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©2022 Revista Barroco Digital
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste
livro, através de quaisquer meios, sem a prévia autorização por escrito da Barroco ou do articulista.

Diretora: CRISTINA ÁVILA


Secretária: JOSANNE GUERRA SIMÕES
Programação gráfica: SÉRGIO LUZ
Jornalista responsável: CARLOS ÁVILA
Bibliotecária: LÚCIA DE OLIVEIRA
Revisão de textos: CLÁUDIO NUNES DE MORAIS

Este número reúne textos de colaborações especiais, abordando temas específicos do estilo barroco,
como também de inovação e/ou atualização no campo da pesquisa. Conta, ainda, com uma homenagem
à Profa. Beatriz Coelho de Vasconcelos, entrevistada pelo Prof. Dr. José Antônio Orlando. Em respeito
aos autores, foram mantidas, sempre que possível, ortografia, pontuação, nomenclatura e peculiaridades
de estilo respectivas.

Os conceitos emitidos em artigos assinados são de responsabilidade exclusiva de seus autores, estando
as normas técnicas de acordo com as referências de seus países.

Conselho Editorial Revista Barroco digital [recurso eletrônico] / CS Cultural Design Ltda. -
Ano 2, n.2 (nov. 2022) - . - Belo Horizonte : CS Cultural, 2022.
Amilcar Martins Filho 1 Recurso on-line
Carolina Tomasi
Carlos Alberto de Almeida Dias Anual
Cristina Ávila
Guilherme Paoliello Barroco digital.
Revista Barroco digital: revista de ensaio e pesquisa.
Josoel Kovalski
Marcos Hill Modo de acesso: https://www.revistabarroco.com.br
Rodrigo Duarte
ISSN 2764-1201

1. História da arte - Periódicos. 2. Patrimônio artístico - Periódicos.

I. Título
CDD 709

Contato
CS Cultural
Rua Cordlheiras, 85 - CEP 30882-040 - Belo Horizonte/MG - Brasil
contato@revistabarroco.com.br
www.revistabarroco.com.br

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SUMÁRIO

EDITORIAL 6
Cristina Ávila

O AMADOR E A COISA AMADA 13


Affonso Ávila

A SACRISTIA COMO PINACOTECA DA ÉPOCA BARROCA:


O CICLO PICTURAL DE BENTO COELHO NO CONVENTO DE S. PEDRO DE ALCÂNTARA, LISBOA 16
Luís de Moura Sobral

A IGREJA DE GESÙ EM ROMA: A INFLUÊNCIA ESPANHOLA MEDIEVAL ALIADA


AO CLASSICISMO REFINADO DO CINQUECENTO ITALIANO 35
Sônia Gomes Pereira

CAPELAS E MATRIZES DO GOIÁS COLONIAL: DIÁLOGO ARQUITETÔNICO


COM A METRÓPOLE E AS CAPITANIAS VIZINHAS 68
Deusa Maria R. Boaventura

DEVOÇÃO A SANT’ANA – IMAGEM E IMAGINAÇÃO 95


Cristina Ávila

OFÍCIOS MECÂNICOS E SOCIABILIDADES: UM NOVO OLHAR SOBRE


A CAPELA DO SENHOR BOM JESUS DO MATOZINHOS DO SERRO/MG, 1773 A 1821 116
Danilo Arnaldo Briskievicz

CAMINHAR PELA CIDADE: EXPERIÊNCIAS DOCENTES EM PATRIMÔNIO E EDUCAÇÃO 135


Christianni Cardoso Morais
Marcos Vinícius Teles Guimarães
RESTAURAR E CONSERVAR: UMA TRAJETÓRIA DE REFLEXÃO E PRÁTICA 153
ENTREVISTA COM BEATRIZ RAMOS DE VASCONCELOS COELHO
José Antônio Orlando

NÓS-BARROCOS 163
Lucas Araújo de Almeida

DE COMO AMAR AS FLORES DO CERRADO 175


Cristina Ávila
Mônica Sartori

ETHOS-PATHOS-STIMMUNG: PARA ALÉM DO FORMALISMO RETÓRICO 185


Edilson de Lima

MACUNAÍMA, MEMÓRIA E MODERNISMO 195


Myriam Ávila

ARANHAS E SUAS TEIAS: ALGUNS (DES)FIOS SOBRE ANA HATHERLY E SALETTE TAVARES 204
Alice da Palma

O NOME DESSA EMOÇÃO. A POESIA DE CLAUDIA EMERSON E A METONÍMIA 212


Olga Kempinska

PROPRIEDADES ESTRUTURAIS DA AGUDEZA DOS SEISCENTOS E


DO FINAL DO SÉCULO XX NA POESIA DE AFFONSO ÁVILA 223
Carolina Tomasi

CADERNO DE POESIA RESISTÊNCIA: 10 ANOS SEM O POETA AFFONSO ÁVILA 240


Pedro Ávila

AS BARROCOLAGENS DE AFFONSO ÁVILA 288


Josoel Kovalski

BARROCOLAGENS 305
Affonso Ávila
RESENHAS
PATRIMÔNIO CULTURAL E REVOLUÇÃO TECNOLÓGICA:
OS MEIOS DIGITAIS PARA AMPLIAÇÃO DAS PRÁTICAS CULTURAIS 327
Gianno Nepomuceno

MILAGRE NO SERTÃO DE MINAS: A PRODIGIOSA LAGOA 332


Amilcar Martins Filho

REGISTRO
MÚSICA E REMINISCÊNCIA: NOTAS PARA UM CONCERTO EM HOMENAGEM A RUFO HERRERA 336
Francisco Cesar Leandro Araújo
Guilherme Paoliello

SACRO : EM COMPASSO EXTÁTICO, CONECTANDO O CORPO À TERRA E AO CÉU 347


Wagner Corrêa de Araújo

O LEVANTE DE BELA CRUZ 350


Elza Cataldo
EDITORIAL
A viagem ensaística e poética de Affonso Ávila

“Affonso Ávila é um mestre. Em Minas, é o cara que consegue fundir a


tradição, a cabeça no ano 2 mil. Barroco-ficção científica. Ele mistura
futurismo com necrofilia, numa forma única. Ele é dessa geração
fantástica que o Brasil produziu neste século.” 

Paulo Leminsky

E
m meu livro, Patrimônio cultural e imaterial, da coleção Imagens de Minas, elaborado em
colaboração com Miguel de Ávila Duarte, após estudarmos as mais diversas fontes, desde
a colônia, com textos portugueses sobre patrimônio, chegamos a um conceito simples e
propositalmente didático: “patrimônio cultural é o conjunto dos bens materiais e imateriais, que,
pelo seu valor próprio, deve ser considerado de interesse relevante à permanência e à identidade
da cultura de um povo (...)”.

Do patrimônio cultural fazem parte bens imóveis, tais como castelos, igrejas, casas, praças,
conjuntos urbanos, e ainda locais dotados de expressivo valor para a história: a arqueologia, a
paleontologia, a antropologia e as ciências em geral. Nos bens móveis incluem-se, por exemplo,
pinturas, esculturas, mobiliário, documentos, livros, artesanatos etc. Nos bens chamados imateriais
ou intangíveis, consideram-se a literatura, escrita e oral, a música, os ditos populares, a linguagem,
os costumes, a culinária, entre outros.

Dentro do espectro da cultura patrimonial, estão ainda os bens afetivos, sejam eles memórias,
escritas ou orais, sons, cheiros, alfaia familiar ou pessoal, fotografias de família, objetos e qualquer
bem que se concentre no âmbito da imaginação, da criação e da valorização do humanismo.

A própria história de um objeto, bem comum ou particular, perdida na sua materialidade, é


invocada como identificação humana por suas manifestações de vestígios, saberes, guardados
pessoais, que cultivam o valor da memória. Um dos critérios para se avaliar o patrimônio afetivo
é, justamente, a atenção do pesquisador às formas de expressão que não encontram amparo
na sociedade, nem nas instituições e no mercado. É permitido a todos o cultivo da memória
sensorial, ou não.

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Mas nem todos reconhecem os seus próprios bens afetivos, tampouco os consideram como
perda ou falta. Os fragmentos dessa perda são ressignificações simbólicas individuais ou mesmo
coletivas. Isso se dá desde o esquecimento e abandono de povos por desconhecimento de seus
usos, modos de ser e aparelhamento culturais. O intencional abandono das memórias cotidianas
compartilhadas no âmbito do comum ou do extraordinário depende muito de sua valorização a
partir de políticas públicas. É como ouvirmos: “um povo sem memória é um povo sem futuro,
ou sem origem”. Origem e futuro, dois pontos simbólicos de um agora em suspenção.

Testemunhar como foi, para mim, quarta filha do poeta Affonso Ávila, o convívio com ele e seu
acervo perpassa pelo conceito de memórias intangíveis e fragmentos de lembranças totalmente
pessoais. E pode diferir-se do que os outros membros da família possam guardar como outras
memórias também intangíveis.

Por isso quero frisar que os fragmentos de lembranças do bom tempo passado, desde criança até
a maturidade, na Rua Cristina, 1.300, em Belo Horizonte, não têm sentido como valor positivista
de documento. Mas posso dizer, com certeza, que a presença de meu pai em seu escritório e
minhas experiências de vida ao lado das coisas de afeto dele fazem parte da minha vocação como
historiadora da arte, da cultura e dos valores de preservação patrimonial em todos os seus aspectos.

Um dos principais e mais antigos formadores da vida psíquica de todos nós se ampara nos sentidos,
no sensorial – a visão, o tato, a audição e o olfato. Este último o mais poderoso a nos remeter a
situações cotidianas afetivas. Quem não se lembra de um cheiro de um bolo caseiro no forno? É
o nariz nosso amistoso companheiro sensorial responsável universal pelas informações de prazer
obtidas dos mais remotos tempos para o sistema nervoso central.

Já descer as escadas até o porão da casa e me ver frente a duas portas trancadas a chave, e o
interruptor de luz era um marco de conquista, ali era o esconderijo do meu pai guardador, com
suas coleções e objetos de afeto. Do cômodo maior é que vinha o som da máquina de escrever
Remington, sinal de que tudo ia bem, e fazer parte desse mundo era uma das minhas aventuras
mais agradáveis. Não foram poucas as vezes que o interrompi para receber de suas mãos papel e
lápis para desenhar e escrever as primeiras letras seriamente, como se fora eu coautora daquele
ambiente espetacular. Um dia ele me disse: “tudo isso, minha filha amada, também é seu”. E tomei
talvez inconscientemente aquele escritório e todo seu acervo como responsabilidade minha.

Eu ajudava a carregar livros, jornais, correspondência, organizando todo o material em pilhas


de assuntos diversos que depois meu pai naturalmente faria a sua escolha, ora descartando,
ora recortando jornais, sábio que era do sabor indefinível de ser manutentor da memória. Fui
a formiguinha incansável nos dias de folga, ouvindo seus discos de 48 rotações, de onde saíam
desde poemas de Drummond a sambas canções. Ou mesmo futebol narrado com graça na rádio
Inconfidência. Nunca me esquecerei da alegria de acordar com o verso: “Porque hoje é sábado”,

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na voz do amigo Vinicius de Moraes. Ouvíamos também João Cabral de Mello Neto, “Morte e
Vida Severina”, e “Essa nega fulô”, de Jorge de Lima.

Das memórias da coleção pessoal me identifiquei também com os diversos acervos de história
e do patrimônio cultural mineiro. Foram muitos passeios e trabalhos auxiliares que fizemos por
Minas Gerais, incluindo a nossa ancestral Itaverava, que me despertou para o que venho fazendo
ao tentar recuperar as memórias afetivas quilombolas de Itaverava, ligada à história de vida de
meus bisavós maternos, especialmente o avô pardo de meu pai, o músico e abolicionista Antônio
Roberto Ferreira Barros, que libertou seus irmãos escravizados e lhes concedeu terras para
moradia, cultivo e subsistência e se propôs a se aventurar pela causa abolicionista e ‘a música de
influência negra lundu’, ainda no ano de 1851, fato documentado e presente no acervo do museu
de música de Mariana, doadas que foram suas partituras pela família.

Na revista Barroco, logo ainda adolescente, tornei-me a revisora auxiliar de papai. Ora lia os
textos datilografados, trocávamos, ora ele lia os textos de artigos inéditos nas provas de gráfica,
trocávamos também. Eram tantos erros que, entre risos, aprendi com o amigo e bibliófilo Hélio
Gravatá a frase que se tornou imortal através de Monteiro Lobato: “os erros saltam como sacis”.

No final de tanta leitura e releitura, papai passava os impressos da revista para a sua companheira
de vida, Laís Corrêa de Araújo, que era responsável por passar o pente-fino, retirando as lêndeas
e os piolhos que sobravam de nossa leitura.

Meu pai me fez historiadora da arte e da cultura, escritora e ensaísta, no dia a dia, independente do
curso de História da UFMG, onde os professores acreditavam ser ele o redator de meus trabalhos.

Affonso Ávila, que considerava o trabalho a melhor medicação para tempos difíceis, me arranjou,
desde bem jovem, ainda estudante, grávida e desempregada, uma função: a de fazer fichamentos
para a composição de seu livro Iniciação ao barroco mineiro. Tornei-me colaboradora desse livro
que, hoje esgotado, ainda desperta o interesse daqueles que se iniciam no estudo do barroco. Mais
ainda, fui responsável por redigir a biografia de artistas barrocos mineiros.

Com o nascimento de meu primeiro filho, André, pouco mudou, pois fui estagiária do APM, via
concurso público, da Fundação João Pinheiro e do Museu Mineiro, que foi inaugurado na direção
impecável de minha querida professora Myriam Ribeiro de Oliveira. Foi ela a minha mestra no
estudo formal da arte e da iconografia religiosa, começando pelos santos que compõem a coleção
Geraldo Parreiras.

Muitas foram as frustações de Affonso Ávila e suas vitórias que assisti desde criança. Por ele e
para ele, fichei a Bíblia em temas devocionais que interessavam tanto a ele como a mim. Herdei
de papel passado a revista Barroco, da qual fui responsável pelos dois últimos números publicados

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em papel, sendo o número 20 editado em homenagem ao poeta in memoriam. Na véspera de sua
morte, entregou-me dois textos para a edição de número 20, um deles pronunciado como aula
magna na Faculdade de Letras da UFMG e outro que havia sido enviado para a BARROCO pelo
poeta Haroldo de Campos.

Tive também, entre minhas experiências juvenis, a grata participação voluntária no projeto de
tombamento da Unesco das cidades de Ouro Preto e Mariana. Participei, junto ao meu saudoso
colega e amigo professor José Arnaldo Coelho de Aguiar Lima, do inventário e notas sobre o
pequeno distrito de Bento Rodrigues, em Mariana. Após o derramamento irresponsável de lama
tóxica sobre o pequeno distrito, que atingiu sua população, seus bens, materiais e imateriais, e as
consequências nefastas que fez o antigo trajeto da Bacia do Rio Doce até o oceano, destruindo
referências afetivas, pessoais, históricas, artísticas, fauna e flora, povos ribeirinhos etc.

***

Ao contrário do que se pensa nunca foi intenção do poeta, jornalista e ensaísta Affonso Ávila se
inserir na cultura brasileira como historiador ou fundador de uma nova concepção teórica sobre
o Barroco no Brasil. Mas foi, como ele mesmo disse, em depoimento publicado a seu pedido na
póstuma Barroco 20, “uma feliz coincidência e uma motivação telúrica” que já se adivinhava em
sua poesia “combativa e de denúncia política das raízes oligárquicas mineiras, especialmente os
poemas confeccionados em plena ditadura militar”.

Nesse momento trágico do país, Ávila encara um projeto que revolucionaria as ideias sobre
a análise do Barroco, o estudo de 2 documentos literários: Áureo Trono Episcopal e Triunfo
Eucarístico, que viriam a constituir o livro Resíduos Seiscentistas em Minas, premiado duas vezes
nacionalmente e publicado através do Centro de Estudos Históricos da UFMG.

A partir daí a relação de Affonso Ávila com o patrimônio cultural dá uma guinada certeira em prol
da militância profissional e decisiva na definição da política de preservação do patrimônio cultural
mineiro. No ano de 1968, ao lado de nomes como: Vinicius de Morais, Murilo Rubião, Domitila
do Amaral e Eloy Heraldo Lima, foi um dos responsáveis pela criação da Fundação de Arte de
Ouro Preto (FAOP). Posteriormente o poeta coordenaria a equipe de criação do IEPHA/MG.

A Barroco (1969) nasce com a intenção de cumprir o valor de uma ciência empírica de
experimentação, ainda que com o necessário respeito histórico às fontes impressas e arquivistas.
Buscava-se uma criatividade que abarcasse o fenômeno arte colonial brasileira às suas diversas
intertextualidades e ao fundamento das ciências humanas comparadas, ainda uma novidade
na época. Ao mesmo tempo, o organizador do periódico aliado ao pensamento de vanguarda,
especialmente o debate entre a revista Tendência e os concretistas, foge da linearidade evolucionista,

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ou de uma historicidade apoiada na evolução estanque de gêneros e escolas estilísticas, que nega a
possibilidade de apropriações, contaminações e sujidades próprias das transplantações culturais.
Afasta-se do conceito de barroco maior e barroco menor relevando toda a produção do período.

Cabe aqui uma bela citação de Benedito Nunes, que, além de filósofo sensacional, faz uma leitura
das mais dignas de quem foi Affonso Ávila e sua obra, iniciando pelas suas origens ancestrais em
Itaverava, Minas Gerais, onde ainda criança publicaria o que chamou de suas garatujas poéticas,
por iniciativa de sua tia Augusta, a quem homenageou com o poema “Cantiga de Santa Augusta”
no livro o Falso Alphonsus el Sábio.

“Deus não joga dados, dizia Einstein. O poeta, sim, ele os joga; mas os seus
dados são a matéria e forma de linguagem. Ambos lhe abrem o caminho a
uma preliminar experiência das coisas. Pela matéria sonora e gráfica, pela
forma enunciativa ou expressional, antes de tudo pelo ritmo da frase. (...)
O poeta pode fazê-la seguindo os modos e modas do momento presente
e do passado ou se opondo à dominância de um estilo, à inércia histórica
da tradição. (...) E que outro melhor meio de mostrar do que fazer ver,
colocar o que se mostra verbalmente como uma coisa no espaço à frente
de quem lê, intuída pelo poeta e perceptível para o leitor? (...) Cada poema
escrito nesse espírito renova o voto de franciscana pobreza que o sujeita, e
os versos de Affonso Ávila, assim elaborados, põem em prática toda uma
ascese mediante a qual foi possível escrevê-los. O que se quer que sob tal
ascese ele diga é quase sempre um dizer de menos. (...) No entanto, mineiro
de poucas palavras no verso e na vida, nascido em Belo Horizonte e, como
eu, em torno do fim da década de 1920, sempre voltado para suas ancestrais
raízes em Itaverava, nunca desatento à trama iluminista dos inconfidentes
de Vila Rica com o Barroco das igrejas e cidades setecentistas do ciclo do
ouro.”

Falar de sua poesia é pois falar de sua permanente interação de vidas, especialmente a de ensaísta
do Barroco e a sua poesia, que se estabelecem no “retraimento à expressão lírica em proveito a
narrativa com o epos tradicional popularesco”, nas expressão ainda de Benedito Nunes. Nascendo
daí poemas como “O Boi e o presidente”, “As Viúvas de Caragoatá”, “O Concílio dos plantadores
do Café” e, sobretudo “os negros de itaverava”, que me interessa particularmente pelos estudos
que venho fazendo ao lado do professor e ativista negro Paulo Esteban (quilombola do Bengo).

Terras férteis, por onde passa o Rio Piranga, afluente do mutilado Rio Novo, após a derrama
assassina das barragem em Bento Rodrigues, alvo cobiçado pelos pecuaristas da região, que roubam
água e terra dos quilombolas, sem que este fato seja notado e denunciado por nenhum órgão de
proteção governamental, atingindo a Usura, crime impune. Tema ao qual o poeta se refere, em
quase toda a sua produção poética, mesmo no período anterior e pós-ditatorial. A exemplo de:
Carta do Solo (1957- 1960), Carta sobre a Usura (1961-1962), Código de Minas, (1963-1967), Código

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Nacional de Trânsito (1971-1972), Cantaria Barroca (1973-1975), Barrocolagens (1968-1975) e o
Discurso da Difamação do Poeta (1973-1976), além de intercessões críticas em outras obras, até
mesmo nos poemas eróticos (muitos considerados pelo leitor menos atento como machistas, já
que a ironia não é sempre percebida).

Muitas críticas foram traçadas sobre a teoria do Barroco (mineiro, brasileiro e latino) de Ávila,
especialmente aquelas que pretendiam desmitificar o mito, como se Ávila não compreendesse o mito
como lugar da ficção do preenchimento do vazio, num país carente de memória e memorização.
No ano de 1971, Ávila nos brinda com um estudo ainda mais pertinente e inventivo – O lúdico
e as Projeções do Mundo Barroco, ressaltando o elemento lúdico nas formas de expressão do
Barroco. Neste livro ele propõe três linhas de explicação do fenômeno – a ênfase do Visual, o
lúdico e o persuasório (não deixando de lado a influência ideológica da Igreja da Contrarreforma
e do Absolutismo.)

Ávila incrementa ainda o estudo das transplantações culturais. Entende o fenômeno como
globalizante, uma sistematização de gosto e de estilo de vida, não apenas um estilo artístico formal
incluindo além da arquitetura, pintura e escultura, o teatro, a literatura, a festa, manifestações
populares até um senso de carnavalização da poética brasileira, que viria a ser confirmado pelos
tropicalistas. Não persegue a origem, mas a originalidade dos modos de ser no mundo colonizado
da América Latina.

Podemos acrescentar ainda estudos menores como os do livro O Poeta e a Consciência Crítica,
a Circularidade da Ilusão e outros.

Cabe destacar que toda a obra de Ávila incluindo vários números da Barroco encontram-se
esgotados e mesmo assim, com todas as dificuldades que o setor de cultura se deparou nesses
últimos anos temos número significativo de pesquisas e autores de acadêmicos a poetas e artistas
que se interessam pela labuta da cultura intelectual, que, de diversas formas, acenam ao pensamento
intertextual e intertemático que discutem de forma aberta com a formação da mentalidades e a
transhistoricidade em Minas, no Brasil e no mundo. São a consciência artística, poética e histórica
brasileira, como fizeram os primeiros historiadores brasileiros, o romantismo e os modernistas
aqui em belo texto de crítica de literatura, Macunaíma, Memória e Modernismo, por Myriam
Ávila, professora titular de Teoria da Literatura e Literatura Comparada no Programa de pós-
graduação em Estudos Literários da UFMG, como a partir de uma consideração de vanguarda
que entrelaça tempos, citações, ironia e a arquitetura do poema em sua vitalidade visual, aqui
representada por diversos autores destacando-se a análise das Barrocolagens do prof. Dr. Paranaense
Josoel Kovalsky, de textos fundamentais sobre arquitetura da profa. Sônia Gomes Pereira, profa
hemérita da UFRJ, arte portuguesa, um dos mais antigos colaboradores da BARROCO , o recém-
falecido prof. Dr. Luis de Moura Sobral, catedrático titular de cultura portuguesa de Montreal.

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A análise do poema Cantaria Barroca da Profa. e linguista da USP Carolina Tomasi, Capelas e
Matrizes do Goiás Colonial: Diálogo Arquitetônico com a Metrópole e as Capitanias Vizinhas, da
Profa. Deusa Maria R. Boaventura, da PUC de Goiás, entre diversos outros textos que abordam
a poesia resistência, o neo-barroco, estudos de música, artes cênicas, experiências patrimoniais,
iconografia religiosa e vários outros estudos significativos para o pensamento do Barroco como
tradição e vanguarda. Destacamos ainda a bela exposição De como Amar as Flores do Cerrado,
da artista Mônica Sartori, e o depoimento sobre estudos de restauração da Profa. e fundadora do
Cecor/UFMG, registros de eventos e resenhas de livros. Abarcando temas atrativos, conceituais,
teóricos e artísticos, como quis o fundador da Revista BARROCO, Affonso Ávila, infelizmente há
10 anos encantado mas, com certeza sorridente e feliz com a continuidade de sua Revista, graças
à perseverança e resiliência de seus companheiros intelectuais, ciente que era da difícil tarefa de
tirar leite de pedra, em tempos tão descrentes da importância da cultura, delegada que foi a um
desejado desaparecimento pela ignorância reacionária que quis dominar nosso país. Para seu
deleite “eis-nos aí”, sem um tostão de apoio de autoridades e instituições, nos fazendo presentes.

Dedicamos este número a recentemente falecida professora Emérita de literatura Comparada


da UFMG, profa. e ensaísta Eneida Maria de Souza, que fez parte de nossa primeira Comissão
Editorial, sugerindo textos, artigos e temas, com sua cultura ímpar e interdisciplinar, sua leitura
preciosa e seleção de artigos e sua inigualável generosidade.

Finalmente gostaria de agradecer a todos os autores e colaboradores da BARROCO DIGITAL


n.2, a comissão editorial do periódico, a revisão, ao projeto gráfico, a secretaria e bibliotecária,
que graciosamente nos cederam seu tempo e conhecimento.

Muito obrigada!

CRISTINA ÁVILA
Diretora da Revista Barroco Digital

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O AMADOR E A COISA AMADA

AFFONSO ÁVILA

V
iajante da palavra - a criação poética, a reflexão crítica, a pesquisa cultural, dividi-me, em
mais de 50 anos de atividade, entre trilhas, desvios e fidelidades, por um mundo variegado
de interesses, todos convergindo, no entanto, para uma realização pessoal conhecida
e reconhecida. Por cerca de duas décadas, em que me apaixonara, ao lado primacial da poesia,
pelo encanto e estranhamento do barroco em seu viés teórico, vejo-me, de repente, envolto com
os sinais e ruínas de um passado mais pragmático: a pesquisa e interpretação de fontes e acervos
de nossa fundante história como país ansiado e tropicalizado. Parti para o trabalho de campo em
projeto que, se não se concretizou, deixou mais que resíduos em meu olhar instigado e aguçado.

Foi o denominado Plano Viana de Lima concebido pela UNESCO e entregue aos destinos
direcionados da Fundação João Pinheiro, à época conceituada e prestigiada em todo o País
pelos seus estudos aplicados na área de desenvolvimento urbano. O Plano Viana de Lima,
urbanista da UNESCO e supervisor profissional da ambiciosa tarefa, contemplava a conurbação
histórico-regional das cidades de Mariana, a primeira diocese, e Ouro Preto, a ex-Vila Rica, centro
maior da mineração e administração do território do ouro. Ambas se encontravam diante de um
dilema: ou desenvolver-se ao revés de sua ancianidade urbanística e artística, inscrevendo-se de
vez na linha expansiva do progresso, ou desvirtuar-se de suas singularidades de tempo e beleza
tradicionais, em decadência maior do que a então sofrida. A UNESCO, que daria a Ouro Preto o
status de monumento universal, achou por bem intervir na questão, prevendo um rol conjugado
de providências, junto à irmã gêmea Mariana, que equacionasse o imperativo contraposto.

A Fundação João Pinheiro, com a cobertura dos governos federal e estadual e atrelada à visão técnica
da UNESCO, iniciou então o intitulado Plano de Conservação, Valorização e Desenvolvimento de
Ouro Preto e Mariana. Com nome já assegurado na vertente estudiosa do barroco – os Resíduos
(1967) e O Lúdico (1971), sou invitado oficialmente para assumir a Coordenação da Equipe de
Suporte Histórico-Documental (ESHD) da empreitada institucional, sendo então contratado para
fundamentá-la e organizá-la. Tendo a par a tutela urbanística e conjuntural do arquiteto, depois
amigo dileto, professor emérito Augusto Carlos da Silva Telles, representante do Governo Federal
(IPHAN e SEPLAN/PR); Francisco Iglesias, mestre e escolha afetiva; Myriam Andrade Ribeiro
de Oliveira, parceira de toda uma vida de promoções e trabalhos, um casamento profissional que
se diria profícuo; Hélio Gravatá, o dono dos segredos bibliográficos de Minas, e o restaurador
Jair Afonso Inácio, que em várias línguas sabia tudo de Ouro Preto. A eles – elenco setorial – se
somavam urbanistas, arquitetos, engenheiros, sociólogos, economistas, o ecólogo e paisagista Burle
Marx, outros técnicos e futurosos estagiários. Se o Plano se frustrou, salvaram-se a experiência,
o aprendizado, a afetividade, bens que não se compram, que se aprendem e apreendem.

Superado o insucesso pragmático do Plano Viana de Lima, permaneci na seara das cidades
históricas e até modernas, pulando da Fundação João Pinheiro para o IEPHA/MG – minha
criação anterior, dali para o Ministério da Cultura, de Brasília ao retorno à Fundação, na qual,
aos quase sessenta anos, fui vítima de um complô de preconceitos e desrespeito, demitido em
1988 por excesso talvez de talento e peso próprio de aplicação. Mas valeu. Apenas a poesia se
ressentiu desses deslocamentos e seus contratempos, porém logo me redimi, retornando com
força, paixão e decisão ao meu berço de origem, já inseminado de visões e previsões, convívios
e amavios, como o demonstra em linguagem, beleza e invenção a minha Cantaria Barroca,
estruturada em pedras, formas e percursos na temporada febril e inesquecível dos dois anos de
vivências e prendas ouro-pretanas. Trabalhei em outros levantamentos, se não do mesmo porte,
pelo menos da mesma espécie: o patrimônio histórico e artístico. Foram planos para o Circuito
do Diamante, o Circuito do Ouro, a visão de conjunto da província ancestral e contraditória, que
eu devassara irônica e implacavelmente na esfera da poesia, o tão bem-sucedido e questionado
Código de Minas, que me levou, no entanto, à primeira fila dos que são os ditos eleitos das musas.

Não há, ao que se conclui, história sem percalços e eu, na minha missão e visada preservacionista,
também os tive. Além do insucesso do Plano Viana de Lima, outros desacertos se adicionaram à
minha peripécia ora profissional, ora ao maior do tempo amadora. Doeu-me muito o cancelamento,
na última hora, do simpósio internacional do ano 2000, que, com Myriam Ribeiro e companheiros,
planejávamos, que me deixou, que nos deixou na contramão do tempo. E um segundo fato, de
ampla repercussão na ocasião, também me desapontou, tornando-me mesmo um quase incrédulo
do instituto do tombamento. Refiro-me à posição isolada em que fiquei no chamado “Caso Cine
Metrópole”, quando a incúria e a ganância se assestaram contra um sinal, ainda que quase dos
raros, que nos restava do início de Belo Horizonte (antigo Teatro Municipal), e descambaram
em franca falácia e insensibilidade. Contra meu voto, pessoal, explícito e resistente a pressões
políticas, voto consciente e solitário/solidário, alienou-se o velho edifício, reformado mas não
desfigurado, e, em seu lugar, ergueu-se mais uma torre de usura. Em vão lutaram, junto comigo, o
IAB (Instituto dos Arquitetos do Brasil – Secção de MG), artistas, intelectuais, estudantes e, enfim,
toda uma população afeiçoada à memorável casa de entretenimento da antiga Praça do Teatro.
Entretanto, como demonstram estas novas Memórias de Ofício, nem tudo foi fracasso em minha
trajetória na área. Ademais da revista BARROCO, que heroicamente persiste há mais de três
décadas, e hoje sob direção de minha filha e historiadora Cristina Ávila, dos congressos e encontros
de pesquisa que suscitou até internacionalmente, posso ostentar – como neste volume o faço – a
criação de entidades vitoriosas, que se impuseram ao panorama da cultura mineira: a Fundação
de Arte de Ouro Preto (FAOP), o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (IEPHA/
MG) e o Centro de Estudos do Ciclo do Ouro (CECO), este por incumbência do Ministério da
Fazenda, na monumental Casa dos Contos, de Ouro Preto. E mais fiz, como aqui se registra, que
me trouxe alento em quase vinte anos de ofício e que se agregam a trabalhos concretizados, como o
do Circuito do Diamante, o Igrejas e Capelas de Sabará, o Glossário de Arquitetura e Ornamentação,
ferramenta de iniciação em cursos de arquitetura, história, belas artes, turismo e fonte de acesso
de amplo público interessado (já esgotadas três edições!). Fique, ao final, camonianamente, o
dístico O AMADOR E A COISA AMADA, embora em casos de AMOR, como o que nutri nessa
passagem de minha vida, nem tudo reverte a beijos e abraços.

Sobrevivi.

AFFONSO ÁVILA

2011
A SACRISTIA COMO PINACOTECA
DA ÉPOCA BARROCA:
O CICLO PICTURAL DE BENTO COELHO
NO CONVENTO DE S. PEDRO DE
ALCÂNTARA, LISBOA

Luís de Moura Sobral1

N
a sua configuração actual – disposição em relação ao santuário, comunicação directa
com o exterior e decoração com lavabo, móveis diversos e obras de arte – a sacristia
data unicamente dos finais do século XVI. Antes do século IX não se tem conhecimento
da existência nas catedrais e templos importantes de locais especificamente designados como
“tesouros”. As vestes sacerdotais e os objectos do culto eram então arrecadados em cofres ou
baús que se dispunham na sacristia, dependência cuja existência se constata desde o século
III. Certas igrejas de maior importância possuíam mesmo duas sacristias, uma para as funções
quotidianas, e a outra reservada ao /capítulo e aos cónegos, sendo nesta última que se guardavam
as relíquias e o Tesouro.
Assim praticamente desde sempre, serviu a sacristia para conservar relíquias, objectos preciosos
relacionados com o culto e, duma maneira geral, obras de arte. Na Itália do Renascimento a
arquitectura de tais locais foi por vezes concebida de maneira autónoma, integrando-se num
conjunto coerente outros elementos decorativos. As exigências do culto e as prescrições de
ordem litúrgica próprias da Contra Reforma determinaram para a sacristia um novo estatuto
físico e simbólico. O enriquecimento decorativo e semântico próprio da época barroca vem
assim sistematizar e coroar uma tendência que na realidade se verifica desde os começos
do cristianismo. Acrescente-se que o arcaz, a cómoda em cujas espaçosas gavetas se podem
guardar estendidas as vestes sacerdotais, elemento fundamental das sacristias barrocas, aparece
unicamente no século XVII2.

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Muitas sacristias construídas ou decoradas durante o barroco constituem verdadeiros e preciosos
museus da arte da época. São numerosos os exemplos desta situação e se aqui e além se encontram
análises que incidem sobre um ou outro aspecto do problema, desconheço a existência de
estudos globais sobre o tema; tão-pouco, creio, se tratou de elaborar uma tipologia da decoração
das sacristias barrocas portuguesas3. Tal não é evidentemente o meu propósito aqui, mas para
o ponto que vou tratar, parece-me útil referir rapidamente alguns exemplos particularmente
significativos desta problemática. Para me ater exclusivamente ao espaço geográfico e cultural
que mais diretamente nos interessa, mencionemos a sacristia do Real Convento do Escorial, que
desde os finais do século XVI se constituiu deliberadamente como um verdadeiro museu de
pintura. Na segunda metade do século XVII a sacristia do Escorial albergava uma das melhores
e mais importantes coleções de pintura de toda a Espanha. A execução, entre 1685 e 1690, da
enorme tela de Claudio Coello A Sagrada Forma, deu novo sentido à decoração, volvendo-se
ao mesmo tempo o seu ponto fulcral e a sua representação especular. Contemporâneos da tela
de Claudio Coello, são os trabalhos da gigantesca decoração da sacristia da Catedral do México,
para a qual Cristóbal de Villapando, um dos mais importantes pintores barrocos mexicanos dos
finais do século, realizará alguns dos seus quadros mais ambiciosos. Outro exemplo famoso, mas
de uma época mais tardia, é a sacristia da Cartuxa de Granada, que combina numa apoteótica
exaltação da sensualidade devota, raramente igualada, relevos em estuque, esculturas e pinturas.
Em Portugal o exemplo provavelmente mais conhecido é a sacristia da Igreja Lisboeta de S. Roque,
verdadeiro repositório da pintura dos séculos XVII e XVIII. Com planta rectangular, arcazes
dispostos contra as paredes, filas de quadros por cima deles e tecto apainelado com emblemas
pintados, eis de certa maneira o modelo de sacristia para o espaço português de seiscentos com o
qual se poderá relacionar, por exemplo, a sacristia da actual Catedral de Salvador. Os espaldares
dos arcazes de S. Roque contêm uma notável série de cenas da vida de S. Francisco Xavier de
André Reinoso, dos começos do século XVII; os restantes quadros são dos séculos XVII e XVIII.
Outro exemplo português que parece ter-nos chegado sem grandes modificações, entre dezenas de
outros casos semelhantes, é a sacristia do convento de S. Francisco de Lamego, pouco conhecida.
Aqui se reúnem num todo homogéneo os distintos elementos do barroco lusitano: os azulejos
nas paredes, teto de madeira com emblemas e arcazes em cujos espaldares se instalaram, tal como
num verdadeiro retábulo, três telas de cada lado que uma predela composta por nove minúsculas
pinturas (três por baixo de cada grande quadro), separa dos arcazes. De meados do século XVIII
data a famosa sacristia do Convento da Igreja da Madre de Deus em Lisboa, onde se utilizaram
mármores, talha dourada, madeiras preciosas azulejos e pinturas. Destas, as que estão no espaldar
dos arcazes são da primeira metade de quinhentos e as Cenas da vida de José do Egipto das paredes,
assim como a Assunção do tecto, são do pintor setecentista André Gonçalves. Deste mesmo
pintor são as principais telas da sacristia de Santa Cruz de Coimbra, onde também há importantes
pinturas do século XVI. Esta dependência foi traçada possivelmente por Pedro Nunes Tinoco por
volta de 1622-24, e constitui um bom exemplo de arquitectura monumental, rica, mas severa, ao
fim e ao cabo típica da época de transição do maneirismo para o barroco.
Enfim, valerá seguramente a pena mencionar um último exemplo que, com mais ou menos
variantes, aparece repetido em diversas sacristias cistercienses de Portugal. Em Cós, na
Estremadura, as paredes da pequena dependência estão completamente cobertas por painéis

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de azulejos historiados, dos começos de setecentos, com cenas da vida e da lenda de S.
Bernardo. Note-se, como curiosidade, uma porta em trompe-l´oeil, curiosa transposição para
azulejo da decoração ilusionística típica da época; aqui trata-se unicamente duma irônica e
subtil alusão à técnica do trompe l´oeil, pois é evidente que uma simples monocromia azul
não poderá enganar ninguém... Alusão e ilusão bem dentro do espírito do tempo.
O exemplo que me proponho estudar com mais pormenor é a sacristia do convento lisboeta de
S. Pedro de Alcântara, mobilada com dois arcazes, que constituem os seus principais elementos
decorativos. Nos espaldares destes encontram-se dois grupos de óleos sobre tela, quatro sobre cada
arcaz (Figura 1). As pinturas são inequivocamente da mão de Bento Coelho da Silveira, nascido
por volta de 1628 e morto em 1708. Este pintor foi famosíssimo na segunda metade do século
XVII, tendo produzido uma quantidade impressionante de pinturas para Lisboa e para diferentes
regiões do país e mesmo, ao que parece, para a Índia e para o Brasil4. Nomeado pintor do rei em
1678, o artista foi celebrado pelos poetas da Academia dos Singulares de que ele também fazia
parte. Bento Coelho publicou de facto nas colectâneas da Academia poemas em castelhano e em
português, o que nos revela uma faceta importante da sua personalidade e da sua cultura e nos
informa sobre o meio social por ele frequentado na Lisboa do último quarteirão de seiscentos.
Bento Coelho aparece-nos assim como um pintor literato, fenómeno nada comum na história da
pintura barroca portuguesa e que tem passado até agora completamente desapercebido5. Bento
Coelho tem sofrido o ostracismo a que desde sempre se votou em Portugal o estudo da pintura
barroca, situação que parece agora em vias de se corrigir. Verdade é que a produção deste artista é
desigual, pecando frequentemente por incorreções no desenho, anatomias desajeitadas e execução
precipitada. Inegáveis defeitos, por certo, mas que não nos podem levar a esquecer a importância
sem paralelo que Bento Coelho teve na segunda metade do século XVII.

Figura 1 - Arcaz do lado esquerdo, Sacristia da igreja do convento de S. Pedro de Alcântara, Lisboa, último terço do século XVII.

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As obras de S. Pedro de Alcântara, típicas em muitos aspectos do fabresto Bento Coelho, não
contam entre as suas produções mais felizes. Para nós elas possuem, no entanto, um interesse
capital; encontram-se ainda hoje no local para onde foram encomendadas três séculos atrás
e constituem uma série homogénea e completa, permitindo que as estudemos globalmente
enquanto ciclo, dentro do contexto que lhes é próprio.
As pinturas nunca foram anteriormente atribuídas a Bento Coelho e, em boa verdade; quase
nunca foram mencionadas na escassíssima literatura consagrada ao convento. O conde
Raczynski que os viu nos anos 1842-45, refere-se-lhes dizendo que, tal como a maior parte
dos quadros da igreja, “não merecem sequer ser mencionados”6. Vitor Ribeiro, nos finais do
século XIX, menciona distintos quadros na igreja e um ou outro na sacristia, mas ignora as
pinturas dos arcazes7. Idêntica atitude encontra-se no primeiro volume dos influentes guias de
Portugal publicados pela Biblioteca Nacional de Lisboa8. Pedro da Cunha Santos refere-se-lhes
de passagem, em 1944, sem outros comentários: “Passemos à Sacristia. Possui belos arcazes com
preciosos embutidos (...) e 8 quadros emoldurados”9 Mais recentemente dataram se as telas dos
finais do século XVIII, o que é sem dúvida sintomático do estado dos conhecimentos actuais
sobre a pintura barroca portuguesa10. Ora as obras – arcazes e pinturas - questão rigorosamente
documentadas já em 1707, quando Bento Coelho era ainda vivo; “Os caixões têm seus respaldos
em que há quatro painéis de cada banda, fronteiros uns aos outros, e por cima dos mesmos
painéis corre uma cimalha do mesmo pau santo de que são as molduras e os caixões (...)11.
Contrariamente pois ao que certos autores parecem pensar, nem todo o recheio do convento
desapareceu com oTerramoto de 175512, hipótese que de facto justificaria a atribuição das
pinturas a artistas da segunda metade do século XVIII.
As telas, de forma quase quadrada (78 x 61cm), representam alegorias da Cruz e põem em
cena duas figuras que, vestidas da mesma maneira, se repetem de tela para a tela; uma com um
manto comprido, azul acizentado, e a outra com um vestido vermelho e uma camisa branca. A
continuidade narrativa ou temática é desta maneira imediatamente enunciada. Cada quadro
contém na parte inferior uma inscrição latina tirada de distintos livros bíblicos, devidamente
identificados na maior parte das vezes. O ciclo começa pela pintura da esquerda do arcaz do
lado norte da sacristia, à esquerda de quem entra, E terminasse com a tela à direita do arcaz do
lado sul, à direita do visitante.
A inscrição do primeiro quadro (Figura 2) é tirada dum passo frequentemente utilizado dos
evangelhos de Lucas (9,23) ou de Mateus (16,24). Àquele que o queira seguir Jesus diz “que a si
mesmo renuncie e pegue na cruz”13. A personagem à esquerda, com a cruz e um manto azul,
identifica-se assim claramente como o Cristo. Por outro lado, a figura feminina em segundo
plano, à direita, com um alaúde na mão esquerda e um prato de frutas na outra mão, é totalmente
estranha ao texto evangélico e para se proceder à sua interpretação temos pois de recorrer a
outras fontes. O Tratado de l está boma oración y meditación escrito em 1533 por S. Pedro de
Alcântara, orago do convento, não nos oferece nenhuma pista nesse sentido. A verdade é que o
passo de Lucas ou de Mateus nem sequer é utilizado no texto, o que, dada a profunda devoção
que S. Pedro de Alcântara nutria pela cruz, não deixa de ser surpreendente.

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A Chave iconográfica das pinturas de Bento Coelho encontra-se na obra do monge beneditino
Jacques (Benedictus na religião) van Haeften (1588-1648), Regia via Crucis Cuja primeira
edição foi publicada em Antuérpia em 1625. O livro, na sua versão latina ou traduzido para
diversos outros idiomas, conheceu um êxito considerável e duradouro em toda a Europa. Van
Haeften, que estudou filosofia e teologia na Universidade de Lovaina, é normalmente associado
a corrente rigorista da primeira metade do século XVII. Interessado pela ascese, pela vida moral
pela oração ordinária, pela ideia de renúncia, Haeften mostra-se nas suas principais obras
espirituais particularmente atento a humanidade do Cristo e a figura de Jesus como mestre e
como guia14. A Regia via Crucis consta de uns quarenta capítulos e apresenta-se como um longo
colóquio entre Cristo e Staurófila (amante da cruz) sobre o tema da distribuição das cruzes e dos
sofrimentos15. A edição de Antuérpia de 1635 foi ilustrada de gravuras ao buril por um artista
não identificado. São estas as gravuras que Bento coelho utilizou como fonte de inspiração. A
gravura da página 104 traz na parte superior a mesma citação que a tela de S. Pedro de Alcântara
e, por baixo, duas linhas de Haeften: “Leva os ombros, como uma cruz, a tua natureza e toda a
tua personalidade; se te apetece comer, recusa” (Figura 3). A figura com o instrumento musical
e com os frutos na pintura de Bento Coelho é assim a personificação dos prazeres sensuais a que
aquele que queira seguir o exemplo de Jesus se deve obrigatoriamente furtar.

Figura 2 - Bento Coelho, Abneget semetipsum et tollat Crucem


suam, sacristia da igreja do Convento de S. Pedro de Alcântara Figura 3 - Autor desconhecido, gravura ao buril na página 104
Lisboa último terço do século XVIII. de Haeften, Regia via Crucis, Antuérpia, 1635.

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Figura 4 – Painel de azulejos, claustro superior, Museu do Azulejo -
Convento da Madre de Deus, Lisboa, primeiro terço do século XVIII (foto do autor).

Figura 6 - Autor desconhecido, gravura ao buril na


Figura 5 – Bento Coelho, Cum ipso sum in tribulatione, Sacristia da página 358 de Haeften, Regia via Crucis, Antuérpia,
igreja do convento de S. Pedro de Alcântara, Lisboa, último terço do 1635.
século XVII (foto do autor).

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Figura 7 – Bento Coelho, Pondus et statera judicia Domini sut, Sacristia
da igreja do convento de S. Pedro de Alcântara, Lisboa, último terço do Figura 8 – Autor desconhecido, gravura ao buril da
século XVII (foto do autor). página 48 de Haeften, Regia via Crucis, Antuérpia, 1635.

Note-se, e estas observações aplicam-se a toda a série de S. Pedro de Alcântara, que o pintor
modificou sensivelmente a composição da gravura conferindo-lhe uma maior diversificação
espacial, acrescentando Anjos e anjinhos e dinamizando de maneira geral as atitudes das
personagens. De simples ilustrações, algo hieráticas e sempre com reduzido número de figurantes,
as alegorias transformam-se pelo pincel de Bento Coelho em composições movimentadas,
coloridas, cheias de personagens secundárias. Staurófila está ajoelhada diante de Cristo, numa
demonstração de humildade e de respeito, a terceira personagem avança lestamente, parecendo
dançar, enquanto quatro ou cinco anjos colaboram duma maneira ou de outra à acção.
As gravuras do livro de Haeften eram bastante conhecidas em Portugal na época barroca. Elas
foram de facto utilizadas num grande ciclo de azulejos para o convento de freiras chamado
das Grilas, hoje no claustro superior do Museu do Azulejo em Lisboa (Figura 4). As alegorias
diretamente copiadas das gravuras, praticamente sem alterações, alternam aí com cenas da vida
quotidiana, num discurso didático de carácter claramente moralizador, contrapondo à vida
profana as atitudes mortificatórias necessárias à redenção.
A segunda tela (“Com ele estou na angústia”, Salm. 91,15)16 utiliza a referência, pelo texto de
Haeften, à Esposa do Cântico dos Cânticos, numa imagem que também se pode interpretar como

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uma mensagem de fidelidade conjugal (Figura 5); “Quão leve, oh minha esposa, se transforma
o peso da Cruz por uma só vontade! A cruz une-te a mim” (Figura 6). Não se deve esquecer
que também nas sacristias se travavam assuntos relativos as cerimônias do casamento, quando
não a própria cerimônia, e a mensagem da tela nisso poderia encontrar uma dupla justificação.
A pintura seguinte é mais complexa (Figura 7). Ela baseia se numa passagem dos provérbios
(16,11); “A balança e os pratos com justiça são de Deus”17. Deus pai ordena a um anjo que pese
as cruzes para que outro anjo as distribua aos mortais. Bento Coelho colocou Jesus e Staurófila
no lado esquerdo e o anjo com a balança na parte central da composição (Figura 8). Por sua
vez o azulejo simplificou e reduziu a representação a um mínimo de figurantes, seguramente
por falta de espaço na zona superior (Figura 9). A última tela do arcaz da esquerda (Figura 10)
baseia-se num versículo de Isaías, “Só com a humilhação se compreende a lição” (28,19)18. Para
interpretar a imagem é necessário recorrer uma vez mais ao texto deHaeften: “Sou o boi, o meu
corpo é um campo, a Cruz é o cabo da charrua, o lavrador é Jesus. Ah, quantos frutos dará a
Terra se ela é úbere” (Figura 11). O cristão tem, pois, de se submeter a vontade de Deus que
saberá fazer frutificar o que na sua alma está semeando. O azulejo da Madre de Deus copia uma
vez mais a gravura sem modificações.

Figura 9 – Painel de azulejos, claustro superior, Museu do Azulejo - Convento da Madre de Deus, Lisboa, primeiro terço do século
XVIII (foto do autor).

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Figura 10 – Bento Coelho, Sola vaxatio intellectum dabit auditui, Figura 11 – Autor desconhecido, gravura ao buril da
Sacristia da igreja do convento de S. Pedro de Alcântara, Lisboa, último página 314 de Haeften, Regia via Crucis, Antuérpia,
terço do século XVII (foto do autor). 1635.

O primeiro quadro do arcaz da direita uma interpretação um tanto misógina dum versículo do
Salmo 32, 10 (Figura 12); “Muitas dores serão para os pecadores”19. Com efeito nada no texto
indica tratar-se de pecadores do sexo feminino, mas é assim que Bento Coelho os representa,
limitando-se a seguir o texto de Haeften e a gravura que o ilustra: “As mulheres perversas
recusaram a mais pequena Cruz. Quanto mas elas a evitam mais pesadas será a Cruz que terão
de levar” (Figura 13). É assim um diabólico monstro que, como um castigo, impõem a Cruz à
mulher Dobrada sobre o seu peso. Note-se que o azulejo eliminou o diabo, acaso considerado
inútil ou inapropriado num claustro feminino... Bento Coelho pintou uma outra série de
alegorias da Cruz baseadas nas mesmas gravuras das quais só uma coincide com um dos temas
tratados em S. Pedro de Alcântara. As dez telas, a necessitar urgente tratamento de conservação,
encontram-se dispersas por diversas dependências da igreja do antigo convento das Flamengas,
em Lisboa. A pintura que se inspira no Salmo 32 é de qualidade muito superior à da sacristia de S.
Pedro. As telas das Flamengas, de dimensões mais consideráveis e de execução mais cuidadosa,
indicam uma encomenda de outra importância. O convento dito das Flamengas era de facto
uma fundação real e porventura destinar-se iam as telas à decoração de alguma sala de carácter
oficial. Na pintura seguinte, Bento Coelho separou nitidamente as duas figuras; Jesus assenta
solidamente os pés na terra firme (Figura 14). A citação bíblica é de outro Salmo (“Socorro
na aflição”, 107,13)20, mas é a glosa de Haeften que lhe confere um carácter marítimo: “Que

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a âncora segura na Cruz salvadora me ajude na minha desgraça, senão, como uma náufraga,
desaparecerei nas águas do mar” (Figura 15). O terceiro quadro da direita apresenta-nos a
surpreendente imagem da Cruz transformada numa harpa (Figura 16). A citação da primeira
epístola de Pedro (4,13) proclama: “Alegrai-vos pois participais nos sofrimentos de Cristo”21,
e o texto de Haeften explica que “com a Cruz a doença é para mim uma delícia, a morte uma
vantagem e o sofrimento uma volúpia, pois não me sinto esmagado pelo peso de nenhuma
Cruz” (Figuras 17-18). A pintura com que fecha o ciclo é uma das que mais fielmente seguem
um modelo flamengo (Figura 19). Cristo, no cimo dum monte que quase se confunde com o
céu, acolhe Staurófila que utiliza a Cruz como uma Escada. A citação é dum dos primeiros livros
da bíblia (Exodo 24,12) e transcreve as palavras que Jeová disse a Moisés: “Sobe até a mim no
monte”22. Desta vez a imagem compreende-se perfeitamente sem o texto de Haeften) ”Sobe,
uma Cruz fácil serve-te de escada idónea: sobe, assim te está aberto um caminho real para o
céu”. (Figura 20)

Figura 12 – Bento Coelho, Multa flagela peccatorum, Sacristia da igreja do convento


de S. Pedro de Alcântara, Lisboa, último terço do século XVII.

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Figura 14 – Bento Coelho, Auxilium de tribulatione, Sacristia da igreja
Figura 13 – Autor desconhecido, gravura ao buril da do Convento de S. Pedro de Alcântara, Lisboa, último terço do século
página 80 de Haeften, Regia via Crucis, Antuérpia, 1635. XVII (foto do autor).

Figura 16 – Bento Coelho, Praedicantes Christi passionibus gaudete,


Figura 15 – Autor desconhecido, gravura ao buril da Sacristia da igreja do Convento de S. Pedro de Alcântara, Lisboa,
página 320 de Haeften, Regia via Crucis, Antuérpia, 1635. último terço do século XVII (foto do autor).

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Figura 17 – Autor desconhecido, gravura ao buril da página 228 de Haeften, Regia via Crucis, Antuérpia, 1635.

Figura 18 – Painel de azulejos, claustro superior, Museu do Azulejo -


Convento da Madre de Deus, Lisboa, primeiro terço do século XVIII.

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Figura 19 – Bento Coelho, Ascende ad me in montem, Sacristia da igreja Figura 20 – Autor desconhecido, gravura ao buril da
do Convento de S. Pedro de Alcântara, Lisboa, último terço do século página 388 de Haeften, Regia via Crucis, Antuérpia,
XVII. 1635.

Assim também, apropriadamente, se termina o ser mão plástico patente na sacristia, dirigido
a todos os que, religiosos ou leigos, habitualmente a frequentam o Por Ela passam. A primeira
tela do ciclo, a única que alude a uma passagem da vida do Cristo (um versículo do evangelista
S. Lucas), introduz a problemática geral; a Cruz como filosofia de vida a vida como imitativo
Christi. Nas quatro pinturas seguintes a Cruz é o que cada um deve carregar, símbolo das
dificuldades e misérias da existência. Os três últimos quadros apresentam nos, um espírito
radicalmente diferente, optimista e cheio de Esperança, a Cruz como um instrumento de
salvação. Na derradeira pintura do ciclo, última astúcia teológica e retórica, a alusão implícita
a Moisés evoca a unidade da história sagrada, a continuidade entre o fundador institucional
da religião judaica, o instaurador da Antiga Lei, por um lado e, por outro lado, o fundador do
Cristianismo, o instaurador da Nova Lei. Será este último que, se aceitarmos e seguirmos o que
nos é explicado nas pinturas, nos acolherá no cimo do monte, no lado de lá da realidade, a qual
não passa pois de fictícia, fatídica, ilusão...
No conturbado século XVI abundam as manifestações de amor e de devoção à Cruz, no
momento do martírio do Filho de Deus e via da salvação. Santa Teresa de Jesus escreveu em
1581 num poema intitulado La Cruz:

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Em la cruz está la vida
Y el Consuelo,
Y ella solo es el caminho
Para el cielo ...
Toma, alma mía, la cruz,
Com gran Consuelo,
Que ella es el caminho
Para el cielo.23

Um poeta português, religioso capucho, Frei Agostinho da Cruz (1540-1619), é o autor dum
Hino à Cruz, centrado obviamente sobre o Cristo da paixão:

Pelo rasto do sangue derramado


O seu caminho iremos acertando

Peço-te, minha Cruz, que esta alma encraves


Com esse Redentor, Verbo divino.24

Mas as citações sobre este tema tirada de autores dos séculos XVI e XVII encheriam provavelmente
bibliotecas inteiras. Lembremos unicamente que o século XVI é a época de San Juan de la Cruz,
de Luis de Granada, de Inácio de Loiola, e que a pintura barroca, necessitada de êxtases, de
martírios e de imagens de penitência e de devoção, multiplicou até à saciedade as representações
da Cruz em todo o tipo de visões, aparições, adorações, milagres, etc, etc.
S. Pedro de Alcântara é uma das figuras de religioso do século XVI que mais utilizou a Cruz na
sua acção de pregação e de evangelização. Nascido em Alcântara, na estremadura espanhola,
em 1499 e falecido em 1562, franciscano descalço, S. Pedro de Alcântara, esteve por diversas
vezes em Portugal, contando-se entre os fundadores do convento da Serra da Arrábida. Director
espiritual de Santa Teresa, S. Pedro distinguiu-se por um modo de vida espantosamente severo25.
Foi devotíssimo da Cruz, como no-lo mostra o seu principal biógrafo Francesco Marchese
no livro preparado para o processo da sua canonização26. Marchese descreve ainda diversos
fenômenos de êxtase ou de levitação, que tudo isso era necessário no estabelecimento das provas
da santidade de um candidato à canonização: “Sucesse poù volte, che ponendosi di notte ad
orare nel campo, fù vedutto da Pastori sollevato da terra nell´aria l´altezza d´um huomo; e altre
volte più alto che uma picca com le braccia distese in sembianza di Croce; il qual modo d´orare
era al Servo di Dio assai familiare (...)”27.

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Figura 21 – Bento Coelho, Arrebatamento de S. Pedro de
Alcântara diante da cruz, Altar-mor da igreja do Convento de S. Figura 22 – Jean-Jacques Thurneissein, Arrebatamento de S.
Pedro de Alcântara, Lisboa, último terço do século XVII. Pedro de Alcântara diante da cruz, buril, 1670.

Figura 23 – Painel de azulejos, átrio da igreja do Convento de S. Pedro de Alcântara, Lisboa, primeiro terço do século XVIII.

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É desta maneira que o representa Bento Coelho na grande tela do altar mor da igreja do convento
de S. Pedro Alcântara, erradamente atribuída a Cirilo Volkmar Machado, pintor falecido em
1823 (Figura 21). O quadro, de factura mais cuidada do que as obras da sacristia, deve ter sido
executado na mesma época, depois o texto de 1707 acima citado também lhe faz referência28.
Para a composição desta tela também se socorreu Bento Coelho de uma gravura, prática
correntíssima em Portugal durante a época barroca. O artista seguiu com bastante fidelidade
a gravura de Jean-Jacques Thurneissein (1636-1718), inserida na tradução francesa do livro do
padre Marchese publicada em Lyon em 1670 (Figura 22). Entre a documentação utilizada por
Bento Coelho para realizar estas encomendas, com certeza que também sem encontrava um
sermão de Frei Álvaro Leitão, pregado por ocasião da canonização de S. Pedro de Alcântara
impresso em Lisboa em 1671: “Os êxtases, os raptos, os arrombamentos S. Pedro de Alcântara
foram uns prodígios raros; é um espanto o considerar se quão excessivos, quão veementes e
quão contínuos eram. Era devotíssimo da Cruz, e assim apenas se punha a contemplar junto à
qualquer Cruz quando se via com os braços em Cruz arrebatados nos ares, cercado de raios tão
divinos, de nuvens tão gloriosas, que bordavam de Divino na claridade todos os circovizinhos
horizontes; se rezava no coro, ei-lo tão elevado que dava com a cabeça no teto; se no caminho,
já um, já dois, já três côvados de alto, se junto às árvores se punha de joelhos, ei-lo subido em
tanta altura que vencia as mesmas árvores; tanto o levava o amor, que parece tinha já o dote
da agilidade” (meu sublinhado). E o Frade termina a passagem com uma exclamação futebol,
repetida espaçadamente ao longo do sermão, teatral o sentimentalismo: “Que é isto, meu
Glorioso Santo, onde há de parar tanto Fogo?29”
As pinturas de Bento Coelho constituem assim um programa coerente que se desenrola com
lógica em distintos lugares do templo. O tema geral e central do ciclo, associado evidentemente
ao orago da igreja, é apresentado no altar mor e desenvolve-se nas oito pinturas da sacristia com a
complexidade teológica e alegórica da parenética seiscentista. O programa pictural prolongar-se
a ainda, em meados do século XVIII, com um ciclo de azulejos colocados nos muros Exteriores
da igreja que representam S. Pedro de Alcântara a dar esmola à porta do convento, cenas pouco
comuns na iconografia do Santo. Um único mostra-nos a visita de dois nobres (Figura 23). De
cara para o mundo o convento apregoa assim a sua atividade assistencial, enquanto as pinturas
no interior do templo refletem preocupa ações íntimas, d ordem espiritual.
A devoção à Cruz tem antigas e profundas tradições em Portugal. A fundação do mosteiro de
Santa Cruz de Coimbra data de 1132 e anda estreitamente ligada à formação da nacionalidade.
As paredes da igreja, decoradas com azulejos do século XVIII, representam logicamente
histórias da Invenção da Santa Cruz e da Batalha de Constantino sobre a ponte Mílvia, lenda que
se repercute num dos mitos fundadores da nacionalidade portuguesa, o milagre de Ourique,
pintado nos finais do século XVIII por Domingos António de Sequeira. Tal como o general
Romano, o futuro primeiro rei de Portugal ficou a dever uma das suas principais victórias contra
os Mouros à intervenção do crucificado filho de Deus que lhe a apareceu no próprio campo de
batalha. Dois séculos e meio mais tarde em momentos decisivos das lutas do condestável Nuno
Álvares Pereira contra os Espanhóis é a mãe do Cristo que assegura a vitória dos Portugueses,
numa continuidade tipológica e iconográfica de extraordinária coerência, tal como se vê nos
azulejos da Capela da orada em Sousel, Estremoz (século XVIII). É ainda a Cruz da ordem

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militar de Cristo que decora e protege as velas das Caravelas portuguesas que no século XV se
aventuram pelo Atlântico e pelo Índico. E é evidente que também as vitórias dos Portugueses
contra os Espanhóis, após a revolta de 1640, foram uma vez mais possíveis isso graças à vigilante
colaboração das divindades que nunca abandonaram os príncipes portugueses, numa história
providencialista incansavelmente repetida, século após século, após século...30
Ora o convento de S. Pedro de Alcântara foi fundado por volta de 1672 por António Luís de
Meneses, primeiro Marquês de Marialva, um dos principais chefes militares nas guerras com a
Espanha, “em acção de graças pelas vitórias das linhas de Elvas e de Montes Claros”31, vitórias
essas que foram determinantes para o desfecho das guerras da Restauração32. António Luís de
Meneses foi um membro ilustre da nova classe dirigente Aparecida depois de 1640. Contando-
se entre os primeiros que, em 1 de Dezembro de 1640, aclamaram o novo rei D. João IV, o
Marquês, Capitão vitorioso nas guerras da Restauração, foi um dos enviados plenipotenciários
de Portugal às negociações de paz de 1668. Respeitado e prestigiado, D. António de Meneses
prosseguiu depois uma carreira de alto funcionário. Bem contente devia andar Bento Coelho da
Silveira, pintor de sua majestade e primeiro pintor de Lisboa, por contar com clientes destes, à
altura da sua hierarquia profissional.
A devoção à Cruz que a decoração do convento celebra, insere-se, pois, numa velha tradição
onde os factos políticos da história de Portugal se confundem com hoje desígnios da Providência.
E, neste sentido, providencial também terá sido a canonização, em 1669, um ano depois do
tratado de paz entre Portugal e Espanha, de Pedro de Alcântara, espanhol que viveu em Portugal
nascido numa terra, Alcântara, onde D. António Luís de Meneses tinha feito anos atrás vitoriosas
incursões. A a figura do Santo, enaltecida no país vitorioso, não podia deixar de ser vista como
um símbolo mais do triunfo pessoal do Marquês de Marialva que, grande deste mundo mais
piedoso e bom cristão, não desdenharia sublinhar desta maneira o seu apreço pela unidade
espiritual da Península enfim pacificada.
Obra de prestígio, outras importantes personalidades se associariam ao financiamento de S.
Pedro de Alcântara. D. Veríssimo de Lencastre, por exemplo, inquisidor geral, arcebispo de
Braga e cardeal em 1686, filho do 3º Comendador-mor de Avis, ali mandaria construir uma
sumptuosa Capela funerária à direita do pequeno átrio, fora da igreja.
O convento de S. Pedro de Alcântara é uma manifestação típica dos finais do século XVII, quando
a afirmação da classe dirigente passava também, obrigatoriamente, pela teatral ostentação das
crenças religiosas. Assim, na época barroca, manifestavam os poderosos a sua humildade cristã.
Assim, em Portugal nos finais de seiscentos, se constituíram colecções de pintura. E ainda bem
que assim aconteceu, já que de outras nenhumas notícias nos chegaram.

