutável" . então você desco­
briu que Ele conhece de uma maneira diferente da nossa. Portanto,
obrigatoriamente a Sua existência não é como a nossa. Assim, você chega
necessariamente a uma negação e, de fato, não constata um atributo
essencial, mas uma multiplicidade, o que lhe faz concluir que Ele é uma
essência com atributosdesconhecidos. Caso considere que estes atributos
Lhe pertençam, não poderá compará-los aos atributos conhecidos en­
tre nós e, assim, perceberá que não são da _mesma espécie. No entanto,
se você admitir a aplicação dos atributos positivos dos quais falou, é
como se Deus fosse um sujeito portador de alguns atributos; e mesmo
que não fosse um portador como os demais, nem estes atributos fos­
sem como os outros, nossa percepção final sobre esta crença seria, por­
tanto, a associação [de Deus com outras coisas], porque todo sujeito é,
sem dúvida, dotado de atributos e duplo por definição - mesmo que,
na realidade, seja um, pois a noção de sujeito é distinta do atributo que

199 Capítulo 56.


O CUIA DOS PERPLEXOS 237

lhe é aplicado. Eis que lhe apresentarei, em alguns capítulos deste trata­
do, a demonstração acerca da impossibilídade de haver composição em
Deus, e que, em última instância, Ele é a simplicidade plena.
Não afirmo que quem aplica atributos positivos a Deus tem urna
percepção limitada Dele, admite a associação [de Deus com outras
coisas] ou O concebe diferentemente do que Ele é; mas, sim, que esta
pessoa remove a existência de Deus da sua crença sem se dar conta. Eis
a explicação: um indivíduo com a percepção limitada de algo é aquele
que apreende um tanto e ignora outro tanto - corno aquele que, no
que diz respeito ao ser humano, percebe os atributos instintivos e não
os racionais - mas não há pluralidade na verdadeira existência de Deus,
portanto não é possível se compreender algo e ignorar outra coisa sobre
Ele . Do mesmo modo, aquele que associa urna coisa à outra é o mesmo
que representará a realidade de urna entidade tal como é, e atribuirá esta
mesma realidade a outra entidade -e os atributos, na opinião de quem
os considera, não constituem a essência de Deus, mas são elementos
acrescidos à mesma. Pois bem, para quem concebe uma coisa diferen­
temente do que ela é, torna-se necessariamente _impossível perceber algo
dela de maneira correta. Assim, se uma pessoa considera que o paladar
é da ordem da quantidade, eu não posso dizer que ela compreende o
paladar de ma neira diferente do que este é, mas sim que ignora a sua
realidade, não conhece este termo, nem sabe a que se aplica. Este é um
assunto bastante delicado: compreenda-o.
Em decorrência desta explicação,você entenderá que quem tem uma
perr:epção limit�d� de Deus e quem está longe de compreendê-Lo é
aquele para quem a aplicação de atributos negativosa Ele não ficou clara,
o que, para outros, está demonstrado. Portanto, quanto menos atribu•
tos negativos uma pessoa admite, maior é a limitação da sua percep­
ção, conforme explicamos no início deste capítulo. Por outro lado,
aquele que aplica um atributo positivo a Deus nada sabe deste além do
próprio termo que aplica, porque a entidade sobre a qual ele imagina
que o atributo se aplica não existe, pois é algo inventado, falso. É como
se aplicar este termo a algo ausente, que na realidade não existe. Eis um
exemplo: um homem que ouviu o termo "elefante" e sabia que se trata­
va de um animal, pediu para conhecer a sua forma e realidade. Então
um outro - enganado ou enganador -disse -lhe: "Trata-se de um
animal dotado de uma pata e três asas, que vive nas profundezas do mar,
seu corpo é transparente, seu rosto tem a mesma largura, forma e con­
torno do rosto de um ser humano, fala como um ser humano, ora voa
no ar e ora nada corno um peixe•. Não direi que ele descreveu um ele-
238 MAIMÔNIDES

fante diferentemente do que este é , nem que tem uma percepção limi­
tada doelefante, mas sim que esta coisa que ele imaginou por meio destes
atributos é algo inventado, falso; não existe, na realidade, um ser assim,
mas é algo ausente chamado pelo nome de algo existente - como o
grifo,200 o centauro e outros seres imaginários semelhantes, que recebem
um nome de criaturas existentes, seja este um nome simples ou com­
posto. É o mesmo caso nosso, a saber: Deus (louvado seja o seu Nome!)
existe e está demonstrado que Sua existência é necessária, da qual se
depreende obrigatoriamente a Sua absoluta simplicidade, como expli­
carei.201 Contudo, considerar que esta essência simples de existência
necessária, conforme foi dito, seja dotada de atributos e outros elemen­
tos inerentes é algo absolutamente absurdo, como foi provado por de­
monstração. E se afirmarmos que esta essência, chamada Deus. por exem­
plo, é uma entidade à qual são aplicados muitos atributos, então no­
mearemos algo que absolutamente não existe. Assim, reflita: quão peri­
goso é aplicar atributos positivos a Deus!
Portanto, aquilo que é necessário que se acredite a respeito dos atribu­
tos contidos no Livro da Torá ou nos Livros dos Profetas é que to­
dos eles servem para orientar sobre a perfeição divina, e não para
outra coisa, ou para descrever ações procedentes de Deus, conforme ex­
plicamos.202

200 Grifo: em hebraíco, Ozniá Niflaá. Segundo o Dicionário Houaíss da Lín•


gua Portuguesa. trata-se de um animal fabuloso, com cabeça, bico e asas de
águia e corpo de leão (NT).
201 Parte 2, capitulo 1.
202 Capítulo 53
CAPITULO 61
SOBRE OS NOMES DE DEUS

Todos os nomes de Deus encontrados nas Escrituras derivam das Suas


ações - isto não deve ser esquecido - exceto um, e este é: " Yôd Hê
Váv Hé.200 Este nome é aplicado exclusivamente a Deus e por isso é
chamado de Shém Hameforásh,'204 cujo sentido aponta para o significa­
do preciso da essência de Deus, bendito seja, sem polivalência. De fato,
Seus demais nomes gloriosos são polivalentes e derivam das Suas ações,
assun como ocorre conosco, conforme explicamos.:.,, Inclusive o nome
aplicado em substituição ao "Yôd Hê Váv Hé também deriva de
adnút (senhorio, autoridade): "Falou o homem, senhor (adonê) da
terra" (Gênesis 42:30). A diferença entre pronunciar •adonf (meu
senhor), com chir� sob [a letra hebraica) Nun, e •Adonaí, com

203 Maimõnides apresentou as letras hebraicas deste nome de Deus por exten­
so, provavelmente para enfatúar que se trata do assim chamado -Teuagra­
ma lmpronunciãvel". aplicado exclusivamente a Ele. Assim como os atri­
butos discutidos nos capltulos anteriores, todos os demais nomes se apli·
cam às Suas ações e não a Ele (NT).
204 Literalmente: "NomeExplícitoº. Se levarmos em consideraçãoque Meforásh
pode ser ainda MufnJsh. também significa "Nome Consagrado· ou ºNome
Separado· (N11.
205 Capitulo 54.
206 Chirtk. sinal gráfico abaixo da consoante que representa a vogal "!" (NT).
240 MAIMôNIDES

camáts2°1 sob o Nun, é a mesma que entre "sarí' - cujo significado é


hassár shelí (meu príncipe) - e "Sarai" , esposa de Abrão (Gênesis
12:17), que denota uma condição majestática e distinta dos demais.
Também se diz de um anjo: "Adonai (Meu senhor) ... não passes" (Gê­
nesis 18:3).208 Entretanto, eu lhe expliquei sobre utilizar particularmente
o nome Adonai como substituto, por este ser o mais especial dos no­
mes conhecidos de Deus; seus demais nomes - como Daián Ouiz),
Tsadik Ousto), Chanun (Misericordioso), Rach um (Clemente) e Elohím
(Deus) - são todos nomes genéricos e derivados. Contudo, quanto ao
"Nome", cujas letras são "YodHê VávHé, sua etimologia é desconhe­
cida e não se aplica a nada além Dele. Não há dúvida de que este nome
glorioso - que não é pronunciado, como você sabe, a não ser no
Micdásh (Templo Sagrado) e tão somente pelos "sacerdotes santifica­
dos de Deus"209 na Bircát Hacohanim (Bênção Sacerdotal) e pelo Cohên
Hagadol (Sumo Sacerdote) no Iom Hatsóm (Dia do Jejum)21º - apon­
ta para algo que não é compartilhado entre Ele e suas criaturas. É pos­
sivel que indique, conforme a língua [hebraica) - da qual pouco co­
nhecemos hoje em dia211 - e a sua pronúncia, a idéia de existência
necessária. Por fim, a grandiosidade deste nome e o cuidado para não
pronunciá- l o decorrem do fato de este expressar a essência de Deus, de
modo que nenhuma das criaturas compartilha do seu significado, con­
forme afirmaram os nossos Sábios (de abençoada memória) a respeito:
"Meu Nome é exclusivo a Mim".
Assim, todos os demais nomes apontam para atributos - não para
a essência, mas apenas para uma entidade dotada de atributos - pois
são nomes derivados; por isso, induzem a pensar na pluralidade [de
Deus], vale dizer: levam a pensar na existência de atributos e que há uma
essência, com atributos a ela acrescidos. Este é o significado de todo

207 Camàtf. sinal gráfico a baixo da consoante que representa a vogal •a" na
pronúncia sefaradí, atualmente a mais utilizada : também tem o som de "oi­
na pronúncia ashkenazí (NT).
208 Abrão neste momento se volta para um dos três homens que estavam para•
dos diante dele, à porta da sua tenda. Segundo a tradição, eram três anjos
na forma de homens (NT).
209 Os Cohanim, descendentes de Aarão, consagrados a Deus (NT).
21O lom Kipur, o Dia da Expiação (NT).
21 I Provavelmente Maimônides se refere ao hebraico bíblico. Na época, a lín­
gua hebraica era restrita a poucos. Ela renasceu no final do século XIX,
voltando a se tomar uma língua viva e corrente nos dias atuais (NT).
O GUIA DOS PERPLEXOS 241

nome derivado: ele aponta para uma idéia e um ser tácito, ao qual esta
idéia está atrelada. Como foi demonstrado que Deus não é um ser ao
qual se associam idéias, sabemos que esses nomes derivados relacionam­
se à Sua atividade ou apontam diretamente para a Sua perfeição. É por
este motivo que Rabi Chanina se enervava com a expressão "o Grande,
Poderoso e Temível", as duas razões mencionadas anteriormente:212 que
estes levam a pensar em atributos essenciais, ou seja, que seriam perfei­
ções existentes em Deus. À medida que estes nomes, derivados das ações
de Deus, multiplicaram-se, induziram alguns a imaginar que Ele pos­
sui tantos atributos quanto o número de ações derivadas destes. Por isso,
foi prometida aos seres humanos a concreti.zação daquilo que lhes re­
moverá esta dúvida -e foi dito: "Naquele dia YHVH será Um, e o Seu
nome, Um" (Zacarias 14:9), o mesmo que dizer: assim como Ele é Um,
do mesmo modo será chamado, então, por um único nome que apon­
tará somente para a Sua essência, e não será [um nome) derivado. Nos
Pirké RabiEliezer (Capítulos de Rabi Eliezer, capítulo 3) foi dito: "An­
tes de o Universo ter sido criado havia somente Hacadósh Baruch Hu (o
Santíssimo, Bendito Seja) e o Seu nome". Veja como ele deixou claro
que todos aqueles nomes derivados surgiram após o surgimento do
universo; e isto é verdade, pois todos estes nomes surgiram em de­
corrência das Suas ações existentes no universo. De fato, quando você
examinar a Sua essência, separada de toda ação, não haverá Nele
absolutamente nenhum nome derivado, mas apenas um nome em
particular que indica a Sua essência. Não existe entre nós outro
"nome" que não seja derivado, exceto este, qual seja: • Yõd Hé Váv
Hê". que é o Shém Hamt:forásh al.>suluto - e nem pense em algo dife­
rente disso.
E que não alcance o seu pensamento a loucura dos escribas de cmeiót
(amuletos, talismãs}, nem aquilo que possa ouvir deles ou que seja en­
contrado em seus livros excêntricos, sobre os nomes que elaboraram,
os quais a nada levam absolutamente, e que chamam de ··shemóf (no­
mes}; e acreditam que estes necessitam de • kedushá e tahará (santifi­
cação e purificação) e que fazem milagres. Não convém que estas coisas
sejam sequer ouvidas por uma pessc:? integra, quanto mais acreditar
nelas.
Nada pode ser chamado ·de Shém Hameforásh a não ser este Tetra­
grama ("Nome de Quatro Letras") escrito, mas não pronunciado, por

212 Capitulo 59.


242 MAIMÔNIDES

meio de suas letras. E sobre o que está dito em Sifrê,213 "Assim aben­
çoarei aos filhos de Israel" (Números 6:23), seu significado é: "Assim"
nesta língua [hebraico] e "Assim" - por meio do Shém Hameforásh; e
lá está escrito: "No Micdásh (Templo Sagrado) conforme está escrito e
na Nação por seus substitutos"; e no Taimudé dito: "'Assim' - por meio
do Shém Hameforásh. Você pergunta: 'Por meio do Shém Hameforásh
ou por um nome que o substitua?' e o Taimud dirá: 'E porão o Meu
nome' (Números 6:27) - 'O Meu nome, que Me é exclusivo'".
Eis quejá lhe foi explicado que o Shém Hameforásh é este Tetragra·
ma e que somente ele leva à essência de Deus, sem associação a outra
coisa, e sobre o qual nossos Sábios afirmaram: "Que Me é exclusivo".
Apresentar-lhe-ei a razão que induziu as pessoas a acreditarem no con­
teúdo dos "shemót", bem como explicarei o cerne desta questão e reve­
larei os seus segredos, de modo que não lhe reste dúvida, a menos que
você queira se enganar. Veremos isto no próximo capítulo.

213 No Taimud. referente aos livros de Números, na parashá (porção semanal


de leitura da Torá) de Nassó (Números 4:21 a 7:89).
CAPITULO 62
SOBRE OS NOMES DIVINOS COMPOSTOS POR QUATRO. 12 E 42
LETRAS

Recebemos o preceito de Bircát Hacohanim (Bênção Sacerdotal) com


o "Nome de Deus conforme está escrito". ou seja, o Shém Hameforásh.214
Nem todas as pessoas sabiam como era a sua pronúncia, qual movi­
mento deveria ser aplicado a cada uma de suas letras e se algumas
delas deveriam ser acentuadas - se é que alguma recebia acentua­
ção. Contudo, os homens de sab,:Jurla o lransmlttam uns aos ou­
tros - vale dizer: a maneira de pronunciá- l o - e não o ensinavam
a ninguém, exceto ao calmid hagún (discípulo honrado). uma vez por
semana. Suponho que quando nossos Sábios afirmam: "O Tetragrama
é transmitido pelos sábios aos seus filhos e discípulos uma vez por se­
mana" não se trata apenas da sua pronúncia, mas também de estudar o
assunto, apresentando a unicidade deste nome e o segredo divino que
encerra em si.
Além deste, havia entre eles um "Nome de Doze Letras". de santida­
de inferior ao Tetragrama. Tenho comigo que não era um único nome,
mas dois ou três, cujo total de letras era 12, e utilizavam- se deste e m
todo lugar em que lhes ocorria a "leitura" do Tetragrama, assim como

214 Como está explicado no primeiro panlgrafo do capitulo anterior.


244 MAIMÔNIOES

nos utilizamos hoje do "Alef-Dálet".215 Este " Nome de Doze Letras" sem
dúvida também denotava um sentido mais distinto do que o de "Alef­
Dálet". Não era proibido ou impedido a qu alquer dos homens de sabe­
doria , mas ensinado a todo aquele que quisesse estudá-lo. O mesmo não
ocorria com oTetragrama, quejamais era ensinado por quem o conhe­
cia, a não ser "para seu filho e seu discípulo, uma vez por semana". A
respeito dos homens sem princípios que estudavam este ''Nome de Doze
Letras" e assim corrompiam suas crenças (assim como ocorre a todo
aquele que não é íntegro ao descobrir que a coisa não é como imagina­
va no início), é também ocultavam este " nome". ensinando-o somente
aos "modestos entre os sacerdotes", a fim de abençoa r, por meio deste,
as pessoas no Micdásh (Templo Sagrado), posto que também já não se
lembravam mais do Shém Hameforásh no Mikdásh, em decorrência da
corrupção das pessoas, nossos Sábios disseram: "Com a morte de Shimon
Harsadic(Simão , o Justo), seus irmãos de sacerdócio cessaram de a ben­
çoar pelo Nome"; em vez disso, abençoavam por este " Nome de Doze
Letras".E também: "De início, transmitiam o Nome de Doze Letras a
todas as pessoa s; quando se multiplicaram os corrompidos , passara m a
transmiti-lo aos 'modestos entre os sacerdotes'; e estes o inseriram nas
melodias dos seus irmãos de sacerdócio·.E disse Ra bi Tarfon: "Certa
vez subi com meu avô materno ao púlpito; inclinei meu ouvido em
direção ao sacerdote e ouvi que o inseria [o Nome de Doze Letras] nas
melodias de seus irmãos de sacerdócio".
Havia também, entre eles, um "Nome de Quarenta e Duas Letras" .
Qualquer pessoa sensata sabe que é absolutamente impossível que uma
palavra contenha 42 letras; de fato, eram muitas palavra s, cujo total de
letras era 42. Não há dúvida de que estas frases levam necessa riamente
a conceitos que se aproximam da verdadeira concepção da essência de
Deus da maneira que afirmamos.216 Na verdade, estas frases com tantas
letras eram consideradas como "um nome·, porque apontavam para um
único conceito, como se fosse um nome simples: e se multiplicara m as
frases com o intuito de tornar a idéia compreensível, pois épossível que um
conceito seja compreendido através de muitas frases. Preste atenção a isto,
Saiba que o que era ensinado eram estes conceitos, a os quais estas
frases se dirigem, e não apenas a pronúncia das letras que, em si mes-

215 Anotação ·Álef-Dále{ refere-se às duas primeiras letras do nome "Acionai",


em substituição ao· Yód-Hé, as duas primeiras letras do Tetragrama (NT).
216 Capítulo 59.
O CUIA DOS PERPLEXOS 245

mas, não se revestem de qualquer representação. Nem se chamou este


"Nome de Doze Letras", tampouco o "Nome de Quarenta e Duas Le­
tras", de Shém Hameforásh, pois este é o •seu nome exclusivo", confor­
me explicamos. De fato, estes outros dois eram necessariamente ensi­
nados em teologia e a prova de que era assim está nas palavras dos nos­
sos Sábios: •o 'Nome de Quarenta e Duas Letras' é santo e santificado:
não se deve transmiti-lo exceto a quem é modesto, está na metade dos
seus dias, não se encoleriza nem se embriaga; que não se desvia em sua
conduta moral e sua fala com as pessoas é tranqüila; e todo aquele que
o conhece, com ele é cauteloso e o protege com pureza, é amado no alto
e estimado embaixo, respeitado entre as pessoas; o seu estudo perma­
nece consigo e herda os dois mundos - este mundo e o mundo vin­
douro" -isto está escrito no Ta!mud. E quão distante a compreensão
desta passagem está da intenção do seu autor! Isto porque a maioria pensa
que se trata tão somente da pronúncia destas letras e não outra coisa -
não lhes dando significado para que, por meio destas, aqueles concei­
tosgrandiosos sejam alcançados; a estes são necessárias a instrução nes­
tas condutas morais e a ampla preparação já citada, pois está claro que
tudo isso não é outra coisa senão o conhecimento dos assuntos teológi­
cos que abrangem os sítrê Torá (segredos da Torá), conforme explica­
mos.217 Já foi esclarecido nos livros de teologia que este conhecimento
não pode ser esquecido: a percepção do Sêche/ Hapoêl {Intelecto Ativo)
- e este é o sentido da expressão •o seu estudo permanece consigo".
Quando os homens perversos e tolos encontraram estes dizeres,
ampliou-lhes o campo da falácia e, ao agruparem quaisquer letras que
quisessem, declaravam que este é um·shém" (nome) atuante e operante
que seria escrito ou proferido de um modo especial. Após tais falácias
haverem sido escritas, cujas mentiras são do primeiro tolo perverso, estes
livros foram copiados e passados às mãos de (homens) bons, de cora­
ção terno., mas ingênuos e Incapazes de .ouvir e discernir a verdade da
mentira, e os ocultaram; foram encontrados em seus legados e pensou­
se que eram verdadeiros. Em suma: "O ingênuo acreditará em qualquer
coisa" (Provérbios 14:15).
Eis que nos desviamos do nosso honroso tema e sutil argumentação
para uma exposição da refutação de uma insanidade cujo absurdo é
evidente para qualquer iniciante no assunto; contudo, tivemos neces­
sariamente que mencionar os "shem6t", seus significados e aquilo que

217 Capítulos 34 e 35.


246 MAIMÔNIDES

foi divulgado entre as pessoas comuns a respeito deles. Voltarei agora


ao meu tema.
Já expus218 que todos os nomes de Deus são derivados, exceto o Shém
Hameforásh. Faz- se necessário falarmos deste nome, qual seja, "Eheiê
Ashér Eheíê' (Serei o que Serei) (Êxodo 3:14) em um capítulo à parte,
porque faz parte da delicada argumentação em que estamos, a saber: a
negação dos atributos [aplicados a Deus].

218 Capítulo 51.


CAPITULO 63
OUTROS CINCO NOMES DE DEUS: EHEIÊ ASHÉR EHEIÊ, JÁ, SHADÁL
CHASSÍNE TSUR

Iniciaremos com uma proposta. Estas foram as suas palavras [de Moisés],
que a paz esteja sobre ele: "E dirão para mim: 'Qual é o Seu Nome?'. O
que direi a eles?" (Êxodo 3: 13). Como este assunto estava inserido nes­
ta questão para que [Moisés) perguntasse de que maneira deveria
respondê-la? Na verdade, suas palavras: "E eles não me crerão nem
ouvirão a minha voz, pois dirão: Não apareceu a você o Eterno" (Êxodo
4:1) são bem claras, pois é evidente que se peça a qualquer um que rei­
vindica a condição da profecia para que a demonstre. Mais do que isso:
se a questão era como se apresentava - ou seja, que este é apenas um
nome que deve ser pronunciado - não se pode fugir da dúvida se [o
povo de] Israel já conhecia este nome ou jamais o ouvira; caso este já
lhe fosse conhecido, não haveria por que [Moisés] não contá-lo, pois o
seu conhecimento equivaleria ao de Israel e, sejamais o tivessem ouvi­
do, qual a prova de que este é o nome de Deus, mesmo que o conheci­
mento do seu nome fosse comprovado? Além disso, quando Ele, após
ensinar [a Moisés] este nome, falou-lhe: "Vai-te, junta os anciãos de
Israel... E ouvirão a tua voz" (Êxodo 3:16-18), [Moisés] contestou e
afirmou: "Eles não me crerão nem ouvirão a minha voz" (t'.xodo 4:1),
embora Deus houvesse lhe afirmado anteriormente: "E ouvirão a tua
voz". Em seguida, Deus lhe perguntou: "O que é isso em tua mão? E
ele respondeu: Uma vara" (Êxodo 4:2).
248 MAIMÔNIDES

Para que você entenda e se lhe esclareça esta dúvida, preste atenção
no que vou lhe dizer. Você já conhece a profusão de teorias dos sabea­
nos219 naqueles tempos, d e que todos os seres humanos, exceto alguns
indiVíduos, eram•ovdê avodá zará (idólatras), isto é: acreditavam em
fantasmas, em espíritos qu e baixavam e na ação de talismãs. Este era o
discurso de todo aquele que reivindicava autoridade para si naqueles
tempos: que possuía argumentação e demonstração para afirmar que
há um Deus no universo como um todo (tal como ocorrera com
Abrahão) ou que, sobre ele , baixavam espíritos de um astro, de um anjo
ou algo parecido. Contudo, um homem reivindicar para si a condição
de profeta e afirmar que Deus falou com ele e o enviou, isto jamais se
ouviu antes de MoshéRabênu {Moisés, nosso Mestre) . Não se engane a
respeito daquilo que recai sobre os Patriarcas, de que Deus lhes falou e
apareceu diante deles, não considere isto uma profecia a ser transmiti­
da aos seres humanos ou para dirigi-los como se Abrahão, Isaac, Jacob
ou qualquer outro que os antecedera houve sse dito às pessoas: "Deus
me falou: Façam assim ou Não façam" ou "[Deus] me enviou até vocês".
Istojamais aconteceu, mas lhes era dito aquilo o que lhes cabia e não
outra coisa , vale dizer: sobre suas perfeições e retidõ es para aquilo que
fariam bem, assim como sobre aquilo que lhes cabia com relação aos
seus descendentes, nada além disto.Eles orientavam as pessoas por meio
da argumentação e do estudo, conforme nos fica claro pelas palavras:
"E às almas que haviam adquirido em Charán" (Gênesis 12:5).22º
Quando Deus se revelou a Moshé Rabénu e lhe ordenou a falar ao
povo e fazer chegar esta mensagem, [Moisés] respondeu: "Primeiro me
perguntarão se eu lhes provarei que há um Deus no universo e xistente ,

