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Em primeiro lugar, mulheres podem e devem se


encontrar cada vez mais. Não precisam pedir permissão
para tratar de temas de seu interesse. Embora as redes
sociais tenham constituído uma mídia da maior relevância
para o levante feminista testemunhado pela nossa geração,
os discursos de libertação feminina só se consolidam com a
constituição de laços reais.
Nesse sentido, a prática constante de realizar rodas,
que são o formato de encontro mais comum para o estudo
dos muitos temas que podem ser alocados dentro da
compreensão de Sagrado Feminino, está um passo à frente
de um determinado feminismo que busca disputar espaços
quase que exclusivamente virtuais Mas vamos ao conceito: Sagrado
Feminino é apenas um código. Fica um pouco difícil bater em um
código, sobretudo se ele expressa o direito de todas as mulheres a uma
religiosidade livre. É ineficaz. Esse código, tão falado nos últimos
tempos, sempre se fez presente em todos os povos, ainda que não
identificado dessa forma. Sagrado Feminino nada mais é do que a face
feminina do divino e todas as coisas onde ela pode ser reconhecida
Quando nos lembramos que, muito antes da devastação cristã, povos
ameríndios cultuavam divindades fêmeas, como Coatlicue, IxChel e
Senhoras ligadas ao cultivo de milho, estamos nos re-apropriando de
sabedorias que resgatam múltiplas possibilidades existenciais para a
mulher, na contramão do apagamento histórico de referências divinas
nas quais se espelhavam. Ora, se você afirma em caráter de dominação
que só existe um Deus e ele é homem, se você aniquila o espelhamento
de seres humanos do sexo feminino em forças invisíveis, sendo a fé uma
necessidade comum a todos os povos, obviamente deixa as mulheres
mais facilmente expostas a toda forma de violência, posto que não
participam do divino.
Isso implica dizer que para que sofrêssemos milênios de violência,
precisaram nos usurpar, demonizando ou apagando, uma noção de
sagrado onde elementos como a dignidade e a liberdade de mulheres
eram colocados acima de qualquer questionamento dos homens.
Uma vida em integração com o sagrado, conforme ele era enxergado na
natureza, era uma vida infinitamente mais sustentável do que o
capitalismo hoje nos autoriza. A maioria das sociedades que foram
vítimas dessa usurpação era matrifocal, como os povos celta e maia, e a
capacidade reprodutiva, que antes era respeitada e celebrada como uma
metáfora do poder de perpetuação da vida nos ecossistemas, passou a
ser apropriada pelos homens como instrumento de dominação de
mulheres.Se antes o lugar de mulher era em toda parte, porque em tudo
sobre a Terra se reconhecia o poder feminino, a exploração da gravidez
e da maternidade, sobretudo pela ideia de pecado original, reservou a
existência feminina à dimensão privada do lar, vergonhosa de seu
corpo, de seus desejos, de seus conhecimentos. Algumas sociedades,
como a grega antiga, galesa, yorubá e hindu, chegavam a ter dezenas de
Deusas. Não é verdade, no entanto, que em todas as mulheres
estivessem livres de violência, como entre os Vikings, que violentavam
mulheres de outros povos como prática de guerra.Porém, certamente a