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Notas
1 Luís de Moura Sobral (1943-2021) historiador da arte, professor emérito do Departamento de História da Arte
e Estudos Cinematográficos da Faculdade das Artes e das Ciências, e titular da Cátedra de Cultura Portuguesa,
da Universidade de Montreal
2 Jean Taralon, Les trêsors des Eglises de France, Paris, 1966; Dictionnaire pratique de liturgie Romaine, Paris,
1951; Mario Zocca Enciclopedia Cattolica, Cidade do Vaticano, vol. X, 1949-1954; Julius von Schlosser,
Die Kunst und Wunderkammern der Spatrenaissance. Ein Beitrag zur Geschichte des Sammewesens, 2ª.
ed., Braunschweig, 1978; J. Miguel Morán e Fernando Checa, El colecionismo em Espana. De la câmara de
maravillas a la galeria de pintura, Madrid, 1985.
Este trabalho foi elaborado no quadro de um projecto de investigação sobre “Bento Coelho e a pintura barroca
portuguesa”, que conta com o apoio do Conselho de Investigação em Ciências Humanas do Canadá e da
Universidade de Montreal.
3 Só durante o Congresso de Ouro Preto depois de ter redigido esta comunicação, tomei conhecimento do
excelente trabalho de Cleide Santos Costa Biancardi, Formas e Funções das Sacristias no Brasil-Colônia (Tese de
Doutoramento, Universidade de São Paulo, 1988), que corrige a situação no que diz respeito ao Brasil colonial.
4 Só durante o Congresso de Ouro Preto depois de ter redigido esta comunicação, tomei conhecimento do
excelente trabalho de Cleide Santos Costa Biancardi, Formas e Funções das Sacristias no Brasil-Colônia (Tese
de Doutoramento, Universidade de São Paulo, 1988), que corrige a situação no que diz respeito ao Brasil
colonial.
5 Ver o texto da minha comunicação ao “V Simpósio Hispano-Português de História del Arte”, Universidade de
Valladolid, Maio de 1989, “Bento Coelho da Silveira (c. 1628-1708) y la pintura hispânica e hispanoamericana”
(no prelo), onde apresento uma primeira abordagem desta problemática. Em preparação tenho neste momento
um estudo mais elaborado sobre o assunto.
6 Raczynski, Les Arts em Portugal, Paris, 1846, p. 291.
7 Vitor Ribeiro, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, Subsídios para a sua história, 1498-1898, Lisboa, 1902,
p.300-301.
8 Guia de Portugal, I. Generalidades. Lisboa e arredores, Lisboa, 1924, p. 327.
9 Pedro da Cunha Santos, “O Convento de S. Pedro de Alcântara”, Olisipo, VII, 1944, 25, p. 59.
10 M[aria] J[oão] M[adeira] R[odrigues], “Igreja e Convento de São Pedro de Alcântara”, Monumentos e Edifícios
Notáveis do Distrito de Lisboa, V, 2, Lisboa, 1975, p. 58-59: “Os arcazes são encimados por oito pinturas de
grande vivacidade que documentam, quer pela ligeireza do traço, quer pela luminusidade da escala cromática,
o terceiro quartel do século XVIII”.
11 História dos Mosteiros, Conventos e Casas Religiosas de Lisboa, II, Lisboa, 1972, p. 165.
12 Parece ser efectivamente esta a opinião, quem fluiu sobre as que se lhe seguiram, de Júlio de Castilho (Lisboa
Antiga. O Bairro Alto, IIIm 2ª. ed., Lisboa, 1903, p. 346), que cita o Mappa de Portugal de meados do século
XVIII de João Baptista de Castro:”(...) sacristia, casa do capítulo (...), tudo se prostrou e destruiu (...)”.
13 ABNEGET SEMETIPSVT, (sic) ET TOLLAT CRVCEM SVAM”.
14 Albert Pil, artigo “HAEFTENUS”, Dictionnaire de spiritualité ascétique et mystique. Doctrine et histoire, vol. VII,
Paris, 1969, colunas 24-27.
15 Gabriel Llompart, “La cruz y las cruces. La iconografia y el floklore em la interpretación del texto del evangelio
de San Mateo 16,24”, Revista de Etnografia (Porto), 1972, 32 p. 310-311.
16 “CVM IPSO SVM IN TRIBVLATIONE. Psal. 90. 15”
17 “PONDVS ET STATERA IVDICIA DM SVNT. Prov. 16?”
18 “SOLA VEXATIO INTELLECTYM DABIT AVDITVI, isaie 28?”
19 “...TA FLAGELLA PECCATORVM. Psal. 31. 10”
20 “AVXILIVM DE TRIBVLATIONE. Psal. 10...”

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21 “PRAEDICANTES CHRIS (sic) PASSIONIBVS GAVDETE”. A inscrição da gravura – e do azulejo da Madre
de Deus – diz “Communicantes” em vez de “PRAEDICANTES”. Numa tela mexicana do século XVII ou XVIII,
onde se vê o Menino Jesus a tocar numa Cruz como se fosse uma viola a inscrição é tirada do Salmo 118, 54:
“Cantabiles mihi erant iustificationes tuae in loco peregrinationis meae” (Santiago Sebastián, “La imagem de la
cruz como instrumento musical”, Traza y Baza, 1976, 6, p. 120-121).
22 “ASCENDE AD ME IN MON...”
23 Obras completas de Santa Teresa, Madrid, 1962, p.484.
24 Obras de Frei Agostinho da Cruz... Coimbra, 1918, p.280.
25 Fr. Stéphane-J. Piat, le maitre de la mystique saint Pierre d´Alcantara, Paris, 1959; Antonio Blasucci, PIETRO
d´Alcantara, santo” Bibliotheca Sanctorum, vol. X, Roma, 1968, colunas 652-661.
26 Francesco Marchese, Vita del B. Pietro d´Alcantara... Raccolta dalli Processi fatti per la sua Canonizatione,
Roma, 1667, p. 37-40.
27 Marchese, 1667, p. 314-315.
28 História dos Mosteiros, 1972, p. 164: “Tem o retabolo sua tribuna muyto bem dourada, cuja boca cobre huma
pintura, que representa a Sam Pedro de Alcantara abraçando-se com a cruz.”
29 Frey Alvaro Leytam, Sermam na festa da Canonizaçam de Sam Pedro De Alcantara, Lisboa, 1671, p. 32 (na
citação actualizo a ortografia e a pontuação).
30 Ver a propósito destes problemas e da sua representação gráfica Luís de Moura Sobral, “Théologie et propagande
politique dans une gravure de la monarchie portugaise de 1640”, Nouvelles de l´estampe, 1988, 101-102, p. 4-9.
31 V. Ribeiro, 1902, p. 298.
32 A cronologia exacta da fundação varia ligeiramente de autor para autor mas a datação que parece mais fidedigna
é aqui propõem a História dos Mosteiros, escrita em 1707: em 1672 os frades tomaram Posse de umas casas, ”no
ano de 1681 se lançou a primeyra pedra pera a igreja, era a qual se mudou o Senhor em dezoyto de Abril de
1685, e deste dia se conta a antiguidade do mosteyro” (História dos Mosteiros, vl. 2, 1972, p. 163). Fr. António
da Piedade também menciona o ano de 1672 como o da fundação (Espelho de Penitentes e crônica da Província
de Santa Maria da Arrábida... Lisboa, vol. V, Lisboa, 1728, p. 544).
A História dos Mosteiros afirma ainda que “a capella mor da igreja e o retabolo della mandou fazer a sua custa
o ditto Marquez e nella tem seu jazigo (...)”, fazendo menção, na página seguinte, da pintura que ali se encontra
“que representa a Sam Pedro de Alcântara abraçando se com a cruz”. Como o primeiro Marquês de Marialva
morreu em 1675, pode ser pois que a pintura de Bento Coelho já então estivesse acabada; em Abril de 1685, data
em que para lá se transferiu o Santíssimo Sacramento, estava-o com mais probabilidade. O mesmo raciocínio
se pode aplicar às telas da sacristia, que devem datar desses mesmos anos. De qualquer maneira, todas as obras
de Bento Coelho estavam in situ antes de 1707. Depois da morte do primeiro Marquês de Marialva em 1675, o
seu sucessor, Pedro António de Meneses deu continuidade aos trabalhos para acabar de cumprir o que, pelos
vistos, o seu pai havia deixado o disposto.

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A IGREJA DE GESÙ EM ROMA:
A INFLUÊNCIA ESPANHOLA MEDIEVAL
ALIADA AO CLASSICISMO REFINADO
DO CINQUECENTO ITALIANO

Sônia Gomes Pereira1

I
A CONTRA-REFORMA E OS JESUÍTAS

A
reação da Igreja Católica à Reforma Protestante2 foi iniciar uma reforma radical na
liturgia, no clero e nas ordens monásticas, que atingiu um efeito mais vigoroso na
Itália a partir da terceira década do século XVI. Em Roma, a reforma religiosa foi
particularmente intensificada após o saque da cidade, em 1527, por tropas francesas, espanholas
e austríacas, fato que tomou uma significação apocalíptica para os contemporâneos3. O mesmo
espírito de reforma religiosa se estendeu fora de Roma, especialmente no norte da Itália, onde,
em 1524, Gian Matteo Giberti, nomeado bispo de Verona, começou uma completa reformulação
em todo os aspectos da prática eclesiástica de sua diocese4.
Este espírito reformista atingiu também as velhas ordens medievais: Santa Teresa D’Ávila e
São João da Cruz são os grandes reformadores das Carmelitas e São Pedro de Alcântara dos
Franciscanos. Ao mesmo tempo, novas ordens surgiram, expressamente organizadas para
promover e expandir a Reforma Católica, como os Capuchinhos, os Barnabitas, os Oratorianos,
os Jesuítas, entre outros.
Em todas estas novas ordens, os Jesuítas tiveram, desde o início de sua existência, um papel de
liderança na Contra-Reforma, não apenas na Europa, mas também na África, Ásia e América5.
Criada em 1539, em Roma, por Santo Inácio de Loyola6 e aprovada em 1540, pelo Papa Paulo III,
a Companhia de Jesus era, nos seus primórdios, uma ordem predominantemente espanhola, e
enfrentava imensas dificuldades para dar conta dos inúmeros empreendimentos, que sua rápida
expansão lhe impunha.

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Em 1550, quando São Francisco de Borja7 chegou a Roma, encontrou-a confinada a uma pequena
Capela, Santa Maria dela Strada, inteiramente inadequada para acomodar as multidões atraídas
pelos seus Sermões. Com o seu prestígio junto à Cúria e à nobreza romana, Borja conseguiu
remover os obstáculos, que até então Santo Inácio havia encontrado, e obteve permissão para
construir uma igreja grande na vizinhança da Piazza Venezia8.

II
O PRIMEIRO PROJETO PARA O GESÙ DE ROMA: 1550
Neste mesmo ano de 1550, um projeto foi feito para a nova igreja e claustro9 (Figura 1). O
Desenho não é assinado, mas provavelmente foi feito por Nanni di Baccio Bigio, um Florentino
que trabalhou como assistente de Antonio da Sangallo, o Jovem, e que sucedeu a Rafael como
arquiteto de São Pedro do Vaticano. Esta atribuição é baseada isso num documento de 1554, em
que o próprio Nanni menciona o “disegno che ho fato dela chiesa nova, che vole fare la comp.a
di Jesu”10.

Figura 1 - Primeiro projeto para o Gesù de Roma (1150).

Este projeto prevê uma nave bastante larga com uma entrada na fachada principal e ladeada
por seis capelas em cada lado. O transepto não é proeminente, apenas está um pouco mais largo
do que as capelas da nave, e possui uma entrada lateral em cada um dos braços. A nave, ainda,
prolonga-se além do transepto, também ladeada por um par de capelas, e termina na abside. A
cobertura seria um simples teto plano de madeira e a fachada seria enquadrada por torres11.
Em termos funcionais, o programa desta igreja estava em perfeita concordância com os novos
requisitos da Contra-Reforma, que, em relação à liturgia, envolviam três pontos básicos: à assistência
à missa, a assistência ao sermão e o comportamento respeitoso e piedoso dos fiéis na igreja.
A nova religiosidade, procurava incentivar uma profunda espiritualidade nos fiéis, demonstrada

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na igreja por um comportamento adequado de respeito e piedade. Para isso, todas as distrações
e referências mundanas deveriam ser removidas das igrejas. Este novo ascetismo encontrava
expressão visual no confinamento de toda a ornamentação colorida das capelas, em contraste
com a simplicidade e austeridade das naves. Este requisito básico da Contra-Reforma, no
entanto, afetava diretamente a proposta espacial de suas igrejas.
A respeito dos sacramentos, o principal objetivo era conseguir tornar a assistência à missa e a
participação na comunhão tanto regular quanto popular12. A consequência de missa e comunhão
regulares na arquitetura, foi a preferência por uma planta com uma nave larga, desimpedida de
obstáculos, para tornar mais fácil o acesso às inúmeras capelas, e a ênfase na capela-mor como
lugar de santidade especial pela presença da Eucaristia13.
Com relação à pregação, os sermões passaram a ser considerados como um instrumento muito
eficiente na evangelização14. Arquitetonicamente, A importância do sermão demandava o uso
da nave como um bom auditório: devia, portanto, ser mais larga possível e concebida como um
espaço unificado. Afetava, ainda, a própria estrutura da igreja, uma vez que envolvia a escolha
de coberturas em função de suas propriedades acústicas15.
O projeto de 1550 para o Gesù, portanto, atendia a todas essas instruções contra-reformistas
mas não chegou a ser executado, parcialmente porque previa pouco espaço para o claustro, mas
sobretudo, porque os Jesuítas não conseguiram chegar a um entendimento com os poderosos
proprietários das áreas vizinhas, a fim de assegurar o espaço necessário para o projeto inteiro da
igreja e claustro.

III
O SEGUNDO PROJETO PARA O GESÙ DE ROMA: 1554
Um outro projeto, identificado por uma escritura posterior como sendo para o Gesù, foi feito
provavelmente em 155416 (Figura 2). Ele tem sido atribuído muitas vezes a Michelangelo17:
primeiro, por causa das cartas entre Santo Inácio e o secretário da Ordem Jesuíta, Padre Polanco,
mencionando que os serviços do grande artista tinham sido assegurados para o Gesù18, e
segundo, pelo fato do desenho possuir anotações feitas no material favorito de Michelangelo,
giz vermelho, e em seu estilo característico.
Examinando, no entanto, este segundo projeto, nota se o conjunto é muito próximo ao esquema
original de Nanni: uma abside e um transepto amplos e uma nave com cobertura plana de
madeira. Há, porém, algumas diferenças: as três portadas da fachada, a ausência das duas torres
na fachada, quatro Capelas laterais em lugar de seis, um transepto mais largo e com braços
proeminentes e uma pequena área entre nave e transepto, com indicação de conter escada. Em
relação ao primeiro projeto, este segundo parece uma solução melhor desenvolvida, embora
seguindo o mesmo partido básico.
Por esta época, o que Michelangelo estava fazendo em termos de arquitetura, mostra que ele

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estava muito mais comprometido em explorar as possibilidades com espaços centralizados19.
Fosse ele, portanto, o autor deste segundo projeto para o Gesù, certamente teria tratado a
cabeceira de uma maneira muito mais elaborada.
Este projeto de 1554, na verdade, deve ser um desenho alternativo do próprio Nanni ou de
alguém próximo a ele. E as anotações feitas em giz, se realmente foram feitas por Michelangelo,
não passam de correções acrescentadas20.
Mas este projeto, assim como o primeiro, também não chegou a ser executado e pelo mesmo
motivo: o problema de conseguir as áreas vizinhas permanecia sem solução.

Figura 2 - Segundo projeto para o Gesù de Roma (1554).

IV
O MECENATO DO CARDEAL FARNESE
Em 1561, o Cardeal Alessandro Farnese, sobrinho do Papa Paulo III, concordou em pagar pelos
custos da igreja: este patronato mudou completamente o enfoque que tinha sido dado até então
pelos Jesuítas, sobretudo pelo fato de Farnese indicar Giácomo Barozzi Vignola21 para arquiteto
do Gesù.
É verdade que, desde o início, Vignola havia estado envolvido com a Igreja, mas apenas
assessorando como especialista22. Ele deve ter-se ocupado das medições para os limites precisos
do lugar, o que constituía um problema básico: a impossibilidade de obter a área atrás dos
palácios Altieri e Astalli forçava os Jesuítas a ficarem restritos há uma área irregular, em que a
igreja tinha de ser posicionada em relação oblíqua às ruas. Esta era, na verdade, a posição da
velha igreja de Santa Maria Alteriorum (Figura 3), que foi o primeiro núcleo do Gesù. E esta
era também, a posição do primeiro projeto (FI. 1). Este problema do posicionamento da igreja
em relação ao contexto urbano era uma das principais preocupações do Cardeal Farnese, que
enfaticamente desaprovava a posição insólita da igreja nestas soluções anteriores23. E, de fato,
ele conseguiu resolver o problema removendo os obstáculos para a aquisição dos dois palácios
atrás, permitindo assim localizar a igreja numa posição mais razoável, formando ângulo reto

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com a esquina (Figura 4).

Figura 3 - Igreja de Santa Maria Alteriorum numa planta de Bufalini

Figura 4 - Igreja do Gesù marcada numa planta de Roma do século XVII.

A preferência do Cardeal Farneses por Vignola será de capital importância para a igreja do
Gesù. Desde o seu estabelecimento definitivo em Roma, em 1550, Vignola era considerado
pelos seus contemporâneos como um arquiteto e engenheiro altamente competente. Durante o
Papado de Júlio II, de 1550 a 1555, tinha sido requisitado para alguns empreendimentos papais
importantes, como a Villa Giulia, perto de Roma, onde trabalhou de 1550 a 1558, Sant´Andrea
in Via Flaminia, que pertencia ao conjunto da Villa, de 1550 a 1553. A partir de 1559, tornou-se
arquiteto da família Farmese, estando, consequentemente, à frente de seus principais projetos:
o Palácio Farnese em Piacenza, de 1561 a 1565; o Orti Farnesiani sul Palatino, de 1565 a 1573;
assim como a sua colaboração com Michelangelo no Palácio Farnese em Roma.

As negociações entre Farnese e os Jesuítas


Apesar da decisão do Cardeal Farnese de patrocinar a igreja do Gesù ter sido tomada em 1561,
somente sete anos mais tarde, em 1568, transformou-se num fato mais concreto. Durante o
verão de 1568, uma série de negociações foram feitas entre Farnese Vignola, de um lado, e os

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Jesuítas, do outro, representados pelo agora Geral da Ordem, São Francisco de Borja24, pelo
Secretário Juan de Polanco e pelo arquiteto chefe Giovanni Tristano25.
Estas negociações resultaram em duas cartas de 26 de agosto, com instruções de Farnese para
Borja e para Vignola, que especificam os pontos essenciais acordados: primeiro, o custo da obra
não excederia 25000 escudos; segundo, a igreja deveria ter uma única nave com capelas laterais;
terceiro, a nave deveria ser de alvenaria abobadada; e quarto, a fachada deveria estar voltada
para o lado ocidental. O Cardeal termina as cartas, afirmando que, estando estas estipulações
garantidas, Vignola estaria livre para escolher o que fosse melhor para a igreja26.
Em quase todas estas instruções, prevaleceram as opiniões de Farnese: a preocupação com a
localização da igreja e, sobretudo, a decisão pelo teto abobadado de alvenaria, contrariando a
preferência de São Francisco de Borja pelos tetos planos de madeira. A única recomendação
procedente dos Jesuítas refere-se à determinação de nave única com capelas laterais.

V
O PROJETO DEFINITIVO PARA O GESÙ DE ROMA: 1568
Em 1568, Vignola fez o projeto definitivo para o Gesù de
Roma, adotando o partido da nave única com capelas
laterais e com cobertura abobadada, seguindo as
instruções da carta de Farnese (Figuras 5 e 6)27.
A planta de Vignola compreendia uma nave única
bastante larga, ladeada por quatro pares de capelas
laterais intercomunicantes, encimadas por galerias; um
transepto bastante largo, com braços não proeminentes;
e a capela-mor composta por um tramo semelhante ao
da nave, ladeado por duas capelas laterais, e pela abside.
O conjunto formava, portanto, um retângulo compacto,
apenas com exceção da abside.

O TRATAMENTO ESPACIAL DA NAVE


O tratamento do alçado da nave é feito por uma
sequência de duplas pilastras colossais, ladeando arcos
Figura 5 - Planta do Gesù em Roma, Vignola (1568). de meio-ponto de acesso às capelas laterais, com exceção
do tramo próximo ao transepto, em que o vão recebe um
portal, em vez de arco: estas duas últimas capelas laterais são, na verdade, passagens de acesso
a portas laterais. As galerias sobre as capelas laterais abrem-se para a nave atrás de pequenas
tribunas – os coretti - que encimam hoje vãos das capelas laterais, mais são fechados por treliças

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de madeira, para que os padres possam assistir aos serviços privativamente. Um entablamento
bastante pronunciado e ininterrupto arremata as paredes da nave: sobre ele a grande abóbada de
berço, com janelas do clerestório em forma de lucarnas.

Figura 6 - Interior do Gesù em Roma.

Este tratamento dado ao alçado de sua nave confere ao Gesù de Roma uma configuração espacial
nova. A grande linha horizontal e ininterrupta do entablamento, que inevitavelmente reforça a
longitunidade da nave, direcionando o espectador a avançar em direção à cabeceira da igreja,
é enfaticamente contraponteada pelas grandes linhas verticais das duplas pilastras colossais,
que refreiam o olhar do espectador e o fazem deter se na própria nave. Este fenômeno ainda
é reforçado pela colocação do púlpito exatamente no meio da nave, trazendo, portanto, para o
centro dela, um dos pontos principais de atuação dentro do cerimonial litúrgico: o sermão. A
própria escolha de Vignola – e esta é uma das novidades do Gesù de Roma em relações às igrejas
anteriores - de não usar a habitual sequência de pilastras e arcos da mesma altura, preferindo
empregar a alternância de altas pilastras duplas e a superposição de arcos baixos encimados por
tribunas vedadas mudou, radicalmente, a concepção espacial desta nave: primeiro, porque as
tribunas de vedadas funcionam como partes da superfície das paredes mais do que como vãos,
reforçando, desta forma, essas paredes como limites do espaço da nave; segundo, porque os
arcos mais baixos isolaram mais as capelas laterais, que se transformavam em simples apêndices
da nave, não interferindo no seu espaço, que é, desta forma, mantido muito mais compacto. Por
meio desta nova maneira de articular as paredes, portanto, a nave da igreja do Gesù de Roma se
constitui numa unidade espacial compacta e independente28.

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O TRATAMENTO ESPACIAL DA CABECEIRA
Outro aspecto remarcável da planta da igreja do Gesù em Roma é o tratamento dado à sua
cabeceira como um organismo centralizado. Envolve a capela-mor, constituída por um tramo
ladeado por duas capelas laterais e a abside; o transepto, constituído pelo Cruzeiro e dois braços
não proeminentes; e ainda se expande para a nave, incorporando o seu primeiro tramo e o seu
primeiro par de capelas laterais, na verdade, como já foi referido anteriormente, funcionando
como passagens para portas laterais. Estas suas capelas laterais recebem tratamento idêntico às
duas que ladeiam o tramo da capela-mor: são internamente circulares, demarcadas por pilares
pesados e seu acesso é feito através de portais. O primeiro tramo da nave tem as mesmas proporções
dos dois braços do transepto e do tramo da capela-mor. O resultado desta articulação é uma
cabeceira concebida, como planta, em cruz grega com capelas nos quatro ângulos, sendo todo o
conjunto inscrito num quadrado. Também na cobertura, o sistema usualmente empregado nas
plantas, em cruz grega, é repetido: as 4 capelas dos ângulos são cobertas por cúpulas; o tramo
da capela-mor, hoje braços do transepto e o tramo da nave são cobertos por abóbadas; todas
estas cúpulas e abóbadas formam um sistema de contrafortes, que ajuda a sustentação da cúpula
central sobre o cruzeiro, muito alta (54 metros), também suportada por seus quatro pilares.

A COMBINAÇÃO DE PLANTAS LONGITUDINAL E CENTRALIZADA


Finalmente, é necessário enfatizar a maneira harmoniosa como Vignola conseguiu solucionar
o problema da combinação de plantas longitudinal e central num mesmo partido. Primeiro,
Vignola emprega uma escala de proporções que integra todas as partes da planta: a nave é
muito larga (18 metros), mas não muito comprida (36 metros); as capelas laterais são quadradas
com 9 metro de lado; o transepto tem 18 metros de largura e 36 metros de comprimento; a
capela-mor tem 18 metros de largura e seu comprimento, incluindo a ábside, é de 18 metros. As
medidas usadas por Vignola não podiam ser mais simples. Ele usa, na verdade, o quadrado do
Cruzeiro como módulo: assim, a nave corresponde a dois módulos; a capela-mor, um módulo;
o transepto, dois módulos; a altura da cúpula do cruzeiro, três módulos; e as capelas laterais um
quarto de módulo.
Mas há, ainda, um segundo motivo para Vignola ter conseguido tornar a igreja do Gesù em
Roma num conjunto tão bem integrado: é a concepção da nave como a síntese de um espaço
ao mesmo tempo é estático e orientado. a nave trabalha como um espaço estático, porque ela é
uma unidade espacial auto-suficiente, bem definida por paredes planas e continuas e a enorme
abóbada de berço. Mas, por outro lado, a nave trabalha também como um espaço orientado,
porque os coretti e o entablamento ininterrupto enfatizam o eixo longitudinal, estimulando o
espectador a mover-se adiante, ao mesmo tempo que a luz vinda da cúpula do Cruzeiro e da
abside também chama atenção para a cabeceira da igreja29. Novamente aqui, pode-se verificar a
competência de Vignola ao contrabalançar os jogos de luz e sombra: se a cabeceira recebe uma
grande ênfase por sua luminosidade especial, a nave é dotada de uma luminosidade mediana,
vinda das janelas da fachada e das lucarnas do clerestório, enquanto as capelas laterais ficam
mergulhadas na sombra. Mas a grande ênfase é mesmo dada a iluminação que jorra da cúpula

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sobre o cruzeiro, que ilumina o altar mor e hoje altares nos braços do transepto, dedicados a Santo
Inácio de Loyola e a São Francisco Xavier. Assim, a nave do Gesù é também um espaço orientado
para um clímax, que é o cruzeiro com a cúpula: espaço longitudinal e espaço centralizados em
integram desta forma, tornando-se indispensáveis um ou outro.

O VOCABULÁRIO FORMAL DA IGREJA


Vignola segue no Gesù de Roma os ideais de regularidades, simetria, ordem e uso correto das
ordens, que também caracterizam os seus outros projetos, assim como o seu tratado Regolla delli
cinque ordini de architettura30.
As paredes interiores são articuladas com duplas pilastras colossais compósitas, sem pedestal,
suportando um entablamento que percorre ininterruptamente nave, transepto e capela-mor,
seguindo instruções que aparecem em seu próprio tratado31.
Na nave, as duplas pilastras colossais são flanqueadas por arcos (nos três primeiros pares de
capelas laterais) e portais (no último par de capelas laterais, próximo ao transepto), todos
encimados pelas tribunas.
Este motivo de pilastras colossais enquadrando dois andares de vãos já havia Aparecido em
projetos anteriores de Vignola: na fachada do Palazzo dei Banchi em Bolonha (1548-1561) e na
fachada voltada para o jardim na Villa Giulia em Roma (1550-1555)32. No Tambor da cúpula
sobre o cruzeiro as duplas pilastras são usadas de novo, desta vez articulando com uma sequência
alternada de nichos e janelas.
O vocabulário formal classicista de Vignola no interior do Gesù foi perturbado pela decoração
barroca posterior33. No seu estado original, no entanto, o Gesù de Roma deveria parecer sóbrio
e austero na sua simplicidade e monumentalidade.

O PROJETO DA FACHADA
A planta de Vignola para Gesù, provavelmente feita em setembro de 1568, foi imediatamente
aceita pelo Cardeal Farnese, mas a fachada permaneceu indeterminada. Vignola foi pago por
um modelo para a fachada em 1569 e por outro modelo em 157034. Destas propostas, só se
conhece o projeto final, que foi gravado por Mario Cartaro em 1573 (Figura 7): tratava-se de
uma fachada com dois andares, o inferior mais largo do que o superior, unidos lateralmente
por volutas interrompidas, é um frontão reto como a remate superior. Mas nenhuma das
proposições de Vignola agradou ao Farnese. Em janeiro de 1570, Galeazzo Alessi foi convidado
para submeter um projeto para a fachada35, mas somente o projeto de Giacomo della Porta de
1571 foi aceito (Figura 8): baseando-se, claramente, no projeto de Vignola, della Porta acentua
a portada principal, com a invenção do frontão inscrito em outro frontão, e traz os nichos
para o corpo da fachada, deixando os corpos laterais cegos; suas volutas são mais compactas,
enfatizando a união entre os dois andares.

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Figura 7 - Projeto de Vignola para a fachada do Gesù.

A CONSTRUÇÃO
Quando Vignola foi afastado36, as capelas laterais e a nave, sem a abóbada, já estavam construídas.
A direção da obra foi, então, entregue ao arquiteto-chefe dos Jesuítas, o Padre Giovanni Tristano,
e, após a sua morte em 1575, ao seu sucessor, Padre Giovanni De Rosis. A fachada foi terminada
em 1575 e a abóbada da nave em 1577, quando começou a construção da cabeceira com a
colaboração de della Porta, especialmente para a cúpula37. A igreja ficou totalmente pronta em
1584.

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Figura 8 - Fachada do Gesù em Roma, Della Porta (1571).

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VI
A IGREJA DO GESÙ DE ROMA EM RELAÇÃO
A ARQUITETURA ITALIA CONTEMPORÂNEA
Dois aspectos da igreja do Gesù de Roma seguem os modelos mais característico da Renascença:
a concepção da cabeceira da igreja como organismo centralizado e a combinação de plantas
longitudinal e centralizada num único partido.
O interesse pelas plantas centralizadas sempre esteve presente durante o Quattrocento38: vários
exemplos podem ser dados, tais como a Capella Pazzi em Santa Croce (1430) e Santa Maria
degli Angeli (1434), ambas de Brunelleschi em Florença. No final do Quattrocento, em Milão,
este interesse atingiu o apogeu com as experiências de Leonardo e Bramante. Assim, no início
do Cinquecento, a planta centralizada predominava em toda a Itália. O exemplo mais notável
é, sem dúvida, o Tempietto de Bramante em San Pietro in Montorio (1502), mas, todas as oito
igrejas iniciadas em Roma, antes do saque da cidade em 1527 eram, centralizadas39.
A partir do segundo quartel do Cinquecento e até o final do século, em virtude das mudanças
litúrgicas introduzidas pela Ccontra-Reforma, a igreja longitudinal com nave única e capelas
laterais, predominou como partido preferencial para os projetos de igrejas. Em em torno de
1550, no entanto, ressurge o interesse pelas plantas centralizadas. Neste grupo, podem ser citados
o projeto de São Pedro do Vaticano, feito por Michelangelo em 1546, e Santa Mariadi Carignano
em Gênova, projeto de 1549 de Galeazzo Alessi, construída a partir de 155240.
O problema da combinação das plantas longitudinal e centralizada, num único partido, já havia
sido tentado durante o Quattrocento41. A igreja da SS. Anunziata em Florença, por exemplo,
era uma igreja gótica de três naves cuja construção foi começada em 1444 por Michelozzo e
mais tarde completada, de 1470 a 1473, sob a superintendência de Alberti. A velha igreja de três
Naves foi transformada numa nave única com capelas laterais, acrescentando a rotunda, que é
uma cópia exata do templo de Minerva Medica em Roma, para servir como memorial do pai de
Lodovigo Gonzaga (Figura 9).
Também Sant´Andrea, em Mântua, foi feita para Lodovigo Gonzaga. Foi projetada por Alberti
em 1470, mas a construção não tinha sido começada até a morte de Alberti em 1472 e muito
da igreja (parte oriental e cúpula) só foi completada no século XVIII. Do modo como foi
construída42, Sant´Andrea é uma igreja de nave única com capelas laterais combinada com uma
cabeceira centralizada, que é formada por um transepto proeminente com uma cúpula sobre o
cruzeiro e uma capela-mor igual aos braços do transepto (Figura 10).

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Figura 9 - Igreja da SS. Annunziata em Florença. Figura 10 - Igreja de Sant´Andrea em Mântua.

VII
ASPECTOS DA IGREJA DO GESÙ EM ROMA FORA DOS
MODELOS ITALIANOS TRADICIONAIS E CONTEMPORÂNEO
A Solução de articulação das paredes predominantemente no Quattrocento e, mesmo no
Cinquecento, sempre foi a simples sequência de pilastras e Arcos da mesma altura, reforçando
o eixo longitudinal da nave e tornando-a um espaço orientado em direção à cabeceira, que se
destacava, assim, como o lugar mais importante da igreja. A igreja franciscana de Sant´Angelo
em Milão, por exemplo, foi fundada pelo vice-rei Ferrante Gonzaga. Começado em 1552 e
consagrada em 1555, é obra de Domenico Giunti e segue este padrão tradicional de articulação
das paredes da nave. Também SS. Paolo e Barnaba em Milão, projetada por Galeazzo Alessi,
provavelmente em 1558, é construída entre 1561 e 1567, para a Ordem dos Barnabitas, surgida
com a Contra-Reforma, apresenta este mesmo partido. Outro exemplo é San Salvatore al Monte,
projeto de Cronaca, de final do século XV, consagrada em 1504 (Figura 11).

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Figura 11 - Igreja de San Salvatore al Monte em Florença (interior).

O Gezù de Roma, no entanto, apresentava uma novidade no tratamento das paredes da nave, como
já foi referido anteriormente: as duplas pilastras colossais, ladeadas por Arcos baixos encimados
por tribunas vedadas, reforçam as linhas verticais e as superfícies das paredes, contrapondo,
desta maneira, as Fortes linhas horizontais formadas pelo entablamento ininterrupto. A nave do
Gezù, então, torna-se uma unidade espacial independente, reforçada pela colocação do púlpito
bem no meio da nave, caracterizando, portanto, este espaço como um auditório para sermão.
É verdade que, Sant´Andrea em Mântua, projeto de Alberti de 1470, também apresentam certo
sistema de compensação na nave: a importância do Cruzeiro com a cúpula é contrastado por
eixos laterais estabelecidos pelos arcos transversos da abóbada de berço e pela sequência de vãos
alternados grandes e pequenos da nave43. Mas, como a Construção não foi começada antes da
morte de Alberti, em 1472 e boa parte da igreja - a cabeceira e a cúpula - só foi completada no

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século XVIII, alterando o projeto inicial de Alberti, o Gezù de Roma é, com mais segurança, o
iniciador deste partido de alçado na Itália.
Outra feição da igreja do Gezù de Roma, que foge a tradição arquitetônica italiana, é o próprio
partido da nave única com capelas laterais e transepto não proeminente, um retângulo compacto.
A preferência é pela planta da nave única com capelas laterais, em lugar da tradicional planta
basilical, isto é, planta com três naves, começou a ser difundida em alguns países da Europa a
partir do século XIII, com a expansão das recém-criadas Ordens Mendicantes, os Franciscanos
e os Dominicanos que, por enfatizarem a importância da pregação, necessitavam de igrejas que
funcionassem como bons auditórios.
Na Itália, no entanto, tal fato não ocorreu: os Franciscanos e os Dominicanos continuaram
usando a planta basilical em quase todas as suas igrejas, só aparecendo a planta de nave única
com capelas laterais em algumas poucas igrejas mais modestas, como a igreja de San Francesco,
em Messina, de 1254.
Não tendo, portanto, sido um partido usual na arquitetura italiana medieval, como em outros
países europeus, a planta de nave única com capelas laterais será usada em alguns exemplos da
arquitetura do Quattrocento mas, com características diferentes das que apareceram mais tarde
no Gezù de Roma: em geral, aparece combinada à cabeceira com planta centralizada que é, na
verdade, o espaço renascentista por excelência; as naves são tratadas, preferencialmente, como
eixos longitudinais, sem constituírem espaços autossuficientes; e os transeptos apresentam
quase sempre os braços proeminentes, formando planta em cruz latina, e não o retângulo
compacto. São vários os exemplos: a igreja dominicana de San Marco em Florença, não cerca
de 1430, Michelozzo; SS. Annunziata em Florençam começada por Michelozzo de 1444 a 1455,
terminada a cerca de 1470 sob a superintendência de Alberti (Figura 9); San Francesco em
Rimini, reconstruída por Alberti depois de 1446; a Badia em Fiesole, construída de 1491 a 1464;
Sant´Andrea em Mântua, projeto de Alberti de 1470, mas construída posteriormente a sua morte
(Figura 10); Santa Maria della Pace em Roma, começada em 1478 e concluída em 1483 para o
Papa Sixto IV como memorial (Figura 12); a igreja franciscana de San Pietro in Montorio em
Roma, provavelmente começado em torno de 1480 e consagrada em 1500 pelo papa espanhol,
Alexandre VI, obra patrocinada pelos Reis Católicos especialmente para celebrar a unificação
da Espanha após a Vitória sobre os Árabes em Granada em 149244 (Figura 13); Madonna del
Calcinaio em Cortona, começada em 1484 por Francesco di Giogio; San Salvatore al Monte em
Florença, começada no final da década de 1480 e consagrada em 1504, projeto de Simone di
Pollaiuolo, chamado Cronaca (Figuras 11 e 14); S. Maria di Monserrato em Roma, começada em
1495 por Antonio da Sangallo, o Velho, para a comunidade catalã radicada em Roma.
O partido de nave única com capelas laterais só começou a predominar na Itália a partir do
segundo quartel até o final do Cinquenteno, em função da nova orientação litúrgica da Contra-
Reforma. Mas, as igrejas que antecedem a igreja do Gezù, ainda não apresentam integralmente o
seu partido: S. Giovanni Decollato em Roma, construída de 1535 a 1550, é uma planta compacta
com nave única com nichos, em vez de capelas laterais, capela-mor, sem transepto, e cobertura
plana de madeira; S. Spirito in Sassia em Roma, construída por Antonio da Sangallo, o Jovem,
de 1537 a 1545, também é uma planta compacta, com nave única, nichos e capela-mor, sem

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transepto, com cobertura plana de madeira: a igreja franciscana de Sant´Angelo em Milão,
construída de 1552 a 1555, por Domenico Giunti, tenho uma planta compacta com nave única
coberta por abóbada de berço, capelas laterais e capela-mor, sem transepto; a mesma solução
apresenta Santa Catarina dei Fumari em Roma, construída de 1560 a 1565 por Guidetti; a igreja
Barnabita de Paolo e Barnaba em Milão, provavelmente desenhar nada em 1558 e construída
entre 1561 e 1567, por Galeazzo Alessi, tem nave única com abóbada de berço, capelas laterais,
transepto com cúpula sobre o cruzeiro e braços não proeminentes, parecendo formar uma planta
compacta, e capela-mor, mas o tratamento do alçado da nave obedece ao padrão tradicional,
reforçando o eixo longitudinal da nave.
Apesar, portanto, de soluções precedentes que ensaiam de uma maneira ou de outra o partido da
igreja do Gezù em Roma, este permanece, na sua íntegra, uma solução absolutamente original
no contexto da arquitetura italiana medieval e renascentista.

Figura 12 - Igreja de Santa Maria della pace em Roma. Figura 13 - Igreja de San Pietro in Montorio em Roma.

Figura 14 - Igreja de San Salvatore al Monte em Florença (panta e corte).

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VIII
OS JESUÍTAS NO SÉCULO XVI:
UMA ORDEM PREDOMINANTEMENTE ESPANHOLA
É interessante, agora, retomar as determinações que precederam à elaboração do projeto de
Vignola, que decorreram dos entendimentos entre os Jesuítas os e o cardeal Farnese, resultando
em duas cartas de instruções de 26 de agosto de 1568, a que já nos referimos anteriormente. Das
quatro determinações principais – custo de 25.000 escudos, cobertura em abóbada de berço,
fachada voltada para o Oeste e planta de nave única com capelas laterais - apenas a última deve-
se aos Jesuítas.
É claro que às demandas da nova liturgia - a ênfase nos sacramentos e no sermão – explicam,
em grande parte, a opção dos Jesuítas por uma planta compacta, que já vinha mesmo sendo
preferida, em linhas gerais, desde o segundo quartel do Cinquecento, como já foi referido
anteriormente, também por outras ordens além dos Jesuítas, justamente por sua adequação aos
pressupostos da Contra-Reforma.
Um fato, no entanto, nos chama atenção: o partido da igreja do Gezù em Roma, tão original no
contexto italiano, era, ao contrário, extremamente popular na arquitetura espanhola medieval e
renascentista, como veremos a seguir.
A Companhia de Jesus, apesar de fundada em Roma em 1539, era, essencialmente, uma ordem
espanhola nos seus primórdios. Inicialmente era formada por um grupo de dez padres: cinco
espanhóis (Santo Inácio de Loyola, São Francisco Xavier, Diego Lainez, Alfonso Almeron e
Nicolas Alfonso de Bobadilla), quatro franceses (Lefèvre, Jay, Broet e Codure) e um português
Simão Rodrigues de Azevedo. Após a aprovação da Ordem pelo Papa Paulo III, em 1540, hoje
Jesuítas expandiram-se, rapidamente, não apenas para outras cidades da Itália, mas também
para os outros países europeus e outros continentes45. Mas, até o final do século XVI, todos os
postos altos da hierarquia da Ordem foram ocupados por espanhóis. Os três primeiros Gerais
foram espanhóis: Santo Inácio de Loyola, de 1541 1556; Diego Lainez, de 1556 a 1565; e São
Francisco de Borja, de 1565 a 1572. Numa instituição extremamente centralizada nada como a
Companhia de Jesus, o lugar de secretário Geral era de grande importância: ele foi ocupado pelo
espanhol Juan de Polanco, que era, na verdade, chefe da administração no período de Lainez e
de Borja.
Para estes Jesuítas espanhóis, portanto, o partido de nave com capelas laterais, transepto não
proeminente, formando uma planta retangular, remetia a modelos que lhes eram familiares em
seu país de origem.
Os gostos e as preferências desses superiores espanhóis da Companhia de Jesus tornaram se,
ainda, mais influentes, quando a centralização administrativa foi também estendida para o
controle das construções. A primeira Congregação Geral da Ordem de 1558, durante o período
de Lainez, apenas estabeleceu algumas regras gerais: o seu trigésimo quarto cânone determinava
que as construções deviam ser simples, com boas condições higiênicas, apropriadas para os

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objetivos funcionais e despidas de qualquer luxo46. Mas, na segunda Congregação Geral de
1565, quando o São Francisco de Borja foi eleito Geral da Ordem, regras mais precisas foram
prescritas: o seu nono cânone determinava que todos os projetos deveriam ser enviados a sede
da Ordem em Roma, para serem submetidos à aprovação do Geral; nenhum projeto poderia
ser construído sem essa aprovação e, uma vez aprovado, nenhuma modificação poderia ser
introduzida47.

IX
A ORIGEM ESPANHOLA DO PARTIDO DO GESÙ EM ROMA

AS IGREJAS CATALÃS MEDIEVAIS


A arquitetura gótica foi introduzida na Catalunha no século XII pela Ordem Cisterciense,
seguindo o modelo do gótico francês, como, por exemplo, no Mosteiro de Santa Cleus, em
Tarragona, de 1174.
Após o século XIII, no entanto, ali se estabeleceram as Ordens Mendicantes, particularmente
os Dominicanos, muito ligados aos reis de Aragão que, nesta época, já incorporava a região da
Catalunha (desde 1143) e de Valência (desde 1252).
A ordem Dominicana, fundada em 1210 no sul da França, principalmente para combater as
heresias, colocava grande ênfase na importância da pregação: necessitava, portanto, de um tipo
de igreja que funcionasse satisfatoriamente como auditório. Após experimentar a planta de duas
naves separadas por colunas48, os Dominicanos adotaram o partido de nave única larga com
capelas laterais entre os contrafortes49, que se tornou extremamente popular, não só entre as
igrejas dominicanas, entre elas a igreja do Convento de Cahors de 1263, mas também, entre
igrejas de outras ordens ou do clero regular, nesta região do sul da França: a Catedral de Albi de
1282, por exemplo, segue este modelo de planta.
Estabelecendo-se na Catalunha, os Dominicanos continuaram construindo no padrão que já
haviam popularizado no sul da França: a sua primeira igreja de Santa Catalina em Barcelona,
construída de 1223 a 1253, e destruída em 1837, apresentava nave única com capelas laterais
intercomunicantes entre os contrafortes e abóbadas sobre a nave e as capelas50.
Este partido de igreja expandiu-se por todas as províncias do Reino de Aragão, não apenas nas
igrejas dominicanas, mas também franciscanas e do clero regular, ao longo dos séculos XIII,
XIV e XV. Há Inúmeros exemplos, entre eles: a igreja franciscana de San Francisco em Palma de
Mallorca, construída de 1281 a 1317; a Catedral de Ciudadela em Menorca, provavelmente do
final do século XIII; Santa Maria del Pino em Barcelona, de 1380 a 1414; a Catedral de Gerona,
começada em 1312, que teve a construção interrompida, logo em seguida, e só retomada em
1416 (Figura 15).

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Figura 15 - Catedral de Gerona.

Na Catalunha, portanto, assim como no sul da França51, a arquitetura gótica orientou se muito
mais para a simplificação e para a tendência ao espaço unificado52. E a típica igreja catalã
medieval, com nave única, capelas laterais intercomunicantes entre contrafortes e sem transepto,
tornou-se na verdade modelo para todas as províncias do Reino de Aragão e mesmo para fora
da Espanha: é o caso da igreja de Santa Maria di Monserrato, construída em 1495, em Roma,
por Antonio da Sangallo, o Velho, para a comunidade catalã radicada em Roma, já referida
anteriormente53.

AS IGREJAS CASTELHANAS DE FINAL DA IDADE MÉDIA


A arquitetura gótica foi introduzida no Reino de Castela54 também no século XII pela Ordem
Cisterciense, como ocorreu na Catalunha, mas o seu desdobramento difere totalmente do caso
catalão: em Castela, arquitetura gótica permaneceu até o início do século XV ligada ao modelo
do gótico francês. A Catedral de Burgos, construída de 1221 a 1250, é exemplo desta filiação do
gótico castelhano ao norte da Europa.
Somente no século XV surgiu em Castela o interesse pela unificação do espaço, característico do
último Gótico em quase toda a Europa Ocidental55. A Grande maioria das igrejas construídas
em Castela no século XV e o início do século XVI, pertencem às Ordens Mendicantes, os
Dominicanos e os Franciscanos, e adota uma solução peculiar para a tendência contemporânea
ao espaço unificado: nave única; capelas laterais entre os contrafortes; transepto largo, com
braços não proeminentes, formando um cruzeiro quadrado, geralmente com cúpula; capela-
mor concebida como um simples espaço em continuação ao cruzeiro; O contorno da planta
formando um retângulo perfeito.

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53
A igreja franciscana de San Juan de los Reyes, em Toledo, foi construída entre 1476 e,
provavelmente, 1492 por Juan Guas56, comissionados pelos Reis Católicos, Isabel de Castela
e Fernando de Aragão. Apresenta nave única com quatro tramos, ladeada por quatro pares de
capelas laterais entre os contrafortes, sendo a terceira Capela à esquerda uma passagem para o
exterior; o transepto é mais largo do que os tramos da nave, formando um cruzeiro quadrado,
e seus braços não são proeminentes, o que torna o contorno da igreja um retângulo perfeito;
a capela-mor não é muito profunda, mas tem a mesma largura do cruzeiro. A nave, as capelas
laterais, os braços do transepto e a capela-mor são cobertos por abóbadas de arestas e o cruzeiro
por uma cúpula (cimborio)57. A elevação da nave apresenta nas paredes laterais arcada e janelas
do clerestório e na parede posterior um coro suspenso para o uso dos frades e dos músicos -
elemento que se tornará usual em toda a arquitetura religiosa, no mundo espanhol e português,
nos séculos seguintes58 (Figura 16).

Figura 16 - Igreja de San Juan de los Reyes em Toledo.

San Juan de los Reyes é uma das mais antigas igrejas, deste tipo de solução peculiar do Gótico
Final castelhano e serviu de modelo para uma série de outras igrejas: a igreja dominicana de
Santo Tomás em Ávila, construída de 1483 a 1493 e atribuída a Martin de Solórzano; a igreja
franciscana de San Francisco em Medina de Rioseco, Província de Valladolid, provavelmente
terminada em 1530; a igreja dominicana de San Esteban em Salamanca, começado em 1524 por
Juan de Alava; San Jerónimo em Real em Madrid, construído na segunda metade do século XV.

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54
Com a unificação dos reinos de Aragão e Castela em 147959, o padrão típico da igreja castelhana
do Gótico Final é também adotado na província de Aragão, como por exemplo, a igreja de
Santiago de Villena em Alicante, terminada em 1513.
Em 1492 os Árabes são derrotados em Granada e, todo o território espanhol é unificado, sob
o poder dos Reis Católicos. Nestas províncias, onde não havia exemplos prévios de arquitetura
cristã, também foi adotada a solução castelhana do Gótico Tardio, como, por exemplo, a Capilla
Real em Granada, construída entre 1505 e 1519, encomendada pelos reis católicos para ser o
panteão real.
A solução peculiar de igreja do Gótico Final forjada em Castela, em meados do século XV,
tornou-se, portanto, um verdadeiro padrão nacional durante o restante deste século e o
seguinte. Apesar de ser um reflexo regionalizado da tendência geral do Último Gótico ao espaço
unificado, esta igreja castelhana alimentava se, na verdade, de elementos há muito familiares
naquelas províncias espanholas: o exemplo catalão, da nave única com capelas laterais entre
os contrafortes e de planta compacta, atendendo ao contorno retangular e, talvez, também ao
modelo humorístico das mesquitas, o com espaço unificado e contorno retangular60 além dos
cimborios.

AS IGREJAS NAPOLITANAS DO SÉCULO XVI


Conquistada em 1442 por Alfonso de Aragón, Nápoles permaneceu sob o jugo do Reino de
Aragão até 1492 quando, se estabeleceu ali, um vice-reino espanhol até 1713. Os laços políticos
provocaram uma troca intensa de influências artísticas. Entre elas, várias igrejas napolitanas
ao Cinquecento, que seguem nitidamente o modelo de San Juan de Los Reyes em Toledo: a
igreja de SS. Severino e Sossio, começada em 1490 e continuada, depois de uma interrupção,
em 1537 sob a direção de Giovanni Francesco di Palma, teve a cúpula começada em 1561 por
Sigismondo da Giovanni e foi, finalmente, consagrada em 1571 (Figura 17); a igreja de Santa
Catarina a Formello foi começada em 1519, tendo a construção se prolongada até 1593 (Figura
18); a igreja de S. Giovanni dei Fiorentini, da 2ª metade do século XVI (Figura 19); a igreja de
S. Maria la Nova, uma velha igreja franciscana de 1279, modificada no século XVI e terminada
em 1599 (Figura 20). Estas igrejas apresentavam apenas uma diferença em relação à San Juan
de Los Reyes, em Toledo: a decoração renascentista e não a decoração gótica, melhor dizendo
isabelina, da igreja espanhola. Mas todas as demais soluções de planta, elevação e mesmo de
cobertura, se assemelham. Estas igrejas napolitanas do século XVI, portanto, introduziram na
Itália o partido estabelecido em Castela, em meados do século XV; a combinação de uma nave
ladeada por capelas laterais, com um cruzeiro centralizado, numa planta concebida como um
espaço compacto.
Estas características, desconhecidas na Itália antes destes exemplos napolitanos são, na verdade,
as usadas por Vignola no seu projeto para a igreja do Gezù, em Roma, de 156861.

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Figura 17 - Igreja de SS. Severino e Sossia em Nápoles. Figura 18 - Igreja de Santa Catarina e Formello em Nápoles.

Figura 19 - Igreja de San Giovanni dei Fiorentini em Nápoles.

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Figura 20 - Igreja de Santa Maria la Nova em Nápoles (planta e fachada).

X
AS IGREJAS JESUÍTAS NA ITÁLIA ANTERIORES AO GESÙ DE ROMA
Nos primórdios da história da construção jesuíta na Itália, o padre Giovanni Tristano
desempenhou um papel destacável. Tristano vinha de uma família de arquitetos e, ele próprio,
teve alguma prática em arquitetura na sua cidade natal, Ferrara62, antes de entrar para a
Companhia de Jesus em 1555. No ano seguinte, 1556, vai para Roma e, daí até a sua morte, 1575,
esteve sempre envolvido com construções jesuítas por toda a Itália. Na segunda Congregação
Geral da Ordem em 1565, Tristano foi nomeado Consiliarius Aedilicius: tornou-se, assim,
responsável pelo exame de todos os projetos que eram enviados a Roma, para aprovação do

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Geral da Ordem63. Sua influência evidentemente cresceu, uma vez que lidava com projetos, não
só na Itália, mas em todas as províncias jesuítas. Em outubro de 1558, Tristano foi chamado a
Nápoles pelo Provincial Salmeron e permaneceu, lá, até abril de 1560. Durante estes dezoito
meses, ele projetou e dirigiu, pessoalmente, os trabalhos de sua primeira igreja, o Gezù Vecchio.
Após a partida de Tristano, as obras foram dirigidas pelo Padre Domenico di Verdina em 1562 e
pelo Padre Giovanni De Rosis em 1568, sendo finalmente inaugurada em 1569. Mais tarde, em
1613, foi destruída para dar lugar a uma igreja maior, o Gezù Nuovo, mas o projeto original de
Tristano seguia o padrão de nave única, com capelas laterais e cúpula sobre o cruzeiro64.
Em 1561, Tristano projetou a igreja da Annunziata do Collegio Romano, que foi o primeiro
construído pelos Jesuítas em Roma. A igreja foi inaugurada em 1567, mas foi destruída em 1650
para a construção da igreja de Santo Inácio. O projeto original de Tristano empregava o mesmo
partido de nave única, com capelas laterais65.
Em 1561, Tristano projetou a igreja do Gezù em Perugia, com o Patrocínio do Cardeal Fulvio
della Cornia, também usando o mesmo padrão da nave única, com capelas laterais. Isso
foi inaugurada em 1571, mas em 1568 Padre Giovanni De Rosis e Padre Valentino Martelli
acrescentar algumas modificações para alargar a nave66.
De 1563 a 1565, Tristano estava de novo na Sicília. Projetou a igreja do Gezù em Palermo em
1564; em 1568 a obra já se encontrava bastante avançada, em fase de conclusão do cruzeiro67,
tendo sido totalmente acabada em 1571. Este projeto de Palermo, portanto, foi concebido e
realizado antes do projeto de Vignola de 1568, para o Gezù de Roma: tem a planta compacta,
com contorno retangular, uma nave com capelas laterais, transepto não proeminente com
cúpula sobre o Cruzeiro e capela-mor. A decoração barroca foi feita mais tarde, mas a igreja
permaneceu, essencialmente, como projetada por Tristano (Figuras 21 e 22). Estas primeiras
igrejas Jesuítas na Itália foram, portanto, projetadas por Giovanni Tristano durante o período
em que Diego Lainez era Geral da Ordem (1556-1565). Lainez, que vinha de uma antiga família
judia de Almazám em Castela, certamente deve ter interferido nesses projetos, pois a sua
aprovação era obrigatória. Além disso, nos dezoito meses que Tristano passou em Nápoles, de
outubro de 1558 a abril de 1560, ele trabalhou sob a direção do Provincial Alfonso Salmeron,
outro castelhano nascido em Toledo, além de ter tido certamente oportunidade, nesta ocasião,
de conhecer as igrejas napolitanas que seguiam o modelo espanhol.
Ou por determinação direta dos superiores espanhóis, ou por influência dos modelos napolitanos
a verdade é que estas primeiras igrejas construídas na Itália adotaram o partido castelhano do
final da Idade Média.

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Figura 21 - Igreja do Gesù em Palermo (planta).

Figura 22 - Igreja do Gesù em Palermo (interior).

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XI
CONCLUSÃO
O partido, portanto, da igreja do Gezù em Roma - planta compacta com um contorno retangular,
combinando uma nave única ladeada por capelas laterais com um transepto de braços não
proeminentes e cúpula sobre o cruzeiro - embora constituísse uma novidade na Itália, era, na
verdade, um padrão tradicional na arquitetura espanhola. Fora já esboçado nas igrejas catalãs
medievais, amadurecido nos exemplos castelhanos de final da Idade Média, transmitido às igrejas
quinhentistas em Nápoles - então uma possessão espanhola – e, finalmente, adotada pelo Jesuítas,
em suas primeiras igrejas italianas. Por sua compactação espacial, este tipo de planta colocava em
destaque a nave única e larga e o cruzeiro iluminado pelos vãos da cúpula: nada mais apropriado à
nova orientação litúrgica, que desejava enfatizar a importância da missa e da pregação. Assim, para
corresponder às demandas da Contra-Reforma, propunha um retorno à fé medieval, arquitetura
italiana do Cinquecento teve de abrir mão das preferências da Alta Renascença, em termos de
concepção espacial, e retomar modelos oferecidos pela tradição medieval.
Mas, comparada sobretudo às igrejas jesuíticas que lhe antecederam, isso apesar de pertencer
ao mesmo partido básico, a igreja do Gezù em Roma apresenta diferenças significativas. Foi a
primeira igreja jesuítica italiana a contar com o patrocínio de um mecenas poderoso – o Cardeal
Farnese - e a ser entregue a um arquiteto de grande competência, considerado um dos melhores
em sua geração – Vignola. O mecenato de Farnese e a contratação de um profissional da categoria
de Vignola transformaram o Gezù de Roma numa obra monumental e refinada, em contraste
com a despretensão e acanhamento das demais igrejas jesuítas italianas contemporâneas, quase
todas aumentadas ou substituídas posteriormente.
A atuação de Vignola, no Gezù em Roma, é também responsável por outra feição destacável
desta igreja. Apesar de obrigado pelos Jesuítas a usar um partido medieval espanhol, Vignola
conseguiu imprimir a este padrão, certos elementos tipicamente renascentistas. Primeiro,
a concepção da cabeceira da igreja como uma planta centralizada, ampliando de forma
monumental o simples cruzeiro quadrado com cúpula, previsto pelo partido básico, adotado
pelos Jesuítas e, entrando em sintonia com toda a especulação espacial da Renascença em torno
das formas circulares. Segundo, o tratamento dos alçados, empregando com grande habilidade
todo o vocabulário clássico de que Vignola era profundo estudioso e resultando num conjunto
extremamente refinado.
A igreja de Gezù em Roma – considerada uma das maiores obras do Cinquecento italiano é um
dos modelos mais influentes da arquitetura barroca na Itália e outros países – é, na verdade, uma
síntese extraordinariamente bem-sucedida de concepções estéticas bastante díspares. Aliando as
preocupações da Contra-Reforma com a renovação litúrgica, às ideias platônicas de formas ideais,
misturando uma planta compacta enclausurando um espaço estático com uma nave orientada em
direção a uma cabeceira centralizada, unindo o uso correto das ordens, segundo um classicismo
frio e racional, com o uso deliberado do jogo de luz e sombra para hierarquizar espaços na igreja,
o Gezù de Roma fala, sobretudo, das ambiguidades do seu tempo, dividido entre o humanismo
renascentista e a volta do misticismo medieval endossado pela Contra-Reforma.

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Notas
1 Sônia Gomes Pereira possui graduação em Museologia pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(1967), mestrado em História da Arte na University of Pennsylvania (1976) e doutorado em Comunicação e
Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1992). Fez pós-doutorado no Laboratoire du Patrimoine
Français/CNRS em Paris (2000). É professora titular (1988) da UNIRIO; professora titular (1994) e emérita
(2014) da UFRJ.

2 A primeira Reforma de Lutero data de 1517 e a ruptura religiosa da Igreja Anglicana e de Calvino em Genebra
datam respectivamente de 1534 e 1537.

3 No próprio ano do saque de Roma, 1527, o Cardeal Sadoleto considerou as destruições como “punições
amendrontadoras” e atribuiu-as à justiça de Deus. Em 1528, no primeiro encontro da Roma depois do saque, o
bispo Stafileo explicava que esta tragédia tinha ocorrido “porque toda a carne se tornou corrupta, porque não
somos cidadãos da santa cidade de Roma, mas de Babilônia, a cidade da corrupção. Nós pecamos gravemente
... precisamos reformar, o altar ao senhor e ele terá piedade de nós”. LEWINE, M. (1967) p. 24.

4 Os princípios das visitas episcopais de Giberti foram codificadas nas suas “Constituzioni”, publicadas em 1542,
obra que muito influenciou São Carlos Borromeo, quando chegou em Milão em 1565. ACKERMAN, J. (1972)
p. 20.

5 A principal preocupação dos Jesuítas era a evangelização dos povos não cristãos. Por este motivo, o colégio
jesuíta oferecia um treinamento especial para os seus padres, para torná-los aptos a missões estrangeiras.
A filosofia jesuíta, a respeito destas missões estrangeiras, diferia radicalmente da posição de outras ordens
tradicionais, como os Dominicanos e os Franciscanos, que insistiam na evangelização total sem nenhuma
concessão. Os Jesuítas, ao contrário, apoiavam sua estratégia na versatilidade, na adaptabilidade, na tolerância
e até mesmo na concessão, até um certo ponto. Estes são os motivos de seu incomensurável sucesso nas missões
estrangeiras WITTKOWER, R. (1972) p .2.

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6 Don Inigo de Onaz y de Loyola nasceu na cidade de Azpeitia na província basca de Guipuzcoa, em 1492, de
uma família nobre. Treinado para cavaleiro, a sua decisão de dedicar-se à vida religiosa ocorreu em 1521, após
ter sido ferido numa Batalha em Navarra contra os franceses. Após alguns anos de trabalho apostólico na
Espanha, teve de deixar o país, por ter se envolvido com problemas com a Inquisição. Foi para a Paris em 1528,
entrando para o colégio Saint Barbe, onde reuniu um pequeno grupo de seguidores. Em 1534, fizeram um
voto na igreja de Notre Dame de Montmartre, jurando apoiar incondicionalmente a Igreja Católica e oferecer
seus serviços ao Papa. Com este intuito, Loyola partiu em 1535 para a Itália, onde seus seguidores também
chegaram em 1536. Inicialmente, permaneceram em algumas cidades do norte, mas em 1538, finalmente,
estabeleceram-se em Roma.

7 São Francisco de Borja Y Aragón nasceu em Gandia, em 1510. Bisneto do Papa Alexandre VI, pelo lado
paterno, e bisneto do rei católico Fernando V, que em 1542 nomeou-o Vice-rei da Catalunha. Em 1543, com
a morte do pai, tornou-se Duque de Gandia. Após a morte de sua esposa em 1546, embora continuasse ainda
por algum tempo ligado às suas obrigações particulares em Gandia. Somente, em 1553 abandonou todas as
atividades seculares para dedicar-se completamente à Ordem.

8 Como os Jesuítas são uma Ordem dedicada à vida religiosa, ativa, suas igrejas deveriam localizar-se em locais
acessíveis à população e não precisavam ficar destacadas do restante do complexo construído para o uso da
Ordem. ACKERMAN, J. (1972) p. 25.

9 Este projeto, assim como outros inúmeros projetos jesuítas dos séculos XVI e XVII, está preservado na
Biblioteca Nacional de Paris.

10 PIRRI, P (1955) p. 213.

11 A fachada ladeada por duas Torres seguia o padrão das igrejas góticas do norte ou talvez o modelo de seu
mestre Sangallo para São Pedro do Vaticano. HEYDENREICH, L. & LOTZ, W. (1974) Figura 205.

12 Naquela época, o leigo comum assistia à missa apenas uma vez por ano na Páscoa. E a situação não era melhor
entre o próprio clero. Esta é a razão para a ordenação do Papa Paulo III em 1536, obrigando todos os padres
a frequentar os cultos religiosos, oficiá-los aos domingos, tomara comunhão em todas as festas obrigatórias e,
pelo menos, uma vez por mês. Em consequência destas medidas, vários altares passaram a ser necessários, para
que mais de uma missa pudesse ser rezada ao mesmo tempo numa mesma igreja.

13 Significativo da nova importância da missa foi o crescimento da devoção da Santíssima Eucaristia. Tornou-
se cada vez mais comum reservar-se a capela-mor para a Eucaristia, forçando as missas diárias comuns a se
realizarem nas capelas laterais. LEWINE, M. (1967) p. 25.

14 Naquela época, os sermões eram muito raros, somente durante o Advento e a Quaresma, e os pregadores
estavam restritos legalmente aos frades. Santo Inácio introduziu a obrigatoriedade do sermão durante todo o
ano, podendo atuar como pregador, até mesmo fiéis sem hábitos monásticos. LEWINE, M. (1967) p. 25.

15 Alguns especialistas afirmavam que o teto plano de madeira proporcionava uma melhor distribuição do
som, encontraste com o teto abóbada de alvenaria, produziria ecos. Este era, por exemplo o ponto de vista
de Francesco Giorgi, no seu conselho aos construtores da igreja de San Francesco della Vigna em Veneza, em
1535. ACKERMAN, J. (1972) p. 19-20. E era, também, a opinião de São Francisco de Borja, como aparece em
sua correspondência com o Cardeal Farnese sobre o Gesù. Ibid. p. 17 e 23.

16 Este desenho encontra-se nos arquivos do Uffizzi.

17 A primeira atribuição deste segundo projeto a Michelangelo foi feita por A. Popp em 1927. ACKERMAN, J.
(1972) p.18. Posteriormente Maria Casotti toma esta atribuição como definida. CASOTTI, M. (1960) v. I, p.
199.

18 ACKERMAN, J. (1972) p. 18.

19 Comparar, por exemplo, com o projeto São Pedro do Vaticano feito oito anos antes (1546). CASOTTI, M.
(1960) v. II, fig. 222. Ou então com o risco para S. Giovanni de Fiorentini realizado cinco anos mais tarde
(1559). ACKERMAN, J. (1971) figs. 109, 111, 112 e 114.

20 ACKERMAN, J. (1972) p.18. e ACKERMAN, J. (1971) p. 348.

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21 Giacomo Barozzi Vignola nasceu em 1507 perto de Modena. O início de seu treinamento artístico foi feito
em Bolonha como pintor, embora ele já estivesse interessado nos estudos de arquitetura e perspectiva. De
1536 a 1540, Vignola ficou em Roma, desenhando prédios da Antiguidade para a Academia Vitruviana. De
1540 a 1543, Vignola permaneceu na França, trabalhando com Primaticcio na decoração de Fontainbleau, e
ligado diretamente a Serlio. De 1543 a 1550, esteve em Bolonha, pela primeira vez, envolvido com projetos
arquitetônicos. Em 1550 estabeleceu-se em Roma onde viveu até sua morte em 1573.