219 Habitantes de Sabá ou Sheba, nome bíblico de uma região do sul daArábia,
que corresponde hoje, em parte, à região do lêmen. Segundo algumas pas­
sagens do-Gênesis e das Primeiras Crônicas, Sheba. tataraneto de Noé. era
o ancestral do Povo de Sabá. Segundo outras passagens. todavia, era des·
cendente de Abrahão. Sheba colonizou a Etiópia há aproximadamente três
mil anos. Naquele tempo, a Rainha de Sabá fez sua famosa visita ao Rei
Salomão. Situada ao longo da rota comercial entre a Índia e a África, Sheba
era conhecida como uma região muito próspera. Foi conquistada pela
Etiópia em 525. Em 572 tomou-se uma província persa e, com o surgi­
mento de Maomé, caiu sob controle islâmico e perdeu a sua identidade.
Veja sobre as teorias dos sabeanos na Parte 3, capítulo 29 (NT).
220 "E tomou Abrão e Sarai. sua mulher, e a Lot, filho de seu irmão, e a todos
os bens que havia ganhado. eàs almas que haviam adquirido em Charán, e
saíram para ir à terrade Canaã; e chegaram à terra de Canaã· {Gênesis 12:5).
O CUIA DOS PERPLEXOS 249

para depois dizer que Ele me enviou". Isso porque as pessoas, exceto
alguns indivíduos, eram incapazes de apreender a existência de Deus e
o máximo que suas inteligências compreendiam não passava da esfera
celeste, com seus poderes e ações, pois ainda não conseguiam se apartar
do sensório nem haviam alcançado a perfeição intele ctual. Então Deus
transmitiu [a Moisés) um conhecimento que poderia serapreendido por
eles e assim demonstrar a Sua existência - e este é "EheiêAshér Eheiê"
(Serei o que Serei) , um nome derivado da raiz verbal • haM" que signi­
fica "existir", pois "haiá' indica o sentido de havaiá (existência, ser) -
e não há diferença entre "ser" e "existir" na língua hebraica. Todo o
mistério reside na repetição da própria palavra que aponta para a exis­
tência na forma de predicado. "Ashéi' (o que) requer a menção de um
predicado a ele atrelado, posto que é um termo incompleto que neces­
í
sita ser composto, como no caso de "iladí' e "ilat , em árabe. O pri­
meiro nome - o sujeito -é denominado "Eheié' e o segundo nome,
o seu predicado, é ·Eheii' , ou seja, Ele mesmo, o que demonstra que o
sujeito é o seu próprio predicado. Assim fica esclarecida a expressão: Ele
existe, mas não pela existência.221 Portanto, sua explicação, e significa­
do, é o seguinte: oSer que é o Ser, ou seja, o Ser deExistência Necessária.
É a isto que, necessariamente, leva esta demonstração: que existe um
ser cuja existência é necessária, quejamais deixou nem deixará de exis­
tir, conforme demonstrarei claramente.zzz
E quando Ele deu a conhecer [a Moisés) asprovas por meio das quais
se estabeleceria a Sua existência entre os seus sábios - porque a isso
segue: "Vai-te.junta osanciãos de Israel" (Êxodo 3: 16) - e lhe garantiu
que eles entenderiam o que Ele lhe transmitira, e aceitariam, conforme
suas palavras: "E ouVirão a tua voz" (Êxodo 3:18), Moisés respondeu
nos seguintes termos: "Suponha que aceitem que há um Deus existente
por meio destas provas inteligíveis: como provarei que este Deus exis­
tente me enviou?" Então lhe foi entregue um sinal.223 Já foi explicado

221 Capítulo 57.


222 Introdução à Parte 2: • Vigésima Proposiçát7. Todo aquele que é de existencia
necessária não pode ter, para esta existência. nenhuma causa, qualquer que
seja. e no capitulo l.
223 Vejamos que sinal foi este:·o que é isso em tua mão? E disse: Uma vara.
E disse: Jogue- a ao chão; e jogou-a ao chão e se converteu em uma cobra,
e fugiu Moisés da sua face. E disse o Eterno a Moisés: Estende a tua mão e
pega a sua cauda. E estendeu a sua mão e pegou nela, e se converteu em
vara na sua palma. Para que creiam que te apareceu o Eterno (...) (Êxodo
4:2- 5 ) (NT).
250 MAI MÔNIDES

que o sentido das palavras "Qual é o seu nome?" (Êxodo 3: 13) é: "Quem
é aquele que você pensa que lhe enviou?" . Portanto, foi perguntado
"Qual é o seu nome?", para engrandecê-Lo e glorificá-Lo em sua fala,
como se dissesse: "A Tua essência e a Tua verdade não podem ser igno­
radas por ninguém se me perguntarema respeito do Teu nome: Do que
se trataquando se dirigem a Elepelo nome?". Na·verdade [Moisés] evitou
que fosse dito a Deus que havia quem ignorasse a Sua existência; então
os apresentou como ignorantes do Seu nome, mas não Daquele cha­
mado por este nome.
Domesmo modo, o nome láé da ordem da eternidade e da existên­
cia.22' Shadáié derivado d e •daí (suficiente): "E o material para a obra
lhes era suficiente (daiám) " (Êxodo 36:7); o ·shin"22" equivale a •ashél'
[contraído], como em •shecvár" (quejá).226 Portanto. seu significado é
··ashér daí (que é suficiente), cuja intenção é: Ele não necessita da exis­
tência daquilo que criou nem da preservação das suas criaturas, pois a
Sua existência lhe basta. Também o nome Chassín (Forte, Imune) deri­
va d e "côach" (força): "Force (chass6n) como os carvalhos" (Amós 2:9).
Do mesmo modo, Tsur (Rocha) é um termo polivalente, como já ex­
pli<:: amos.221
Eis que Já lhe expliquei que todos os nomes são derivados (ou ditos
polivalentes, como Tsure similaFes) e não há "nome" de Deus que não
seja derivado, exceto o Tetragrama - e este é o Shém Hameforásh, que
não denota nenhum atributo, mas apenas a Sua existência e não outra
coisa, Portanto, denota a Existência Absoluta, que é eterna, vale dizer:
de existência· necessária.
Preste atenção naquilo que se alcançou pormeio do que foi exposto.

224 Consta da obra de Maimõnides, conhecida como Mishné Torá, tratado


lessodê Hatorá, capitulo 6.
225 Shin: letra hebraica transliterada como "sh" em Shadái (NT).
226 "Pelo que tenho por mais felizes os quejá (rhecvãry morreram, mais do que
os que ainda vivem· (Eclesiastes 4:2).
227 Capítulo l6.
CAPfTULO 64
SOBRE' OS TERMOS SHÉM ADONAI (NOME DE DEUS) E KEVÓD
ADONAI (GLÓRIA DE DEUS)

Saiba que "ShemAdonaí (o Nome de Deus) às-vezes significa.apenas o


próprio Nome, conforme as.palavras: "Não tomarás o nome de YHVH,
teu D eus·e m vão" (Êxodo 20:7); "E aquele que blasfemar o nome de
YHVH" (Ievítico 24': 16), e [os exemplos] são muito numerosos. O u­
tras vezes significa a Sua.essência e realidade, como em: "E dirão para
mim: Q,...a1 é o Seu Nome?" (Êxodo 3:13) ..Em outras, ainda, s;gnifica
a Sua palavra, de modo que, ao dizermos "O Nome de Deus", é como­
se disséssemos."A .palavra de Deus" ou "a sentença de Deus", conforme
foi afirmado: "Porque Meu nome está nele" (Êxodo 23:21) ,m cujo sen­
tido é "Minha palavra está·nele� ou "Minha sentença está nele•, ou seja,.
"ele é instrumento da Minha vontade e do Meu desejo". Mais adiante
explicarei a polivalência do termo malách.(anjo, mensageiro).229
Do mesmo modo, • Kevód Adonaí (A Glória.de Deus) às vezes sig­
nifica a luz criada que Deus fez pousar em.um determinado lugar, para

228 Vejamos o contexto: "Eis que Eu envio um anjo (malàch) diante de ti. para
guardar-te no caminho e para levar-te ao lugar que aprontei. Guarda-te
diante dele, escuta sua voz e não te rebeles contra ele, pois·não perdoará
vossos delitos, porque Meu nome es<á nele" (Êxodo 23:20-21).
229 Parte 2, capítulos 6 e 34.
252 MAIMÔNIDES

o seu engrandecimento, através de um mílagre: "E pousou a Glória de


Deus (Kevód Adona1) sobre o monte Sinai e cobriu- o a nuvem (...) "
(Êxodo 24:16); "E a Glória de Deus encheu o Tabernáculo" (Êxodo
40:35). Outras vezes significa a sua essência e realidade, conforme as
palavras [de Moisés): "Mostra-me, rogo, a Tua Glória" (Êxodo 33:18),
cuja resposta foi: "Pois não poderá ver-Me o homem e viver" (Êxodo
33:20), indicando que esta "Glória" é a sua essência230 e foi dito "a Tua
Glória" para exaltá-Lo, conforme explicamos a respeito de "E dirão para
mim: Qual é o seu nome?" .231 Em outras ocasiões, ainda, a "Glória"
significa a exaltação de Deus por parte de todas as pessoas, ou melhor,
por tudo o que existe além Dele, para exaltá-Lo, pois a verdadeira glo­
rificação de Deus é a apreensão da Sua grandiosidade - eis que todo
aquele que apreende a Sua grandiosidade e perfeição também O glori­
fica na medida da sua compreensão. Um indivíduo O exalta por meio
de palavras, a fim de expressar o que pôde perceber com a sua mente e
divulgar ao seu semelhante. Aqueles que não têm percepção - como
os seres inanimados -é como se também O glorificassem, indicando,
conforme a sua natureza, o poder e sabedoria daquele que os criou, posto
que isto leva à glorificação daquele que os examina, seja falando em sua
própria língua seja sem falar, se este [ser] é daqueles cuja fala não é evi­
dente. A língua hebraica é muito ampla neste sentido, a ponto de per­
mitir o uso do termo "amirá" (dito, fala) neste caso. Assim, diz- s e d a ­
quílo que não tem a percepção de que Ele é louvado, por meio das se­
guintes palavras: "Todos os meus ossos dirão: Eterno, quem é comoTu!"
(Salmos 35: 1O), ou seja, suas características levam necessariamente a esta
crença e, por meio delas, isto também se torna conhecido. De acordo
com este modo de se expressar, o termo "Glória" afirma-se: "Toda terra
está cheia da Tua Glória" (Isaías 6:3), equivalente às palavras: "E o Teu
louvor preenche a terra" (Habacuque 3:3), pois o louvor é denomina­
do "Glória", conforme foi dito: "Dai Glória_ (Cavóa) ao Eterno, vosso
Deus" (Jeremias 13:16); "E no Seu Templo tudo proclama glória
(cavóa)" (Salmos 29:9), entre muitos outros exemplos. Preste também
atenção à polivalência do termo •glória• e à sua interpretação em cada
lugar conforme o seu contexto, e escapará de grandes dúvidas.

230 Capitulo 54.


231 Capitulo 63.
CAPÍTULO 65
SOBRE O SENTIDO DA PALAVRA ATRIBU1DA A DEUS

Não acredito que você - após ter alcançado este nível e se convencido
de que Ele existe, mas não pela existência; e que é Um, mas não pela
unidade - precise que eu lhe explique o quanto é inadmissível que se
atribua a palavra a Deus, levando em conta, sobretudo, o consenso em
nossa nação232 de que a Torá é criada, ou seja, que a palavra relacionada
a Ele é criada. De fato, se está relacionada a Deus para se tomar a locu­
ção ouvida por Moshé Rabenu (Moisés, nosso Mestre), é porque Ele a
criou e produziu do mesmo modo como criou tudo o que é Sua criação
e obra. Mais adiante lhe farei chegar muitas coisas a respeito da Profe­
cia;233 contudo, minha intenção aqui é lhe mostrar que atribuir a pala­
vra a Deus equivale a Lhe atribuir todas as ações semelhantes às nossas.
Todas as mentes serão instruídas de que existe um conhecimento divi­
no apreendido pelos profetas -os quais diziam que Deus falou com
eles e lhes dirigiu a palavra - até que saibamos que estes assuntos que
nos chegam de Deus não são apenas frutos dos pensamentos e reflexões
(dos profetas]. como explicarei, emborajá tenhamos feito anteriormente
menção a este assunto.234

232 O povojudeu (N'I).


233 Parte 2, capítulos 35 e 36.
234 Capítulo 46.
254 MAIMÔNIDES

Na verdade, o propósito deste capítulo é mostrar que "dibúl' (fala)


e "amirá (dito) são termos polivalentes. [Em princípio] recaem sobre
a emissão da voz, conforme as palavras: "Moisés falava (iedabêr) "
(Êxodo 19:19): •E disse ( vái6mer) o Faraó" (Êxodo 5:5). Também
se referem a um assunto formado na mente sem ser expresso: "E disse/
pensei ( VeamárlJj comigo em meu coração" (Eclesiastes 2: 15); "Efalei/
pensei ( VedibártJ) em meu coração" (idem); "E oteu coração falará/pen­
sará (iedabêif (Provérbios 23:33); "Meu coração disse/pensou (amár)
para Ti" (Salmos 27:8); "E falou/pensou ( Vedibêr) Esaú em seu coração"
(Gênesis 27:41), e são muitos os exemplos. Refere-se ainda à vontade:
•E disse/desejou ( vái6mer) matar David• (II Samuel 2 1 : 16), como se
afirmasse: "Quis matá-lo", quer dizer, pensou em matá-lo; "É em ma·
tar-me que tu dizes/pensas (omêl)T (Êxodo 2: 14), cujo sentido e signi­
ficado é: "Você quer me matar?"; "E disse/desejou toda a congregação
apedrejá -los" (Números 14:10), e disto também há muitos exemplos.
Ambos os termos "dito" e ;,fala", quando relacionados a Deus, são
destes últimos dois tipos, isto é: são uma alcunha da vontade e do dese­
jo ou de.algo que é entendido como procedente de Deus - e é o mes­
mo que se sabe da voz criada ou das vias da profecia sobre as quais ex­
plicarei mais adiante235 - e não que Deus falou por sons e voz, nem
que Ele seja dotado de alma na qual residam estas expressões, tampou­
co que sejam algo acrescido à Sua essência; mas estes termos são atri­
buídos a Deus e a Ele se relacionam do mesmo modo como ocorre a
Sua relação com todas as demais ações.
De fato, além da alcunha da vontade e do desejo, representada pelos
termos "dito" e "fala", estar, como lhe expiiquei, baseada na polivalência
destes termos, estes também se baseiam naquilo que se assemelha a nós,
conforme expusemos anteriormente.236 Uma pessoa não compreende·
rá de imediato como é possível fazer algo que se deseja fazer somente
por intermédio da vontade, pois à primeira vista isto é impossível, a
menos que aquele que deseja fazer alguma coisa o faça por si mesmo ou
ordene que outro faça em seu lugar. Por isso atribuiu-se metaforicamente
a Deus o mandamento para que se fizesse aquilo que Ele desejava que
fosse feito; então foi dito que Ele ordenou que fosse assim. Tudo isto
foi baseado na semelhança com as nossas ações (incluído o fato de estes
termos também estarem dirigidos para o sentido de "querer", como já

235 Parte 2, capítulo 38 a 47 (N1).


236 Capítulo 46.
O GUIA DOS PERPLEXOS 255

explicamos). E tudo o que aparece no Maassê Bereshít (Relato da Cria•


ção) [com as palavras): · Vaiómer" (E disse) 237 signi.fica que Ele quis ou
desejou. Istojá foi mencionado por outros de nossos autores238 e é muito
conhecido. E a prova disto - que estas expressões na verdade denotam
vontades e não expressões [literais] - é que, de fato, as expressões de
ordem só poderiam ser dirigidas a um ser existente capaz de receber esta
ordem, conforme as palavras: "Pela palavra de Deus foram feitos os céus"
(Salmos 33:6); e: "E pelo sopro de Sua boca, tudo que nela existe" (idem) .
Assim como "Sua boca" e o ·sopro de Sua boca" constituem uma me­
táfora, assim também a "Sua fala" e o "Seu dito" são uma metáfora, cujo
sentido é que são derivados da Sua intenção e da Sua vontade. Isto não
foi ignorado por qualquer um dos nossos eminentes Sábios. Não preci­
so esclarecer que • amirá (dito) e"dibúr" (fala). na língua hebraica,
também são sinônimos: "Pois ela ouviu todos os ditos (imri} de Deus
que nos falou (dibêlj" Uosué 24:27). 239

237 Em Gênesls 1. 3. 6, entre outros.


238 Rav Saadia Hagaón.
239 No capitulo anterior, Maimõnldes escreveu: "Aqueles que não têm percep­
çao - como os seres Inanimados - é como se também O glorificassem·.
Assim, como ele citou ena pusagem do livro de Josué, vale a pena lermos
em todo o seu contexto, atestando que. segundo a tradição judaica. até os
seres inanimados são testemunhas da existência de Deus: "E escreveu Josué
estas palavrasno livro da Lei de Deus; e tomou uma grande pedra e a erigiu
ali debaixo do carvalho, que está no Mlcdásh (Santuário) de Deus. E disse
Josué a todo o povo: Eis que esta pedra nos será por testemunha. pois ela
ouviu todos os ditos de Deus que nos f'alou; e estará para vós por testemu­
nha para que não mintais [a respeito] de vosso Deus (Josué 24:26-27).
"E as Tábuas eram obras de Deus e a Escritura era a
Escritura de Deus. gravada sobre as Tábuas."
(Êxodo 32: 16)

CAPITULO 66
SOBRE O SENTIDO DA ESCRITURA ATRIBUÍDA A DEUS

"E as tábuas eram obra de Deus" (Êxodo 32: 16), quer dizer: sua rea­
lidade era natural, não artificial, pois todas as coisas naturais são de­
nom inadas "obra de Deus" [como em]: "Também estes viram a obra
de Deus"(Salmos 107:24). Conforme são citadas todas as coisas na­
turais - como a planta, o animal, os ventos, a chuva e assim por
diante - d i z -se: "Quão imensa é a multiplicidade de Tuas obras,
Eterno!" (Salmos 104:24) e mais destacado do que isto são as pala­
vras: "Os cedros do Líbano por Ele plantados" (Salmos 104:16), pois
com o a realidade destes é natural e não artificial, afirma-se que Deus
os plantou.
Assim também as palavras "Escritura . de Deus" (Êxodo 32:16)e o
modo como ocorre a relação entre esta Escritura e Deus já foram expli­
cados naspalavras: "Escritas com o dedo de Deus· �xodo 31:18), sendo
que a expressão · com o dedo de Deus" equivale ao que foi dito dos céus:
"Obra dos Teus próprios dedos" (Salmos 8:4), sobre o quê foi esclareci­
do que estes (os céus] foram criados pela "fala": "Pela palavra de Deus
os céus foram feitos· (Salmos 33:6). Já lhe expliquei que a Escritura
expressa a realidade das coisas por meio de amirá(dito)e dibúr(fala),
pois esta própria coisa da qual se diz que "foi feita pela fala" também se
diz que é "obra do dedo [de Deus)". Portanto, a expressão "escritas com
o dedo de Deus" equivale à expressão ·escritas pelo desejo de Deus", ou
seja: por Sua vontade e desejo.
258 MAIMÔNIDES

Contudo, Onkelos adotou , neste caso, 240 uma interpretação estra­


nhae afirmou literalmente: "escrir.as com o dedo de Deus", considerando
o termo "dedo" como algo ligado aDeus, e o significado d e " dedo (êtsba)
de Deus" como •monte (har) de Deus· (Êxodo 3: 1) e "vara (mat§) de
.Deus" (Êxodo 4:20), quer dizer , este é um i nstrumento criado que gra­
vou as Tábuas pela vontade de Deus. Eu desconheço o que levou
[Ünkelos] aisso, pois mais apropriado seria: "escritas pelapalavrade
Deus", como napassagem: "Pelapalavrade Deus os céus foram feitos"
(Salmos 33:6). Deve-se ver arealidade daescritadas Tábuas como mais
maravilhosa do que adas estrelas nas esferas [celestes]? Assim como estas
[derivam] daPrimeiraVon tade e não foram feitas por qualquer instru­
mento, o mes mo ocorre com aEscritura: [estaderiva] daPrimeiraVon­
tade e não foi feita por meio de um instrumento. Você já conhece a
palavradaMishná:241 "Dez coisas foram criadas [navésperado Shabárj
à horado crepúsculo• - incluídas , entre elas, "Hactáv Vehamichtáv"
(A escritae aescritura) - o que indicao consenso do povo, de que a
"escrita das Tábuas" equivale ao "Maassê Bereshif (Relato daCriação)
como um todo, conforme explicamos em nosso Comentário à Mishná.

240 No caso da passagem: "escritas com o dedo de Deus" (Exodo 31:18).


241 Pirkê Avot (Ética dos Pais). capítulo 5, Mishná 6.
CAPITULO 67
DESCANSO (SHEVJTÃ} E REPOUSO (MCHÁ)

Assim como o termo •amirá (dito) foi aplicado metaforicamente à


vontade Dele para tudo o que foi criado nos "Seis Dias da Criação" quan­
do foi dito • VaJ6mer" (E disse)•,242 do mesmo modo foi aplicada meta•
fortcamente a palavra •shevitá (descanso) no dia de shabát,243 quando
não houve criação, e foi dito: •E descansou ( Vaíshb6t) no sétimo dia"
(Génesis 2:2), poisa interrupção da fala também é chamada d e •shevitá,
confonne está c:.crito: •Ecessaram ( V..íshbetuj aqueles três homens de
responder aJó" Üó 32:1).
Portanto, também há a interrupção da fala, proveniente da • lesh6n
nichá (expressão de repouso), como nas palavras: "E falaram a Naval
conforme todas aquelas palavras, em nome de David, e descansaram/
cessaram (vaianúchu)" (I Samuel 25:9), cujo sentido, na minha opinião,
ê: calaram-se até que ouvissem a resposta, pois não tinham lembrança
de qualquer fadiga e mesmo que houvessem se cansado, a expressão •e
descansaram" seria muito estranha à narrativa. Na verdade, conta-se que,
nesta conversa, eles foram, em geral, afáveis em suas falas, como você
pode ver, e silenciaram, quer dizer: não adicionaram à conversa outro
assunto ou ação que pudesse provocar a resposta recebida, porque o

242 Em Gênesis 1. 3, 6, entre outros. Veja no capítulo 65.


243 0 sétimo dia, o sábado (Nn.
260 MAIMONIDES

propósito desce relato é narrar arepreensão [de Naval], que definitiva­


mente foi umareprimenda.244
É neste mesmo sentido que também se afirma: • Erepousou ( Vaianách)
no sétimo dia" (Êxodo 20: 11). Contudo, os Sábios e seus pares entre
os comentaristas interpretaram no sentido do repouso como um verbo
transitivo, e disseram: "E fez descansar [ Vaíanách] o Seu mundo no
sétimo dia", vale dizer: neste [dia] não houve Criação.
É possível que este termo [ vaianách) derive de [raiz verbal] pê-iôd
[ianách] ou de [raiz verbal] lámed-hê [hanách]. neste caso, o seu senti­
do será o de que Ele estabeleceu , garantiu ou manteve a existência tal
como esta se encontrava no sétimo dia, ou seja, durante todos os seis
dias foram criadas novidades que não condizem com a atual ordem da
natureza em suarealidade como um todo , e no sétimo diaa existência
foi estabelecidae mantida do modo como é hoje. Nossaexplicação não
é invalidadapelaargumentação de que a formadeste verbo não equiva­
le à conjugação [das raízes verbais] pé-iõd e lámed-hê, pois há exceções
freqüentes às regras de conjugação, especialmente nos verbos irregula­
res; e uma interpretação que removauma fonte que induz ao erro não
deve ser invalidadapor causade determinadas regras gramaticais, uma
vez que sabemos que atualmente ignoramos o nosso idioma [hebraico)
e que as regras gramaticais de qualquer línguase aplicam aos casos g e ­
rai s . Também já descobrimos que esta raiz de um verbal irregular do tipo
"áin-vav" aparece no sentido de colocação e estabelecimento, conforme
apassagem: •Eela será colocada/estabelecida( Vehunícha) ali" (Zacarias
5:11), e também em: "E não permitiu à ave do céu descansar/colocar-se
(Lanúach) sobre eles" (II Samuel 21:10). Naminhaopinião, este é o
mesmo sentido encontrado em: "Que descansareilestabelecer-me-ei
(anúach) para o dia da desgraça" (Habacuque 3:16).
Entretanto, na passagem "Edescansou( Vainafásh) " (Êxodo 31:17)245
é utilizado um verbo derivado de •néfesfi' (alma) . Já explicamos246 a
polivalência do termo "néfesh" e que este e da ordem da intenção e da
vontade; portanto, seu sentido é que se completou aSuavontade, e todos
os Seus desejos tornaram-se realidade.