existência de um feminino divino resguardava possibilidades que hoje
não vivenciamos. As mulheres nórdicas, por exemplo, eram as porta-
vozes dos Deuses. Isso implica ter voz quase que incondicionalmente à
luz do sagrado. O mais perto que conhecemos disso hoje é a figura de
uma Mãe de Santo. Sobre a Grécia, em especial, para a qual a mulher não
era cidadã, vale lembrar que divindades como Afrodite, Hécate e muitas
outras não eram originalmente gregas, mas reverenciadas por outros
povos.
No caso dessas duas, povos da Ásia Menor. Foram, assim, enxugadas de
seus significados e reduzidas para caberem em uma sociedade obcecada
pelo estereótipo de feminilidade para fins de dominação. Afrodite, que
era uma Deusa de Fertilidade ou Deusa Mãe, passou assim a ser uma
Deusa do Amor e da Beleza, concorrendo definitivamente para o
empobrecimento de uma zona de interesse feminino por meio do seu
culto. Estudar Mitologia dentro do Sagrado Feminino, felizmente, nos
ensina isso, contribuindo para a superação de uma ignorância histórica
que atravessou toda a formação do Ocidente.
Antes da existência de Adão e Eva, dizem os hebreus, existiu uma
mulher indomável. Seu nome era Lilith. Não desejando limitar sua vida
à condição de companheira de Adão, foi banida do paraíso. Para
remediar tal insubordinação, Deus teria criado Eva, não da cabeça de
Adão, não dos pés, mas de sua costela, para que caminhasse ao seu lado
e pudesse ser protegida pelo seu braço. Ou seja, para lhe pertencer.
Lilith, portanto, representa o feminino insubmisso que existiu antes da
civilização patriarcal. Igualmente, Blodeuwedd, já estudada aqui, foi
criada por dois druídas para ser esposa de um Deus, mas termina por se
libertar desse destino de mera esposa e retorna como coruja —
selvagem e sábia — ao seio da floresta, que simboliza o ventre da terra, o
mesmo local de liberdade feminina inquestionável Estudar Mitologia
dentro do do qual parte Lilith. Sagrado Feminino, felizmente-parte, nos
ensina que a quebra do estereótipo de feminilidade não é matéria
exclusiva do feminismo.
Sagrado Feminino, para muitas autoras, como Amy Sophia
Marashinsky, é a vivência de uma forma de totalidade. Sobre a
totalidade, já intuía Clarice Lispector em uma carta famosa: “Não pense
que a pessoa tem tanta força assim a ponto de viver qualquer espécie de
vida e continuar a mesma. Até cortar os próprios defeitos pode ser
perigoso — nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício
inteiro”
Totalidade, nessa acepção, é quando todas as formas existenciais cabem
dentro do feminino, sem que seja preciso renunciar a uma delas, mas
compreendendo que todas podem coexistir e se mostrar fundamentais.
Em outras palavras, é quando uma mulher não renega ou diminui
nenhuma parte do seu ser, experimentando amor por si mesma. Assim,
temos um feminino ancestral para o qual uma Deméter, que escolheu
viver em aversão a qualquer abordagem masculina, o que seria
considerado “misândrico”, é tão importante quanto uma Kuan Yin,
deusa oriental de absoluta misericórdia, o que se aproxima da nossa
visão de maternidade, apesar das infinitas formas maternas, inclusive
nada dóceis, previstas em outros panteões.