22 PIRRI, P. (1955) p. 138.

23 CASOTTI, M. (1960) p. 204-205.

24 Após a morte de Santo Inácio de Loyola em 1556, seguiram-lhe no posto de Geral da Ordem, o padre Diego
Lainez, de 1556 a 1565, e São Francisco de Borja, de 1565 a 1572.

25 Giovanni Tristano nasceu provavelmente em 1515 em Ferrara, onde trabalhou como arquiteto, antes de entrar
para a companhia de Jesus em 1555. No ano seguinte, e 1556, Tristano foi para Roma e, em 1558 foi apontado
pelo Padre Geral Lainez como “consiliarius aedificiorum” da Ordem, posto que ele conservou até sua morte
em 1575. PIRRI, P. (1955) p. 40-44. Como arquiteto-chefe dos Jesuítas, Tristano foi obrigada a fazer longas
estadias em toda a Itália, embora poucos dos seus trabalhos tenham sobrevivido. WITTKOWER, R. (1972)
p. 6. O nome de Tristano está também ligado a alguns projetos jesuítas em Portugal (São Roque em Lisboa),
na Espanha (São Luis de Villagarcia de Campos, em Castilha) e na Alemanha ( a universidade e a igreja, em
Dillingen). PIRRI, P. (1955) p. 89-95.

26 Ver a transcrição completa das duas cartas em PIRRI, P. (1955) p. 228-229.

27 Antes das cartas de Farnese, com estas instruções, Vignola tentou algumas outras soluções para o Gesù, que
diferem do seu projeto final. A medalha de fundação, feita por G. Bonsegni em junho de 1568, portanto antes das
cartas que foram escritas em agosto, mostra uma fachada que não combina com a planta final. ACKERMAN, J.
(1972) p. 24-25 e fig. 13b. Há também a possibilidade de Vignola ter feito experiências com plantas ovais, pelo
que se pode deduzir de um desenho copiado por Oreste Vannocci Biringucci no final do século XVI, onde está
escrito “Il Viga. Per il Jesu”. Ibid. p. 24 e fig. 13.

28 Depois do estilo inquieto, tenso e não conformista, das décadas de 30 a 40 do Cinquecento (Giulio Romano em
Mântua, Peruzzi em Roma, o jovem Vignola e o jovem Michelangelo), as décadas de 50 e 60 são caracterizadas
pelos ideais de regularidade, simetria ordem e uso correto das ordens e pela preferência por espaços estáticos,
enclausurados por paredes, que não sugerem nenhum impulso direcional (Palladio, Cristoforo, Lombardo,
Sanmicheli em seus últimos trabalhos em Verona e o ultimo Michelangelo) LOTZ, W. (1958) p.129-139.

29 O conceito de um espaço orientado, levando a um clímax de uma organização social, que já apareceu no Gesù,
vai tornar-se, predominante, na década de 80, do Cinquecento. A colocação do obelisco em frente à igreja de
São Pedro do Vaticano por Fontana e a Villa Pratolino, em Florença, de Buontalenti são exemplos deste novo
conceito. LOTZ, W. (1958) p. 134-137.

30 Este tratado foi publicado em 1562. É um pequeno tratado (32 pranchas) e só trata das ordens. O principal
objetivo de Vignola foi estabelecer um sistema numérico-proporcional para as ordens, a fim de obter uma
Harmonia absoluta entre partes e o todo. A origem deste sistema foi o estudo comparativo entre os edifícios
antigos da mesma ordem, ajudado pelo texto de Vitrúvio. A principal motivação de Vignola deve ter sido a
lacuna que existia, naquela época, entre o texto vitruviano, que é muito obscuro, e os edifícios antigos reais.

31 A prancha I do Tratado de Vignola explica as medidas gerais da ordem compósita; a prancha LIV acrescenta
algumas observações sobre o pórtico compósita sem pedestal. VIGNOLA, G. *1891).

32 CASOTTI, M. (1960) v. II, fig. 89.

33 Ibid. fig. 112.

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34 A transformação do interior do Gesù processou-se em etapas: primeiro, hoje o espírito barroco era aplicado em
ocasiões festivas, como à celebração do primeiro Centenário da Ordem em 1939, como foi pintado por Andrea
Sacchi e seus assistentes. ACKERMAN, J. (1972) fig. 17. A próxima etapa ocorreu entre 1672 e 1685, quando
Giovanni Batista Gaulli, chamado Baciccio, foi contratado para decorar a nave e a cúpula com escultores e
estucadores trabalhando sob a direção de Antonio Raggi, alterando em caráter definitivo o interior primitivo
Gesù. Ibid. p. 27.

35 CASOTTI, M. (1960) v. I, p. 207.

36 ACKERMAN, J. (1972) p. 25.

37 Ackerman diz que Vignola, incapaz de satisfazer o Cardeal Farnese em relação à fachada do Gesù, foi despedido
em 1571, após o pagamento de 40 escudos como compensação, e desapareceu até a sua morte em 1573.
ACKERMAN, J. (1972) p. 23-25. Maria Casotti, no entanto, acha que “la questione della facciata fosse stato
um episodio che non avera affatto compromisso o alterato i rapporti fra il Cardinale e il Vignola”, baseado no
fato de que Vignola permaneceu como arquiteto dos Famese, trabalhando em Caprarola e em Orti Farmesiani.
CASOTTI, M. (1960) v. I, p. 203. Ibid. p. 208-209.

38 Toda a teoria arquitetural, de Alberti a Palladio, insistia na superioridade da planta centralizada por razões
simbólicas, originadas das ideias platônicas da estrutura harmônica do universo e da correspondência de
microcosmo e macrocosmo, e na compreensão de Deus, através de símbolos matemáticos como o centro,
círculo e a esfera. WITTKOWER, R. (1971) p. 3-32.

39 Ver a lista dessas igrejas em HEYDENREICH, L. & LOTZ, W. 1974 p.181.

40 Vignola exerceu a superintendência, das obras em São Pedro do Vaticano, de 1567 a 1573, o que lhe possibilitou
estar em contato bom o projeto Michelangelo. Quanto a Alessi, Maria Casotti menciona que Vignola tinha
“esaminato e correto” o projeto de Alessi para S. Maria di Carignano, sem dar, no entanto, nenhuma prova
desta afirmação. CASOTTI, M. (1960) v. I, p. 206.

41 Embora a planta centralizada fosse preferida pelos arquitetos por razões simbólicas, ela era frequentemente
usada para memoriais seguindo a tradição da arquitetura cristã primitiva. Nas igrejas regulares, no entanto, a
nave era necessária para acomodar a audiência.

42 O transepto, como foi construído, não fazia parte do projeto de Alberti, que previa uma composição central
a ser acrescentada à nave, com a forma de uma rotunda ou, mais provavelmente, não excedendo a largura da
nave. HEYDENREICH, L & LOTZ, W. (1974) p. 36.

43 No Gesù, as cúpulas das capelas não tem importância estrutural para a sustentação da abóbada de berço,
uma vez que os empuxos desta são conduzidos para os contrafortes acoplados às paredes entre as capelas. Em
Sant´Andrea em Mântua, no entanto, as abóbadas de berço transversas das capelas trabalham como suporte
para a abóbada principal e tem, por esta razão de acompanhar a altura da cornija. HEYDENREICH, L & LOTZ,
W. 1974 p. 275.

44 San Pietro in Montorio foi a primeira igreja espanhola em Roma depois da unificação do país. Antes havia
S. Maria di Monserrato para as comunidades da Catalunha e de Aragão, S. Giacomo degli Spagnuoli para a
comunidade de Castela. TORMO, E. (1942) v. I, p. 102-103.

45 “Quando il 31 luglio 1556 S. Ignazio passo da questa vita, la Compagnia di /gesù, fondata da lui, contava già
um migliato di soggetti e um centinaio di case, sparse in diversi parti del mondo, in Portogallo, in Spagna, in
Germania, in Francia, in India e in Brasile, ma specialmente in Italia, dove esistevano case e collegi in venti
città”. PIRRI, P. (1955) p. 1.

46 VALERY-RADOT, J. (1960) p. 6 e 39.

47 Ibid. p. 6.

48 Os Dominicanos tentaram em algumas igrejas a planta com duas naves separadas por colunas: uma nave
reservada para os frades e outra para os leigos. Esta é, por exemplo, a planta da igreja-mãe em Toulouse, a igreja
dos Jacobinos, construída de 1260 a 1304. Mas, este padrão foi abandonado, pela desvantagem de obscurecer a
vista do altar-mor.

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49 Este tipo de igreja tinha sido usado antes pelos Cistercienses na igreja em Fontenay perto de Montbard e na
abadia de Silvanès el Rouerque. MÂLE, E. (01927) p. 141.

50 LAMPEREZ, V. (1930) p. 229.

51 Entre o sul da França (Languedoc) e o nordeste da Espanha (Catalunha) existiam traços culturais muito
próximos durante a Idade Média, como a língua, por exemplo.

52 Esta tendência ao espaço unificado está presente mesmo quando o pano basilical é usado, aproximando-se do
tipo da igreja-salão, em que todas as naves apresentam a mesma altura.

53 Emile Mâle afirma que a existência desta igreja catalã em Roma possibilitou aos arquitetos italianos conhecer
o tipo espanhol de igreja de nave única com capelas laterais, que, na sua opinião, é o principal modelo para a
igreja de Gesù em Roma. MÂLE, E. (1927) p. 152-159. Paulo Santos, citando Otto Schubert, também credita
às igrejas catalãs, embora com cautela, a procedência do padrão do Gesù de Roma. Diz ele: O. Schubert, sem
referir-se a S. Andrea de Mântua, considera que Gesù provém das igrejas espanholas: <La planta ideal para
la iglesia de predicación católica era la iglesia de salón del norte de España, com capillas laterales, y Borgia
(vice-rei da Catalunha, duque de Gandia, ingressado em 1548 na Comp. De Jesus, Geral da Ordem de 1565 a
1572, animador da construção do Gesù) llevó la idea de esta disposición a Roma; Vignola adapto la cúpula de
San Pedro a la planta de la iglesia catalana de salón> (Otto Schubert, Historia del Barroco em España, Madri,
MCMXXIV, pgs 304 e 305). A questão está a exigir mais amplas investigações”. SANTOS, P. (1951) p. 90.

54 Por esta época, o reino de Castela compreendia apenas a parte central da Espanha. Mais tarde, irá incorporar
os Países Bascos, Leão, Astúrias, Galícia, Múrcia e parte da Andaluzia.

55 A tendência ao espaço unificado aparece também nas igrejas de planta basilical: a altura das naves é quase
igualada, o transepto sem braços proeminentes dá contorno regular à planta de igreja; e sobre o cruzeiro, uma
cúpula (cimborio).

56 Um desenho de Juan Guas, que está no Museu do Prado, refere-se ao projeto original para San Juan de Los Reyes,
sem as poucas modificações que foram feitas durante a construção. A capela-mor deveria ser um retângulo
perfeito, sem os ângulos encurvados da parede posterior; o cimborio deveria ser mais alto; e a elevação da nave
previa um triforium entre a arcada e o clerestório. TORRES BALBÁ, L. (1952) p. 340.

57 Estas cúpulas eram comuns na arquitetura árabe. A Mesquita de Ibn-Tulun no Cairo e a Mesquita de Córdoba
possuem uma cúpula sobre um espaço quadrado. A proximidade destes exemplos espanhóis, especialmente
após a gradual reconquista pelos cristãos, pode ter sugerido o uso destes cimborios para as igrejas.

58 Este coro suspenso foi antecipado pelo da Cartuja de Miraflores, perto de burgos começada em 1454 e
terminada em 1494. KUBLER, G. & SORIA, M. (1959) p. 1.

59 Fernando de Aragón e Isabel de Castela casaram-se em 1469. Em 1474 Isabel tornou-se rainha de Castela e, em
1479, Fernando foi feito rei de Aragão, unificando, assim, os dois reinos.

60 A ideia de uma sala enorme, com o contorno regular, deve também ter sido sugerido pelas plantas das mesquitas,
como a de Córdoba, por exemplo.

61 Georg Weise afirma que estas igrejas napolitanas são a fonte imediata para a igreja do Gesù em Roma. WEISE,
G. (1952) p. 148, 151-152.

62 PIRRI, P. (1955) p. 6-8.

63 Ibid. p. 42.

64 Ibid. p. 20.

65 Ibid. p. 30.

66 Ibid. p. 34-35.

67 Ibid. p. 52.

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CAPELAS E MATRIZES DO GOIÁS
COLONIAL: DIÁLOGO ARQUITETÔNICO
COM A METRÓPOLE E
AS CAPITANIAS VIZINHAS

Deusa Maria R. Boaventura1

INTRODUÇÃO
Apesar da ampliação das pesquisas sobre a arquitetura colonial no Brasil nas últimas décadas,
Goiás ressente-se de estudos mais sistematizados sobre o seu patrimônio do século XVIII, que
permanece ainda marginalizado. Considerável parcela de seus edifícios e pequenos conjuntos
arquitetônicos ainda é desconsiderada pela historiografia da arte, e pode estar sujeita ao
desaparecimento, caso não adquira maior visibilidade. Tal fato ocorre pela manutenção da
ideia de marginalidade e decadência predominante na tradicional historiografia goiana, o que
provavelmente manteve os pesquisadores desinteressados pelo tema.
Este artigo, portanto, em sintonia com outros escritos que buscam atribuir a importância devida
à arquitetura de regiões menos visibilizadas, visa compreender melhor as tipologias retangulares
de capelas e igrejas que predominaram em Goiás nos setecentos. São pequenos edifícios de
arquitetura bastante simplificada, que às vezes alcançam um certo requinte na ornamentação
dos seus espaços internos. Acredita-se que o exame das variações tipológicas das capelas e igrejas
de Goiás, bem como o seu diálogo com demais regiões do Brasil, pode trazer contribuições para
a atual historiografia da arte local e nacional, que no momento ainda permanece com muitas
lacunas.
A despeito do pouco avanço, cabe destacar que uma literatura mais recente tem trazido
importantes contribuições para os estudos sobre a arquitetura religiosa de Goiás. São eles: a
dissertação de Carla Freitas P. Pereira (2008), que trata das dimensões compositivas da Igreja

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São Francisco de Paula da cidade de Goiás; a pesquisa de Laura Ludovico de Melo (2009) sobre
o Arraial de Ouro Fino, a publicação em 2012 do livro Esplendor do barroco luso-brasileiro, de
Toledo. Nesse livro, mais especificamente no capítulo “Arquitetura de Mineração em Goiás”, o
autor traz informações complementares sobre os edifícios coloniais de Goiás, com descrições
de retábulos e frontispícios dos edifícios mais elaborados. E, por fim a tese de Eurípedes Afonso
da Silva Neto (2022), que faz um precioso levantamento dos edifícios coloniais, com seus
respectivos históricos.
Por outro lado, destaca-se a relevância das primeiras publicações sobre essa arquitetura. São
trabalhos de cunho mais geral, tais como os de Eduardo Etzel (1984), Ana Maria Borges e Luís
Palacín (1987) e de Gustavo Neiva Coelho (1997)2. Nesses textos encontram-se verdadeiros
dossiês sobre a arquitetura setecentista de Goiás, com estudos que mostram um quadro das
condições históricas e culturais da antiga capitania, seguidos da catalogação dos edifícios
religiosos e do levantamento dos seus retábulos e imagens.
Etzel contribuiu com dois livros: O Barroco no Brasil e Arte Sacra: berço da arte brasileira, ambos
publicados no mesmo ano, 1984. Na obra com o título Patrimônio histórico de Goiás, Borges e
Palacín (1987) exibem aspectos gerais sobre as histórias dos antigos edifícios remanescentes da
capitania. A dissertação de Coelho (1997), A formação do espaço urbano do ouro: o caso Vila
Boa, além de estar assentado em uma pesquisa sólida, fruto de sua experiência de longos anos na
direção do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan da cidade de Goiás,
sinaliza para a possibilidade de se estabelecerem diálogos entre a arquitetura da antiga capital e
a de Minas Gerais.
A compreensão das igrejas e capelas do Brasil colonial ao longo do século XVIII é tarefa complexa,
porque os modelos portugueses transpostos para a colônia, ou por ela assimilados, sucederam-
se e reproduziram-se com comportamento próximo aos de origem, onde já amalgamavam
correntes estilísticas diversas (LEMOS, 1979). Especialmente os retangulares e de nave única,
iniciaram sua consolidação quando o estilo chão se impunha em Portugal como uma corrente
artística predominante.
Ao lado do estilo chão, emparelhavam-se outras tendências estilísticas mais eruditas,
configurando em Portugal um panorama artístico de diversidade tipológica. Tipos vindos da
metrópole e que prevaleceram na colônia até o século XIX, alcançaram a capitania de Goiás e
orientaram a construção da Matriz de Santana, de Vila Boa de Goiás, da Matriz de Traíras e da
Igreja São José, de Mossâmedes. Mas, na grande maioria dos casos, as edificações mantiveram
diálogos com as capitanias de Minas Gerais e São Paulo, onde os tipos já estavam consolidados
pela tradição.
Para entender os tipos retangulares de igrejas e capelas da antiga capitania de Goiás, foram
realizados levantamentos mais atualizados dos monumentos, leitura contextualizada dos poucos
fragmentos documentais que se conhecem, e estudos comparativos entre as configurações
espaciais e formais dos edifícios e dos aspectos compositivos dos frontispícios.

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A ARQUITETURA DE PORTUGAL
E OS TIPOS DA CAPITANIA DE GOIÁS
A historiografia goiana trabalha com a ideia de uma arquitetura religiosa colonial marcada pelos
traços da pobreza e da simplicidade, em decorrência de a antiga capitania ser isolada e distante
do litoral. Contudo, diferentemente dessa representação, neste artigo aposta-se nos vínculos que
essa arquitetura estabeleceu com a metrópole e demais lugares da colônia. Entende-se, portanto,
que remontar, ainda que brevemente, à história das tipologias arquitetônicas portuguesas nos
contextos dos diversos estilos artísticos que por lá se apresentaram contribui para a compreensão
de tais vínculos e posteriores adaptações regionais.
Ao longo do século XVII e no início do século XVIII, o Maneirismo já estava bastante aclimatado
nas terras lusitanas, mas ainda sem grandes alterações, contentando-se os conservadores
arquitetos portugueses a apenas multiplicar os tradicionais princípios e formas italianos. No
entanto, associadas ao Maneirismo, permaneceram como pano de fundo uma arquitetura de
longa duração e de natureza vernácula e outra denominada por vários autores de estilo chão
(CORREIA, 1991). Esse foi o estilo dominante na metrópole até o século XVIII, caracterizado
por sua sobriedade e por ser fundamentalmente pragmático, resultado de inúmeras experiências
de colonização africana, com as contribuições de militares construtores preocupados com
edificações de ordem prática, tanto no reino como nas colônias.
É nesse cenário de diversas correntes arquitetônicas que podem ser localizadas também as origens
do barroco lusitano, com o surgimento de formas mais flexíveis e sutis renovações espaciais. Ao
longo do tempo, foram acrescentados azulejos e talhas douradas, que gradativamente foram
substituindo as formas mais sóbrias, dando maior liberdade para os artistas portugueses. Com
essas inovações, estabeleceu-se o confronto entre uma linguagem artística mais dinâmica, as
vertentes mais tradicionais e as maneiristas.
No panorama da colônia brasileira, Bury (1991) afirma que nos primeiros séculos da ocupação
portuguesa boa parte das igrejas erguidas estava associada a uma produção maneirista desenvolvida
pelos jesuítas. Conforme o autor, só a partir do século XVIII é que surgem no litoral exemplares
com formas arquitetônicas barrocas e com a presença de talhas e retábulos. Na sequência, surgiram
os tipos mais dinâmicos de tendência erudita. Além dessas correntes predominantes, a colônia
contou também com as versões vernaculares, ou provincianas tradicionais, importantes referências
para o soerguimento de muitos edifícios religiosos em Goiás.
A capitania de Goiás surgiu no início do século XVIII com a promessa de possuir ricas terras
em ouro, o que motivou a formação de várias incursões de bandeirantes interessados em seus
tesouros. À medida que foram encontrando jazidas preciosas às margens de rios caudalosos, os
desbravadores foram construindo pequenas povoações que expressavam suas aspirações através
da construção de capelas e matrizes que seguiram predominantemente os tipos retangulares, de
nave única.
No Brasil, a tipologia de nave única e com capelas laterais tornou-se mais comum a partir de
meados do século XVI, durante o XVII e, em menor escala, no XVIII. Lúcio Costa (1941), em A

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arquitetura jesuítica no Brasil, afirma que essas igrejas se enquadravam em quatro tipos básicos
principais: no primeiro, estavam as mais simplificadas e formalmente compactas, que contavam
apenas com capela-mor e nave constituídas por um único corpo de construção, separadas por
um arco cruzeiro. São consideradas as mais antigas. No segundo tipo, as que se apresentavam
com três altares e capela-mor de menores dimensões, separados das naves, diferenciando-se,
portanto, daquelas do primeiro grupo, que se desenham com a mesma largura da nave. Esse
modelo de composição simples e clara foi o que mais se desenvolveu em Minas Gerais.
No terceiro tipo de igrejas delineado por Costa (1941), estavam aquelas que associavam os
mais simples com os planos mais elaborados das igrejas que predominaram no século XVII.
Mantinham os três altares habituais do modelo anterior, acrescentando, nos colaterais, pequenas
capelas de maior ou menor profundidade, a exemplo da Igreja de Olinda, cujas capelas formam
um conjunto com a capela-mor. Finalmente, no quarto tipo o arquiteto incluiu as igrejas
maiores seiscentistas, influenciadas pelo padrão da Igreja de Gesù, em Roma. Esse tipo tem
como representantes as igrejas do Colégio de Salvador, a de São Paulo do Piratininga e a de
Belém do Pará, que se diferenciam do grupo anterior pelos numerosos altares dispostos em
capelas laterais. Essas ficavam mais próximas do altar-mor e geralmente eram mais altas e, às
vezes, mais profundas.
Para Bazin (1986), os tipos de nave única que se desenvolveram na colônia ao longo do século
XVIII, particularmente aqueles destinados às igrejas conventuais e paroquiais, foram o resultado
de processos de simplificação das concepções adotadas pela arquitetura dos séculos anteriores.
Para as igrejas conventuais, permaneceram a ampla nave em forma de galpão, com capelas
intercomunicantes, e para as paroquiais, essa mesma nave foi acrescida apenas de retábulos
laterais e anexos complementares formados pela sacristia, consistórios e corredores laterais.
Diferentemente da opinião de Bazin (1986), para quem os tipos retangulares e unificados
do setecentos são o resultado das transformações sofridas pelas igrejas coloniais dos dois
séculos anteriores, tem-se Bury (1991), que os relaciona com os tradicionais tipos portugueses
e italianos de procedência medieval, caracterizados por planos simplificados, com ou sem
anexos, ambientes compactos e inscritos dentro de um retângulo, frontispícios com pequenos
vãos, portas centralizadas, óculos e presença ou não de torres. Esses tipos não correspondem,
portanto, a processos de modificações e adaptações coloniais, embora tivessem sido amplamente
divulgados no Brasil. Afirma o autor:

A grande maioria das igrejas construídas nas possessões portuguesas do


além-mar do final do século XVI até, pelo menos, o início do século XVIII,
obedecia a um traçado padrão, quase estereotipado. Seja na América, na
África ou Ásia, encontramos a mesma estrutura elementar semelhante à
de um galpão, com uma única porta de entrada, duas janelas alongadas
dispostas de ambos os lados e um único na empena (BURY, 1991, p. 106).

Esse mesmo autor diz ainda que esses tradicionais planos simplificados eram acompanhados por
um traço bastante característico de fachada – a disposição em diagonal ou em “V” das aberturas
– e podem estar relacionados à arquitetura de precedentes medievais, tanto em Portugal quanto

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na Itália. Bury (1991) afirma que o uso das torres laterais nas fachadas também se transformou
em uma prática quase invariável das principais cidades da colônia durante o século XVIII,
embora mais raras no interior do Brasil, a exemplo de Minas Gerais e Goiás na primeira metade
daquele século.
Nesses lugares, Bury (1991, p. 107) diz que as capelas mais antigas eram

[...] do tipo provinciano tradicional, com fachadas de composição em


diagonal, possivelmente derivadas de igrejas paulistas, como as de São
Miguel (1622), na província de São Paulo, de onde proviam os descobridores
do Ouro de Minas Gerais.

Marília Maria B. Teixeira Vale, em Arquitetura Religiosa no Antigo Sertão da Farinha Podre
(1998), também afirma terem sido os planos retangulares simplificados bastante adotados em
diferentes lugares de Minas Gerais, como no caso da região do Sertão da Farinha Podre, atual
Triângulo Mineiro, cujo território no século XVIII fazia parte da capitania de Goiás. Atesta
ainda a longevidade do tipo, afirmando que nessa região ele alcançou até o século XIX.
Em demais partes de Minas Gerais, como na região do Piranga, vê-se a ampla difusão desse
mesmo tipo provincial, com o qual Goiás, ao que parece, também manteve permanente diálogo
em relação às suas referências arquitetônicas, ainda que fosse intermediado inicialmente pelos
paulistas bandeirantes e posteriormente por construtores que circulavam pelos diferentes
lugares. Ainda assim, as formas resultantes de tais tipos foram ajustadas às condições locais, o
que conferiu aos edifícios feições mais atarracadas e, em sua grande maioria, acompanhados de
pequenas e modestas torres de madeira.

“TRAÇAS” E “RISCOS” NA CAPITANIA DE GOIÁS


E A PERMANÊNCIA DOS TIPOS RETANGULARES DE NAVE ÚNICA
Na obra A iconografia dos engenheiros militares do século XVIII: instrumento de conhecimento
e controle do território, Beatriz P. Siqueira Bueno (2011) afirma ser importante compreender
os desenhos para que se entenda a arquitetura. No século XVIII, esses desenhos também eram
conhecidos como “traças” e “riscos”, havendo distinções em relação à palavra “projeto”, de criação
italiana. Observações sobre essas formas de representação dos edifícios ajudam a entender os
valores artísticos das igrejas de Goiás, bem como conhecer os tipos predominantes e as práticas
construtivas da região.
Na tradicional historiografia brasileira, as “traças” são comumente tomadas por traçados,
desenhos de plantas de uma obra ou construção, enquanto “riscos” são os desenhos gerais,
prospectos ou planos de uma construção, de um retábulo ou de alguma obra. No dicionário
Arquitetura Brasileira, de Corona Lemos (1972), “risco” é colocado como sinônimo de projeto,
isto é, designa o desenho original concebido pelo arquiteto ou mestre de obras. Todavia, Siqueira

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Bueno (2011) chama a atenção para o devido cuidado que se deve ter quanto ao entendimento
desses termos, que, segundo a autora, devem ser contextualizados historicamente. Assinala
ainda a necessária consideração que se deve ter pelas mutações semânticas que muitos desses
termos sofreram ao longo dos séculos XV e XVIII. Para o setecentos, Siqueira Bueno (2011)
apresenta as definições que o Dicionário Etimológico (1712-1721) de Rafhael Bluteau traz para
ambas as palavras:

[...] “risco” aparece como sinônimo de “debuxo”, designando “... hum


princípio de pintura só com perfis, &linhas, sem cores, sem sombras”. A
traça do edifício consistia no “desenho ou planta (‘Aedificii ichnographiam
lineis describere’), em que representa o Arquitecto a obra que tem ideado”,
e, como traçar significava “delinear. Lançar as primeiras linhas. Fazer o risco
de alguã obra mecânica. Traçar um edifício”, podemos supor que também
se tratasse de linhas sem cores, nem sombras (BLUTEAU apud SIQUEIRA
BUENO, 2011, p. 33).

“Riscos” e “traças” eram usualmente acompanhados por apontamentos que consistiam em


instruções escritas de mestres de obras, engenheiros ou arquitetos, que as entregavam para os
empreiteiros junto com os modos de proceder, os regimentos. Na antiga capitania de Goiás, os
desenhos foram poucos, e até onde se sabe, são apenas os da Casa de Câmara e da Cadeia de Vila
Boa, das matrizes de Santana e de Traíras, e da Igreja São José de Mossâmedes, todas de tipos
retangulares3.
No entanto, para as demais obras, fontes manuscritas revelam práticas de controle para o
soerguimento dos edifícios de Goiás, podendo-se observar que mesmo sem a citação do referido
“risco”, as formas de execução foram estabelecidas revelando uma longevidade de práticas
construtivas portuguesas que remontam, pelo menos, ao século XVI, como aponta Siqueira
Bueno (2011, p. 65) quando discute a natureza dos regimentos e desenhos da época. A autora
destaca a extrema importância do Livro das medidas que mestre Boytac e Bastião Luís, escrivão,
foram fazer a Arzila, Alcácer, Ceuta e Tânger o ano de 1514, afirmando que a publicação “[...] nos
fornece uma ideia dos procedimentos empregados na execução de uma obra”.
O documento, abaixo sobre a Igreja Santa Bárbara atesta que os procedimentos de construção
se mantiveram, embora, como nos demais lugares da colônia, fossem facilmente desviados nos
canteiros de obras. Ainda assim, a garantia possível de controle expressa-se pela presença do
escrivão e do reverendo, responsáveis pela verificação, medição, demarcação do local destinado
ao adro e a definição de algumas medidas. Isso era tudo, pois não havia mais detalhes sobre a
forma de execução da obra, apenas as diretrizes básicas a seguir, tal como se lê, logo abaixo:

Aos 3 dias do mez de setembro de 1755, nesta Villa Boa de Goyaz, em


morro de Santa Barbara, em a entrada que vai para o carreiro, Barra e
Anta e onde eu, escrivão adiante nomeado, fui vindo e sendo achi com
o muito Revdo Ministro Dr. Francisco das Chagas Vidal Mendonça Ávila
Corte Real, Vigario da Vara nesta Villa e sua Comarca, para o efeito de
assignar o lugar em que se há de erigir a capela da gloriosa Santa Bárbara,

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a requerimento dos devotos da mesma Santa, em presença medição e
demarcação no respectivo lugar e plano em que se há de fundar a dita
capela com seu adro o qual consta de 15 braças de comprimento 10 de
largo; para que se puseram os marcos e se assentou uma cruz no lugar onde
havia de ficar o altar da mesma Santa [...] (Documento avulso do Arquivo
Frei Simão Dorvi, Cidade de Goiás -grifos nossos).

Das igrejas citadas acima destaca-se a Matriz de Santana que desabou no século XIX. Em
um manuscrito de 1745, nota-se a providência de um plano retangular que foi submetido às
autoridades. Nele consta que uma provisão foi “[...] enviada pello governador da Capitania, com
planta e risco para a igreja matriz della; já se achava quasi acabada, e coberta, pella primeira
planta e risco que esta câmara poz na Real presença de Vossa Magestade [Documento avulso,
1745, Arquivo Frei Simão Dorvi, Cidade de Goiás.]”.
Um outro documento, aponta ainda que o Conselho Ultramarino enviou uma outra planta ao
governador da capitania de São Paulo, [...] para que elle arremeta a Câmara de Villa Boa de
Goyaz, assim que por ella se execute o edifício da Nova Igreja, que aquelle povo voluntariamente
quer fazer, por ter parecido muito imperfeita a planta que daquelas minas se remeteu [...]
(Documento avulso, Frei Simão Dorvi). Mas, a despeito da qualidade ou não dessas plantas, o
que se quer assinalar aqui é a presença de planos portugueses em Goiás, chamando a atenção
para os diálogos que se estabeleceram entre Goiás e a metrópole.
Por outro lado, tais documentos não apresentam informações necessárias sobre o edifício em
si. Para tanto, utilizou-se os desenhos de Burchell (1981) (Figura 1), que ajudam a confirmar a
predileção pelos planos retangulares em Goiás, seguindo uma mesma tradição arquitetônica
de outras capitanias. Ao que tudo indica ela era composta por um espaço que continha as
principais peças para um templo dessa natureza: nave, arco-cruzeiro, altar-mor e consistórios
das Irmandades do Santíssimo Sacramento e do Senhor dos Passos, e, muito provavelmente,
uma sacristia. Cunha Matos (1979, p. 97), em sua passagem por Vila Boa, fez os seguintes
comentários sobre o altar-mor dessa igreja:

[...] a matriz ou catedral da prelazia dedicada a Santa Ana é mui espaçosa


e tem 9 altares. O altar-mor é obra soberba. Tem colunas de madeira de
grandeza notável, e se acha mui dourada. Os altares colaterais são mui
asseados, nenhum deles se dá em capela funda [...].

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Figura 1- Perspectiva da Matriz de Santana realizada por Burchell.
Fonte: Gilberto Ferrez. O Brasil do primeiro reinado visto pelo botânico William John Burchell, 1825-1829.

Ainda de acordo ainda com as imagens de Burchell (1981), a Matriz de Santana apresenta traços
compositivos que denunciam rigorosa sobriedade. Sua volumetria é formada por um bloco
central compacto, com marcações de pedra e frontão muito bem definido, onde se encontra
o óculo. Os poucos movimentos encontrados no edifício encontram-se nas vergas curvas das
janelas que compõem a composição em V, e que são vistas também nas janelas das duas torres.
O conjunto completa-se com uma torre sineira de madeira que se ergue ao lado do edifício,
típica de muitas igrejas de Goiás dos séculos XVIII e XIX. Em linhas gerais, o edifício lembra
também as soluções severas adotadas nas tradicionais igrejas jesuíticas, ou aos tipos descritos
por Bazin (1986, p. 198):

O corpo central, arrematado por um frontão triangular, se equilibra entre


duas torres de elevação moderada, estas acabadas por um pavilhão de
madeira coberto de telhas [...] o corpo da fachada está selado por uma
única porta, encimada por duas ou três janelas.

Semelhante à Matriz de Santana, com plano para a execução de obra, tem-se a Matriz de Traíras,
de um arraial do norte da capitania de Goiás setecentista, localizado próximo à Natividade, no

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atual Estado do Tocantins. Seus “riscos” e “traças” encontram-se no Arquivo Ultramarino de
Lisboa e são compostos pela planta, um alçado e um frontispício, conforme pode ser conferido
nas Figuras 2, 3 e 4 a seguir.

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Figuras 2, 3 e 4 - Imagens do Plano da Matriz de Traíras, no então norte goiano setecentista
Fonte: Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa

Esses desenhos são reveladores da permanência do tipo de nave única com capela-mor profunda,
seguida de altares laterais e púlpito. A composição geral do frontispício da Matriz de Traíras
consiste em um corpo central acompanhado por duas torres e coroado por um frontão, que é
marcado por uma cornija que se estende por todo o conjunto, e um pequeno óculo. Nesse corpo
central encontram-se duas janelas de vergas retas, alinhadas com duas outras que estão nas
torres. Entre o corpo central e as torres, notam-se ainda pilastras sobrepostas, duas em cada um
dos lados, sendo que uma delas continua fazendo o arremate das torres.
A porta da Matriz de Traíras, com ornamentos que a envolvem e ultrapassam a altura das janelas,
foge ao padrão estabelecido para a grande maioria das igrejas de Goiás, aproximando-se da
solução de edifícios mais ornamentados de Minas Gerais.
A Igreja São José, de Mossâmedes, fez parte de um aldeamento localizado a cinco léguas e a
sudoeste de Vila Boa de Goiás, cuja criação ocorreu em novembro de 1744, por iniciativa do
governador e Capitão General de Goiás, José de Almeida e Vasconcelos Soveral. A Figura 5 a
seguir, traz uma panorâmica da Igreja.

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Figura 5 - Vista atual da Igreja São José, de Mossâmedes (GO)
Fonte: Acervo da autora

Em 1788 foram feitas algumas alterações físicas no aldeamento, agora sob o comando do
governador Luís da Cunha Menezes, que mandou reformar a “[...] Igreja, primeiro objecto
daquelles estabelecimentos; por ter achado esta somente com os seus primeiros fundamentos
construídos de taipa meramente, sem ainda estar cuberta [...]”. (AHU, Documento 2025, 1788).
Em um prospecto de 1801, podem ser observados os traços severos desse edifício, bem como a
manutenção do tradicional esquema compositivo em V, formado por um frontão com cornija
que o arremata com uma porta, duas janelas com vergas levemente curvas e pilastras localizadas
entre o corpo principal e as torres, como também nas esquinas do edifício. É o que mostra a
Figura 6 a seguir.

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Figuras 6 – Perspectiva da Aldeia de São José de Mossâmedes, 1801
Fonte: Arquivo da Biblioteca Mário de Andrade.

Em fotos recentes, nota-se que o conjunto volumétrico da Igreja São José, de Mossâmedes, é
animado apenas pelas torres, pelo corpo do edifício e pelo jogo desencontrado dos níveis dos
beirais. Mas a despeito dessa configuração que se organiza segundo um grande bloco, é possível,
a partir das alturas dos três telhados, identificar os componentes dos espaços internos.
Internamente, a Igreja São José, de Mossâmedes, segue mantendo os tradicionais espaços vistos
nas demais capelas goianas. São compostos por uma nave única, com a capela-mor envolvida
pelos corredores laterais e a sacristia com a mesma largura da nave. Separa a capela-mor e a
nave, o arco cruzeiro. Dois outros arcos são encontrados nas paredes laterais da capela, de onde
se acessam os corredores. Tais conjuntos de arcos, somados à pouca movimentação volumétrica
do edifício, apresentam-se como uma rara opção construtiva no quadro da arquitetura colonial
de Goiás. Esse espaço interno da igreja pode ser conferido na Figura 7 a seguir.

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Figura 7 – Planta da Igreja São José de Mossâmedes (GO)
Fonte: Acervo da autora.

Pode-se incluir ainda nessa lista de edifícios acompanhados de planos, a Igreja Nossa
Senhora do Rosário, de Natividade (TO), com provável data de 1780 (Figuras 8).

Figuras 8 – Capela-mor das ruínas da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, de Natividade (TO)
Fonte: https://www.agenciatocantins.com.br/noticia/26705

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Essa igreja, apesar de encontrar-se em ruínas, apresenta qualidades formais superiores aos de
suas demais congêneres, com detalhes construtivos que fogem aos edifícios contemporâneos.
Sobre ela, diz Silva Neto (2022, p.444):

Assim, no que foi materializado, utilizavam-se das mesmas técnicas


empregadas na Igreja de São Benedito (Natividade), porém um tanto
mais apuradas. Os tijolos cozidos seguem uma lógica construtiva, sendo
utilizados nos arcos e pilastras, e não como preenchimentos. As grandes
pedras de composição estrutural das arestas, prováveis arenitos, são ainda
maiores que as da primeira igreja. Toda alvenaria é de pedra, com trechos
em canjicado – pedriscos misturados ao barro – conferindo uma harmonia
formal que permanece até hoje.

De grandes proporções, a igreja possui também uma única nave. A partir de suas ruínas, Silva
Neto (2022) fez a reconstituição de sua planta, na qual se nota a nave, seguida de uma capela
profunda e marcada por um arco cruzeiro sustentado por pilastras muito bem executadas. Nas
laterais da capela, encontram-se aberturas coroadas por arcos que seguem o mesmo cuidado do
principal. A Igreja Nossa Senhora do Rosário, de Natividade (TO), seria seguramente um dos
monumentos de maior qualidade da arquitetura colonial da capitania de Goiás, se consideradas
essas suas condições construtivas.
Os demais edifícios que não apresentam planos para as suas construções serão analisados
considerando dois grupos: os que foram erguidos até a década 1760, e os demais, construídos a
partir daqueles anos até meados do século XIX. O primeiro grupo conta com seis monumentos,
e o estudo será iniciado pela Igreja Nossa Senhora da Barra, do arraial de Buenolândia, que
parece ter sido a primeira a ser erguida neste vasto sertão goiano (Figura 9).

Figura 9 - Vista da Igreja Nossa Senhora da Barra, no arraial de Buenolândia (GO)


Fonte: : http://fotostrada.com.br/2015/10/26/arraial_da_barra/

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Conforme uma historiografia mais recente, a igreja foi construída pelos primeiros bandeirantes
que desbravaram o território goiano e pode datar de 1727 ou 1728. Foi com ela, portanto, que a
tipologia de planos retangulares de nave única foi introduzida em Goiás.
Assim, a Igreja Nossa Senhora da Barra apresenta-se com uma organização espacial composta
por três volumes distintos e básicos, que correspondem à nave, à capela-mor estreita e à sacristia.
Essas características conferem à sua volumetria uma forma de bloco compacto, sem grandes
movimentações, que só se anima pelas diferentes alturas dos telhados, como também pela
presença de uma única e pequena torre que se ergue em cima dos telhados, dotando o edifício
de uma particular singularidade em relação às demais congêneres.
Internamente, entretanto, a pequena igreja contrasta com o seu exterior, tendo em vista a falta
de esmero com o espaço, que não mereceu um tratamento mais acurado do arco-cruzeiro, que é
uma solução bastante recorrente no conjunto das demais capelas. O frontispício, de cuidadosas
proporções, segue a mesma configuração das demais igrejas da região, com o esquema em
V. Nota-se, porém, um excepcional cuidado na execução de seus elementos compositivos,
sobretudo quando se observam as cornijas que delineiam o frontão e se estendem pelas laterais
do edifício. Tal solução pode ter sido proveniente das várias intervenções solicitadas pelo Cônego
José Correa Leitão em uma de suas visitas em 1784 (FONSECA; SILVA, 1948).
Os demais edifícios dessa primeira metade dos setecentos mantêm a configuração simplificada
das construções religiosas do período de formação da capitania de Goiás. São as igrejas: Nossa
Senhora do Rosário, 1736 (Meia Ponte, atual Pirenópolis); Nossa Senhora da Conceição, 1740
(Conceição, Tocantins); Igreja de São Benedito, 1740 (Natividade, Tocantins); Nossa Senhora
do Carmo, 1750, (Meia Ponte) e Nosso Senhor do Bonfim, 1754 (Meia Ponte). Ainda fazem
parte dessa relação as igrejas Nossa Senhora do Rosário, da cidade de Goiás, demolida no século
XIX; e Nossa Senhora do Pilar, de Ouro Fino, completamente em ruínas. Esses exemplares, em
sua grande maioria, são bastante despojados e com alguns jogos volumétricos diversamente
proporcionais, animados por telhados com diferentes alturas.
Tanto nas pequenas edificações quanto naquelas de maior vulto, os planos retangulares
são similares aos das construções que possuíam “riscos” e “traças”, ou seja, os espaços estão
organizados a partir das naves únicas e altares-mores profundos, podendo ter ou não corredores
laterais. Os frontispícios apresentam organização com vãos em diagonal, com poucas variações
compositivas que dizem respeito mais à presença ou não de óculos nos frontões, de pilastras
e cunhais e às relações de proporção entre os vãos, para os quais concorreram diferentes
construtores locais. Detalhes das vistas e planos das igrejas podem ser conferidos nas Figuras
10, 11 e 12 a seguir.

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Figura10 - Nossa Senhora da Conceição TO
Fonte: https://dioceseportonacional.org.br/paroquia-de-nossa-senhora-da-conceicao

Figura 11 - Igreja de São Benedito TO


Fonte: http://www.ipatrimonio.org/natividade-igreja-de-sao-benedito/#!/
map=38329&loc=-11.706418000000006,-47.72593500000001,17

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Figura 12 – Plantas das Igrejas Nossa S. da Conceição e São Benedito (TO)
Fonte: Acervo da autora.

Uma análise mais pormenorizada de cada uma dessas construções permite notar as
particularidades da Matriz de Nossa Senhora do Rosário e das igrejas do Nosso Senhor do
Bonfim e de Nossa Senhora do Carmo, localizadas no arraial de Meia Ponte (atual Pirenópolis).
Em todas foram utilizadas uma estrutura autônoma de madeira e uma modulação estrutural
como recurso compositivo que define as linhas gerais da organização dos frontispícios.
Idênticos recursos podem ser vistos na arquitetura religiosa do Vale do Piranga, em Minas
Gerais (MIRANDA apud ÁVILA, 1977), e, no final dos setecentos, em Pilar de Goiás, um
antigo arraial de grande importância à época, com a Igreja Nossa Senhora das Mercês (1770).
(Figuras 13 e 14)

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Figura 13 - Nossa Senhora do Rosário, Piranga MG
Fonte: www.iepha.mg.gov.br/index.php/programas-e-acoes/patrimonio-cultural-protegido/bens-tombados/details/1/43/bens-
tombados-capel

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Figura 14 – Igreja Nossa Senhora das Mercês, Pilar de Goiás
Fonte: https://iphan.gov.br/montarDetalheConteudo.
do;jsessionid=C2FB0CA6DF2423CE89AF65B6544F715E?id=13984&sigla=Noticia&retorno=detalheNoticia

As duas primeiras igrejas construídas em Meia Ponte - Nossa Senhora do Rosário e Nosso Senhor
do Bomfim - diferenciam-se pela presença das torres, solução pouco explorada na região, sendo
substituídas, na grande maioria dos casos, pelas torres sineiras de madeira, fixadas ao lado dos
edifícios. Ressalta-se também as proporções diferenciadas das torres da Igreja Nosso Senhor do
Bonfim, em razão de serem mais altas que as das demais congêneres, contrariando um traço
marcante da arquitetura religiosa local, de feições mais robustas (Figuras 15 e 16).

Figura 15 – Igrejas Nossa Senhora do Rosário, Pirenópolis


Fonte: Acervo da autora

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Figura 16: Igreja Nosso Senhor do Bonfim, Pirenópolis
Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/f/f6/Igreja_do_Bonfim_de_Piren%C3%B3polis.jpg

Os edifícios do segundo grupo, são os construídos a partir dos anos 1760 até meados do século
XIX. São todos tipos retangulares básicos, compostos por naves únicas, capelas-mores e com
anexos ou não. No que diz respeito às demais características observa-se que nesse período,
houve soluções mais variadas, que iam desde a configuração final dos frontispícios, a presença
ou não de torres, a estrutura exposta em madeira até o modo de se expressar volumetricamente
no arranjo das plantas. Compõem esse conjunto as igrejas de São João Batista, de 1761 (Arraial
do Ferreiro); São Francisco de Paula, de 1761 (Vila Boa); Nossa Senhora do Rosário, de 1769
(Arraial de Luziânia, hoje Luziânia); Nossa Senhora das Mercês, de 1770 (Arraial de Pilar, atual
Pilar); Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, de 1776 (Arraial de Jaraguá, atual Jaraguá) (Figura
17); Santa Bárbara, de 1780 (Vila Boa); Nossa Senhora do Rosário, de 1780 (Natividade); Nossa
Senhora da Abadia, de 1790 (Vila Boa); as matrizes de Nossa Senhora do Carmo, de 1801
(Tocantins) e de Nossa Senhora da Penha de França, de 1751/1858 (Arraial de Corumbá, hoje
Corumbá); e a Igreja Nosso Senhor do Bonfim, de 1857 (Silvânia, antigo arraial de Bonfim).

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Figura 17 – Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, Jaraguá
Fonte: Acervo da autora

A despeito das linhas gerais que caracterizam esse grupo, nele se destacam as igrejas Nossa
Senhora da Abadia e São Francisco de Paula, ambas em Vila Boa; Nossa Senhora das Mercês,
de Pilar; e a de Nosso Senhor do Bonfim, do antigo arraial do Bonfim, hoje Silvânia. A primeira
dessas, a Igreja Nossa Senhora da Abadia foi organizada espacialmente de forma diferenciada,
com um plano que se assemelha ao da igreja da Fazenda de Santo Antônio de São Roque4, com
nave e capela-mor de igual largura. A partir de um outro retângulo, localizado à direita da nave,
desenvolvem-se os anexos e, próximo a eles, está o volume da torre, distante da nave. O conjunto
apresenta uma rica dinâmica volumétrica, valorizada ainda mais pelos diferentes telhados. A
composição de sua fachada segue também o tradicional esquema de vãos em diagonal, com as
vergas e sobrevergas das janelas curvas e frontão recortado, marcado por cornijas em sua base.
Com essas soluções, a Igreja Nossa Senhora da Abadia configura-se como um excepcional caso
da arquitetura goiana, não só em função do seu frontispício, como também em relação aos seus
arranjos espaciais e à decoração interna, que conta com retábulo e teto de grandes qualidades
estéticas (Figuras 17 e 18).

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Figuras 18 – Igreja Nossa Senhora da Abadia, Cidade de Goiás
Fonte: https://www.municipioassessoria.com.br/conheca-as-igrejas-do-centro-historico-de-goias-go/

A Igreja São Francisco de Paula chama a atenção pela sua rara e incomum implantação em
acrópole. Com nave única flanqueada por dois corredores, o plano geral do edifício desenvolve-
se inteiramente dentro de um retângulo, com capela-mor mais estreita em relação à nave, e
arco-cruzeiro que os separa. Com tal organização espacial, o resultado denuncia uma forma
em bloco, movimentada pelos dois telhados do conjunto. O frontispício também segue a
composição em diagonal, formada por linhas rígidas, de rigor simétrico, reforçadas pelas quatro
pilastras coroadas por capitel e pináculo. O frontão segue também as linhas retas e sua base
conta com cornijas. Internamente a decoração se realiza pelo trabalho em madeira aplicado no
arco-cruzeiro e pelo teto com pintura que parece ser do século XIX (Figura 19).

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Figura 19 - Igreja São Francisco de Paula, de Vila Boa (hoje cidade de Goiás)
Fonte: Acervo da autora.

A Igreja Nossa Senhora das Mercês, de Pilar de Goiás, destaca-se pela grande proximidade de suas
soluções arquitetônicas com as igrejas de Minas Gerais, sobretudo aquelas do Vale do Piranga,
a exemplo das capelas de Nossa Senhora do Rosário, de Pinheiros Altos; de Nossa Senhora da
Conceição, de Manja-Léguas; e a de Nossa Senhora do Rosário, de Elói Mendes (MIRANDA,
apud ÁVILA, 1997). Essa última capela segue a tipologia básica encontrada na região, com
a presença de capela-mor, nave e apenas um anexo. A volumetria é resultante da articulação
desses espaços, porém, mais dinamizada pelas diferentes alturas dos seus dois telhados, que se
complementam com o de uma varanda localizada ao lado do corpo principal do edifício. Para
além de ser essa uma solução isolada no quadro da arquitetura regional, é no frontispício que
se encontra a referência mais direta e reveladora do diálogo entre Goiás e Minas Gerais, ou
seja, a estrutura exposta em madeira, que ajuda na organização do frontispício com vãos em
diagonal. A composição consiste na formação de um retângulo apoiado horizontalmente na
base do corpo principal e com uma porta centralizada, além de mais dois outros retângulos
menores, que ajudam na definição das larguras das janelas. Acima, fica a empena, com sua base
marcada também em madeira, completada por um óculo.
A Igreja oitocentista Nosso Senhor do Bonfim, no arraial de Bonfim, hoje Silvânia, também se
destaca pela presença de uma estrutura em madeira que contribui não só para a composição dos
vãos do frontispício, como também para a volumetria como um todo, como se fosse a ossatura
do edifício. São singularidades ainda as relações de proporção dos espaços entre a nave e a

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capela-mor, a monumentalidade, a torre recuada em relação ao frontispício e o maior número
de janelas nas laterais do edifício, tal como se nota na capela de Nossa Senhora do Rosário, de
Santo Antônio de Pirapetinga, Minas Gerais. Assim, com a Igreja Nosso Senhor do Bonfim,
observa-se não só a longevidade das tipologias retangulares, mas também a abertura para
algumas inovações que se materializam na sua monumentalidade e na alteração das proporções
dos seus espaços (Figuras 19 e 20).

Figuras 20 - Igreja oitocentista Nosso Senhor do Bonfim, de Silvânia (GO)


Fonte: Acervo da autora.

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Por fim, cabe assinalar que em Goiás muitas igrejas coloniais contam com torres sineiras,
podendo-se encontrá-las em ambos os grupos citados anteriormente, ou seja, os que foram
erguidos até a década 1750, e os demais, construídos a partir daqueles anos até meados do
século XIX. Mas para essas torres sineiras não havia um padrão que se repetia pela capitania,
pois podiam fazer parte das laterais do corpo do edifício ou apenas ser um elemento de madeira
próximo a ele. O que as diferenciam são o número e as posições que ocupam no edifício.
Espalhados pela capitania, têm-se os tipos com duas torres laterais, como a Igreja Nossa Senhora
do Rosário dos Pretos e Nosso Senhor do Bonfim, ambas em Pirenópolis, e a Igreja Nossa
Senhora do Rosário, em Luziânia. Completam o quadro a Igreja Nossa Senhora do Rosário,
da Cidade de, já demolida, a antiga Matriz de Santana e a Matriz de Traíras, como mostram os
desenhos do Arquivo Ultramarino. Com torre única, tem-se uma localizada no telhado da Igreja
Nossa Senhora da Barra, em uma rara solução, enquanto outras igrejas apresentam uma torre
na lateral do edifício, que pode estar ou não recuada ao longo do corpo do edifício. As demais
torres sineiras são de madeira e localizam-se próximas às igrejas.
Esses são os edifícios que seguiram os esquemas de planos retangulares de Goiás. No entanto,
apesar de eles fazerem parte de uma tipologia que predominou também em outros lugares da
capitania, as feições atarracadas das volumetrias pesadas com ausência de vazios são típicas dessa
arquitetura. Demais particularidades são vistas nas adaptações realizadas pelos construtores
goianos com as diferentes posições das torres; a disposição em mais de um bloco, encontrada,
por exemplo, nos anexos da Igreja Nossa Senhora da Abadia e as características construtivas da
Igreja Nossa Senhora do Rosário, de Natividade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diferentemente do que consta na tradicional historiografia artística regional, Goiás não esteve
tão distante e isolado como se quer fazer crer. Sua arquitetura esteve em permanente diálogo
com outras regiões, o que permitiu a proliferação de tipos retangulares muito semelhantes aos
que foram construídos em algumas regiões de São Paulo e em Minas Gerais, particularmente no
Vale do Piranga e na região da antiga Farinha Podre, atual Triângulo Mineiro, que assimilaram
referências portuguesas.
Assim como nessas capitanias, as” traças” e os “riscos” foram instrumentos de trabalho
imprescindíveis para a construção das Matrizes de Santa Ana, Traíras e da Igreja de São José de
Mossâmedes, garantindo a lógica de concepção arquitetônica dos planos retangulares. Por outro
lado, na falta dos desenhos, o soerguimento das igrejas que se espalharam por todo território da
capitania de Goiás contou com as instruções escritas e as presenças de escrivães e padres como
responsáveis pela verificação, medição, demarcação do local destinado ao adro e definição de
algumas medidas. Nesse caso, algumas descontinuidades nas obras foram registradas, atenuadas,
porém, pelo respeito que os construtores mantiveram pela ordem estabelecida pelos tradicionais
tipos retangulares, sobretudo em relação à hierarquia espacial e à lógica composicional dos
típicos frontispícios, organizados pelos esquemas de vãos em diagonal. Em alguns exemplares,

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como nos casos dos edifícios de Pirenópolis e Pilar, a organização desses esquemas foi também
auxiliada por estruturas independentes de madeira, contribuindo para um melhor planejamento
dos padrões estéticos do edifício.
Acrescente-se ainda que muitas igrejas goianas, com esquemas tipológicos básicos, típicos das
capelas mais simples, foram também acompanhadas por torres. Construídas ao longo de todo o
século XVIII, não houve nelas um padrão arquitetônico que se repetiu, menos ainda uma noção
de desenvolvimento formal contínuo e progressivo dos edifícios. Essas torres variaram entre as
que eram únicas e centralizadas; as que se situavam únicas na lateral do edifício; as que ficavam
recuadas do plano do frontispício; e as duplas, no mesmo plano do frontispício.
Por fim, destaca-se que a recorrência dos tipos retangulares na capitania de Goiás nunca se
deu completamente de forma repetitiva e automática. As escolhas tipológicas pressupuseram
soluções que foram se adequando, permitindo afirmar que o referencial se impôs com maior
abrangência. É o que confirma a sincronia de Goiás com outras regiões da colônia, como também
com Portugal, contradizendo argumentos recorrentes que a balizaram pela ideia do isolamento.

Referências
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BORGES, Ana Maria; PALACIN, Luís. Patrimônio histórico de Goiás. Brasília: SPHAN/ Pró-Memória, 1987.

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COELHO, Gustavo Neiva. A formação do espaço urbano do ouro: o caso Vila boa. (Mestrado em História).
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Paulo: Escolas Profissionais Salesianas, 1948.

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de Goiás. Goiânia, 2009.

PEREIRA, Carla Freitas P. As igrejas de Goiás um estudo de caso: Igreja São Francisco de Paula. 2008.
Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de
Brasília. Brasília, 2008.

SILVA NETO, Eurípedes Afonso da. Panorama da arquitetura em Goiás: séculos XVIII, XIX e XX. 2022. Tese
(Doutorado em Arquitetura e Urbanismo). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de Brasília.
Brasília, 2022.

TOLEDO, Benedito Lima de. Esplendor do Barroco Luso-brasileiro. São Paulo: Ateliê Editorial, 2012.

VALE, Marília M. Brasileiro. Arquitetura religiosa do século XIX no antigo sertão da Farinha Podre. 1998. Tese
(Doutorado em Arquitetura e Urbanismo). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo.
São Paulo, 1998.

ARQUIVOS CONSULTADOS
AHU. Arquivo Histórico Ultramarino. Goiás, Documento 2025, 1788, Instituto de Pesquisas Históricas do
Brasil Central. PHBC.

Arquivo Frei Simão Dorvi. Sobre as ruínas da Matriz de Santana. Documento avulso. Cidade de Goiás, 1745.

Arquivo Frei Simão Dorvi. A respeito da planta da igreja enviada pelo Conselho Ultramarino, 1745.

Arquivo Frei Simão Dorvi. Sobre a construção de Santa Bárbara. Documento avulso Cidade de Goiás, 1775.

Notas
1 Deusa Maria Rodrigues Boaventura é doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de
São Paulo (FAU-USP), mestre pela USP de São Carlos e especialista em História Cultural pela Universidade
Federal de Goiás. É pesquisadora e professora da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás) e da
Universidade Estadual de Goiás (UEG). Trabalha no Programa de Pós-Graduação em História da PUC Goiás
e ministra disciplinas de arquitetura e urbanismo em ambas as universidades.

2 Esta dissertação foi publicada, na íntegra, em 2001 com o título O espaço urbano em Vila Boa, pela Editora
UCG.

3 Cabe assinalar que na capitania de Goiás algumas poucas capelas fogem a essa configuração mais tradicional,
tais como a de Nossa Senhora da Boa Morte (1762-1779) e a de Nossa Senhora do Carmo (anterior a 1786),
ambas construídas em Vila Boa de Goiás. Esses edifícios são exceções por apresentarem espaços internos
mais dinamizados, adquiridos pela adoção de estruturas de madeira que ajudam a compor formas octogonais,
mostrando também o pleno diálogo dessa solução com capelas mais elaboradas, como a Igreja Pilar de Taubaté
de 1749.

4 Essa pequena capela é quadrangular e possui uma nave e uma capela-mor da mesma largura e envolvida por
uma sacristia e um único e largo corredor do lado da Epístola.

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DEVOÇÃO A SANT’ANA –
IMAGEM E IMAGINAÇÃO

Cristina Ávila1

INTRODUÇÃO
Em civilizações antigas, em que a apropriação do universo tem um sentido mágico, a tradução
dos fenômenos inexplicáveis do “sagrado” – espaço intransponível para o homem comum – se
faz através da imagem que ganha caráter prioritário e eficaz.
A quantidade de informação contida em uma comunicação qualquer resultaria mais atraente
quando complementada por esculturas, pinturas, figurações e ilustrações iconográficas. Assim,
uma dada imagem devocional serviria para demonstrar a veracidade da história da vida (sagrada
ou não), para exemplificar métodos teológicos, científicos e até mesmo para a decifração de
códigos da experiência individual ou coletiva.
Em todo Brasil, no período colonial, quando havia grande trânsito social por meio de ordens
religiosas regulares, irmandades e ordens terceiras, surge uma produção significativa de figuras da
literatura litúrgica, em que os enfoques teológicos voltavam-se para temas de ordem devocional,
exequial e gratulatória, as quais se coadunavam com o espírito barroco da vida da época.
Edifícios religiosos cobertos de informações iconográficas – pintura, talha e imaginária – e a
partir de um púlpito integrado a um igual sentido ornamental contribuíam para a formação de
uma dada mentalidade, na qual a representação artística era o referencial e o parâmetro da fé.
Tanto a imaginária litúrgica ligada as igrejas, santuários ou capelas, como a devocional, usada
em locais de culto particular, devem, sem dúvida alguma, ser consideradas como parte relevante
das manifestações criativas desenvolvidas dentro da gama de produções significativas para a
compreensão da realidade vivencial do chamado Barroco Brasileiro desde a vinda dos primeiros
colonizadores, perpassando pela evangelização dos jesuítas até as manifestações de fé de caráter
mais popular.
Poderíamos dizer, portanto, que as artes visuais coloniais se multiplicaram em diversas expressões
interligadas, relacionadas indiretamente às perspectivas portuguesas da colonização, à Igreja
Tridentina e ao Estado Absolutista; podemos destacar, no entanto, mais diretamente à tipicidade
da formação social da Capitania Mineira. O isolamento do litoral e a sede de enriquecimento
fácil desenvolveram uma sociedade de características mais urbanas, em que vilas e lugarejos
possuíam vida própria, distantes que estavam do Reino.

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É preciso ressaltar que foram principalmente as ordens terceiras religiosas e irmandades de
leigos os maiores aglutinadores (ou, como diríamos hoje, patrocinadores) de toda ou quase toda
a atividade artística da Capitania. Assim, só será possível o estudo da imaginária do período,
se tivermos em mente o papel fundamental das instituições leigas nas Minas Gerais. O Estado
Absolutista português impõe à Capitania Mineira uma política religiosa que se iniciou e se
caracterizou pela proibição da entrada e da fixação das ordens religiosas Regulares no nosso
território.
A organização da população através de irmandades e ordens terceiras se faz como que resultante
da segregação racial da sociedade. Existiam irmandades de negros, brancos e mestiços que
competiam entre si religiosa e esteticamente. Por meio dessas instituições religiosas leigas,
consolida-se o imaginário popular e toda uma variedade de temas sacros cultivados em Minas
Gerais.
Por outro lado, a necessidade do providencialismo proporcionou o surgimento, em todos os
lugarejos e vilas brasileiras, de uma série de figuras piedosas, santos e lendas de invocação
católica, possibilitando uma forma original de religiosidade, mais afetivas, cujos reflexos são
enunciados tanto em festas religiosas como no uso pessoal.
Essa proliferação de imagens pode ser vista em folhas de rosto não apenas de livros manuscritos,
como também em livros impressos, servindo de modelo para artistas de diversas partes, traçando
o que Michel Vovelle denominou de Geografia do Sagrado2, confirmando a teoria da existência
de uma circularidade cultural que resultaria em um barroco mais popular que se expandiu no
Brasil através de caminhos e estradas – o barroco estradeiro.
Buscamos interpretar a produção artística relacionada à religiosidade colonial através do
olhar e do sentido do olhar, do ouvido e do sentido da audição, traduzidos pelos signos mentais
reveladores não apenas da tradição ou de uma dada transplantação cultural, mas calcados no
apelo e apego a um processo audiovisual e mítico. Um período de forte apelo ao que Ávila
chamou de primado do visual. Neste ponto de vista, o fiel compreendia as mensagens sacras ou
piedosas através não apenas da visão, mas de um olhar sensível, um olhar da alma, que percebia
não somente as formas, mas também o sentido da imagem: o fiel participava da imagem. Se
comprazia através de um encontro místico com sua devoção de predileção.
Os discursos plásticos elaborados pela mão do homem colonial podem ser traduzidos como a
mola propulsora da criação, liberada para resgates, transplantações e adaptações de múltiplos
valores culturais. São linguagens apropriadas ao despertar da imaginação; mais do que
representativas de um tempo, são esclarecedoras de um fato mental, que se lê não apenas nas
linhas regulares, mas especialmente nas entrelinhas, no subjetivo, no cotidiano e no particular.
Absorvendo a mundividência, a sensibilidade e a temática do Barroco como a expressão de uma
poética própria, podemos explicar, no estudo da imaginária devocional, a fuga às estruturas
formais mais complexas e lineares, evidenciando outras artisticamente elaboradas a partir das
condições do local, do devoto e do artista.
A arte que salta o Atlântico, instaura não uma continuidade de uma origem, mas o segmento
da ilusão barroca, como em um teatro à moda de um Calderón de la Barca, no qual o conflito

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do ser aparece no jogo de situações poliformes, entre o céu e o inferno, entre o sonho e o real, o
pecado e a virtude, o profano e o sagrado, como se vê na pintura O enterro do Conde Orgaz de
El Greco (Figura 1).

O enterro do Conde Orgaz- El Greco - Igreja de São Tomé, Toledo/Espanha

O CONCEITO DE ICONOGRAFIA RELIGIOSA E SUAS TRANSMUTAÇÕES BARROCAS


Caracteriza-se como iconografia toda a documentação visual elaborada pelo homem ao longo
de sua trajetória no mundo. O termo advém do grego clássico – eikonographia – “imagem,
desenho, descrição”. A palavra é formada pelo substantivo eikonos (imagem) e o verbo grapho
(gravar, escrever, desenhar), de onde vem então eikonographos, o especialista em representar
através da imagem.