244 Eis aresposta de Naval: "Quem é David , quem é o filho de Jessé? Muitos
são hoje os servos que fogem ao seu senhor. Então eu tomaria o meu pão ,
a minha água e a carne das minhas reses que degolei para os meus tosquia·
dores e daria a homensque nãosei de onde vêm?" (! Samuel 25: 10-1 1) (Nl).
245 • . . . em seis dias o Eterno fez os céus e a terra, e no sétimo dia folgou e
descansou" (Êxodo 31 : 17).
246 Capítulo 41.
CAPÍTULO 68
DEUS É. A UMA SÓ VEZ. INTELECTO. SER INTELIGENTE E INTELI­
GfVEL

Você já conhece este famoso princípio enunciado pelos filósofos247 a


respeito de Deus, a saber: que Ele é o Intelecto (Séche/J , oSer Inteligen­
te (Maskíl) e o Inteligível (Musal�, e que estas suas três instâncias são
uma só e não uma pluralidade. Já havíamos mencionado em nossagran­
de obra, Mishnê Torá,248 que este é o fundamento da nossa religião,
conforme ""pusemos ali (somente Deus é Um e nada se acrescenta a
Ele, ou seja, nada existe anterior [à Criação], além Dele}. Em decorrên­
cia disso é declarado • CháiAdonai (Vive Deus}" (I Samuel 20:3} e não
•Chêi Adonal (A vida de Deus)", pois a Sua vida não é algo diferente da
Sua essência,249 conforme explicamos a respeito da rejeição dos atribu­
tos (aplicados a Deus].25º
Sem dúvida, todo aquele que não estudou nem se interessou pelas
obras escritas sobre o intelecto não alcançou a essência deste, tampou­
co entendeu ou compreendeu o seu caráter- a não ser como compreen-

247 Aristóteles, Metafisica. Livro 12, capítulos 7 e 9.


248 Hilchoc lessodi HacorA (Tratado sobr� os Fundamentos da Tora), capi­
tulo 2.
249 Maimõnides. Shemond Petal<fm (Oito Capítulos), capítulo 8.
250 Capítulos 53 e 57.
262 MAIMONJDES

deria a questão da brancura e da negrura - e assim encontrará muitas


dificuldades neste assunto. Quando lhe dissermos "que Ele é o Intelec­
to , o Ser Inteligente e o Inteligível'", será como se disséssemos que a
brancura, o embranquecido e o que branqueia são a mesma coisa - e
quantos ignorantes se apressarão a contradizer nossas palavras devido a
este exemplo e a outros semelhantes, e quantos daqueles que se consi­
deram sábios encontrarão dificuldade nisto e imaginarão que o conhe·
cimento desta verdade necessária é uma idéia demasiado árida, embora
isto tenha sido explicado e demonstrado pelos teólogos. 251 Agora expli•
car-lhe-ei o que estes demonstraram.
Saiba252 que, antes de pensar algo, o ser humano é potencialmente
inteligente; e quando imagina uma coisa - por exemplo: ao pensar na
formo desta árvore que lhe foi apresentada - abstrai sua forma desde "
sua matéria e reproduz a forma abstrata, que é a capacidade do intelec ­
to. então ele se toma ativamente inteligente. A Intelecção que adquiriu
de modo ativo é a forma da árvore abstraída por seu intelecto, pois este
não é distinto da coisa inteligível. Eis que lhe expliquei então que a coisa
intellgível é a fonna abstrata da árvore, que é idêntica ao intelecto atuan­
te; o intelecto e a forma abstrata da árvore não são duas coisas, pois o
intelecto atuante nada mais é do que o inteligível. Aquilo por meio do
qual a forma da árvore foi pensada e abstraída -que é o ser inteligente
- é o intelecto atuante, sem dúvida, pois todo intelecto é sua própria
ação: o intelecto atuante não é uma coisa e sua ação outra, porque a
realidade e o caráter do intelecto se constitui na apreensão. Não pense
que o intelecto atuante seja algo que exista por si só, separado da apree n ­
são, e que esta seja algo diferente daquele, pois esta é o corpo e realidade
do intelecto. Se você supõe que o intelecto existe em ato , então este é a
apreensão daquilo que é inteligível. Isto está muito claro para quem está
habituado aos exemplos desta disciplina especulativa.
Eis que já lhe foi explicado que a realidade e a essência do Intelecto
é sua ação, portanto sua apreensão. Assim sendo, o intelecto -por meio
do qual foi abstraída e apreendida a forma desta árvore - é o ser inte·
ligente, pois é o próprio intelecto que abstraíu e apreendeu a forma; esta
é a sua ação, pela qual se afirma que ele é Inteligente. Sua ação é sua
essência e nada recai sobre o intelecto atuante, exceto a forma desta

251 Outra possibilidade de tradução para •Ham-nm Haelohiim". llteralmen•


te·os filósofos deassuntos divinos·. pode ser·osntósofos metaflsicos (N1).
252 Veja em Ar1stóteles. De Anima, Livro 3.
O CUIA DOS PERPLEXOS 263

árvore. Já foi explicado que, quando o intelecto encontra-se em ação,


este é a própria coisa inteligível. Também ficou claro que a essência de
todo intelecto é serinteligente. Portanto, quando setrata de pensamento
atuante, o intelecto, o ser inteligente e o inteligível são sempre, absolu­
tamente, a mesma coisa.
Quanto à potência, entretanto, há necessariamente dois fatores: o
intelecto e a coisa inteligível, ambos em estado potencial. É como di·
zer: este intelecto passivo existente em Reuvên está em estado poten­
cial, assim como esta árvore é potencialmente inteUgível. Mas quando
o primeiro se toma atuante e a forma da árvore é ativamente apreendi·
da, esta se coma o próprio intelecto; e através deste, que é o intelecto
atuante, esta forma é abStraída e apreendida, pois tudo o que origina
uma ação existe em ato.
O intelecto e a coisa inteligível, ambosem estado potencial, são duas
coisas [diferentes]. Entretanto, tudo o que é potência exige algo que o
sustente - como uma pessoa, por exemplo - e aqui temos três fato­
res: apessoa que possui esta potência, isto é, o ser potencialmente inte­
ligente; a potencia, ou seja, o intelecto em estado potencial; e a coisa a
serpensada, isto é, o inteligível em estado potencial. É como foi expli·
cado naquele exemplo: a pessoa, o intelecto passivo e a forma da árvore
são três coisas diferentes. Entretanto, quando o intelecto toma- se atuan­
te, passam a ser uma coisa só. Vocêjamais encontrará o intelecto como
uma coisa e o inteligível como outra, exceto quando estiverem separa­
dos em estado de potência.
Uma vez demonstrado que Deus, bendito seja, i Intelecto Atuante
e não há potência Nele, de forma alguma, conforme foi explicado e do
modo como será comprovado, e que não ocorre de uma vez apreender
e outra não, mas que Ele é sempre Intelecto Atuante, conclui- s e neces­
sariamente que Ele e a coisa apreendida são a mesma coisa, ou seja, sua
essência; e a ação da própria apreensão, denominada "ser inteligente", é
o corpo do intelecto, que [também) é a sua essência. Portanto, Ele é
sempre o Ser Inteligente (Maskíl}, o Intelecto (Séche/J e o Inteligível
(Muscál}.
Eis que foi esclarecido que a condição de o intelecto, o ser intellgen·
te e o inteligível serem numericamente "um" não se aplica apenas ao
Criador, mas a qualquer intelecto. Portanto, também em nós o ser I n ­
teligente, o intelecto e o inteligível são uma coisa só, desde que o nosso
intelecto esteja atuante, dado que nós passamos da potência ao ato a
cada instante. Assim é também com a Inteligência Separada, vale dizer,
o Intelecto Ativo: às vewencontrará obstáculos à sua ação, mesmo que
264 MAIMÔNIDES

não seja uma limitação inerente, mas externa - um movimento que


afete este intelecto por ac.idente. Não é nossa intenção explicar isso agora,
mas sim demonstrar que aquilo que é próprio e exclusivo de Deus é que
Ele é sempre Intelecto Atuante e nada é obstáculo à Sua apreensão, seja
interno ou externo. Portanto, é evidente que Ele é sempre Ser Inteligente,
Intelecto e lnteligjvel, e Sua essência é o Ser InteUgente, o Inteligível e
o Intelecto , como se faz necessário para todo intelecto atuante.
Voltamos a este assunto muitas vezes neste capítulo porque as teo­
rias das pessoas estão muito distantes do seu entend.imento. Não vejo
você como alguém que possa tomar um conceito intelectual por fanta­
sioso ou um exemplo concreto por disposição imaginativa, uma vez que
este Tratado é composto somente para quem se formou em Filosofia e
conhece o quejá foi P.xplicado acerca da alma e de todas as suas poten­
cialidades.253

253 "Ainda que brevemente, o autor apresenta aqui uma advertência bastante
oportuna ao recordar que esta obrahavia sido escrita para aqueles que adqui·
riram uma sólida formação filosófica , particularmente no campo da Psico­
logia, requi;ito que deverá ser levado em conta por todo aquele que desejar
aproveitar a sua leitura . Resta dizer que o leitor deve ainda possuir uma
cultura ainda maior no campo da tradição bíblica judaica" {Maeso).
CAPITULO 69
DEUS COMO PRIMEIRA CAUSA. FORMA E FINALIDADE

Os filósofos, como você sabe, chamam Deus de "A Primeira Causa"254


(Hailá Harishoni) ou "A Primeira Razão" (Hassíbá Harishoni). Os c o ­
nhecidos por Mutakálemim são inteiramente contra este termo e deno­
minam Deus de "Agente" (Hapoê�. Eles afirmam: "Se dissermos que
Deus é Causa, necessariamente se encontrará o efeito, o que leva à eter­
nidade do universo e à coexistência necessária entre ambos; se disser­
mos que Ele ê A9,:nti:, não se depreende necessariamente que o resulta­
do da Sua ação coexista com Ele. Uma vez que o Agente antecede a Sua
.
ação, não se pode descrevê-lo como tal a menos que seja anterior à
mesma .
Esta é a posição de quem não diferencia entre o que está em estado
potencial daquilo que é atuante e você sabe que, neste caso, não há di-

254 "A denominação Primeira Causa de que o autor fala aqu;, multo familiar
aos filósofos ,rabes e escolésticos, esU intimamente ligada ao sistema de
Aristóteles, que aponta para o Primeiro Motor, ou seja , Deus, como o liml•
te máximo ao qual nossa Inteligência necessariamente alcança ao remontar
a série dos seres e causas. Esta Primeira Causa é, segundo o Estaglrlta (Aris­
tóteles). uma conclição necessária da Ciência, que seria impossível se as
causasse estendessemaoinfinito, pois o ilimitado escapa à Ciência· (Munk).
Veja Aristóteles, Física. livro 8. capitulo 5: Metallslca, livro 2. capitulo 2 e
livro 12. do capitulo 7 em diante.
266 MAIMÔNIDES

ferença entre dizer Causa ou Agente. Isto porque, se você também to·
mar a Causa em estado potencial, esta será anterior ao seu efeito no
tempo; quando em ação, seu efeito necessariamente coexiste com ela .
Caso você tome o Agente em ação , este coexistirá necessariamente com
o resultado da Sua ação: o construtor, antes de construir a casa, não é
um construtor de fato, mas potencial (assim como a matéria desta casa
antes de ser construída é uma casa em potencial}; ao construir, ele en•
tão se torna um construtor de fato e necessariamente a coisa construída
passa a existir. Assim, nada ganhamos em preferir o termo "Agente" a
"Causa" ou "Razão". Na verdade, o propósito aqui é estabelecer a equi­
valência entre os dois termos: assim como chamamos Deus de Agente
- ainda que o resultado da Sua ação inexista , pois não há obstáculos
ou barreiras que O impeçam de fazer o que desejar - também é evi·
dente que, neste mesmo caso, podemos chamá-Lo de Causa ou Razão,
ainda que não exista efeito .
A razão pela qual os filósofos chamaram Deus de Causa ou Razão,
em vez de Agente, não é devido à sua conhecida teoria da eternidade do
universo, mas por outros motivos que eu agora lhe descreverei breve­
mente. Já foi explicado, pelas ciências naturais 255
, que podem ser en·
contradas quatro causas para tudo o que resulta de uma causa, e estas
são: a matéria, a forma, o agente e a finalidade , que podem ser pró·
ximas ou distantes.256 Cada uma destas quatro será chamada de ra­
zão ou causa. Dentre as suas opiniões, uma com a qual concordo é
que Deus é o Agente, a Forma e a Finalidade. Por isso, eles [os filó­
sofos] afirmaram que Deus é Causa (ou Razão), a fim de integrar
estas três causas , a saber: que Deus é o Agente, a Forma e a Finali­
dade do universo. Minha intenção neste capítulo é lhe esclarecer como
se pode afumar isso a respeito de Deus. Não se incomode agora se Ele
originou o universo ou se este procede necessariamente Dele, segundo
as teorias dos filósofos, uma vez que muito será dito ainda a respeito
deste assunto.257
Contudo, minha intenção aqui é estabelecer que Deus é, ao mesmo
tempo, Agente de cada uma das atividades existentes n o mundo e do
próprio universo como um todo. Assim, afirmo quejá foi explicado pelas

255 Aristóteles, Física, livro 2 capítulo 7.


256 Última Ana/flita, livro 1. capítulo 13; Metafísica, livro 8, capítulo 4: veja
também Mi/ót Hahigaíón (Conceitos de Lógica}, seção 9.
257 Parte 2, capitulo 1 . entre outros.
O CUIA DOS PERPLEXOS 267

ciências naturais258 que também é preciso requerer uma causa para cada
um daqueles quatro tipos de causas, de modo que, para cada coisa,
encontram-se imediatamente quatro causas diretas para as quais tam­
bém haverá outras causas e, para estas, outras - até se chegar às pri­
meiras causas. Em outras palavras: há uma coisa movida por um deter­
minado agente. para o qual há outro agente, e assim por diante, até se
chegar ao Primeiro Motor, que é o verdadeiro Agente de todas as coisas
intermediárias. Assim, se a letra [hebraica] áleffor movida pela letra bêt,
o bêt, pela letra guímef, o guímel, pela letra dáler, e o dálet, pela letra hê
- dado que não se pode seguir até o infinito, ficamos no hê, a título de
exemplo - não há dúvidasde quealetra héé o motor do álef, bêt, guímel
e dálet . Logo, diremos com certeza que o movimento do álefé produ­
zido pelo hê. É neste sentido que toda ação existente está relacionada à
Divindade, ainda que a sua movimentação seja efeito da ação de uma
das causas diretas, como explicaremos. Portanto, Deus, como Agente,
é a causa mais distante.
Ao investigarmos todas as formas naturais sujeitas à geração e à
corrupção, descobrimos também ser impossível queuma forma não seja
precedida por outra que prepare uma dada matéria para recebê-la; e esta
segunda forma também é precedida por outra, até que alcancemos a
forma original. necessária para a existência daquelas formas interme­
diárias quesão as causas daquela mais próxima de nós. Esta forma ori­
ginal para toda a existência é Deus, bendito seja. Nem pense que, ao
afirmarmos que Deus é a forma original de todo o universo. estejamos
nos referindo à "forma final", mencionada por Aristóteles em sua obra
denominada Metafisica, como não sujeita à geração e à corrupção, pois
esta forma é natural e não uma Inteligência Separada. Afinal, não dize­
mos que Deus é a forma original do universo, imaginando que Ele seja
uma forma dotada de matéria ou a forma destinada para aquela m a ­
téria, como se fosse para um corpo. Não estamos falando neste sen­
tido! Contudo, assim como todo ser existente dotado de forma é,
de fato, definido pela mesma e, quando esta é perdida, também a
sua existência perece e desaparece, assim também é a própria relas
ção entre Deus e todos os princípios mais remotos da existência, pois
é pela existência do Criador que tudo existe e Ele estende a Sua per­
manência por meio daquilo que estabelece como Emanação ou In­
fluência(Shéfa), conforme demonstrarei em alguns capítulos deste

258 Física, livro 7, capítulo 2: livro 8, capítulo 5.


268 MAIMONJDES

Tratado.259 Se fosse possível que o Criador não existisse, toda a rea­


lidade seria inexistente, devido à anulação do caráter das causas origi­
nais e seus efeitos finais, bem como as causas e efeitos intermediários.
Por isso, a forma está para uma substância dotada de forma - que a
faz ser o que é e por meio da qual mantém sua existência e caráter -
assim como Deus está para o mundo. Neste sentido, afirma-se que Ele
é a "Forma Original" e a "Forma das formas", ou seja: em última ins­
tância, a existência de toda forma no mundo e a sua permanência de­
pendem de Deus, assim como as coisas dotadas de forma se mantêm
por meio desta. Em virtude disso, quando dizemos em nossa língua
[hebraico] " Chêi haolám (A Vida do universo)" (Daniel 12:7), seu sig­
60
nificado é de que Deus é a vida do universo, conforme será explicado.2
O mesmo se diz a respeito de toda finalidade: pois para uma coisa
que tem um propósito, a partir deste você deve buscar outro propósito.
É como se você dissesse, por exemplo, a respeito de um trono, cuja
matéria é a madeira, sua forma é quadrangular e sua finalidade é ser
possível sentar-se sobre ele. Cabe-lhe então perguntar: "Qual é a finali­
dade de sentar-se sobre o trono?" Então alguém lhe responde: "Permi­
tir a quem porele se eleva colocar- s e acima do solo". Você pergunta mais
uma vez: "E qual é a finalidade de se elevar acima do solo?". E a respos­
ta será: "Crescer aos olhos de quem o vê". Mais uma vez você pergunta:
"E qual é a finalidade de crescer diante de quem o vê?". Eis a resposta:
"A fün de que o respeitem e o temam". Você pergunta novamente: "E
qual é a finalidade de ser temido?". E receberá por resposta: "Para que
suas ordens sejam mais respeitadas". Você questiona: "Qual é o propó­
sito do maior respeito às suas ordens?". E a resposta será: "Impedir que
as pessoas firam umas às outras". Você replica novamente: "Qual é a
finalidade de impedir que se firam mutuamente?". Então lhe será res­
pondido: "Fazer com que suas vidas permaneçam em ordem". Portan­
to, será sempre necessário que uma finalidade leve a outra até que se
alcance a vontade singular de Deus -de acordo com uma das opiniões,
como será explicado, m de modo que a resposta definitiva seja: "Esta
foi a vontade de Deus" - ou pelo decreto da Sua sabedoria -segun­
do a opinião de outros, conforme será exposto, 262 de modo que a res-

259 Parte 2. capítulos 3 a 13.


260 Capítulo 72.
261 Parte 3. capitulo 17. 3ª opinião.
262 Idem, 4ª opinião.
O CUIA DOS PERPLEXOS 269

posta definitiva seja: "Este foi o decreto da Sua sabedoria". Portanto,


segundo estas duasabordagens, toda série de finalidades chegará à von­
tade e à sabedoria de Deus - sobre as quais foi explicado, de acordo
com a nossa opinião, que elas são a Sua essência, pois a Sua vontade e
desejo ou a Sua sabedoria não são externas à Sua essência, como se Lhe
fossem estranhas. Portanto, Deus é o propósito final de todas as coisas.
Por sua vez, a finalidade de tudo é assemelhar-se à perfeição de Deus
conforme a sua possibilidade - esta é a expressão da Sua vontade, que
é Sua essência, conforme explicaremos.263 Por isso dizemos que Deus é
o Propósito dos propósitos.
Portanto, expliquei-lhe de que modo se afirma que Deus é Agente,
Forma e Finalidade e por que eles [os füósofos] O chamaram de Causa
e não apenas de Agente.
Saiba que, sobre alguns teóricos dentre aqueles Mutakálemim, recaiu
tal ignorância e audácia a ponto de declararem que, se fosse possível Deus
não existir. isto não levaria necessariamente à inexistência daquilo que
foi trazido à existência pelo Criador - vale dizer: ouniverso - porque
um produto não perece necessariamente quando o agente que o pro­
duziu deixa de existir. O que eles afirmavam seria verdade no caso de
Deus ser apenas o Agente e se o seu produto não necessitasse Dele para
continuar existindo - assim como um cofre não desapareceria com a
morte do seu marceneiro, pois não era ele quem mantinha a existência
daquele. Entretanto, dado que Deus, além de ser a Forma do universo,
conforme explicamos, também é a Causa da sua continuidade e per­
manência, é um equivoco afirmar que, se desaparecesse a causa. o seu
produto continuaria a existir, porque este não pode perdurar e perma­
necer a não ser por meio Daquele do qual recebe condições para tal.
Perceba a enormidade do erro que estas palavras os levaram: de que
Deus é apenas Agente, mas não finalidade nem forma.

263 Parte 3, capítulo 13.


CAPÍTULO 70
MONTAR (RACHÁl1. DEUS COMO O PRIMEIRO MOTOR. AS ESFERAS
CELESTES.

Rachávé um termo polivalente, cujo primeiro significado é o costume


de o indivíduo montar um animal: "E ele estava montado (rokê0 na sua
jumenta" {Números 22:22). Posteriormente foi utilizado como metá­
fora para denotar o domínio sobre algo, porque aquele que monta,
governa e domina sua montaria , conforme estas palavras: •Fê-lo mon­
u,r (lsrkivéhu) sobre os (lugares] altu, <la Lemi"(Deuteronômio 32: 13);
•EEu te farei montar ( Vehirkavcichi) sobre os [lugares! altos da terra"
{Isaías 58:14), cujo sentido é: •Vocês governarão sobre as alturas da
terra"; "Montarei (Arkf0 em Efraim" (Oséias 10:11), ou seja, "Eu os
governarei e dominarei". Neste mesmo sentido, afirma-se a respeito de
Deus • que monta (rochê0 nos céus em teu auxílio" (Deuteronômio
33:26), cuja interpretação é: "que governa os céus": e também: "Aquele
que monta (Larochê0 em Aravót" (Salmos 68:5), cujo sentido é: que
governa sobre Aravót, a esfera [celeste! superior que a tudo circunda.264
Segundo as palavras dos nossos Sábios (de abençoada memória), que
se multiplicam em todos os lugares, há "sete céus (rekifm)• e Aravót é o
céu superior que a tudo circunda. Não discorde deles pelo fato de enu­
merarem apenas sete ·céus· - mesmo que estes sejam mais - pois às

264 Capitulo 72: Parte 2, capitulo 4. entre outros.


272 MAIMÔNIDES

vezes são contados como um globo que contém muitas esferas, como
está claro aos estudiosos do assunto e conforme explicarei.265 Entretan­
to, meu propósito aqui é mostrar que elessempre entenderam que Aravót
está acima de tudo e é dela que se fala em: "[Aquele] que monta nos céus
em teu auxílio" (Deuteronômio 33:26).
Lemo� em um texto de Chaguigá [no TalmudBabilônico]: "Aravór,
sobre o qual reside o Alto e Sublime", pois está dito: Aquele que monta
em Aravót (Salmos 68:5); Como sabemos que {Aravórj são os céus?
Porque está escrito 'que monta em Aravól, bem como 'que monta nos
céus' (Deuteronômio 33:26) ' '. Portanto, fica claro que a alusão é sem­
pre à esfera circundante, sobre a qual você ouvirá o que há para saber.
Preste atenção às suas palavras [dos Sábios]: "sobre o qual reside" e não
"no qual reside". pois dizer este último seria como declarar que Deus
necessariamente ocupa um espaço ou existe como potência na esfera
[celeste] - como imaginavam as seitas dos sabeanos, 266 para as quais
Deus era o espírito da esfera. Portanto, as palavras dos Sábios - "Aravót,
sobre o qual reside o Alto e Sublime" - demonstram que Deus está
separado da esfera e não é uma potência nela.267
Saiba que a metáfora de que Deus "monta (rochéll) nos céus'' é uma
imagem surpreendente e maravilhosa, pois quem monta é muito supe­
rior à sua montaria (dizemos "muito superior" apenas por conveniên­
cia, pois quem monta não pertence à mesma espécie da montaria266).
O cavaleiro também é aquele que move o animal e o dirige como quer,
pois o último é um instrumento utilizado de acordo com a vontade do
primeiro, que é independente, separado e externo ao cavalo. Do mes­
mo modo, Deus (Exaltado seja o seu Nome!) é o Motor da esfera supe­
rior; tudo o que se move dentro dela se deve a Ele que, no entanto, é
separado, e não uma potência dentro da esfera.
[No Talmu<Íj em Génesis Rabá, a respeito da palavra de Deus: "Sua
morada é o Deus de sempre" (Deuteronômio 33:27), nossos Sábios
explicam: "Ele é a morada do seu mundo, mas o mundo não é a Sua
morada", ao que acrescentam: "O cavalo depende do cavaleiro, mas este
independe do cavalo", conforme está escrito: "Pois Tu montas sobre Teus
cavalos" (Habacuque 3:8). Expressam-se literalmente assim. Então pres-

265 Parte 2, capítulo 4.


266 Capítulo 63: Parte 3. capítulo 29.
267 Capítulo 69.
268 Portanto, não cabe comparação entre duas espécies diferentes (NT).
O GUIA DOS PERPLEXOS 273

te atenção e c ompreenda como eles esclareceram a relação de Deus c om


a esfera [celeste]. que é o instrumento através do qual Ele dirige a exis­
tência. Tudo que você encontrar junto aos Sábios (de abençoada
memória) de que em um cerco céu há isto e em outro há aquilo, a in­
o

tenção não é dizer que nos céus há outras substâncias além de eles pró­
prios, mas sim que as potencialidades que originam uma certa coisa e a
mantêm organizada vêm daqueles céus. A demonstração para o que eu
lhe digo está nas palavras dos Sábios: "Aravót, na qual há retidão, eqüi­
dade e justiça; tesouros de vida, de paz e de bênção; almas d os justos:
almas e espíritos daqueles que nascerão no futuro; e o orvalho por meio
do qual Hakadósh Baruch Hu (O Santo, bendito seja Ele) ressuscitará
os mortos no futuro•. Está claro que, de tudo o que foi citado aqui, nada
é material nem ocupa espaço {pois não se trata de "orvalho• no sentido
literal). Observe o modo como eles falaram sobre isso: "na qual", vale
dizer: "em Aravót"; não afirmaram que estavam "sobre" - é como se
tivessem dito que as coisas existentes no universo na verdade são origi­
nárias de potencialidades emanadas de Aravót, sendo que D eus lhes
estabeleceu um início e lá as plantou - entre as quais estão os "tesou­
ros de vida", o que é correto e inteiramente verdadeiro, pois toda Vida
existe nte em um ser vivo na verdade procede dali, conforme mencio­
naremos em seguida.269 Observe o modo como [os Sábios] incluem as
"almas dosjustos; almas e espíritos daqueles que nascerão no futuro"
- quão glorioso é isto para aqueles que o compreendem! As "almas"
que permanecem após a morte não são a "alma" presente no indivíduo
ao nascer, pois no momento do seu nascimento esta tem apenas um
propósito em potem:ia1;270 o que é separado apôs a morte é consid era­
do atuante de fato. Tampouco a "alma" nascente equivale ao "espírito"
nascente; por isso foram considerados, no nascimento, como "almas e
espíritos", e mbora quando separados (do corpo) sejam uma coisa só. Já
explicamos271 aqui a polivalência do termo [hebraico] "rúach" {sopro,
vento, espírito) , assim como tratamos da polivalência destes termos no
final do [nosso] SeferMadá272 (Livro da Sabedoria).