Mas não somente do estudo de Deusas é feito o conceito


de Sagrado Feminino. Porém, o conceito de feminino
divino também comporta práticas, sendo muitas
milenares, que devolvem à mulher de imediato uma
outra relação com o seu corpo, com a sua
alimentação, com o autoconhecimento e a cura.
Restitui, portanto — lembrando da sacerdotisa que por direito existe em
cada uma, uma vez que esse know-how é historicamente nosso, e pode a
qualquer momento ser empregado — um senso de autonomia diante da
natureza e de saberes ancestrais, sem deixar as mulheres infinitamente
à espera de um outro sistema de escolhas a ser conquistado
politicamente. Práticas antigas, como manipular a própria menstruação
ou lubrificação vaginal para fins mágicos, exercidas por sacerdotisas
pagãs, expressavam um nível maior de poder sobre o próprio corpo do
que aquele que é dado dentro do processo de socialização de gênero das
mulheres da minha geração. Da mesma forma, uma vez que posso
conhecer ervas que curam males diversos, que divido receitas simples
para não precisar encher meus filhos com a indústria farmacêutica, que
desenvolvo produtos artesanais que me custam pouco, que consigo
observar a conexão entre os meus hormônios e o meu estado emocional,
que repenso meus propósitos de vida à luz de símbolos contidos em
oráculos, que tenho autonomia para aplicar reiki, mocha, banho de
assento, e reconhecendo o trabalho das doulas, que diversas terapias
alternativas (por força das mulheres que a mantiveram viva ao longo
dos tempos) já são adotadas dentro do sistema de saúde, o que estou
vivenciando é gigantesco em termos de autonomia e me faz usar
elementos ancestrais para construir o meu agora e o futuro das
mulheres que virão depois de mim. Pelo mesmo fator histórico, não faz
muito sentido que estejamos acusando o Sagrado Feminino de uma
banalização. Nossas críticas recaem sempre sobre as iniciativas de
mulheres. No caso, mulheres que estão fazendo uso de conhecimentos
que sempre lhes pertenceram. Sagrado Feminino está presente na
atividade da curandeira da favela. Está presente na erveira da cidade
pequena. No copo de vela com água e reza da quilombola. Na mãe
evangélica que visita toda a vizinhança oferecendo o seu apoio
emocional por meio de uma oração. Nas senhoras beatas que se dedicam
a novenas e mais novenas, para curar as mais diversas dificuldades de
uma família.

A maioria dos povos que vivem em integração com a natureza não é


cristã, mas politeísta, isto é, também reverenciam Deusas. Além disso,
sem as religiosidades das muitas nações indígenas e africanas, cuja
presença sacerdotal feminina é predominante. Criar um modo de vida
com responsabilidade ambiental é importante e urgente. As
sacerdotisas contemporâneas perdidas por aí, que agora se encontram
nesse processo de autonomia, dando-lhe o fôlego de um verdadeiro
movimento, cuja base é a solidariedade. Um movimento que resgata e
integra mulheres de religiosidades e crenças diversas, porque sabemos
que os diálogos entre mulheres extrapolam as possibilidades
demarcadas pelo feminismo. Não são inferiores as mulheres que trocam
tais sabedorias, seja dentro de religiosidades neo-pagãs ou numa
comunidade da Baixada Fluminense. Nem as que leem livros como
“Mulheres Que Correm Com os Lobos” e “O Anuário da Grande Mãe”,
mantendo ativo um imaginário em torno da mulher selvagem ou da
bruxa, antes demonizada, mas cuja relação com a floresta é
representativa de autonomia, de usufruir dos recursos à nossa
disposição com mais dignidade do que os sistemas de opressão disseram
que poderíamos. Tampouco as autoras dessas obras são dignas de
menos respeito. Não são inferiores as mulheres que mantiveram acesa a
chama dessas sabedorias desde sempre, as oraculistas e curandeiras que
se faziam presentes em cortiços e cortes, em feudos e feiras, em navios
ou que nunca saíram de suas comunidades, todas com o propósito de
diminuir o sofrimento humano.
Não existe homogeneidade na busca por esse Sagrado, não é possível
atribuir-lhe um rosto sujeito a fatores raciais e de classe, porque ele se
encontra em todos os povos, em todos os períodos históricos. Tentar
sujeitar a uma caricatura todas as mulheres que se aproximam de um
exercício mais livre de sua religiosidade e relação com a terra é que seria
estereotipar. O único fator que é consenso no Sagrado Feminino é o de
gênero, não como critério absoluto de exclusão, mas como
reconhecimento de um legado, sem o qual não é possível começar a
dialogar. É muito fácil dizer que somos as netas das bruxas que eles não
puderam queimar e continuar dando elementos para que bruxas ainda
sejam queimadas. O Sagrado Feminino não compete com o Feminismo,
ele só o antecipou alguns milênios. Podemos dizer que foi o seu ventre.
Se hoje lutamos politicamente pelos direitos humanos das mulheres,
tenhamos respeito pelas sacerdotisas de todo o mundo que
asseguraram processos de libertação feminina muito antes de nós.
Exercício de Libertação do
Poder feminino

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