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A palavra iconografia, conforme definimos acima, é encontrada desde a Antiguidade, inclusive
em A Poética de Aristóteles. O termo é recuperado no Renascimento, significando, por exemplo,
um tratado de imagens que devia facilitar a determinação dos quadros por gêneros. Mais tarde,
se empregaria o termo para denominar e identificar em geral os conteúdos das artes plásticas –
mitológicos, historicistas, paisagísticos, retratos ou católicos em toda a sua diversidade estilística.
Livros litúrgicos com ilustração sagradas foram utilizados por diversos artífices e artistas para
compreender os temas, tanto através dos textos, como dos emblemas gráficos que se tornaram
usuais após a imprensa de Gutemberg. Neles vemos os decretos e determinações do Concílio
Tridentino, os quais deveriam ser notificados e publicados em todas as paróquias.
O título Decretos do sagrado Concílio Tridentino vem no alto da primeira página do livro de
instrução litúrgica. Em seguida, dentro de uma tarja, abaixo das armas do arcebispo, lê-se a
autorização da publicação. Innocencio Francisco da Silva3, publica a mesma página de rosto,
traduzida para o português, em seu Diccionario Bibliographico Portuguez, incluindo todas
as bulas, índices e demais obras teológicas contidas na publicação. O emblema apresenta-se
de forma tradicional, com cercadura em figuras grotescas humanas e animais, usadas como
símbolo para o afastamento do mal. A fruteira embaixo, simetricamente às armas do arcebispo,
representa os domínios portugueses, notadamente o Brasil. (Figura 2)
Dessa forma, as imagens brasileiras de Sant’Anas enfatizam o significado simbólico das diversas
formas espaciais da literatura e da mitologia de várias épocas e sua influência nas representações
plásticas e na análise de pinturas e esculturas. Observando os conjuntos de imagens desde o
ponto de vista visual que acompanhou a colonização do litoral até o caminho estradeiro pelos
quais chegaram ao imenso território de regiões fora das margens do Atlântico, demonstra-se
como leituras diferentes modificam totalmente o dito original, a identidade primeira, fundadora
de um tema religioso: as Sant’Anas.
Já a partir da noção de arte-comunicação, começa a se esboçar, no seio dos estudos
contemporâneos de linguística e semiótica, o conceito de arte como linguagem e a se perguntar
se é possível compreender a arte como uma forma de discurso plástico. As artes visuais teriam
alguma coisa a dizer. Não seriam apenas uma fruição estética, mas uma outra maneira de se
comunicar, diferente da usual, por palavras.
Roland Barthes, no livro O óbvio e o obtuso4, discute questões fundamentais para aqueles que
querem compreender “a Retórica da Imagem”. De acordo com o autor, os linguistas não são
os únicos a suspeitar da natureza linguística da imagem; a opinião geral também considera,
muitas vezes equivocadamente, a imagem como um centro de resistência do sentido. A imagem
é representação – isto é, ressurreição – e prescinde de que o inteligível seja tido como antipático
ou vivenciado. Assim, de ambos os lados, a analogia entre a imagem e a língua é considerada
em um sentido pobre: uns pensam que a imagem é um sistema muito rudimentar em relação à
língua; outros, que a significação não pode esgotar a riqueza indizível da imagem.5

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Figura 2 - Decretos e determinações do Concílio Tridentino,
exemplar da Biblioteca Nacional de Lisboa
(foto: Arquivo Revista Barroco)

Por outro lado, Walter Benjamin nos dá a dimensão filosófica do estudo do Barroco a partir
de uma concepção histórica pautada nos anos seiscentos e setecentos: a ideia de uma história
natural, na qual a imanência se faz condutora dos valores e estilo de vida da época. Ainda em
Benjamin, encontramos uma preocupação com o sentido da imagem no aspecto que ele chama,
pertinentemente, de alegoria barroca.

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A profecia figural relaciona-se com uma interpretação da história – que na verdade é, por sua
natureza, textual –, enquanto o símbolo é uma interpretação direta da vida e originalmente,
na maior parte das vezes, também da natureza. Assim, a interpretação figural é o produto de
culturas posteriores, bem mais indiretas, mais complexas e mais carregadas de história do que
o símbolo ou o mito.”
Dentro dessa perspectiva, nos voltamos à proposta teórica de Antoine Compagnon, em
O trabalho da citação, pois este autor elucida a relação do escritor ou do artista com a colagem e
desenvolve conceitos que estão intrinsecamente contidos no ideário barroco nacional. A criação
nada mais é do que uma correlação de figuras, citações, analogias, enxertos e repetições.
Reafirmamos com base teórica que, da mesma maneira, a citação se faz presente no conjunto de
informações iconográficas. Essas se repetem, se amoldam, se completam e possibilitam leituras
extratextuais cobertas de informações coincidentes com aquelas expressas nos textos sacros e
na tradição oral, num entrelaçar de formas de comunicação que tinham como ponto comum
atingir a emoção do receptor ou fiel dentro das perspectivas ideológicas da Contrarreforma.
Fundamentam-se, especialmente, essas hipóteses em fatos referentes à formação de uma
mentalidade religiosa típica da Capitania Mineira, a qual foi bastante bem definida por Affonso
Ávila em sua obra publicada sobre o barroco. Para o autor,

A linguagem barroca, quer a plástica ou a literária, na sua urgência


comunicativa ou no estímulo puro à flexibilidade das estruturas, viria
colocar-se sob o primado de três elementos fundamentais: o lúdico, a
ênfase do visual e o persuasório (...) O barroco já não representará apenas
um estilo artístico, mas uma sistematização do gosto que se reflete em todo
um estilo de vida, um estilo portanto global de cultura e de época para cuja
síntese o lúdico poderá, sem o risco de especiosidade, ser tomado como
categoria crítica.6

O impacto do visual, a função básica do olho, do olhar, é a explicação para a ornamentação


excessiva, as metáforas e as citações clássicas e míticas presentes na produção literária e plástica,
especialmente no Barroco Mineiro. Não há produção intelectual ou artística do período na qual
não se faça notar essa ênfase do visual, seja nas caligrafias, nas obras impressas, nos autógrafos,
nos poemas de cunho visual, na imaginária, etc.
Além disso, a exteriorização das maneiras e dos hábitos são também frequentes. Basta
recorrermos às memórias das manifestações da fé, em que interessa mais a participação nos atos
e missas e procissões, assim como a exaltação de templos e imagens religiosas, do que a fixação
em atitudes mais ligadas ao propósito da contrição individual.
A coletividade se reúne para ostentar a sua fé, para se mostrar em público, para transformar
o ato religioso em ato social. A igreja funciona aí como um aglutinador das necessidades de
socialização da coletividade, e é nesse contexto que se detecta o primado do visual, elemento
essencial como explicador da produção artística da Capitania Mineira.
Se, como diz Compagnon (1996), “toda figura é um olho”7, toda citação só é possível através

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do olhar, nada mais pertinente para o surgimento da programação iconográfica no Barroco,
pois essa é essencialmente visual, essencialmente citação, essencialmente imagem e engano. O
termo trompe-l’oeil, usado para explicar a maneira como a pintura barroca ilude o espectador é,
portanto, a síntese e a essência da visualidade, da luminosidade cambiante do estilo, mesmo em
produções mais populares ou toscas.
No conjunto de Sant’Anas que ora observamos, essas imagens de diversos lugares do país se
fazem lumem, um caleidoscópio de referências e citações que nos auxilia a escutar e olhar, a
descobrir e esclarecer o Barroco-Rococó como um estilo artístico que ultrapassa as concepções
tradicionais do formalismo, que tem a cópia como paradigma interpretativo e que vislumbra o
desencadeamento de sentidos e as proliferações próprias a todos os discursos artísticos. (Figuras
3, 4, 5, e 6)

Figura 3 - Santas Mães - Pernambuco, séc XVIII, madeira esculpida, policromada e dourada - Coleção ângela Gutierrez
Figura 4 - Snat’Ana Mestra - Minas Gerais, séc XVIII/XIX, madeira esculpida, policromada e dourada - Coleção ângela Gutierrez
Figura 5 - Snat’Ana Mestra - Minas Gerais, séc XVIII/XIX, madeira esculpida (fatura negra) - Coleção ângela Gutierrez
Figura 6 - Sant’Ana Mestra - Minas Gerais (Serro), séc. XVIII/XIX, madeira esculpida, policromada e dourada - Coleção Cristina Ávila

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Mais que esclarecer de onde deriva tal figura, interessa-nos aqui entender as imagens como
processos de formação de uma mentalidade colonial e pensar que de forma alguma a cadeia de
citações e a derivação de modelos retiram o valor da arte produzida no período, que guarda na
transposição e adequação de um dado valor cultural (o modelo erudito europeu) a outro (no
caso o colonial) sua beleza e criatividade. Assim, trataremos aqui da revalorização do modelo
transportado e contaminado, em sua cadeia de referências, como um dos aspectos estéticos mais
importantes para a formação da imaginária brasileira.

A TRANSPOSIÇÃO CULTURAL DA DEVOÇÃO MARIANA,


INCLUINDO A PARENTELA DE CRISTO
O programa iconográfico nas artes visuais sempre se apoiou no sentido da imagem, que encontra
o seu valor em seu caráter de representatividade, dizendo ou desvelando alguma coisa ou muitas
coisas, na maior parte das vezes de forma oculta ou misteriosa.
Durante o período Barroco, a ação da Contrarreforma indicou os caminhos que as artes visuais
deveriam seguir para atingir o objetivo desejado pela expressão da fé. O Concílio de Trento
(1545-63) indicaria quais os principais temas a serem representados, dando especial destaque
à vida de Cristo e de sua parentela, à hagiografia, às ordens religiosas, ao evangelho e temas
relevantes do Velho e do Novo Testamento.
Há dois aspectos interessantes a serem observados: o primeiro refere-se à tentativa de
continuidade da tradição medieval; o segundo, à decisão de Trento que tinha como preceito que
o padre fosse o único agente do povo a rezar a missa em latim. Outras formas rituais surgiriam
para incrementar a ação da catequese em meio a um povo na sua maioria inculto e apegado a
fontes mágicas ou imagéticas.
Nos antigos tribunais romanos, existiam os chamados ambons, locais situados nas laterais dos
fóruns, um a leste e outro a oeste, onde ficavam respectivamente os acusadores e os defensores
dos réus. Deste hábito da retórica judicial, surgiram, na Idade Média, no limiar do século IV,
quando por decisão do imperador Constantino a Igreja Cristã deixou de ser uma seita clandestina
e se tornou uma instituição oficial do império, os chamados púlpitos. Até que Constantino
conseguisse erguer templos especiais para a devoção à qual se convertera, utilizou-se de toda
espécie de adaptação, de prédios judiciais ou até residenciais, integrando depois o gosto medieval
pelos mosaicos e a limpeza das ordens clássicas à arquitetura da catedral. A tradição do púlpito
como local de poder e da retórica persuasiva permaneceu, e estes se espalharam por templos
da mesma forma como a Igreja Romana ganhou adeptos. Muitos dos sermões mineiros foram
pronunciados nos púlpitos da Sé Catedral de Mariana, sede de bispado, e até mesmo sonetos
nos mostram a integração de alguns valores litúrgicos a valores imaginativos e ambivalentes.
(Figura 7)

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Figura 7 - Catedral Basílica de Nossa Senhora da Assunção, Mariana, séc. XVIII (nas laterias esquerda e direita - púlpitos)

Como exemplo, citamos o soneto da Oração Academica, do reverendo Cônego Francisco Xavier
da Silva (Figura 8), dito na festa do Aureo Trono Episcopal, que festejava a transferência do
bispo de Maranhão para o novo bispado de Mariana:
Portanto, a expressão artística tem outras aplicações, podendo ser entendida também como
forma de discurso que se desvia de seu uso normal e, consequentemente, mais óbvio. A palavra
figura tem a mesma raiz de fingere, figulus, fictor e effigies, dando a ideia de fingimento (falsear em
linguagem) e de efígie – forma plástica. Ambas as noções se aproximam da palavra representar –
passar por ser algo que não se é em si. Tornar-se por meio do falso em algo que representa uma
forma ou um conceito, mantendo o sentido de aparência, da semelhança, do simulacro.
Na origem da teologia cristã de fundamentação católica, a imagem passa a ter uma função quase
espiritual, a de transformar as coisas históricas relacionadas à vida de santos, à Bíblia e aos
ritos em uma locução transcendental. O desenvolvimento histórico da cristandade, através de
alusões simbólicas, se define a partir das origens do cristianismo e das perseguições históricas
que fizeram com que a linguagem cristã fosse velada, inserindo-se a cruz no nome do devoto
ou a palavra da revelação codificada em desenhos. Depois de Constantino, com a regularização
da fé católica, é que a Cruz foi integralmente absorvida pela arte, tomando posição de destaque
entre as representações sígnicas cristãs.

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Soneto da Oração Academica, do reverendo Cônego Francisco Xavier da Silva
Foto: Arquivo Revista Barroco.

Nas artes plásticas figurativas, o conteúdo é indissociável da representação, servindo para


narrar histórias reais ou contadas, que devem ser interpretadas espiritualmente. Por histórias
reais, entendem-se desde as Escrituras até a vida de Cristo e dos santos. No discurso cristão,
a figura é usada para o ocultamento do sentido, que se revelará posteriormente, denotando
a concepção de mistério. Cristo como peixe corresponde à palavra grega ichtys, revelando
figurativamente o mistério da Eucaristia. Duas facções cristãs primitivas remetem ao dilema
histórico entre um cristianismo ligado puramente ao mistério (acontecimentos espirituais) e
outro, ao sentido histórico das Escrituras – que seria, assim, mais realista ou veritas. Esse dilema
constante na formação do cristianismo aparece em conflitos como os que detonaram a Reforma
e a Contrarreforma. No entanto, as Escrituras reveladas historicamente nunca deixaram de ter

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influência da visão espiritualista dos milagres e aparições. As conexões entre o mistério e a
verdade mantêm os sentidos múltiplos e as interpretações da doutrina cristã.
Em Santo Agostinho, a figura surge ainda como imagem de sonho, visão, ídolo ou uma forma
matemática, aproximando-se do sentido plástico em sua concretude. Mas pode aparecer também
com o sentido de prefiguração, como no exemplo de Josué, quem seria uma “preanunciação”
(ou prefiguração) de Jesus. O uso do Velho Testamento como uma prefiguração do Novo
Testamento se faz como uma constante na obra barroca, e podemos identificá-la imediatamente
na confecção dos profetas de Aleijadinho em Congonhas do Campo. (Figuras 9)

Figura 9 - Profeta Jeremias. Adro dos Profetas.


Congonhas. (foto: Márcio Carvalho)

O mais importante é que a ideia de figura como “imagem”, ou em grego schema, do que se
anuncia como verdade, prevalece sobre a noção de figura como aparência, ao mesmo tempo
que detém algo dessa definição mais simplória. Assim, quando Adão é interpretado como uma
prefiguração de Cristo, a ideia do homem (filho de Deus) está na aparência carnal. (Figura 10)

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Figura 10 - A Criação de Adão - Michelangelo Buonarroti - 1508-12 - Capela Sistina, Vaticano/Itália.

A CRISTANDADE TRIUNFANTE NAS PARAGENS COLONIAIS


A interpretação figural, ao modo que a entende Auerbach, exerce uma profunda influência
ao longo da Idade Média e teria forte tendência à permanência durante a Contrarreforma, já
que este movimento busca “prolongar a cristandade triunfante da Idade Média para dentro do
mundo moderno”, na expressão de Charles Moeller8.
Mesmo que existam diferenças fundamentais entre a transcendência medieval e a imanência
barroca, a semelhança entre os tempos se dá através da noção da vida como inserida na
perspectiva da salvação – na redenção medieval ou no destino humano, tudo já estaria dito,
escrito e antecipado.
É o destino do homem que já está traçado através do pecado original. Será essa a tragédia maior
da humanidade, uma mancha do destino, traçado pelo ancestral, na sua busca do conhecimento.
Adão “prefigura” ou “pré-escreve” o destino do homem através de um pecado que o origina
como cidadão terrestre. Essa cidadania terrestre ocorre através do conhecimento do bem e do
mal, através da árvore da sabedoria que estava negada ao homem do paraíso. Ao conhecer as
coisas da vida, o homem se faz pecador, pois só há duas formas para se manter a pureza: a
ignorância ou o dom de Deus. A única possibilidade de salvação se faz pela fé, garantindo-se
dessa forma a autoridade da Igreja.

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Se a concepção histórica é tão diferenciada, em quais valores medievais a Igreja se apoia para
criar condições de fazer frente à Reforma Protestante? É na imagem e na forma triunfante com
que essa é cultivada no Barroco que veremos a concepção de fé nesse período.
Em oposição à Reforma que abole as imagens, a Contrarreforma vai buscar na mais tradicional
das formas de manifestação da fé – a idolatria e o espetáculo – o reforço popular aos seus dogmas.
O mistério não pode ser compreendido apenas por palavras (aqui entendidas literalmente),
amplia-se o uso das figuras ou da presença do primado do visual, que aproximam o fiel da
mensagem divina, guardando no rito o mistério de Deus.

SANT’ANA E AS CONEXÕES ENTRE A ESCRITURAS E OS TEXTOS APÓCRIFOS


Diante do pressuposto do mistério e do miraculoso, é
curioso observar que a figura de Sant’Ana tem várias
significâncias com o objetivo de transcender a ideia do
pecado das gerações que antecipam a vinda de Cristo.
É no Barroco como um estilo de arte aberta, interpretativa
e pouco racional, carregado de reflexos, espelhamentos,
claros e escuros, enfim, é através da figuração da religião
que o catolicismo se impõe. Trata-se da estética da
dualidade, da impossibilidade de se estar frente a Deus e de
sua proximidade mediadora pela via de imagens visuais.
O período Barroco se utilizou de diversas criações pseudo-
históricas, principalmente em seu programa iconográfico,
que descende de inúmeras e variadas mitologias, num
sincretismo com diversas formas devocionais saídas
do paganismo e sobreviventes do medievo, acrescidas
de informações teológicas que descendem de todo o
pensamento cristão. Isto ocorre, sobretudo, naquelas que
visam a atingir a mentalidade popular.
Variadas histórias que justificam o fato de a Mãe de Deus
garantir ascendência e descendência puras encontram
na chamada Legenda Dourada inúmeras especulações,
no texto que trata da imaculada concepção de Maria.
Colocando em segundo plano a participação de São
Joaquim na gravidez também, cuja participação se centrasse Figura 11 - Nossa Senhora do Rosário - Autoria
no episódio da anunciação angelical, surge uma gama de desconhecida - Século XVIII - Minas Gerais
Madeira / entalhe, policromia, douramento
aspectos teologicamente discutíveis, como o abraço na Coleção Geraldo Parreiras / Acervo Museu
Porta Dourada, em que Deus separaria a união carnal da Mineiro - Foto: Daniel Mansur

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existência da Alma. Dessa forma, Deus teria criado a alma de Maria separadamente do pecado
original, de modo que carne e espírito só fossem ajuntados após o ato do abraço, garantindo,
assim, pureza à Virgem Maria e justificando a divindade exclusiva de Jesus. (Figura 11)
No mesmo capítulo, tem-se a versão mais conhecida, baseada no casamento de Ana e Joaquim,
que eram fiéis, justos e obedientes a Deus, porém sem filhos. O Senhor escuta as orações e
se compadece da humilhação sofrida por São Joaquim – dito infértil por todos os lugares e
todas as gentes das ruas, e em uma aparição angelical, lhe diz: “não tenhas medo pois sou o
anjo do Senhor”. Assim, apesar de velha e, portanto, não sendo mais biologicamente apta à
maternidade, Santana concebe de forma milagrosa a filha Maria e a dedica a um templo vestal,
onde permaneceria intacta, longe das tentações humanas.

O MOTE ALEGÓRICO
Para maior compreensão do sentido da imagem, cabe ainda uma breve reflexão sobre a ideia
de alegoria em complementação ao que aqui tratamos como imagem. Segundo elucida Sérgio
Paulo Rouanet, etimologicamente
alegoria deriva de allos, outro, e agoreuein, falar na ágora, usar uma linguagem pública. Falar
alegoricamente significa, pelo uso de uma linguagem literal, acessível a todos, remeter a outro
nível de significação: dizer uma coisa para significar outra.9
Desse modo, faz-se o jogo barroco entre o destino inevitável e a redenção pela palavra, pela
forma alegórica, pela imagem ou, se quisermos, figuralmente. A linguagem alegórica, assim
como a arte visual no barroco, é a instância mediadora entre origem e estrutura conceitual para
a criação autônoma, popular ou mesmo tosca, incluindo-se nessas categorias os artistas mais
eruditos às obras afro-brasileiras.
Ao tratar da alegoria Benjamin (1984) não perde a perspectiva visual, no sentido da figuração,
da aparência. Ao tratar da noção de bem e mal, ele chega a identificar a subjetividade figural
da representatividade. Assim é que se estabelece a noção do “mal” como conhecimento na
promessa da serpente em toda a sua subjetividade. O homem conhece o mal quando come a
fruta proibida e a serpente passa, então, a representar alegoricamente o mal – o demônio – e, ao
mesmo tempo, a sabedoria ou o conhecimento. Fixa-se, no entanto, o sentido negativo ligado a
Lúcifer, o anjo decaído, que quis ser (e portanto saber) mais do que Deus.
É o que se pode observar nas imagens devocionais, constantes em oratórios de teor totalmente
popular e procedentes do Maranhão ou do litoral mais cultista até Minas Gerais e Goiás, em
datas variadas, mantendo porém o princípio da mescla de culturas. O que ocorre é exatamente
uma transposição da estética erudita do excesso de ornamentos a uma estética alternativa.
(Figura 12)

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Figura 12 - Oratório Mineiro - séc. XIX - madeira talhada - Serro/MG - Coleção Cristina Ávila

Usa-se da mesma linguagem cifrada das imagens, de forma verossimilhante, quase um simulacro
dos oratórios e retábulos eruditos, porém carregada de afetividade. O fiel guarda aí a memória de
sua fé, seus objetos devocionais mais queridos. Assim, surgem miniaturas de Sant’Anas que além
de comporem pequenos altares, tornaram-se usáveis em outros contextos, como na algibeira
do minerador ou ao lado da mulher na urgência de doar ao mundo mais um cidadão terrestre.
Mantendo-se em constante ligação a chamada sacra conversação que completa em família, o ato
de fé e da piedade.
A sugestão de um ambiente familiar sem discórdias dão sentido à segurança de se estar frente a
mediadores poderosos – avó, a filha e o neto, deslocando ou afastando aos poucos a inteireza da
família apenas patriarcal. Na sacra conversação, não se torna essencial a figura de São Joaquim,
os problemas cotidianos são bem resolvidos pelas mulheres, que têm o poder de guardar dentro
de si um tesouro: a descendência através da concepção e, por isso, podem falar diretamente ao
ouvido do filho de Deus.

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As mulheres da Bíblia sempre se encontram entre o humano e a divindade, especialmente as
relativas à maternidade, às quais pode-se recorrer a qualquer momento, fora dos templos, no
próprio lar, mesmo que este seja uma senzala.
Esteticamente, como bem observa Myriam Ribeiro de Oliveira (2000), os espaldares das cadeiras
de Sant’Anas Mestres indicam que as obras podem pertencer ao período do reinado de D. João
V (1706-1759) ou D. José I (1750-1777). De mais difícil datação são as imagens em miniatura e
aquelas chamadas de fatura popular ou afro-brasileiras.
Que é a leitura de uma obra de arte senão um fenômeno ligado à imaginação? Quando se trata de
fazer conhecer o que é inconcebível, por seu caráter transcendental, nada mais apropriado que a
linguagem das imagens, numa relação intrínseca entre o inteligível e sua transcrição através de
formas. É aí que o exercício da imagem escultórica do Barroco se faz fundamental.

Figuras 12 e 13 - Sant’Ana Mestra - Minas Gerais, séc XVIII/XIX, madeira esculpida (miniatura)
Coleção ângela Gutierrez - Museu das Sant’Anas - Tiradentes/MG

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A CULTURA DA ILUSÃO
Ao traduzir em formas ou palavras coisas do mundo invisível – milagres, aparições, morte e
ressurreição, etc. – o artista é levado a conceber imagens que traduzam um mundo de coisas não
tácteis, tornando-as possíveis de serem imaginadas (quase palpáveis) para o homem comum.
Esse vocabulário exageradamente ilustrativo autoriza as oposições, os contrários e até mesmo o
contraditório, tecendo o fio condutor de uma história fabulosa. Será esta uma distinção que se
faz da Sant’ana, dando a ela o mistério da concepção tardia. Encontramos no Antigo Testamento
muitas mulheres que concebem com a intervenção milagrosa divina, como nos casos de Sara
e de Hanna, mas nenhuma delas é a mãe da Virgem Maria, embora sejam mães tardias. Para
assegurar a humanidade e divindade de Cristo, concebe-se uma lenda – escrita apócrifa – tida
como uma fantasia histórica que iria interagir com a historicidade da tradição judaica da Tribo
de David, de onde descende Cristo e sua parentela.
Compreendem-se, assim, duas alusões à Virgem Imaculada, sem o pecado original que a
distingue de todas as mulheres, pois sua mãe foi abençoada por um milagre, concebendo-a
tardiamente por iniciativa da interferência divina. Assim, Sant’Ana torna-se a padroeira dos
mineradores porque guarda em seu ventre um tesouro, a mãe do homem filho de Deus – tesouro
que salvará a humanidade e justificativa para a aventura do ouro.

DE MÃO EM MÃO, A ARTE SACRA POPULARIZA-SE


E SE CONSOLIDA COMO O BARROCO ESTRADEIRO
Nesse ponto de nossa análise, entramos no campo da significação sociocultural da imagem em
festas comemorativas em honras a Sant’Ana como se vê ainda hoje em locais como Lavras Novas
ou Chapada, distritos de Ouro Preto. Assim é que, em todos os tempos, tivemos uma série de
modelos que foram usados pelos artistas e que chegaram até eles através de uma dada tradição,
ou mesmo a partir de uma ruptura como transgressão dessa tradição.
Passada de mão em mão, do Maranhão a Minas Gerais, a imagem está entre o cotidiano devocional
como a inscrição mais autoral em suas particularidades, das mais eruditas às populares.
Da mesma maneira, cabe concluir que a imagem como linguagem figurada não pode ser
dissociada da figura de retórica, dando valor de semelhança (simulacro) à metáfora. Mas se
considerarmos que a imagem na literatura depende da descrição, esta jamais poderia se sobrepor
(valorativamente) à imagem visual. Para contornar o problema, caberiam duas soluções: a
introdução da ilustração visual ao texto (como algumas edições da Bíblia ilustradas por Rafael)
e a dimensão poética do texto, o que nos remete a Horácio, que compara pintores e poetas em
Ut Pictura Poesis.

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O sabor lúdico do verbo/figura leva à concentração final do verbo divino (lembrando-nos aqui
da prefiguração agostiniana), ou seja, o homem enfrenta por meio das imagens o seu desejo,
em analogia ao projeto divino. É uma possibilidade de diálogo e de encontro por meio de um
código, cuja opressão didática, moral e acumulativa cristaliza o impulso em direção a Deus.
A transplantação imaginativa do Oriente, da Europa Ocidental, da Península Ibérica até a
tropicalidade brasileira, faz-se através da transposição de igrejas inteiras vindas de Portugal e que
se acomodam na Terra Brasilis, dando um salto inaugural
em sua mudança de sítio a ser conquistado e catequizado,
passando por modelos, livros ilustrados, pelas Escrituras,
artistas portugueses e por diversas devoções.
A ênfase na fé visual concedida a toda espécie de gente conduz
à percepção da grandeza de Deus, o criador (arquiteto do
universo) absoluto e único. Mas, aos devotos, fica mais fácil
e aceitável toda uma gama de pedidos e promessas através de
intermediários – anjos, santos e santas mães –, cujo contato
táctil através de imagens devocionais torna mais plausível o
diálogo com a divindade na concretude formal.
De mão em mão, acompanhando as andanças e os
deslocamentos de sertanistas, bandeirantes e toda espécie de
gente e a abertura de caminhos velhos, da Estrada Real ou em
picadas, chega-se até Minas. Fixa-se nas mãos imaginativas
dos mineradores e fundadores de vilas a devoção das mães
santas.
De maneira simples, como só o povo pode conceber,
chegamos à difusão do barroco estradeiro, alargando ao fato
comum das andanças coloniais sobre lombos de burros a
circularidade da ilusão do ouro, da arte e da fé.
A aproximação do homem ao sagrado é resultado de
diversas etapas e mediações (a arte, a escritura e a lenda) que
estabelecem uma relação de empatia com a característica da
criação que só é atribuível a Deus. Figura e sentido figurado
anunciam a perspectiva humana da possibilidade estético-
inventiva nos locais mais adversos, como os grotões da
mineração. (Figura 14)

Figura 14 - Oratório Bala - chumbo, ferro, bala de cartucheira - Minas Gerais, séc. XIX/XX - imagem Nossa Senhora da Conceição -
Colewção Angela Gutierrez - Museu do Oratório - Ouro Preto/MG

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desejada entrada do Excellentissimo, e Reverendissimo Senhor D. Fr. Manoel da Cruz, primeiro Bispo do
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Notas
1 Cristina Ávila - Diretora da Revista Barroco. Escritora, Historiadora da Arte e da Cultura, Doutora em
Literatura Comparada pela Faculdade de Letras da UFMG, Mestre em Artes pela ECA/USP.

2 Ver a propósito: VOVELLE, Michel. Ideologias e mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 1987.

3 SILVA, Innocencio Francisco da. Diccionario bibliographico portuguez. Estudos applicaveis a Portugal e ao
Brasil. Lisboa: Imprensa Nacional, 1883. p.386-387.

4 BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

5 BENJAMIN, Walter. O DRAMA DO BARROCO ALEMÃO. São Paulo: Brasiliense, 1984. p.11/47.

6 ÁVILA, Affonso. O Lúdico e as Projeções do Mundo Barroco. São Paulo : Perspectiva, 1980.p.22.

7 Idem, p. 56

8 Conforme se lê em ÁVILA, Affonso. 1980. p. 33.

9 ROUANET In: BENJAMIN. 1984. p. 37.

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OFÍCIOS MECÂNICOS E
SOCIABILIDADES: UM NOVO OLHAR
SOBRE A CAPELA DO SENHOR BOM
JESUS DO MATOZINHOS DO SERRO/MG,
1773 A 1821

Danilo Arnaldo Briskievicz1

INTRODUÇÃO

A
cidade do Serro/MG (minas do Serro do Frio de 1702 a 1714, Vila do príncipe de 1714
a 1838) foi uma das primeiras a terem reconhecido seu conjunto arquitetônico como
patrimônio nacional pelo Iphan, em 1938. A capela do Bom Jesus do Matozinhos é um
dos templos religiosos tombados individualmente pelo órgão federal, recebendo nas últimas
décadas restaurações e investimentos para sua manutenção.
A Fundação João Pinheiro produziu através de estudos de especialistas de várias áreas contratados
entre os anos de 1978 e 1981, o Atlas dos monumentos históricos e artísticos de Minas Gerais do
Circuito do Diamante. Este estudo realizado pelo Centro de Estudos Históricos e Culturais da
fundação tornou-se o n. 16 da revista Barroco. Nele consolidou-se a versão de que entre os anos
de 1781 a 1797 a capela do Bom Jesus do Matozinhos já se encontrava pronta e decente para
as celebrações religiosas dos ofícios divinos e reuniões de suas irmandades de São Benedito e
de Nossa Senhora das Mercês (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1995, p. 171). Segundo esta
narrativa histórica, os confrades teriam assumido as despesas da construção e ornamentação da
capela. Esta interpretação devocional do templo passa ao largo de qualquer suposição de que a
capela teria sido construída com a finalidade de abrigar santos protetores dos ofícios mecânicos.
Pretendemos rever minimamente esse senso comum estabelecido sobre esta capela serrana, a
fim de propor novas formas de explicar sua edificação na Praia. Assim, para além desse estudo
da fundação mineira, encontramos alguns documentos não consultados à época que demostram

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outros fatos que expõem os interesses e as disputas internas das irmandades que construíram o
templo dominado por referências aos ofícios mecânicos e seus santos protetores. Discordando
da datação da revista Barroco 16, apresentamos fato novo em torno do ano de 1773, e afirmamos
que a segunda capela do Bom Jesus do Matozinhos estava descentemente pronta para os ofícios
divinos neste ano, edificada pela Irmandade de Nossa Senhora das Mercês e São Benedito, a
serviço da comunidade serrana e sua massa de fiéis.

Figura 1 - Igreja do Matozinhos e ao lado direito o atual Museu Regional Casa dos Ottoni, 1946.
Fonte: ARQUIVO CENTRAL DO IPHAN RIO DE JANEIRO.

Este estudo pretende lançar novo olhar sobre os motivos e motivações para a edificação da
capela do Bom Jesus do Matozinhos na Vila do Príncipe, no século XVIII e retomar a discussão
sobre o conceito usado pela Irmandade de Nossa Senhora das Mercês e São Benedito para sua
reedificação, a nosso ver toda modelada para homenagear os ofícios mecânicos e seus mestres
e seus santos protetores. Trata-se de fato raro na história brasileira a edificação de um templo
religioso devocional tipificado quase que exclusivamente pela referência aos ofícios mecânicos,
pois se tratava de atividades caracterizadas por uma degradação social, chamada então de “defeito
mecânico” (FRANCO, 1997, p. 21-63; MELLO E SOUZA, 2004; NADALIN, 2003, p. 230-231;
240). Ele foi uma forma de qualificar o mundo do trabalho, servindo como distintivo social para
o seus não praticantes e como degradação para os que assumiam esses ofícios; dizia respeito aos
trabalhos manuais, cujo exercício gerava desprestígio social. No rol das profissões, os trabalhos
manuais eram destituídos de nobreza em comparação com os trabalhos da administração, da
gerência, da coordenação, de atividades provisionadas pela coroa portuguesa, legislativos, ou seja,
os trabalhos intelectuais, no topo da pirâmide hierárquica, dariam status social e nobreza. Para
além da questão econômica nacional, impõe a questão racial no recorte sobre a importância dos
tipos de trabalho, se mais mental ou mais manual. Por isso, ao desvalorizar os ofícios mecânicos
para elevar os ofícios nobres, as elites locais de certa forma justificavam a escravidão e seus
prolongamentos sociais, como a alforria e a miscigenação racial, e acabavam por dar a ela uma
finalidade útil para a melhoria da civilização ou da moralidade serranas. É nesse sentido que os
oficiais mecânicos eram, na sua maioria, egressos da escravidão, seja por alforria, seja por uniões

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inter-raciais e, de certo modo, subvertiam por sua atuação a concepção de uma sociedade estática
e imóvel no tempo e no espaço, abrindo espaço para entender que a educação informal ajudou
e muito a quebrar as fronteiras raciais e a criar certa capilaridade da forma de ser e de pensar
dos escravos da diáspora africana, uma vez que: Indivíduos dos mais diferentes grupos, etnias
e distinção social, a maioria portugueses imigrados, que obrigados pelo destino, construíram
juntos um modelo sociocultural novo, que possibilitou as condições artísticas necessárias para
efetivação de uma experiência estético-arquitetônica inovadora dentro do mundo português
(DANGELO, 2006, p. 56).

DUAS CAPELAS NO SÉCULO XVIII, E NÃO APENAS UMA


Foram duas as capelas erguidas em homenagem ao Senhor do Matozinhos na Vila do Príncipe.
Antes da atual, houve outra, a primeira capela, construída e mantida pela Irmandade do Senhor
do Bonfim, que desapareceu depois que a Irmandade das Mercês e Benedito assumiram a capela
em ruinas para sua reconstrução. Isso é confirmado por um registro de arrematação de uma
propriedade de terras na Barra do Mosquito em 23 de fevereiro de 1776, que havia pertencido à
Irmandade do Senhor do Matozinhos (ARQUIVO PESSOAL MARIA EREMITA DE SOUZA,
Caderno 3, n.p.2). Se ela havia pertencido aos irmãos do Bom Jesus e sua irmandade, significa
que houve uma capela mantida por essa mesma irmandade, anterior àquela que foi reformada,
reedificada ou reconstruída pela Irmandade de Nossa Senhora das Mercês e São Benedito
em 1773. A antiga e primordial Irmandade do Senhor do Matozinhos havia constituído
seu patrimônio com terras de sua propriedade. Ao que parece, a propriedade de terras da
antiga irmandade primeira foi vendida para formação do patrimônio da nova capela e sua
irmandade. Assim, a capela do Matozinhos edificada em 1773 seria a segunda capela daquele
lugar. Desaparecendo a primeira irmandade do Bom Jesus, assumiram os irmãos da Mercês e
Benedito. Isso é confirmado pelo requerimento do ouvidor geral da Comarca do Serro do Frio
dr. Antonio de Seabra da Mota e Silva, enviado ao governador da Capitania de Minas Gerais,
datado de maio de 1800, em resposta a outro que solicitava informações complementares para
a aprovação do compromisso da irmandade, datado de 1º de março. Num trecho específico do
longo requerimento, o ouvidor afirmou categoricamente: “e para mostrar na presença de Vossa
Excelência a sua utilidade, todo fará expor, que ela, logo no seu princípio, tratou de edificar
um templo abandonado, e quase reduzido a última ruína; que ornou os altares, com asseio e
brilhantismo” (ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO, Cx. 145, Doc. 48, fl. 1). Sobre esta
primeira capela nada sabemos, a não ser que manteve o mesmo padroeiro, o Bom Jesus do
Matozinhos, provavelmente para evitar problemas com o campo santo e a memória respeitosa
aos sepultados no seu adro, devotos do Senhor do Bonfim e dos santos e santas cultuados no
templo; e que deve ter passado para a segunda capela algumas imagens de seus santos e santas.
Em relação à primeira capela do Bom Jesus do Matozinhos, nossa estudo mostra que ela
havia marcado o território da Praia, sendo uma referência para aforamentos, em 1773. Isso é
comprovado pelo assento de um aforamento datado de 23 de fevereiro de 1773, de José Ferreira

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Coelho, preto forro, encontrado no livro aforamentos de terrenos da Vila do Príncipe aberto em
1761, realizado pelo escrivão do Senado da Câmara:

Termo de aforamento que fez José Ferreira Coelho preto forro morador nesta
vila de seis braças de terra de frente da capela do Senhor dos Matozinhos
que partem com as casas e quintal de Sebastião da Costa Almeida e quintal
de Antonia da Rocha [...mo] ¾ – 6 braças.
Aos vinte e nove dias do mês de janeiro de mil e setecentos e setenta e três
anos nesta vila do Príncipe em a rua de frente da Capela do Senhor de
Matozinhos que partem de uma parte com casas de João Angola e da outra
com o quintal de Antonia da Rocha onde eu escrivão ao diante nomeado
cheguei e sendo aí presente José Ferreira Coelho preto forro que reconheço
pelo próprio de que faço menção e dou fé e por ele me foi dada uma sua
petição despachada pelo juiz presidente e oficiais da Câmara desta vila
requerendo-me lhe aceitasse e desse inteiro cumprimento de justiça a qual
eu escrivão lhe aceitei tanto quanto dever posso em razão do meu oficio
cujo teor é o seguinte de verbo adverbum [...] (ARQUIVO IPHAN SERRO,
Aforamentos, Doc. 01 Caixa 43, fls. 81v.-82v.).

O assento confirma que em 1773 uma capela já existia na Praia, bairro serrano dos primeiros
anos do descobrimento, em 1702. Outro registro documental anterior ao primeiro livro da
irmandade no Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Diamantina foi assentado no dia 16 de
maio de 1782, pelo o escrivão do Senado da Câmara no livro próprio, um edital para limpeza das
ruas por onde iria passar o cortejo da bandeira do Divino Espírito Santo, que seria levantada ao
pé da capela do Senhor do Matozinhos com a presença de cavaleiros e corso triunfante, mostra
que já havia sido reconstruída a primeira capela em ruínas:

Edital que mandou publicar pelas ruas desta vila o almotacé atual, o capitão
José Antônio Dias Barbosa e Sá, respectivo a arrumação das ruas e mais
que nela se contém. O capitão José Antônio Dias Barbosa e Sá, almotacé
atual os presentes dois meses nesta Vila do Príncipe por eleição na forma
da lei, etc. Mando pelo presente meu edital a todos os moradores desta Vila
do Príncipe principalmente aos das ruas públicas dela que no dia domingo
do Espírito Santo que se contam 19 do presente mês de maio tenham suas
testadas barridas e limpas das madeiras que pelos ditas ruas estiverem
em forma que sem impedimentos algum possam passar por todas elas
os cavaleiros e corso triunfante com a bandeira do Divino Espírito Santo
que no mesmo dia se pretende alevantar ao pé da capela do Senhor do
Matozinhos debaixo da pena de que o que assim o não fizer ser recolhido
à cadeia desta vila donde não sairá sem primeiro pagar 3$000 réis para as
despesas do concelho; e para que chegue a notícia de todos e não possam
alegar ignorância mandei lavrar o presente edital que vai por mim assinado
o que será lido pelas ruas desta vila e afixado no lugar mais público dela
para que assim cumpram [...] (ARQUIVO IPHAN SERRO, Registro Geral
1781-1783, Doc. 01 Cx. 53, fl. 85v-86).

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Em outro registro de 1783, consta que havia uma chácara por detrás do Matozinhos, pertencente
a João Marques da Silva, em assento encontrado no “Livro 84”, fl. 252v. (ARQUIVO PESSOAL
MARIA EREMITA DE SOUZA, Caderno 59, n.p.). Esses dois últimos registros, somados aos
estudos apresentados na revista Barroco 16, comprovam que a então capela do Bom Jesus de
Matozinhos funcionava regularmente ao final do século XVIII, e abrigava em seu templo uma
irmandade com dois patronos oficiais, ou seja, havia a Irmandade de Nossa Senhora das Mercês e
São Benedito e não mais uma capela administrada pela Irmandade do Bom Jesus do Matozinhos.
Por isso, acreditamos que a capela do Matozinhos já estivesse edificada antes de 1760, e em constante
processo de abandono, entrou em ruína, sendo reconstruída pela Irmandade de Nossa Senhora
das Mercês e São Benedito, constituída oficialmente com seu templo a partir de 1780. Com o
passar do tempo, os documentos referem-se apenas à Irmandade de Nossa Senhora das Mercês e
São Benedito da capela do Bom Jesus do Matozinhos3. No dia 05 de abril de 1786, o procurador do
Senado da Câmara requereu uma bica ou chafariz no adro da capela do Senhor Bom Jesus, água
tirada do quintal da chácara do guarda-mor Manuel Gomes do Amorim [hoje Casa dos Ottoni]
e o procurador pediu também proventos para um valo que André Ursine Grinaldo e sua irmã
fazem atrás da capela do Senhor do Matozinhos (ARQUIVO IPHAN SERRO, Vereação, 1784-
1786, Doc. 01, Cx. 61, fl. 121). Por fim, no “Livro 3 Aberto a 30 de janeiro de 1795”, à fl. 33, constam
as condições da arrematação que fez o guarda-mor Cláudio de Brito Teixeira da fatura da ponte
que vai da rua que desce do pelourinho desta vila para a praia da mesma e capela do Senhor Bom
Jesus do Matozinhos (ARQUIVO PESSOAL MARIA EREMITA DE SOUZA, Caderno 43, n.p.).
O compromisso da Irmandade de Nossa Senhora das Mercês e São Benedito foi enviado para
a Diocese de Mariana por volta de 1780-1781, conforme obrigação acordada com o Cabido de
Mariana, desde 1765. Segundo o cônego Raimundo Trindade, o livro de Receita e Despesa da
diocese datado de fevereiro de 1782, registrou em sua p. 303: “Matozinhos. Na Vila do Príncipe,
‘na paragem chamada Lagoa de Matozinhos’. Foi seu fundador o tenente José Ferreira de Vila Nova
Ivo, que justificou judicialmente, em 1781, essa instituição” (TRINDADE, 1945, p. 204-205).
Um primeiro ponto a analisar é o nome do dito fundador. Parece que houve um erro na transcrição
do cônego, uma vez que encontramos o tenente José Ferreira de Vila Nova apenas, sem o o
“Ivo”, nascido em São João del Rei, de pais ignorados por ter sido uma criança exposta, ou seja,
abandonada por sua mãe biológica e destinada à sua família de criação custeada pelo governo local,
casado com Joana Evangelista de Almeida, em Andrelândia. Joana era natural de Prados, nascida
em 18 de janeiro de 1750. Ao que tudo indica, o tenente passou pela Vila do Príncipe, talvez em
alguma campanha militar, ou mesmo para exercer função temporária na Real Casa de Fundição
do Ouro. Ao que tudo indica, o tenente Vila Nova não foi o único fundador da irmandade, mas o
seu principal provedor, tendo enviado o compromisso para aprovação eclesiástica.
Um segundo ponto de análise da criação da Irmandade de Nossa Senhora das Mercês e São Benedito
diz respeito aos problemas jurídicos em torno da aprovação do compromisso oficial encaminhado
pelo tenente Vila Nova em 1780-1781. Isso comprova que houve no lugar reivindicado pela
irmandade atual, outro campo santo, uma primeira capela. Isso deve ter gerado problemas com
os antigos provedores e discussões sobre sua reutilização com o vigário da paróquia serrana. Em
maio de 1800, o ouvidor da Comarca do Serro do Frio, dr. Antonio de Seabra da Mota e Silva,

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tentou resolver o problema relativo à desaprovação do compromisso ou impedimento para o
funcionamento da irmandade, que passava necessariamente também, pela utilização do templo
herdado da Irmandade do Bom Jesus. Ele enviou um requerimento ao governador da Capitania
de Minas Gerais, em Vila Rica; o mesmo governador encaminhou para despacho da Coroa
portuguesa, o qual desconhecemos, mas que deve ter sido favorável à aprovação do compromisso
anteriormente enviado. O requerimento começa com a solicitação oficial:

Ilustríssimo Excelentíssimo Senhor.


A Irmandade de São Benedito e Senhora das Mercês, veneração singular
desta Vila, achando-se ereta na Capela do Senhor do Matozinhos, desde
o ano de 1787 por autoridade do Provedor, que então servira, tem dado
conhecidas provas de fervor extraordinário, em benefício do seu aumento
e infundado no coração dos confrades, amar o povo, sentimentos cristãos,
e devotos. E para mostrar na presença de Vossa Excelência a sua utilidade,
todo fará expor, que ela, logo no seu princípio, tratou de edificar um
templo abandonado, e quase reduzido a última ruína que ornou os altares,
com asseio e brilhantismo; que manda pelo seu capelão celebrar o Santo
Sacrifício da Missa em comodidade dos moradores da Praia e vizinhos
roceiros, que faz as suas funções em honra da dita com [arrecadação]
devida, e satisfação do público; que alcançou a licença de 20 sepulturas;
que o número daquele composto, entre brancos, pardos, e negros, chega
ao de 266; e que não perda um só instante de cumprir as obrigações do
compromisso, já assistido aos enfermos, já socorrendo-os durante a vida,
já acompanhando-os depois da morte. Isto mesmo se justifica como
documento do N. V., a juramento de três testemunhas, que perguntei não
contente com a extrajudicial informação de que posso atestar seguro, e bem
longe de faltar à verdade quando só intento segui-la, e obedecer ao ofício
de 1 de Março. Deus Guarde a Vossa Excelência Vila do Príncipe [...] de
maio de 1800. Ouvidor Geral da Comarca. Antonio de Seabra da Mota
e Silva. Domingos Manoel Marques Soares. (ARQUIVO HISTÓRICO
ULTRAMARINO, Cx. 145, Doc. 48, 24/09/1798, fl. 1).

Os dados estatísticos da Irmandade das Mercês e São Benedito são muito precisos e mostram um
controle total dos processos de sepultamento dos irmãos e irmãs, das missas, e da comunidade
atendida pelo templo. Dos 266 irmãos de compromisso, havia brancos, pardos e negros. O
requerimento apresentou ainda três certidões para comprovar os serviços da Irmandade e seu
compromisso com a ordem e sossego públicos. Assim, o ouvidor relata que “diz o Provedor da
Irmandade de São Benedito ereta nesta Vila na Capela do Senhor de Matozinhos que ele precisa
de certidão, o número de irmãos que se acham com termo de entrada na dita Irmandade”
(ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO, Cx. 145, Doc. 48, 24/09/1798, fl. 3). Por isso, o
mesmo ouvidor geral ordenou ao escrivão da Ouvidoria que passasse as certidões “do número
de irmãos, e irmãs, e a das sepulturas concedidas” (ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO,
Cx. 145, doc. 48, 24/09/1798, fl. 3). Foram convocados três “homens bons” para passarem as
suas certidões. Tudo foi resumido pelo tenente Antonio Cardozo Nunes, escrivão da Ouvidoria
Geral nesta Vila do Príncipe e sua comarca do Serro Frio:

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Certifico e faço certo que sendo-me apresentado por parte dos suplicantes
o livro de assentos de que fazem menção na petição supra dele consta que
o número dos Irmãos Brancos que se acham na dita Irmandade são trinta e
oito, e os Irmãos homens pardos e crioulos são cento e vinte oito, e as Irmãs
Brancas Pardas, e Crioulas são cento, e do dito número de mulheres tem
falecidas da vida presente dez, e dos homens dezessete = E requer do mais a
Provisão que Sua Excelência Reverendíssima concedeu aos suplicantes para
terem sepulturas na dita Capela da mesma consta ter em fé concedido vinte
sepulturas, nas quais se tem enterrado os ditos irmãos defuntos: passado
referindo a metade em o dito livro e Provisão me reporto em mão e pedir
dos suplicantes que de tornar receber aqui comigo abaixo assinaram depois
de ser esta por mim corrida conferida subescrita consertada e assinada
nesta Vila do Príncipe aos dois dias do mês de maio de mil oitocentos
anos eu Antonio Cardoso Nunes escrivão da Ouvidoria Geral e [correição]
o subescrevi, conferi, e assinei. Antonio Cardoso Nunes (ARQUIVO
HISTÓRICO ULTRAMARINO, Cx. 145, Doc. 48, 24/09/1798, fl. 3-3v).

Os “homens bons” que certificaram o funcionamento regular e para o bem público da Irmandade
de Nossa Senhora das Mercês e São Benedito foram três – Bernardino José de Queiroga, José
Antonio Dias Barbosa e Sá e Claudio de Brito Teixeira, ouvidos segundo o que se lê, “aos sete dias
do mês de maio de mil oitocentos nesta Vila do Príncipe no lugar da residência do dr. Antonio
de Seabra da Mota e Silva em desembargo de Sua Majestade Fidelíssima seu Ouvidor Geral, e
Corregedor desta Comarca do Serro do Frio” (ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO, Cx.
145, Doc. 48, 24/09/1798, fl. 4) pelo escrivão que perguntou “as testemunhas abaixo assinadas
as quais mandou vir a sua presença para averiguação do requerendo na petição: no que para
constar faço este termo eu Antonio Cardoso Nunes escrivão da Ouvidoria” (ARQUIVO
HISTÓRICO ULTRAMARINO, Cx. 145, Doc. 48, 24/09/1798, fl. 4). Depois de apresentar as
certidões e suas respectivas assinaturas, o documento foi enviado para Vila Rica e de lá seguiu
para o Conselho Ultramarino para deliberação. Importante registro foi escrito no resumo das
oitivas pelo ouvidor: a Irmandade era composta por 38 irmãos brancos, 128 irmãos pardos e
crioulos e cem mulheres da qualidade branca, parda e crioula, totalizando 266 confrades; além
disso, a irmandade estava autorizada a usar 20 sepulturas de seu campanário. A capela do Bom
Jesus do Matozinhos estava plenamente integrada à vida paroquial serrana. E exigia que seu
compromisso fosse oficialmente reconhecido.

OS FESTEJOS CÍVICO-RELIGIOSOS: ENSINAR EM CONJUNTO


A capela do Matozinhos se envolveu cotidianamente com os festejos cívico-religiosos4, de
refinada dinâmica devocional e participação popular. No “Livro 1814-1816 n. 9 do Senado da
Câmara”, fl. 36, há um relato da festa de Santa Isabel celebrada no dia 12 de julho, quando havendo
ajuntamento do povo e sendo juntos saíram com o real estandarte arvorado acompanhado do
juiz almotacé, a nobreza e mais povos do pais para a igreja mátria da Vila aonde assistiram a festa

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da Santa Isabel que se celebrou com missa solene na forma do costume e voltando depois para
o Senado fizeram o termo (ARQUIVO PESSOAL MARIA REMITA DE SOUZA, Caderno 24,
n.p.). No “Livro 27 de Acórdão do Senado da Câmara” registrou-se no dia 29 de maio de 1821,
fl. 15, que o real estandarte arvorado havia sido conduzido pelos almotacés Domingos Pereira
Guimarães, João Carlos de Abreu, cidadãos e povo para a matriz e seguiram para a capela do
Matozinhos onde findou o cortejo cívico-religioso com uma ladainha e a missa (ARQUIVO
PESSOAL MARIA REMITA DE SOUZA, Caderno 67, n.p.). O estandarte arvorado em questão
representava a monarquia portuguesa, provavelmente com suas armas ou brasão; levado por
um “homem bom” da vila em cortejo, como uma bandeira, levado em pé, perpendicularmente
(SILVA, 1789, p. 126); era um hábito lusitano levar estandartes arvorados – ou bandeiras – nos
cortejos cívico-religiosos; nos perguntamos se, à moda lusitana dos cortejos cívico-religiosos em
que participavam os oficiais da Casa dos Vinte e Quatro em Lisboa, os oficiais mecânicos da Vila
do Príncipe também poderiam levar os estandartes de seus santos protetores; teria São Crispim
recebido sua homenagem pelos sapateiros serranos em algum desses cortejos tão populares? Os
documentos nada informam.
Uma importante anotação de Maria Eremita de Souza explica a conflituosa relação entre os
confrades das irmandades na Vila do Príncipe. Segundo sua narrativa, foi criada a Ordem
da Mercê ou da Redenção em 1218 por São Pedro Nolasco e São Raimundo de Penhaforte
consagrada ao resgate dos prisioneiros feitos pelos infiéis. No Brasil, foi criada a Irmandade
das Mercês para resgate também dos cativos. Na Vila do Príncipe, foi fundada no século
XVIII e tinha ainda como outro padroeiro São Benedito. Para ela, geralmente faziam parte da
Irmandade os mulatos, pardos e pretos; entretanto na Vila do Príncipe, além dos mulatos, os
brancos faziam parte de sua diretoria e mesa. Contudo, com o passar dos anos, já na segunda
metade do século XIX, a confraria abrigava elementos da nobreza da terra como, por exemplo,
o Barão do Serro, José Joaquim Ferreira Rabello – “que por sinal era abolicionista”, o professor
José Coelho Tocantins de Gouvêa, vários membros da família Ottoni, Rabello, Ávila e outras
(ARQUIVO PESSOAL MARIA EREMITA DE SOUZA, Caderno 137, n.p.).
As dinâmicas de mestiçagens biológicas e culturais (PAIVA, 2015, p. 42) criaram no interior das
irmandades serranas uma constante tentativa de ocupação dos espaços de poder e de tomada
de decisão pelos representantes das classes sociais urbanas. Estamos falando de prestígio e
reconhecimento social dado pelo pertencimento aos quadros das confrarias e, em especial, de
suas diretorias. A disputa por status social criou disputas entre os seus confrades e entre as
próprias irmandades, muitas vezes medindo sua autoridade pela riqueza dos templos e pela
suntuosidade de suas festas e procissões. Além disso, essa disputa de espaço e poder se revelava
nos cortejos cívico-religiosos que por serem festejos públicos relevantes para a comunidade,
poderia comprovar a ascensão social de seus participantes no interior de suas classes. Pertencer
é o mesmo que poder. E poder significa prestígio social. A análise dos conflitos sociais tendo
como pressuposto teórico as dinâmicas de mestiçagens biológicas e culturais fica evidente na
criação da Irmandade de São Benedito e na entronização de sua imagem no altar esquerdo
inserido de viés entre as paredes da nave. Uma imagem de santo nunca está destituída da
intencionalidade de quem a esculpiu. Há motivações religiosas, culturais, políticas, econômicas
e históricas para que uma imagem chegue daquela forma acaba ao altar. No caso de São Benedito

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há uma biografia bastante popularizada: nascido na Itália, na cidade de San Fratello em 1526, foi
batizado Benedetto Manasseri, falecendo em Palermo; primogênito de ex-escravos convertidos
ao catolicismo, tornou-se liberto aos 18 anos; foi eremita e frade franciscano dos 32 aos 36 anos
quando “passou a viver no Convento de Santa Maria de Jesus em Palermo, onde exerceu a função
de cozinheiro, frei superior dos noviços e guardião deste convento, algo que chama atenção, pois
Benedetto era analfabeto e negro” (OLIVEIRA, 2017, p. 369). Por outro lado, há outra versão
mais atenta à pedagogia moralizadora do século XVIII na Vila do Príncipe: desde o século
XVII a difusão da história do santo negro consolidou na Itália, espalhando-se pela Espanha e
Portugal; as imagens do santo espalhadas na Ibero América parecem coincidir com o aumento
da escravidão nessas colônias, especialmente como estratégia de controle e administração desta
população.

FIGURA 2 – Pintura do forro da capela-mor da Igreja do Bom Jesus do Matozinhos, 1797.

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A capela do Matozinhos foi a sede da Irmandade das Mercês e São Benedito. Trata-se de um
templo que homenageia os ofícios manuais ou mecânicos. A pintura do forro da capela-mor
foi terminada por Silvestre de Almeida Lopes5, em 1797. Cinco homens recolhem o Jesus
na praia de Matosinhos, conforme a lenda popular, e uma pequena embarcação com quatro
marinheiros passam ao fundo. Não são apenas cinco homens a recolher o Cristo na praia: são
cinco homens semelhantes aos pescadores – quatro estão descalços e um deles usa sapatos,
vestidos com simplicidade; dois deles têm à cabeça toucas ou carapuças semelhantes ao barrete
frígio ou barrete da liberdade, um dos símbolos da Revolução Francesa de 1789 (o que não
indica homenagem à revolução, mas uma indumentária comum aos trabalhadores europeus do
século XVIII) (Fig. 2). Assim, a Igreja do Matozinhos parece indicar um conjunto iconográfico
relacionado às corporações de ofícios: pescadores e marinheiros reconstituem a lenda do Bom
Jesus de Matozinhos no forro da capela-mor; pasteleiros, latoeiros de folha branca e de folha
amarela e torneiros protegidos por Nossa Senhora das Mercês em sua corporação de ofício; São
Benedito negro evoca a proteção cristã do menino Jesus aos cativos e egressos da escravidão,
em sua maioria trabalhadores manuais domésticos ou de ganho com seus saberes dos mais
variados; a pequena imagem de São Crispim, padroeiro dos sapateiros e curtidores de couro, dos
surradores e odreiros, e por fim, a pintura mural atribuída historicamente a Silvestre de Almeida
Lopes representa São Lucas6 – o santo protetor dos pintores – segurando um estandarte de
Nossa Senhora com o menino Jesus e uma paleta de tintas. Não descartamos a possibilidade de
uma auto retrato do pintor.
Em torno da pequena imagem de madeira policromada de São Crispim entronizada na Igreja
do Bom Jesus de Matozinhos colocamos duas questões as quais intencionamos responder com
o nosso estudo: a primeira é como se desenvolveu a devoção a São Crispim e Crispiniano em
Portugal do século III ao século XIX e quais as diferenças entre o culto na metrópole e na Vila
do Príncipe, tendo como pano de fundo as dinâmicas biológicas, culturais e de mestiçagens; e a
segunda é o que a imagem de São Crispim da Igreja do Bom Jesus do Matozinhos revela sobre
a educação não formal e não escolar na segunda metade do século XVIII e primeiro quartel do
século XIX, na Vila do Príncipe.

A COMPROVAÇÃO DO CONCEITO DA SEGUNDA


CAPELA DO MATOZINHOS: SÃO CRISPIM
Analisar as relações entre devoção popular de São Crispim e Crispiniano e a sua efetivação como
protetores dos sapateiros na corporação de ofício com assento na Casa dos Vinte e Quatro em
Portugal é nosso objetivo neste primeiro ponto de nosso estudo. Nosso estudo pretende explicar
inicialmente como as figuras de Crispim e Crispiniano ganharam relevância no imaginário
lusitano a ponto de se tornarem protetores dos sapateiros em sua corporação de ofício e chegou
à Vila do Príncipe. O martírio dos santos católicos, os irmãos Crispim e Crispiniano, teria
acontecido em Soissons, na França. Segundo a lenda popular eles teriam fugido de Roma para
manterem sua fé cristã devido à perseguição do imperador romano Diocleciano – que governou

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de 20 de novembro de 284 a 01 de maio de 305; durante a fuga, na noite de Natal, eles batiam
nas portas buscando refúgio, mas ninguém os atendia; por fim, foram abrigados por uma pobre
viúva que vivia com um filho; em agradecimento a Deus, quiseram recompensá-la fazendo um
novo par de sapatos para o rapazinho; eles trabalharam rápido e deixaram o presente perto
de uma lareira; antes de partir, enquanto todos ainda dormiam, os irmãos rezaram pedindo
amparo da Providência Divina para aquela viúva e o filho; quando amanheceu, a viúva e seu
filho viram que eles tinham desaparecido e encontraram o par de sapatos cheio de moedas;
quando alcançaram o território francês, os dois irmãos estabeleceram-se na cidade de Soissons
seguindo uma rotina de dupla jornada, atuando como missionários de dia e à noite, em vez de
dormir, trabalhando na oficina de calçados para tirarem o seu sustento e continuar fazendo
caridade aos pobres. Por conta dessa tradição, os santos Crispim e Crispiniano se tornaram os
patronos dos trabalhadores de couro e sapateiros na Europa (CRAPANZANO, 2013).
A Casa dos Vinte e Quatro foi um órgão deliberativo da administração municipal de Lisboa,
criada para dar maior participação popular no governo, depois da crise de governabilidade
chamada Interregno, de 1383 a 1385 (FERNANDES, 1999, p. 24-28). O poder da Casa dos
Vinte e Quatro se espalhou por outras cidades do Reino de Portugal e do Ultramar, sendo
composta por representantes das corporações de ofícios, guildas ou mesteirais. As corporações
de ofícios atuavam como escolas profissionais em que os mesteres ou oficiais requeriam de
seus aprendizes um comportamento social ilibado. Além do saber-fazer fundamental para a
produção de suas manufaturas, havia um conjunto de observâncias morais a serem obedecidas,
entre elas as práticas cívico-religiosas, nas quais se inclui a devoção ao santo de sua bandeira.
Este aprendizado didaticamente ministrado nas oficinas e que envolvia o conhecimento técnico
de seu ofício e muitos comportamentos validados socialmente faziam parte do cotidiano dos
mesteirais. Importa demonstrar como no século XVIII se organizou a Casa dos Vinte e Quatro,
especialmente as suas bandeiras e seus santos protetores em torno das festividades e cortejos
cívico-religiosos. De 1750 a 1777, Sebastião José de Carvalho e Melo – o marquês de Pombal –
assumiu o cargo de primeiro-ministro do governo português quando subiu ao trono dom José I.
As reformas pombalinas interferiram diretamente no funcionamento e atuação das corporações
de ofícios. Houve centralização e intervenção do estado português na política – diminuindo o
poder das assembleias populares; na educação – a mais conhecida no Brasil foi a expulsão dos
jesuítas em 1759; na economia – com metas de liberalização das relações entre trabalhadores
e empregadores; e nas relações com a Igreja – por vezes colocando em questão os pactos do
padroado (AZEVEDO, 2004). Pela Nova Regulação da Casa dos Vinte e Quatro de Lisboa,
instituída em 03 de dezembro de 1771, determinou-se uma nova organização das bandeiras e de
seus ofícios e anexos. Assim, para participar da procissão do Corpo de Deus – o evento de maior
visibilidade e reconhecimento social da Casa e de seus representados (LANGHANS, 1947), as
bandeiras dos ofícios de cabeça e ofícios anexos deveriam ser representados em seus estandartes
com uma nova organização. O novo regimento estabeleceu que São Crispim teria como ofícios
de cabeça os sapateiros e curtidores e os ofícios anexos surradores e odreiros (COLLEÇÃO DA
LEGISLAÇÃO PORTUGUEZA-SUPLEMENTO, 1763-1790, p. 295-297).
Alguns dos hábitos cotidianos da Casa dos Vinte e Quatro acabaram por se instalar na Vila do
Príncipe. A devoção aos santos protetores dos ofícios de cabeça e anexos com todo o imaginário

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religioso das suas lendas populares é sem dúvida uma tradição presente no projeto de construção
da capela do Bom Jesus do Matozinhos trazida pelos oficiais mecânicos na imigração portuguesa
para a colônia. Essa devoção se expressou na escolha dos temas para a pintura do forro do altar-
mor – a lenda do Bom Jesus do Matozinhos – e pela compra das imagens de madeira dos santos
protetores, Nossa Senhora das Mercês, São Benedito e São Crispim. Além disso, o outro costume
foi o uso recorrente do estandarte arvorado nos cortejos cívico-religiosos, costume eternizado
na pintura do mural lateral ao altar principal, em que o evangelista São Lucas segura o estandarte
pintado por ele mesmo, encarnando a figura de um oficial mecânico. O que foi aprendido em
Portugal mediado pelos acordos e desacordos da Casa dos Vinte e Quatro acabou por ser
replicado no cotidiano da Vila do Príncipe. Os portugueses que dominavam o saber-fazer de
seus ofícios mecânicos exportaram seus costumes de como os realizar, ajustando-os à realidade
local onde as dinâmicas de mestiçagens biológicas, culturais e educacionais amalgamaram
tantos outros saberes, materiais, técnicas, formas de expressão e mesmo outras formas de
praticar a devoção aos santos. Assim, os ofícios mecânicos foram também mestiçados, deixando
de ser apenas um saber-fazer dos portugueses, um saber-fazer dos africanos ou um saber-fazer
dos indígenas, para se tornarem uma arte serrana e brasileira, adaptada aos materiais da terra,
encarnada aos novos costumes sociais – ou a esta nova pedagogia moralizadora e civilizadora
mestiçada e multicultural – que surgiu desse deslocamento de tantos saberes e ofícios para a
colônia. O pressuposto para a aceitação do funcionamento de um sistema de “culturas de ofícios”
(SANTOS, 2005, p. 121) destinada ao povo (saber fazer, manufaturar, executar) e outro sistema
de culturas nobilitantes destinada aos nobres (saber pensar, julgar, administrar) é a noção de
natureza humana herdada da tradição judaico-cristã pelos povos da Península Ibérica. Sendo
que a ordem natural das coisas foi estabelecida por um decreto divino cabe aos homens respeitar
os desígnios superiores. Assim, a natureza humana era considerada inalterável por um decreto
divino e se expressava pela lei do sangue (OLIVAL, 2004, p. 154) da qual derivou a lei da cor.