269 Capítulo 72; ver também na Parte 2, capítulo 10.


270 Ver capítulos 41 e 68.
271 Capítulo 40.
272 Mishnê Torá, Hilch6t Teshuvácapftulo 8:3. Em 1232, após denúncia à Igreja
de oponentes no meiojudaico, o primeiro volume do Mishnê Torá, conhe­
cido como Sefer Madli, foi queimado em Montpellier, França, juntamente
com o Igualmente "herético" O Cuia das Perplexas (N1).
274 MAIMÔNIDES

Veja como estas idéias verdadeiras e maravilhosas, sobre as quais


se debruçaram os mais destacados filósofos, estão dispersas nas
midrashót. 2;3 Quando o homem sábio se debruçar sobre elas e, em prin­
cípio, não se der conta da verdade, rir-se-á daquilo que, superficialmente,
aparentam ser, em contrapartida à verdadeira realidade. A causa para
tudo isso é que os nossos Sábios falaram destes assuntos por meio de
enigmas estranhos à compreensão das pessoas comuns, como já afirma­
mos diversas vezes. 274
Volto agora para completar o que comecei a lhe explicar, e digo que
nossos Sábios passaram a apresentar evidências das palavras dos versí­
culos [bíblicos] a respeito daquelas coisas contidas em Aravót - nas
suas palavras: ·[Sobre] retidão ejustiça está escrito: Retidão ejustiça são
os alicerces do Teu trono" (Salmos 89:15). Quanto às demais coisas
citadas, eles também apresentaram evidências de que estão relaciona­
das a Deus e próximas a Ele - entenda isso. Nos Pirkê Rabi Eliezer
(Capítulos de Rabi Eliezer - capítulo 18) está escrito: "Sete céus
(rekiím) criou Hakadósh Baruch Hu (O Santo, Bendito seja Ele), e den­
tre todos não escolheu outro Trono de Glória para o Seu reino além de
Aravót, como foi dito: Louvem Aquele que monta em Aravót (Salmos
68:5) ". Estassão suas palavras, as quais você também deve entender bem.
Saiba que um conjunto de animais montados é denominado mercavá
(carruagem), cujo uso é freqüente: "E aprontou José a sua carruagem"
(mercavtô) {Génesis 46:29); "Na segunda carruagem (mirkéve� · (Gé­
nesis 41:43); "As carruagens (markevó� do Faraó" (Êxodo 15:4). A prova
de que este termo se refere a um conjunto de animais está nas seguintes
palavras: "Importava-se e saía uma carruagem (mercavá) do Egito por
seiscentos shékell75 de prata e um cavalo por cento e cinqüenta" (I Reis
10:29) , evidenciando que a mercavá é constituída de quatro cavalos.
Assim, afirmo que, por se declarar que o "Trono de Glória• é carregado
por •quatro chaiót {seres celestes) " {Ezequiel 1:5, entre outros), n ossos
Sábios chamaram-no de MerCEvá, por sua semelhança com a carrua­
gem de quatro animais.
Esta é a lição para a qual nos trouxeram as palavras deste capítulo.
Contudo, é impossível deixar de fazer muitas outras observações sobre
o assunto. De fato, a intenção deste capítulo e o propósito de tudo o

273 Interpretações alegóricas contidas no Talmud (NT).


274 Na Abertura à Parte 1.
275 Moeda bíblica de Israel (NT).
O CUIA OOS PERPLEXOS 275

que dissemos anteriormente ê demonstrar que o sentido das palavras


"que monta (rochêv) nos cêus" (Deuteronômio 33:26) é: "Aquele que
faz girar a esfera circundante e a coloca em movimento por Seu poder
e vontade". Do mesmo modo, as palavras do final do versículo - "E
com Sua altivez, as esferas celestes (shechakím) • - significam que a "al­
tivez de Deus" gira as esferas celestes. Deduz-se que a prirf:ieira de.las é
Arav6t, conforme explicamos (neste capítulo) a partir do termo ·rechivá
(montaria); e as demais decorrem do termo "gaavá (altivez), porque,
pelo movimento daquela esfera superior em sua rotação diária, todas as
esferas se movem, cada qual com um movimento parcial do todo. É por
isso que este enorme poder que coloca tudo em movimento é chamado
de ·altivo·.
Faça com que este assunto esteja sempre na sua mente em favor da­
quilo que lhe apresentarei mais adiante, que é a maior das evidências
conhecidas acerca da existência de Deus, vale dizer: a circunvolução da
esfera [celeste].276 que comprovarei. Preste atenção a isto.

276 Parte 2, capitulo 1.


CAPÍTULO 71
O KALÁM77

Saiba que as muitas ciências que pertenciam ã nossa nação para o ver­
dadeiro entendimento destes assuntos se perderam com o passar do
tempo, devido ao domínio de povos bárbaros sobre nós e ao fato de estes
assuntos não serem permitidos a todas as pessoas, conformejá escla.re­
cemos,278 exceto as palavras das Escrituras. Vocêjá sabe que até mesmo
o tradicional Talmud não existia ante.5 na forma de livro, país a regra
propagada entre a nação [judaica] era: "As palavras que te comuniquei
oralmente, não estás autorizado a transmiti-las por escrito" 279 - esta
sabedoria da religião [judaica) estava definitivamente certa, pois evitou
aquilo que, por fim, viria a ocorrer, a saber: muitas opiniões e parece­
res: dúvidas a respeito das expressões e erros de escrita por parte do reda-

277 Maimõnides expõe, nos últimos seis capítulos desta Parte 1. uma sinopse
da doutrina do Kalám - sistema de teologia racional dos muçulmanos co­
nhecidos como mutakálemim • antes de explicar as doutrinas dos peripaté·
Cicos (disclpulos da fllosoOa aristotélica) sobre a existência, unicidade e
incorporeidade de Deus. na Parte 2. Este capitulo apresenta algumas indi­
cações históricas relativas à origem do Kalám, cuja influência sobre alguns
teólogosjudeus do Oriente é notória ejustifica, portanto, que Maimônides
trate deste assunto (NT).
278 Capitulo 34.
279 Talmud Babilônico, Tratado Cuitín 60b.
278 MAI MÔNIOES

tor do livro; divisão entre as pessoas e organização destas em seitas; e


confusão quanto a questões de ordem prática. Todavia, tudo isso era
_encaminhado ao BêtDin Hagadól (Grande Tribunal) , conforme expli­
camos em nossas obras talmúdicas280 e está indicado no texto da Torá.281
E se com relação à Lei Oral houve muita precaução para que sua reda­
ção não fosse divulgada a todas as pessoas, devido aos danos _que isso
poderia provocar, tanto mais quanto à redação de qualquer coisa dos
sitrê Torá (segredos da Torá) e sua divulgação pública, pois estes eram
transmitidos entre indivíduos específicos, conforme lhe deixei claro282
quanto à declaração: "Não transmitam os sitrê Torá (segredos da Torá)
a não ser ( ...) para um homem que seja conselheiro, grande sábio e in­
teligente em se expressar•. Esta é a razão que obriga a interrupção [da
transmissão] destes princípios fundamentais entre a nação, dos quais
você não encontrará mais do que pequenas observações e indicações
advindas do Taimude das Mídrashót- ou seja, umas poucas sementes
recobertas de muitas cascas, de modo que as pessoas se ocupem com
estas cascas e imaginem que dentro delas não há miolo algum.
Na verdade, o pouquíssimo material que você encontrar nas obras
de alguns gueoni�3 e entre os caraítas,284 a respeito da Unicidade [de

280 Na Introdução ao Mishné Toni de Maimõnides.


281 "Quando alguma lei te for desconhecida em juízo - se um sangue é puro
ou impuro, se uma causa éjusta ou injusta, se uma chaga é pura ou impu-.
ra ou se surgirem causas que provoquem divergências de opiniões em tuas
cidades - levantar-te-ás e subirás ao lugar escolhido pelo Eterno, teu Deus.
E virás aos sacerdotes-levitas e ao juiz que houver naqueles dias, e indaga­
rás e te anunciarão a sentença dojuízo. E farás conforme o mandado da lei
que te anunciarem do lugar escolhido pelo Eterno, e cuidarás de fazer de
acordo com tudo o que te ensinarem. Conforme o mandado da lei que
ensinarem e conforme o juízo que te disserem, raras: não te desviarás da
sentença que te anunciarem nem para a direita nem para a esquerda. E o
homem que fizer com malícia, para não ouvir o sacerdote que está ali para
servir o Eterno, Teu Deus, ou ao juiz, tal homem morrerá, e eliminarás o
mal de Israel" (Deuteronõmio 17:8-12).
282 Capitulo 34.
283 Os Gueonim (619-1038 E.C.) foram grandes eruditos. O título de Gaon
era dado aos presidentes das academias talmúdicas da Babilônia. O último
deles foi o Rav Hai Gaon.
284 OsCaraítas, uma seitajudaica fundadana Babilônia doséculo Vlllpor Anan
ben David, professa a aderência estrita à Torá e a negação das interpreta­
ções rabínicas. Cerca de 15 mil caraitasvivem hoje em Israel, principalmente
em Ramla, Ashdod e Beer Sheva.
O GUIA DOS PERPLEXOS 279

Deus) e questões adjacentes, foi tomado dos mutakálemim islâmicos -


é mínimo em comparação àquilo que estes escreveram a respeito.
Ocorreu também que, no tempo em que os muçulmanos adotaram este
e

método, constituíram uma seita denominada Mutazíla,285 da qual nos­


sos correligionários tomaram suas teorias e adotaram seus métodos.
Posteriormente surgiu entre os muçulmanos uma outra seita denomi­
nada Asharia,286 que trouxe outras opiniões, delas você nada encontra­
rájunto aos nossos correligionários - não porque eles tenham preferi­
d o a primeira opinião à segunda, mas por terem conhecido a primeira
antes, adotando-a e a considerando como verdade demonstrada. Quanto
aos destacados andaluzes287 de nossa nação [judaica], todos apoiaram
as teorias dos filósofos e aceitaram suas opiniões naquilo que é permi­
tido no que tange à religião [judaica]; nem pense que eles seguiriam
alguma coisa dos métodos dos mu takálemim - nas poucas obras exis­
tentes de seus autores mais recentes, tendem em muitas coisas para o
lado das nossas opiniões neste Tratado.
Saiba que tudo o que os muçulmanos falaram a respeito destes as­
suntos - nas seitas Mutazíla e Asharia - são teorias baseadas em pro­
posições e princípios tomados das obras de gregos e arameus (sírios) que
tentaram se opor às opiniões filosóficas e refutar suas teorias. Havia uma
razão para isso: na época em que a Nação Cristã integrou gregos e sírios
e os cristãos decretaram o que é notório, as opiniões dos filósofos eram
correntes naquelas nações - pois nelas nasceu a Filosofia. Quando
surgiram reis defensores da fé [cristã], os sábios gregos e sírios daquelas
gerações perceberam que aqueles decretos se contrapunham explicita•
mente às opiniões filosóficas. Então geraram esta doutrina do Kalám:
passaram a erigir princípios que dessem sustentação às suas convicções
e que refutassem as opiniões que contradiziam as bases de suas crenças.
Quando surgiu a Nação de Ismael [islãmica) e lhes foram copiadas
[traduzidas] as obras filosóficas, também o foram as refutações às
mesmas. Entre estas encontraram textos de João, o Gramático,288 lbn

285 Mucazíla: ·separados• ou "dissidentes". Seita com diversas correntes que


ora concordavam, ora discordavam entre sL Os caraítas e alguns gueoním
também seguiram algumas de suas doutrinas (Munk) .
286 A respeito desta seita, veja capítulo 73 e Parte 3, 3ª opinião.
287 Pensadoresjudeus espanhóis da região natal de Maimônides (N1).
288 João Filopono de Alexandria (- 490-566): sábio crístão bizantino e patrístico
grego nascido em Fi!ipo, no norte da Grécia, historicamente o mais impor­
tante f'
isico de sua época em todo o mundo. cuja obra cientifica foi de forte
280 MAIMÔNIOES

Adi289 e outros, nos quais se apoiaram, convencidos do seu enorme valor.


Também selecionaram, entre as teorias dos filósofos antigos, tudo o que
lhes parecia conveniente - apesar de os filósofos mais recentes terem
demonstrado a falsidade destas, como a [teoria] do átomo e a do vá­
cuo290 - e consideraram que estes eram assuntos de interesse comum
e princípios necessários a todo crente. Posteriormente o Kalámse espa­
lhou e seguiu por um outro caminho surpreendente, por meio do qual
os mutakálemim se afastaram dos gregos e outros que eram mais afina­
dos com os filósofos. Depois disso surgiram, entre os muçulmanos, dou­
trinas teológicas diversas que precisavam defender, o que também pro•
vocou entre eles uma divisão nestes assuntos. Cada seita estabeleceu prin­
cípios adequados para defender a sua própria doutrina.
Não há dúvida de que há nisso coisas que envolvem a nós três -
vale dizer: judeus, cristãos e muçulmanos - e estas são: a doutrina da
Criação do universo, de cuja comprovação dependem as crenças nos
milagres e outros. Porém, há outras questõesqueestas duas nações [ cristã
e muçulmana] se ocuparam de carregar sobre si - tais como a doutri­
na da Trindade, entre os primeiros, e a doutrina da Palavra,291 entre
algumasseitas [muçulmanas] -a ponto de precisarem estabelecer prin­
cípios (e os estabeleceram) que sustentassem aquilo quelhes era comum,
bem como aquilo que era particular a cada uma destas nações, coisas
das quais nós [judeus] absolutamente não precisamos.
Em suma, todos os primeiros mutakálemim- gregos cristianizados
e muçulmanos - não buscaram a realidade manifesta em suas hipóte·

influência nos pensadores islãmicos. Professor na Academia de Alexandria


e criador da teoria do impetus. questionou as leis aristotéHcas do movimen­
to e a impossibilidade do vazio. Sugeriu o princípio da inércia e afirmou
que um corpo em queda livre não desenvolve velocidade proporcional ao
seu peso. Fez a distinção entre o Cn·ador e toda a sua criação, mostrando
que a visão do céu não era divina (NT).
289 Yahya ibn Adi (894-974): filósofo e teólogo cristão. Em sua obra literária
há 40 tratados filosóficos. Foi também um exímio tradutor de Platão e
Aristóteles. Redigiu o primeiro tratado árabe sistemático de filosofia ética
(NT).
290 Capítulo 73, l ª e 2• proposições.
291 Maimônides alude à discussão, suscitada entre os teólogos islâmicos, sobre
a Palavra Divina dirigida aos profetaS, em particular a Maomé. Uns afir­
mavam que a palavra de Deus é eterna e o Corão, na qual está depositada.
existe por toda a eternidade: em contrapartida, outros defendem que a
palavra de Deus é criada no Indivíduo em que é revelada e Ele a reveste de
letras e sons (Munk).
O GUIA DOS PERPLEXOS 281

ses iniciais, mas sim a forma que esta deveria ter, de modo que servisse
de prova para a veracidade das suas opiniões e impedisse a refutação das
mesmas. Quando declararam necessária a idéia de que a realidade d e ­
veria ter uma forma determinada, buscaram evidências para sustentar
os argumentos que confirmassem suas hipóteses, de modo a compro­
var esta opinião e impedir sua refutação. Foi assim que agiram os pen­
sadores que estiveram à frente desta proposta e a redigiram em livros,
afirmando que o corpo da especulação os levara a isto, sem qualquer
idéia preconcebida. Contudo, aqueles que consultaram estas obras pos­
teriormente desconheciam isso: eles encontraram, nestas obras antigas,
fortes evidências e um grande esforço para sustentar uma coisa ou refu­
tar outra, entretanto consideraram que era absolutamente desnecessá­
rio sustentar ou refutar algo que estivesse no ãmbito da religião e que os
primeiros [mutakálemim] somente não haviam agido assim com o único
propósito de confundi r as opiniões dos filósofos e suscitar dúvida na­
quilo que estes consideravam como demonstrado. Aqueles que apoia­
vam esta posição não avaliavam nem sabiam que estavam equivocados,
pois, na verdade, seus predecessores se esforçaram muito para sustentar
o que deveria ser afirmado e refutar o que deveria ser rejeitado daquilo
que consideravam prejudicial à posição que queriam demonstrar, ain­
da que, para isso, necessitassem de cem premissas - e estes primeiros
mutakálemím cortaram o mal pela raiz. Em síntese, eu lhe afirmo que é
como Temistius292 diz: a realidade não deve perseguir as opiniões, mas
as verdadeiras opiniões devem perseguir a realidade.
Quando tive a oportunidade de me debruçar sobre as obras dos
mutakálemim-assim como, na medida do possível, interessei-me pelas
obras dos filósofos - pareceu-me que os métodos de todos eles eram
da mesma espécie, ainda que esta possa ser dividida em partes. O prin­
cípio de todos é que não há prova de como a realidade é de fato, pois se
trata de um costume cujo oposto também é intelectualmente plausível;
por muitas vezes eles também foram guiados pela imaginação, à qual
chamaram de intelecto. À medida que forem expostos os princípios293
e avaliadasas suas demonstrações de que o universo foi criado,294 e uma
vez determinado isso, fica estabelecido, sem dúvida, que para este há

292 Temístius (3 I 7-?387): estadista e filósofo nascido na Paflagônia (antigo


distrito da Ásia Menor). Foi prefeito de Constantinopla (atual Istambul.
Turquia), onde lecionou e viveu (N1).
293 Capítulo 73.
294 Esta teoria é conhecida como ··teoria da Criação exnihifo" (NT).
282 MAIMÔNIOES

um Criador. Em seguida eles apresentarão evidências de que o Criador


é Um; conseqüentemente, Ele é incorpóreo. Este é o método pelo qual
todo mutakálíme islâmico lida com o assunto - assim como alguns da
nossa nação [judaica] que os imitaram e adotaram seus métodos. Em­
bora eles estejam divididos quanto ao caráter das suas demonstrações e
princípios para o estabelecimento da criação do universo ou a rejeição
da eternidade deste, uma idéia é comum a todos: primeiro vem o e s ­
tabelecimento da criação do universo e, em decorrência disto, prova-se
que o Criador existe.
Ao examin�r este método, minha alma sentiu uma profunda aver­
são , e é evidente que seria assim, porque tudo o que eles consideraram
como provas sobre a criação do universo é duvidoso e não há q u a l ­
quer rlemonstr:::tç:�o t:onvinr:entP. :::. n�o ser p:::ir::t q1u�m ÕP.sr:onhP.r.P. ::t
diferença entre uma prova, uma controvérsia e um sofisma.295 Entre­
tanto, entre aqueles que conhecem estas práticas , fica claro e óbvio que
todas estas evidências são questionáveis e não podem ser consideradas
demonstrações.
.
Eu acredito que a meta máxima daqueles que crêem na Torá é refu­
tar as provas dos filósofos acerca da eternidade [do universo] - e quão
honrado é aquele a quem isto se faz possível! Todo aquele cujo pensa­
mento intelectual é perspicaz e acredita não se enganar sabe que, para
esta questão - se o universo é eterno ou criado - não há uma prova
incisiva, pois o intelecto é o seu limite. Eis que iremos falar bastante
sobre isso,296 mas, por enquanto, é suficiente saber que os filósofos de
todas as gerações, de três mil anos até os nossos tempos. estão divididos
a respeito desta questão, conforme podemos encontrar nas suas obras e
discursos. Uma vez que esta é a situação, como podemos nos servir de
uma premissa para fundamentar sobre ela a existência de Deus? Neste
caso, esta seria questionável: se o mundo foi criado , Deus existe; se é
eterno, Ele não existe. Se ficássemos com esta dúvida, diríamos que
temos uma demonstração da criação do mundo e obrigaríamos as pes­
soas a aceitá-la à força, a fim de que pudéssemos afirmar que conhece­
mos Deus por meio de demonstração - o que está inteiramente dis-·
tante da verdade.
Entretanto, para mim, a face da verdade - o método demonstrat i ­
vo, sem dúvida - consiste em estabelecer a existência de Deus, Sua

295 Um argumento aparentemente lógico e verdadeiro (NT).


296 Na Parte 2.
O CUIA DOS PERPLEXOS 283

unicidade e incorporeidade, por meio dos métodos filosóficos basea­


dos na eternidade do universo. Não porque eu acredite na eternidad e
do universo ou que aceite esta teoriadosfilósofos, mas porque, por meio
deste método, obtém-se a demonstração e se alcança a plena verdade
destas três coisas -a existência de Deus (Louvado seja), que Ele é Um
e que é incorpóreo -semjulgar se o universo é eterno ou criado. Uma
vez coruirmados para nós estes três princípios gloriosos e sublimes, por
meio de uma demonstraçãoverdadeira, retomaremos em seguida a [teo­
ria da] criação do universo e discutiremos tudo o que é possível argu­
mentar a respeito.297
Se você é daqueles para quem é suficiente o que dizem os mutaká­
Jemim e acredita que a criação do universojá está explicada por demons­
tração, saiba que eu aprecio isso; mas se isto não lhe parece demonstra­
do e você adotar a teoria da Criação por meio da tradição dos profetas,
também não há problema (mas não diga: "Como acreditarei na profe­
cia se o universo é eterno?", antes de ouvir o que temos a dizer sobre a
profecia em nosso Tratado; porém não vamos entrar neste assunto ago­
ra). Por ora , é importante você saber que os princípios básicos apresen­
tados pelos fundamentalistasZ98 - ou seja, os mutakáleinim - para
estabelecer a criação do universo contêm uma "inversão permanente" e
uma "alteração na ordem da gênese" ,2�9 como poderá verificar, pois é
impossível para mim não lhe mencionar os princípios e o caráter dos
argumentos deles.
Agora lhe relatarei o meu método em linhas gerais. Afirmo que o
universo é obrigatoriaurnnlt: eterno oucriado: se criado, sem dúvida tem
um Criador - este é o primeiro conceito, pois nada se cria por conta
própria, mas é criado por outro - e o criador do universo é D eus. Se
eterno, é evidente que se deve demonstrar a existência de um Ser que:
não compartilha da materialidade do universo; não é um corpo nem
uma força em u m corpo; é Um , eterno ê permanente; não é efeito de
causa alguma e é imutável. Este é Deus. EuJá lhe expliquei que as pro­
vas da existência de Deus, da Sua unicidade e incorporeidade depen­
dem da teoria da eternidade [do universo]. Então teremos em mãos a

297 Na Parte 2, capitulo 15 e seguintes.


298 Em hebraico, sharshiím. que também pode ser traduzido literalmente como
"radicais" (NT).
299 Uma alteração na ordem natural em que as coisas foram estabelecidas no
Ato da Criação (NT).
284 MAIMÔNIDES

prova perfeita, seja o universo eterno ou criado. Por esta razão, você
sempre perceberá nas minhas obras a respeito dos livros do Talmud,
quando tenho a oportunidade de mencionar os fundamentos da cren­
ça [judaica] ou busco estabelecer a existência de Deus, que recorro a
argumentos inclinados a favor da teoria da eternidade [do universo] -
não que eu acredite nesta, contudo quero estabelecer o princípio da
existência de Deus em nossa crença por meio de um método demons­
trativo absolutamente incontestável, a fim de não apoiar este conceito
verdadeiro e transcendental em uma base sobre a qual alguém possa
tentar demolir e contradizer, e que outro pense que, de fato, este carece
de qualquer fundamento. Isto vale, sobretudo, para as demonstrações
dos filósofos baseadas naquelas três questões tomadas da natureza da
realidade manifesta, que não podem ser ignoradas, exceto por algumas
opiniões preconcebidas. Por outro lado, as evidências dos mutaká/emim
estão baseadas em princípios que se contrapõem à natureza da realida­
de manifesta, a ponto de estes precisarem declarar que nada tem uma
natureza fixa.
Eis que destacarei, neste Tratado, um capítulo em que falo da cria­
ção do universo e exponho algumas evidências a respeito da mesma. 300
Lá chegarei à conclusão - que todo mutakálimeesforçou-se por atin­
gir - sem rejeitar as leis da natureza, nem polemizar com Aristóteles
naquilo que por ele foi demonstrado. Enquanto a evidência oferecida
por alguns mutakálemim sobre a criação do u.niverso - que é a mais
vigorosa entre as suas demonstrações301 - só põde ser apresentada pela
total rejeição das leis da natureza e contraposição a tudo o que foi ex­
plicado pelos filósofos, eu apresentarei a minha evidência sem contra­
dizeras leis da natureza nem precisar me sobrepor àquilo que é percebi­
do pelos sentidos.
Achei por bem lhe apresentar302 as proposições gerais dos mutaká­
Jemim por meio das quais eles estabelecem a criação do universo, a exis·
tência de Deus, Sua unicidade e incorporeidade. Eu lhe exporei os seus
métodos e explicarei o que é inferido de cada uma das suas proposições,
para, em seguida,303 apresentar as proposições e os métodos dos filóso­
fos a respeito. Não me peça para demonstrar, neste Tratado, estas pro-

300 Parte 2, capitulo 19.


301 Capítulo 74, quinto método.
302 Capítulo 73.
303 Na abertura da Parte 2.
O CUIA DOS PERPLEXOS 285

posições filosóficas que lhe apresentarei de maneira suscinta e que cons­


tituem o cerne das ciências naturais e da metafísica; tampouco espere
ouvir aqui os argumentos dos mutakálemim em favor de suas próprias
proposições - com as quais desperdiçaram seus dias e desperdiçarão
os dias das próximasgerações - que proliferam em suas obras, pois cada
uma das suas proposições (salvo algumas) é refutada pela natureza visí­
vel da realidade e sobre elas sempre surgem questionamentos. Por isso,
eles precisaram redigir muitas obras e criar controvérsias, a fim de esta­
belecer suas teorias, refutar as objeções apresentadas contra elas e rejei­
tar as contradições aparentes, caso o procedimento anterior se mostras­
se inviável. Q uanto às proposições filosóficas que lhe apresentarei de
forma concisa, a fim de demonstrar aquelas três questões -va]e dizer:
a existência de Deus, Sua unicidade e incorporeidade -você reconhe­
cerá a veracidade da maior parte das que chegarão às suas mãos assim
que ouvi-las e compreender seus significados. Eu lhe indicarei onde
poderá encontrar a demonstração de algumas delas nas obras de ciên­
cias naturais ou de metafísica, então você poderá encontrar o lugar
correspondente e verificar o que for preciso.
Eujá lhe ensinei304 que nada existe além de Deus e este universo, bem
como não há outra evidência para Ele além deste universo, na sua tota­
lidade e em suas particularidades. Faz-se necessário, portanto, examiná­
lo tal como ele é e inferir princípios daquilo que pode ser percebido a
respeito da sua natureza. Por esta razão é importante que você conheça
a sua forma e natureza manifesta: só então será possível inferir disto uma
evidência daquilo que existe além deste universo. Considerei necessá­
rio, antes de tudo, trazer-lhe um capítulo em que lhe explicarei sobre o
universo como um todo, na forma de narrativa daquilo que já foi de­
monstrado e c uja verdade já foi confirmada sem dúvida alguma. Em
seguida, virão outros capítulos nos quais apresentarei as proposições dos
mutakálemim e descreverei os métodos por meio dos quais eles expl i ­
cam as quatro questões.305 Nos capítulos subseqüentes, exporei as pro­
posições dos filósofos e seus métodos demonstrativos para estas ques­
tões. Por fim, apresentar-lhe-ei o método que eu sigo, como já lhe dis­
se, a respeito das mesmas.