SÃO CRISPIM E OS SAPATEIROS


São Crispim, padroeiro dos sapateiros, é uma imagem esculpida em madeira policromada e
com douramento, medindo 41,5 cm de altura, 19 cm de largura e 15,5 cm de profundidade,
datada do século XVIII (Fig. 3), esculpida em Minas Gerais, de fatura popular, com feições
inexpressivas e sem detalhamento (IPHAN, 1996). Segundo Fabrino (2012, p. 64), as imagens
populares “são frutos de um conhecimento empírico que não segue os cânones das imagens
eruditas, devido à falta de instrução e formação acadêmica de seus artífices, homens do povo e
não artistas eruditos”. Isso indica que um santeiro residente em Minas Gerais esculpiu a imagem
encomendada por algum devoto que possuía uma outra imagem idêntica ou forneceu ao artista
uma gravura do santo para usar como modelo. Isso era muito comum, uma vez que “ocorrem
criativas adaptações iconográficas ligadas ao cotidiano do interior” (FABRINO, 2012, p. 65).
Havia a devoção a Santo Crispim na Vila do Príncipe, levada por sapateiros portugueses – ou
crioulos devotos – que o reconheciam como padroeiro de seu ofício.

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FIGURA 3 – Imagem em madeira policromada de São Crispim.

A presença de São Crispim, padroeiro dos sapateiros, na Igreja do Matozinhos desde pelo menos
1773 permite-nos compreender como era a sociabilidade dos oficiais mecânicos no Brasil
colonial. O pressuposto para os processos de ensino e aprendizagem dos ofícios mecânicos
na Vila do Príncipe foi a sua regulação pela Casa dos Vinte e Quatro de 1572 e 1771. Havia
uma classificação rigorosa das etapas de aprendizado dos ofícios mecânicos em Portugal. Em
Portugal, depois de examinado e aprovado, o oficial recebia uma carta de examinação passada
pelos juízes, confirmada e registrada pela Câmara, podendo estabelecer-se como mestre de tenda
aberta e participar da eleição dos juízes; os juízes em parceria com os vereadores negociavam
os preços e fiscalizam as tendas. Este costume de classificar a hierarquia das corporações em
aprendizes, jornaleiros ou obreiros e oficiais e de prestar exames oficiais perante um juiz de
oficio e seu escrivão chegou, modificado, à Vila do Príncipe. Estamos nos referindo ao modelo
de formação dos mestres adaptada às realidades coloniais do setecentos e o primeiro quartel do
oitocentos, especialmente por conta das dinâmicas de mestiçagens biológicas e culturais. Assim,
é necessário analisar a estrutura de funcionamento dos processos de formação e avaliação dos
novos oficiais mecânicos e a emissão de suas provisões para abertura de tendas ou lojas públicas;
além disso é fundamental entender o papel dos juízes e escrivães de ofícios escolhidos pelo
Senado da Câmara e como se dava esta relação na Vila do Príncipe. Em resumo, o processo de
formação de um mestre de ofícios era simples: o jovem era admitido por seu mestre residindo
ou não em sua casa; tornava-se um aprendiz, usando as ferramentas da oficina de seu mestre,
observando e praticando suas lições; ao final do processo ele solicitava a examinação pelo juiz

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de ofício acompanhado de seu escrivão, ambos escolhidos pelo Senado da Câmara; aprovado, a
secretaria do Senado da Câmara emitia a provisão, patente ou licença de mestre de ofício – uma
espécie de registro profissional – que ficava anotada no Livro de Patentes e Provisões. Os ofícios
mecânicos examinados na Vila do Príncipe ou tiveram alguma referência documental neste
estudo foram os de sapateiro, alfaiate, carpinteiro/carapina, seleiro, ferreiro e pedreiro (SILVA,
1928, p. 118-119; ARQUIVO IPHAN SERRO, Registro Geral 1781-1783, Doc. 01, Cx. 53).
No dia 1º de fevereiro de 1783, à fl. 199 do livro do Senado da Câmara (ARQUIVO IPHAN
SERRO, Registro Geral 1781-1783, Doc. 01, Cx. 53) foi anotada a provisão do ofício de sapateiro
de José Alves Santos sendo apresentada a certidão de exame do juiz do ofício Sebastião da Costa
e Almeida, registrada pelo escrivão da Câmara, já que o escrivão do ofício estava com algum
impedimento. Os adjetivos que veem à frente do nome de José Ferreira Coelho – preto forro
– indicam uma qualidade e uma condição: qualidade de homem preto ou negro e condição de
forro, ou seja, ele havia sido escravizado, recebeu sua carta de alforria que foi registrada em
cartório e passou a gozar da condição jurídica de um homem livre, podendo realizar contrato de
compra e venda de imóvel, como é o caso. Sua condição de escravizado nunca era apagada, mas
era reconhecido como alguém que foi libertado oficialmente do cativeiro. A qualidade do novo
mestre José Alves Santos era de homem pardo, ou seja, mulato, de cor entre o branco e preto. Sua
condição era natural desta Vila, provavelmente tinha sido aprendiz de algum mestre sapateiro
em loja ou tenda aberta na Vila do Príncipe.
O “Livro 33 21 de abril de 1791 a 30 de maio de 1792 Códice n. 106 Registro da Câmara” (não
consta no arquivo do Iphan Serro) tem anotado em sua fl. 163 (ARQUIVO PESSOAL MARIA
EREMITA DE SOUZA, Caderno 44, n.p.), uma examinação datada de 08 de março de 1792
a qual demonstra como numa sociedade escravista colonial do século XVIII as dinâmicas de
mestiçagens biológicas e culturais criaram também possibilidades de acordos entre cativos e
seus proprietários de negociação em torno de suas profissões. Trata-se da examinação e provisão
do sapateiro Antônio, mulato escravo do alferes Bernardino José de Queiroga. Na qualidade
de mulato, e por ter pelo menos o pai ou a mãe escravizado/a, mantinha-se na condição de
escravo de ganho de seu dono. Não fica claro se era apenas um escravo de ganho, sujeito ao
trabalho de sapateiro sem ganhar nada em troca, ou se estava negociando sua coartação, ou seja,
se sua alforria seria paga parceladamente com o seu trabalho de oficial ao final de um prazo
determinado por seu dono. Em relação a Bernardino José de Queiroga sabemos que foi um
“homem bom”: advogado, serviu como procurador do Senado da Câmara em 1796, foi juiz de
órfãos em 1803 e vereador em 1824.
No ano de 1795, o “Livro 36” do Senado da Câmara da Vila do Príncipe (ARQUIVO PESSOAL
MARIA EREMITA DE SOUZA, Caderno 43, n.p.) há dois registros importantes para a
compreensão das dinâmicas de mestiçagens culturais e biológicas pela interface da educação não
formal dos ofícios mecânicos. No dia 1º de abril de 1795, Antônio Vieira foi provisionado como
oficial sapateiro depois da examinação. Ele era escravo de Manuel Vieira Ottoni (1732-1801).
Outro registro, do dia 18 de julho de 1795, fl. 40 (ARQUIVO PESSOAL MARIA EREMITA DE
SOUZA, Caderno 43, n.p.), mostra como eram as relações de poder entre os oficiais mecânicos e
o Senado da Câmara. Diferentemente do funcionamento da Casa dos Vinte e Quatro de Lisboa,

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os oficiais mecânicos da Vila do Príncipe estavam sujeitos às posturas – tabela de preços anuais
– e não auxiliavam nas deliberações da Câmara como em Portugal. O prestígio dos oficiais
mecânicos na Vila do Príncipe era menor se comparado com os de Portugal. Encontramos
os juízes de ofícios e seus escrivães auxiliando nas examinações e provisões, bem como na
fiscalização das tendas ou lojas. Contudo, os oficiais quando em ajuntamento público diante do
povo nos festejos cívico-religiosos ampliavam sua autoridade local. Assim, o juiz de oficio dos
sapateiros, o alferes Sebastião da Costa e Almeida, foi convocado para aprontar uma dança não
especificada de qual modalidade ou tipo, por ser oficial e juiz de ofício de sapateiro, a fim de
celebrar em cortejo a festa de nascimento do sereníssimo príncipe, obrigado juntamente com
seus oficiais a aparecer em todos os dias que houvesse touros – ou cavalhada, nas noites em que
houvesse passeio público, ou seja, três noites de festas com as ruas e casas iluminadas.
Citemos um último registro. No “Livro de Provisões e Patentes – 1800 a 1803” (ARQUIVO
PESSOAL MARIA EREMITA DE SOUZA, Caderno 40, n.p.), consta a carta de aprovação de
exame do boticário Antônio Borges Monteiro, mostrando a preocupação na Vila do Príncipe
com a especialidade formativa dos ofícios. Neste mesmo livro, outro sapateiro teve seu registro
profissional oficializado. Francisco dos Santos, pardo, gerado de Teodora Loba da Cunha, depois
de ser examinado e aprovado pelo juiz de oficio de sapateiro Sebastião da Costa e Almeida ficou
autorizado a “fazer qualquer obra de qualquer qualidade que seja como fazia certo pela certidão
do juiz do ofício Sebastião da Costa e Almeida” mandando passar “a presente provisão por nós
assinada e selada com o selo deste Senado em virtude da qual poderá trabalhar em qualquer
parte deste Reino, cidade, vila ou arraial pelo que pedimos aos senhores doutores corregedores
e mais justiças deste Reino e senhorios”.

CONCLUSÃO
Os oficiais alfaiates criaram no período colonial importante estrutura de serviços que lhes
possibilitou ter a maior renda dos ofícios mecânicos da Vila do Príncipe e por extensão da
Comarca do Serro do Frio. Eles eram a maior corporação de ofícios com 21 oficiais (sem
contar os seus aprendizes) – apesar do desgaste desse modelo copiado de Portugal no primeiro
quartel do século XIX – contribuindo com seus serviços para o desenvolvimento comercial
regional e com seus impostos para o financiamento do corpo político. Os seleiros e sapateiros
representavam a segunda corporação mais importante em 1821, atuando nas atividades ligadas
ao couro, pagando pouco mais da metade dos impostos dos alfaiates, seguidos dos ferreiros
e dos carpinteiros. De fato, aos oficiais mecânicos alfaiates, seleiros e sapateiros, ferreiros e
carpinteiros somavam-se um amplíssimo espectro de tantas outras profissões mecânicas, tão
essenciais ao funcionamento do universo colonial que acabavam passando despercebidas. Em
torno desses ofícios mecânicos banais (MENESES, 2013) era possível garantir a sobrevivência
de populações inteiras no Brasil colonial.
Por conta do pacto colonial ou exclusivo comercial metropolitano Portugal se beneficiou
dos produtos e atividades econômicas da Comarca do Serro do Frio por mais de cem anos.

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As relações entre Portugal e Brasil explicam o que foi vivenciado pelas povo da Comarca do
Serro do Frio, em especial na sua capital, a Vila do Príncipe. O pacto colonial criou dispositivos
de poder simbólico realmente novos como a centralidade na escravidão africana. De Portugal
foi exportada uma forma de organização social para a Vila do Príncipe. O que chegou de
Portugal foi mediado por arranjos locais da vida cotidiana, às vezes com relativa submissão,
por vezes com grande revolta. O que foi vivenciado pelo povo da Vila do Príncipe precisa ser
avaliado historicamente como um processo de apropriação e negação no interior das complexas
dinâmicas de mestiçagens culturais, biológicas, demográficas e educacionais. Essa visão do
mundo do trabalho chamada de defeito mecânico criou na Vila do Príncipe uma cisão sem
igual entre a elite local que se organizava em torno dos “homens bons” e extremo oposto, os
“escravizados”. O defeito mecânico foi – e talvez ainda seja – uma forma de qualificar o mundo
do trabalho (PAIVA, 2015, p. 32), desqualificando os trabalhos manuais. No rol das profissões, os
trabalhos manuais eram destituídos de grandeza ou nobreza em comparação com os trabalhos
da administração, da gerência, da coordenação, atividades provisionadas pela coroa portuguesa,
legislativos, ou seja, os trabalhos intelectuais, no topo da pirâmide hierárquica, dariam status
social e nobreza.
Portanto, o “defeito mecânico” que surgiu em Portugal para designar o desprestígio dos ofícios
mecânicos foi revivenciado na Comarca do Serro do Frio. Enquanto em Portugal as corporações
de ofícios eram extremamente organizadas em torno da Casa dos Vinte e Quatro afetando as
relações de poder como órgão deliberativo, na Vila do Príncipe os oficiais mecânicos proprietários
de lojas ou tendas se organizaram em irmandades, em torno das igrejas – a do Bom Jesus do
Matozinhos é o seu melhor exemplo – conquistando seu espaço de atuação e se tornando uma
referência para uma educação não formal que modificou a vida de escravos, libertos e livres.

Referências
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atual Museu Regional Casa dos Ottoni, 1946.

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das Mercês e São Benedito da Vila do Príncipe, Comarca do Serro Frio, pedindo a confirmação do seu
compromisso. Vila do Príncipe, 24/09/1798, Cx. 145, Doc. 48, Cód. 11079.

ARQUIVO IPHAN SERRO. Aforamentos. Doc. 01 Caixa 43.

ARQUIVO IPHAN SERRO. Registro Geral, 1781-1783, Doc. 01 Cx. 53.

ARQUIVO IPHAN SERRO. Vereação. 1784-1786, Doc. 01, Cx. 61.

ARQUIVO PESSOAL MARIA EREMITA DE SOUZA. Cadernos. Caderno [2] 00-00-0000 Francisco de Assis
Gomes Pinheiro [b], n.p.; Caderno [3] 00-00-0000 Francisco de Assis Gomes Pinheiro [c], n.p.; Caderno [3]
00-00-0000 Francisco de Assis Gomes Pinheiro [c], n.p.; Caderno [24] 24-05-1973 Caderflex, n.p.; Caderno
[25] 02-02-1974 Listrado Marrom, n.p.; Caderno [27] 00-00-1975 Sem Capa [a], n.p.; Caderno [40] 02-12-1976

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Companheiro, n.p.; Caderno [41] 28-12-1976 Estudante, n.p.; Caderno [43] 13-04-1977 Esdeva, n.p.; Caderno
[44] 24-05-1977 Losango Verde Tilibra, n.p.; Caderno [45] 08-07-1977 Sem Capa, n.p.; Caderno [59] 03-07-
1978 Listrado Preto e Branco, n.p.; Caderno [67] 08-06-1979 Losango Verde Tilibra, n.p.; Caderno [74] 11-11-
1979 Listrado Preto e Branco, n.p.; Caderno [137] 02-05-1987 Hibisco, n.p.

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TRINDADE, Raimundo. Instituições de igreja no Bispado de Mariana. Rio de Janeiro/RJ, SPHAN Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 13, Ministério da Educação e Saúde, 1945.

Notas
1 Danilo Arnaldo Briskievicz é professor do Instituto Federal de Minas Gerais, Santa Luzia, Minas Gerais,
Brasil. Doutorado em Educação pela Puc/MG, mestrado em Filosofia pela UFMG, licenciatura em Filosofia e
Pedagogia.

2 Maria Eremita de Souza (1913-2003) pesquisou a história serrana em dois movimentos diversos, mas
complementares: por um lado, transcreveu de próprio punho centenas de livros de arquivos de Câmara, da
Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Serro, do Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Diamantina
e do Arquivo Público Mineiro; por outro, escreveu a partir de suas anotações, algumas narrativas sobre
personagens serranos (Jacinta de Siqueira, Chica da Silva, etc.) e da Inconfidência Mineira (padre Rolim, por
exemplo). Após seu falecimento a família autorizou a digitalização dos seus 220 cadernos que hoje me servem
de referência em vários estudos, especialmente por conter cópias e informações desaparecidas em arquivos
públicos. Ver: BRISKIEVICZ, 2020.

3 Tudo parece ser uma questão do investimento das irmandades na construção do templo. Ao final da obra,
ficou consolidada a versão de que as irmandades de São Benedito e Mercês haviam colocado mais recursos
financeiros em seu templo, o que se confirma pela entronização de Nossa Senhora das Mercês e São Benedito
nos altares laterais, em grandiosas imagens. Por isso, faz sentido o requerimento dos irmãos dessa irmandade
de dois santos pedindo a confirmação do seu compromisso à Coroa portuguesa, enviado em 24 de setembro de
1798 (BOSCHI, 1998, p. 207) e sem confirmação até a 1802 (BOSCHI, 1998, p. 261).

4 O termo festejo ou cortejo cívico-religioso diz respeito às festas populares oficiais do calendário litúrgico
da Igreja e que eram organizadas com a participação do Senado da Câmara e a república, ou seja, o povo.
Segundo Souza (1999, p. 130-131), em 1779, Dr. Joaquim Antônio Gonzaga, em correição na Vila do Príncipe
perguntou quais as festas eram determinadas por Sua Majestade, o rei de Portugal e a resposta foi: “Todos os
anos são feitas quatro festas do Senado: Anjo Custódio do Reino, Santa Isabel, Corpo de Deus e a da padroeira
Senhora da Conceição”. Além das festas cívico-religiosas – posto que eram organizadas pari passu com a Igreja,
irmandades e povo – haviam as chamadas festas reais, mais espontâneas, com a finalidade de comemorar
com ruas iluminadas o nascimento de herdeiros dos tronos, casamentos de príncipe e princesa e aniversários
da realeza. O luto também era obrigatório e se faziam os cortejos fúnebres em homenagem aos falecidos da
monarquia lusitana. Em relação à música nas igrejas as irmandades dispunham de seus músicos contratados ou
próprios, como a Ordem Terceira do Carmo dispunha dos serviços do serrano Emerico Lobo de Mesquita; as
bandas de música que alegravam os cortejos pelas ruas se tornaram com o passar do tempo fundamentais para
esses eventos criando uma das mais tradicionais manifestações culturais mineiras. Em 16 de maio de 1821, por
exemplo, Manuel Joaquim da Silva, diretor da música teve sua banda contrata por 16 oitavas de ouro para as
festividades do Corpo de Deus (ARQUIVO PESSOAL MARIA EREMITA DE SOUZA, Caderno 25, n.p.). Para
que o povo e senadores participassem das festas eram necessários os mais diversos ofícios mecânicos: pintores
de estandartes, alfaiates para a confecção de roupas, chapeleiros, sapateiros, músicos instrumentistas para
as celebrações sacras e profanas, carpinteiros para a colocação dos palcos, etc. Os cortejos cívicos-religiosos
serviam para gerar uma coesão social em torno da submissão à Coroa portuguesa, da doutrina da Igreja e dos
bons costumes sociais e civilizados. Para um aprofundamento do termo, ver: MONTERO, 2020.

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5 A autoria da pintura foi atribuída por Rodrigo Melo Franco de Andrade (2000, p. 93) e referendada pelos
especialistas do Projeto Circuito do Diamante (1978-1981). Eles acrescentaram que Silvestre de Almeida Lopes
foi “o mais importante pintor da antiga Vila do Príncipe na segunda metade do século XVIII e autor de outros
trabalhos documentados em igrejas do arraial do Tijuco, hoje Diamantina” (FUNDAÇÃO JOAO PINHEIRO,
1995, p. 178). A referência sobre as pinturas em Diamantina foi retirada do Dicionário de Artistas e Artífices
dos séculos XVIII e XIX em Minas Gerais: “Diamantina – Igreja de São Francisco de Assis 1764 – novembro 12
e dezembro 30 – Recebeu, respectivamente, 8/8ªs. e 40ªs., por conta de maior quantia que lhe deve a Ordem
(Documento avulso do arquivo da Ordem 3ª); Diamantina – Igreja de S. Sª do Amparo 1780 – março 4 –
prontificou-se a ‘pintar e dourar tudo o q. a bem das mesmas [obras] se necessita sem ônus de sulução’ [Lº
de ‘Termos’ da respectiva Irmandade fls. 17]; 1790 – fevereiro 14 – Ajustou a pintura do forro, por 170/8ªs.,
sob o risco e condições apresentados [Lº. cit. fls. 40]; 1796 – fevereiro 13 – Ajustou por 456/8ªs. a pintura dos
dois altares colaterais” (MARTINS, 1974, p. 400). Essas fontes se calaram sobre a origem étnica de Lopes: tudo
indica que era um crioulo, um negro nascido no Brasil (ARAÚJO, 1988).

6 Esta é a mais ostensiva figuração de um estandarte numa igreja serrana. É revelador da importância dos
estandartes arvorados para os cortejos cívico-religiosos, pelo fato de aparecer naturalizado em um mural de
grande representatividade para os devotos das irmandades de Nossa Senhora da Mercês e São Benedito; além
disso fica demonstrado – mesmo que implicitamente – a relevância dos ofícios mecânicos para esses festejos,
pois pressupõem a técnica e criatividade dos pintores.

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CAMINHAR PELA CIDADE:
EXPERIÊNCIAS DOCENTES EM
PATRIMÔNIO E EDUCAÇÃO
Christianni Cardoso Morais1
Marcos Vinícius Teles Guimarães2

P
artimos de um caso verídico ocorrido no ano de 2011, nas ruas do centro da cidade de
São João del-Rei, Minas Gerais. Professor recém-chegado na universidade, ao lecionar a
unidade curricular “Bicicleta urbana” no curso de Arquitetura e Urbanismo, promoveu
com os estudantes passeios ciclísticos pelas ruas da cidade, com o objetivo de analisar condições
e criar estratégias e planos de uso da bicicleta. Os únicos requisitos recomendados para que os
discentes se matriculassem na disciplina eram poder andar de bicicleta e comparecer às aulas
práticas com uma delas. Um dos estudantes, com cerca de 18 anos de idade, que em sua infância
não tivera a oportunidade de aprender a andar de bicicleta, tomou a corajosa decisão de fazê-lo,
para estar de posse do saber básico que o permitiria participar das aulas. No primeiro trajeto
realizado com a turma e sob orientação do professor, todos se encontravam animados e com os
devidos equipamentos de segurança. Inseguro em suas pedaladas, o dito estudante acabou por
esbarrar em um retrovisor de carro que se achava estacionado. O dono do automóvel, que nele
se encontrava sentado, saiu à rua enfurecido e, aos gritos, exigia que o suposto estrago fosse
reparado. O jovem estudante, apavorado, lançou mão de seu telefone celular e ligou para seu pai,
pedindo ajuda para solucionar a situação. O pai, muito nervoso, exigiu falar imediatamente com
o professor. De posse do telefone, o professor ouviu a indagação realizada, também aos gritos,
pelo pai do estudante: “o que é que você está fazendo na rua com seus alunos?” Indagação essa
seguida de uma afirmação peremptória: “Lugar de estudante aprender é na sala de aula”. Sem
maiores possibilidades de diálogo no momento, o pai desligou o telefone e deu-se por encerrada
a comunicação.
Essa história ficou guardada em nossas memórias, sendo relembrada de vez em quando, ao
relatarmos situações curiosas que nos aconteceram no trabalho docente. Apesar de o caso
inicialmente parecer anedótico e poder até mesmo suscitar algumas risadas, a fala do pai
direcionada ao professor nos provoca relevantes reflexões. O ponto de vista do pai nos faz
ponderar sobre onde e como nossos estudantes aprendem e, ainda, o quê aprendem. A ideia de
que lugar de aprender é na sala de aula e não na rua, guarda um ponto de vista sobre a educação
contra o qual nós professores e autores desse artigo trabalhamos, cada qual a seu modo – mas em

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diálogo constante – seja na graduação em Arquitetura ou em Pedagogia, seja na pós-graduação
ou em nossos projetos de extensão. Nossas concepções se estruturam a partir de vários
conceitos e práticas que entram em conflito com o que foi expresso pelo pai no caso aludido.
Destarte, tomando como pressuposto que as caminhadas pela cidade e a relação direta com seus
patrimônios podem possibilitar relevantes experiências educativas, daremos a ler algumas ações
empreendidas em nossa atuação como professores, em atividades extra campus, pelas ruas de
São João del-Rei e de Tiradentes. Essas cidades nascidas nos setecentos se localizam no campo
das Vertentes, interior de Minas Gerais, são destinos turísticos bastante visitados e possuidoras
de patrimônios tombados pelos órgãos de proteção municipal, estadual e nacional. Antes de
apresentarmos nossas experiências nessas cidades, entretanto, vejamos algumas premissas que
norteiam nosso trabalho.

PRESSUPOSTOS DO CAMINHAR PELA CIDADE


Nossa proposta visa a abordar a cidade como um espaço educativo amplo, no sentido de chamar
a atenção para o uso do espaço urbano como aquele que permite experiências variadas e,
portanto, que propicia o rompimento com pedagogias centradas no acúmulo de informações
ou na tentativa estéril de racionalização pura do conhecimento. Dentre as muitas possibilidades
de trabalho docente na cidade, para além da sala de aula, destacamos as contribuições de
Gadotti; Padilha; Cabezudo (2004) sobre a ideia de “cidade educadora”. A perspectiva da “cidade
educadora” considera que todos os espaços nos quais se desenvolvem relações humanas são
educativos. Sendo assim,

a educação não pode ser responsabilidade apenas da escola, mas de todas


as instituições sociais existentes, e para além destas, de novas iniciativas
que venham a ser construídas a partir da organização cidadã de grupos
de pessoas, movimentos sociais, entidades civis, ONGs, associações de
moradores, grupos culturais, entre outros (ZITKOSKI, 2005, p. 184).

Miranda e Siman (2013) também destacam as potencialidades educativas das cidades e afirmam
que elas nos oferecem o suporte espacial para que nossas experiências aconteçam e para que
nossas memórias sobrevivam. Na cidade, a vida de cada um encontra, cotidianamente, um
porto para ancorar as experiências e memórias no tempo e no espaço. Dessa maneira, as autoras
consideram que a cidade é “um espaço para educar em um sentido lato sensu. Educar sentidos,
sociabilidades, pessoas humanas e, por que não... escolas e professores?” (MIRANDA; SIMAN,
2013, p. 15).
Nesse artigo e em nossa atuação docente, baseamo-nos na noção de experiência. Aportados em
Larrosa (2020), entendemos o conceito de experiência como ato de nos educar coletivamente,
em busca de mudanças. Criamos possibilidades a partir das quais todos nós, professores e
estudantes, “exploramos juntos outra possibilidade, digamos que mais existencial (sem ser
existencialista) e mais estética (sem ser esteticista), a saber, pensar a educação a partir do par

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experiência/sentido” (LARROSA, 2020, p.16). Sabemos o quão difícil é criar situações de ensino-
aprendizagem que possam se tornar significativas aos estudantes em seu processo de formação,
tendo em vista que a possibilidade da experiência, tal qual a concebemos, se apresenta cada vez
mais rara em um contexto histórico no qual o que se valoriza é o excesso. Em tempos nos quais
o que vale é a quantidade e a rapidez, a relação com o saber acaba se tornando superficial e tudo
conspira para a impossibilidade da experiência: excesso de informação, excesso de trabalho e
falta de tempo. De modo antagônico, consideramos que, para que a experiência aconteça, faz-se
necessária a pausa. Justamente nas andanças vagarosas com pausas pela cidade que acreditamos
construir coletivamente a possibilidade de um aprendizado no qual corpos, sentidos e mentes se
encontram envolvidos e de maneira significativa para que a experiência aconteça, uma vez que:

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer


um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que
correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar
mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir,
sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender
o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar
a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos
acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro,
calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (LARROSA, 2020, p. 25).

A partir desses pressupostos e, portanto, contrariando a perspectiva daquele pai mencionado no


início desse artigo, reiteramos a relevância das andanças e das pausas, do silenciar e do observar,
da escuta atenta, para que as experiências nos aconteçam a partir da imersão na cidade, da relação
direta com seus patrimônios. Acreditando contribuir para a formação integral de nossos estudantes,
afirmamos que lugar de aprender é, também, caminhando pela cidade e parando para percebê-la
com as forças de todos os nossos sentidos. Segundo Fortuna (2018, p. 137), “nas cidades de hoje,
o exercício de andar deixou de ser o grande meio de conhecer e pensar o espaço” e caminhar
pelas cidades se tornou, em nossas sociedades, uma prática quase que anacrônica. Em livro que
também aborda o tema, intitulado A arte de caminhar, Coverley (2016) nos leva a conceituar
a caminhada não apenas como um ato de locomoção entre um ponto de partida e outro de
chegada. Ao descrever histórias de célebres caminhantes-escritores, o autor nos revela as múltiplas
possibilidades proporcionadas pela prática do caminhar: ler as paisagens urbanas ou rurais, criar
um ato intencional de prazer, momento para exercitar o pensamento, experimentar a liberdade e até
mesmo construir o caminhar como um recurso didático. A importância do caminhar pela cidade
para a construção do conhecimento também foi reafirmada por Michel de Certeau, para quem a
prática em tela “tem com efeito uma tríplice função ‘enunciativa’: é um processo de apropriação do
sistema topográfico pelo pedestre [...]; é uma realização espacial do lugar [...]; implica relações entre
posições diferenciadas” (CERTEAU, 2011, p. 164). Outro caso exemplar trata-se do grupo Stalker/
Observatório Nômade, que vincula o caminhar à fruição estética. O coletivo busca recuperar o
caminhar pelas grandes cidades como possibilidade de descobertas, com especial atenção para os
“vazios da cidade”, os espaços indeterminados, periféricos, mutantes. Francesco Careri, um dos co-
fundadores do grupo e autor das obras Walkscapes (2013) e Caminhar e parar (2017), afirma que

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o caminhar revela-se um instrumento que, precisamente pela sua intrínseca
característica de simultânea leitura e escrita do espaço, se presta a escutar
e interagir na variabilidade desses espaços, a intervir no seu contínuo
devir com uma ação sobre o campo, no aqui e agora das transformações,
compartilhando desde dentro as mutações daqueles espaços que põem em
crise o projeto contemporâneo (CARERI, 2013, p. 32-33).

A propósito, em sua atuação como professor universitário, Careri utiliza o “andare a Zonzo”,
ou seja, deambular ou “perder tempo vagando sem objetivo” (2013, p. 162), como didática de
ensino e possibilidade de pesquisas. Careri defende a importância do caminhar, mas também
a necessidade do parar, uma vez que “quem levanta a âncora para uma longa viagem, além das
velas e dos remos, leva certamente consigo também a âncora: a possibilidade de parar e conhecer
de perto outros territórios e outras gentes” (CARERI, 2017, p. 32-33).
Todos esses autores citados nos levam a refletir sobre a importância de voltarmos a caminhar
pela cidade, de parar para senti-la e de utilizarmos dessas caminhadas como experiência de
vida e como uma possibilidade também de aprender, um recurso didático. Em nosso caso,
a experiência do caminhar pela cidade abrange uma ampla e variada gama de conceitos e
dimensões: no que tange ao seu espaço, incluindo os logradouros e edificações, com destaque
para os museus, considerando, sobretudo, as relações sociais constituídas na cidade ao longo dos
tempos, relações essas muitas das vezes tensas, hierárquicas e excludentes.
Pensar a cidade como espaço aberto onde se aprende implica, dessa forma, a fruição do
espaço urbano a partir das caminhadas como meio de apreciação estética e enriquecimento
sociocultural. Assim, referimo-nos tanto ao próprio espaço urbano aberto ao céu, ao ar livre,
quanto à abertura dos aprendizados e leituras que essas experiências proporcionam. Dessa
maneira, a relação direta e a apropriação dos bens patrimoniais a partir de todos nossos sentidos
torna-se imprescindível, haja vista que:

O espaço da cidade é o espaço vivido, instituído a partir das maneiras pelas


quais as sociedades o utilizam, e como tal possui uma dinâmica própria,
em permanente transformação, assim como constantemente se atualizam
as relações sociais e simbólicas dos sujeitos que sobre ele atuam (CHAGAS;
STORINO, 2014, p. 75).

Procuramos, ainda, pensar os museus em contexto, em suas relações (ou na ausência de relações) com
as cidades e comunidades nas quais estão inseridos. Nos espaços de memória erigidos nas cidades,
tem-se lugar para aspectos como a manifestação das culturas e a rememoração da ancestralidade,
mas também lacunas, pontos obscuros e silenciamentos. Emerge então o sentido de patrimônio,
aqui tomado na medida das significações de algo para alguém, ou na relação dos seres humanos
com o meio (ver SANTOS, 2008, p. 150). Assim, referimo-nos a algo que herdamos do passado
e que deve ser preservado, podendo ser atualizado e cuidado para que não seja destruído – um
compromisso ético de conservar heranças para as futuras gerações. Embora as políticas voltadas
à preservação do patrimônio no Brasil, que remontam à década de 1930, tenham se debruçado
sobretudo ao que se costuma nomear de patrimônio “de pedra e cal”, ou seja, aos bens edificados,

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ao longo do tempo essa concepção foi ampliada. A legislação referente ao patrimônio nacional e
as pesquisas sobre o tema passaram a integrar os bens de natureza “imaterial” ou o “patrimônio
intangível” desde os anos 2000 (FONSECA, 2009). Nesse processo, o irreconhecível, o distante, o
oculto, os saberes e as memórias daqueles que foram excluídos historicamente tornam-se objetos
de maior compreensão e ganham o direito de reconhecimento e preservação. Esse conceito mais
abrangente de patrimônio ganha destaque ao pensarmos o espaço aberto da cidade e todos os
que nele circulam e vivem. A partir desses pressupostos, a experiência do aprender ao caminhar
concorre para a inserção do sujeito no mundo em que habita, em relação direta com o lugar e tudo
aquilo que ele suscita, numa integração do intelectual com o sensorial.
Nesse âmbito, os casos de São João del-Rei e São José (atual Tiradentes), são exemplares. Suas
histórias remontam ao início do século XVIII, quando os arraiais se originaram a partir da
descoberta de ouro em córregos e encostas das serras circundantes. A rápida elevação da Vila de
São João del-Rei à cabeça da Comarca do Rio das Mortes representa a sua importância política
no contexto da capitania e a relativa pujança econômica que sustentou mesmo após o declínio
da extração aurífera, até pelo menos os finais do século XIX (LENHARO, 1979; GRAÇA FILHO,
2002). Pesem as transformações no tempo, essas cidades figuraram entre os primeiros conjuntos
urbanos tombados pelo então SPHAN, depois Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN), no ano de 1938, situação que atualmente se sobrepõe às medidas e políticas
a nível municipal (ver DIAS, 2019).
Em São João del-Rei, a dualidade entre a transformação no tempo e uma relativa preservação
resultou em um tecido urbano e acervo edificado que atravessam e representam a variedade de
períodos históricos pelos quais passou a localidade. Tal fato se expressa na diversidade de estilos
arquitetônicos presentes na área central mais antiga e se vê enriquecido pela conformação do
espaço urbano (serra, relevo, córrego), respectivos logradouros (largos, praças, pontes), além
de casario e edificações de destaque. Ao longo de sua história, São João del-Rei foi e tem sido
palco de inúmeras manifestações culturais, ricas em múltiplos simbolismos. Destacamos sua
musicalidade expressa pelas bandas e orquestras setecentistas, as festas religiosas, o pré-carnaval
e o carnaval, o toque dos sinos, as lendas, saberes populares ancorados na ancestralidade, a
culinária local, saberes e produções dos diversos artesãos etc.
O cenário atual de São João del-Rei mostra ainda a permanência da vocação tanto comercial
quanto institucional da cidade, com ruas movimentadas, lojas diversas, além de estabelecimentos
tanto oficiais como culturais, educativos, de serviço, de saúde, entre outros, que atrai um fluxo
variado de pessoas. A cidade é dotada de uma vida própria e amparada por uma abrangência
regional, que resiste em boa medida aos processos de “turistificação” (CASTRO; TAVARES, 2016).
Em Tiradentes destaca-se o impacto causado nos núcleos urbanos de interesse cultural, em que
um turismo massivo tem causado o afastamento da população e de suas práticas cotidianas,
assim como descreveu Choay (2006) para outros contextos geográficos. No que se refere à
inserção das cidades na “indústria cultural”, a autora afirma que a “cidade patrimonial”, estando
em evidência e ao ser explorada, se mostra

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de um lado, iluminada, maquiada, paramentada para fins de embelezamento
e midiáticos; de outro, palco de festivais, festas, comemorações, congressos,
verdadeiros e falsos happenings que multiplicam o número de visitantes em
função da engenhosidade dos animadores culturais (CHOAY, 2006, p. 224).

Algumas cidades tombadas pelo mundo, assim transformadas e exploradas pela “indústria cultural”
acabaram por se esvaziar. A perda de espaço dos moradores da cidade sob a pressão do turismo é
uma realidade vivida em Tiradentes e pode ser muito bem observada no documentário Tiradentes
sob óticas (2016). Nesse documentário, o testemunho de Dona Celina de Almeida Nascimento,
presidente da associação de feirantes de Tiradentes, é exemplar. Ao se referir à feira de artesanato
local, que antes ocupava o Largo das Forras (praça central) Dona Celina relembra que: “era lá
na praça né!? Aí, depois que reformaram a praça, tirou o pessoal da praça e trouxe pra cá [para
perto da rodoviária]. Aí, agora, se nós deixar, eles tiram nós daqui também. Nós porque ficamos
firmes”. Em outro documentário sobre memórias afetivas de moradores da cidade de Tiradentes,
intitulado Alma da cidade (2018), D. Leonor da Conceição, uma senhora tiradentina, afirma: “a
gente pode andar da Prefeitura até os Quatro Cantos que a gente não vê ninguém da cidade, é só
comércio...”. D. Leonor se refere ao fato de os proprietários dos casarões antigos venderem suas
moradias (sendo essas casas transformadas em pontos comerciais) e se mudarem para bairros mais
periféricos da cidade, fenômeno que também foi estudado por Zolini (2007). Essa especulação
imobiliária vivida nos centros antigos das cidades tombadas pelos órgãos de preservação do
patrimônio aumenta a pressão sobre os moradores e eles acabam por vender suas casas centenárias,
passando a habitar as periferias, em um processo conhecido como “gentrificação” (BATALLER,
2012). Ainda recorrendo às palavras de Choay, podemos dizer que o fenômeno de transformação
do patrimônio em “culto” traz efeitos secundários e perversos, pois acaba por ameaçar as práticas
patrimoniais “de autodestruição pelo favor e pelo sucesso de que gozam: mais precisamente, pelo
fluxo transbordante e irresistível dos visitantes do passado” (CHOAY, 2006, p.227). Nesse ínterim,
a paisagem se transforma, seja com o excessivo controle de uma imagem estática ou nostálgica, em
todo caso artificial, seja com novos padrões de consumo, fluxo e uso do espaço. Tal artificialidade,
causada por fatores heterônomos ao modo de vida local, termina por se associar também a um
processo de “museificação” do espaço urbano (RUY; ALMEIDA, 2020).
Para nós, entretanto, a utilização do espaço das cidades tem conotação mais bem positiva, na
perspectiva precisamente da valorização das culturas existentes, acreditando que as cidades
tomadas aqui como casos exemplares ainda sustentam um importante potencial nesse sentido,
tanto sob o ponto de vista do turismo, quanto sob o ponto de vista das experiências que podem
oferecer àqueles que nela habitam ou simplesmente caminham por suas ruas.

PRÁTICAS EDUCATIVAS: ENTRE MOVIMENTO E PAUSAS


Partimos da ideia de que nossas aulas e projetos de extensão “devem apontar para uma ação
multidisciplinar que enfoque as diferentes maneiras humanas de ser, de estar no mundo e
de construção e reconstrução das múltiplas realidades” (SANTOS, 2008, p.32). Em nosso

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caso, acionamos conhecimentos e colocamos em diálogo referências das áreas de Educação,
Arquitetura, História e Patrimônio. A preparação das atividades nas ruas ou em museus inclui
aulas expositivas amplamente ilustradas com mapas, plantas, fotografias e documentários em
que se destacam os processos de formação urbana e a transformação da arquitetura e de outros
aspectos do patrimônio (tangível e intangível) ao longo do tempo. Sobretudo, ganhar as ruas
com atividades fora dos muros da universidade é imprescindível.
Os trabalhos práticos realizados pelos estudantes envolvem uma série de dinâmicas de
experimentação do espaço urbano, do acervo arquitetônico, de espaços museais, de experiências
culturais e interlocução com moradores da cidade. Promovemos visitas mediadas com paradas
estratégicas para ouvir os estudantes sobre suas percepções, observar aspectos de interesse, tecer
explicações e discutir dúvidas, chamar atenção para o que não está ali, o que foi relegado ao
esquecimento, incluindo momentos de pausa para pura observação em silêncio, de descanso, ou
ainda de degustação de comidas locais (Figura 1).

Figura 1. Caminhada noturna com estudantes. Rua Santo Antônio, São João del-Rei, 2018.
Foto: Christianni Morais.

Nas ruas e outros logradouros, criamos percursos gerais que atendam a variados interesses e,
ao mesmo tempo, abarquem dimensões diversas da história urbana e do espectro arquitetônico
definido pelos diferentes períodos estilísticos. Apesar da dificuldade em se estabelecer uma
relação estritamente cronológica na rota, em São João del-Rei é possível, por exemplo, começar

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próximo à área de mineração no sopé da serra, acessar as ruas principais do núcleo colonial e
imperial, rumar para a Estação Ferroviária, passando por exemplos da arquitetura eclética, até
chegar na região mais moderna, em torno da Avenida Tiradentes. Cabe lembrar, entretanto, que o
tecido arquitetônico dessa cidade é bastante heterogêneo e, portanto, permeado por intervenções
de épocas diversas. Se, por um lado, perde-se com a fragmentação dos conjuntos urbanos, por
outro lado são facilitadas as comparações diacrônicas enriquecedoras da experiência.
Outros percursos são desenhados em função de tópicos temáticos definidos por períodos
históricos e respectivas técnicas e materiais construtivos (GUIMARÃES, 2020). As visitas
mediadas a trechos urbanos e obras de interesse previamente selecionadas figuram como
importantes recursos de suporte às atividades. Em certas ocasiões, são propostos ainda trajetos
mais específicos a serem contemplados pelos grupos de estudantes (Figura 2).

Figura 2. Trajetos em São João del-Rei para realização de trabalho prático.


Fonte: Trajetos estabelecidos pelos autores. Mapa de fundo obtido a partir de Googlemaps, 2019.
Disponível em: https://www.google.com.br/maps/@-21.1352335,-44.2573681,16z
Acesso em: 24/09/2021

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Os diferentes estilos arquitetônicos e respectivos sistemas construtivos são então observados,
o que implica a experiência inclusive do interior das edificações. Em momento posterior, as
experiências são finalmente compartilhadas, o que possibilita o cruzamento e a sinergia das
informações com atividades de pós-visita em seminários realizados pelo coletivo de estudantes.
A nível da paisagem, é solicitada a elaboração de mapas conceituais e colagens, abrangendo os
principais elementos de referência na formação da cidade, desde a sua fundação até os tempos
modernos. (Figura 3)

Figura 3. Exemplo de representação da cidade com indicação de elementos de referência


produzido por estudantes. São João del-Rei, 2016.
Fonte: Acervo Marcos Guimarães

Tal atividade possibilita a identificação de elementos de força estética e histórica na cidade,


sintetizando-os em uma representação multidimensional. Além disso, fotografias antigas são
comparadas com o cenário atual, com ênfase para as transformações e permanências. O exercício
de localizar cenas e edificações a partir de cópias de fotografias antigas, comparando o contexto
anterior com o atual, é muito bem aproveitado pelos participantes (Figura 4).

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Figura 4. Foto dentro da foto: produção de uma professora em curso de extensão no Largo do Tamandaré. São João del-Rei, 2016.
Fonte: Acervo Christianni Morais.

A atividade nomeada de “foto dentro da foto” permite a comparação entre temporalidades


distintas e a percepção das noções de permanência e ruptura na história da cidade ao longo do
tempo. A observação in loco das edificações que se encontram nas fotos mais antigas em contraste
com aquelas que foram construídas mais recentemente com “ares” antigos, gera intenso debate.
Esses trabalhos práticos possuem como objeto as cidades de São João del-Rei e Tiradentes,
com o intuito de abranger os distintos aspectos de sua história e de seu patrimônio. Há várias
possibilidades de experiências, dentre elas interpretar as exposições museais e analisar as
edificações com desenhos e indicação de elementos estilísticos. Nas visitas mediadas aos centros
antigos dessas duas localidades, são contemplados pontos de interesse específicos como o Museu
Regional de São João del-Rei, o Museu Casa de Padre Toledo em Tiradentes e os casarões dos
escritórios técnicos que sediam o IPHAN.
Muitos de nós desenhávamos quando crianças e, ao longo da vida, paramos de desenhar e
acreditamos que não somos mais capazes de fazê-lo. Realizar uma pausa para exercitar o
desenho de observação de detalhes arquitetônicos ou de objetos museais é uma possibilidade
que favorece a sensibilização do olhar, a fruição estética e traz à tona habilidades adormecidas.
Ao fim, a discussão dos participantes a partir de seus próprios desenhos permite a troca de
impressões e a elaboração coletiva da noção de patrimônio, como ocorrido com o grupo de
professores municipais na atividade realizada no Museu Regional de São João del-Rei (Figura 5).

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Figura 5. Professores municipais realizando desenhos a partir de observação no Museu Regional em projeto de extensão.
São João del-Rei, 2016. Foto: Christianni Morais.

Entre as atividades práticas realizadas com os estudantes, destacam-se, ainda, rodas de conversa
com pessoas naturais da cidade, detentores de saberes muito antigos. Como exemplo, temos uma
aula ministrada pelo artesão sanjoanense Edmar Luiz Batista, que conhece cerca de quinhentas
técnicas de bordados e rendas, várias das quais raras nos dias de hoje e em risco de extinção
(Figura 6).
A aula versava sobre patrimônio intangível e o que se convencionou nomear de “tesouros
humanos vivos” – programa de valorização de mestres de ofícios criado pela UNESCO com
objetivo de assegurar condições de transmissão de seus saberes às novas gerações (ABREU,
2009). Na ocasião, o grupo de estudantes do Programa de Mestrado em Educação se encontrou
com o artesão no Solar da Baronesa (Centro Cultural da UFSJ), que realizou um relato de
sua história de vida e de como foi, ao longo do tempo, aprendendo e ampliando seus saberes.
Em um segundo momento, fomos convidados a sua residência no centro antigo, uma estreita
casa centenária com fachada de porta e janela – sendo esta protegida por uma rótula. Na sala,
Edmar nos brindou com a apresentação de peças de bordados, rendas e uma enorme coleção
de acessórios do seu ofício, como agulhas, bilros, dedais, navetes, bastidores, fusos, rocas – de
diferentes materiais, épocas e procedências. Ainda foi possível observar as ágeis mãos do artesão
na demonstração de técnicas de bordados que correm o risco de se perder, caso esses saberes
não sejam ensinados aos mais jovens.

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Figura 6. Explicação de técnicas de bordado em visita ao artesão Edmar Luiz Batista.
São João del-Rei, 2018. Foto: Christianni Morais.

A partir dessas experiências, a vivência do espaço urbano, arquitetura, personagens e histórias


de vida figuram como meio essencial de uma coleta e processamento de dados que acaba por
transcender a rotina acadêmica. Um maior conhecimento sobre a cidade em suas diversas
dimensões torna-se especialmente significativo para os estudantes que, em grande parte, acodem
desde diversas localidades para estudar na universidade. Apesar da limitação aos ditos “centros
históricos” e respectivos pontos de referência, as atividades em torno dos trabalhos práticos
concorrem finalmente para inserir os participantes no espaço e vida cotidiana das cidades.
Ao longo dos semestres, observamos que as percepções dos estudantes, mesmo entre aqueles
que são naturais de São João del-Rei, sofrem modificações positivas com essas experiências. Nos
primeiros dias de aula, em rodas de conversa e na realização de escritos pelos estudantes, que
nos permitam acessar seus conhecimentos prévios, as concepções sobre os conceitos de cidade,
de patrimônio e/ou de museu e suas experiências com relação aos espaços de cultura e memória
se mostram por vezes limitadas.

Moro numa cidade pequena, conhecida na região pela tradicional festa


do morango. A cidade apresenta uma arquitetura muito simples, como a
maioria das cidades pequenas, possui uma praça e uma igreja no centro, que
apesar de simples muito bonita. Possui um relevo bastante montanhoso,
nessas montanhas é possível avistar as cidades vizinhas. No turismo a

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cidade oferece um espetáculo verde, pertencendo ao circuito das Serras
Verdes do Sul de Minas (N.M.R., 2011).
A palavra museu é algo que, seja na televisão, na escola, em grupo de amigos,
ou por qualquer outro meio que ouvimos ser dita, nunca nos explicam o
seu verdadeiro sentido, para que serve, o que tem lá dentro, quem pode
visitar, quanto paga, ou até mesmo que roupa vestir ao ir a um museu. Essas
e outras questões não me foram apresentadas durante minha vida escolar,
nunca fui a um museu com a escola (P.D.C., 2017).

Dentre as ressignificações elaboradas pelos estudantes, destacamos as mudanças em relação à


noção de patrimônio, com ampliação para além do patrimônio tangível, bem como a percepção
da sutileza e efemeridade do patrimônio intangível, revelada nas palavras de dois discentes:

Será patrimônio histórico apenas um objeto ou monumento antigo


presente em museus ou praças públicas com a finalidade de rememorar
algum acontecimento do passado? Isso é o que eu pensava antes de cursar
a disciplina [...]. Minha visão acerca do assunto era muito delimitada visto
que eu nunca havia tido um ensino voltado para o patrimônio, sendo que,
assim como eu, boa parte da população também nunca teve (A.S.B., 2019).
Depois da roda de conversa no Solar, pudemos ver o artista Edmar em ação na
sua casa. Ao ver e tocar as rendas e bordados que ele fazia, e que era mestre ao
fazê-las, compreendemos o seu medo partilhado de que aquele seu ofício se
perdesse. Em vários momentos de nosso encontro, Edmar revela essa grande
preocupação em relação ao futuro de todo conhecimento que ele detinha e a
vontade de transmiti-lo a outras pessoas para que este patrimônio intangível
não morresse com ele. Estar exposto àquela diversidade de trabalhos
magníficos, saber que foram feitos pelas mãos de uma única pessoa, e que esta
pessoa talvez seja a única que conheça as técnicas para desenvolvê-los, nos dá
a dimensão da efemeridade do tempo, da fragilidade do nosso patrimônio e
da necessidade de preservá-lo (J.J.S., 2018).

Essas experiências com os patrimônios vividas em nossas unidades curriculares possibilitam


aos estudantes repensar também o conceito de Museu, conforme as afirmações apresentadas por
uma estudante em seu relatório final, referindo-se à visita mediada realizada no Museu Regional
de São João del-Rei:

Minha visão a respeito do museu não diferia da maioria das pessoas, pois
culturalmente crescemos sem este tipo de prática e as escolas também
não trabalham questões tão pertinentes, o que acaba por tirar o direito de
termos contato com algo tão essencial para nossa formação. Até o dia 15 de
junho de 2015, dia que ficará marcado em minha vida, nunca tinha tido essa
oportunidade. (...) Mesmo que para mim esta oportunidade tenha vindo
um pouco tarde, com certeza foi uma experiência muito enriquecedora (...).
Foi uma experiência única poder ter tido a oportunidade de me aproximar
de peças tão únicas (...) me proporcionou a experiência de viajar a outros
tempos e mundos. (A.L.S., 2015).

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A preparação das visitas em sala de aula visa a aguçar os sentidos e a curiosidade, sensibilizar
os estudantes para que a experiência propriamente dita se torne algo marcante, criando até
mesmo um momento de ruptura com o cotidiano entre aqueles que habitam a cidade. Parar
e desenhar, ou fotografar um lugar por onde passamos cotidianamente, são experiências que
permitem um distanciamento necessário para que o novo se apresente e as visões de mundo
sejam modificadas. Tal possibilidade pode ser observada em outro trecho de relatório final:

foi interessante, pois nos fez ampliar nossos olhares e perceber coisas
que passariam despercebidos quando não se tem conhecimento. Quando
cheguei e comecei a andar pelas ruas da cidade, parecia que eu nunca tinha
ido lá, pois o meu olhar em relação a ela estava diferente (K.A.L., 2019).

Dispor de tempo para parar e observar sob novos ângulos as coisas simples que nos cercam,
sem pressão, olhar as fotografias realizadas nos percursos, rememorar e se debruçar à escrita de
um relato, são experiências marcantes, educativas em termos profundos, como podemos ler nas
palavras de outra estudante:

No Museu Padre Toledo, o som da chuva no telhado, as goteiras, a neblina


na serra, sempre captavam meu olhar, através das janelas do museu, parecia
a combinação perfeita, já que algumas obras do museu tratam sobre os
cinco sentidos humanos. Falando um pouco dos sentimentos e percepções
proporcionadas por esses momentos, percebi um ritmo mais lento ao que
estamos acostumados hoje em dia. Reservar tempo para contemplar a
paisagem da janela da Maria Fumaça e as obras no Museu Padre Toledo,
sem se preocupar com a correria do cotidiano. Momentos em que pude
observar os animais; o balanço do trem nos trilhos; a serra; a neblina que
encobre parte dela; as curvas do percurso; as flores que crescem em meio
ao mato; os contrastes da cidade, nas construções e pessoas; a receptividade
de quem acena nas ruas da cidade; as conversas com amigos de viagem;
as risadas; os silêncios; o querer registrar tudo com fotografias... Enfim,
percebo que o maior registro está dentro de nós, momentos que estarão
sempre em minhas memórias (V.C.S.P., 2018).

A possibilidade de andar com tempo, calmamente pelas ruas, de fugir do cotidiano assoberbado e
saborear algumas iguarias da cidade, de parar em pontos estratégicos da caminhada, também foi
experimentada e rememorada. Essa experiência foi digna de destaque, mesmo entre estudantes
naturais de São João del-Rei, mas que habitam bairros mais distantes do casco antigo:

Já fiz passeios semelhantes e com o mesmo objetivo. No entanto, posso


afirmar, com certeza, que nenhum é igual ao outro. Há sempre um novo
detalhe da História a nos surpreender. A grande novidade deste passeio
foi experimentar um prato típico da minha cidade, que apesar de nascida
e criada aqui, nunca tinha sequer ouvido falar, tampouco degustar, o
“Tijucano”. O pão de queijo tradicional unido ao bolinho de feijão, uma
combinação perfeita, típica da farta mesa mineira. Vivenciar o passeio e

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desfrutar das tradições locais nos torna mais próximos daquilo que nos
identifica e intensifica o nosso sentimento de pertencimento. Isso diminui
as distâncias entre o que é patrimônio e nossa vontade-obrigação de
preservá-lo. Seja um monumento de pedra e cal, seja um delicioso lanche
tradicional. Outra importante iguaria degustada foi o “Picolé do Amado”,
feito aos moldes tradicionais de família (V.A.A., 2019).

Não estamos acostumados a aprender saboreando, nem mesmo a refletir sobre os sabores únicos
de nossa cidade. Na correria do dia-a-dia, muitas vezes nos alimentamos rapidamente, pouco
mastigamos, apenas comemos para nos mantermos de pé e voltarmos apressados a nossas
atividades. Degustar um simples lanche popular em silêncio, saborear um picolé artesanal
calmamente na companhia dos colegas, ouvir a história de como se produz o alimento, conversar
com a pessoa responsável pela cozinha da lanchonete, também pode ser um ato de aprendizado.
Não aprendemos somente sentados, olhando e ouvindo o professor dentro da sala de aula.
Precisamos estar presentes por completo, de corpo inteiro, integrados com todos os sentidos.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES AO FINAL


Para finalizar, recorremos às impressões de Careri sobre as caminhadas que realizou por algumas
das grandes cidades da América do Sul (São Paulo, Salvador, Bogotá, Santiago do Chile):

Simplesmente, o caminhar dá medo e, por isso, não se caminha mais; quem


caminha é um sem-teto, um mendigo, um marginal [...] nunca sair de casa
a pé, nunca expor o próprio corpo sem uma cobertura, protegê-lo dentro
de casa ou no carro, sobretudo não sair depois do anoitecer, encerrar-se
[...]. Percebi que, nas faculdades de arquitetura, os estudantes [...] sabem
tudo de teoria urbana e de filósofos franceses, acham-se especialistas em
cidade e em espaço público, mas, na verdade, nunca tiveram a experiência
de jogar bola na rua, de encontrar-se com os amigos na praça, de fazer amor
em um parque, de entrar ilegalmente numa ruína industrial, de atravessar
uma favela, de parar para pedir uma informação a um transeunte. Que tipo
de cidade poderão produzir essas pessoas que têm medo de caminhar?
(CARERI, 2013, p. 170-171).

As observações do arquiteto italiano são fortes e perturbadoras. Aproveitamos para acrescentar a


elas algumas questões, aludindo ao nosso caso inicial: como projetar uma ciclovia se o arquiteto
não sabe nem andar de bicicleta? E, portanto, nunca se aventurou pedalando pelas ruas da cidade?
Além dos arquitetos, outros profissionais também atuam (ou deveriam) atuar na cidade ou a
partir da cidade. Considerando essas possibilidades, como ensinar fundamentos importantes
para o aprendizado da História e proporcionar a fruição e contribuir para a elaboração do
sentimento de preservação do patrimônio, se os professores nunca foram a um museu? Se não
conhecem os patrimônios locais?

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Moramos e trabalhamos em uma cidade de porte pequeno do interior de Minas Gerais e que,
portanto, goza de muitos privilégios: não ser palco da violência como as grandes cidades; possuir
uma universidade pública com importante inserção regional; estar situada em uma região em
que há diversidade arquitetônica e cultural, com uma infinidade de patrimônios que precisam
ser conhecidos e preservados. Assim, “sair da escola” e caminhar pela cidade torna-se menos
complicado do que nas cidades grandes. Visitar o centro antigo, outras instituições culturais,
ouvir histórias de vida, são práticas que nos permitem integrar os campos do ensino e da
extensão, destacando atividades que, de uma forma ou de outra, contribuem para a concepção
da cidade, de seus locais de memória e de seus habitantes como possibilidades de experiências
que oferecem aprendizados profundos. Indicamos, outrossim, as interfaces da educação na
cidade, na relação direta com o patrimônio, na esfera de nossa atuação acadêmica. No geral, a
partir de nossas próprias vivências e dos relatos de nossos estudantes, uma experiência vívida –
ativa, sensorial, sentimental – do espaço urbano perpassou de modo fundamental os processos
e procedimentos envolvidos. Assim, constatamos que o caminhar pela cidade democratiza
a informação e a fruição do patrimônio, aproxima os sujeitos e amplia a experiência, tanto
acadêmica como cotidiana, alargando horizontes.
Foram ressaltadas em nossa abordagem as relações com o patrimônio e sua preservação. Nesse
sentido, cabe notar a necessidade de se ampliar a sua visão, de modo a incluir diferentes dimensões,
categorias e interfaces. Embora nossas atividades recaiam sobre o espaço circunscrito aos ditos
“centros históricos” de São João del-Rei e Tiradentes, consideramos importante trabalhar para uma
extrapolação destes limites. Ora, sabemos que categorias tais como industrial, imigração, rural e
natural, entre outras tantas, são parte integrante do sistema de compreensão e fruição das cidades,
assim como as diversas manifestações culturais que permeiam a vida citadina. Acreditamos que o
abarcamento dessas noções de patrimônio necessariamente implica a inclusão da diversidade do
público e o direcionamento democrático das respectivas informações veiculadas.
Sobressai, nesse contexto, a figura do museu, tanto na sua concepção institucional como
conceitual. Entendemos que cabe ao museu extrapolar as suas fronteiras – tanto espaciais
quanto institucionais – e se abrir para a cidade e suas possibilidades de patrimônio. Ao fomentar
o diálogo com a comunidade na qual se insere e a colaboração com outros agentes, tais como a
universidade e escolas de educação básica, o museu potencializa reciprocamente a sua razão de
ser e a sua capacidade de ação e transformação social. A colaboração com outras instituições
educativas contribui, finalmente, para a própria noção museal do espaço urbano, que se nutre
de um esforço comum de valorização de aspectos, como os relativos às memórias, identidades
e à diversidade. Todos esses aspectos conferem sentido ao museu e merecem fazer parte dos
processos democráticos de patrimonialização.
A escrita desse artigo foi realizada ao longo do primeiro semestre de 2021, momento no qual a
vida que até então conhecíamos foi obrigada a sofrer uma pausa. Em um cenário de verdadeira
tragédia mundial, fomos obrigados a ficar em casa. Encontramo-nos trabalhando de forma
remota, impossibilitados de estar presencialmente com nossos estudantes, impedidos de ir às ruas,
devido à necessidade de isolamento social imposta pela Pandemia de Covid 19. Aproveitamos a
pausa na convivência com os que são de fora de nosso núcleo familiar para escrever esse artigo.

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Trabalhamos incessantemente diante das telas, dedicamo-nos aos afazeres domésticos, à educação
das crianças que se encontram sem poder ir à escola. No fim do dia, nas pausas, conversamos
sobre nossas preocupações com o futuro, retomamos nossos diálogos sobre as aulas, os projetos
de extensão, a saudade do mundo lá fora, a vontade de estar presencialmente na universidade.
Relemos textos e revisitamos trabalhos de nossos estudantes que acumulamos ao longo dessa última
década, transformando esse material empírico em fontes documentais. Depois de ler, discutimos,
discordamos, concordamos, escrevemos, reescrevemos. Com as reflexões aqui apresentadas,
esperamos ter alcançado o objetivo de dar resposta àquele pai e que essa resposta sirva para alertar
a muitas outras pessoas que consideram que a educação deve ser realizada confinada entre quatro
paredes. As aulas remotas trouxeram outras dimensões para nossas experiências docentes. Mais
do que nunca, ficou evidente o quanto nós, seres humanos, precisamos caminhar, sentir e viver
experiências significativas, de maneira presencial e coletiva. Diante dos desafios impostos pelas
aulas remotas, paramos para rememorar e analisar a docência e reiteramos nossa mais sincera
convicção de que, assim que as condições sanitárias o permitirem, ganharemos as ruas com nossos
ruidosos grupos de estudantes, pois lugar de aprender é, sim, em imersão na cidade, caminhando,
travando relação direta com seus patrimônios, olhos nos olhos.

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Notas
1 Christianni Cardoso Morais - Bacharel e Licenciada em Filosofia pela FUNREI, Mestre em Educação e
Doutora em História pela UFMG, Professora Associada do Departamento das Ciências da Educação da UFSJ.

2 Marcos Vinícius Teles Guimarães - Arquiteto e Urbanista pela UFMG, Mestre em Projeto Arquitetônico pela
UNAM, Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela USP, Professor Adjunto do Departamento de Arquitetura,
Urbanismo e Artes Aplicadas da UFSJ.

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RESTAURAR E CONSERVAR:
UMA TRAJETÓRIA DE REFLEXÃO E PRÁTICA
ENTREVISTA COM BEATRIZ RAMOS DE VASCONCELOS COELHO

José Antônio Orlando 1

A
história de vida da professora emérita da
UFMG Beatriz Ramos de Vasconcelos Coelho
é inseparável da conservação, da restauração
e do ensino sobre as Artes Plásticas em Minas Gerais.
Nascida em Pernambuco, ela adotou Belo Horizonte
como sua cidade no final dos anos 1950, junto com o
marido, o professor Marcelo de Vasconcelos Coelho,
que foi reitor da UFMG no período de 1969 a 1973. A
trajetória de Beatriz Coelho na UFMG teve início em
1972, quando ela, recém-formada na Escola Guignard
e já atuando como professora, foi indicada por Yara
Tupinambá, professora da Escola de Belas Artes da
Universidade, para ensinar as técnicas da xilogravura.
Cinco anos depois, em 1977, Beatriz Coelho assumiu
o cargo de diretora da Escola de Belas Artes
Desde então, são décadas de dedicação integral ao ensino e à pesquisa na universidade e à
formação de especialistas no restauro de bens históricos, com um legado incomparável para o
mundo acadêmico e para o patrimônio da arte e da história, salvando obras importantes que
estavam se perdendo e resgatando relíquias sacras que foram produzidas por grandes mestres
da pintura, da escultura. Em 1980, Beatriz Coelho foi responsável pela idealização e implantação
do Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis (Cecor), uma unidade da
Escola de Belas Artes da UFMG dedicada à pesquisa e à formação de profissionais dedicados à
restauração de bens do patrimônio histórico, artístico e cultural do Brasil.
Beatriz Coelho ocupava o cargo de vice-diretora da Escola de Belas Artes, em 1976, quando
recebeu um importante desafio. Foi localizado um conjunto de 13 obras valiosas em um
depósito da Prefeitura da Cidade Universitária, no campus da UFMG, mas elas estavam muito

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danificadas. As 13 pinturas eram uma raridade, assinadas por Dakir Parreiras (1893-1967), filho
do pintor Antônio Parreiras (1860-1937), e o reitor da universidade, Eduardo Osório Cisalpino,
solicitava que a Escola assumisse o trabalho de restauração. Trabalhando em equipe com um
técnico do Iphan, Geraldo Francisco Xavier Filho, enfrentou o desafio de restaurar as obras –
que haviam sido produzidas com uma antiga técnica de marrouflage, em que a pintura é colada
à parede com argamassa.
As pinturas foram finalmente restauradas em um trabalho minucioso e depois foram reinstaladas
no Conservatório da UFMG, nas paredes laterais do auditório. Depois de enfrentar este desafio
histórico, a professora passou a buscar meios e recursos e decidiu investir no aprendizado e no
ensino das técnicas de restauração, uma atividade na época pouco conhecida pelos professores
que atuavam nas escolas de artes plásticas. Em seguida vieram também outras demandas
importantes sobre restauro e conservação que levaram Beatriz Coelho, com o apoio e a orientação
do professor Edson Motta – importante restaurador do Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (Iphan), na época diretor do Museu de Belas Artes, no Rio de Janeiro – a
elaborar uma proposta inédita: a criação de um Curso de Especialização em Conservação e
Restauração na Escola de Belas Artes da UFMG.
Desde então, o resultado da dedicação a este processo tem sido tão promissor e gratificante que
Beatriz Coelho costuma comentar, com felicidade, que tem quatro filhos, mas que na verdade
poderia dizer que são seis, porque ela inclui nesta trajetória as instalações do Cecor e do Ceib,
o Centro de Estudos da Imaginária Brasileira, criado em 1996 com o objetivo de estimular
estudos sobre obras de arte brasileiras e portuguesas conservadas em acervos no Brasil. Nesta
entrevista, a professora Beatriz Coelho comenta o passo a passo de sua trajetória, as origens
de seu envolvimento com as artes plásticas, sua aproximação com as obras dos estilos barroco
e rococó em Minas Gerais e os grandes desafios relacionados à restauração e conservação do
patrimônio histórico e artístico.