304 No capitulo 34.


305 Existência, unicidade e incorporeidade de Deus: e a criação do universo
(NT).
CAPITULO 72
O UNIVERSO COMO UM Só ORGANISMO

Saiba que este universo como um todo nada mais é do que um organis­
mo, ou seja, todo o globo da esfera celeste, com tudo o que há dentro
dele é, sem dúvida, uma individualidade,306 como o são Reuvên e
Shimón. A sua variedade de substâncias -vale dizer: o próprio globo
e tudo o que está contido nele - equivale metaforlcamente à variedade
de substâncias que constituem um ser humano. Por exemplo: assim
como Reuvén é um Individuo composto de diferentes substâncias -
como carne e ossos - com uma variedade de humores307 e estados de
espírito, do mesmo modo este globo é composto de esferas [celestes].
dos quatro elementos e seus derivados. Não há absolutamente qualquer
vazio nele, pois é Inteiramente sólido. Seu ponto central é o globo ter­
restre; as águas envolvem a super!Icie terrestre, o ar envolve a água, o

306 Platão, em sua obra Ti=u, também apresenta o universo como uma única
individualidade, um ser animado e orgãnico. de forma esférica. Esta tam­
bém é a base da cosmologia de Aristóteles exposta no tratado Do Céu e do
Mundo (...) A idéia de macrocosmos e microcosmos que aparece esporadi­
camente nasalegorias do T aimude dos midrashim ocorre sobretudo no tra­
tado Avot de Rabi Natan, capítulo 31, e no Seru- ltrsirá (O Livro da Cria­
ção), e também é aceito por muitos fllõsofos judeus medievais (Munk).
307 Os quatro temperamentos: fleumático, melancóllco, sangüíneo e colérico
(NT).
288 MAIMÔNIOêS

fogo envolve o ar308 e a quintessência309 envolve o fogo . Esta última


envolve muitas esferas , uma dentro da outra, sem espaço entre elas ou
qualquer vazio, pois suas órbitas estão ajustadas e conectadas umas às
outras. Cada uma delas se move em movimento circular uniforme, sem
qualquer aceleração ou retardamento - ne nhuma delas irá ora acele­
rar e ora desacelerar, mas cada uma segu e a sua natureza quanto à velo­
cidade e características de movimento. Assim, algumas esferas apresen­
tam movimentos mais velozes do que outras . Aquela que exibe o movi­
mento mais veloz ê a esfera circundante, cuja órbita se completa em um
dia e faz com que todas as demais se movimentem com ela - ou seja,
a partejunto ao todo - uma vez que todas são partes dela. Os pontos
centrais destas esferas diferem: em. algumas, o centro coincide com o
do mundo310 e, em outras, lhe é excêntrico; 311 algumas apresentam um
movimento próprio e constante de Leste a Oeste, e nquanto outras se
movem constantemente do Oeste para o Leste. Todo astro contido nestes
globos faz parte da esfera à qual está fixo e não tem movimento pró­
prio, pois seu movimento aparente corresponde ao do corpo do qual
faz parte. A matéria de toda a quintessência, cujo movimento ê circu­
lar, é dife rente daquela que compõe os corpos dos quatro elementos
contidos em seu interior. Em hipótese alguma e em nenhum aspecto, o
número destes globosque círcundam o mundo pode ser menor do que
18; 312 talvez seja em maior número, o que é possível e merece investiga­
ção. Do mesmo modo, se existem esferas de movimento circular que
não circundam o mundo, isto também merece ser pesquisado 313 .
Dentro do globo que nos é mais próximo,314 há uma matéria dife­
rente daquela da quintessência: esta recebeu os quatro arquétipos315 que

308 Em Aristóteles, Física, Livro 4, capítulo 5: Do Céu. Livro 4, capítulo 5.


309 Os antigos também chamavam de "éter, a "quinta substãncia que envol­
ve as esferas celestes.
31O Ou seja, o planeta Terra, que então era tido como centro do universo.
311 Esfera excêntrica: aquela cujo ponto central não coincide com o centro da
Terra, justificando assim irregu.laridades de movimentos de alguns astros
(NT).
312 Maimônides, Mishnê Torá, tratado Iessodê Hatorá {Os Fundamentos da
Torá).
313 Veja a Parte 2, capítulo 4.
314 Denominado sublunar ou terrestre (NT).
315 Em hebraico: Arba tsurót rishon6t (literalmente: quatro formas fundamen•
tais) (NT).
O CUIA DOS PERPI.EXOS 289

originaram os quatro elementos: terra, água, ar e fogo. Cada um dos


quatro tem um espaço natural que lhe é próprio, ocupado somente por
ele e correspondente à sua natureza. São corpos inanimados, sem vida,
percepção ou movimento próprio e permanecem em seus lugares natu­
rais. Caso um destes seja forçado a sair do seu lugar, assim que esta for­
ça (externa) cessar retonará ao mesmo, porque contém o princípio pelo
qual retoma ao seu lugar em movimento retilíneo. não permanecendo
onde está nem se movendo de outra maneira. Há dois movimentos
retilíneos nestes quatro elementos, para que retomem aos seus lugares:
em direção à esfera circundante - que é o do fogo e do ar - e em
direção ao ponto central - o da água e da terra. Assim que cada um
deles chega ao seu lugar natural, entra em repouso. Por outro lado, os
corpos esféricos são vivos e dotados de uma alma, por meio da qual se
movem. Eles absolutamente não possuem um principio de repouso nem
estão sujeitos a qualquer mudança, a não ser de posição, em decorrên­
cia do seu movimento circular. No entanto, se possuem intelígéncla pela
qual podem produzir algo, isto só pode ser esclarecido mediante uma
cuidadosa investigação.316 Devidoao movimento circular e perpétuo da
quintessência em seu todo, os elementos - vale dizer: fogo e ar -
necessariamente saem de seus lugares e são empurrrados em direção à
água; então estes três penetram nas profundezas do corpo da terra, ori­
ginando uma combinação entre os elementos. Em seguida, cada um
deles passa a retornar ao seu respectivo lugar e, em decorrência disso,
carregam consigo partes da terra, associadas à água, ao ar e ao fogo. Em
todo este processo os elementos sofrem acões e reações mútuas. prnvn­
cando uma mudança de combinação entre eles: inicialmente surgem
várias espécies de vapores, em seguida diversas espécies de minerais, todas
as espécies de vegetais e muitas de animais, conforme a proporção das
partes combinadas.317 De fato, todo ser sujeito à geração e degeneração
origina-se dos elementos e a eles retorna, assim como estes atuam no
desenvolvimento e na degeneração uns dos outros. A matéria de tudo é
uma só. É impossível encontrar matéria sem forma, tampouco encon­
trar uma forma naturaldestes seres transitórios sem matéria. Assim sen­
do, mediante a geração e degeneração dos elementos e de tudo o que se
origina e se desfaz por meio deles, as coisas retornam ao seu estado ini­
cial e seguem em um movimento circular semelhante ao da esfera [ce-

316 Parte 2, capítulo 4.


317 Ver Parte 2. capítulo 30.
290 M,\IMÔNIDES

leste], de modo que o movimento desta matéria, capaz de receber for­


ma e através da qual estas se sucedem, equivale ao da esfera [celeste].
com o retorno de cada parte às suas próprias posições.
Assim como no corpo humano há órgãos dominantes e outros
dependentes que precisam ser governados pelos primeiros para se
manterem, assim também é o universo como um todo: lJá partes
dominantes - a quintessência, que a tudo envolve - e partes de­
pendentes que precisam ser governadas: os elementos e aquilo que
se constitui deles.
Assim como o órgão dominante - a saber, o coração - trabalha
continuamente, é o princípio de todo movimento existente no corpo
e, por meio do seu próprio movimento, atua sobre os demais órgãos,
transmitindo-lhes as forças das quais necessitam para suas atividades,
assim também a esfera que governa as demais partes do universo, por
meio do seu próprio movimento, transmite a todas elas as forças de que
dispõe. Todo movimento existente no universo tem sua origem no
movimento desta esfera e a alma existente em cada ser dotado de alma
no universo é originária da alma desta mesma esfera. Saiba que as for­
ças decorrentes das esferas [celestes] para este mundo [terrestre], con­
forme já foi explicado, são quatro: (1) a força que causa a combinação
e composição [dos elementosl. e não há dúvida de que esta é suficiente
para a composição dos minerais; (2) a força que dá a alma vegetativa
(néfesh hatsomáchat) a todo vegetal; (3) a força que dá a alma instintiva
(néfesh hachaia) a todo animal; e (4) a força que dá razão a todo ser
racional - tudo isso em decorrência da luz e da escuridão, de acordo
com a luminosidade dos astros e suas posições ao redor da Terra .
Assim como se o coração parar por um instante a pessoa morre e
cessam todas suas atividades e forças, do mesmo modo se as esferas
parassem, o mundo inteiro morreria e tudo o que há nele deixaria de
existir.
A vida de um ser vivo depende inteiramente do movimento do seu
coração - ainda que alguns órgãos insensíveis não o sintam, como os
ossos, a cartilagem e outros. O mesmo ocorre com o universo como um
todo, pois este é um só organismo que vive devido ao movimento da
esfera [celeste] - que está para ele assim como o coração está para os
seres dotados de coração - ainda que contenha muitos corpos em re­
pouso e inanimados.
Portanto, é preciso que você represente todo este globo como um só
organismo vivo, com movimento próprio e dotado de alma. Este mo­
delo é indispensável, ou seja, é muito útil para demonstrar a unicidade
O CUIA DOS PERPI.EXOS 291

de Deus, conforme será explicado:318 por meio disso também será es­
clarecido que, de fato, Um criou um.
Assim comoé impossível que os órgãos humanos existam por si
próprios e permaneçam órgãos humanos de fato - vale dizer: que o
figado, o coração ou a carne existam por conta própria - da mesma
maneira é impossível que os componentes do universo existam uns sem
os outros neste mundo. ao qual nos referimos, de modoque ofogoexista
sem a terra e esta sem océu ou vice-versa.
Como o individuo humano é composto de uma única força que
conecta seus órgãos uns aos outros e os governa , dando a cada um aquilo
de que necessita, cuidando da sua recuperação e repelindo oque pode
prejudicá-lo - o que os médicos explicam e denominam de "a força
que governa o corpovivo" e que, freqüentemente, chamam de "nature­
za" - assim também o universo comoum todo consiste de uma única
força que liga uns aos outros, protege suas espécies para que nãopere­
çam, cuida dos indíVíduos de cada espécie na medida do possível, bem
como protege alguns seres permanentes.319 Cabe investigar se esta for­
ça atua ou nãopor intermédio da esfera celeste.
Nocorpo de cada ser humano há partes direcionadas a certos pro­
pósitos: os órgãos de nutrição , para a manutenção do indivíduo: os
órgãos sexuais, para a preservaçãoda espécie; as mãos e os olhos, neces­
sários para localizar e apreender osalimentos e outros. Hátambémcoisas
sem função determinada, mas que estão unidas àqueles órgãos e lhes
servem de extensão. A constituiçãopeculiar destas extensões é indispen­
sável à manutenção º" forma daqueles órgãos, a fim de que possam
realizar as atividades para as quais se destinam . Estas se estendem até as
extremidades conforme a necessidade da matéria - comoos pêlos do
corpo e a cor da pele, que são irregulares - e é comum que algumas
estejam ausentes, produzindo também grandes diferenças entre os in­
divíduos {o que nãoocorre com os órgãos: você nãoencontrará uma só
pessoa com um figado dez vezes mais pesado do que o de outra, mas
encontrará um homem sem barba ou sem pêlos em determinadas par­
tes do corpo, ou com uma barba dez ou vinte vezes mais longa do que
a de outro homem - a variação em termos de pêlos e cor depele é muito
comum). O mesmo ocorre com oprópriouniverso: há espécies dire­
cionadas à permanência, perenes e regulares, que apresentam poucas

318 Na Parte 2, capítulo 1 , em particular o Primeiro argumento filos4llco (NT) .


319 Por exe·mplo, os céus. Veja no capitulo 1 1 (NT).
292 MAIMÔNIDES

diferenças no tocante à largura, quantidade e qualidade. Outras não têm


função determinada, mas são necessárias às leis de geração e degenera•
ção da natureza - como espécies de vermes em meio ao lixo, bichos
em frutas apodrecidas e no mofo de objetos úmidos, vermes nos intes­
tinos, e daí em diante (em suma, parece-me que tudo quanto carece de
capacidade de procriar um semelhante pertence a esta classe); por esta
razão estas coisas são irregulares, ainda que a sua ausência seja tão i m ­
possível quanto as diferenças entre tipos de pele e cabelos entre os seres
humanos.
Assim como nos seres humanos há substâncias duradouras, como
os órgãos vitais; e outras pertencentes à espécie, mas não aos seus indi·
víduos, como os quatro humores,320 o mesmo ocorre com o universo:
há substâncias permanentes que mantêm o organismo, ou seja, a quin­
tessência e as partes que a constituem; e outras pertencentes à espécie,
como os quatro elementos e tudo o que é constituído por eles.
Da mesma forma que as forças que garantem o nascimento e a so·
brevivência de um ser humano são as mesmas que levam à sua degene­
ração e morte, em todo o mundo transitório estas causas de geração e
degeneração são as mesmas. Eis um exemplo: se admitíssemos que as
quatro forças existentes no corpo de cada ser que se alimenta - atra·
ção, retenção, digestão e excreção - fossem forças inteligentes, capa­
zes de rea.lizar somente o necessário no momento e na medida adequa­
da, o ser humano se livraria de grandes transtornos e muitas enfermi·
dades. Entretanto, como isso não é possível, uma vez que estas realizam
funções naturais sem pensar nem refletir e tampouco compreendem o
que fazem, por meio de suas ações necessariamente provocam doenças
graves e muitos transtornos, ainda que sejam instrumentos para o nas­
cimento e sobrevivência do ser humano por um determinado tempo.
A explicação para isto é que se a força de atração, por exemplo, não
absorvesse nada além do conveniente em todos os aspectos e tão-somente
na medida necessária, o ser humano estaria livre de muitas doenças e
sofrimentos; mas como não é este o caso, pois esta absorve qualquer
substância que aparece - ainda que seja em pouca quantidade e qua­
lidade -distodecorre necessariamenteque a substância absorvida acaba
sendo mais quente ou mais fria do que deveria, mais espessa ou mais
fina, ou absorve-se mais do que é preciso, estrangulando os tendões,

320 Os quatro temperamentos: fleumático, melancólico, sangüíneo e colérico


(NT).
O CUIA DOS PERPLEXOS 293

provocando obstrução e putrefação. Perde-se na qualidade da substân·


eia e alteram-se suas quantidades, dando origem a enfermidades, como
eczemas, pruridos e verrugas ou doenças graves como o tumor, conhe­
cido como câncer, elefantíase e gangrena, até que a forma do órgão ou
órgãos seja destruída - e isto vale para todas estas quatro forças. O
mesmo ocorre no universo: aquilo que origina o nascimento dos seres
e prolonga suas existências por um certo tempo, em decorrência da
combinação dos elementos produzida pelas forças das esferas celestiais
que os movem e neles se difundem, é o mesmo que provoca fenômenos
destruidores no mundo, tais como enchentes e tempestades, neve e gra­
nizo, furacões, trovões, relâmpagos e contaminação do ar ou fatalida­
des que arrasam uma ou mais terras e até um pais, como inundação de
terras, abalos, terremotos e transbordamento de água de mares e preci­
pícios.
Saiba que não é por tudo isso que falamos, acerca da semelhança entre
o universo como um todo e o indivíduo humano, que este é considera­
do um microcosmo, pois toda esta semelhança estende"se a qualquer
outro ser animal cujos órgãos sejam perfeitos - e você jamais ouviu
qualquer autor antigo afirmar que um burro ou um cavalo é um mi­
crocosmo. Contudo, isto foi dito do homem por conta de algo que lhe
é singular: a capacidade racional, vale dizer, o intelecto, algo que não se
encontra em nenhum outro ser vivo. Explica-se: nenhum animal pre·
cisa de pensamento, reflexão ou conduta moral para a manutenção da
sua existência, pois segue e age conforme a sua natureza: come o que
encontra daquilo que lhe é conveniente, habita em qualquer lugar que
encout,a " copula com qualquer fêmea que esteja no cio, se tbr este o
caso. Desta forma, o animal sobrevive por um determinado tempo e dá
continuidade à existência da sua espécie, sem precisar em absoluto de
outro indiVíduo da mesma espécie para ajudar e auxiliar na sua manu­
tenção ou lhe fazer coisas que ele é incapaz de fazer sozinho. Entretan·
to, o caso do ser humano é único: se uma pessoa levasse uma existência
solitária, desprovida de conduta moral e vivesse com os animais irra­
cionais, logo morreria e não suportaria um só dia, a não ser se, por ca­
sualidade, encontrasse algo que lheservisse de alimento, pois, para a sua
manutenção, o alimento requer muita preparação e só fica pronto por
intermédio do pensamento e da reflexão - além da utilização de mui­
tos instrumentos e da participação de outros indivíduos, cada um deles
especiali:zado em determinada função. Para isso precisa-se de alguém que
os dirija e os reúna até que se organizem socialmente, com continuida­
de e cooperação. Também precisam se proteger do calor, no verão, e do
frio, no inverno, abrigar-se da chuva, neve e ventanias, para o que é
294 MAIMÔNIDES

necessário uma série de preparativos que só serão adequados se houver


pensamento e reflexão. Por esta razão , o homem é dotado de capacida­
de racional que lhe permite pensar, ponderar, atuar, preparar seus ali­
mentos por meio de algumas práticas, morar e se vestir, controlar todos
os órgãos do seu corpo de modo que a cabeça faça o que deve ser feito
e os órgãos dependentes dos domjnantes executem suas respectivas fun­
ções. Portanto, suponha que existisse um ser humano privado desta
capacidade e munido tão-somente de capacidade vital, este morreria em
pouco tempo. A razão é uma capacidade muito nobre, a mais nobre das
de um ser vivo, bem como a mais dillcil de ser compreendida: à pri­
meira vista e pelo senso comum, não há como entender o seu verdadei­
ro caráter do mesmo modo como são entendidas as demais forças na­
turais. Analogamente, no universo há um ser que governa o conjunto,
colocando em movimento o seu órgão dominante, ao qual transmite a
capacidade motora para governar os demais. Supondo a ausência deste
ser, o globo - incluindo o órgão dominante e os que dele dependem
- não teria como existir, pois este ser é quem mantém a existência do
globo em cada uma de suas partes. Este ser é Deus, exaltado seja o seu
nome! A úruca razão pela qual se afirma que o indivíduo humano é
considerado um microcosmo é porque possui um principio úruco que
rege os demais. Por este motivo, Deus é chamado em nossa língua
[hebraica) de · · Chii Haolám" (A Vida do Universo), conforme foi dito:
"E jurou por CMi Haolám(pela Vida do Universo)"(Daniel 12:7) .
Saiba que, na comparação que estabelecemos entre o universo como
um todo e o indivíduo humano, não há controvérsia sobre aquilo que
relatamos, exceto por três fatores:
1) O órgão dominante de todo ser vivo dotado de coração beneficia
os órgãos que lhe são dependentes e destes obtém beneficio s . O mesmo
não ocorre no universo, pois Aquele que exerce autoridade ou concede
poder não recebe qualquer beneficio daqueles que Dele dependem. Sua
doação é como a de um generoso benfeitor voluntário, que faz isso
naturalmente, por ser magnãnlmo e não porque espera algo em troca,
e, ao agir assim, imita a Deus.
2) E m todo ser vivo dotado de coração, este se localiza no Interior e
no centro do corpo, enquanto os órgãos dependentes ficam ao seu re­
dor com o intuito de lhe serem úteis, protegendo-o e guardando-o, de
modo que não lhe sobrevenha qualquer dano externo. Nouniverso como
um todo ocorre o Inverso: o que nele há de mais nobre envolve as par­
tes Inferiores, de forma que certamente não é afetado pela ação dos
demais.Mesmo que fosse vulnerável, não existe foraDele outro corpo
O CUIA DOS PERPLEXOS 295

ca paz de afetá-Lo. Ele exerce influência sobre tudo o qu e está contido


no universo, mas n ada nem qualquer força externa entre os corpo s
materiais O a fetam. Todavia, existe alguma semelhança: em relação ao
órgão dominante de um ser vivo , quanto mais distante um órgão [de­
_ pendente] está, menor é a sua importância em comparação aos mais
próximos. Assim também é no universo: qua nto mais distante um cor­
po m at"erial está do ponto central, mais turvo e espesso é, seu movimento
é mai s lento , seu brilho e tran sparência desaparecem em decorrência da
distância em relação ao corpo nobre -a esfera [circundante] -que é
fonte de luz e esplendor, tem movim e nto próprio, é sutil e simples.
Qua nto mais próximo desta esfera um corpo está, mais adquire desta
algum as das suas propriedades e desfruta de uma certa superiorida de
em relação aos mai s distantes.
3)A capacidade racional é inerente ao corpo [humano] e insepará­
vel deste 3. 21 Por sua v ez, Deus não é uma força dentro do universo; Ele
é externo a qualquer um de seus componentes. Seu governo e providência
a brangem o universo e m todos os seu s a spectos. Suas metas e verdades

estão ocultas e as capacidades humanas são limitadas para compreen­


dê-las, pois está demonstrado que Deus existe à parte e sem contato com
o universo. Também está demonstrada a existência dos resultados do
seu governo e providência em cada detalhe, por menor que seja . Louva­

do é Aquele cuja perfeição reconhecemos como eterna!