Como aconteceu sua aproximação com as artes plásticas? Quais são as experiências mais
antigas sobre este assunto que permanecem em sua memória?

Beatriz Coelho – Primeiro, quero agradecer a você e a Cristina Ávila por terem me escolhido
como entrevistada deste número da revista BARROCO, que Cristina tem continuado depois
do falecimento do seu querido pai, Afonso Ávila, apesar de todo tipo de dificuldade que tem
enfrentado. A revista BARROCO é de uma importância enorme para os estudos, não só do
barroco, mas também do rococó no Brasil. Tenho praticamente todos os números, a maioria
comprados em uma liquidação feita há muitos anos, pela Editora da UFMG.
Agora, vou responder à sua primeira pergunta: Desde pequena, em Recife, sempre gostei de
desenhar. No colégio das Doroteias (Colégio de São José, criado pelas Irmãs de Santa Doroteia),
onde estudei por muitos anos, era uma das escolhidas para fazer desenho para o álbum que
seria oferecido à provincial italiana, quando ia visitar o colégio. Também estudava piano,
que era minha principal ocupação. Fui aluna de Manoel Augusto, diretor do Conservatório

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Pernambucano de Música em Recife e cheguei a tocar em audição no Teatro Santa Isabel. Tendo
vendido meu piano para comprar outro melhor, e não tendo recursos suficientes, voltei a me
dedicar ao desenho e à pintura, tendo sido aluna, ainda em Recife, na Escola de Belas Artes da
Universidade de Federal de Pernambuco, em disciplinas isoladas, de Murillo La Greca, com o
então assistente, Reynaldo Fonseca, de Lula Cardoso Ayres e de um bom professor de História
da Arte, do qual não consigo lembrar o nome.

A experiência como aluna na Escola Guignard alterou a sua percepção sobre a obra de arte?
Guignard, patrono da escola, além de criar obras marcantes, que permanecem em destaque
na arte brasileira, também teve uma importância fundamental como professor…

Beatriz Coelho – Entrei como aluna da Escola Guignard em 1964, dois anos depois do
falecimento de Guignard. Não tive, portanto, o privilégio de ser aluna dele. Fui aluna dos artistas
que estudaram com ele, como Yara Tupinambá, Maria Helena Andrés e Wilde Lacerda.

O desafio que surgiu em 1976, para restaurar os murais pintados por Dakir Parreiras, pode
ser apontado como um divisor de águas na trajetória da professora Beatriz Coelho?

Beatriz Coelho – Sim. Completamente. Foi dessas coisas que acontecem sem a pessoa esperar
nem programar. Eu era vice-diretora da Escola e estava em exercício da diretoria, porque Yara, a
diretora, estava nos Estados Unidos, quando um dia, Benedito Schimdt, secretário, me entregou
um ofício do reitor, professor Eduardo Osório Cisalpino. No ofício, o reitor informava que tinham
sido encontradas 13 pinturas de Antônio Parreiras, que estavam perdidas há muitos anos; que
entrasse em contato com a diretoria do Patrimônio Histórico, para conseguir um técnico que
orientasse os trabalhos de restauração e fornecesse uma lista de materiais necessários para o
trabalho, que ele queria, fosse feito na EBA, Escola de Belas Artes da UFMG. Dizia também que
a restauração deveria ter um sentido didático, com participação de alunos.
Era fácil, para mim, obter do diretor do Patrimônio Nacional em Minas Gerais, o arquiteto
Roberto Lacerda, tudo isso, porque ele e a esposa, eram como irmãos, para mim e meu marido.
Ele indicou o restaurador, Francisco Xavier Filho, o Ládio, que me forneceu a lista de material
necessário. Tereza Apocalypse era a chefe do Centro de Extensão e se encarregou de todas as
providências para o início dos trabalhos. Os alunos, porém, não se interessaram. Estavam na
Escola para se prepararem para a vida artística criativa, e não para aprenderem a restaurar.
Quem se interessou foram os professores: Álvaro Apocalypse, Jeferson Lodi, Maria do Carmo
Vivacqua Martins (Madu), Jarbas Juarez, Júlio Espíndola e eu. Começamos acompanhar, a
aprender e a participar dos trabalhos. Com o passar do tempo, alguns foram se afastando, tendo
continuado apenas Jarbas, Júlio e eu. Como eram 39m2 de pinturas sobre tela, aos poucos os
alunos foram vendo e se interessando, chegando alguns a pedir para fazer estágio, mesmo como
voluntários, sem receberem nada (Figura 1).

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Figura 1 - Tela ao chegarem à Escola de Belas Artes

Sua atuação como professora de iniciação à gravura mudou e a senhora passou a trilhar um
percurso como referência em trabalhos de restauração. Esta mudança foi apenas obra do
acaso ou o tema da restauração já estava presente em sua formação?

Beatriz Coelho – Eu não conhecia nada de restauração e esse tema nunca tinha entrado nas
minhas cogitações. As telas, como já foi informado aqui, eram coladas na parede com argamassa,
um sistema que não se usa há muitos anos, e que se chamava de marrouflage. Elas tinham sido
retiradas das paredes do Conservatório de Música pelo importante restaurador mineiro, Jair
Afonso Inácio, enroladas na forma de tubos e guardadas umas sobre as outras. Com o passar
do tempo e com o peso da argamassa, elas foram se achatando. Este foi um dos motivos para
terem “desaparecido”, tendo sido encontradas, bastante tempo depois, em um dos depósitos da
prefeitura do campus da UFMG. Pareciam telhas de amianto, apresentando também rasgos e
sujidades (Figura 2). Quando vi aquelas telas – que na verdade estavam assinadas por Dakir
Parreiras, filho do Antônio Parreiras – ficarem sem ondulações, os rompimentos sendo
emendados e elas poderem ser admiradas outra vez, fiquei impressionada, me apaixonei pelo
trabalho e aos poucos, foi deixando a gravura de lado.

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Figura 2 - Làdio orientando os trabalhos de restauro

O professor Edson Motta, que foi diretor do Museu de Belas Artes, no Rio de Janeiro, é
apontado com frequência como pai da restauração de obras de arte no Brasil. Ele teve
participação no projeto para criação do Curso de Especialização em Conservação e
Restauração na Escola de Belas Artes da UFMG? Quais foram os principais colaboradores
nesta iniciativa?

Beatriz Coelho – O professor Edson Motta foi muito importante para a existência do curso de
especialização, pois me forneceu os programas das disciplinas de Restauração de Pinturas e de
Obras Sobre Papel, que ele e outros professores lecionavam na Escola de Belas Artes do Rio,
e nomes de profissionais da restauração no Brasil que atuavam em seus estados e poderiam
participar do curso: José Rescala, da Bahia (Figura 3); Maria Luísa Salgado, do Rio de Janeiro;
Ado Malagoli, do Rio Grande do Sul; e Jair Afonso Inácio, de Minas Gerais. Fiz correspondências
para cada um desses restauradores, dizendo que iria tentar obter recursos para um curso de
especialização, se eles gostariam de lecionar aquela disciplina e se gostariam que continuasse como
estava no programa ou se preferiam mudar alguma coisa. Todos responderam positivamente,
com sugestões para alguma modificação. No Rio de Janeiro não havia nenhuma disciplina de
escultura, mas convidei Jair Inácio e Ládio para ela. Convidei também o museólogo Orlandino
Freitas Fernandes para apresentar uma parte teórica.
Na época, havia o Programa de Cidades Históricas, o PCH, dirigido pelo economista mineiro
Henrique Oswaldo de Andrade. O PCH já funcionava para o Nordeste e começava sua atuação

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no Sudeste. Em 4 de março de 1977 saiu a Portaria Interministerial No 19, destinando recursos
para várias atividades ligadas à proteção do patrimônio, entre elas “a formação e capacitação de
recursos humanos especializados a nível superior, intermediário e operário”. Foi isso que me fez
vislumbrar a possibilidade de programar e enviar para análise, e possível aprovação, o curso de
especialização em Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis, que foi aprovado e teve
início em abril de 1978 com aula de inauguração proferida pelo professor Édson Motta.

Figura 3 - Final da disciplina de Rescália

O barroco é uma questão incontornável da história, do patrimônio histórico e das artes


no Brasil e, especialmente, em Minas Gerais. Como foi sua aproximação com o barroco?
Aproveitando esta questão, o que pode ser apontado como diferenças marcantes entre o
barroco do nordeste brasileiro, especificamente o barroco de Pernambuco, sua terra natal,
e o barroco mineiro?

Beatriz Coelho – Minha aproximação com as obras dos estilos barroco e rococó em Minas
Gerais se deu quando começaram a chegar, no pequeno ateliê da Escola de Belas Artes, depois
de 1978, esculturas do Museu do Ouro, em Sabará. Antônio Joaquim de Almeida, seu diretor,
enviou várias esculturas em madeira policromada que tinham caído do alto de uma estante
do Museu, tento ficado danificadas. Como o restaurador do Iphan, Ládio, estava orientando
o trabalho de restauração das telas, ele as trouxe para restauro. Logo depois, recebemos uma

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escultura da coleção Brasiliana, enviada pela reitoria. Depois chegaram outras obras, esculturas
e pinturas para restauração, proporcionando um convívio estreito com obras desses estilos.
Estou morando em Belo Horizonte há 63 anos e conheço mais as igrejas de Minas do que de
minha terra natal, Pernambuco. Quando morava lá, ainda não tinha despertado o interesse
pelo conhecimento e estudo das obras de arte religiosa. Há diferenças, sim, porque o ouro foi
descoberto em Minas, no final do século XVII, provavelmente em 1796, enquanto Olinda existe
desde 1535. Em Igarassu, município de Pernambuco, temos a igreja de São Cosme e Damião,
a mais antiga do Brasil ainda conservada. Com a tomada da Capitania de Pernambuco pelos
holandeses (1630-1654) e o incêndio de Olinda, muita coisa foi destruída. Entretanto lá foram
construídos os conventos de São Francisco e do Carmo, os primeiros do Brasil, e o Mosteiro
de São Bento, todos em Olinda. Eles receberam intervenções com o passar do tempo, mas têm
obras de arte, os chamados bens móveis e integrados, que são do estilo barroco e do rococó.
Há diferenças e semelhanças que não caberiam nesse espaço da entrevista, mas confesso que
conheço mais os exemplares das cidades históricas mineiras do que as de Pernambuco.

O perfil dos alunos nas primeiras turmas do Curso de Especialização em Restauração


e Conservação é muito diferente dos alunos da atualidade? Quais foram as principais
mudanças?

Beatriz Coelho – Os alunos do curso de especialização no primeiro ano eram quase todos ex-
alunos de Jair Inácio, e todos de Minas Gerais, com uma única exceção, uma aluna que veio de
Vitória, no Espírito Santo. Todos tiveram bolsas de estudo do Programa de Cidades Históricas.
Um caso interessante foi que recebemos como aluno um químico, que trabalhava no Centro
Tecnológico de Minas Gerais (Cetec), e que posteriormente foi professor de Química no nosso
curso. Quase todos tinham curso de graduação completo ou terminando, e tinham de trabalhar
no Iphan ou em alguma instituição ligada ao patrimônio para serem aceitos. No caso do químico
estudante, ele estava num projeto com o professor José Israel Vargas, sobre desinfestação de
insetos em obras do patrimônio com utilização de energia nuclear. Ao começar o bacharelado,
em 2008, eu já estava aposentada, mas participei da comissão que elaborou o projeto do curso.
Tínhamos convivido, durante 20 anos, com alunos formados em artes visuais, arquitetura,
química e história, e pensávamos que, no bacharelado, iríamos receber alunos muito jovens, de
17, 18 anos, sem ainda saber muito bem o que queriam. Mas na verdade muitos profissionais já
graduados quiseram fazer o curso, que antes não existia no Brasil. Isso surpreendeu a todos os
professores.

Como foi a trajetória da criação do curso até a criação do Centro de Conservação e


Restauração de Bens Culturais Móveis, o Cecor?

Beatriz Coelho – O curso começou a funcionar em duas pequenas salas transformadas em


ateliê, e um pequeno banheiro, no qual começamos a utilizar luz ultravioleta para exames de

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obras de arte. As aulas teóricas eram dadas em salas da escola. Um dia, veio à EBA um casal de
Brasília, amigo de dr. Henrique Oswaldo, trazendo umas peças para serem restauradas. Eu falei
que dissessem ao dr. Henrique que o espaço estava muito pequeno para aos alunos e as obras,
e que o ideal seria conseguirmos um espaço apropriado, um centro de restauração, no qual
tivéssemos possibilidade de desenvolver ensino, pesquisa e extensão. Uma semana depois, dr.
Henrique me telefonou perguntando “que história era essa de um centro de restauração?”. Eu
expliquei e disse a ele que, na universidade, tínhamos espaço, arquitetos e engenheiros, mas não
tínhamos recursos financeiros para a construção. Ele me respondeu que eu conversasse com o
setor de arquitetura e planejamento que ele daria todo o apoio que fosse possível.
Em 1979 começou a construção, financiada pelo Ministério da Fazenda, através do PCH, e ele
conseguiu para mim, com o Programa das Nações Unidas para o desenvolvimento (PNUD),
uma viagem de um mês para conhecer as estruturas e o funcionamento de centros de restauração
existentes na América Latina. Estive no Centro de Restauração de Churubusco, na Cidade do
México; no Centro Santa Clara, em Bogotá, na Colômbia; e o curso de restauração que funcionava
em Cusco, financiado pela Organização dos Estados Americanos (OEA). No dia 5 de setembro
de 1980 foi inaugurado pelo reitor da UFMG, professor Celso Pinheiro, o primeiro pavimento
do Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis, o Cecor (Figura 4).

Figura 4 - Cecor – Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais

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E a criação do Centro de Estudos da Imaginária Brasileira, o Ceib? Quais foram os desafios
para a concretização deste novo projeto? As publicações do Ceib estão disponíveis para
consulta?

Beatriz Coelho – Depois de minha aposentadoria, em 1995, estava no Rio de Janeiro, quando
recebi um recado, pelo professor Marcos Hill, que a professora de História da Arte, Myriam
Andrade Ribeiro de Oliveira, do Iphan, gostaria de conversar comigo. Fui conversar com ela,
que me disse: “Beatriz, em tantos anos estudando a arte brasileira e percorrendo tantos lugares
do Brasil, estou convencida de que a imaginária religiosa é a expressão artística mais autêntica e
valiosa do Brasil. Precisamos criar um grupo de estudos, tipo o grupo do Barroco, que possa se
interessar em desenvolver estudos e publicações sobre esse tema. O que você acha?”
Claro que achei muito boa a proposta, porque era exatamente o assunto das pesquisas que eu vinha
desenvolvendo, inclusive recebendo Bolsa de Produtividade do CNPq. Fizemos uma reunião
com um pequeno grupo durante um congresso da Associação Brasileira de Conservadores e
Restauradores (Abracor), em Ouro Preto, em 1996, e em 29 de outubro do mesmo ano, outra
reunião no Museu Mineiro, aberta com uma conferência da professora Maria Beatriz de Melo
e Souza, sobre a Imaculada Conceição. Assim foi criado, oficialmente, o Centro de Estudos da
Imaginária Brasileira, o Ceib, que completa agora 26 anos de grande atividade, já tendo realizado
11 Congressos, publicado 76 números do “Boletim do Ceib”, sempre com artigos inéditos, e 11
números da revista “Imagem brasileira”.

Beatriz com Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira

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Quais são os maiores desafios para a preservação do patrimônio artístico brasileiro? A
senhora vê com otimismo o futuro desta questão?

Beatriz Coelho – Quando comecei a trabalhar com preservação do patrimônio, em 1976,


portanto há 46 anos, quando se falava em preservação ou em patrimônio brasileiro, estava-
se referindo aos bens históricos e artísticos, como bem o nome dizia: Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional. Aos poucos, foi sendo usada também a expressão “bens culturais”.
A constituição de 1988 ampliou muito esse conceito, passando a considerar patrimônio
brasileiro os bens de importância histórica e artística, mas também o patrimônio ambiental e o
imaterial. Foi um grande progresso obtido, mas ainda falta muito para tudo isso ser considerado
um dever do Estado e uma obrigação de todos os brasileiros. A conservação preventiva,
trazida como novidade em 1981 pelo francês e químico do Centro Internacional de Estudos
para a Conservação e Restauro de Bens Culturais (Iccrom), Gaël de Guichen, começou a ser
considerada como essencial, pois com ela, se evita, dentro do possível, a deterioração dos bens
do patrimônio. Foram criados cursos de conservação e restauração em várias universidades
brasileiras: Universidade Federal de Minas Gerais, Universidade Federal de Pelotas, Universidade
Federal do Rio de Janeiro e Universidade Federal do Pará. Ainda foi não aprovada, entretanto,
a regulamentação da profissão de Conservador/Restaurador no nosso país, e muitos trabalhos
de restauração são feitos por pessoas sem formação técnica adequada nem critérios suficientes
para intervir em obras únicas do nosso patrimônio. Isso é lamentável, pois muitas vezes causam
danos irreversíveis em obras insubstituíveis.

Nota
1 José Antônio Orlando é jornalista, graduado pela UFJF, Mestre e Doutor em Literatura, História e Memória
Cultural pela UFMG.

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NÓS-BARROCOS

Lucas Araújo de Almeida1

O
resgate do Barroco em fins do século XIX e as diversas revisões que dele foram feitas no
século XX tiveram especial impacto nas letras e nas artes visuais mineiras. Em Minas,
a revisão do Barroco se entrelaça com a modernidade artística, e a essa dinâmica se
soma – e também se entrelaça – outra linhagem de interpretação do barroco que, imersa nas
questões que envolvem o mundo contemporâneo, seu desenvolvimento técnico-científico e
as novas possibilidades de produção artística, busca estudar obras e fenômenos culturais que
se conformam naquilo que autores como Severo Sarduy e Omar Calabrese vão denominar
neobarroco – não um mero “revival” das questões do Barroco histórico, mas uma categoria
autônoma que se baseia em analogias com este para se entender o presente.
Observando a produção de artes visuais em Minas Gerais de meados do século XX até os dias
de hoje, fica certo que podemos traçar uma linha – tortuosa mas contínua – de obras que se
caracterizam por inegáveis traços barrocos, sejam esses constantes visuais que se incluem na
definição genético-formal de Barroco traçada por Wölfflin ou nas posteriores exegeses sobre o
neobarroco, mas que são, antes, conformados pelos dilemas sócio-existenciais de seu tempo e
que, por vezes, são também fruto de diálogo – direto ou indireto – com os resíduos do Barroco
histórico no espaço de Minas Gerais – que, nas palavras de Lourival Gomes Machado, têm
caráter de evidência na arte colonial mineira2. A breve reunião de imagens aqui expostas busca
ensaiar um caminho livre e subjetivo dentro desse quadro barroquizante da arte em Minas, de
Guignard às mais recentes tendências da arte digital, reafirmando a compleição barroca de obras
já icônicas no cenário artístico e aproximando-as de novas produções – muitas delas alheias a
esse ideário.
Partindo de Guignard e suas imaginárias paisagens de Ouro Preto, em que o espaço é fantástico
e onírico, o céu nebuloso se funde com as montanhas (“rochas de espuma”, nas palavras de
Cecília Meireles)3, igrejas barrocas pontuam assimetricamente a paisagem e caminhos sinuosos
reforçam o dinamismo da composição, chegamos na também fantástica produção de sua aluna
Sara Ávila que, explorando os limites entre abstração e figuração com o uso de manchas –
inspirada diretamente pelo teste de Rorschach – sugere em seus quadros e desenhos um turbilhão
de figuras agônicas e formas contorcidas em tom sépia. Como bem observou Márcio Sampaio, o
trabalho de Sara tem forte ligação com o espaço de Minas Gerais, “quer pela alusão às paisagens
coloniais e às formações geológicas, quer pela reinterpretação dos elementos formadores do
barroco (...)”4.

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Quebrando a sequência de tons neutros e soturnos, Fernando Lucchesi, também influenciado
pelo ambiente barroco de Minas – a policromia excessiva dos ritos e festas, as soluções
barroquizantes da arte popular –, apresenta sua cores vibrantes compulsivamente preenchidas
em um pontilhismo gestual em forte correspondência ao “horror vacui”, e Erre Erre comparece
com o díptico Lamber o Céu, da série Incandescente, de 2019, em que uma profusão de colagens
e grafismos – estrelas-asteriscos, folhagens, fogo, espirais, além de um par de mãos, uma vela e
frutas – são dispostos caoticamente numa tremulante paisagem quase abstrata que, entretanto,
sugere uma saga dramática e violenta. No trabalho de Erre Erre, podemos notar os indícios mais
recentes de um tempo de crise em que – como apontou Affonso Ávila em relação aos artistas
barrocos e modernos – também o artista contemporâneo, “vivendo aguda e angustiosamente
sob a órbita do medo, da insegurança, da instabilidade(...)”, exprime “(...) dramaticamente o seu
instante social e existencial, fazendo com que a arte também assuma formas agônicas, perplexas,
dilemáticas”5.
Algumas tendências estéticas atuais acabam por lidar de maneira generalizada com esse
“tempo de crise” que se agudiza nos últimos anos. Crise política e econômica, crise ecológica,
superexploração do trabalho, falta de tempo, ansiedade, pandemia, preocupações e anseios
apocalípticos, hipermidiatização, a realidade cada vez mais dirigida por um fluxo frenético
de imagens... Focando em uma produção feita inteiramente de forma digital e que lida mais
diretamente com as possibilidades e dilemas que os meios digitais e a internet trazem para a
vida e a produção artística no início do século XXI, podemos rastrear obras que, por diversas
que sejam em suas técnicas e propostas conceituais, tocam pontos em comum relativos a um
imbricamento entre magia e técnica, orgânico e maquínico, humano e não-humano, sempre
sob uma perspectiva de crise, que aspira a novos modos de existência e se manifesta numa
morfologia neobarroca.
Felipe Filgueiras “explora caminhos de representação do cósmico e do desconhecido, significando
sua própria prática como influxo de energias e sistemas imateriais de forma rizomática”6.
Em composições digitais que – a exemplo do trabalho de Sara Ávila – testam o limite entre
figuração e abstração, o espaço criado é misterioso, diversas cores, luzes e elementos distorcidos
se fundem formando uma unidade liquefeita que, embora estática e bidimensional, sugere
um volume elástico e vivo, prestes a se reconfigurar em novas e impossíveis formas. Na poesia
visual e arte gráfica de Preto Matheus podemos ver relações com a poesia visual e a caligrafia
do Barroco histórico – com sua ornamentação espiralada e complexidade labiríntica de inegável
teor lúdico – aliadas a um imaginário e visualidade urbanos. Em sua série Máquina Orgânica
do Apocalipse, vemos correntes de transmissão que se entrelaçam simetricamente formando
uma trama sinuosa e nada estável, prestes também a malignamente se reconfigurar – e que,
guardadas as devidas diferenças, não deixa de remeter à arquitetura alienígena de H. R. Giger.
Por fim, o vídeo Fratura Exposta Pt. I – A Sonâmbula, de Natália Reis, é um distópico mergulho
nas profundezas da imagem. Salta aos olhos – e demais sentidos – o fluxo simultâneo de
imagens, sons e palavras – essas, apresentadas como texto que corre pela tela e verbalizadas por
uma voz robótica. Os efeitos de “imbricamento” das imagens e de alteração cromática, aliados
ao som repleto de filtros – hipnotizante – criam um ambiente fluido e obscuramente onírico.

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De certa forma, o trabalho de Natália atualiza uma vertente do vídeo que já na década de 1980
era identificada com o neobarroco pelo que tinha de saturação, hibridismo e maleabilidade
da imagem e do som. Porém, ao contrário da produção videográfica passada, Natália trabalha
quase inteiramente com materiais de arquivo, dentro de uma (ampla) nova vertente de filmes
que supera a divisão entre cinema e vídeo e produz, de forma precária e muitas vezes totalmente
solitária, a partir de um acervo imagético e cinematográfico (possibilitado pela internet) pouco
acessado por gerações passadas, obras que tendem para uma valorização do hibridismo, da
plasticidade, da fragmentação e da polifonia, em suma, da artificialização.
Fica, portanto, desta breve reunião de trabalhos, a sugestão da pertinência do barroco para a
arte de Minas e a sua atualidade como categoria teórica para se especular sobre algumas das
mais recentes manifestações da arte contemporânea, situando a problemática do barroco “em
relação ao interesse crítico e à sensibilidade de nosso tempo” e reafirmando, assim, a plataforma
da revista Barroco anunciada por Affonso Ávila em sua primeira edição7.

Noite de São João, 1961 - Guignard - óleo sobre tela, 61 x 46 cm

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Sem título, sem data
Sara Ávila
técnica mista

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Árvore da Vida, 1986 - Fernando Lucchesi - óleo sobre tela, 155,5 x 197 cm
https://errol.com.br/loja/fernando-lucchesi/arvore-da-vida-3/

Africanas, 1989 - Fernando Lucchesi - óleo sobre madeira, 160 x 160 cm


https://errol.com.br/loja/fernando-lucchesi/africanas-3/

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Lamber o Céu, 2019
Erre Erre
tinta a óleo, bastão a óleo, pastel oleoso, spray, serigrafia, grafite, nanquim, guache e colagem s/ tecido, 150 x 115 cm
https://linktr.ee/erre___erre

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zxhrkosmos (underworld)
Felipe Filgueiras - post-abstraction (pintura e montagem digital)
https://www.felipefilgueiras.com/
https://www.instagram.com/flp_gfx/

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ñsrghx _garden entrance
Felipe Filgueiras
post-abstraction (pintura e montagem digital)
https://www.felipefilgueiras.com/
https://www.instagram.com/flp_gfx/

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Máquina orgânica do apocalipse #01, 2018
Preto Matheus
proporção áurea aplicada em arte digital
https://www.instagram.com/pretomath3us

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Máquina orgânica do apocalipse #02, 2018
Preto Matheus
proporção áurea aplicada em arte digital
https://www.instagram.com/pretomath3us

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Fratura Exposta Pt. I - A Sonâmbula, 2020
Natália Reis
Vídeo digital, 7 min: https://vimeo.com/707003594
https://vimeo.com/sanguecorsario

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Notas
1 Lucas Araújo de Almeida - graduando em artes visuais pela UFMG.

2 MACHADO, Lourival Gomes. O Barroco em Minas Gerais. In: Barroco mineiro. São Paulo: Perspectiva,
1973. p. 151 - 175.

3 PERDIGÃO, João. Ouro Preto, amor barroco e inspiração abstrata (1940-1960). In: Balões, vida e tempo de
Guignard: novos caminhos para as artes em Minas e no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. p. 176 -188.

4 AVILA, Sara; QUEIRÓS, Campos.; LATERZA, Moacyr; OLIVEIRA, Sálvio de.; MUSEU MINEIRO. Sara
Ávila. [Belo Horizonte: Museu Mineiro, 1988]. [12] p.

5 ÁVILA, Affonso. O Barroco e uma linha de tradição criativa. In: O poeta e a consciência critica: uma linha de
tradição, uma atitude de vanguarda. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Summus, 1978. p. 15 - 24.

6 Trecho retirado do site do artista. Disponível em: https://www.felipefilgueiras.xyz/info

7 ÁVILA, Affonso. Apresentação. Revista BARROCO, Belo Horizonte, n. 1, 1969. p. 6 - 7.

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DE COMO AMAR
AS FLORES DO CERRADO

Cristina Ávila1
Mônica Sartori2

S
em cuidados especiais, as flores do Cerrado surgem como por milagre, resistem à seca,
às tempestades, ao solo em erosão, asfaltos e depredações de toda espécie. Expõem suas
belas formas graciosamente. Caem em cascatas, se agarram a palmeiras, são pingos de luz
no mato seco, trepadeiras e canteiros descuidados que avançam sobre pedras, montes e cantos
obscuros. Estão aqui e acolá. Quem as plantou? Quem cuida delas? Mantêm-se sempre-vivas,
debocham das tempestades, abrem-se lindas bromélias, têm corolas, caules e sementes. Mesmo
na falta da terra, rochas se expandem carregadas de plantas presas a elas: bambus, orquídeas e
araucárias selvagens.
Dentre a biodiversidade brasileira, o Cerrado é reconhecido como a savana mais rica do mundo,
ocupando cerca de 20% do território nacional. Abriga mais de 11.000 espécies de plantas. Vivem
nessas matas mamíferos, répteis, peixes e anfíbios. O Cerrado é simplesmente o refúgio de
borboletas e abelhas.
Do cenário natural captamos o efeito da luz nas beiras das montanhas, matagais e pequenas
florestas. Pontinhos de cor avançam ora com certa violência, ora timidamente. Rosas, lilases,
azuis, amarelos, laranjas, castanhos e brancos pontuam verdes nunca lineares, ressecados ou
vívidos, são o descanso das flores do Cerrado, que levantam e desmaiam a seu bel-prazer.
Muitas foram batizadas com pomposos nomes científicos de seus meticulosos inventariantes.
São as chamadas lavoiseiras – provavelmente em homenagem ao químico Lavoisier, aquele para
quem nada se perde, tudo se transforma. E vão seguindo um destino incerto. Intrometem-se na
natureza desabrochando a ermo, enquanto serrotes, máquinas e represas artificiais as destroem
em favor do que teimosamente chamamos de progresso humano.
Pioneira, a pintora naturalista Marianne North (1830-1890) foi a primeira mulher a se aventurar
pelos nossos Sabarás, Ouro Pretos, Caetés, chegando a conhecer o velho Lund, desbravador
de grutas em Lagoa Santa. Esteve no Cerrado mineiro de 1872 a 1873, deixando vasta obra de
pintura contendo nossa fauna e flora.
Profetizou o que infelizmente vem acontecendo, o descaso e a destruição dessa flora brava e
resistente em sua aparente candura. Dentro do cânone engendrado pelo naturalista prussiano
Alexander von Humboldt (1769-1889), Marianne imprime modernidade em suas aquarelas
brasileiras, mas o faz com a preciosidade de quem alia arte e ciência.
O crítico de arte e poeta Baudelaire (1821-1867), autor dos poemas malditos As flores do mal, já
suspeitava que o moderno deveria se inserir à ciência, mas não poderia adivinhar que, apesar de
uma faceta classificatória onírica, as flores têm linhas e cores abertas à concepção livre de artistas
que, além de divulgarem a impermanência desse patrimônio geoambiental, seriam capazes de
as liberarem como asas de anjo ao alcance de um céu mais amplo que o simbolismo em toda a
sua modernidade. A contemporaneidade se deu conta que uma realidade pode se transformar a
partir de uma ação-atitude ampliadora do original.
Vendo a leveza que se traduz em resistência e fortaleza, as flores de Mônica Sartori atingem a
conexão midiática e estética do habitat do Cerrado mineiro com a tradição japonesa Yamato-e
(), uma das mais antigas e refinadas expressões das artes visuais.
Se o Universo integra o tudo natural, há que se saber da importância real das florinhas, que sem
nenhuma vergonha se esparramam pelo chão. Miúdas ou encorpadas – seres viventes de luz e
água –, encontram hoje refúgio entre cipós e araucárias. De algumas podemos falar com certo
empirismo, como da calandra, a chamada flor símbolo do Cerrado, das amarelas fedegosas ou
cássias, que se expõem em pétalas irregulares, desconcertantes para o senso comum que exige
simetria e regularidade.
Mas o que podemos fazer senão contemplar as begônias, as bromélias, as arnicas curativas,
as insolentes trepadeiras e as minimalistas flores que compõem verdadeiras rosáceas? E
sobram ainda aquelas batizadas ao deus-dará, ao acaso e sabor incontestes, como as flores de
pimenta-de-negro, inexplicavelmente brancas. Para as mimosas, os brincos de princesa, os
raminhos de arruda, as sebastianas, as ingratas, os veludinhos aromáticos, as damas-da-noite,
os chuveirinhos, as ciganinhas e cactos coloridos, resta a reverência de nossa memória afetiva –
contas contadas das lágrimas de Nossa Senhora que compõem uma lúdica ciranda de artefatos
divinizados.
Dessas flores uma artista do Cerrado captou a essência, pois não estaria na essência o real?
Mãe herbórea as reproduziu para a contemporaneidade, enquanto nós, receptores da poiesis,
viajamos numa fruição única – Mônica.
ON HOW TO LOVE THE CERRADO FLOWERS

A
s if by miracle, they resist drought, storms, eroded soil, asphalt and all kinds of
depredation, the unattended Cerrado flowers graciously blossom showing off their
shapes. They fall like cascades, grabbing onto palm trees like droplets of light in the
dry brush, in creeping vines and neglected flowerbeds while moving over stones, mounds
and dark corners. They are here and there. Who planted them? Who tends to them? They stay
alive, mocking storms by opening beautiful bromeliads, with corollas, stalks and seeds. Even in
the absence of land, the rocks expand with plants stuck on them: bamboos, orchids and wild
araucaria.
Within the Brazilian biodiversity, the Cerrado is known as the world’s richest savannah, covering
roughly 20% of the national territory. It hosts more than 11,000 species of plants and mammals,
reptiles, fish and amphibians live in these woods. The cerrado is the refuge for butterflies and bees.
In this natural scenery, we capture the light effect on the mountains’ edges, bushes and small
forests. Colored dots move forward, dramatically sometimes, timidly at others. Pinks, lilacs,
blues, yellows, oranges, browns and whites stand out amidst the dried out or vivid nonlinear
greens, a resting place for the Cerrado flowers that either wake up or faint at will.
Many were termed with pompous scientific names by their meticulous researchers. Lavoiseras were
probably named after the chemist Lavoisier, who said that nothing is lost, everything is transformed.
The flowers wander an uncertain fate, meddling in nature, blossoming anywhere, while saws,
machines and artificial dams destroy them in favor of what we stubbornly call human progress.
Marianne North (1830-1890), a pioneer naturalist painter, was the first woman to venture into
our Sabarás, Ouro Pretos, and Caetés. She even encountered old Lund, the Lagoa Santa grotto
pathfinder. She travelled the Minas Cerrado between 1872 and 1873, leaving a vast pictorial
work depicting our fauna and flora.
Unfortunately, what she foresaw then is continuously happening: the neglect and destruction
of the wild and apparently candid, yet resistant flora. Within the begotten canons by Prussian
naturalist Alexander von Humbolt (1769-1889), Marianne imprinted modernity in her Brazilian
watercolors, preciously allying art and science.
Baudelaire (1821-1867), the art critic and poet, author of the accursed poems “Flowers of Evil”,
already suspected that what was considered modern should be introduced in science. He could
not have guessed, though, that besides a classificatory oneiric facet, the flowers had lines and
colors opened to the artists’ free conception. Besides divulging the impermanence of this geo-
environmental patrimony, they would also be able to release them as angel wings in search of a
sky broader than the symbolism in all its modernity. Contemporariness realized that a certain
reality could be transformed, starting from an amplifying original action-attitude.
Seeing the lightness that translates into resistance and strength, the flowers by Monica Sartori
reach the media connection as well as the Minas Cerrado’s esthetic habitat with the Yamato-e (),
Japanese tradition, one of the most ancient and refined visual art expressions.
If the Universe integrates all of Nature, it should know the real importance of the little flowers
that spread shamelessly on the ground. Tiny or full-bodied, these living beings are light and
water and find refuge amidst the vines and araucaria. We can talk about some of them with
a speck of empiricism, such as the Calandra, the flower-symbol of the Cerrado, as well as the
yellow pigweeds or Cassias with their irregular petals, a disconcerting sight for our common
sense that requires symmetry and regularity.
However, what else can we do, but contemplate the begonias, bromeliads, curing arnicas,
insolent creeping vines and minimalist flowers that compose the true rosacea? There are still
those misnamed ones, left uncontested and by chance, like the inexplicably white flowers of the
black pepper. We are left to pay reverence to our affectionate memory through the mimosas, the
princess earrings, the rue sprigs, the ungrateful, the aromatic velvets, the ladies of the night, the
little showers, the little gypsies, and the colorful cacti. They are the tearful beads of Our Lady
that comprise the playful merry-go-round of our deified artifacts.
An artist was able to capture the essence of these flowers. Wouldn’t its essence be in what’s
real? Mother herb reproduced them for contemporaneity while we, the poesis receptors, travel
through a unique fruition – Monica.

Notas
1 Cristina Ávila - Diretora da Revista Barroco. Escritora, Historiadora da Arte e da Cultura, Doutora em
Literatura Comparada pela Faculdade de Letras da UFMG, Mestre em Artes pela ECA/USP.

2 Mônica Sartori - Artista visual. Graduada em Desenho pela EBA/UFMG. Participou de Bienais e fez várias
exposições individuais no Brasil e exterior.
ETHOS-PATHOS-STIMMUNG:
PARA ALÉM DO FORMALISMO RETÓRICO 1

Edilson de Lima2

INTRODUÇÃO

No hay ninguna “naturalidad” no retórica del linguaje a la que se pueda


apelar: el linguaje mismo es el resultado de artes puramente retóricas. El
poder de descubrir y hacer valer para cada cosa lo que actúa e impresiona,
esa fuerza que Aristóteles llama “retórica”, es al mismo tiempo la esencia
del linguaje: este, lo mismo que la retórica, tiene uma relación mínima com
lo verdadero, com a esencia de las cosas; el linguaje no quiere instruir sino
transmitir (übertragen) a outro uma emoción y uma aprehensión subjetivas.
(Friedrich Nietzsche: Escritos sobre retórica, 2000 p. 91).

P
arece que palavra e música condividiram, e ainda condiviem, seus modos de “ser-
fazer” por muito tempo e por motivos que podem ser bastante justificáveis, dos quais
destaco: uma discursividade temporal articulada (AGAMBEN, 2012), algumas vezes,
pela proposta temática da obra (inventio), outras, seu vínculo com determinado gênero e estilo
musical (poética), disposta em partes (dispositio) elaboradas e cuidadosamente arranjadas
(TARLING, 2005). Além disso, ao “acontecem” no tempo e no espaço, logo, em uma instância
e historicamente localizada, palavra e música carregam consigo os modos ou disposições
emotivas3 de quem, ou da maneira como foram produzidas. Arriscaria dizer que estas intenções
também podem ser encontradas no gesto da escrita (ZUMTHOR: 2014, p. 71), seja de uma
determinada língua ou seja em uma determinada modalidade de escrita musical.
Ao vivenciarmos uma situação de performance, e ao deixar-nos levar por seu desenrolar, em
uma coparticipação ativa, é como se ali estivéssemos sintonizados, ou sincronizados, a uma
“espécie de afinação interior pelo mesmo diapasão” (VIEIRA DE CARVALHO, 1999, p. 24).
Nesse sentido, emoção e percepção, quando nos colocamos em situação de “expectador”, trazem
consigo uma plêiade de processos “psicofisiológicos” (cf. SPINOZA, 2013; JAQUET, 2011),
onde mente e corpo são uma totalidade e, ao (re)agirmos não estamos sendo apenas passivos

REVISTA BARROCO DIGITAL - nº 2 - 2022 - EDILSON DE LIMA


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185
ou reativos. E,

“Ao contrário do que parecia consensual no senso comum, a percepção não


é apenas uma interpretação de mensagens sensoriais, mas uma simulação
interna da ação, assim como, uma antecipação das consequências da
ação”, [pois,] o que percebemos é determinado pelo que fazemos, pelo
que sabemos como fazer ou estamos prontos para fazer. Essas ações são
sutilmente diferentes entre si, mas intimamente relacionadas” (GREINER,
2010, p. 72-3).

Além disso, também parece que, apesar de sua indefinição semântica, a música, também inaugura
mundos, pois articular redes de relações significativas constrói seu sistema de organização sonora
e sua estrutura: modos de ser e fazer, ou seja, o ser humano, “é um animal amarrado a teias de
significados que ele mesmo teceu”, e a cultura sãos “essas próprias teias” (GEERTZ, 2008, p. 4).

A QUESTÃO POÉTICO-RETÓRICO MUSICAL

A Musica Poetica é aquela disciplina musical


a qual nos ensina como compor uma composição musical.
Joachim Burmeister
1606 – Apud Dietrich Bartel

A partir dos séculos XVI, com a nova concepção humanística renascentista (Cf. OLIVERIA,
2011; BARTEL, 1997; CIVRA, 1991), o conceito de “música poetica” e sua aproximação com
a retórica, ganhou uma dimensão que ajudou a mudar o rumo da produção musical para os
próximos séculos.4 A noção de música poetica, associada, sobretudo, a adequação entre gênero
e estilo, e a de música retorica, calcada em formalização discursiva, visaram principalmente
persuadir a recepção pelo efeito comocional por meio de “afetos tipificados” (VIEIRA de
CARVALHO: 1999, p. 122). Assim, essas diretrizes adentraram de modo enfático o discurso
musical, em especial após o século XV, acentuando-se de maneira gradativa nos séculos
seguintes, tendo alcançado seu auge no século XVIII e, partir de então, esmorecendo, mas não
ao ponto de desaparecer completo ao longo do século XIX. E acredito que tendências retóricas
continuem vivas, mesmo que em usos completamente diverso nos dias atuais5.
Não obstante as dificuldades semânticas associadas à arte dos sons, é certo que uma tendência
poético-retórica tem orientado a “representação afetivo-musical” – seu conteúdo, forma e efeito
comocional – há séculos. Nas obras musicais produzidas, sobretudo, entre os séculos XVI e
XVIII, elaborações calcadas em formalizações retóricas são copiosas: preocupações com temas
musicais (inventii); disposição e reelaboração temática dentro da obra (dispositio); elocução
(elocutio) apropriada, com a inclusão de ornamentação (decoratio) adequada ao gênero e ao

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estilo; preocupação com a elaboração de figuras retórico-musicais (pathos) aliadas a uma
“performance” específica – gestos e inflexões sonoras adequadas não só ao estilo e caráter da
obra (ethos) – e o manuseio da profusão de afetos tipificados (pathos) utilizados durante a obra
em conjunto com contexto em que esta ocorre: uma “adequação e conveniência, de meios e fins”
(BASTOS, 2016, p. 98), ou seja, uma “adaptação do estilo ao assunto e ao objetivo do discurso”
(REBOUL, 2004, p . 246): enfim, o decorum. Esses procedimentos, tal e qual na retórica literárias
ou jurídica, tinham como objetivo “mover” os afetos da assembleia, colocando-a em estado de
comoção, de empatia, com a obra apresentada, constituindo parte integrante de seu processo
comunicacional.
Em suma, nenhuma manifestação artística escapou dessa grande busca pela dramatização e
adequação poético-retórica e da tentativa da representação dos afetos humanos, incluindo a
música, mesmo quando esta é “pura” música, ou música sem palavras. Por isso, a partir do
século XV, a publicação de tratados poéticos e retóricos antigos e uma nova produção referente
a música com este prisma, ocorreu de modo copioso (CIVRA, 1991)6.

MÚSICA “COMO” LINGUAGEM

Os contextos da música são muitos, provavelmente infinitos. Música


assemelha-se ao mito, anima rituais religiosos e facilita o movimento e a
dança. É um agente em drama musical e atua como um catalisador, se não
como um protagonista, em um filme e outras formas de narrativa visual.
A música, para realizar-se, frequentemente ultrapassa fronteiras e parece
colocada singularmente entre as artes. Talvez, a mais básica dessa associação,
todavia, seja por sua aproximação com a linguagem natural (KOFI AGAWU,
2009, p. 15)7.

Partindo da afirmação de que a linguagem se constitui como um acordo existencial que


ultrapassa uma determinada língua como um código mais ou menos estabelecido, arriscaria a
dizer que, se há sentidos (ou mundos), estes existem porque há linguagem (GADAMER, 1997).
E justamente porque há linguagem, ou a tentativa de um acordo humano para a produção de
sentidos, pode haver convenções e estruturas sistêmicas comunicacionais, como as línguas, os
sistemas musicais, ou as linguagens elaboradas nas artes visuais (Cf.: LIMA, 2017, p. 184; HALL:
2016, p 17; RICOEUR: 2013, p. 11-40).
Sendo assim, toda linguagem e consequentemente toda língua, ou mesmo o sistema musical,
trata-se de um acordo, ou “contrato” social, que nos transcende e que nos possibilita expressar
nela e com ela: portanto, a língua foi estruturada antes que nós, como indivíduos, tivéssemos
nascido, nos acolheu, a utilizamos e ela nos ultrapassa. Assim, somos acolhidos pela linguagem, ou
ainda, adentramos ou ainda habitamos a linguagem (Cf. HEIDEGGER, 2012, § 34). E isso ocorre
também em sistemas musicais elaborados, como o modalismo, o tonalismo, o dodecafonismo,
o politonalismo ou polimodalismo, entre outros. Já a música aleatória, por exemplo, ou outras

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formas mais abertas de organização sonora, portanto não sistêmicas, estão mais ligadas a sua
realidade como discurso8, porém, articulado em torno de uma poética, ou programa mínimo.
De qualquer modo, e de maneira muito resumida, toda linguagem ou sistema codificado (como
uma língua, um sistema ou discurso musical) só existe porque acontece em um local, ou seja,
em uma instância, em tempo determinado, portanto, historicamente localizado, articulado
por sujeitos sociais e que pode ser “atualizado” em um evento, ou em um ato performativo
(RICOUER, 2013; ZUMTHOR, 2014). No discurso, ou na ação discursiva são articuladas visões
de mundo que estão explícitos ou implícitos sob um jogo dialógico, mesmo que muitas vezes
hierarquizado (cf. ORLANDI, 2010).
A obra de arte e, em nosso caso a música, bem como tantas outras criações, também são
produtos de “mãos” e “mentes” humanas. Nesse sentido, articulam visões de mundo e acontecem
como eventos reais ou “virtuais” - pois mesmo a obra digitalizada, seja esta uma transmissão
telemática ou obra totalmente produzida de modo digitalizado - unem , em temporalidades
determinadas, obras e os sujeitos sociais no ato da produção e recepção, relacionando-os em
universos “interdiscursivos ou dialógicos, os quais se integram em um “universo discursivo”,
ou conjuntural, em um “campo discursivo”, ou conjunto de formações discursivas, e em “espaços
discursivos” (cf. BRANDÃO, 2004, p. 89-91).
De qualquer modo, para que exista uma “fala” ou uma língua (um sistema de representação mais
ou menos articulado) ou um sistema de produção musical (como o modalismo, o tonalismo
ou o serialismo, ou ainda convenções que possam balizar uma obra musical aleatória, por
exemplo), há que se ter uma articulação rítmica: uma disposição articulada dos sons dentro de
uma dimensão temporal. Desse modo, fala e música, compartilham uma característica comum,
o ritmo (a temporalidade) e sem o qual, não se configurariam como uma obra e como sistema
estruturado (AGAMBEM: 2012, p. 155-166). Será a partir do ritmo – da articulação temporal,
na duração entre a produção de sons e pausas ou silêncios – que a música e, consequentemente,
a fala poderão existir em “suas” dimensões reais, pois ritmo é fluir, ou correr, e também
estrutura, pois revela não só uma instância, um local e temporalidade histórica ou momento
onde acontece como evento, mas também sua estrutura: seu modo de articular-se. O ritmo
dispõe no discurso musical, seu logos et ratio em “sonoridades formalmente articuladas e
perceptíveis, presentificando-o” (LIMA, 2017, p. 194). Nesse sentido, mesmo em uma leitura
mental, silenciosa, o que faz com que fala e música se tornem reais, é sua realidade rítmica-
sonora! Dentro dessa perspectiva,

o ritmo – assim como nós o representamos comumente – parece introduzir


nesse eterno fluxo uma dilaceração e uma parada. Assim, em uma obra
musical, ainda que ela seja de algum modo no tempo, percebemos o ritmo
como algo que se subtrai à fuga incessante do instante e aparece quase
como a presença do atemporal no tempo. Assim, quando nos encontramos
frente a uma obra de arte ou uma paisagem imersa na luz da sua presença,
observamos no tempo uma parada, como se fôssemos inesperadamente
atirados em um tempo mais original. Há uma parada, quebra no fluxo
incessante dos instantes que do porvir se perde no passado, e essa quebra

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e essa parada são precisamente o que dá e revela o estatuto particular, o
modo da presença próprio da obra de arte ou da paisagem que temos diante
dos olhos. Nós somos como que detidos, parados diante de algo, mas esse
ser detido é também um ser-fora, uma ek-stasis em uma dimensão mais
original (AGAMBEM, 2012, p. 162).

Nesse entendimento, assim como nós somos linguagem, esta que nos possibilita a construção de
códigos e a elaboração de uma língua, somos também o modalismo, o tonalismo, o serialismo,
ou um poética aleatória... E à medida que realizamos ou ouvimos obras musicais elaboradas
nesses sistemas ou modos de articulação que, como a língua e/ou linguagem, nos transcende, se
no abrimos interiorizamos e nos dispomos a escutar – ou habitar – uma determinada construção
sonora, que acontece como um “evento”, tornamo-nos a música que não está simplesmente fora
de nós, mas conosco, e “em” nós (LIMA, ob. cit. p. 194), permanecemos como que “suspensos”
na linguagem musical. E como sintetizou Giorgio Agamben:

“O que é que está em suspenso, o que é que pende no pensamento? Pensar,


na linguagem, nós o podemos apenas porque a linguagem é e não é a nossa
voz. Existe uma pendência, uma questão não resolvida na linguagem: se
esta é ou não a nossa voz, como o zurro é a voz do asno e o rechino é a voz
das cigarras. Por isso não podemos, falando, deixar de pensar, de manter
em suspenso as palavras. O pensamento é a pendência da voz na linguagem
(AGAMBEN, 2006, p. 145).

SOBRE A STIMMUNG
A palavra Stimmung, como destacou o filósofo Giorgio Agamben, é formada a partir do radical
Stimme, que possui o significado de voz e se relaciona, como indica essa relação, com a esfera
sonora ou acústica (AGAMBEN: 2015, p. 72). Nessa compreensão, voz ou vocalização, formam
o centro do pensamento sobre a linguagem. E, como destaca em sua interpretação,

A palavra Stimmung, como é evidente por sua proximidade com Stimme,


voz, pertence originalmente à esfera acústico-musical. Ela está ligada
semanticamente a palavras como as latinas concentus e temperamentum e
a grega harmonia, e em sua origem significa entonação, acorde, harmonia.
A partir desse significado musical se desenvolve, sem jamais perder
completamente o contato com o sentido originário, o significado de “estado
de espírito”. Trata-se assim de uma palavra cujo significado se deslocou, ao
longo do tempo, da esfera acústico-musical – a que estava ligado por sua
proximidade com a voz – para a esfera psicológica. (Ibidem, p. 72).

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Assim sendo, segundo a citação acima, a voz, que pertence a algo ou alguém, é entoação ou
entonação, e remete, mesmo numa lembrança ou pensamento, à sua existência acústico-musical.
Em sua realidade entoada, em conjunto com a voz ou som, desvelam-se suas características
sonoras: forte e empostada ou débil e airada, aguda e metálica ou grave e cavernosa... Combinada
a suas caraterísticas tímbricas, revelam-se as intenções fisiológicas e psicológicas presentes nessa
vocalização: impetuosa ou tímida, lacônica ou afirmativa, sedutora ou debochada... Logo, junto
com o “som” produzido pela voz, as disposições afetivas (pathos) também se revelam, além do
“caráter” ou opção estilística associada, pelo menos, a um momento específico dessa entonação,
um ethos, seja este sensato, sincero, simpático, docente, irônico...
Ao lado disso, toda vocalização ocorre em tempo e espaço determinados e associados, portanto,
a uma temporalidade, logo uma historicidade e, consequentemente, a um decoro, ou seja: uma
“adequação e conveniência entre meios e fins” (BASTOS: 2013, p. 29). Portanto, do ponto de
vista em que estamos pensando a linguagem, ela nunca se destaca de sua Stimmungen, ou de suas
“disposições emotivas”, logo, de seus temperamentos; mesmo que eventualmente um registro
digital ocasional seja capaz de fixar o momento de um evento sonoro, seja este uma palestra ou
uma canção.
Entendemos, portanto, que uma voz “musical”, seja esta advinda do canto ou instrumento,
também se insere dentro dessa perspectiva: em analogia com o canto, ou instrumento de sopro,
como flauta ou clarinete, a relação entre Stimmung, ou Stimme, parece ser mais direta, ligando-
se inteiramente com seu flatus vocis – o sopro de ar/voz – que norteará as intenções sonoras
expressas na vocalização e relacionadas às inflexões vocais que, por sua vez, se relacionam
com as alternâncias entre tensões e relaxamentos do aparelho fonador ou respiratório. Ambos,
sopro e impostação vocal, desvelam as intenções sonoras e, com esta, sua enriquecida gama de
opções sonoro-afetivas: tensa e afirmativa, relaxada e espasmódica, aguda e incisiva, anasalada
e sedutora...
Mesmo na música puramente instrumental, seja de um bandoneon ou de um pandeiro,
a articulação dos dedos, o gesto do corpo e dos braços, as inflexões da coluna, combinados
com a respiração – a qual mantem a energia vital do músico – transferem para o instrumento
as intenções sonoro-afetivas, dando vida a obra e atualizando concepções e códigos “na”
performance: o evento de toda linguagem, inclusive da linguagem musical. (RICOEUR, 2013;
ZUNTHOR, 2010)
Será, portanto, nesse “limite” ou “limiar” entre “mundos” e possibilidades de significações, que a
própria linguagem e, em nosso entendimento, a linguagem musical ocorrerá (LIMA, op. 2017).
Por isso,

O lugar da Stimmung – poderíamos dizer – não está na interioridade nem


no mundo, mas no limiar entre ambos. Por isso, o ser aí, na medida em
que é essencialmente sua própria abertura, está desde sempre em uma
Stimmung, é sempre emotivamente orientado; e essa orientação é anterior a
todo conhecimento consciente, tal como a toda percepção sensível, a todo
Wesen [saber], tal como a todo Wahrnehmen [perceber]. Antes de se abrir
a todo saber e em toda percepção sensível, o mundo se abre ao homem

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em uma Stimmung. “É só porque ontologicamente próprios de um ente
que tem o modo de ser do ser-no-mundo em uma situação emotiva, os
‘sentidos’ podem ser ‘afetos’ e ‘ter sensibilidade’ para aquilo que se manifesta
na afecção”, escreve Heidegger. Mais do que estar em um lugar, poderemos
então dizer que a Stimmung é o próprio lugar da abertura do mundo, o
próprio lugar do ser (AGAMBEN: 2015, p. 73).

Deste modo, segundo Giorgio Agamben, o ser humano somente pode se realizar existencialmente
e socialmente quando se encontra em um mundo, no aí, em um local, numa instância, em algum
momento, em uma temporalidade, ou historicidade. É nesse limite ou limiar entre ser humano e
mundo, e sempre em uma disposição emotiva, que ele pode realizar-se como ser humano, logo,
em uma fusão de horizontes entre o exterior (mundo) e o interior (sua disposição), mesmo que
seja em uma relação conturbada ou “dissonante”. Sendo assim, reiteramos, é por buscar um
lugar no “mundo” através da linguagem, que o ser humano pode experimentar os “sentidos”
como “afetos” e “ter sensibilidade para aquilo que se manifesta na afecção”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mesmo que ainda necessitemos debater de modo longevo e aprofundado a afirmação de
Friedrich Nietzsche sobre a “essência retórica” de toda língua, um sistema de organização
“rítmico-sonoro” (AGAMBEN, 2012) parece aproximar a palavra e música. Nesse sentido, o
que nos chega aos ouvidos, ou por ouvidos e olhos, no caso de uma performance musical ao vivo
ou transmitida por imagens registradas, nos toca porque nos relacionamos com “um” mundo,
ou mundos possíveis, através também das afecções que nos advém (SPINOZA, 2013), que nos
afetam e alcançam nosso corpo, pois “é sempre pelo corpo que entramos em contato com a
realidade exterior” (PEIXOTO JUNIOR, 2013). Logo, como sintetizou Marilena Chauí a partir
de uma leitura muito apropriada de MERLEAU-PONTY, somos uma “consciência encarnada
num corpo” (CHAUÍ, 2011).
Desta forma, os modos de produção de uma obra musical, suas disposições e intenções, o ethos
e o pathos, estão presentes nessa produção ou reproduções interpretativas. E mesmo numa
partitura tradicional, bem como nos códigos da escrita de uma língua ou sistema musical,
intenções ou “dicas” de disposições emocionais estão minimamente grafados ou sugeridos; e,
ainda que não estivessem, a realidade discursiva, logo, interdiscursiva, de uma língua ou obra
musical, encarregar-se-ia de colocar em “cena” suas disposições emotivas, suas Stimmungen.
Portanto, e por mais que as convenções formais retórico-musicais ou tópicas estejam “fora”
de nossa prática conceitual cotidiana, uma Stimmung está presente no conteúdo de toda obra
musical, atuando em sua realidade sonora; mesmo numa “simulação” por meio de uma leitura
silenciosa. E uma vez mais retroagindo à epígrafe que encabeça este texto sobre a “natureza”
retórica de toda língua (sistema) e se, de fato, “el linguaje mismo es el resultado de artes puramente
retóricas” e se estamos-somos linguagem, ou se experimentamos o mundo como linguem, como

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sugere Hans-Georg Gadamer (1997, p. 566), este entrelaçamento entre formalizações discursivas
e “disposições” (ou intensões) afetivas (ou emocionais) não pode ser separado da expressividade
humana, logo, da produção musical. Mesmo na mais honesta busca de neutralidade abstrata na
produção do “puro som.”
Deste modo, tudo indica que “el deseo, impulsado desde el Renacimiento, de imitar modelos
y estrategias de las antiguas culturas clássicas”, como enfatizou Rubén López Cano (2000, p.
33), intenta se concretizar de maneira muito enfática e pretende se planificar como uma das
tendências da música produzida no Ocidente e seus domínios se manifesta na música praticada
deste lado do atlântico, sobretudo durante o século XVIII e início do século XIX, como podemos
verificar em vários estudos produzindo nas últimas décadas sobre a música paulista, mineira,
carioca, pernambucana ou baiana compostas em época coeva.
Por outro lado, as resistências e adaptações relacionadas à diversidade sociocultural internas
e externas ao continente europeu trataram de minimizar ou maximizar esta tendência em
riquíssimas hibridizações inimagináveis e incontroláveis que, a partir desta realidade, elaboram
outros modelos de expressão mais afeitos às complexidades sociais, culturais e étnicas
possibilitados pela expansão mundial que aproximou, não sem conflitos evidentemente, povos
diversos desde o cinquecento até os dias atuais.

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Notas
1 Parte desse artigo foi apresentado no IV ARLAC/IMS, Asociación Regional para América Latina y el Caribe
de la Sociedad Internacional de Musicología, Buenos Aires (Argentina) que ocorreu entre os dias 05 e 09 de
novembro de 2019 e apresenta-se aqui revisado e ampliado após observações e sugestões.

2 Edilson de Lima - DEMUS- UFOP.

3 Emoção, em nosso entender, “são relações afetivo-expressivas, relacionando aspectos psicológicos e fisiológicos”
e “resultam de alterações sincronizadas e inter-relacionadas desses componentes [percepção, sentimento] em
resposta a estímulos que o indivíduo avalia como tendo algum significado relevante.” (CEZAR, Adieliton Tavares,
JUCÁ-VASCONCELOS, Helena Pinheiro - Diferenciando sensações, sentimento e emoções: uma articulação
com a abordagem gestáltica. In Revista IGT na Rede, v. 13, no 24, 2016. p. 4 – 14. Disponível em http://www.
igt.psc.br/ojs ISSN: 1807-2526); Mário Vieira de Carvalho (1999, p. 93) assim sintetiza: “parece pacífico que
os processos psíquicos emocionais acompanham os cognitivos e vice versa”; já António Damásio (2015, p.
32), assim escreve: “Minha teoria é que nos tornamos conscientes quando os mecanismos de representação
do organismo exibem um tipo específico de conhecimento sem palavras – o conhecimento de que o próprio
estado do organismo foi alterado por um objeto – e quando esse conhecimento ocorre juntamente com a
representação realçada de um objeto.” E algumas páginas à frente, arremata: “A consciência começa quando os
cérebros adquirem o poder – o poder simples, devo acrescentar – de contar uma história sem palavras” (idem,
p. 36). A fim de ampliar essa discussão, consultar também: DAMÁSIO, António. Em busca de Espinosa: prazer
e dor na ciência dos sentimentos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004

4 Acredito que seja desnecessário desenvolvermos uma discussão sobrea a importância das experiências na
expressão da palavra durante o século XVI, as experiências com madrigais (o expresso verborum), e o que
representou, para a futura cantata, para ópera, a “favola in musica”, e para o oratório, e que possibilitaram
uma desenvolvimento dramático-musical jamais visto até então. A fim de empreender uma pesquisa sumária,
consultar GROUT, Donald Jay. A history of western music. J. Peter Burkholder, &th ed. New York: W. W.
Norton & Company, 2006.

5 A fim de complementar essa discussão, consultar HANSEN, João Adolfo. “Barroco, neobarroco e outras
ruínas”, vídeo onde defende a continuidade da retórica sobre outras formas e usos, mas que se localiza no cerne
da língua – acesso em 01/04/2021 https://www.youtube.com/watch?v=JGYNjYUEJfo&t=39s. Além disso, a
epígrafe desse texto, que perpassa essa discussão, também enfatiza a estrutura retórica de toda língua e aponta
para a “essência estrutural” metafórica, ou representativa, que a conforma - NIETZSCHE, Friedrich. Escritos
sobre retórica. Madrid: Editorial Trotta, 2000.

6 Cf. nota de rodapé de número “4”.

7 Music’s contexts are many, probably infinite. Music resembles myth, animates religious ritual, and facilitates
movement and dance. It is an agent in music drama and plays a catalytic if not constitutive role in film and
other forms of visual narrative. Music frequently transgresses borders and seems uniquely placed among the
arts to do so. Perhaps the most basic of these associations, however, is that between music and natural language.
Kofi AGAWU. Music as Discours. NY: 2008, p. 15.

8 Como discurso, entendemos uma articulação de visões de mundo, histórica e socialmente produzidos, que
possibilitam a produção de sentidos, operando entre os níveis linguístico e o extralinguístico (cf. Brandão:
2004, p.11). Sendo assim, o discurso “é um sentido construído no processo de interlocução (opõem-se a
língua [sistema] como mera transmissão de informação). Logo, o discurso nunca é “fechado em si mesmo”
e, tampouco, dominado pelo do “locutor” e “aquilo que se diz significa em relação ao que não se diz, ao lugar
social do que se diz, para quem se diz, em relação a outros discursos” (ORLANDI, apud. BRANDÃO, 2004, p.
106)

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MACUNAÍMA, MEMÓRIA E
MODERNISMO1
Myriam Ávila2

O
tema deste artigo segue o convite que me foi feito pelo Programa de Pós-graduação
em Letras da Universidade Federal de Ouro Preto (POSLETRAS) para sua aula
inaugural. Tema sob medida para uma aula da nossa querida Eneida Maria de Souza
e um pouco menos para mim, que estou há algum tempo afastada das discussões sobre
modernismo e Macunaíma, embora sempre em embate com a questão da memória. Penso que
a ideia de uma aula magna está profundamente imbricada na noção de memória, por se tratar,
em última análise, de uma comemoração da instituição onde é ministrada – ela comemora a
existência da universidade e, mais especificamente, da pós-graduação. Tem um caráter oficial,
formalizado. Constitui um ponto estabelecido do calendário letivo, tem o sentido de dar início
a mais um período letivo, quase se poderia dizer que tem uma existência pro forma. Mas seu
sentido assenta-se na intenção de motivar e trazer reflexões aos alunos que, sendo nascidas
da trajetória específica da palestrante, não seriam contempladas pelos seus professores do
curso regular. Insisto, porém, que, no mais fundo de sua razão de existir está a reverência à
universidade como instituição. Lembremos o verso de Mário de Andrade, do poema Quando
eu morrer, no qual ele faz uma espécie de testamento e distribui as partes do corpo pelos vários
marcos da cidade de São Paulo, um deles sendo “o joelho na universidade, saudade...”. Essa
reverência marca o reconhecimento da instituição como monumento ao saber. O poema é de
meados dos anos 40. A universidade era a USP, fundada 10 anos antes. Sabemos todos que a
USP retribui a reverência, e que Mário é a grande estrela do Instituto de Estudos Brasileiros,
que detém seu acervo.
A data de criação da USP, 1934, não é um marco de destaque na nossa cultura, como o é a data
da Semana de Arte Moderna, de 22, cujo centenário comemoramos agora. (Nem se costuma
lembrar a UFMG como uma universidade que surge sete anos antes da USP). Mas podemos
argumentar que a USP nasce de uma intensa integração com o movimento modernista, no
sentido de que nasce de um impulso de modernização do saber. Mário de Andrade avalia, vinte
anos depois, a Semana e o período heroico do modernismo, como responsáveis por introduzir
no meio cultural brasileiro “o direito à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística
brasileira; a estabilização de uma consciência criadora nacional” (1942). Se eliminarmos as
palavras “estética, artística e criadora”, teremos um programa para a universidade brasileira
como um todo. O papel da universidade na canonização do modernismo não é tão difícil de
determinar, já o papel do modernismo na instituição de uma universidade moderna no Brasil

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é mais difuso. Tentarei, no entanto, delimitar alguns momentos propiciados por Macunaíma,
tanto como obra, quanto como ícone e até mesmo como significante, no desenvolvimento de
uma universidade plena – ou seja, provida de uma pós-graduação – no Brasil.
Para isso, é importante pensarmos na questão das datas comemorativas. Na sequência de datas
da figura abaixo,

1822
1922
1972
2022
vemos primeiro o ano da proclamação de independência, um pouco apagado com relação às demais.
Duzentos anos depois, essa efeméride parece bem pálida diante das comemorações generalizadas
dos cem anos da Semana, mostrando uma muito maior valorização da independência criativa
proclamada pelos modernistas do que da constituição do Brasil como nação soberana. Em
1972, passados 50 anos de 22, ocorreram ruidosas comemorações oficiais do sesquicentenário
da Independência, mas, marginalmente, a força das ideias modernistas revelava-se então em
grande exuberância na prevalência de um novo movimento insurgente, a Tropicália, apesar da
repressão da ditatura militar. A eclosão do movimento tropicalista ocorrera no fim de 1967, mas
cinco anos depois Caetano Veloso e Gilberto Gil estão em plena atividade e são reconhecidos
como duas das mais vigorosas figuras da cena cultural brasileira. O emblemático ano de 1968,
ano de revoltas estudantis por todo o mundo e de acirramento dos confrontos políticos entre
exército e manifestantes no Brasil foi o ano de incorporação do acervo Mário de Andrade ao IEB
da USP. Em 1972, empreende-se a edição da coleção de obras de Oswald de Andrade. Não se
via qualquer contradição entre o apoio público às comemorações do modernismo pelo governo
militar, simultaneamente às comemorações oficiais do sesquicentenário da independência. Isso
parece, a princípio, um sintoma de tentativa de oficialização da memória do modernismo, como
forma de neutralizar essa memória. No entanto, revolver a herança modernista não poderia
deixar de trazer à tona a ebulição criativa que os participantes da Semana produziram na
época, provocando respostas nada oficiais por parte dos artistas e críticos dos anos 70. Se as
comemorações oficiais concentraram-se basicamente em São Paulo, umbigo do movimento, em
Minas aconteceu uma avaliação importante do modernismo durante o Festival de Inverno da
UFMG, em Ouro Preto. Em meio à festa que era o Festival de Inverno (sou testemunha ocular
da história), promoveu-se um curso sobre o modernismo que depois se transformou em um
livro já clássico sobre o movimento iniciado em 22. O curso consistia em uma série de palestras
a cargo de grandes nomes da intelectualidade brasileira, grandes leitores da cultura brasileira,

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como Benedito Nunes, Affonso Ávila, Silviano Santiago, Luiz Costa Lima, Décio de Almeida
Prado, Aracy Amaral, Francisco Iglesias e muitos outros, num total de 17 palestras3. Não apenas
se celebrava o movimento modernista ali, não apenas se ritualizava ou monumentalizava, mas
se reeditava, se editava, se decupava e se projetava todo o desejo de pesquisa estética, que, como
sintetizou Mário de Andrade, guiou a atuação dos modernistas. Nós, alunos, sentíamo-nos
chamados a compor a onda de renovação cultural que retomava o impulso modernista cinquenta
anos depois. O Festival de Inverno era o retrato de uma convergência dos campos universitário
e artístico que viam, ambos, na Semana de Arte Moderna, uma inspiração para a resistência
cultural a um estado de repressão e perseguição tanto de professores como de artistas.
Essa resistência encontrou no “herói sem nenhum caráter” uma senha para o espírito de
renovação que invadia a cultura brasileira com a mesma força com que tomava a arte e a cultura
em seus âmbitos eruditos e populares simultaneamente. O significante Macunaíma circulou, nos
anos 70 e 80, das maneiras mais diversas. No âmbito mais geral, a retomada inclui uma recriação
cinematográfica do herói marioandradino já em 1969 e um samba enredo da Portela no desfile
de 1975. No âmbito universitário, a data de 1972 é marcada pela defesa de tese de Haroldo de
Campos, orientado por Antonio Candido, com o trabalho Morfologia do Macunaíma.
Por essa época, vários professores da Universidade Federal de Minas Gerais preparavam e
defendiam suas dissertações de mestrado (lembre-se que os professores universitários raramente
tinham pós-graduação ao serem contratados), muitos deles na PUC-Rio, em um programa de
mestrado iniciado em 1970. O mestrado em Letras da UFMG foi estabelecido em 1973. Vários
programas de pós-graduação estavam sendo criados pelo país no mesmo período. Desde 1965,
o Governo Federal, profundamente identificado com o modelo acadêmico norte-americano,
vinha adotando medidas apoiadas nesse modelo para formalizar a pós-graduação, que passava
a ser reconhecida como um novo nível de educação, além do bacharelado. A pós-graduação
da USP é credenciada em 1969, apesar de atribuir já anteriormente títulos de doutorado que
seguiam parâmetros variáveis de área a área. Com o novo sistema, era preciso fazer um mestrado
antes de se pensar num doutorado. Os cursos de pós-graduação passaram a se multiplicar no
país, o que ensejou a crítica de José Guilherme Merquior, titulado na Sorbonne, na França,
segundo o qual, as universidades “brotavam” “numa expansão demasiado rápida para ser levada
a sério”. Em sua avaliação, “os ignorantes se diplomam e se doutoram às centenas”4 ...
Por que trago aqui a trajetória da universidade brasileira quando o tema é modernismo? Porque
se trata, em ambos os casos, de uma construção em rede. O aspecto tentacular do modernismo
paulista – o fato de que tanto o ramo antropofágico, com Oswald de Andrade à frente, como
o ramo “sério”, representado por Mário de Andrade, não mediram esforços para estabelecer
contatos com escritores simpatizantes do movimento em todas as partes do Brasil – foi essencial
para que o movimento se impusesse como parte integrante de uma literatura nacional antes
totalmente imantada pelo Rio de Janeiro.
Da mesma forma, a proliferação de universidades e cursos de pós-graduação pelo país em um
sistema organizado e centralizado pelo Ministério da Educação sediado em Brasília criou, a
partir de 1965, uma rede universitária brasileira onde antes pontuava a USP como ponto de fuga
de instituições de ensino menores e menos importantes.

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Naturalmente, isso não significa que a ainda então Capital Federal tenha perdido, com a
emergência do modernismo paulista, sua importância como ponto agregador de escritores que
ali iam ter, advindos de todos os estados do país. Mas o fato de até hoje existir uma disputa às
vezes surda, às vezes explícita, sobre a primazia da modernidade literária por cariocas e a pouca
reação que essa disputa desperta nos paulistas mostra que o podium se tornou indiscutivelmente
partilhado pelas duas capitais. Já em 1942, quando Mário de Andrade faz – no Rio – a conferência
em que avalia a Semana de Arte Moderna 20 anos depois, o autor de Macunaíma dedica vários
parágrafos à argumentação de que o movimento modernista só poderia nascer em São Paulo. A
mesma discussão ressurge com o Concretismo, de cujo surgimento alguns cariocas reivindicam
a primazia.
Da mesma forma, 50 anos depois da Semana, não se pode dizer que a relevância da USP foi
diminuída pela crescente produção científica de alto nível em outras universidades pelo país,
no qual UFRGS, UFMG, UFRJ e outras passam a ser reconhecidas pela excelência (sem contar,
é claro, com a liderança da PUC-Rio nos estudos literários). Mas é sintomático que, nos anos
70, a dominância da leitura sociológica uspiana que tem em Antonio Candido sua figura de
proa comece a ser contestada por professores brasileiros de formação francesa marcada pelo
estruturalismo e que, mesmo em São Paulo, a PUC, na figura de Haroldo de Campos, encabeçasse
uma acerba crítica à Formação da Literatura Brasileira.
Outras vozes surgiam e justamente Macunaíma tornou-se alvo da disputa de território interpretativo:
descontente com a leitura formalista feita por Haroldo de Campos do livro de Mário, de quem era
prima, Gilda de Mello e Souza a contesta no seu O tupi e o alaúde, publicado em 1979.
Em 1982, uma voz mineira juntou-se aos intérpretes de Macunaíma, desta vez sob uma ótica
também de inspiração francesa, a da intertextualidade e da semiótica kristeviana, com toques
deleuzianos: a de Eneida Maria de Souza, que desafiava, assim, a primazia dos paulistas na
produção de uma hermenêutica da obra prima de Mário. A opção por esse tema de tese, como
Eneida conta em seu livro-memorial Tempo de pós-critica, foi quase fortuita e em certa medida
motivada pela publicação de uma tradução de Macunaíma para o francês no ano de início do
processo de doutoramento de Eneida em Paris. A publicação tardia desse trabalho defendido
como tese em 1982 e mesmo a acanhada edição em que foi inicialmente dada ao público
prejudicaram a repercussão da tese. Mas, na UFMG, nós, alunos do mestrado, tivemos acesso a
seu conteúdo antes mesmo que a tradução brasileira estivesse pronta.
Entrei no Mestrado na UFMG em 1983, quando Eneida acabara de voltar do exterior, e tive a
oportunidade de ser aluna de seus cursos. Meu mestrado era em Literatura Inglesa, mas meu
projeto envolvia Macunaíma – o livro e a personagem – em contraste com Alice de Lewis Carroll.
Mais tarde, Eneida, que participara da minha banca de defesa, incluiu um parágrafo em seu livro
Tempo de pós-crítica, no qual fala da minha dissertação como “a ressonância mais curiosa” suscitada
por sua tese. Ela destaca, no meu trabalho, o fato de que “é a partir de Macunaíma que se lê Lewis
Carroll, e não o contrário”, invertendo “de forma irônica” a questão da dependência cultural.
Uma terceira aparição de Macunaíma marcou esse período na pós-graduação da UFMG: José
Miguel Wisnik, que havia pouco se tornara professor da USP, veio a Belo Horizonte fazer uma
palestra sobre o “herói sem nenhum caráter” em um encontro de Literatura Comparada de

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âmbito nacional. A ideia do encontro era fortalecer essa disciplina relativamente recente no
Brasil, aumentando o espectro de estudos comparados por todo o território nacional. Isso se
faria através de uma associação brasileira de Literatura Comparada. Lembro-me de ter assinado
um abaixo-assinado em favor da criação de uma associação desse tipo, em 1985, mas a história
oficial da ABRALIC informa que a ideia surgira durante um congresso internacional em Paris,
em agosto daquele ano, sob a bênção de Antonio Candido e – como diz o texto oficial – repetia
o gesto de Oswald de Andrade em 1924, quando, da Place Clichy, em Paris, o poeta modernista
redescobriu o Brasil. Essa narrativa mostra que cada esforço de “atualização da inteligência
nacional” e cada ampliação de horizontes da pesquisa no Brasil precisava e precisa ainda hoje se
reportar a esse momento inaugural da literatura brasileira, que apaga outros momentos inaugurais
anteriores, estabelecendo-se como a legítima memória de fundação da nossa literatura.
Eu gostaria de lembrar, no entanto, que no encontro belorizontino de novembro de 85 – não
mencionado na história da ABRALIC – a USP foi, de certa forma, alvo da resistência dos
professores de outras universidades, as federais, que se entendiam como rede: a palestra de
Wisnik foi acompanhada de um constante ruído depreciativo da plateia, que surpreendeu o
palestrante. No entanto, Antonio Candido, orientador de Wisnik, é homenageado como avalista
da nova associação, reafirmando a autoridade de nossa universidade maior.
Mas é o fato da constituição do modernismo como memória de fundação que pretendo
sublinhar aqui, a partir desses exemplos. Voltemos à já clássica distinção de Jacques Le Goff
entre documento e monumento. Em seu texto, Le Goff lembra o tratamento desses conceitos por
Paul Zumthor, que usa o termo “tradições monumentais”. Zumthor argumenta que uma prática
linguística qualquer transforma-se em monumento ao ser particularizada e reconhecida como
vernáculo. Conforme Le Goff, “Assim, Paul Zumthor descobria o que transforma o documento
em monumento: a sua utilização pelo poder” (LE GOFF, 1990, 470). A seguir, Le Goff descontrói
a oposição documento/monumento, mostrando que um documento também é objeto de uma
monumentalização. O historiador chega, ao fim do artigo, a outra oposição: memória coletiva x
ciência histórica. Para esta última, “trata-se de pôr à luz as condições de produção e de mostrar
em que medida o documento é instrumento de um poder” (p.476).
Essa distinção fica muito clara, no nosso caso, se opusermos uma “história da literatura brasileira”
a uma “memória da literatura brasileira”, se opusermos uma “história da universidade brasileira”
a uma “memória da universidade brasileira”. No caso da segunda opção, cabe a caracterização
da memória como “socialmente valorizada”, como coloca Miguel Duarte em seu livro sobre
a rede modernista nacional. Duarte explica: “A constituição de obras e autores como objetos
de comemoração, ou seja, de memória socialmente valorizada, é uma forma relativamente
mensurável do prestígio literário” (DUARTE, 2021, 24).
Não basta aqui falar de inclusão no cânone. É claro que a entrada no cânone é uma
monumentalização, mas os títulos do cânone estão por princípio imobilizados, embora
possam posteriormente ser alvo de disputa ou descrédito e, assim, não sustentar sua posição
a longo prazo (séculos). A história da literatura dá conta disso. Quando uma obra, um autor,
um movimento chegam a fazer parte da memória coletiva, temos uma situação semelhante
àquela que T.S. Eliot identifica no cânone, que, estando sempre completo, pode constantemente

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permitir a entrada de novas obras ou ver outras apagadas sem que deixe de estar completo e
imóvel. O monumento erigido na memória coletiva será ao mesmo tempo intangível e objeto
de depredação e reconstrução constantes. Isso acontece porque o fato monumentalizado – no
caso de uma literatura nacional (o mesmo acontece com relação à uma cultura nacional, mas
a cultura não se constitui em cânone da mesma forma) – dá sentido a essa literatura. Ou seja,
funciona como memória de fundação. Parece evidente hoje que a obra de José de Alencar, que
escreveu praticamente um romance para cada região do país, não funciona como memória de
fundação nem dá sentido à literatura brasileira. Macunaíma, ao contrário, permanece como
ícone da discussão fulcral sobre o reconhecimento por parte da literatura de que não há como
separar, na cultura brasileira, o repertório popular interno, a produção erudita interna e os
influxos externos.
A matéria viva da memória epitomizada em Macunaíma garante que, em 2019, a versão teatral
da obra por Bia Lessa seja um dos principais espetáculos do ano. Em 1978, outra peça sobre
o herói sem nenhum caráter, em montagem de José Celso Martinez, tinha sido encenada
com grande repercussão. Como o filme e o desfile da Portela mostram, a memória da obra
está sempre em disputa e em construção, sem jamais obliterar o seu caráter monumental.
Macunaíma, que segundo Arthur Nestrovski, é “a única unanimidade” nas listas de leituras
obrigatórias dos principais vestibulares5, é de novo “desvendado” em 2001, a pedido da Folha
de São Paulo, em sua coleção Folha Explica, por Noemi Jaffe, professora da USP, que inclui no
volume um resumo de várias interpretações críticas anteriores, todas produzidas também na
USP. Mas já ficou patente a essa altura que a memória do modernismo via Macunaíma não se
detém mais em São Paulo, e sim é vista como o patrimônio do país que pode ser reinvindicado
a partir de qualquer região ou cidade. Hoje, a tendência é voltar ao significante “Macunaíma”
em sua origem amazônica e indígena, pois se tratava de uma divindade dos Makuxi, Com
isso, se recupera uma das fontes do livro de Mário, as narrativas recolhidas por Koch-Grünberg
em Roraima e abre-se a possibilidade de atravessá-lo por exemplo por meio do livro de Davi
Kopenawa, A queda do céu.
Isso mostra que Macunaíma – e com ele outros textos e traços do modernismo dos anos 20 – é
memória viva e produz memória viva, apesar de , como argumenta Miguel Duarte, ser também
memória monumental. Entende-se então a semelhança de dois títulos recentemente lançados
sobre a Semana de Arte Moderna: 1922 – A semana que não terminou, do jornalista Marcos
Augusto Gonçalves e A semana sem fim, de Frederico Coelho. O primeiro se concentra nos
acontecimentos da semana, mas lembra que ela tem em comum com os nossos dias acontecer em
época “de rápida mudança tecnológica e reavaliação do passado” (texto da orelha). O segundo
acompanha nove décadas de recepção do modernismo, durante as quais a importância do
movimento varia entre picos e vales, predominando entretanto os pontos de maior valorização.
No fim do volume, Coelho constrói uma linha do tempo por década, onde inclui acontecimentos
políticos e sociais de vários tipos, além dos fatos propriamente literários ou de fortuna crítica.
A figura a seguir é reproduzida a partir do livro de Frederico Coelho, como índice da constante
retomada do modernismo em nossa história:

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200
1993-1994

Nessa configuração, é como se todo grande acontecimento nacional passasse a fazer parte de um
percurso ou decurso impulsionado pela Semana de Arte Moderna que, em lugar de se confinar
no tempo, desenvolve-se indefinidamente “contaminando”, talvez, ou dando sentido ao futuro,
como o dá ao passado.
A memória coletiva se revela então como um patrimônio “genético” de uma comunidade6, de
uma sociedade, de uma cultura. Um patrimônio que pode ser ativado a qualquer momento e,
exemplarmente, como sugere Walter Benjamin, nos momentos de perigo. A literatura desde
sempre impulsionou a memória coletiva, e sempre foi reconhecida como esse patrimônio sem o
qual a comunidade humana não pode sobreviver. Já a universidade, apesar de sua carga simbólica,
nem sempre é reconhecida como equipamento de sobrevivência. No momento histórico
nacional em que nos encontramos, entretanto, as ameaças que pesam sobre a universidade
brasileira nos despertam para os terríveis efeitos sobre a sociedade de uma destruição desses
espaços de promoção do saber. Talvez diante dessas ameaças, pareça-nos enfim essencial criar
uma memória da universidade, para além de uma história pacificada.
Neste mês de abril de 2022, o vice-presidente da República, o general Mourão, perguntou qual
seria o sentido de revisitar a tortura e morte dos opositores do regime militar dos anos 60 e 70,
já que todos os envolvidos estão mortos (e, com sorte, até enterrados). Mortos e enterrados
estão também os modernistas de 22. Macunaíma transformou-se em estrela e subiu ao céu. No
entanto, permanecem vivos no nosso presente como hão de estar em nosso futuro.
A cínica pergunta do general torna manifesta a verdade contida na sentença de Walter Benjamin:
“Também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer”. Do mesmo modo, o poeta
italiano Giuseppe Ungaretti afirma, no poema abaixo, estar toda a vida dos vivos pendente de
sua capacidade de ouvir os mortos:

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201
NON GRIDATE PIÙ

Cessate di uccidere i morti


non gridate più, non gridate
se li volete ancora udire,
se sperate di non perire.

Hanno l’impercettibile sussurro,


non fanno più rumore
del crescere dell’erba,
lieta dove non passa l’uomo.

NÃO GRITEM MAIS


Parem de matar os mortos,
Não gritem mais, não gritem
Se ouvir ainda os quiserem,
Se imperecer ainda esperam.

Eles, sussurro imperceptível,


Não fazem mais ruído
Que o mato quando cresce,
Alegre, onde homem não passa.
(Trad. Aurora Bernardini)

[Dedico este texto a Eneida Maria de Souza].

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202
Referências bibliográficas
ÁVILA, Affonso (Org.). O Modernismo. São Paulo: Perspectiva, 1975.

ÁVILA, Myriam. Alice through Macunaima’s looking-glass. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de
Minas Gerais. 1986

COELHO, Frederico. A semana sem fim. Celebrações e memória da Semana de Arte Moderna de 1922. Rio de
Janeiro: Casa da Palavra, 2012.

DUARTE, Miguel de Ávila. Leite Criôlo. Da rede modernista nacional à memória monumental do modernismo.
Belo Horizonte: Impressões de Minas, 2021.

GAMA, Rinaldo. Noemi Jaffe também faz da sua uma “obra aberta”. Em: https://www1.folha.uol.com.br/folha/
ilustrada/ult90u381038.shtml . Consultado em 20/09/22.

GONÇALVES, Marcos Augusto. 1922 – A semana que não terminou. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

Le Goff, Jacques, História e memória. Trad. Bernardo Leitão [et al.]. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990.

SOUZA, Eneida Maria de. A pedra mágica do discurso. 2 ed. revista e ampliada. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 1999.

SOUZA, Eneida Maria de. Crítica Cult. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

SOUZA, Eneida Maria de. Tempo de pós-crítica. Belo Horizonte: Veredas & Cenários, 2012.

Notas
1 Texto apresentado no ICHS-UFOP em 26 de abril de 2022.

2 Myriam Ávila -

3 As palestras foram reunidas por Affonso Ávila no livro O Modernismo (Ed. Perspectiva, 1975).

4 Apud Souza, 2002, p.18.

5 Apud Gama, Rinaldo. (2001)

6 Ou o que Stuart Hall denomina comunidade imaginada.

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203
ARANHAS E SUAS TEIAS:
ALGUNS (DES)FIOS SOBRE ANA
HATHERLY E SALETTE TAVARES

Alice da Palma1

A
na Hatherly e Salette Tavares, duas multiartistas, foram importantes nomes da arte
portuguesa desde a década de cinquenta. Ambas participaram, tornando-se expoentes
de maior importância e nomes incontornáveis, do movimento português de Poesia
Experimental (PO-EX), vanguarda experimental dos anos 1960. As únicas mulheres2.
Salette Tavares nasceu em Lourenço Marques (atual Maputo), em Moçambique, em 1922,
mudando-se para Sintra, Portugal, aos onze anos. Graduou-se em Ciências Histórico-Filosóficas
pela Universidade de Lisboa. Leciona Estética na Sociedade Nacional de Belas Artes e na AR.CO.
Além disso, publica artigos teóricos na revista Brotéria. Em 1957, publica o seu primeiro livro
de poemas, Espelho Cego, no qual já se pode observar o seu interesse crescente pela exploração
do texto em seu caráter visual, i.e., enquanto composição gráfica. Poesias feitas para serem lidas
e, também, vistas, em igual medida. Ela introduz, nesses seus poemas inaugurais, desalinhos,
espaçamentos, intervalos e quebras, de tal forma que eles adquiriram uma expressão visual que
os amplia as possibilidades da palavra, desdobrando-a. Em sua investigação das potencialidades
da palavra, Salette Tavares cria um espaço alargado de possibilidades para sua própria atuação:
foi poeta, crítica, tradutora, ensaísta, artista visual, performer etc.
Ana Hatherly nasceu na cidade do Porto, em Portugal, em 1929. Licenciou-se em Filologia
Germânica pela Universidade Clássica de Lisboa e obteve diploma em técnicas cinematográficas
pela International London Film School. Fez doutorado em Estudos Hispânicos do Século de Ouro
pela University of California, Berkeley. Foi poeta, precursora em Portugal da poesia concreta (o
primeiro poema concreto a ser publicado nesse país, no ano de 1959, é de sua autoria), artista
visual, performer, escritora, realizadora e professora catedrática em Lisboa.
Para este artigo, escolhi cinco obras dessas duas mulheres. De Ana, Margarida ao tear e Le
plaisir du texte , escritas-desenho de A reinvenção da leitura: breve ensaio crítico seguido de 19
textos visuais, publicado em 1975 (pp. 42 e 48, respectivamente). De Salette, Aranha, de 1963,
publicada em seu caderno no primeiro número da revista Poesia Experimental, em 1964;
Aranhão, de 1978; e Borboleta de Aranhas, de 1979.
Aranhas se multiplicam nas sedas secretadas e nas teias tecidas-escritas por Ana e Salette.

*
Aranhas são bichos que produzem fios. Fios que chamamos de seda, seda das aranhas. Todas elas,
se forem mesmo aranhas, produzem suas sedas (algumas chegam a produzir até sete diferentes
tipos de seda!). Essas sedas são produzidas em órgãos específicos, fiandeiras ou fieiras.
Aranha, o bicho que tece, que transforma sua baba em fio e, do fio-baba, tece teias, teias que,
como complexos labirintos3, prendem suas presas e depois as enredam num casulo mortuário
(o casulo é a vida que urge em morte).

(Seria a aranha a um só tempo arquiteto que projeta e constrói o labirinto e o monstro que
devora quem nele fica preso?)

De cada mulher sai um único fio que se estende pela sala, como se elas
fossem aranhas, como se o fio saísse direto das suas barrigas. (...) Elas estão
fiando, e estão presas na teia.
SOLNIT, 2017, p. 52

Etimologicamente, aranha vem do grego arachne, donde originou o latim araneus. Aracne é o
nome de uma protagonista de mito grego, cuja versão mais conhecida foi contada por Ovídio
no em suas Metamorfoses4. Narra o poeta romano que Aracne foi uma tecelã da Lídia 5 cuja
excepcional habilidade para tecer e costurar era admirada até mesmo por ninfas, que iam
contemplar suas belas criações6. Porém, a vaidade da tecelã a levou a se comparar com a deusa
Atena, que, enraivecida, a desafiou. Aracne teceu uma tapeçaria narrando as traições de Zeus,
pai de Atena; e a deusa, por sua vez, tece uma contando os feitos dos seres olímpicos e dos
heróis. Atena, não encontrando defeito no trabalho de sua rival, rasga a tapeçaria. Desesperada
com o ciúme de Atena, a jovem tecelã acaba se enforcando nos fios de sua obra despedaçada.
Atena, então, se apiedada de Aracne e solta os fios que apertavam seu pescoço, fios esses que
se transformam em uma teia; a jovem lídia, por sua vez, metamorfoseia-se em uma aranha,
destinada a tecer eternamente.

Orgulhosa, a infeliz não aguentou e atou um laço ao pescoço.


Compadecida, Palas7 susteve-a, quando já estava suspensa,
E falou-lhe assim: “Vive, todavia, mas vive suspensa, malvada.
E, para não teres esperança no futuro, seja a mesma pena
Decretada para tua família e teus mais remotos descendentes.”
Depois, ao partir, aspergiu-a com a seiva da erva de Hécate.
Ao serem atingidos pela sinistra peçonha,
Os cabelos caíram e, com eles, caíram o nariz e as orelhas,
A cabeça reduziu-se-lhe, e todo o corpo ficou diminuto.
Em lugar de pernas, pendem lateralmente uns mirrados dedos.
Tudo o que mais é ventre, de onde, contudo, desprende ela um fio.
E, sendo ela aranha, vai tecendo as antigas teias.
OVÍDIO, Metamorfoses, VI 134-145

TEXTO-TECIDO
No seu estado de dicionário, texto é o conjunto de letras, palavras e frases que se organizam em
começo, meio e fim nos suportes da matéria escrita. Porém, ao despertarmos a palavra desse seu
estado (mudo e solitário) descobrimos que o texto vem de textum que, por sua vez, deriva de
texere, raiz comum de aparentados seus: tecido, tessitura, tecer, têxtil e textura.

Etimologicamente, a palavra ‘texto’ quer dizer tecido, e a palavra ‘linha’,


um fio de tecido de linho. Textos são, contudo, tecidos inacabados: são
feitos de linhas (da ‘corrente’) e não são unidos, como tecidos acabados,
por fios (a ‘trama’) verticais. A literatura (o universo dos textos) é um
produto semiacabado. Ela necessita de acabamento. A literatura dirige-se
a um receptor, de quem exige que a complete. Quem escreve tece fios, que
devem ser recolhidos pelo receptor para serem urdidos. Só assim o texto
ganha significado. O texto tem, pois, tantos significados quanto o número
de leitores. (...) Portanto, o texto não ‘tem’ um destino, ele ‘é’ um destino.
FLUSSER, 2010, pp. 63-64

Escrever um texto é, então, análogo ao tecer, ou seja, é a construção de uma trama pelo
entrelaçamento de fios. No texto-tecido cada fio alterna-se com os demais em movimentos de
pontos, nós, laçadas que mantêm sua coesão. Assim, cada tecido vai constituir a sua trama em
texturas (uns mais sedosos, outros, ásperos) e espessuras únicas, formando sua própria tessitura.
O texto é tecido, escrever é tecer.

(...) o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo;


perdido neste tecido – nessa textura – o sujeito se desfaz nele, qual uma
aranha que se dissolvesse ela mesma nas secreções construtivas de sua teia.
BARTHES, 2015, p. 75

*
SALETTE
Na obra de Salette há três poemas visuais que estão ligados à imagem da aranha: Aranha,
tipografia de 1963; o Aranhão, serigrafia de 1978; e a Borboleta de Aranhas, colagem de 1979.
Aranhão e Borboleta de Aranhas surgem num processo de multiplicação da primeira aranha.
Aranha foi publicada no seu caderno, que tinha como título um sugestivo “Brin Cadeiras”, da
primeira revista da Poesia Experimental 8. Em carta a Ana Hatherly 9, enviada anos mais tarde
10
, Salette explica como surgiu a imagem da aranha:

Devia ter sido Carnaval há pouco tempo e estava ali uma aranha dos meus
filhos, que deu origem a uma série de desenhos que guardo e penso publicar.
Daí resultou a aranha, que todos conhecem feita em letraset.

A princípio, inclusive, ela teria sido feita manualmente por Salette, i.e., caligraficamente, como
ela mesma conta ainda nessa carta a Ana Hatherly:

A ARANHA era um Carnaval complexo, a Ana sabe-o pela tradução que


fez para as edições americanas, na raiz está o desenho com caneta fina, o
meu gosto de escrever, por um grafismo com que brincava no treino de
escrever muito e ainda com braço e mão… Pela escrita em letras finíssimas
saiu a aranha que em letraset perdeu muito.

Não temos registro, porém, dessa primeira versão da Aranha. Temos, isso sim, a versão em
tipografia publicada na revista.
Nela, a forma da aranha é desenhada a partir de um jogo visual e sonoro feito com palavras:
“arre” funciona como a cabeça (em tamanho maior e circunscrito entre parênteses deitados,
na horizontal) e as patas da aranha (em tamanho menor, repetida nas patas 4, 5 e 6 vezes);
“arrrranha” constitui-se como o corpo do animal, esticada numa vertical; “arrranhisso”, na
horizontal (posicionamento mais tradicional das palavras no espaço da folha) e “arranh /
aço”, que se dobra formando uma espécie de L invertido ou foice, formam linhas da seda desta
estranha aranha, fios que prefiguram uma teia futura, talvez. A aranha está, então, a tecer.
Ela ocupa um lugar central na folha branca, deixando um vazio propositado em seu redor. O
som da aranha que fia sua seda e tece sua teia reverbera-se no espaço: rrrrrrrr ssssss. Escrita,
forma, som interligam-se e afetam-se nessa brin-cadeira de Tavares, ela mesma a aranha-mãe
que nos captura em sua teia – somos nós as suas presas.
Aranha, que brinca e captura seu observador-leitor, trabalha importantes noções dentro da
poética de Salette Tavares: a escrita, a forma, o visual, o sonoro, o lúdico. Assim, não é de
espantar que Tavares a tenha multiplicado, replicado e/ou reproduzido. E nessas reproduções
de sua aranha inicial, Salette opera uma multiplicação poeticamente programada. A aranha
metamorfoseia-se em outra aranha e numa borboleta. Surgem assim Aranhão e Borboleta de
Aranhas.
Em Aranhão, utiliza diversas escalas e letras em outline (apenas o contorno), criando um
emaranhado de diferentes texturas na folha. A forma inicial da aranha permanece, mas ganha
em corpo e espessura, a trama avoluma-se. Uma aranha maior e peluda é formada, tendo em suas
patas diversas aranhas menores, iguais à primeira de 1963. Aquela talvez fosse uma pequenina
ainda, agora metamorfoseia-se em tarântula. Quase pode-se sentir as cerdas que cobrem seu
corpo na pele, ora roçando – arrrranha –, ora acariciando - arrranhisso – e, por fim, a picar –
arranh /aço.
Borboleta de Aranhas é uma colagem de diversas Aranha(s). O que antes eram os fios de seda, aqui
tornam-se antenas. Seus corpinhos (onde distinguíamos cabeça, corpo e pernas) dispostos na
diagonal formam as asas do inseto, seus padrões e escamas. As asas de borboletas são compostas
por escamas sobrepostas que servem para camuflagem e também isolamento térmico. Aqui as
escamas são aranhas. Aranhas que agora tornam-se mecanismo para voar. E o espaço em volta
da aranha-borboleta vibra, em ondas produzidas pelas asas que estão prestes a bater.

ANA

Em 1972, um amigo disse-me que às vezes pensava em mim vendo-me


como uma aranha especial tecendo as minhas redes-escritas. Pensei nisso
e depois vi-me como uma grande aranha de alumínio, cuspindo fitas de
letras de arame de aço. Sempre tive medo de aranhas.
HATHERLY, 2006, p.106

Ana, apesar de sua aracnofobia – sempre tive medo de aranhas – , traz a imagem da aranha para
o centro de sua poética, seja em acepções mais literais, mais líricas e até mesmo gráficas. Ela
transformou-se nessa “aranha especial” a tecer “redes-escritas” em diversos momentos, como
em Margarida ao tear e Le plaisir du texte , escritas-desenho de A reinvenção da leitura (pp. 42 e
48, respectivamente). Duas glosas visuais, a primeira do poema Gretchen (am Spinnarade allein)
11
– comumente traduzido para o português como “Margarida ao fiar” ou “Margarida à roca de
fiar” – do autor alemão Goethe 12; e a segunda do livro homônimo de Barthes.
Em Margarida ao tear é o nome da personagem, Gretchen, repetido por Ana no centro da
composição, que ganha destaque, virando uma espécie de coluna vertebral do texto. O nome,
repetido sozinho nessa coluna, reverbera o título do poema não somente no nome da personagem,
mas também na condição em que se encontra Gretchen frente à roda de fiar, sozinha – allein. No
topo, a cabeça – “meu pobre senso / se desatina / a mísera alma / se me alucina” 13 (GOETHE,
2004, p. 273) – acima da coluna, lembra a imagem de uma aranha com suas várias pernas de
onde se desgarra o nome da mulher atormentada pela paixão – “[...] em igualmente provisórias
patas que singularmente / davam origem a uma excrescência vertical e / rendilhada uma espécie
de cauda aberta rígida que / aqui se chamavam singularmente costas” 14 (HATHERLY, 2001,
p.137). Desgarra-se e escorre vertical, como a baba que vira fio para logo abaixo convulsionar-se
em uma teia espessa e caótica – se me alucina – de onde saem novos fiapos até uma pequenina
aranha sobre um solo de escrita na horizontal. Nesse movimento vertiginoso, Ana descreve
visualmente o movimento de queda da personagem, queda em pecado – ela afasta-se de Deus
para deitar-se com o amado – e também em loucura – passa a sofrer de alucinações. Ilegíveis,
a não ser por algumas palavras (como o nome Gretchen) e sinais (como as interrogações e
exclamações – que também elas descrevem o tumulto interno da personagem, da dúvida – ? ?
? – ao cair – ! ! !) os versos de Goethe se deixam adivinhar nesse movimento.
Ainda mais ilegível é a escrita-desenho de Le plaisir du texte, em que o texto glosado se torna
uma trama de garatujas fibrilares, um tecido vibrátil sobre o qual passeia uma aranha espessa
e peluda. Se olharmos bem, são as próprias aranhas, fiandeiras, que secretam (e aqui nos
interessa também a secreção como segredo) o texto sob o texto tramando-lhe a textura e nela se
dissolvendo. Já não importa a palavra ou o significado, mas a própria escrita. O texto barthesiano
se transforma visualmente em hyphos, e “hyphos é o tecido e a teia de aranha” (BARTHES, 2015,
p. 75). E Ana se transforma na aranha, a tecelã Aracne metamorfoseada, e se impregna no tecido
– se dissolve, como escreveu Barthes – , deixando o vestígio de seu trabalho de fiar (ou desfiar)
o texto de outrem, seu gesto de glosa.

escrevo porque descrevo e descrevo porque descrevendo


o tempo inscreve-se nas linhas imaginárias por onde
escrevo o que descrevo as parábolas que descrevo
escrevendo descrevendo desescrevendo
HATHERLY, 1987, p. 44

Ana Hatherly e Salette Tavares metamorfoseiam-se em aranhas, como ocorrera com Aracne,
mas aqui não há castigo, só experimentação e criação. Tecelãs de escritas-imagem, criam através
do gesto de escrever-tecer, desescrever-destecer, escrever desescrevendo, tecer destecendo.
Escorregam as estruturas textuais em imagem. Brincam com quem olha-lê, apelando aos
sentidos, criando sons e texturas. Tecem suas teias sobre nós, capturando-nos. E nesse casulo
de escrita (palavras, letras, linhas, fios) nos recriamos e transformamos. Trata-se mesmo de
metamorfose: reinvenção, recriação da e na leitura ativa. Viramos nós também aranhas.
A metamorfose está completa.

*
Este texto é também tecido.
Quem escreve, tece. Quem analisa, destece. Análise vem do grego aná + lysis, indicando um
gesto de afrouxar ou soltar, daí, desfiar.

Estranhas criaturas as que tecem.

Referências
ALVES, Margarida Brito e PRIOR, Patrícia Rosas. “Os diálogos criativos de Salette Tavares”. In: Revista-Valise,
Porto Alegre, v. 6, n. 11, ano 6, julho de 2016

BARTHES, Roland. O prazer do texto. Trad.: J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2015.

FLÜSSER, Vilém. A Escrita: Há futuro para a escrita?. Trad. M. J. da Costa. São Paulo: Annablume, 2010.

GOETHE, Johann Wolfgang. Fausto: uma tragédia. Trad. J. Klabin Segall. 2ª ed. São Paulo: Editora 34, 2004.

HATHERLY, Ana. 463 tisanas. Lisboa: Quimera Ed., 2006

_______________. A Reinvenção da leitura. Lisboa: Futura, 1975.

_______________. “A idade da escrita: poema-ensaio”. In: Colóquio Letras, n. 99 (Setembro 1987). Disponível
em: <http://coloquio.gulbenkian.pt/bib/sirius.exe/issueContentDisplay?n=99&p=43&o=p>.

_______________. Um calculador de improbabilidades. Lisboa: Quimera Ed., 2001.

OVÍDIO, Publio N. Metamorfoses. Trad.: João Ângelo O. Neto. 1ª edição, São Paulo: Editora 34, 2017.

SOLNIT, Rebecca. Os homens explicam tudo para mim. Trad. Isa Mara Lando. São Paulo: Cultrix, 2017.

TAVARES, Salette. Poesia gráfica. Lisboa: Casa Fernando Pessoa, 1995.

TORRES, Rui. Salette Tavares: desalinho das linhas (catálogo). Lisboa: Centro Cultural de Belém, 2010.

<https://www.po-ex.net/>

<http://gulbenkian.pt/>
Notas
1 Alice da Palma - Professora substituta do Departamento de História e Teoria da Arte da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestra em Crítica, Curadoria e Teoria da Arte pela Faculdade de Belas Artes
de Lisboa (2021), bacharel em História da Arte pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2017). Pesquisa
as relações entre imagem e escrita, com foco na produção de artistas mulheres.

2 O grupo de poesia experimental português, PO.EX, contava com Ana Hatherly, Salette Tavares, E. M. de Melo
e Castro, António Aragão, Herberto Helder, José Alberto Marques e Liberto Cruz. O grupo publicou duas
revistas, intituladas Poesia Experimental, em 1964 e 1966, em que era patente a influência de Mallarmé, Pound,
Cummings e dos caligramas de Apolinalire. Ana Hatherly expandiu o interesse do grupo também para os
textos-visuais do Barroco. PO.EX é um acróstico de Poesia Experimental criado por E. M. de Melo e Castro
para a exposição PO.EX/80 (Galeria Nacional de Arte Moderna, Lisboa/1980).

3 Existe, inclusive, uma espécie de aranha que recebe o nome de “aranha do labirinto” (Agelena labyrinthica).
Esta espécie fia uma teia branca e densa com uma zona tubular (onde ela se esconde) e que é aberta em ambas
as extremidades.

4 OVÍDIO, 2017, p. 317-327.

5 Território na Ásia Menor que hoje corresponde à porção ocidental da Anatólia.

6 Op. Cit., VI 14-16

7 Nome pelo qual a deusa Atena também era conhecida.

8 O primeiro número da revista Poesia Experimental, organizada por António Aragão e Herberto Helder, foi
lançada em 1964. Teve ainda um segundo número, publicado em 1966, organizado por António Aragão, E. M.
de Melo e Castro e Herberto Helder.

9 A carta está disponível em: https://po-ex.net/taxonomia/transtextualidades/metatextualidades-autografas/


carta-de-salette-tavares-para-ana-hatherly/

10 A carta é datada de 9 de janeiro de 1975.

11 Poema de Fausto, Parte I, primeiramente publicado em 1808.

12 Johann Wolfgang von Goethe, 1749-1832, escritor e estadista alemão, considerado um dos maiores nomes da
literatura alemã e do Romantismo europeu.

13 No original, em alemão, lê-se: “Mein armer Kopf / Ist mir verrückt / Mein armer Sinn / Ist mir zerstückt”.

14 Excerto do poema Eros frenético, publicado em Um calculador de improbabilidades.


O NOME DESSA EMOÇÃO
A POESIA DE CLAUDIA EMERSON
E A METONÍMIA

Olga Kempinska1

O sábio, o observador, encaram a linguagem no passado.


Maurice Merleau-Ponty

N
o presente artigo, busco compreender o alcance intercultural da noção de concretude
da palavra poética em sua relação com a representação das emoções humanas. Ao
buscar aplicar a teoria brasileira à leitura poética dos textos da escritora sulista Claudia
Emerson, procuro também estabelecer uma relação entre a noção de concretude e a compreensão
do silêncio. Elaborada no Brasil a partir dos anos 50 como um desdobramento da abordagem
formalista do texto literário que atribuía a preponderância à materialidade da linguagem,
a teoria concretista é, de fato, contemporânea do influente trabalho estruturalista de Roman
Jakobson sobre o conceito da função poética. Ao mesmo tempo, a abordagem teórica brasileira
ultrapassa a proposta estruturalista, assinalando desde o início de sua discussão conceitual a
importância da abertura cultural à alteridade, e investigando os textos em línguas estrangeiras,
assim como as poéticas provenientes de diferentes contextos. Assim, a noção de concretude
pode ser compreendida mais como um motivo de questionamento do que como um conceito
estável, pois ao longo de quase duas décadas seu sentido sofre significativos deslocamentos, que
também tendem a se tornar pretextos de diversos experimentos poéticos.

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1. A METONÍMIA, A VELOCIDADE E A LACUNA

too late here perhaps for some


intercession the physician

speaks to his screen instead to the all


of you it has

become his words not imagined


now but real and

your sorrow is ecstatic something


you do not feel

you hear your own voice at a distance


in the abelia bush

outside at home a voiceless God


flames there late bees

a burn slow miraculous such green there


there you are
(EMERSON, 2015, p. 3)2

O poema de Claudia Emerson – um dos vários, do livro Impossible bottle , que utilizam a
expressão “metástase” – corresponde à dificuldade de se nomear as emoções humanas. Surge,
com efeito, o vocábulo sorrow, “aflição”, uma emoção que estranhamente se destaca do “corpo”
da emoção, sendo experimentada ao lado, sugerindo a diferença entre o corpo social e a carne
sensível, discutida por exemplo pela antropologia do choro. Como tentarei mostrar na presente
interpretação, a poética de Emerson valoriza a metonímia, buscando destarte reformular a
articulação da relação entre o corpo, a emoção e a linguagem, e valorizar o silêncio.

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no mistake this web’s expanse
near invisible

in cornered light the screened porch-door


open year round the world’s

entrance to it the wren’s


discovery the accident

the web become larder the spider


grocer its lovely apron

filament parcels of the air


asleep and bound and you

approve somehow of the commerce


as though agreed to

the ease of deft return the joy


such swift excision
(EMERSON, 2015, p. 18)3

No outro poema da série sobre as “metástases”, aparece o vocábulo “alegria”. Diferentemente


da metáfora que consiste em uma comparação implícita, a metonímia remete às mais diversas
relações de contiguidade, que frequentemente abrangem os estereótipos discursivos dificilmente
explicáveis, ainda que óbvios dentro de seus respectivos âmbitos culturais. É essa característica
da metonímia, não desprovida de ambiguidade, que permite também compreender seu alcance
conceitual. De acordo com as diferentes teorias, que não deixam de discordar acerca dos tipos
das relações metonímicas concretas, geralmente citando a relação entre um recipiente e seu
conteúdo, e uma causa e seu efeito – e abrindo destarte a possibilidade de se relegar a própria
distinção para com a metáfora ao âmbito da interpretação –, a metonímia estabelece uma
articulação irreversível.

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there you are in seeing
first its habit

received form the old V


a figment against

a February-blank sky
the bird deviant

albino the one become


silhouette cut-out

as in relief in flight the same


flawless as the ones

around it barest blemish


joy in its being unseen

for a moment immutable inside


your brain
(EMERSON, 2015, p. 7)4

Ao utilizar os espaçamentos entre palavras e expressões nos dísticos, os poemas de Emerson


ressaltam a natureza conceitual da concretude poética, que não se limita às articulações
onomatopaicas, e tampouco às caligramáticas, visando talvez a uma reformulação do sentido da
contiguidade, que no poema acaba por associar as formas do pássaro no céu e o ornamento quase
ilusionista. Os textos representam, com efeito, os afastamentos e os cortes, muito importantes na
formação e na formulação dos conceitos.
De fato, a metáfora sendo um mapeamento entre dois domínios e a metonímia sendo um
mapeamento dentro de um único domínio, a própria organização do conhecimento humano
depende de sua articulação dentro dos campos dos saberes específicos. Assim, os conceitos
só podem ser compreendidos dentro dos contextos de tal formulação e seu funcionamento, a
própria distinção entre o pensamento metafórico e o metonímico dependendo da possibilidade
de se traçar os limites entre os domínios.

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Pois a metonímia, sendo mais referencial, “surge das associações entre os conceitos estreitamente
relacionados na experiência humana” (ALLAN, 2008, p. 12), não dependendo de sua formulação
linguística prévia. Destarte, a metonímia coloca também em questão a traduzibilidade,
assinalando a própria dificuldade da passagem entre emoção, pensamento e linguagem. Como
no caso de outras figuras, o funcionamento da metonímia corresponde à intenção de se fazer
vir à mente um outro significado, além do literal, levando em consideração também todo um
conjunto das condições de verdade. Surge, de fato, a questão das estratégias da compreensão da
metonímia:

this this a hymn


of shadow it is here my own
translation hurry
hurry a lexicon finished
betrothal was ever this the weld
are you weary the rent
illusion that hour
this one when the thrush
can insist it is
not real and will it is nor real
(EMERSON, 2018, p. 37)5

A tarefa da tradução discursiva da experiência surge como um “hino da sombra”, do livro Claude
before time and space. A metonímia desafia, com efeito, a traduzibilidade, fazendo com que se
vislumbre a concretude dos contextos e dos fatos, que independem das palavras.
Sendo uma mudança de nome de um objeto ou de um conceito para o nome de um outro objeto
ou conceito, e dado que a relação concreta entre esses dois objetos existe no mundo real, e não
apenas na linguagem, a metonímia coloca o problema da relação entre a linguagem e a realidade,
apresentando não raramente as expressões que parecem de certa forma “prontas”.
O problema da traduzibilidade já havia sido levantado no livro Figure studies, na representação
das línguas e de seus deslocamentos. A traduzibilidade é, de fato, sempre limitada, dependendo
também dos critérios descritivos e normativos das teorias da tradução. O que, de fato, pode ser
traduzido? As palavras? Os textos? As experiências? As culturas? As línguas em deslocamento
evocadas no poema apontam para a ilusão da possibilidade de se transportar os sentidos por
meio de “equivalências”, pois a incomensurabilidade das línguas corresponde à distinção entre
o sentido e a compreensão, ou seja, a interpretação, indissociável da interpretação do todo de
um contexto:

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Seamed stockings, sensible shoes, cardigan
buttoned all the way to the top, she greets

each of them by name as they enter her classroom


rebellious, identical. They want Italian,

French, a younger teacher – anything


but this woman fluent in a language

that will not travel – the deep south of her vowels


slow as the minute hand on the grinding clock

behind her.
(…) (EMERSON, 2008, p. 10)6

2. A CONCRETUDE DA PALAVRA POÉTICA NO BRASIL

Ainda que seja por vezes associada nos primeiros textos, dos inícios dos anos 50, à mera
transposição gráfica da oralidade ou do movimento do pensamento, a concretude não pode
ser reduzida a um simples desenvolvimento das aspirações simbolistas remanescentes da busca
pela sinestesia baudelairiana, enraizada nos anseios cratílicos. O trabalho teórico de Augusto de
Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos pode ser, de fato, descrito como uma procura pelo
sentido da concretude, que ultrapassa também o desafio vanguardista, da ordem ideográfica à
ordem gramatical, que encontrou sua realização nas obras futuristas e nos caligramas relacionados
mais às práticas da caligrafia do que à escrita enquanto tal. Assim, a importância dessa pesquisa
pela concretude corresponde no pensamento dos concretistas brasileiros ao recurso experimental
aos textos dos mais diferentes âmbitos culturais. Com o passar do tempo, a concretude visa
criticamente a linguagem, sobretudo em seus aspectos de autonomia em relação à realidade.
Valorizando a ordem metonímica contra a metafórica, que pareciam ser conciliadas no conceito
da função poética, o concreto passa a significar uma relação que preexiste a sua configuração
linguística, indagando destarte a iminência da realidade. Poder-se-ia dizer que o movimento
concretista chegou a esgotar os apelos do niilismo metapoético da linguagem, atravessando o
caminho do entusiasmo à desconfiança e acabando por criticar o “clima” do poema.

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Ao se desenvolver criticamente, e ao se debruçar mais sobre os poetas brasileiros – e menos
sobre os ocidentais –, a teoria da poesia concreta em meados dos anos 50 vislumbra as palavras
que atuam como objetos autônomos, resgatando destarte a noção de objeto, afastando-se da
abstração da pura virtualidade linguística e metalinguística, ora niilista ora metafísica. Nessa
etapa, há ainda contudo a ilusão da eficácia poética da maleabilidade gráfica e sonora da palavra.
Ainda assim, o “concreto” passa a se associar aos materiais de construção: o bloco sonoro, o
cimento, o vidro. Como o sublinhou Pignatari, sem ser referencial, a palavra poética abandona
sua pretensa autonomia em relação à realidade, buscando de certa forma aderir ao objeto:
“§jarro§ é a palavra jarro e também jarro mesmo, enquanto conteúdo, isto é, enquanto objeto
designado. A palavra jarro é a coisa da coisa, o jarro do jarro, como §la mer dans la mer§”
(CAMPOS et al., 1975, p. 42). Recusando o simbolismo metafórico e a metafísica do signo, o
concretismo rejeita as essências abstratas e procura pela realidade concreta das coisas.
No fim da década dos anos 50, o conceito da concretude passa cada vez mais a remeter a uma
aspiração ao “realismo absoluto”, assinalando a distância da poética concretista para com
a mera quebra e a deformação das palavras, praticadas nos textos dos poetas ocidentais tais
como Stéphane Mallarmé, James Joyce e Ezra Pound. É nessa última fase que surge também
um diálogo dos concretistas com a fenomenologia, assim como a insistência na velocidade da
comunicação poética comparável nesse sentido à recepção dos produtos da indústria cultural.
Os poetas concretos buscam o redescobrimento fenomenológico da realidade da palavra. Ainda
que essa etapa seja depois ultrapassada, no sentido da procura da matemática da composição
e da eliminação dos elementos descritivos, é ela que parece ter sido o cerne do concretismo.
Trazer a linguagem para junto das coisas, tornar a comunicação poética mais direta constituem,
com efeito, as principais aspirações do concretismo brasileiro. Atento a diferentes formas da
escrita, dentre as quais a sintética, que utiliza um conjunto de sinais para representar uma ideia,
e a analítica, na qual um conjunto de sinais representa uma palavra, o concretismo visa a uma
economia da dicção capaz de confrontar a eficácia dos discursos da indústria cultural.
Não melancólica, a poesia concreta valoriza o presente e não o passado nostálgico, o que explica
também o efeito horrífico de alguns textos e a insistência nos elementos da visibilidade, como
também a eliminação dos verbos que garantem a ordem discursivo-cronológica do discurso.
Há, de fato, algo metonímico na relação do poema concreto com o mundo, que é irreversível,
sendo um objeto por direito próprio:

O poema concreto vige por si mesmo. Ele se acrescenta ao mundo dos


objetos como uma entidade nova, dotada de caracteres irreversíveis. Não
é uma linguagem instrumental, não é intérprete de objetos, mas sim um
objeto por direito próprio. Como tal, ele não pretende destruir e superar
o mundo objetivo natural, mas afirmar-se, autarquicamente, ao seu lado,
como objeto-ideia, como coisa-poética, regido por suas leis específicas.
(CAMPOS et al., 1975, p. 105)

Ao buscar se posicionar contra a atrofia da linguagem causada pelo preocupante florescimento


da indústria cultural, a poesia concreta não deixa de usar crítica e poeticamente de seus

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elementos, ora estéticos ora temáticos, pois no início da década dos 60, surge no trabalho teórico
dos concretistas uma consideração mais detalhada sobre a questão da estética concretista e do
uso da palavra, o menos estético sendo o caso da linguagem infantil. Aparece, com efeito, a
noção de informação estética – sem que haja a evocação do pensamento de Walter Benjamin –,
que remete à relação entre a quantidade das palavras que formam um vocabulário e a qualidade
de sua escolha.
Pois o concretismo reencontra uma relação com a positividade do silêncio por meio do
questionamento do lirismo e da atenção ao visível. Longe de ser sempre uma negatividade e
uma passividade, o silêncio pode, com efeito, remeter ao sentido, uma vez que “há um modo
de estar em silêncio que corresponde a um modo de estar no sentido” (ORLANDI, 2007, p. 11).
O imperialismo do verbal consiste, nesse sentido, na tradução do silêncio em palavras, tornada
obrigatória em alguns regimes opressivos. Assim, do ponto de vista positivo, o silêncio tampouco
é um resto da linguagem ou o implícito relegado à esfera do não-dito, ambos correspondendo a
um jogo com os limites ou com os acidentes do dizer.

3. O SILÊNCIO DAS EMOÇÕES HUMANAS

Desde que não reflita expressamente sobre meu corpo, a consciência que
dele tenho é imediatamente significativa de uma certa paisagem à minha
volta, como aquela de um certo estilo fibroso ou granuloso do objeto que
me é dado pelos meus dedos. Da mesma maneira, a palavra que profiro ou
escuto é pregnante de uma significação legível na própria textura do gesto
linguístico, a ponto de uma hesitação, uma alteração da voz, a escolha de
uma certa sintaxe, ser suficiente para modificá-la, sem, no entanto nunca
estar contida nele. (MERLEAU-PONTY, 1975, p. 323)

Na visão da linguagem elaborada por Maurice Merleau-Ponty, o silêncio corresponde aos vestígios
daquilo que foge à expressão linguística, sendo destarte comparável à memória tátil dos objetos
quando não podemos segurá-los, e menos ainda guardá-los. A realidade fenomenológica almejada
pelos poetas concretistas surge, assim, como marcada pela negatividade, correspondendo com
efeito à experiência de não ter, e de não ter tido, o que a afasta do âmbito da melancolia, a saber,
do discurso do paraíso perdido. Nesse sentido, parece duvidoso poder ter a linguagem, e com
esta, a impressão de que ela se exprime totalmente, ou seja, sem lacunas. Mas o silêncio mantém
uma relação justamente com esse impossível todo da linguagem. O sentido aparece na beira
dos signos, no intervalo das palavras, nas dobras linguísticas, atualizando sempre o desejo da
totalidade: o de tudo dizer e de se dizer o todo. Com isso, a frases parecem sempre movimentar
o todo da linguagem, e é talvez justamente dessa conflagração iminente que surgem o medo do
discurso, o horror da linguagem, a catástrofe do dizer e o amor do silêncio:

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O sentido é o movimento total da fala, eis por que o pensamento arrasta-
se na linguagem. Por isso, também ela o atravessa como o gesto ultrapassa
seus pontos de passagem. No instante preciso em que sentimos o espírito
repleto de linguagem, quando todos os pensamentos são tomados por sua
vibração e justamente na medida em que nós abandonamos a ela, passa
além dos “signos” para seu sentido. (MERLEAU-PONTY, 1975, p. 334)

A partir dessa visão da linguagem, que busca descrever a experiência da palavra, a linguagem
em nós, é possível considerar também a ausência de um signo (lacuna) não como um vão na
realidade e sim como um signo:

E se a linguagem se exprimir tanto pelo que fica entre os vocábulos quanto


por eles mesmos? Pelo que “não diz” quanto pelo que “diz”? E se houver,
oculta na linguagem empírica, uma linguagem à segunda potência, onde
de novo os signos levem a vida vaga das cores e as significações não
independam de todo do comércio dos signos? (MERLEAU-PONTY, 1975,
p. 335)

Uma das interpretações possíveis dos poemas de Emerson consistiria então no jogo com o vazio
das lacunas, a saber, nas propostas concretas de seu preenchimento. Uma outra leitura convida
aos experimentos rítmicos, que acentuariam a descontinuidade dos fluxos discursivos, pois a
pausa corresponde também à escuta e à atenção ao silêncio do outro, o próprio diálogo sendo
nesse sentido um movimento de desdobramento, ultrapassando a oposição tradicional entre o
silêncio e o ruído. A linguagem parece também às vezes ácrona, deslocada no tempo histórico e
no tempo do sujeito:

Por exemplo, certas formas de expressão entrando em decadência pelo


simples fato de terem sido empregadas e terem perdido sua “expressividade”;
mostrar-se-á como as lacunas ou as zonas de fraqueza assim criadas suscitam,
da parte dos sujeitos falantes que querem se comunicar, uma retomada dos
fragmentos linguísticos deixados pelo sistema em via de regressão e sua
utilização segundo um princípio novo. (MERLEAU-PONTY, 1975, p. 321)

A metonímia se volta contra a atitude que Merleau-Ponty chama “linguageira”, uma forma de
poder linguístico, na qual as palavras do falante o surpreendem, fazendo com que descubra seu
pensamento, como se a linguagem o traduzisse.
Ao estudar o contato do sujeito com a língua por ele falada, a fenomenologia descreve também
as lacunas que surgem, como acasos ou acontecimentos, no sistema sincrônico. A perda da
concretude das lacunas, ou seja, a impressão da universalidade, aparece na situação da
comparação com uma língua estrangeira, e também na tradução. Para que haja a concretude
a fenomenologia propõe o retorno à palavra, que pressupõe a recriação no interlocutor de um
certo vazio inerente à intenção de significar:

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Se a palavra quer encarnar uma intenção significativa, que é apenas um
certo vazio, não é somente para recriar em outrem a mesma falta, a mesma
privação, mas ainda para saber de que há falta e privação. Como chega
a isto? A intenção significativa se dá um corpo e conhece-se a si mesma
buscando um equivalente no sistema das significações disponíveis, que
representam a língua que falo e o conjunto dos escritos e da cultura de que
sou herdeiro. (MERLEAU-PONTY, 1975, p. 324)

A experiência da linguagem leva à experiência do outro no sujeito e do sujeito no outro


(interlocutor). Longe de traduzi-lo, a linguagem incorpora, antes, o pensamento:

Pelo contrário, temos às vezes a sensação de que um pensamento foi dito,


não substituído por índices verbais, mas incorporado às palavras e por elas
tornado possível, e há enfim um poder das palavras, pois que operando
umas contra as outras são atraídas, visitadas a distância pelo pensamento,
(...). A linguagem significa quando, em vez de copiar o pensamento, deixa-
se por ele desfazer e refazer. (MERLEAU-PONTY, 1975, p. 335)

Apesar da força devastadora das ideologias que buscam intervir no lugar do silêncio,
transformando-o em um não-dizer opressivo – a censura sendo um dos melhores exemplos
do uso perverso do silêncio –, este preserva na poesia concreta algo do sentido de nosso “outro
lugar”, inatingível e sempre procurado, intraduzível, descrito como “felicidade” ou como a outra
face da superfície. Garantia da espiritualidade humana em seus aspectos reflexivos, ou protetor
da subjetividade como um conforto psíquico, o silêncio constitui uma das mais eficazes críticas
da linguagem em seus aspectos invasivos, agressivos e cruéis, pois o silêncio da palavra concreta
coloca também em questão a injunção a significar característica das abordagens teóricas da
linguagem das últimas décadas, marcadas pelo imperialismo da psicanálise.

Referências
ALLAN, Kathryn. Metaphor and Metonymy: A Diachronic Approach. Chichester: Wiley-Blackwell, 2008.

CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo de. Teoria da poesia concreta. Textos críticos e
manifestos, 1950-1960. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1975.

EMERSON, Claudia. Figure studies. Baton Rouge: Louisiana State University Press, 2009.

EMERSON, Claudia. Impossible bottle. Baton Rouge: Louisiana State University Press, 2015.

EMERSON, Claudia. Claude before time and space. Baton Rouge: Louisiana State University Press, 2018.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Textos escolhidos. Os Pensadores XLI. São Paulo: Abril, 1975.

ORLANDI P., Eni. As formas do silêncio. No movimento dos sentidos. Campinas: Editora da Unicamp, 2007.

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Notas
1 Olga Kempinska - Possui mestrado em Filologia Românica - Uniwersytet Jagiellonski (Polônia, Cracóvia,
1999) e doutorado em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(2008). É professora de Teoria da Literatura no Instituto de Letras da UFF.

2 tarde demais aqui talvez para alguma / intervenção diz o médico // fala a sua tela e não a todos //
vocês isso // se tornou suas palavras não imaginadas / agora mas reais e // sua aflição é extática algo
/ que você não sente // você ouve sua própria voz a uma distância / no arbusto de abelia // fora em casa
um Deus sem voz / chamas ali abelhas tardias // uma queima lenta milagre de um tal verde ali / ali
está você

3 não há erro essa rede se estende / quase até o invisível // na luz encurralada a porta da varanda com tela
/ aberta o ano todo a entrada // do mundo a descoberta / da carriça o acidente // a rede engrossa a
aranha / merceeira seu lindo avental // filamento porções de ar / adormecida e atada e você // aprova
de alguma forma o comércio / como se de acordo // com a facilidade da hábil volta a alegria // tão veloz
excisão

4 ali está você no ver / primeiro seu traje // recebido do antigo V / uma invenção contra // o pálido céu de
fevereiro / o pássaro desviante // albino aquele transformado / na silhueta recortada // como se em relevo
no voo a mesma / perfeição como a dos // em sua volta manchas à vista / alegria de não ser visto // por
um instante imutável dentro / de seu cérebro

5 isso isso um hino / de sombra está aqui minha própria / tradução rápido / rápido um léxico pronto
/ betrothal sempre foi assim a solda / você está farta a ilusão / alugada naquela hora / pode insistir que isso
/ não é real e vai não é real

6 Meias com costura, sapatos delicados, cardigã / todo abotoado até o alto, ela cumprimenta // cada uma pelo
nome quando entram em sua sala / rebeldes, idênticas. Querem o italiano, // o francês, uma professora mais
nova – tudo / menos essa mulher fluente em uma língua // que não viaja – o sul profundo de suas vogais / lento
como a agulha dos minutos no relógio com rumor // atrás dela. (...)

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PROPRIEDADES ESTRUTURAIS DA
AGUDEZA DOS SEISCENTOS
E DO FINAL DO SÉCULO XX
NA POESIA DE AFFONSO ÁVILA

Carolina Tomasi1

DOS SEISCENTOS AO SÉCULO XX

N
o ensaio “Os poetas metafísicos”, T. S. Eliot (1989, p. 123), depois de afirmar que os poetas
“devem ser difíceis”, estabelece que “o poeta deve tornar-se cada vez mais abrangente,
mais alusivo, mais indireto, no sentido de violentar – de deslocar, se necessário – a
linguagem em seu significado”. Frederico Barbosa (In: COSTA, 1992, p. 137), em “A tradição do
rigor e depois”, reforça que o texto, em que não se percebesse o trabalho com a linguagem por
meio de “condensamentos linguísticos”, “articulações formais”, “descobertas originais”, não seria
poesia e sim prosa.
Com base na valorização dos entraves linguísticos, examinemos a seguir como a agudeza se
estrutura nos preceptistas seiscentistas, em termos de PE e de PC. As produções artísticas
seiscentistas configuradas pela agudeza apoiavam-se em versões neoescolásticas do livro III
da Retórica de Aristóteles e em novos conceitos de dialética e retórica produzidos, no século
XVI, em Roma, em Florença, na França, em Castela, em Portugal. À dialética cabia a tarefa
de definir e contradefinir tópicas exclusivas até então da retórica, que foi modificada como
doutrina renovada da elocução ou do ornato. Anteriormente, ela ocupava-se em particular da
argumentação (invenção e disposição).
Os preceptistas seiscentistas recorreram ao Organon e ao De anima (Aristóteles) para propor dez
categorias e especificações sobre o juízo silogístico como esquema de definição e organização
dialética dos temas e dos argumentos (cf. CARVALHO, 2007, p. 44). Em seguida, recuperam
também a doutrina sobre a metáfora de Aristóteles, bem como as leituras que dele fizeram
Quintiliano e Cícero.
A agudeza poética era rigorosa quanto aos procedimentos retóricos dos poetas, cuja causa
eficiente era o engenho das escolhas enunciativas e cuja consequência seria provocar êxtase no
enunciatário. Escolhido um tema (“tópica”, topos), o artista aplicava as categorias aristotélicas
de substância, quantidade, qualidade, relação, ação, paixão, situação, tempo, espaço, hábito.
Suponhamos que, tomado um tema qualquer, o enunciador aplicasse a categoria de quantidade:
deveria, então, considerar a quantidade do tamanho (pequeno, grande, longo, curto, curtíssimo);
a quantidade numérica (nenhum, um, dois, poucos, pouquíssimo); a quantidade de peso (leve,
pesado, pesadíssimo); a quantidade de apreço (precioso, vil, preciosíssimo); a quantidade geral
(medida, parte, todo, perfeito, perfeitíssimo, infinito, maior, menor etc.).
Em Hansen (2000, p. 328), vemos um exemplo de aplicação de agudeza poética à figura de um
anão para caracterizá-lo como um ator de tipo ridículo nos enunciados da poesia seiscentista
joco-satírica:

Quando examinamos o termo repassando-o pelas categorias – por exemplo,


a categoria quantidade, que é a primeira das acidentais – podemos achar
inúmeras metáforas de coisas pequenas em coisas elementares, como
“átomo” e “grão de areia”; em coisas humanas, como “pigmeu” e “unha”; em
animais, como “formiga”, “pulga”, “mosca”, “ácaro”, “escama de peixe” etc.; em
plantas, como “grão de trigo”, e, ainda, em objetos; entre eles, os militares,
como “umbigo do escudo” etc. Por meio da categoria quantidade, podemos
dizer, por exemplo, “Esse umbigo do escudo” para significar “Esse anão”.