Saiba que é adequada a nossa comparação entre a relação de Deus
com o universo e a razão adquirida com o ser humano, pois e sta não é
uma força inerente ao corpo, mas, de fato, está separada deste e o influen­
cia . A capacidade racional pode ser comparada ao intelecto inerente aos
corpos das esferas (celestes]. Contudo, a questão do inte lecto das esfe­
ras, da existência das Inteligências Se paradas e da razão adquirida -
que também é separada -são assuntos sujeitos a es peculação e inves­
tigação . Pelo fato de suas evidências estarem oc ultas , ainda que sejam
verdadeiras, s uscitam muitas dúvidas, estão expostas a críticas e são
sujeitas à s objeções dos seu s críticos. Portanto, optamos inicialmente
por descrever o universo de uma forma clara, de modo que nada daqui­
lo que men cionamos seja negado como algo desprezível, exceto por um
destes dois tipos de indivíduos: o ignorante em algo tão óbvio -como
é o caso daquele que não é geômetra e rejeita noções já estudadas e d e ­
monstradas; ou daquele que se equivoca ao optar por apoiar uma teoria

321 Capitulo 68.


296 MAIMÔNfOES

ultrapassada. Entretanto, quem deseja se dedicar a uma verdadeira i n ­


vestigação deve estudar até que se lhe esclareça a verdade so bre tudo o
que relatamos aqui e compreenda que esta é, sem dúvida, a forma eXis­
tente e estabelecida do universo. Se alguém deseja aceitar isto de quem
conhece as demonstrações de tudo o que pode ser comprovado, então
que aceite e formule seus próprios argumentos e provas sobre isto. Con­
tudo, caso opte por não aceitar - nem mesmo por meio destes princí­
pios -então que vá estudar, porque posteri omente compreenderá que
as coisas são assim: "Eis que isto já o investigamos e assim é; ouve-o e
entenda isto para til" Üó 5:27).
Após este preâmbulo e apresentação, passamos à exposição daquilo
que pretendíamos abordar e esclarecer . 322

322 Ou seja. as proposições do mutakálemim e suas demonstrações relativas às


quatro questões, mencionadas no penúltimo parágrafo do capítulo 7 I : a
criação do universo, a existência de Deus, sua unicidade e incorporeidade
(NT).
CAPfTULO 73
AS DOZE PROPOSIÇÕES DO KALÁM

São doze as proposições enunciadas pelos mutakálemim em geral, le•


vando-se em conta a diferença de opiniões e variedade de métodos.
Primeiro, apresentá-las-ei e, depois , explicarei o significado de cada urna
e o que delas se infere.
Primeira proposição: estabelecer a substância simples [átomo] .
Segunda proposição: a existência do vácuo.
Terceira proposição: o tempo é composto por inst antes.
Quartaproposiçãd. a substância tem inevitavelmente muitos acidentes.
Quinta proposição: a existência e a permanência da substância sim•
ples [átomo) são inevitavelmente constituídas por acidentes.
Sexta proposição: o acidente não perdura por dois intervalos de tem­
po (instantes).
Sétimaproposição: a norma para as propriedades e a ausência destas
é a mesma; ambas são acidentes reais que necessitam de um agente.
Oitava proposição: não existe um único ser - dentre todas as cria·
turas - sem substância e acidente . A forma física também é um a c i ­
dente.
Nona proposição: nenhum acidente serve de base para outro.
Décima proposição: uma forma possível não pode ser provada a p e ­
nas por estar e m conformidade com a s leis d a natureza.
298 MAIMÔNIDES

Décimaprimeiraproposição: admitido o absurdo do infinito, não há


diferença entre um estado de atividade, potência ou acidente, ou seja,
não importa se há coisas infinitas e coexistentes ou se uma passa a exis­
tir depois que outra desaparece (ou seja, o infinito por acidente) . Tudo
isso é considerado absurdo.
Décima segundaproposição: os sentidos corrompem e muitas das suas
percepções· são vagas. Por esta razão não se deve depreender deles qual­
quer juízo de valor ou princípios demonstrativos.

Após enumerá-las, passo a explicar seus significados, bem como o


que se infere de cada uma.
Primeira proposição: estabelecer a substância simples [átomo].
Eles imaginavam que o universo como um todo - vale dizer, toda
matéria contida nele - seria composto de partículas indivisíveis de tão
minúsculas. Estas partículas não são quantificáveis, mas, quando se
agrupam umas às outras, formam um conjunto quantificado que cons­
titui um corpo. Na opinião de alguns, em duas partículas unidas, cada
uma delas seria um corpo e haveria, portanto, dois corpos. Todas estas
partículas são semelhantes e equivalentes, sem qualquer diferença entre
elas. Para eles, seria absolutamente impossível encontrar um corpo que
não fosse composto destas partículas equivalentes, colocadas lado a lado,
cuja geração ocorre por composição e o perecimento, por decomposi­
ção; não chamam a isto de perecimento, mas declaram: a geração se
constitui em composição e decomposição, movimento e descanso.
Dizem ainda que estas partículas não são como pensava Epicuro e ou­
tros adeptos da teoria atomista, mas que Deus as cria constantemente
conforme a Sua vontade e o seu desaparecimento também é possível.
Agora lhe apresentarei as suas teorias acerca da ausência da substância.
Segunda proposição: a existência do vácuo.
Os fundamentalistas323 também acreditam na existência do vácuo
- ou seja, uma extensão ou extensões que nada contêm absolutamen­
te - isento de qualquer corpo e substância. Esta proposição lhes é
obrigatória para fundamentar a primeira, porque, se o universo estives­
se pleno de partículas, como elas poderiam se mover? Não há como
imaginar os corpos interpenetrando-se, nem a composição e a decom­
posição são possíveis sem que estes movimentem. Portanto, eles preci­
sam necessariamente estabelecer o vácuo, a fim de que estas partículas

323 Ver nota 299 (NT).


O CUIA DOS PERPLEXOS 299

possam se agrupar e se separar, possibilitando o movimento neste va­


zio, no qual não há corpo nem qualquer substância.
Terceira proposição: o tempo é composto por instantes.
Com isso, eles [os mutakálemim) querem dizer que o tempo é com­
posto por muitas unidades de tempo, indivisíveis em decorrência de suas
ínfimas durações. Para eles, esta proposição também é necessária em
virtude da primeira proposição, pois indubitavelmente eles conheciam
as demonstrações de Aristóteles324 de que espaço, tempo e movimento
são da mesma natureza, vale dizer: há uma inter-relação entre eles, uma
vez que, na divisão de um, os demais também são divididos na mesma
proporção. Assim, precisavam reconhecer que, se o tempo fosse contí­
nuo e divisível ad infinitum, então obrigatoriamente o átomo também
o seria. Do mesmo modo, caso aceitas5em que o espaço fosse contínuo,
também deveriam admitir, como divisível, o instante de tempo tido por
eles como indivisível, conforme Aristóteles explicou em sua obra
Acroasis. Por isso concluíram que a extensão espacial não é contínua e
compõe-se de átomos, assim como o tempo é formado por instantes
indivisíveis. Eis um exemplo: uma hora é dividida em 60 minutos, um
minuto em 60 segundos e um segundo em 60 unidades de tempo até
que, segundo eles, se chegue finalmente a instantes (como, por exem­
plo, após dez divisões sucessivas de tempo ou ainda menores) indivisí­
veis e imensuráveis, em situação análoga à extensão espacial. Portanto,
o tempo seria dotado de posição e ordem. Eles claramente não com­
preenderam o caráter do tempo - e havia de ser assim, pois se os filó­
sofos mais perspicazes se atrapalharam com esta noção e alguns foram
incapazes de compreendê-la, a ponto de Galeno afirmar que o tempo
era algo divino, cuja verdade era inalcançável, quanto mais aqueles que
desconsideravam a natureza das coisas.
Ouça o que [os mutakálemim] tiveram que admitir e acreditar em
decorrência destas três proposições: eles afirmaram que a locomoção é
o movimento de um átomo até o próximo; segundo esta suposição,
necessariamente não existe um movimento mais veloz do que outro.
Portanto, quando você observar dois objetos levando o mesmo tempo
para percorrer duas distâncias diferentes, a conclusão não é que aquele
que se locomove pela maior distância é mais veloz, mas que, na loco•
moção daquele tido como mais lento, hã mais interrupções. Ao serem
questionados quanto à flecha atirada vigorosamente de um arco, afir­
mam: "Neste caso também há interrupções à sua locomoção. Quem

324 Aristóteles, Física. Livro 6, particularmente capítulos I e 2.


302 MAIMÔNIDES

dente existente em apenas um dos átomos dos quais o homem, por


exemplo, é composto; este organismo se ria denominado baál néfesh
(dotado de alma), pelo fato de conter aquele átomo . Há entre eles quem
acredite que a alma é um organismo composto de átomos minúsculos
que certamente são um acidente e se misturam aos átomos do corpo;
por isso, defendem que a alma é um acidente. Quanto ao intelecto,
obse rva-se que há uma concordância de que se trata de um acidente em
um dos átomos do ser inteligente como um todo. Quanto à capacida­
de de conhecimento, há uma confusão entre eles se isto é um acidente
existe nte em cada um dos átomos que formam o conjunto cognitivo
ou em apenas um deles - ambas as alternativas são necessariamente
absurdas.
Quando lhes foi feita a objeção de que, na maioria dos metais e p e ­
dras que apresentam uma cor intensa, esta desaparece quando eles são
triturados, que a mais verde pitedá (esmeralda) torna-se pó branco, evi­
denciando que este acidente existe apenas no todo e não em cada uma
de suas partes e, ainda mais óbvio do que isso, que as partes seccionadas
de um ser vivo não permanecem vivas, prova de que isto [a vida) diz
respeito à existência completa e não a cada uma das suas partes, [os
mutakálemím] contestaram esta objeção afirmando que o acidente não
é algo durável, na verdade, é recriado continuame nte - conforme ex·
plicarei acerca das suas opiniões em relação à próxima proposição.
Sextaproposição: o acidente não perdura por dois intervalos de tem­
po (instantes].
Eis o significado desta proposição: os mutakálemim pensam que
Deus, ao criar uma substância, cria simultaneamente toda sorte de aci­
de ntes conforme a Sua vontade; portanto, é inadmissível atribuir a Ele
a capacidade de criar uma substância sem acidentes . A característica, e
significado, do acidente é que este não perdura nem se mantêm por dois
intervalos de tempo - vale dizer: dois instantes. Assim que este aci­
dente é criado, não se mantém e desaparece; emseguida, Deus cria outro
da mesma espécie, que também desaparece : Ele , então, cria um terceiro
da mesma espécie e assim por diante, enquanto for de Sua vontade re­
novar este acidente. Quando Deus desejar criar uma espécie diferente
de acidente para esta substância, Ele a criará; se desistir da criação e não
produzir outro acide nte, esta substância deixará de exist i r . Esta é a opi­
nião de alguns mutakálemim- a maioria deles - qual seja, a teoria da
criação dos acidentes. Entretanto, alguns da seita Mutazila afirmam que
determinados acidentes duram uma certa medida e outros não perdu­
ram por dois intervalos de tempo. Entretanto, não oferecem uma nor-
O CUIA DOS PERPLEXOS 303

ma fixa que lhes permita dizer que uma dada espécie de acidente per­
dura e outra não.
Eles foram induzidos a esta opinião por não admitirem que exista
uma natureza geral de cujas propriedades a substância deriva tais como
seus acidentes, pois preferem dizer que Deus criou estes acidentes ins­
tantaneamente, sem a intervenção da natureza ou de outra coisa qual­
quer; dito isto, para eles é obrigatório que um acidente seja instantâ­
neo. Caso se afirme que [um acidente] dura uma certa medida e depois
desaparece, uma pergunta torna-se obrigatória: o que causou este desa­
parecimento? E se se afirma que Deus o fez desaparecer conforme a Sua
vontade, para eles isto é inadmissível, pois o agente não-produz o desa­
parecimento: supondo que a ausência precisasse de um agente, quando
este deixasse de atuar seu efeito também desapareceria (por um lado,
isto é verdade). Isto os induziu a defender que não existe uma lei natu­
ral necessária à existência ou inexistência de algo, e passaram a apoiar a
teoria da criação sucessiva de acidentes. Segundo alguns deles, se a von­
tade de Deus é que uma substância desapareça, Ele não criará um aci­
dente nela - então esta desaparecerá. Outros consideram que, se a
vontade de Deus é destruir o universo, Ele criará o acidente do exter­
mínio -sem uma substância como base - na existência do universo.
Segundo esta proposição, uma roupa, que imaginamos tê-la tingi­
do de vermelho, para eles, não fomos nós que a tingimos, de forma al­
guma; Deus fez aparecer esta cor na roupaao colocá-la em contato com
o pigmento vermelho. Embora imaginemos que esta cor pertença à
roupa, P.les :,fi rmam que este não é o caso, mais do que isso: dizem ain­
da queDeus ditou a regra de que não se cria uma cor escura, por exem­
plo, a não ser que a roupa seja posta em contato com anil; esta tonali­
dade que Ele cria quando se coloca o pigmento escuro em contato com
a roupa a ser tingida não perdura, mas desaparece após um determina­
do tempo e é criado outropigmento idêntico. Deus também teria dita­
do a regra de que, após o desaparecimento do tom escuro, não se ria
criado o avermelhado ou o esverdeado, mas somente outra tonalidade
escura. Segundo este princípio, aquilo que sabemos hoje sobre deter­
minadas coisas é obrigatoriamente diferente do que sabíamos ontem,
pois o que existia desapareceu e foram criadas novas caraterístfcas idên­
ticas. Eles afirmam que isto é assim porque o conhecimento é um aci­
dente. Do mesmo modo, quem acredita que a alma é um acidente deve
admitir obrigatoriamente, por exemplo, que, em cada ser anímic9, sur·
gem cem mil almas a cada momento; afmal, você sabe que, para eles, o
tempo é composto por instantes indivisíveis.
304 MAJMÔNIDES

Ainda segundo esta proposição , quando um indivíduo impulsiona


uma pena de escrever , não é ele quem a move, mas esta impulsão im­
posta à pena é um acidente criado nela por Deus; do mesmo modo, o
movimento da mão que , supomos , impulsiona a pena, é um acidente
criado por Deus na mão motora . Na verdade, Deus teria ditado a n o r ­
ma de que o movimento d a mão s e liga a o da pena sem que a primeira
absolutamente atue ou cause o movimento da última; isto porque, se­
gundo eles, o acidente não transita de uma substância para outra. Os
mutakáfemimsão unânimes em afirmar que, quando esta roupa branca
foi mergulhada numa vasilha com tinta anil e tingida por esta, não foi
o anil que a escureceu, uma vez que o escurecimento é um acidente da
substância do anil e não passa de uma substância para outra; tampou­
co existe uma substância que exerça qualquer ação . porque , na verdade.
o agente definitivo é Deus: foi Ele quem propiciou o escurecimento no
corpo da roupa quando a colocou em contato com o anil, pois assim
dita a regra. Em suma, não se pode dizer em absoluto que " isto é a cau­
sa daquilo" - eis a opinião da maioria dos mutakáfemim; os poucos
entre eles que defenderam a causalidade foram repreendidos.
· Quanto às ações humanas, os mutakáfemim estão divididos. A opi­
nião da maioria - e de boa parte da seita Asharia - é a de que, para
movimentar aquela pena de escrever, Deus criou quatro acidentes, sen­
do que nenhum deles é a causa de outro; são apenas coexistentes . O
primeiro acidente é a minha vontade de movimentar a pena; o segundo
acidente é a minha capacidade de movimentá-la; o terr:eíro acidente é o
movimento do corpo humano, isto é, da mão; e o quarto acidente é o
movimento da pena. Eles pensam que, quando uma pessoa deseja algo
e a realiza conforme imaginava, já havia sido criada nela a vontade, a
capacidade de realizar o que desejava e a ação (porque uma pessoa não
atua devido à capacidade nela criada, pois esta não tem poder sobre a
ação). Por outro lado, os da seita Mutazilaafirmam que uma pessoa age
devido à capacidade nela criada e alguns da seita Asharia declaram que
a capacidade criada está conectada à ação e exerce alguma influência
sobre esta, mas a maioria deles reprova esta opinião . É unânime, entre
eles, que a vontade criada,e a capacidade e movimento criados, segun­
do alguns, são todos acidentes que não perduram. De fato, para aquela
pena de escrever, Deus cria continuamente um impulso após o outro
enquanto esta estiver em movimento; e a pena não terá descanso e n ­
quanto não lhe for criado, sucessivamente, um repouso após o outro.
Portanto , em todos estes momentos - vale dizer: nos períodos de
tempo indivisíveis - Deus criaria um acidente para cada um dos seres
O CUIA DOS PERPLEXOS 305

existentes, dos anjos à esfera [celeste] e outros, eternamente e a todo


instante. Os mutakálemim afirmam que esta é a verdadeira crença de
que Deus é sempre atuante; na opinião deles, quem não acredita que
este é o modo pelo qual Deus atua, nega que Ele é acausaeficiente. Sobre
crenças como esta se ouvirá de mim e de toda pessoa sensata: "Zombareis
dele como se zomba de um homem qualquer?" Üó 13:9), pois este é o
verdadeiro sentido desta zombaria.
Sétimaproposição: a norma para as propriedades e a perda destas é a
mesma; ambos são acidentes reais que necessitam de um agente.
Os mutakálemim acreditam que as ausências das propriedades fazem
parte do corpo e estão acrescidas à sua substãncia; também são aciden­
tes e, portanto, são recriadas constantemente: sempre que uma coisa
desaparece, outra é criada. A explicação para isto é que eles não perce•
bem que o repouso é a ausência de movimento, a morte é a ausência de
vida, a cegueira é a ausência de visão e que tudo o que se assemelha a
isto é a ausência de uma dada propriedade. Segundo eles, a norma para
o movimento e o repouso equivale à existente para o calore o frio, por­
que assim como estes são dois acidentes existentes em dois objetos, um
quente e outro frio, do mesmo modo o movimento seria um acidente
criado no ser que se move e o repouso seria um acidente criado por Deus
no ser em repouso. Da mesma forma, ambos seriam instantãneos, con•
forme a sexca proposição. Portanto, para eles, um corpo está em estado
de repouso porque Deus criou o descanso em cada uma de suas partí­
culas e, sempre que um descanso desaparece, é criado outro durante todo
o tempo em que o objeto permanece em estado de tP.po11so. Para eles,
isto é análogo à sabedoria e à ignorância, pois esta última é considerada
como um acidente que desaparece e é recriado continuamente, enquanto
persistir a ignorãncia de um tolo a respeito de algo. O mesmo valeria
para a vida e a morte, ambas consideradas como acidentes. Eles afir­
mam explicitamente que a vida é destruída e recriada constantemente
ao longo de todos os dias em que é vivida; quando Deus desejar a mor­
te desta pessoa, Ele criará o acidente da morte após o desaparecimento
do acidente da vida, que não perdura por dois instantes. De fato, todos
eles afirmam isto claramente. Em decorrência desta hipótese, necessa­
riamente o acidente da morte, criado por Deus, também desaparece a
cada instante; então Ele cria outra morte - caso contrário, esta não
permaneceria - e assim sucessivamente, assim como ocorre com a vida.
Então, pasmo, eu pergunto: até quando Deus criará o acidente da morte
no morto: durante os dias em que a sua forma ainda exista ou por to­
dos os dias em que se conserve cada um dos seus átomos? Porque o
306 MAIMON!DES

acidente da morte criado por Deus deve ser criado, segundo eles, em
cada um destes átomos. Nós encontramos dentes de pessoas mortas que
existem há milhares de anos, o que seria uma evidência de que Deus
não os fez desaparecer e, em decorrência disto, recriaria o acidente da
morte neles ao longo de todos estes milhares de anos -sempre que uma
morte desaparece , outra é criada. Esta é a opinião da maioria dos mu­
takálemim.
Alguns da seita Mutazi la afirmam que determinadas ausências de
propriedades são irreais; eles admitem que a fadiga é a ausência de força
e a ignorãncia 'é a ausência de conhecimento. Todavia, isto não se es·
tende a toda ausência: eles não dirão que a escuridão é a ausência de luz
nem que o repouso é a ausência de movimento, mas que algumas são
reais e outras são ausências de propriedades, conforme for mais conve­
niente à crença deles - assim como fizeram com relação à perman ê n ­
cia dos acidentes: alguns duram por um tempo maior e outros não
perduram por dois instantes. A única intenção deles é condicionar a
realidade às suas opiniões e crenças.
Oitava proposição: não existe um único ser sem substãncia e aciden•
te . A forma física também é um acidente.
Os mutakálemim afirmam que existe apenas substância e acidente e
que as formas físicas também sâo acidentes. A explicação para esta pro•
posição é que, para eles, todos os corpos são compostos de átomos idên­
ticos (conforme explicamos a respeito da primeiraproposição) e, na v e r ­
dade, a diferença entre uns e outros ocorre tão somente devido aos aci­
dentes. Assim, para eles a condição animal e a humana, a percepção e a
racionalidade são, todas elas, acidentes semelhantes à escuridão e à cla­
ridade, à amargura e à doçura - de modo que um indivíduo de uma
espécie difere de um de outra espécie da mesma forma que dois indiví­
duos da mesma espécie podem diferir. Disto também se infere que as
substâncias do céu , dos anjos e inclusive óo Trono de Glória (por com­
paração), bem como as substâncias de qualquer verme da terra ou ve­
getal que se escolha sâo todas idênticas; de fato, só diferem devido aos
acidentes e são todas compostas de átomos.
Nona proposição: nenhum acidente serve de base para outro.
Os mutakálemim afirmam que nenhum acidente serve de base para
os demais. Portanto, nâo se pode dizer que um seja sustentado por ou­
tro e este, por sua vez, por uma substância; na verdade, todos os aci­
dentes estão diretamente apoiados na substância. Eles rejeitam [a rela­
ção indireta entre acidente e substância] porque, neste caso, seria ne­
cessário que, para que o acidente final pudesse existir, ele fosse antecedido
O CUL� DOS PERPLEXOS 307

por outro inicial. Os mutakálemim se recusam a aceitar isso para deter­


minados acid entes e gostariam de encontrar, para estes, a possibilidade
de existirem em uma substância qualquer sem que esta estivesse unida
[previamente] a outro acidente - em conformidade com a crença de­
les de que todos os acidentes se unem [diretamente] à substância. Ou­
tro dos seus argumentos: para que um substrato sirva de base para ou­
tro, este' precisa permanecer estável por um determinado período; mas
se, para eles, o acidente não perdura por dois intervalos de tempo -
vale dizer: dois instantes -, como é possível, segundo este fundamen­
to, que um acidente possa servir de base para outro?
Décima proposição: uma forma possível não pode ser provada ape­
nas por estar em conformidade com as leis da natureza.
Eis a teoria da admissibilidade racionalmencionada pelos mutaká­
Jemim, espinha dorsal da doutrina do Kalám! Compreenda o seu signi­
ficado. Eles entendem que tudo o que pode ser imaginado é admissível
pelo intelecto, por exemplo: o globo terrestre tomar-se esferacircundante
e vice-versa é algo racionalmente possível; se o globo d e fogo se loco­
movesse em direção ao centro o globo terrestre, em direção à esfera
circundante, não haveria lugar mais adequado do que outro para uma
e

e outra substância, segundo a admissibilidade racional. Eles afirmam


que tudo o que existe entre os seres visíveis poderia ser maior ou menor
diferente em forma localização espacial do que realmente é, como
por exemplo: um ser humano do tamanho de uma grande montanha,
e e

com muitas cabeças e capaz de voar: um elefante do tamanho de um


piolho e vice- versa - os m11t;,k:i/emim afirmam que tudo isso é admis­
sível pelo intelecto, o que se estende para o universo como um todo. A
respeito de qualquer coisa que supõem pertencer a uma determinada
espécie e sobre a qual afirmam: "Se uma coisa pode ser de uma forma e
também de outra, a primeira não é mais provável do que a última•, eles
deiXam de verificar se a realidade equivale às suas hipóteses. Afirmam
que, em um ser com formas conhecidas, dimensões definidas e caracte­
rísticas obrigatórias, estas propriedades não se modificam nem são
substituídas porque estão habituadas há muito tempo a ser assim -
assim como o costume do rei de somente cruzar montad o as vias pú­
blicas do país.jamais sendo visto de outra maneira: contudo, o intelec­
to não deixa de considerar que o rei pode caminhar a pé pelo país, pois
não há dúvida de que isto é possível e racionalmente admissível. Eles
ainda afirmam que a terra se mover em direção ao ponto central e as
chamas para o alto, ou o fogo aquecer e a água resfriar são fatores de­
correntes de hábito. Todavia, o intelecto não deixa de considerar que
308 MAIMÔNIDES

isto pode ser modificado, de modo que o fogo possa resfriar, mover-se
para baixo e ainda permanecer sendo fogo; e a água possa aquecer, mover­
se para o alto eainda permanecer sendo água. É sobreisto que está fun­
damentada toda esta teoria.
Por outro lado, todos os mutakálemim concordam que a reunião
simultânea de dois opostos em uma mesma substância é absurda, im­
possível e inadmissível pelo intelecto; também reconhecem que não há
como a substância existir sem acidentes (segundo alguns deles, o inver­
so também é racionalmente inadmissível). Eles ainda afirmam ser im­
possível uma substância converter-se em acidente e vice-versa, tampouco
uma matéria penetrar em outra, admitindo que estas coisas são rejeita­
das pela razão.
De fato, tudo o que os eles indicam como cois;is ;ih�oh,ramente in­
concebíveis, bem como aquilo que consideram passível de ser represen­
tado, éverdadeiro. Entretanto, os filósofos argumentam: "Se vocês con­
sideram uma coisa impossível por ser inimaginável e outra possível
porque pode ser imaginada, o que é possível para vocês o é pela imagi­
nação e não pelo intelecto. Portanto, com esta proposição vocês pro­
vam o necessário, o possível e o impossível, ora pela imaginação - e
não pelo intelecto - ora pelo princípio do senso comum", conforme
destacou Abu Nasr326 ao referir-se àquilo que os mutakálemim chamam
de "intelecto".
Portanto, para os mutakálemim aquilo que pode ser imaginado é
possível - correspondendo ou não à realidade - e o que é inimaginável
deve ser desconsiderado. Esta proposição só pode ser considerada como
verdadeira devido às nove proposições precedentes, e foi em seu favor
que se fez necessário citá-las anteriormente. Para que você compreenda
a razão disto, descreverei e apresentarei o que está por trás destes prin­
cípios, na forma de uma discussão ocorrida entre um mutakálimee um
filósofo.
O mutakálime perguntou ao filósófo: "Por que percebemos a subs­
tância do ferro como decididamente dura, forte e escura, enquanto a
da manteiga é, com certeza, macia e clara?"

326 Abu Nasr AI Farabi (870-950): considerado o maior filósofo muçulmano


antes de Avicena (980-1037). Sua maior contribuição está na lógica, na
filosofia e na sociologia. Tentou conciliar o platonismo e aristotelismo com
a teologia. Sua opinião era de que a filosofia e o Islã estão em harmonia
(NT).
O CUIA DOS PERPLEXOS 309

O ftlósofo lhe respondeu assim: •Porque toda substância física apre­


senta duas espécies de acidentes: os relativos à sua matéria, como a saú­
de e a doença de um indivíduo; e aqueles que dizem respeito à sua for­
ma, como o susto e o riso de uma pessoa. As matérias das substâncias
compostasdiferem muito em sua composição final, de acordo com suas
formas peculiares; assim, a substância do ferro é diferente daquela da
manteiga, ambas derivadas dos acidentes que você pode perceber: a
dureza deste e a maciez daquela, ambos derivados da diferença entre suas
formas; por sua vez, a condição mais escura ou a mais clara são aciden­
tes derivados da diferença entre suas composições materiais finais".
O mutakálime refutou Inteiramente esta resposta, por meio das se­
guintes proposições e deste modo: Eis o que ele disse: "Diferente do que
você pensa, não há qualquer forma que estruture uma substância de
modo a estabelecer substâncias diferentes, mas tudo ocorre devido aos
acidentes, conforme expusemos pela doutrina do Kalám, na oitavapro­
posição". Em seguida afirmou: "Não há diferença entre as substâncias
do ferro e da manteiga porque tudo é composto de átomos idênticos•.
conforme as suas opiniões expostas na primeira proposição, da qual de­
rivam necessariamente a segunda e a terceira proposição, comoJá expli­
camos (assim como a décima segunda proposição é necessária para se
estabelecer a teoria dos átomos). Assim, também, é inadmisslvel para
um mutakálime que alguns acidentes caracterizem uma determinada
substância de modo que esta se torne pronta e preparada par.a receber
acidentes secundários, pois, para ele, um acidente não pode servir de
h:1S(' para outro, conforme a noSS3 explicnção da nonaproposiç4o; tam·
pouco um acidente é durável, de acordo com a explicação sobre a sexca
proposição. Quando o mutakálime convenceu-se de tudo o que deseja­
va conforme suas próprias proposições, concluiu que as substâncias da
manteiga e do ferro são compostas de átomos idênticos e a relação e n ­
tre cada um dos seus átomos e cada acidente é a mesma. Uma substân­
cia não é mais adequada a um acidente do que outro, assim como não
é mais conveniente a um átomo movimentar- s e a repousar, tampouco
uma substância é mais adequada do que outra para receber o acidente
da vida. da razão ou da percepção: uma quantidade maior ou menor de
átomos em nada acrescenta, pois o acidente se aplica a cada um dos
átomos, conforme explicamos a respeito da quinta proposição da dou­
trina em questão. Segundo todas estas proposições, um ser humano
obrigatoriamente não tem como ser mais inteligente do que um mor­
cego. Assim, fica necessariamente estabelecida a teoria da admissibili­
dade racional, apresentada nesta [décima] proposição. Os mutakdlemím
3I O MAIMÔNIDES

fizeram todos os esforços para demonstrá-la, pois é o seu melhor argu­


mento a favor do estabelecimento de tudo aquilo que se desejar, como
será explicado.

Observação

Saiba, você que é uma pessoa interessada neste Tratado, que conhe­
ce a alma e suas capacidades e compreende cada coisa conforme o seu
contexto: você entende que a maioria dos seres vivos possui imagi n a ­
ção (de fato, todos os seres vivos completos - vale dizer: que possuem
coração - obviamente têm imaginação) e o ser humano não se dife­
rencia por possuir esta capacidade. A ação da imaginação não é como a
do intelecto, mas o seu oposto: o intelecto analisa as coisas complexas:
diferencia suas partes; interpreta-as e as descreve em suas realidades e
causas; de um objeto infere muitos conceitos, diferenciando uns dos
outros, assim como a imaginação diferencia dois indivíduos humanos
reais.Por meio d o intelecto, distingue-se um conceito geral de outro,
particular - e uma prova só é demonstrada no ãmbito d o geral. Pelo
intelecto também se discerne entre o aspecto essencial e o acidental. A
imaginação não possui qualquer uma destas ações: só percebe o parti·
cular inserido no seu contexto geral conforme a percepção dos senti·
dos; ou combina coisas que se encontram dispersas na realidade, unin­
do umas às outras e compondo um corpo ou uma das capacidades
corpóreas. Por exemplo: alguém pode imaginar um homem com cabe­
ça de cavalo, asas e outras coisas - isto se chama ficção e invenção, sem
qualquer correspondência com a realidade. A percepção imaginativa
tampouco é capaz de escapar à matéria e abstrair urna forma sequer; logo,
nada se prova por intermédio da imaginação.
Então preste atenção àquilo que podemos extrair das ciências preli­
minares e como é importante o que delas recebemos, no que di.2 respei­
to às proposições.
Saiba que há certas coisas que uma pessoa é incapaz de descrever
quando as examina por intermédio da imaginação, considera-as tão
inconcebíveis quanto a reunião de dois opostos. Em seguida estabelece
uma· prova demonstrativa disto e deduz a sua existência. Por ·exemplo:
imagine um grande globo, da dimensão que quiser, mesmo que seja do
tamanho da esfera circundante; em seguida, suponha que nele há um
eixo que passa pelo seu ponto central; então, imagine dois indivíduos
parados em cada uma das duas extremidades do eixo, de modo que seus
pés estejam alinhados com o eixo - podendo estar ou não no plano
O CUIA DOS PERPLEXOS 3I I

do horizonte. Se estiverem, amboscairãojuntos; caso contrário, umdeles


cairá -e será o que está na extremidade inferior, permanecendo o outro.
Assim é a representação da imaginação. Contudo.já foi demonstrado
que a Terra é esférica, habitada nas duas extremidades do eixo e cada
habitante, de ambos os lados, tem a sua cabeça para o céu e seus pés na
direção dos pés do seu semelhante, que está na outra ponta do eixo -
e é absolutamente impossível e inimaginável que algum deles caía, por­
que nenhum está em cima ou embaixo. mas cada um está em cima ou
embaixo em relação ao outro. Do mesmo modo, foi demonstrado no
Livro 2 do Tratado das Seções Cônicasm que duas linhas que, em prin­
cípio, encontram-se a uma certa distância uma da outra, à medida que
avançam, a distância entre elas diminui e uma se aproXima da outra;
entretanto, é impossível que venham a se encontrar, mesmo que avan­
cem infinitamente e apesar de se aproximarem enquanto avançam. Isto
é tido como inconcebível no ãmbito da imaginação. Quanto a estasduas
linhas, de acordo com o que foi exposto lá (no livro supracitado). uma
é reta e a outra, curva. Eis quejá foi explicado o teor daquilo que, por­
que escapa ao alcance da imaginação, é inconcebível e inimaginável;
também está demonstrado que certas coisas, consideradas pertinentes
à imaginação, são inadmissíveis - por exemplo: Deus como corpo ou
força corpórea - pois a imaginação só pode conceber algo corpóreo
ou inerente ao corpo.
Portanto, está claro que existe alguma outra coisa - que não a ima­
ginação - pela qual pode-se examinar o adequado, o possível e o
inadmissível. Como é boa esta especulação e quão proveitosa é para
quem quer ser resgatado desta escuridão, vale dizer: do estudo através
da imaginação!
Não pense que os mutalcálemimignoram tudo isso, pois estão cien­
tes até certo ponto: àquilo que é imaginável porém inadmissível, como
a corporeidade de Deus, eles chamam de fantasia e ficção e declaram
freqüentemente que tais fantasias são falácias. Por esta razão, precisa­
ram das nove proposições que mencionamos, a fim de demonstrar a
décima proposição, a qual, segundo eles, admite a possibilidade das coi·
sas imagináveis, em decorrência da semelhança entre os átomos e da
equivalência entre os acidentes, conforme explicamos.

327 O Tratado das $,pões Cônicas, uma das principais obras cientificas da Anti·
güidade, tomou o matemático grego Apolônio de Perga (262-190 AEC) a
mais eminente figura da ciência grega no campo da geometria pura (NT).
312 MAIMÔNIOES

Você que é um estudioso, observe e perceba que daqui surge uma


linha de investigação muito profunda, qual seja: quanto a algumas re­
presentações, um dirá que são racionais e outro, que são imaginativas.
Nós desejamos encontrar um critério que distinga uma da outra. Quan­
do o filósofo afirma: "Minha testemunha é a realidade", como de fato
declarou, •e nela examinarei o adequado, o possível e o impossível", o
religioso [mutakálíme) responde: "Aí está a divergência! Eu afirmo que
esta realidade existente foi feita pela Vontade (divina) e não é obrigató­
ria: se foi criada de uma maneira, poderia ter sido de outra, a menos
que, como você defende, a representação racional defina que esta últi­
ma seja inadmissível".
Tenho algumas coisas a dizer ainda a respeito desta teoria da admis­
sibilidade, os quais você ouvirá em outras partes deste Tratado, porque
este não é um assunto que uma pessoa deva se apressar em rejeitá-lo
instantaneamente.

Décima primeiraproposição: admitido o absurdo do infinito, não há


diferença entre um estado de atividade, potência ou acidente, ou seja,
não importa se há coisas infinitas e coexistentes ou se uma passa a exis­
tir depois que outra desaparece (o infinito por acidente). Tudo isso é
considerado absurdo.
Os mutakálemim afirmam que a existência do infinito é inadmissí­
vel sob qualquer circunstância. A explicação para isto é que já ficou
demonstrada a impossibilidade de existência de u m corpo de magnitu­
de infinita ou de um número infinito de corpos coexistentes, mesmo
que todos sejam finitos. A existência infinita de causas também é
inadmissível, vale dizer: que uma coisa seja a causa de outra, que, por
sua vez, seja a causa de outra, e uma causa também tenha algo por cau·
sa e assim a d inlinítum, de modo que exista uma série infinita de fato­
res em atividade, concretos ou abstratos, em que uns sejam as causas de
outros. Já foi demonstrado que, na ordem natural propriamente dita, o
infinito é impossível.
Quanto à existência do infinito em estado de potência ou de acidente,
já foi demonstrada a divisibilidade ad inlinítum de um um corpo em
estado de potência e do tempo. Outros casos ainda são tema de inves­
tigação, como a existência de algo infinito por sucessão, conhecido por
infinitopor acidente, ou seja, quando uma coisa surge após o desapare­
cimento de outra, que surgira após o desaparecimento de uma terceira
e assim infinitamente. Este é um tema que requer intensa investigação:
aquele que se vangloria de haver demonstrado a eternidade do universo
O CUIA DOS PERPLEXOS 313

afirma que o tempo é infinito e não considera isto um absurdo, pois,


para ele, o tempo é formado por uma sucessão infinita em que um lns·
tante surge imediatamente após o anterior desaparecer. Ele tampouco
considera absurda a sucessão infinita de acidentes sobre a matéria, uma
vez que estes não seriam coexistentes, mas viriam em seqüência - e a
impossibilidade disto não foi demonstrada.
Contudo, para os mucakálemim não faz diferença se: (1) existe um
corpo infinito; (2) se o corpo e o tempo são diVisfveis adinflnicum; (3)
tampouco se existe um número infinito de coisas coexistentes - como
os seres humanos da atualidade; (4) ou se as coisas passam a existir em
urna série lnfuúta, ainda que desapareçam uma a uma - como dizer
que Rubem é filho de Jacob, que é filho de Isaac, que é filho de Abrahão
- e assim ad infinitum. Para eles tudo isso é absurdo do primeiro ao
último caso, ou seja, estas quatro categorias de infinito se equivalem.
Quanto à última categoria, alguns deles se esforçaram para demonstrá­
la, isto é, para expor a sua impossibilidade por meio de um método cuja
explicação você conhecerá neste Tratado;328 outros dizem que esta im­
possibilidade é auto-evidente e de compreensão imediata, sua demons­
tração é, portanto, desnecessária. Todavia, se estivesse demonstrado que
a hipótese da existência de uma sucessão de coisas Infinitas é aburda,
ainda que o existente no presente momento fosse finito, a demonstra­
ção do absurdo da eternidade do universo também seria de compreen­
são Imediata e qualquer outra proposição seria desnecessária. Entretanto,
aqui não é o lugar de analisar este assunto.
Décima segundaproposiçã/J. os sentidos corrompem e muitas das sw\s
percepções são vagas. Por esta razão, não se deve depreender deles qual­
quer juízo de valor ou princípios demonstrativos.
Os sentidos nem sempre são confiáveis, segundo os mutakálemim,
que suspeitam deles em dois aspectos: primeiro porque a percepção de
muitos objetos escapa aos sentidos ora devido à pequenez do corpo
perceptível - como citam a respeito dos átomos e daquilo que se d e ­
preende destes - ora devido à distância da pessoa que deseja percebê­
los, como, por exemplo, a Incapacidade de alguém ter uma percepção
visual, auditiva ou olfativa a uma distância de muitas milhas ou de
perceber o movimento dos céus. O segundo aspecto é que os sentidos
oferecem uma percepção distorcida. Assim, urna pessoa apreende como
pequeno um grande objeto visto à distãncia e outro, pequeno, parece-

328 No final do capitulo 74.


314 MAIMÔNIOES

lhe grande quando [imerso) naágua; um objeto reto aparentaser curvo


quando parcialmente imerso naágua; uma pessoa portadorade icterí­
cia (ierac6n) percebe as coisas amareladas; quando sualínguaestá em­
bebida em fel-da-terra (mará adumá),329 as coisas doces lhe sabem
amargas - e hã muitas coisas assim, em decorrênciadas quais os mu­
takálemim afirmaram que não se pode depreender, dos sentidos, prin­
cípios demonstrativos.
Não imagine que eles concordavam com esta proposição à toa-
como amaioriados seus membros mais recentes consideradesnecessá­
rio o esforço de seus antecessores e m apoiar ateoriado átomo. Tudo o
que expusemos arespeito de suas doutrinas é indispensável, e se uma
destas proposições for rejeitada, o propósito do conjunto ficaanulado.
D,, fato, P..Sta ,·, 1rima propnsiçiin"' int.P.iramP.ntP. nP.cP.ssáriaporque . uma
vez que percebemos, pelos sentidos, coisas que contradizem as suas su­
posições, os mut akálemim aconselham a não se dar crédito aos senti­
dos, e se guiam pelo testemunho do intelecto parao estabelecimento
de umademonstração . Assim, quando falam que o movimento contí­
nuo contém momentos de descanso, que amó de engenho se estilhaça
ao girar e que abrancura de umaroupadesaparece num momento, sendo
substituídapor outra brancura - estas coisas são contrárias ao que se
vê. Do mesmo modo, há muitas coisas inferidas da existênciado v á ­
cuo, todas em contradição à percepção sensorial. Eis aresposta comum
deles: "É algo que escapaaos sentidos", quando é possível responder
assim; em outros casos, replicarão que se tratade um entre o conjunto
de equívocos dos sentidos.
Você sabe que todas estas são teorias antigas, das quais os sofistas se
orgulhavam; afirma-se que é deles o princípio - segundo Galeno, em
suaobrasobre as forças naturais - de que os sentidos enganam, e rela­
tam coisas que você já conhece.
Após ter apresentado estas proposições, passo aexplicar os métodos
dos mut akálemim acercadaquelas quatro questões.330

329 Erva de flores vermelhasque aparece na primavera cujo chá, usado para fazer
baixar a febre, é muito amargo (NT).
330 Existência, unicidade e incorporeidade de Deus; e a ·criação do universo
(NT).
CAPITULO 74
SETE MÉTODOS DOS MUTAKÁLEMIMPARA PROVAR A CRIAÇÃO DO
UNIVERSO E A EXIsrtNCIA DE DEUS

Neste capítulo descreverei o conjunto de provas dos mutakálemim em


favor da criação do universo. Não espere que eu as relate no estilo e
extensão deles: apresentarei o propósito e o método demonstrativo de
cada uma das provas, para estabelecer a Teoria da Criação ou rejei­
tar a Teoria da Eternidade do universo, expondo resumidamente as
proposições soure as quais se apoiaram. Caso você leia suas obras
extensas e tratados famosos, absolutamente nada encontrará além
daquilo que poderá apreender das minhas palavras acerca do que
apresentaram como demonstração sobre o tema: você descobrirá
apenas argumentos mais extensos e expressões agradáveis e elegan­
tes, ora narradas por meio de rimas e estrofes poéticas, com a opção
por um estilo legível, ora por uma linguagem oculta, cuja intenção
parece ser a de assustar o leitor e atemorizar o estudioso. Você ainda
encontrará, em seus textos, temas recorrentes, problemas duvidosos
seguidos do que imaginam ser suas soluções e muitos ataques contra
quem discorda deles.
PrimeiroMétodo: alguns mutakálemím pensam que, uma �demons­
a-ada a criação deapenas uma coisa, prova-se que todo o universo foi cria­
do. Assim, ao se dizer que Rubem era uma gota de sêmen e desenvol­
veu-se até alcançar sua plenitude - sendo inadmissível que tenha se
transformado e se desenvolvido por contra própria, pois existe algo
316 MAIMÔNIDES

externo que o modifica - e uma vez explicada a obrigatoriedade de um


agente que organizou sua estrutura e o fez passar por várias etapas de
desenvolvimento, assim como ocorre com uma palmeira ou qualquer
outro ser, segundo eles, esta mesma analogia pode ser feita a para o
universo como um todo. Veja, portanto, que é nisto em que acreditam:
qualquer norma encontrada para uma substância vale necessariamente
para todas as outras.
Segundo Método: eles afirmam que uma vez demonstrada a geração
de um individuo, fica provado que o universo inteiro foi criado. Eis o ar•
gumento para isso: Rubem não existia e, de repente, passou a existir, o
que só foi possível graças a seu pai, Jacob, que, por su a vez, só foi
gerado graças a Isaac, avô do primeiro; este, por sua vez, também
foi gerado - e assim ad infiniCum. Todavia, de acordo com a dou·
trina dos mutakálemim, a existência do infinito é inadmissível, con­
forme expusemos a respeito da décima primeira proposição. Do mes·
mo mod9, se você chegar, por exemplo, ao primeiro indivíduo, que
não tem pa i - ou seja, Adão - necessariamente pergu ntará: "Do
que Adão foi gerado?" Caso se responda, por exemplo: "Do pó", é
evidente que você voltará a perguntar: "E este pó, de onde passou a
existir?", cuja resposta será, por exemplo: "Da água"; então você ques­
tionará mais uma vez: "E a água, de onde surgiu?". Segundo os mutaká­
lemim, ou você estenderá esta série de perguntas ad infinitum, o que é
absurdo, ou encontrará, na ponta da existência, algo vindo do nada
absoluto - e esta é a verdade com a qual a dúvida será sanada. Segun­
do eles, esta é a prova de que o universo se originou do nada pleno e
absoluto.
Terceiro Método: os mutakálemimafrrmam que osátomosdouniverso
devem estarnecessariamente agrupados, isolados, ou alguns ora agrupados,
ora isolados. É claro e evidente que, conforme suas próprias essências,
não se verifica que os átomos existam somente agrupados ou somente
isolados, pois se suas essências e naturezas exigissem apenas existências
separadas, jarna.is se agrupariam, assim como se suas essências e veraci­
dade impusessem somente a existência em grupos.jamais poderiam ser
isolados, o que leva a crer que a separação entre eles não é mais evidente
do que o agrupamento ou vice-versa. Portanto, alguns se agrupam,
outrosse separam e outros, ainda, mudam decondição - ora estão em
grupo e ora isolados -; isto é uma demonstração de que estes átomos
necessitam de alguém que agrupe o que deve ser agrupado e separe o
que deve ser separado. Os mutakálemimafirmam que esta é a evidência
de que o universo foi criado. Eis quejá lhe foi explicado que o autor
O CUIA DOS PERPLEXOS 317

deste método aplicou a primeira proposiçãó331 e o que desta pode ser


inferido.
Quarro Método: os mutakálemim afirmam que o universo como um
todo écomposto de substãncias e acidentese nenhuma substância está isen­
ta de um ou mais acidentes. Se todos os acidentes são criados,m logo a
substância que lhes serve de base é necessariamente criada, porque tudo
o que é inevitavelmente composto de coisas criadas só pode ser criado.
Logo, o universo inteiro é criado. E caso alguém diga: "E se a substân­
cia não é transitória e os acidentes surgem uns após o desaparecimento
dos outros ad infinitum?". eles responderão: "Se assim fosse, haveria
necessariamente um número infi.nito de coisas criadas", o que conside­
ram inadmissível. Este é tido por eles como o mais forte e melhor dos
métodos, a ponto de muitos o considerarem uma prova demonstrativa.
Para este método, os mutakálemim aceitam três proposições, cuja
obrigatoriedade não pode ser rejeitada por qualquer investigador espe­
culativo:
PRIMEIRA PROPOSIÇÃO: Oinfinitoporsucessão- ou seja, quando uma
coisa surge após o desaparecimento de outra, ad infinitum - é um
absurdo.
SECUNDA PROPOSIÇÃO: Todo acidenteétransitório. Nosso oponente, que
defende a Teoria da Eternidade do universo, objetará citando um aci­
dente em particular -o movimento circular - pois Aristótelessusten­
ta que este é eterno; logo, a substância que se movimenta desta maneira
também é etema.333 Não vemos utilidade em defender que todos os
acidentes são transitórios. uma vez quP. nosso oponente concorda
conosco neste caso, pois dirá que cada acidente surge após o desapare­
cimento do anterior em um movimento continuo de rotação. Quanto
a este acidente em particular, o movimento circular - vale dizer: o
movimento da esfera [celeste) - ele afirmará que é eterno e não per­
tence a qualquer espécie de acldentes transitórios. Eis que é necessário
que este acidente particular seja investigado e então se esclarecerá que
também é transitório.
TERCEIRA PROPOSIÇÃO ACEITA PELO AUTOR DESTE Mll'rooo: não existe
ol?jeto perceptívelpelossentidos - vale diZer: o próprioátomo eaquilo que
se acredita que Sl!iam seusacidentes - sem substância e acidente. De fato,

331 Primeira proposlçãa estabelecer a substãncia simples (átomo].


332 Transitórios, Isto é, que nascem e perecem (NT).
333 Aristóteles, Metafisica, Livro 12. capítulo 9.
318 MAIMÔNIDES

se um objeto é composto de matéria e forma, tal como demonstrado


por nosso oponente, faz-se necessário provar que a matéria e forma ori­
ginais são transitória s . E a ssim estará demonstrada a Teoria da Criação
do universo.
Quinto método: trata-se daTeoria da Determinação, muitíssimo cara
aos mutakálemim e cujo tema remonta àquilo que já lhe expus acerca
da décima proposição: 334 ao direcionar o seu pensamento para o próprio
universo o u para qualquer uma das suas partes, o mutakálime afirma
que este pode ser tal como é segundo sua propriedade e dimensão, com
os acidentes existentes nele, no seu tempo e espaço próprios. Contudo,
também poderia ser maior ou menor, com propriedades ou acidentes
diferentes, ter surgido mais cedo ou mais tarde ou em espaços diferen­
tes. Assim sendo. sua determinação em uma dada forma, dimensão ,
espaço, acidente e tempo - em meio a todas as variações possíveis -
é uma prova de que alguém determinou que esta fosse a escolhida entre
outras possibilidades. Portanto, o universo tal como é e todas as suas
partes exige um SerDeterminante- esta é a prova de que foi criado -
e não importa se você classifica como Ser Determinante, Agente, Cria­
dor, que produz, origina ou projeta: todos estes apontam para o me smo
significado .
Os mutakálemim acrescentaram muitos itens a este método , gerais e
particulares, e chegaram a afirmar: •A terra estar sob as águas não é algo
mais provável do que estar acima elas - e quem determinou o seu l u ­
gar? Tampouco o sol ser redondo é mais provável do que ser quadrado
ou triangular, pois a relação de todos os atributos com as substâncias
que os possuem é a mesma.Assim sendo, quem determinou o sol com
este atributo?"; e assim examinam as particularidades de todo o unive r ­
so, de modo que, ao observarem flores de cores diferentes, ficam mara­
vilhados e, para eles, isto reforça aquela prova. Eles comentam: "Eis que
há uma só terra e uma só água; por que então esta flor é verde e aquela,
vermelha? Isto só pode ser assim devido a um Ser Determinante - e
este é Deus". Portanto, o universo necessita de alguém que o determine
como um todo e a todas as suas partes , em cada uma de suas particula­
ridades .
Tudo isso decorre necessariamente da aceitação da décima pro­
posição. Cabe de s tacar que há, entre os que defendem a Teoria da

334 Décima proposição: uma forma possível não pode ser provada apenas por
estar em conformidade com as leís da natureza.
O CUJA DOS PERPLEXOS 319

Eternidadedo universo, alguns que concordam conosco quanto àTeoria


da Determinação, como será explicado.335 Em_ suma, para mim, este é
o melhor método e tenho uma opinião sobre ele que você logo conhe­
cerá_336
Sexto método: Um mutakálime recente imaginou ter descoberto um
método excelente, melhor do que qualquer outro precedente, a saber: a
preferêncla da existência à inexistência. Afirmou: "Quanto ao universo,
qualquer um sabe que sua existência é possível, porque, se fosse necessá­
ria, o universo seria Deus". Todavia, nós debatemos com quem apóia a
existência de Deusjuntamente com a eternidade do universo: possível
significa poder ou não existir, ou seja, a existência não é mais provável
do que a inexistência. Portanto, o fato de uma existência possível real­
mente existir - mesmo com a igualdade de possibilidades para a exis­
tência e a inexistência - é uma prova de que alguém proferiu a existên­
cia à inexistência. Este método é bastante convincente; todavia, é um
dositens do método precedente, da Teoria da Determinação, exceto pela
substituição do termo "determinação" por "preferência" e pela aplica­
ção deste último à própria essência do ser, em vez de aos seus atributos.
Ele quis nos enganar ou equivocou- s e quanto à teoria de que "a exis­
tência do universo é possível", uma vez que o nosso oponente, aquele
que acredita na eternidade do universo, aplica o termo "possível" quando
diz: "O universo é de existência possível" - mas não no mesmo senti­
do aplicado pelo mutakálime, como explicaremos.337 Além disso, a teoria
de que o universo necessita de um ser que prefere sua existência à sua
inexistência é demasiado duvidosa, pois a proferência e a determinação
na verdade se aplicariam a um ente capaz de receber um ou outro dos
contrários ou diferentes, de modo que se possa afirma r: "O fato de ter­
mos encontrado esta propriedade e não outra demonstra que há um
agente com um propósito". É como se você dissesse: "Este cobre é tão
apropriado para receber a forma de uma çhaleira quanto a de um can­
delabro", e quando encontramos um candelabro ou uma chaleira, sa­
bemos necessariamente que um agente determinante, com um certo
propósito, escolheu uma das duas possibilidades, pois estava claro que
o cobre existia e as duas possibilidades relacionadas a ele eram inexis ­
tentes a ntes de feita a escolha. Por outro lado, quanto ao ente sobre o

335 Parte 2, capítulo 2 l.


33 6 Parte 2, capítulo 19.
337 Parte 2. capítulo 19 e seguintes.
320 MAIMÔNIDES

qual há controvérsia333 - se jamais deixou ou deixará de existir ou se


passou da inexistência à existência - esta questão é absolutamente
descabida, pois nem há como perguntar: "Quem preferiu sua existên­
cia à sua inexistência?", a não ser após admitir que este passou da ine-
. xistência à existência, justamente o ponto de discórdia. Caso conside­
remos a sua existência ou inexistência algo apenas mental, acabaremos
voltando para a própria décima proposição, fundamentada nas idéias e
na imaginação, mas não nas coisas reais e na razão e, neste caso, o opo­
nente, que acredita na eternidade do universo, mostrará que podemos
supor a inexistência do universo assim como qualquer outra impossi­
bilidade imaginável. A intenção não é rejeitar as doutrinas [dos mutaká­
lemim]; apenas pretendi lhe mostrar que não é verdade que este méto•
do seja diferente dos precedentes, como eles afirmam, mas é idêntico
aos anteriores quanto à conhecida teoria da admissibilidade. 339
Sétimo método: Um mutakálime criacionista afirmou que estabele­
ceria a criação do universo fundamentado naquilo que os filósofos de­
clararam a respeito da imortalidade das almas. Ele afirmou que, se o
universo fosse eterno, então o número de pessoas que morreriam sem cessar
seria infinito; Jogo, também haveria um número infinito de almas coexis­
tentes, cuja impossibilidade - vale dizer: a coexistência de um número
infinito de coisas -já foi definitivamente demonstrada. Este é um mé­
todo incompreensível, pois explica uma coisa obscura por meio de outra
ainda mais obscura. Neste caso, realmente, cabe um ditado famoso
entre os arameus (sírios) : "Teu fiador, de um fiador necessita", como
se, para ele, a imortalidade das almas fosse algo demonstrado, em
que conhecesse de que forma estas se imortalizam e o que é a imor­
talidade, a ponto de inferir uma evidência disso. Contudo, se a sua in­
tenção era forçar uma objeção ao seu oponente - que acredita na eter­
nidade do universo, assim como na imortalidade das almas - somen­
te conseguiria isso se o füósofo admitisse que o seu ponto de vista a res­
peito da imortalidade das almas equivale à idéia que o mutakálimefor­
mou da mesma.
Contudo, alguns filósofos mais recentes resolveram este problema
com o seguinte argumento: as almas imortais não são substâncias que
ocupam espaço e posição, que impediriam suas existências infinitas.
Você deve saber que estes entes separados - que não são corpos nem

338 O universo (N'D.


339 Capítulo 73, décima proposição.
O GUIA DOS PERPLEXOS 321

uma força em um corpo, mas inteligências - não podem, de modo


algum, ser representados como uma pluralidade, a não ser que alguns
fossem a causa da existência de outros e a diferença recaísse apenas no
fato de um ser a causa e outro, o efeito. Todavia, o que perma nece de
Rubem não é ca usa nem efeito daquilo que permanece de Simão; por­
tanto, todas as almas contam como um, conforme explicou Abu Bakr
ibn Al-Sa'ig34° e outros que se aventuraram a falar destes assuntos tão
profundos. Em suma , não é de questões obscuras, que nossos pensa­
mentos são incapazes de compreender, que serão obtidas proposições
capazes de explícar outros assuntos.
Saiba que todo aquele que se esforça para estabelecer a criação d o
universo ou refutar a sua eternidadepor estes métodos d os mutakálemim
somente pode fazê-lo com o auxílio de uma destas duas proposições ou
ambas, quais sejam: a décimaproposição - vale dizer: a Teoria daAdmis­
sibilidade Racional, a fim de estabelecer o SerDetermínantlf, e a décima
primeira proposição, que rejeita o infinito porsucessão e cuja veracidade
é demonstrada por diversos meios, como por exemplo: se o investiga­
dor volta sua atenção para uma das espécies cujos indivíduos nascem e
perecem, f1Xa sua finalidade e propósito na passagem do tempo e defi­
ne, segundo a Teoria da Eternidade, que os membros desta espécie, de
uma determinada época, e aqueles queos precederam são numericamen­
te infinitos, assim como todos os membros da mesma espécie que os
sucederem após mil anos; eis que este último montante será maior do
que o primeiro, em número de nascidos nestes mil anos, do que se con­
clui que haveria um infinito maior do que outro. Eles aplicam o mes­
mo argumento às revoluções da esfera [celeste] e concluem necessaria­
mente que um número infinito de revoluções seria maior do que outro.
Comparam ainda o número infinito de revoluções de uma esfera com
o de outra mais lenta - e fazem o mesmo com qualquer acidente que
ocorre por sucessão. Eles levam em conta os indivíduos já desapareci­
dos e os imaginam como se ainda fossem existentes e com começo de­
finido; então, este número imaginário é passível de aumento ou dimi­
nuição. Na realidade, nada destas coisas imaginadas é factível. Já Abu
Nasr al-Farabi atacou o ápice desta proposição e expõs pontos fracos
em todas as suas particularidades, como você poderá verificar, de for-

340 Abu Bakr ibn AI-Sa'ig (1085/90-1139). filósofo espanhol também conhe­
cido como lbn Bayya ou Avempace, destacou-se especialmente como co•
mentarista da obra de Aristóteles (NT).
322 MAIMÔNIDES

ma clara e evidente, por meio do estudo imparcial de sua famosa obra


sobre os Seres Variáveis (Nimtsa6t HamishtanóQ.
Estes são os principais métodos dos mutakálemim para o estabeleci­
mento da Te oria da Criação do universo. Uma vez fundamentado , para
eles, por meio destas provas, que o universo foi criado, fica demonstra­
do que existe um Agente que o criou com um propósito, por vontade e
escolha. Em seguida, eles mostrarão, pelos métodos que lhe apresenta­
rei no próximo capítulo , que Ele é Um.
CAPÍTULO 75
CINCO MÉTODOS DOS MUTAKÁLEMIMPARA PROVAR A UNICIDA­
DE DE DEUS

Neste capítulo eu lhe explicarei também as provas da unicidade [de


Deus) segundo a doutrina dos mutakálemim. Afirmam que Ele - que
gerou o universo existente por meio da sua ação e invenção - é Um .
Seus principais métodos para o estabelecimento da unicidade são dois:
os métodos da mútua anulação e da mútua diferença.
Primeiro método: este método da mútua anulação é o preferido pela
maioria . Consiste em afirmar que se houvesse dois deuses para o uni­
verso, haveria necessariamente uma substância que não escaparia de um
dos dois opostos, caso contrário seria destituída simultaneamente de
ambos, o que é absurdo; ou os dois opostos se reuniriam a ela simulta­
neamente, o que também é absurdo. Por exemplo: no caso de um ou
mais corpos que uma divindade desejasse aquecer e a outra esfriar, a
conseqüência disto é que estes não seriam aquecidos nem esfriados, pois
a s ações seriam mutuamente anuladas - o que é inadmissível, pois todo
corpo recebe um destesdois opostos; ou seriam simultaneamente quen­
tes e frios, o que é igualmente absurdo. D o mesmo modo, se uma d e s ­
tas divindades desejasse colocar u m corpo em movimento, pod e ser que
a outra desejasse fazê-lo repousar -então este obrigatoriamente não se
movimentaria nem repousaria ou estaria simultaneamente em estado
de movimento e repouso . Este tipo de prova está fundamentado: na
teoria do átomo, que é a primeiraproposiçãodos mutakálemim; no princí-
324 MAIMÔNIDêS

pio da criação dos acidentes (quarca proposição); e no princípio que


argumenta que a ausência de propriedades é um acidente real que ne­
cessita de um agente (sétima proposição). Caso alguém afirme que a
matéria inferior [terrena) -sujeita à geração e degeneração sucessivas,
na opinião dos filósofos - é isenta de matéria superior, ou seja, da
substância das esferas [celestes) , conforme demonstrado; e que existem
duas divindades: a primeira governa a matéria terrena sem que a sua
atuação interfira nas esferas; e a segunda governa as esferas sem que a
sua atuação interfira na matéria inferior, como imaginavam osdualistas
- esta teoria absolutamente não implicaria a anulação mútua. Caso
este ainda diga que isto implica umadeficiência obrigatória em ambas,
pelo fato de uma não poder manipular a matéria da outra e vice-versa,
a resposta será: nenhuma das duas tem esta deficiência porque aquilo
sobre o qual sua atuação não interfere está além da sua influência, e não
há imperfeição no agente incapaz de executar o que lhe é intrinsecamente
impossível. Do mesmo modo, para nós que somos monoteístas, não há
deficiência naquele que é Um pelo fato de não poder reunir dois opos­
tos num único objeto; tampouco duvidamos do Seu poder por esta e
outras impossibilidades semelhantes.
Quando se convenceram da fragilidade deste método, ainda que
tenham lhe dado algum crédito, os muca.ká!emim adotaram outro.
Segundo mécodo: se existissem dois deuses, haveria necessariamente
algo comum a ambos e algo presente em um, mas não no outro, o que
definiria a separação e a mútua diferença. Trata-se de um método filo­
sófico demonstrativo, caso seja possível aceitá-lo e se houver premissas
claras - as quais lhe explicarei quando mencionar as opiniões dos füó­
sofos a este respeito. Entretanto, este é inaceitável na opinião de todo
aquele que acredita nos atributos [divinos]. para quem o Eterno apre­
senta muitos aspectos diferentes: o da sua sabedoria não é como o do
seu poder, que não é como o da sua vontade. Entretanto, segundo esta
opinião, seria possível que qualquer uma das duas divindades possuísse
diversos aspectos, entre os quais alguns comuns a ambas e outros que
as distinguissem.
Terceiro méCodd. existe também um método que depende de uma das
proposições dos seus autores, e este é: alguns mutal<álemim antigos acre­
ditavam que Deus deseja por meio de uma vontade que não é algo acres­
cido à Sua essência, mas sim uma vontade sem substrato. De acordo
com as proposições que expusemos - cuja concepção da parte deles
está equivocada, como você poderá ver - eles afirmavam: a vontade
única sem substrato não pode ser de dois porque uma causa única não
O CUIA DOS PERPLEXOS 325

determina duas resoluções para dois entes. Eu já lhe adverti que isto é
explicar uma coisa obscura por meio de outra ainda mais obscura,341
uma vez que a vontade mencionada por eles é inconcebível, inclusive
para alguns deles; e, para quem acredita nisso. surgem dificuldades i n ­
superáveis. Não obstante, eles a tomam como prova da unicidade.
Quarco método: eles afirmaram que a existência de uma ação aponta
necessariamente para um agente e que uma pluralidade de agentes é
inadmissível, não importa se dois, três, 20 ou outro número qualquer.
Isto é claro e evidente. Entretanto, se você objetar que isto não aponta
para a inexistência de múltiplas divindades, mas apenas para o desco­
nhecimento do número delas, sendo possível que exista um ou muitos
[deuses), esta prova poderia ser complementada com o seguinte argu­
mento: a existência de Deus não é uma possibilidade, pois sua existên­
cia é necessária - e isto anularia, portanto, a possibilidade da plurali­
dade. Eis a argumentação do autor desta prova, cujo equívoco é expli­
cito, pois a existencia de Deus não é uma possibilidade, mas o nosso CQ­
nhecimento arespeito Dele sim, uma vez que a possibilidade do conheci­
mento não equivale à da existência. Pode ser que Ele não seja três, como
imaginam os cristãos, tampouco Um, como nós pensamos. Isto está
claro para quem está familiarizado com o conhecimento de como são
obtidas conclusões a partir das premissas dadas.
Quinto métodd. um dos mutakálemim recentes imaginou haver en­
contrado um método demonstrativo para a Unicidade, qual seja, a teo­
ria da necessidade. Eis a sua explicação: se Um é capaz de criar os seres
existentes, uma �cgunda divlndado, serta supérfiua e desnecessária; e se
este universo não pudesse ser realizado nem organizado a não ser pelos
doisjuntos, cada um deles conteria uma incapacidade, o que exigiria a
necessidade de um outro [anterior); portanto, seriam essencialmente
limitados. Na verdade, esta teoria pode ser considerada um ramo do
método da mútua anulação.
Deve-se rebater esta espécie de prova com a seguinte argumentação:
nem todo aquele que não age fora do âmbito de sua atuação pode ser
chamado de incapaz. Não chamaremos qualquer pessoa de fraca pelo
fato de esta ser incapaz de movimentar mil pesos, assim como não atri­
buímos a Incapacidade a Deus pelo fato de Ele não poder se materiali­
zar, criar outro como Ele ou, ainda, um quadrado cuja diagonal seja
equivalente a um de seus lados. Tampouco diríamos que Deus seria

341 Veja no capitulo 74, �tim<J método (NT).


326 MAIMÔNIOES

incapaz, supondo que Ele não fosse o único criador - se houvesse a


necessidadede existirem dois - e caso isto não fosse somente necessá­
rio, mas obrigatório, e o contrário, um absurdo. Do mesmo modo não
diremos que Deus é Incapaz por não poder produzir matéria, exceto pela
criação de átomos e agrupando-os pelos acidentes que criou para estes,
de acordo com os mutakálemim; isto não pode ser chamado de neces­
sidade nem Incapacidade, uma vez que o contrário é impossível. Então
o associacionista dirá: •i:: impossível que um deus aja sozinho, o que
não implica obrigatoriamente incapacidade de qualquer das divinda­
des, pois a dualidade é condição obrigatória para as suas existências".
Alguns mutakálemimjá se fartaram destes argumentos e chegaram a
declarar que a unicidade deve ser aceita como uma questão de fé, mas a
maioria deles repreendeu e menosprewu tal declaração. Entretnnto, eu
vejo que quem afirmou isso é uma pessoa muitíssimo sábia e que não
admite sofismas: ao não ouvir, das palavras daqueles, qualquer prova
verdadeira e sentir sua alma perturbada com aquilo que imaginam ser
uma demonstração, ele declarou que isto é algo a ser admitido como
tradição religiosa. De fato, aqueles !ndiVíduos não atribuíram ao uni­
verso qualquer lei natural estabelecida da qual pudesse se extrair uma
demonstração verdadeira, tampouco atribuíram ao intelecto qualquer
disposição natural reta, por meio da qual se pudessem obter conclusões
verdadeiras. Fizeram tudo isso intencionalmente, para que o universo
fosse concebido de tal modo que se tomasse uma demonstração de algo
para o qual não havia sido possível encontrar prova, e para nos impedir
de obter provas onde estas pudessem ser encontradas. Resta-nos apelar
a Deus e àqueles indivíduos inteligentes que se submetem à verdade.
CAPITULO 76
A REFUTAÇÃO DA CORPOREIDADE DE DEUS, SEGUNDO A DOUTRI­
NA DOS MUTAKÁLEMJM

Os métodos e argumentos dos mutalailemim para a refutação da cor­


poreidade [de Deus) são muito fracos, mais ainda do que suas provas
acerca da unicidade, porque, para eles, é como se a incorporeidade de·
rivasse necessariamente da raiz da unicidade: eles afirmam que o corpo

º"
não é um. Contudo, quem refuta a corporeidade [de Deus] pelo fato
de o corpo ser composto matéria e forma - uma composição
sabidamente inadmissível no que diz respeito a Deus - na minha opi­
nião não é um mutakálime, tampouco este ponto de vista está baseado
nos fundamentos do Ka!ám; porque esta é uma demonstração verda·
deira baseada na teoria da matéria, da forma e da concepção das pro­
priedades destas, ou seja, trata•se de uma teoria filosófica que abordarei
e explicarei quando citar as provas dos filósofos a este respeito. Portan­
to, a nossa intenção, com este capítulo, é apre$entar os argumentos dos
mutakálemim para refutar a corporeidade [de Deus] conforme suas
proposições e métodos argumentativos.
Primeiro mdtodo: Eles afirmam que, se Deus fossse corpóreo, a verda­
deira propriedade da Divindade existiria plenamente em todaspartículas
desce corpo - vale dizer: em cada um dos seus átomos - ou toda a sua
existência estaria concentrada em um dos átomos. Neste último caso, qual
seria utilidade dos demais átomos? A existência de um corpo assim não
farta sentido; e, no caso da sua existência preencher cada um dos áto-
328 �WMÔNIDES

mos deste corpo, estes seriam muitas divindades e não um único Deus
- e elesjá explicaram que Ele é Um. Ao examinar este argumento, você
descobrirá que está baseado na primeira e quinta proposições.'J42 Alguém
poderá question á -los: "O corpo de Deus não é composto de átomos,
isto é, não é composto de substãncias que Ele próprio criou, como vocês
afirmaram, mas sim algo único, contínuo e indiVisível, exceto pelo pen­
samento; e não há como provar por pensamentos, uma vez que tam­
bém se pode imaginar que o corpo dos céus pode ser rasgado e dividi­
do. O filósofo dirá que isto é fruto da imaginação e uma inferência
daquilo que é aparente - isto é, os corpos existentes entre nós - sobre
o oculto".
Segundo métodd. para eles isto é importante - a inadmissibilidade
da semelhança. "Deus não se compara a nenhuma das Suas criaturas: se
tivesse um corpo, seria comparável aos demais seres corpóreos. Os mutaká­
lemim se estenderam demasiado neste ponto e afirmaram: Se dissermos
'corpo, mas não como os demais corpos', estaremos nos contradizen­
do, pois todos os corpos são semelhantes no que diz respeito à corpo­
reidade e, na verdade, diferenciam-se uns dos outros por outros moti­
vos - vale dizer: os acidentes". Para eles, isto também se faz necessário,
caso contrário Deus já teria criado outro como Ele.
Este ponto de vista falha em dois aspectos. Primeiro pode-se dizer:
"Não aceito a teoria da inadmissibilidade da semelhança; qual é a sua
prova de que é impossível comparar Deus a qualquer uma das suas cria­
turas em algum aspecto? A não ser que (por Deus!) você se refira às
palavras dos livros proféticos - isto é: a refutação da semelhança neste
caso - então a incorporeidade será recebida por tradição e não por um
meio racional". E se os mutakálemim contestarem: "Se Deus fosse se­
melhante a alguma de Suas criaturas, não teria criado outro como Ele?",
a resposta será: "Não em todos os aspectos; e não nego que, em Deus,
há muitas propriedades e aspectos". pois quem acredita na corporeida­
de [de Deus] não escapa disto.
Por sua vez, este argumento falha em um segundo aspecto: já foi
estabelecido e admitido por quem estudou filosofia e se aprofundou nas
teorias filosóficas que o termo "corpo" se aplica às esferas [celestes] e aos
corpos materiais terrenos apenas por homonímia, porque a matéria das
1

342 Primeiro proposição: estabelecer a substância simples [átomo]: quinta pro·


posição: a existência e a permanência da substância simples [átomo] são
inevitavelmente constituldas por acidentes.
O CUIA DOS PERPLEXOS 329

esferas não é como a dos corpos terrenos, tampouco as formas destes


são como as das esferas. Os termos ·matéria· e "forma•, aplicados sobre
o existente embaixo e às esferas acima, são homônimos, e mesmo que
as esferas, sem dúvida, possuam dimensões, não é isto que constitui um
corpo, pois, de fato, ele é composto de matéria e forma. Se isto é admi­
tido como norma para a esfera, tanto mais para quem admite a corpo­
reidade de Deus! Pois este Irá dizer: "Ele é um corpo dotado de dimen­
sões, porém Sua essência, verdadeira natureza e propriedade não se com­
param, de modo algum, aos corpos dos seres criados; logo, otermo 'cor­
po' só será aplicado a Deus e às Suas criaturas por homonírnia, assim
como se aplica o termo 'ser'. a Ele e aos demais, pelos verdadeiros cren­
tes" . Aquele que defende a corporeidade (de Deus] não aceita que todas
as substãncias sejam compostas de átomos semelhantes, mas afirma:
"Deus é o Criador de todas estas substãncias, que variam em essência e
natureza; assim como a substãncia das fezes não é como a do globo solar,
também se afirma que a substãncia das esferas e astros é como a da Luz
Criada - vale dizer: a Shechiná (Presença Divina). Tampouco a subs­
tância desta ou da 'coluna de nuvem' criada é como a de Deus propria­
mente dito·. E prossegue: •O corpo de Deus é a essência perfeita e glq­
riosa, que absolutamente não é composta, não se modifica nem é pas­
sível de modificação, pois a existência deste corpo é necessária, obriga­
toriamente constante e motor de todas asoutras coisas, conforme a sua
vontade e desejo·. Como refutar esta teoria a partír dos surpreendentes
métodos dos mutaká/emim que eu lhe dei a conhecer?
Terceiro método: Se Deus fosse corpóreo, Ele seria finito - isto é ver­
dade; se fosse finito,
Suas dimensões seriam conhecidas, assim como a sua
forma - isto também é necessariamente verdadeiro. E prosseguem:
ja a sua dimensão eforma, seriapossívelqueDeusfossemaior
qualquerque se
ou menor e de uma forma diferenté. Se assírn fosse, se Ele estivesse de­
terminado por uma dimensão e forma, antes seria necessário existir um
Ser Determinante. Ouvi também muitos mutakálemim enaltecendo este
argumento; todavia, é mais fraco do que todos os que o antecederam,
pois esta fundamentado na décima proposição.343 Já explicamos sobre o
que resulta das írnprecisôes desta referentes aos seres existentes, quando
se supõe uma mudança em suas naturezas - e mais ainda no que diz
respeito a Deus. Não há diferença entre este argumento e o que afir-

343 Ddcuna proposfç§o: uma forma possível não pode ser provada apenas por
estar em conformidade com as leis da natureza.
330 MAIMÔNIDES

roam a respeito da preferência da existência do universo à sua inexis·


tência,344 que aponta para um agente que preferiu, entre ambas as pos­
sibilidades, a primeira. Se alguém questioná-los: "Por que isto não se
estende a Deus?" e prosseguir: "Uma vez que Ele existe, deve haver ne­
cessariamente um ser que tenha preferido a sua existência à sua inexis·
tência?". A resposta certamente será a seguinte: "Isto levaria a um enca­
deamento em que seria impossível se chegar ao fim com um Ser Neces­
sário; este seria impossível e um Criador, desnecessário·. Entretanto, esta
deveria ser obrigatoriamente a mesma resposta quanto à Sua forma e
dimensão, porque, se todas as formas e dimensões são de existência
possível - ou seja, não existiam e passaram a existir - estas poderiam
ser maiores ou menores do que realmente são, ou terem outras formas,
para o que seria necessário um Ser Determinante. No entanto, quanto
à forma e dimensão de Deus - que seja elevado acima de qua)quer
imperfeição e semelhança! - assim afirmou aquele que acredita na sua
corporeidade: "Não se pode dizer que Ele era inexistente e depois pas­
sou a existir, para que necessitasse de um Ser Determinante [anterior];
mas sim que a Sua essência.juntamente com a Sua dimensão e forma,
é de existência necessária, sem precisar de um Ser Determinante ou que
viesse a preferir a sua existência à sua inexistência, posto que esta últi·
ma é impossível. Portanto, Deus não precisa de um Ser Determinante
para a sua dimensão e forma, pois Ele é de existência necessária".
Observe o seguinte, você que pensa com discernimento (caso opte
por buscar a verdade - e afastar- s e das paiXões, daquílo que aceitou e
da inclinação para o que se habituou a exaltar -a fün de não enganar
a sua alma) acerca destes especuladores, daquilo que aconteceu a eles e
por causa deles, pois são como quem que foge das cimas para cair no
fogo. Eles invalidaram a natureza da realidade e alteraram a criação dos
céus e da terra ao imaginarem que, com suas proposições, provariam o
caráter do universo criado. Entretanto, além de não terem demonstra­
do a criação do universo, na nossa opinião falharam nas provas da exis­
tência, unicidade e incorporeidade de Deus, pois tudo o que apresenta­
ram, na verdade, foi tomado da natureza da existência estabelecida e
conhecida, apreendida pelos sentidos e pelo intelecto.
E, após havermos encerrado a exposição das teorias dos mutaká•
lemim, apresentaremos as proposições filosóficas e suas provas a respei­
to da existência, unicidade e incorporeidade de Deus. Aceitaremos de­
les,.por ora, a Teoria da Eternidade do universo, ainda que não acredi·

344 Veja no capítulo 74, sexto método.


O GUIA DOS PERPLEXOS 331

temos nela. Em seguida lhe descreverei o nosso próprio método, naquilo


que este nos leva diretamente à verdadeira teoria para a perfeita demons­
tração a respeito destas três questões. Por fim, voltaremos a penetrar,
juntamente com os filósofos, naquilo que estes afirmaram sobre a eter­
nidade do universo - BeezrátShadái {com a ajuda de Deus).
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