Assim, as categorias aristotélicas possibilitam que o processo de invenção seja levado à exaustão
e desse processo exaustivo surge a agudeza do PC nos seiscentos. Trata-se de um trabalho com a
linguagem em que a intensidade, preocupação do poeta, resvala no hermetismo da metáfora aguda.
Por exemplo: a alegoria de umbigo de escudo para dizer anão obscurece de tal forma o enunciado
que o enunciatário se maravilha pela aproximação distante de “umbigo de escudo” e de “anão”. Ao
aproximar semanticamente duas unidades afastadas, suscita-se prazer intelectivo, aproximando e
convidando o enunciatário à busca de uma solução para o efeito de sentido produzido.
Outras possibilidades de vivificar anão seriam as figuras:
• átomo
• grão de areia
• pigmeu
• unha
• formiga
• pulga
• mosca
• ácaro
• escama de peixe
• grão de trigo
Essas opções encaminham o enunciado poético para uma acentuação da tonicidade
de excessivamente pequeno: muito pequeno, pequeníssimo, demasiadamente pequeno.
Fundamentalmente, a técnica consiste na exploração das virtualidades discursivas da analogia.
São virtuais, porque estão em ausência paradigmática, havendo mil combinações possíveis;
todavia, em presença (no sintagma), o enunciador combina (o que chamamos aqui de
condensação) termos sobrecontrários (as figuras) e, portanto, semanticamente distantes. Essa
combinação inesperada provoca, em termos zilberberguianos, maravilhamento, êxtase, surpresa
estética.
Consideramos a possibilidade de dois momentos de maravilhamentos:

→ o sensível do primeiro contato sonoro e visual com a agudeza do PE;


→ o inteligível do segundo momento dado pelo reconhecimento da agudeza do PC.

Não se trata aqui de projetar a teoria de Zilberberg nos séculos XVI e XVII, mas de verificar que
o jogo tensivo se dá em qualquer tempo, é anacrônico. Ademais, os preceptistas seiscentistas
já reconheciam na poética da agudeza dos seiscentos, avant la lettre, o efeito de inesperado, de
surpreendente, que agrada, maravilha e persuade o enunciatário (HANSEN, 2000, p. 317). A
seguir, vamos ver algumas propriedades da agudeza barroca em Gregório de Matos.

AS PROPRIEDADES AGUDAS EM GREGÓRIO DE MATOS


As agudezas, segundo Hansen (2001, p. 32), “evidenciavam o engenho e a perícia técnica dos
autores, sendo aplaudidas como signo de discrição”. Trata-se de um simulacro de erudição entre
seus pares. O poeta dissimula, produz efeitos de sentido para promover o deleite do enunciatário,
finalidade máxima do intento poético agudo. Muito antes do século XX, os artistas seiscentistas
teriam percebido que o fazer poético é antes de tudo fazer linguístico, ou seja, com a poesia
criavam-se mundos de palavras, o mundo dos vulgares, dos eruditos, dos fidalgos etc.
No poema que se inicia com “Que néscio, que era então” – na edição organizada por James
Amado, consta a seguinte didascália “Expoem esta doutrina com miudeza, e entendimento
claro, e se resolve a seguir seu antigo dictame” –, o enunciador, na pele discursiva de Gregório
de Matos (2010, v. 1, p. 352), trata do tema do simulacro discursivo, primeira propriedade da
agudeza:

Dei por besta em mais valer,


um me serve, outro me presta;
não sou eu de todo besta,
pois tratei de o parecer:
assim vim a merecer
favores, e aplausos tantos
pelos meus néscios encantos,
que enfim, e por derradeiro
fui galo de seu poleiro,
e lhes dava os dias santos.
[...]
Seja pois a conclusão
que eu me pus aqui a escrever,
o que devia fazer,
mas que tal faça, isso não
[...] (destaques nossos).

Primeira propriedade: simulacro discursivo (o fazer poético


é um contrato enunciativo; é competência do sujeito da
enunciação [enunciador e enunciatário])

Por essa razão, enganam-se os que atualmente interpretam as sátiras atribuídas a Gregório de
Matos como se fossem a representação de seu “eu psicológico”. O enunciador do poema projeta-
se no enunciado como um ator discursivo que participa de uma cena enunciativa singular.
O sujeito da enunciação competente engloba enunciador e enunciatário pressupostos ao
contrato enunciativo em questão. Trata-se de um contrato fiduciário que revela, então, um fazer
persuasivo e um fazer interpretativo em jogo (GREIMAS; COURTÉS, 1983, p. 86). Assim, a
agudeza seiscentista leva em conta os destinadores retóricos, que estabelecem uma convenção
poética como conhecimento socialmente partilhado por poetas e público contemporâneos à
época (cf. HANSEN, 2004, p. 374). Nesse sentido, a recepção da poesia seiscentista por seus
contemporâneos era regida por um simulacro discursivo de letras específicas. Por isso, não seria
apropriado o conceito de neobarroco como ressurgimento do barroco, mas como outro tipo
de contrato, que se propõe euforizar o barroquismo como categoria que pudesse transpassar o
tempo, algo que refutamos, como já dissemos, pelo fato de distinguirmos dois tempos discursivos
singulares, cada um movido por um destinador diferente.
Com base no simulacro discursivo, depreendemos também um artifício de verossimilhança
(GREIMAS; COURTÉS, 1983, p. 489). Segundo os tratadistas seiscentistas, um pintor que faz um
nariz deformado não peca contra a arte; essa deformação é uma exigência do contrato fiduciário
que implica igualmente uma cena enunciativa convencionada e uma escolha do enunciador em
sua arte de dissimular.
A título de esclarecimento, os enunciadores pressupostos, constantes da poesia atribuída a
Gregório, assumem papéis diferentes na sátira, na poesia religiosa e na lírico-amorosa: se na
sátira, o enunciador é mais despudorado, na religiosa é mais comedido. Trata-se de dissimulação.
A propriedade discursiva da agudeza de dissimular está diretamente relacionada ao artifício,
técnica aplicada ao fazer poético seiscentista. Tal artifício indica qualquer espécie de ficção ou
fingimento produzida pela competência do enunciador para a obtenção de determinado efeito.
Por exemplo:
• O enunciador discreto, simulacro do engenhoso: caracteriza-se pela prudência, pelo
engenho, “que fazem dele um tipo agudo e racional” (HANSEN, 2004, p. 93), competente
para distinguir o que é melhor.
• O enunciador néscio, simulacro do rústico, do desprovido de saber: “caracteriza-se pela
falta de juízo” (HANSEN, 2004, p. 93); do latim, néscio acumula “ne” (não) + “scio, scire”
(saber). Modalizado pelo não saber, néscio era, pois, o sujeito vulgar; do latim, vulgaris,
“conhecimento ralo, comum”. Não equivale ao antitetismo pobreza/riqueza. Conceito
aristotélico por excelência, o “vulgo” “pode significar aqueles que, embora pertencentes
aos ‘melhores’ pela propriedade e posição, são caracterizados como rústicos, falhos de
discernimento e, portanto, como ‘néscios’” (p. 93).
Desse modo, o poeta constrói um simulacro, a depender do contrato fiduciário, do néscio ou
do discreto. Se não incorporado ao texto os destinadores justos e seus valores, a leitura dos
poemas atribuídos a Gregório terá um resultado enviesado. Como vimos em alguns manuais de
literatura, houve durante muito tempo (e ainda há) equivalência do ator, simulacro do néscio,
com a pessoa de Gregório, o de carne e osso, considerado como rústico, grosso, canalha. Mais
ainda, alguns deles reconhecem no enunciado poético gregoriano uma euforização da língua
indígena. Ao contrário, nessas poesias, há um simulacro do néscio que utiliza uma variante
não valorizada do português colonial, mesclando-a com a língua tupi. Em vez da euforia, a
ironia. Essa é uma confusão inapropriada: onde o poeta foi sarcástico, conservador nos moldes
da atualidade, a crítica atual vê-o como antecipador de tendências modernas, vê-o como
revolucionário em termos de usos de linguagem.
Pécora e Hansen (2006, p. 90) afirmam que “o artifício deve ser entendido como uma
operação técnica ou como o efeito de uma técnica [...] como o resultado controlado da
aplicação de um conjunto de preceitos”. Por isso, reconhecem não ser correto contrapor
artificioso a natural, em que artificial seria visto disforicamente. Nesse sentido, no século
XVII, o termo artificial nada tinha de valor negativo, pois se acreditava que “uma construção
artificiosa” não contradizia o natural nem o verdadeiro, mas ajustava um e outro “aos
conceitos de ‘belo’ ou ‘artístico’”. O artifício era regulado por preceptivas poéticas, como as
de Gracián e de Tesauro.
Esse conceito de artifício como simulacro discursivo seria o lugar por excelência do engenho
agudo, gerando outras propriedades, conforme veremos adiante. Uma delas, ainda concernente
ao fingimento discursivo, diz respeito à adequação. A agudeza poderia ser adequada em um
poema lírico, mas não adequada, por exemplo, em um sermão. Trata-se, portanto, de coerções
de gênero a que o enunciador competente estaria submetido. Nesse sentido, a crítica de Vieira
(2000, p. 40-41) aos dominicanos diz respeito à não adequação linguística de procedimentos
que poderiam ser conformes a outros lugares, mas não ao púlpito:

Não fez Deus o Céu em xadrez de estrelas, como os Pregadores fazem o


sermão em xadrez de palavras. Se de uma parte está Branco, da outra há
de estar Negro; se de uma parte está Dia, da outra há de estar Noite; se de
uma parte dizem Luz, da outra hão de dizer Sombra; se de uma parte dizem
Desceu, da outra hão de dizer Subiu. Basta que não havemos de ver num
sermão duas palavras em paz? [...]
Este desventurado estilo que hoje se usa, os que o querem honrar chamam-
lhe culto, os que o condenam chama-lhe escuro [...] É possível que somos
Portugueses, e havemos de ouvir um pregador em Português, e não havemos
de entender o que diz? [...] Se houvesse um homem que assim falasse na
conversação, não o havíeis de ter por néscio? Pois o que na conversação
seria necessidade, como há de ser discrição no púlpito? [...]
Se o lavrador semeara o primeiro trigo, e sobre o trigo semeara centeio, e
sobre o centeio semeara milho grosso e miúdo, e sobre o milho semeara
cevada, que havia de nascer? Uma mata brava, uma confusão verde. Eis o
que acontece aos sermões deste gênero. Como semeiam tanta variedade,
não podem colher coisa certa.

Da mesma forma, o Gregório lírico, enunciador de papel, como sabemos, não pode ser confundido
com o Gregório pessoa física. A ele cabia fingir, criar um ator discursivo competente que
enunciasse enunciativamente, em primeira pessoa, um discurso capaz de levar o enunciatário
a crer na verdade discursiva de seus enunciados em jogo (verossimilhança). Ainda, a poesia
atribuída a Gregório de Matos, por meio de figuras, utilizava os motivos petrarquistas que eram
comuns no mediterrâneo (séculos XV a XVIII).
O fingimento discursivo desse fazer poético seguia os destinadores tratadistas e preceptistas,
influenciadores dos seiscentos. Ao enunciador cabia, se fizesse poesia lírica, por exemplo, saber
compor enunciados cujo nível discursivo contemplasse atores de papel, simulações da criação
do discurso poético, que se apoiassem nas convenções do gênero. Não se trata, portanto, do
derramamento de emoções do poeta romântico em que as paixões do “eu”, ator do enunciado,
identifica-se com as paixões mundanas desse eu, pessoa de carne e osso, extralinguística. Ora,
todas essas formas poéticas são produtos da invenção discursiva, sejam as seiscentistas, sejam
as novecentistas.
Como verificamos, trata-se de uma questão de procedimentos enunciativos. A enunciação é
apresentada por Benveniste como a instância do ego, hic et nunc. O eu instaura-se no ato de
enunciar: “eu é que[m] diz eu”. A pessoa a quem o eu se dirige é o tu: “Eu designa aquele
que fala e implica ao mesmo tempo um enunciado sobre o ‘eu’ [...]. Na segunda pessoa, ‘tu’ é
necessariamente designado por eu e não pode ser pensado fora de uma situação proposta a
partir do ‘eu’; [...]” (BENVENISTE, 2005, v. I, p. 250 e 286).
Assim, eu e tu, compositores da ação enunciativa, constituem o sujeito da enunciação, porque o
“eu” produz o enunciado e o “tu” é levado em consideração pelo “eu” na construção desse mesmo
enunciado (FIORIN, 2008b, p. 137). O espaço e o tempo linguísticos do “eu” são organizados com
base no “aqui” e “agora”. As debreagens enunciativa e enunciva são mecanismos da enunciação
que tornam possível a instauração de pessoa, tempo e espaço nos textos. Na debreagem enunciva,
por exemplo, temos um efeito de objetividade, de distanciamento, de neutralidade e de clareza
e na debreagem enunciativa, temos um efeito de subjetividade, aproximação, parcialidade e
obscuridade. Todos apenas efeitos de sentido, visto que tudo emana de um enunciador que
parte de um fazer persuasivo.
Podemos, então, inferir dos estudos de Benveniste que sempre há efeito de objetividade
e subjetividade, respaldados por uma enunciação pressuposta em qualquer enunciado. A
subjetividade pode advir de um advérbio, de um adjetivo, de uma reiteração, de uma ênfase etc.
Daí se conclui que a subjetividade não é produto tão somente de pessoas verbais; um discurso
pode estar em terceira pessoa, mas provocar o efeito de aproximação, dependendo de outros
elementos linguísticos presentes no enunciado.
A debreagem enunciativa simula no enunciado um “eu-aqui-agora” da enunciação. Ao simular
um “eu”, está implicado um “tu”. A debreagem enunciva é erigida com um “ele-alhures-então”;
nesse caso, ocultam-se os actantes, os espaços e os tempos da enunciação. Na debreagem
enunciva, o enunciado constrói-se com os actantes, os espaços e os tempos do enunciado e não
da enunciação. É um jogo, uma dissimulação, em que a enunciação estrategicamente se revela ou
se esconde. Como sabemos, a enunciação é uma instância pressuposta em ambas as debreagens.
Com as marcas deixadas pela enunciação no enunciado poético, podemos, por exemplo,
reconstituir o ato enunciativo, que nada mais é do que competência discursiva (GREIMAS;
COURTÉS, 1983, p. 147-148; FIORIN, 2008b, p. 138), uma das propriedades da agudeza.
O enunciador e o enunciatário são o “autor” e o “leitor”, não de carne e osso, mas os que
estão implícitos; em outras palavras, temos a imagem do autor e de seu leitor construída pelo
próprio texto dentro da cena enunciativa. Em diferentes poemas, por exemplo, essas posições
se concretizam, e os actantes tornam-se atores da enunciação. O ator, do nível discursivo, é um
caso de concretude temático-figurativa do actante, que é mais abstrato, pertencente ao nível
narrativo. Por exemplo, a simulação do enunciador no enunciado é sempre o ator eu, como no
soneto “Admiravel expressão que faz o poeta de seu atiencioso silencio”, atribuído a Gregório
de Matos; nesse poema, o EU é concretizado no ator poeta “de papel”, discursivo, que a crítica
impressionista identifica com o próprio Gregório de Matos (2010, v. 1, p. 415):

Largo em sentir, em respirar sucinto


Peno, e calo tão fino, e tão atento,
Que fazendo disfarce do tormento
Mostro, que o não padeço, e sei, que o sinto.
O mal, que fora encubro, ou que desminto,
Dentro do coração é, que o sustento,
Com que para penar é sentimento,
Para não se entender é labirinto.

Ninguém sufoca a voz nos seus retiros;


Da tempestade é o estrondo efeito:
Lá tem ecos a terra, o mar suspiros.

Mas oh do meu segredo alto conceito!


Pois não me chegam a vir à boca os tiros
Dos combates, que vão dentro no peito.

Não se trata, pois, do poeta Gregório de Matos em tamanho real, mas de um ator discursivo.
Os verbos em primeira pessoa (peno, calo, mostro, encubro, desminto, sustento...) configuram
uma debreagem enunciativa aproximadora, como convém nos poemas em que o pathos é figura
central do discurso. Um distanciamento maior poderia produzir descrença no enunciatário. O
eu fingido revela as paixões e a tensão entre o que sente e o que exterioriza.
A escolha é pela dissimulação dos sentimentos, pela a arte de fingir, pelo labirinto de palavras.
Assim, a tensividade antitética de “largo em sentir, em respirar sucinto” e entre as categorias
“interior-exterior [simulação]”, em “o mal, que fora encubro, ou que desminto,/ dentro do
coração é que sustento”; “pois não me chegam a vir à boca os tiros/ dos combates, que vão dentro
do peito”, funciona como escolha de valores pelo enunciador. A simulação das paixões da alma
no enunciado poético, em geral, é traduzidas pela metáfora aguda de “fogo”. Nosso enunciador,
por sua vez, opta por traduzir suas revoluções de alma por “tiros do combate que vão dentro no
peito”. A metáfora agora aguda encampa o fogo e o estampido do tiro; estampido, porém, que
fica abafado no peito.
O objeto seiscentista, com sua agudeza de dissimulação, é uma máquina de truques, em que o
texto progride na direção metalinguística; o fazer poético é um disfarçar e um mostrar, ambos
produtos da linguagem: “que fazendo disfarce do tormento / mostro, que o não padeço, e sei,
que o sinto”. Não trataremos nesta tese da questão da autoria de Gregório de Matos, discutida a
posteriori por Pécora e Hansen (2006, p. 96; cf. também HANSEN, 2004), que afirmam que sua
poesia é apógrafa, ou seja, trata-se de poemas cuja autoria é atribuída a Gregório de Matos.
A seguir, vamos ver as propriedades agudas na poesia do final do século XX, mais especificamente
em Affonso Ávila.
AS PROPRIEDADES AGUDAS EM AFFONSO ÁVILA
Outro tipo de simulacro discursivo evidencia-se no jogo enunciativo dos poemas do final do
século XX. Essa primeira propriedade da agudeza tem como pressuposto um jogo enunciativo
entre um enunciador, que suscita maravilhamento por meio de fingimento discursivo, de
condensações (fusões) de elementos inamalgamáveis etc., e um enunciatário cujo fim é deleitar
duplamente: (1) após o impacto sensível do êxtase; (2) após o reconhecimento dos emaranhados
da agudeza do PC, quando a fruição se dá também inteligivelmente.
Em “São Francisco de Assis”, poema de Affonso Ávila (2008a, p. 296), fazer poético conduzido
por outro tipo de destinador, o do final do século XX, dá-se uma amostra da propriedade aguda
do simulacro discursivo:

São Francisco de Assis


&
pelo partido se conhece a arquitetura
&
pela portada se conhece o arquiteto
&

Embora o verso “pela portada se conhece o arquiteto” pareça comportar um enunciador


ausente devido ao verbo na terceira pessoa do singular, a enunciação está sempre pressuposta.
Ademais, a escolha desse verbo instaura um distanciamento; todavia, pela tonalidade coloquial
do enunciado, o da máxima popular, o enunciatário reconhece “eu afirmo que ‘pela portada se
conhece o arquiteto’”. O verso evidencia ainda a enunciação reger qualquer enunciado, seja de
terceira, seja de primeira pessoa, visto que, se “pela portada se conhece o arquiteto”, é esse rastro
(portada) do enunciador no enunciado que marca a presença da enunciação.
O “&” reiterativo funciona no poema “São Francisco” como um caminho meândrico que enreda
o enunciatário. O poema não mostra marca aparente da enunciação no enunciado, mas se trata de
um truque. Ao afastar-se do enunciado, constrói-se um simulacro de objetividade, que engendra
um efeito de sapiência, estabelecido pela figura do verbo conhecer. As declarações funcionam
como máximas do campo semântico da arquitetura erguidas à semelhança de outras: “pelo filho
se conhece o pai”. Esse jogo linguístico-poético erige no enunciado a imagem da frente da Igreja
de São Francisco de Assis de Ouro Preto, título do poema, imagem que é formada pelas figuras
discursivas “partido”, “arquitetura”, “portada”, “arquiteto”.
No poema, dá-se ainda a construção de um destinador que sabe e quer fazer seu destinatário saber;
noutros termos, é quase um guia turístico que acompanha o enunciatário pelas ladeiras de Ouro Preto,
transmitindo-lhe um saber reconhecer o arquiteto pela portada; pelo conhecimento enciclopédico, o
projeto da Igreja de São Francisco é de Aleijadinho. A enunciação condensada revela, por meio dos
dois enunciados lapidares, confiança no próprio saber. Não há possibilidade de ouvirmos a voz do
enunciatário, pois ele não está projetado como “tu”. Desse modo, temos um jogo de um enunciador
que se distancia, porque tem a posse do saber (no verso: “se conhece”), mas, ao mesmo tempo, se
aproxima, transmitindo seu conhecimento ao enunciatário, valendo-se, para isso, de um tipo de
discurso encontrável no cotidiano: as máximas populares. Enfim, temos uma enunciação marcada
pelo “fazer saber”, que estabelece um diálogo implícito entre um eu e um tu.
Augusto Campos (In: CAMPOS; CAMPOS, 1968, p. 104-105), no texto “Atualidade dos
‘metafísicos’”, contesta a crítica que acusa determinados poetas de produzirem poesias marcadas
pela desumanização – o caso dos concretistas, que se estende ao usualmente nomeado neobarroco
de Affonso Ávila – e, em seguida, afirma que tal desumanização nada mais seria do que

a tomada de consciência, por parte do poeta, em plena lucidez de sua


verdadeira função ética e social. Não há, de fato, uma recusa ao “humano”,
mas, ao contrário, uma recusa a se deixar transformar em objeto, a permitir
– o poeta – que dele façam uma “juke-box” de titilações sentimentais. E, ao
mesmo tempo, a busca do verdadeiramente humano na linguagem, tomada
em si, como fonte de conhecimento e de apreensão da realidade. O poeta,
cada vez mais, utiliza a linguagem, ao invés de ser utilizado por ela.

Como notamos no poema de Ávila, ali também há forte preocupação com a linguagem e não
com o derramamento de emoções. Daí a simulação de uma enunciação enunciva – nesse caso,
o enunciador distancia-se, criando efeito de objetividade –, marcada pelo tempo verbal no
presente, terceira pessoa, do indicativo para que a verdade do enunciador soe como máxima,
dando origem à voz de um destinador, superior e que tudo sabe. O poema parece perder em
subjetividade para ganhar em racionalidade.
Todavia, ao conter as emoções e os sentimentos – observar a repetição nos dois versos do poema
do verbo pronominal “se conhece” – e estabelecer a já dita construção poética pela arquitetura
linguística, o enunciador mostra uma linguagem que deixa de ser apenas substância do conteúdo
como grande mensagem sentimental para se transformar ela própria em fim e forma; nesse
caso, a linguagem poética é operação que estrutura as relações entre formas do PE e do PC,
característica semelhante à da poesia aguda seiscentista.
A agudeza da enunciação (primeira propriedade do simulacro discursivo) revela-se no poema
“São Francisco”, de Affonso Ávila, pela seleção de figuras que levam o enunciatário a aproximar-
se do cotidiano: tomar conhecimento sobre como identificar uma obra de Aleijadinho in loco,
ou seja, observando a “portada”.
Ao ocupar-se do fazer arquitetural, o enunciador volta-se para a própria linguagem. Trata-se
de um poema metalinguístico, tônica dos destinadores do século XX, que leva a pensar sobre o
próprio fazer poético como poiesis, criação, afastando-se do contrato de fazer mimético, próprio
do destinador das obras seiscentistas. Mais uma razão para se descartar o rótulo “neobarrocas”
para as poesias de Affonso Ávila ou de Haroldo de Campos, visto seguirem outros destinadores.
Em “São Francisco”, o trabalho com a linguagem pode também ser observado no jogo linguístico
em que feminino (portada e arquitetura) e masculino (partido e arquiteto) vão sucessivamente
trocando de lugar, como numa combinatória. Trata-se de um quiasmo morfológico: as figuras
do poema são distribuídas em forma de X; nesse sentido, feminino e masculino cruzam-se
diagonalmente. Quiasmo2 é uma figura retórica que se caracteriza pela disposição entrecruzada
e simétrica das figuras de dois enunciados (LAUSBERG, 2004, p. 233):

PELO PARTIDO A ARQUITETURA

PELA PORTADA O ARQUITETO

*Não se trata de quadrado semiótico.

Com base em Baltasar Gracián, para Pécora e Hansen (2006, p. 92), o sujeito da enunciação é
discreto e possui competência semiótica para dissimular enunciados, dando a cada um deles
a exata medida que lhes é devida. Essa competência de enunciador e de enunciatário pode ser
percebida no verso “pela portada se conhece o arquiteto”, isto é, só conhece o “arquiteto” e a
“arquitetura” quem tem competência para tal. Enunciadores não se confundem, pois que deixam
rastros no enunciado.
Em suma, tanto os sujeitos da enunciação do século XVI e XVII quanto os do final do século
XX são instituições pressupostamente competentes3, que contam com um contrato, regido por
uma agudeza de um fazer persuasivo e de um fazer interpretativo implícitos. Com base nesse
argumento, temos uma coenunciação, conceito de sujeito da enunciação já citado, que concentra
e difunde o enunciado, quando é preciso fazê-lo, mantendo-se o jogo da poética tensiva entre o
maravilhamento sensível e o posterior prazer do reconhecimento inteligível.
Corolário da primeira propriedade da agudeza seria a solidariedade do complexo sujeito da
enunciação:

Agudeza: (1) Enunciador compositor e decompositor;


(2) Enunciatário decompositor e compositor

Temos, portanto, um movimento, cujo sentido se dá numa sintaxe solidária e reflexiva, em que
tanto enunciador quanto enunciatário têm papel ativo na construção do sentido do enunciado
poético. Desse modo, quando o enunciador compõe o poema, amalgamando fonemas, morfemas,
ressignificando-os, toca ao enunciatário decompô-lo para reconhecê-lo inteligivelmente, visto
que esteve refreado sensivelmente por algumas estratégias da agudeza. E, quando o mesmo
enunciador decompõe, desmantela uma sílaba, um morfema, por exemplo, cabe ao enunciatário
recompor e reorganizar o enunciado. Ademais, a troca de posição de categorias gramaticais do
gênero masculino e feminino, em “São Francisco de Assis” (“partido / arquitetura / portada
/ arquiteto”), sugere uma troca de posição entre objeto estético (arquitetura) e seu criador/
contemplador (arquiteto) para que o sentido do texto se estruture.
Em “Casa de Gonzaga”, outro poema de Affonso Ávila (2008a, p. 295), a cooperação entre
enunciador e enunciatário opera-se também na reorganização dos refreamentos formais da
agudeza. Vejamos o poema:

&
pobrealdeiaondeo
sgrandesmoramemca
zademadeiraapique
&
pobre........................
........a....mor.....emca
zademadeiraapique
&
pobre...........a..........
........rañ......a...emca
zademadeiraapique
&
po..........ei................
......ra....e.m...........ca
zade .adei. aa. ique
&
..................................
.g...........o....m...........
za..........................que
&

(1) Enunciador compositor de quebras inesperadas e enunciatário decompositor e


reorganizador do enunciado poético

Inicialmente, o enunciador condensa as formas do PE e do PC num continuuum fonológico


e morfológico em que os recortes usuais são desconsiderados. Trata-se de um artifício de
agudeza, que convoca o enunciatário para executar uma operação no sentido inverso, o de
descondensação (decomposição), que promova restabelecimento novamente dos recortes
formais. Na descompactação, ao deleite sensível visual e sonoro segue-se um procedimento
secundário: a prazerosa descoberta das tramas do inteligível.
Em uma terceira etapa, verifica-se que o PE incide sobre o PC, constituindo um semissimbolismo:

PE : categoria da aglutinação – fonemas aglutinados


PC : c ategoria da aglutinação – construção da “casa de
Gonzaga” por meio da aglutinação de materiais

(2) Enunciador decompositor e enunciatário preenchedor dos elos da linguagem

Nesse caso, o enunciador refreador de formas convoca a participação do enunciatário para


restabelecer o enunciado esmaecido em seus contornos. O maravilhamento inicial do sensível
transforma-se na tentativa inteligível de buscar uma direção para o sentido. Os pontilhados
dos versos configuram interrupções que ofuscam o enunciado. Temos, então, novamente outro
semissimbolismo:

PE: c ategoria da descontinuidade [os pontilhados


gráficos interrompem a continuidade dos fonemas
nos versos]
PC: c ategoria da descontinuidade [a poeira na casa de
pau a pique impede a continuidade da visibilidade
dos objetos]

Nos três primeiros versos, há uma aglutinação aguda no significante que erige no significado
o conteúdo Casa de Gonzaga, cuja imagem surge no enunciado visual da última estrofe
“.g..........o....m........./za..........................que”. O PE vai perdendo paulatinamente alguns de seus
fonemas, visualmente representado pelos pontilhados gráficos. As elipses, as faltas, no PE
endossam o PC com a expressão ambígua a pique, que significa, além da técnica de construção
casa de pau a pique, tonicidade elevada de “malogro”, “fazer gorar” (HOUAISS; VILLAR, 2001).
Aqui, notamos uma cifra tensiva de acentuação da intensidade, que figurativiza o estágio de
alta deterioração da Casa de Gonzaga. A essa cifra de vivificação junta-se o juízo avaliativo do
enunciador, que escolhe isolar o termo “pobre” no primeiro verso da segunda estrofe e elimina
“aldeiaondeo/sgrandemoram”.
O jogo tensivo continua no segundo verso em que, ao separar “a” de “mor”, figurativiza “amor”
(amor vivido por Tomás Antônio Gonzaga e Marília de Dirceu), bem como a dor da “mor”(te),
que pode ser lida também como morte da Casa de Gonzaga e morte do amor, visto que o casal
“Tomás e Marília de Dirceu” se separa. “Mor” é ainda forma intensificada de grande (maior) e
teríamos, assim, como possibilidade de direção a grandiosa Casa de Gonzaga.
Na terceira estrofe, o enunciador elege outros artifícios de agudeza: a sequência de fonemas /
rãn/, que se inicia com a velar vozeada vibrante /R/, corrobora o PC de ruir.
Semissimbolicamente, temos:

PE: categoria vibrante [sequência de fonemas vibrantes]


PC: categoria vibrante [movimento vibrante de ruir, de
tombar, cair]

Nesse sentido, se na segunda estrofe o PE visual mostra o PC da casa em ruína; na terceira


estrofe, é o PE sonoro que nos faz perceber o estágio de desmoronamento da casa.
Na quarta estrofe, novamente a escolha pela eliminação de determinados fonemas faz sobrar no
PC do primeiro verso “po (pó)” e “ei” e no PC do segundo verso “ra”. Somando os elementos,
temos “poeira”. Ao seccionar, ainda no segundo verso da quarta estrofe, por meio do recurso
gráfico <pontilhado> junto com a preposição “e.m”, constrói-se a imagem visual de partículas
de pó (poeira) pela Casa de Gonzaga. E, no terceiro verso, subtraindo-se grafemas e fonemas,
sobra, no PC, em meio à poeira, a estrutura de madeira, suporte para a construção de casa de
pau a pique: “zade .adei. aa. ique” = “casa de aldeia cujo madeirame está a pique, desfazendo-
se”.
Finalmente na quinta estrofe, o objeto estético é reduzido no PE e no PC a quase nada:

“g.... o... m......za......que”,

configurando o isolamento do amante de Marília de Dirceu, Tomás Antônio Gonzaga, também


agonizante, e sugerindo um efeito de sentido de grito lamento de uma enunciação que vê um
monumento histórico em decomposição. Nesse sentido, a disjunção fonemática também cria
o efeito de sentido de alguém soluçando, gaguejando, construindo um enunciado de difícil
identificação, posto que tomado por forte emoção, por um estado de alma de elevada intensidade.
Como vimos, no PE, a partir da segunda estrofe, as seguidas supressões e os esvaziamentos
são indicados no visual pelo grafismo dos pontilhados, correlacionando-se, no PC, à perda de
composição da casa. O grafema “&” costura todo o poema, ornamentando-o como uma coluna
da arquitetura seiscentista; se o considerarmos polissíndeto (repetições de & [-e]), teríamos a
somação da sequência das cenas de arruinamento, bem como inesgotamento da História de
Ouro Preto. Há uma tensão fundamental entre o exaurimento da Casa física de Gonzaga e a
permanência da imagem de Tomás Antônio Gonzaga e o que ele representa na História dos
Inconfidentes e da Literatura da Colônia.
BREVE CONCLUSÃO
Até aqui pudemos notar que a primeira propriedade da agudeza se funda no simulacro discursivo
e na competência do sujeito da enunciação para a composição e decomposição do sentido, a
depender do enunciado poético em questão, conforme observamos até aqui.
A segunda propriedade da agudeza funda-se na tensão de escuro-claro estrutural. Em que
consiste tal propriedade? Trata-se de um jogo estético de distanciamento e de aproximação, de
obscurecer pelo esmaecimento dos contornos e de evidenciar/clarear pela nitidez do restabelecimento
dos contornos, uma oscilação própria da poética da agudeza.
A arquitetura poética do final do século XX teria, por exemplo, uma faceta experimental, dada
pelo princípio de combinação não previsto pelas relações esperadas e facilmente reconhecíveis
entre PE e PC. Nesse sentido, predomina a proximidade e a participação ativa do enunciatário:
• Quanto mais escuro o enunciado, mais elipses, mais faltas, mais fluidez que resulta do
esmaecimento dos contornos; assim, quanto mais se requer a aproximação do enunciatário,
maior a necessidade de restabelecimento dos contornos.
• Quanto mais claro o enunciado, menos elipses, mais nitidez que resulta da atualização dos
contornos; assim, quanto mais distante se encontra o enunciatário, menor a necessidade
de restabelecimento dos contornos.
Todavia, o movimento em alguns poemas agudos é o de composição complexa: ocorre ao mesmo
tempo aproximação e distanciamento.
Em “Casa de Gonzaga”, de Affonso Ávila, por exemplo, menor aproximação permite o primeiro
prazer sensível, que é estético e visual; maior aproximação possibilita o segundo prazer inteligível,
o do reconhecimento cognitivo.
A agudeza em Affonso Ávila propõe-se quebrar qualquer expectativa no processo sintagmático,
linear, de lógica implicativa. As relações dão-se em dobra: infinitas possibilidades combinatórias
devido às condensações de palavras, às quebras de morfemas, às subtrações de fonemas. O objeto
poético invade, então, o sujeito que, chocado e desamparado, vai em busca do reconhecimento
inteligível momentaneamente obnubilado pelo refreamento formal acentuado.
Referências
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________ (Org.). Barroco: teoria e análise. Tradução de Sérgio Coelho et al. São Paulo: Perspectiva, 1997.

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TEIXEIRA, Ivan. Rosa e depois: o curso da agudeza na literatura contemporânea. Revista USP, São Paulo, n.
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VIEIRA, Antonio. Sermões. Organização de Alcir Pécora. São Paulo: Hedra, 2000. v. 1.
Notas
1 Carolina Tomasi - Mestre e Doutora em Linguística (USP); Pós-Doutorado (UFF E USP).

2 O termo quiasmo deriva da letra grega χ (qui), em latim chiasmus. Em português, sofreu alteração por causa
da influência da língua italiana cuja pronuncia de ch é /k/.

3 Teixeira (1997-1998) afirma: “Sabe-se que, no século XVII, os intelectuais reuniam-se em seções acadêmicas
para exibir os frutos dos respectivos engenhos sobre um tema previamente apresentado. Nessas disputas, a
sutileza das composições funcionava como elemento diferenciador entre os concorrentes.”
CADERNO DE POESIA RESISTÊNCIA:
10 ANOS SEM O POETA AFFONSO ÁVILA

PEDRO ÁVILA1

A
língua é fascista, como diria Barthes, uma vez que nos impõe o que e como pensar o
mundo. Mais especificamente a Língua Portuguesa foi um instrumento colonizador nas
mãos dos portugueses, servindo para difundir seus valores e crenças, as quais incluíam
seu direito (disfarçado de dever) de dominar e subjugar povos americanos e africanos. Afinal,
sem escrita, ou como será formulado posteriormente, sem literatura, não é possível que um povo
possua História. A dominação, exploração e eliminação daquilo que é diferente são aspectos
centrais do colonialismo, os quais o fascismo herdaria na Europa do século 20, promovendo
horrores similares aos que embarcaram com as pombas e caramujos ibéricos 500 anos atrás
com portugueses para terras brasileiras. Afinal, o que o fascismo propôs foi parte da Europa
colonizar o resto do continente tal qual nações europeias como França e Inglaterra vinham
fazendo há séculos com o resto do mundo.
Talvez haja algo de fato fascista na maneira com que a língua recorta e delimita como seus
falantes enxergam e delimitam o mundo a seu redor. Mas e quanto à literatura? Seria a literatura
fascista? Barthes concluiu sua primeira aula para o Collège de France, em 1978, dizendo que “o
fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer”. O português não nos proíbe pensar além do
masculino e feminino, ele nos obriga a delimitar todos os seres existentes, sejam humanos ou não,
animados ou não, como masculinos ou femininos. Mas o que seria a literatura se não o espaço
em que podemos ir além das amarras da língua? Através da função poética, podemos fabular
novas formas de ser, estranhificar as palavras e seus sentidos, tirando a língua de sua pragmática
corrente, como sugere Chklovski, ou fundar novos termos para coisas novas, neologismos,
trocadilhos, que encontram associações semânticas ou significados ocultos em semelhanças
sonoras. A literatura, especialmente a poesia, com sua potência sintética e heterogênea, possui
a possibilidade de conter “entre um grão qualquer, pedra ou indigesto/ um grão imastigável,
de quebrar dente”, como diria João Cabral de Melo Neto, um grão que resiste à compreensão
obrigatória e clara (fascista) da língua, subvertendo e “desafinando o coro dos contentes”, como
canta Jards Macalé a letra de outro neto, Torquato.

REVISTA BARROCO DIGITAL - nº 2 - 2022 - PEDRO ÁVILA


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240
Com certeza, em países como o Brasil, a literatura possui páginas de sangue, tendo servido de
ferramenta colonialista em prol da destruição e assimilação cultural. Mesmo escritores coloniais
que buscaram se distinguir das artes metropolitanas, buscando uma essencialidade brasileira,
acabaram por cair na armadilha de criar algo nacionalista a partir de moldes da metrópole.
Contudo, como tudo que possui potência criadora e transformadora é contraditório, a língua é
também uma forma de resistência, como a literatura. Silviano Santiago ressaltou nosso inerente
entre-lugar literário na América Latina, nem completamente locais, pois colonizados, muito
menos metropolitanos, sugerindo que é no trabalho dessas contradições que a arte latino-
americana demonstra seu poder. Através do pastiche, da paródia e dos jogos de sentido, ou da
incorporação de elementos e signos de outras línguas, a literatura pode reorganizar a língua
colonizadora, subvertendo sua lógica colonialista. Assim, a língua que ajudou a massacrar povos
e eliminar formas de conhecimento do mundo alheias também pode ser usada por nós contra
ela própria.
No final de 2022, o Brasil parece voltar a respirar um pouco mais aliviado. Mas a luta não acabou,
nunca acaba. Os discursos fascistóides se alastraram e se estabeleceram na mente e nos corações
de tantos brasileiros, os quais ainda desejam levar o Brasil de volta aos porões da ditadura militar
de 64-85. Além de todo o desmonte político, industrial, cultural, etc., que vem sido promovido
desde o golpe de 2016, muitos ainda se encantam com uma idealização de um dos períodos
mais sombrios de nossa História, o qual pessoas como Affonso Ávila, fundador da Revista
Barroco, lutaram contra, em prol de construir um Brasil soberano, democrático e de todos.
Nesse momento histórico em que passamos, os claros e escuros da poesia neobarroca de Ávila
nos impelem a iluminar algumas vozes brasileiras, do passado remoto ao recente, ao presente,
que seguem seu exemplo e tantos outros. Vozes poéticas que ainda resistem, com seus duros
grãos cabralinos, como o jabuti de Antonio Callado, que fez de escudo o crânio da onça que o
atacava. Nossas onças internas e estrangeiras não recuaram tão cedo, espreitando-nos com sua
ideologia de desinformações e manipulações. Mas a poesia desses jabutis liberta a língua de seus
fascismos cotidianos, mostrando outras formas de pensar, estar e ser no mundo. O que se segue,
então, é uma reunião de poemas que foram enviados para a revista ou selecionados devido à
maneira pertinente com que tratam de assuntos relevantes para a contemporaneidade brasileira,
por mais antigos que possam ser. Poemas variados, de autores diversos: uma verdadeira feijoada
de grãos indigestos, em homenagem a Affonso Ávila, que nos deixou faz 10 anos, com seus
grandes poemas, que andaram na contramão dos códigos de trânsito de sua época.

Nota
1 Pedro Ávila - poeta, tradutor, graduado em Letras pela UFF.

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241
CADERNO DE POESIA RESISTÊNCIA:
10 ANOS SEM O POETA AFFONSO ÁVILA

ORGANIZAÇÃO E SELEÇÃO: PEDRO ÁVILA

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242
CARTAS CHILENAS
Em que se contam os sucessos de todo o governo
de Fanfarrão Minésio, General de Chile.
Escritas na língua Castelhana pelo poeta Critilo.
Traduzidas em português, e dedicadas aos
Grandes de Portugal por um Anônimo.

Aos pobres açoitados manda o Chefe,


Que presos nas correntes dos forçados
Vão juntos trabalhar. Então se entregam
Ao famoso Tenente, que os governa,
Como sábio Inspetor das grandes obras.
Aqui, prezado Amigo,
Principiam os seus duros trabalhos. Eu quisera
Contarte o que eles sofrem nesta Carta;
Mas tu, prezado Amigo, tens o peito
Dos males, que já leste magoado;
Por isso é justo, que suspenda a história
Enquanto o tempo não te cura a chaga.

TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA


Final do século XVIII

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243
NEGRO FORRO
 

minha carta de alforria


não me deu fazendas,
nem dinheiro no banco,
nem bigodes retorcidos.
 
minha carta de alforria
costurou meus passos
aos corredores da noite
de minha pele.

EU, PÁSSARO PRETO


 
eu,
pássaro preto,
cicatrizo
queimaduras de ferro em brasa,
fecho o corpo de escravo fugido
e
monto guarda
na porta dos quilombos.

ADÃO VENTURA
Extraídos de: ANTOLOGIA CONTEMPORÂNEA DA POESIA NEGRA BRASILEIRA,
organização de PAULO COLIMA.  São Paulo: Global Editora, 1982.  103 p.

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244
TANQUE
os rabos roliços fazem espuma
de pescadores e varas um festim
os robalos dançando na lama escura
quero robá-los dançando todos para mim

ondinhas verdes
e muitas braçadas
os lemes rasgando a água
são pênis de nadadores nus

ALAN CARDOSO DA SILVA


Extraído de: OBCENAS, primeira edição. São Pulo: Editora Patuá, 2022. p. 37

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MOR,

sonhei com alguém,


talvez fosse você
sei que nossos filhos eram
crustáceos, tartarugas e corais
de um azul enegrecido-piche
como asfalto

Mor,
queríam comê-los
mas grossos grudavam na garganta
impossível engoli-los
mergulhamos para salvá-los
mas o mar era piche
e colava em nossa pele - ardia

Mor,
talvez você fosse o pai
e tivéssemos filhos
como aqueles que soubemos ser
crustáceos, tartarugas e corais
enredados em piche
e escorregadios e tristes

Mor,
me mostre o azul escuro
aquele que olhamos de um recife ao luar
e sonhamos que nossos filhos
crustáceos, tartarugas e corais
por todo lado surgiam
madrugada adentro

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Mor,
cadê os azuis matinais
onde mergulhamos com nossos filhos
e eles ainda puderam conhecer
crustáceos, tartarugas e corais
por todo lado surgiam
colares que decoravam os azuis
do recife de meus avós

CRISTINA ÁVILA
Croniquetas – simples, coloquial, piegas. Belo Horizonte: CS Cultural. 2022. p. 99

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CONT OOS
URUTU
Vírgula estirada que apresenta o próprio veneno. se ela encontra o veio, graça a fome no campo
vizinho. sua língua injetada faz a linguagem mancar.
(...)

JAVALI
Um tanto de nós na lagoa. um tanto seguros a remover ninfeias da margem. irmãos protegidos
pelas ramas que vão na trilha da lagoa.
Um dardo, porém,
Desatina. Todos em disparada. Os de trás a superar os que
Adiante se adiantam sobre os próprios narizes. Não a quem se fie em apagar os rastros todos em
disparada por temer a sentença que incendia o dardo.
O atirador não mira o primeiro nem o segundo, atingidos seriam esterco antes que o último se
aviasse.
Para este o atirador guarda os olhos o calor o fim da descendência.
(...)

PACA, TATU, CUTIA,


Irmão, cavam o mesmo buraco para escapar ao fogo, mas não falam a mesma língua. Se o capão
é a escola de todos, o mesmo não se dirá das gramáticas que lhes dão saúde.
Paca tatu cutia são hipóteses que escapam do cercado. Um livro sobre eles começaria com
reticências.

EDIMILSON DE ALMEIDA PEREIRA


Extraído de: QVASI, segundo caderno. São Paulo: Editora 34, 2017. p. 83-85.

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A FELICIDADE ESQUIZOFRÊNICA
DA INSATISFAÇÃO COTIDIANA

“Sujo de terra e pranto


de terra e sangue...”
Vicente Huidobro

o poema
que faço não é
o que quero

quero
o
silêncio
na
carne
o
gozo
na
língua
fim
do
fogo
sobre
o
sangue
que
veste
a
tarde
fim
do

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sangue
sobre
o
fogo
que
veste
o
Sol
quero
um
resto
de
rio
nas
rugas
do
rosto
um
rasto
de
mel
no
rasgo
do
corpo

( teus olhos
ignoram
a
Água
e
a
parte
vermelha
da

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250
noite

procuram
paisagens
repletas
de
ossos
jardins
repletos
de
círculos )

quero
versos
arrancados
dos
olhos
da
tarde
enterrados
no
Céu
da
carne
um
rio
de
gozo
no
rosto
do
Sol
um
resto
de

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silêncio
no
rasgo
da
língua

( teus olhos
amanhecem
fechados

procuram
corpo
adentro
planícies
cremosas
eflúvios
íntimos

vestígios
de
fome
no
escuro
interior
da
boca )

o poema
que quero
não se
escreve
porque
de tão
leve
o

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vento
leva

de
resto
lençóis
sujos
de
Dor
e
na
língua
um
gosto
doce
de
Eva

GARBO GOMES
Poema enviado para o Caderno poesia resistência – Revista Barroco Digital n. 2. 2022

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ODE (EXPLÍCITA) EM DEFESA DA POESIA
NO DIA DE SÃO LUKÁCS

(...)
poesia
te detestam
materialista idealista ista
vão te negar pão e água
(para os inimigos: porrada!)
- es a inimiga
poesia
(...)

poesia pois é
poesia
te detestam
lumpemproletária
voluptuária
vigária
elitista piranha do lixo

porque não tens mensagem


e teu conteúdo é tua forma
e porque és feita de palavras
e não sabes contar nenhuma estória
e por isso és poesia
como cage dizia

ou como
há pouco
augusto
o augusto:

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254
que a flor flore

o colibri colibrisa

e a poesia poesia

HAROLDO DE CAMPOS
Extraído de: Melhores poemas Haroldo de Campos/seleção de Inês Oski-Dépré. São Paulo: Global. 200. p. 96-101

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255
SOBRE O BRASIL
Sobre o Brasil
há provas contundentes que exista

ainda que não

DIÁSPORA
Meu povo morreu andando na estrada de pedra e Jerusalém.

Meu povo morreu caminhando no coração quente de New Orleans.

E enquanto o poeta profetizava no concreto


sobre a forte chuva que viria, a água molhava a terra, a semente, os vermes,
e os calos
nos pés escuros dos meus avós

SOBRE O AMOR
Sobre o Amor
não há realmente nenhuma prova que exista

Ainda que sim

JOÃO CARLOS PINHO


Extraído de: Talvez alguém esteja lendo isso agora. São Paulo: Editora Patuá. 2021. p. 51,52 e 95.

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256
MIGNA TERRA

Migna terra tê parmeras,


Che ganta inzima o sabiá,
As aves che stó aqui,
Tambê tuttos sabi gorgeá.

A abobora celestia tambê,


Chi tê la na mia terra,
Tê moltos millió di strella
Chi non tê na Inglaterra.

Os rios lá sô maise grandi


Dus rio di tuttas naçó;
I os matto si perdi di vista,
Nu meio da imensidó.

Na migna terra tê parmeras


Dove ganta a galligna dangolla;
Na migna terra tê o Vapr’elli,
Chi só anda di gartolla.

JUÓ BANANERE
Extraído de: La Divina Increnca. Reprodução integral da primeira edição de 1915. São Paulo: Editora 34. 2001. p. 8

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NO GOVERNO

“A seara é grande
Mas os lavradores são poucos”
Os gafanhotos são muitos

LAÍS CORRÊA DE ARAÚJO


Extraído de: Pé de Página. Ouro Preto: Guilherme Mansur - Gráfica Mariana. 1995.

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TEMPO V
Tempo demais ou de menos é o tempo
dos relógios, desde que naquele dia insano
perdida a inocência de Adão inventamos as horas e os anos.

O tempo dos povos da floresta é o tempo


dos animais da lua e do sol traçando órbitas
exatas e pontuais, marcando as fronteiras da noite - o tempo

das antas, tarântulas, corujas e morcegos -


com a manhã das araras, jacarés e jararacas
do voo das garças traçando no céu o sem tempo dos povos

das sarças, calendário do tempo intangível


das florestas que o proto-homem, um fruto
do ovo da Serpente cresta. Mitologias inteiras desaparecem

no rastro da paisagem branca das carcaças


calcificadas nas nossas retinas, trilhas cinzas
de animais retorcidos, cruel instantâneo da morte, petrificados,

as presas perdidas as aves paralíticas presas


ao chão num voo seco e sem asas, e o horror
diuturno da visão dos lábios finos espalhando perdigotos de ódio

cavalgando às gargalhadas entre labaredas


montado no dorso da morte. Seu ódio é inútil,
demente, as florestas calcinadas ecoarão no silêncio refletidas

nos espelhos de areia dos leitos dos rios secos,


os mitos sobreviventes vagarão por uma órbita
sem tempo sobrevoando um país esfacelado de horror, rastros

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da vida recomposta nas carcaças dos carcarás
calcinados em voos famintos sobre o que restar
do seu corpo ainda vivo e dilacerando urubus
na disputa da sua carniça e lutando pelo espólio
do corpo de um filho da puta, luta sangrenta de rapinas espalhando

merda na memória do seu nome e no nome


dos seus filhos, batizados com sangue na pia
profana da sua boca. Bicos carniceiros exalarão o hálito do seu hábito

da morte, voando sobre corpos abandonados


semeados sob o sol no solo estéril e deserto
sem enterro sem pranto sem o beijo das suas irmãs escondendo a dor

pelos seus polinícios que a gargalhada


do seu gozo de Creonte humilhou no ofício
do ódio, tecelão das mortalhas do abandono. Calma, canalha, espera

que uma nova Antígona renascerá da areia


e aprenderá como escarrar no seu rosto
com a força de metáforas que atravessarão o tempo enterrando irmãos.

DUAS PALAVRAS

Procuro a palavra precisa que defina o que sinto


quando me deparo com sua boca entreaberta: o hálito
exala dos jornais, o dicionário míngua, as palavras varejeiras

circundam o podre da sua língua dípteras saem


dos seus lábios finos vindas do estômago. Mais exatas,
reverberam e revelam ante o seu sorriso de lagarto esta náusea

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que perfume algum, bálsamo, nenhum frasco afasta,
fedem, as duas pequenas palavras que o traduzem:

nojo

asco

9 MM
Seus dedos passeiam pelo metal, calmamente acaricia o cano
entumecido do aço latejando nas mãos se entreabrindo o fruto
de um outono de ódio e dor pelo beijo recusado, que hoje o faz
salivar no esgar dos seus lábios finos o leito negado ao menino

que ainda o espera. É com o mesmo tesão com que mordisca


freme no frame da arma entre os dedos rentes à empunhadura,
dura escultura do amor oculto. Afasta o aço da memória e alça
a alça de mira à orla da boca e lambe o orifício do cano retendo

entre os dentes o retém que o faz tremer como tremia de medo


ante as ordens do dia da boca que berrava na fantasia do cano
do aço firme que enfia na boca entreaberta que a língua enlaça
passeia na memória opaca de um espelho. O Cão lubrifica o cão

da arma que sublima o desejo jamais revelado, sobe pela pélvis


o tesão irrefreável da morte que faz vibrar em suas mãos o corpo
não consumado. Guarda na boca o gosto do guarda-mato, gatilho
que faz sonhar escorrer o estilhaço pelos dedos melados de porra

e pólvora, num rastilho da febre que vibra junto ao trilho das balas
dentro do cano em brasa, frêmito dos desenganos não cicatrizados
vertigem do cheiro do suor acre não derramado sobre seu sangue
virgem, jamais vertido no gozo das casernas, oculto numa caverna

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do passado. Por isso fascina sonhar com a morte do corpo virtual
do alvo vestido de espirais, vertigem do sangue imaginário que vê
escorrer, delirando a violência com que violará o corpo dos livros
e as páginas das mulheres, o livro místico de Donne de mistérios

nunca revelados como se desvela os segredos do sabor do ferro


que suga, chupa, passa na língua a liga de aço e carbono na arte
da artilharia das armas que nunca fraquejaram como a sua. Sua
soam os estampidos sem direção! Dedos descontrolados de tesão

giram gozam gritam no orgasmo de um disparo precoce. Sempre


o gozo precoce, sempre o gozo da morte precoce dos que caem
como pratos-pássaros e os patos de plástico abatidos no páthos
doentio do tiro ejaculando estilhaços do chumbo nos ecos da dor

anônima que emana da multidão germinando os ovos de chumbo.


Carinhoso, penteia os cabelos sem viço dos mortos, o corpo lasso
pelo cansaço da carne satisfeita. Prostrado no abandono dormita
ouvindo uma ópera cujo libreto incendiou-se antes do primeiro ato.

O FILHO DE NEFELE
Cem mil mortos.

Comecei a escrever este poema quando completamos noventa mil mortos pela pandemia, sabia
inevitável, tal o descaso do facínora, que chegaríamos à triste marca de cem mil.
Por mórbida coincidência, chegamos aos cem mil no dia dos pais. E mal sabíamos quantos ainda
chorariam seus mortos não enterrados.
(Quando terminei de escrever este livro já tinham sido mais de seiscentos mil mortos.

...

Néfele (Nuvem), na mitologia grega, foi um “eídolon” (imagem) de Hera, moldada de nuvens
por Zeus para enganar Íxion, que perseguia a deusa .

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Dessa estranha união entre Néfele e Íxion nasceram os centauros, seres monstruosos, bestiais e
sanguinários, que se alimentam de carne crua.

De tempos em tempos nasce um descendente de Nefele e Ixíon.

Dois mil mortos,


não sou coveiro.

Cinco mil mortos,


e daí?

Quinhentos mil mortos


E agora?

o que dirá, mitômano, que não poderia ser coveiro,


que estes jamais cospem no rosto da dor. Elo perdido
proto-humano, não pode ser coveiro, eles carregam
os corpos em respeitoso silêncio, você traz o horror

entre seus dentes em estridentes alaridos. A morte


lamento, tampouco pode ser, pois ela permanecerá,
e sua memória será apenas a de uma história a ser
lembrada, um aprendizado do erro de uma escolha
Então, traste, quem é você afinal? O filho de Nefele
nefasto herdeiro de uma falsa mulher, um centauro
bêbado, um bastardo bestial e um serviçal da Morte
que o monta cavalga triunfante, tritura sob as patas

corpos sem velórios, enquanto você cospe nos olhos


dos órfãos a seiva do seu veneno, deixa no seu rastro
o adágio dissonante do horror que a morte maestrina
rege. Ah, carrasco, funde com as lágrimas os escarros
que seu escárnio nos atira ao rosto e faz uma mistura

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lilás como a flor da dor não pranteadas, e com a borra
do nosso asco fermenta o mosto desse vinho que sabe
a vinagre e brinda com a morte sua herança. Bêbado

de ódio delira com as miragens dos esgotos da História


na dança macabra como memória da imagem do Cão
que você adora, aquele Belzebu fardado que com tesão
você cultiva e lustra, o malfadado nome que é rima rica

tão infamante que a ânsia cala, ajoelhe-se a seus pés


e beije seus coturnos, um lúgubre Brilhante noturno
sobrenome das sombras das masmorras. Masturbe-se
com o a fantasia da felação da delação e da tortura

cicatriz que o tempo não sutura, hoje você gargalha


agora tem os seus próprios mortos, vai goza no cio
da sua boca imunda e no esgar do sorriso de lagarto
que engasga com a porra do carrasco, essa gosma

escorre dos seus lábios finos, fio dos rios de sangue


que nasceram da cultura da dor da Morte e da tortura.

O PARTO
Seis de agosto de 1945,
a sede de Satã bebe chuva
radioativa um lençol de mortos cobre o céu de Hiroshima.

Dez anos depois em vinte


e um de março de 1955,
escutou-se um trinado em trítono, tortura de um tenor

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de uma ópera desarmônica
glorificando a dor. Outra vez
o Cão, com a sua voz cavilosa se aproximou e rindo

abençoou com urina o corpo


da mulher que urrava maldizendo
o parto desse lagarto sórdido que ante a morte gargalha.

LÚCIO AUTRAN
Poemas enviados para o Caderno poesia resistência – Revista Barroco Digital n. 2. 2022

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OURO PRETO
Para Affonso Ávila

OURO PRETO
DE PRETO, A PELE
DE OURO, A CORJA
OURO PRETO
DE PRETO, A FORÇA
DE OURO, O ROUBO
OURO PRETO
DE OURO, O OUTRO
DE PRETO, O OUTRO
OURO PRETO
DE PRETO, O PESO
DE OURO, A MALA
OURO PRETO
DE PRETO, A BOIA
DE OURO, A JOIA
OURO PRETO
DE OURO, A CASA
DE PRETO, A RUA
OURO PRETO
DE OURO, O FÁCIL
DE PRETO, O FÓSSIL
OURO PRETO
DE PRETO, O FAZER
DE OURO, O PODER
OURO PRETO
DE OURO, O ALGOZ
DE PRETO, O FEROZ
OURO PRETO
DE OURO, A GANA
DE PRETO, O DANO
OURO PRETO
DE PRETO, A GANGA
DE OURO, A PANÇA
OURO PRETO
DE PRETO, A PROLE

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DE OURO, O BANDO
OURO PRETO
DE OURO, A TRETA
DE PRETO, A LUTA
OURO PRETO
DE OURO, O SENHOR
DE PRETO, O PENHOR
OURO PRETO
DE PRETO, O AUDAZ
DE OURO, O SAGAZ
OURO PRETO
DE OURO, O BÔNUS
DE PRETO, O ÔNUS
OURO PRETO
DE PRETO, A CAUSA
DE OURO, O CAUSO
OURO PRETO
DE OURO, A SEDE
DE PRETO, A FALTA
DE OURO, A MORTE
DE PRETO, A VIDA
OURO PRETO
DE OURO, A MINA
DE PRETO, O SOLO
OURO PRETO
DE OURO, O CENSO
DE PRETO, A COTA
OURO PRETO
DE OURO, A BARRA
DE PRETO, A PEDRA
OURO PRETO
DE OURO, AS MINAS
DE PRETO, OS GERAIS
OURO PRETO
DE OURO, O MITO
DE PRETO, O CLICHÊ
OURO PRETO
DE OURO, O SINO
DE PRETO, A SINA
OURO PRETO

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DE PRETO, O BELO
DE OURO, O EGO
OURO PRETO,
DE PRETO, A HONRA
DE OURO, A BRONCA
OURO PRETO,
DE OURO, A ALMA
DE PRETO, A LAMA
OURO PRETO
DE OURO, O VALE
DE PRETO, O ALVO
OURO PRETO
DE OURO, A RAZÃO
DE PRETO, O SONHO
OURO PRETO
DE OURO, A CELA
DE PRETO, A SELA
OURO PRETO
DE PRETO, O NEGRO
DE OURO, O MITO
OURO PRETO
DE OURO, A SUMA
DE PRETO, A SAGA
OURO PRETO
DE OURO, A LAVRA
DE PRETO, O LABOR
OURO PRETO
DE OURO, A FARDA
DE PRETO, O FARDO
OURO PRETO
DE PRETO, O PADRÃO
DE OURO, O PATRÃO
OURO PRETO
DE OURO, O ALTO
DE PRETO, O AUTO
OURO PRETO
DE OURO, O ROUBO
DE PRETO, O MOTIM
OURO PRETO
DE OURO, A GANA

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DE PRETO, A CHAMA
OURO PRETO
DE OURO, O FISCO
DE PRETO, O RISCO
OURO PRETO
DE PRETO, O PAGÃO
DE OURO, O PAVÃO
OURO PRETO
DE PRETO, O MEDO
DE OURO, O TERÇO
OURO PRETO
DE OURO, A TRAIÇÃO
DE PRETO, A MISSÃO
OURO PRETO
DE OURO, A MATRIZ
DE PRETO, A RAIZ
OURO PRETO
DE OURO, O PRETO
DE PRETO, O OURO
OURO PRETO

MÁRIO ALEX ROSA


Poema enviado para o Caderno poesia resistência – Revista Barroco Digital n. 2. 2022

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A LINGUAGEM RETORNA
(...)
ter em mãos ferramentas martelo
alicate
não saber mais habitar país alerta
nem obrar-lhe grandes obras
multiplicar-lhe pés
nem frequentar
suas lições de pedra nem d’água:

enferrujada a garganta de prata em


cobre e estanho estanho
e cobre:
em nada a prata suposta
em tudo a mudes
dos minérios:
nossos pais e herdeiros últimos.

que herdem tarde,

que as
mãos reaprendam suas ferramentas
e as frequentem::
o poema ainda é vivaind-
a

ontem prata, hoje estanho amanhã

MATHEUS GUMENIN BARRETO


Extraído de: Mesmo que seja noite. São Paulo: Corsário-Satã. 2020. p. 12.

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AUGÚRIOS
Para W. B. Yeats

o mundo não está em bom estado


cada um enterra o que é seu
cada morte escolhida
oculta o restante

nem as prateadas maçãs da lua


ou as douradas maçãs do sol
sobrevivem ao mistério inquietante

o mistério no pouso do corvo


a floresta desesperada de sangue
a flauta, onde, na densa fumaça,
flutuam seus ossos

no acaso longo da vida


nada pode impedir
o perigo do agora
mesmo que tudo,
de algum modo, tenha um espectro trágico

calo os tempos difíceis


com a mesma nuvem
que resiste à violência

NATÁLIA AGRA
Extraído de: Noite de São João. São Paulo: Corsário-Satã. 2020. p. 52.

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FOTOGRAFIAS DA IGREJA
DA IMACULADA CONCEIÇÃO
DE CATAS ALTAS DO MATO DENTRO

À distância

De algumas nascentes, pelas maravilhas


da Serra do Caraça teria descoberto
Saint-Hillaire
para ser vista e dominar distâncias
a Igreja de Catas Altas

Em direção à Serra singra mares de infinitos


a nave de calmaria
Branca visão
Vulto
E se o vento cospe tufos de tempestade
ninguém teme
a nave protege o povo
das catas altas

No sereno mar de pedra


ouro azul verde e prata navega
do tamanho de Deus
a Igreja que se retrata

Na praça

De tal vulto, a singeleza


— pão e agasalho do espírito —
mas o risco desta Igreja
o risco da Serra ou do mar

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são linhas da mão de Deus
Procurai cinzas de arquivo
vestígio de letra no mofo
a graça de quem criou
daqueles que construíram
de tal vulto a singeleza
sem nenhum alto relevo
(olha com tanto enlevo
para algum ponto sagrado)
nem que fosse um pelicano
a cabeça de um dos anjos
Tal singeleza é essência
Outro empenho, desperdício
Ciência de criação leva
segredo mistério
(pelas cinco extremidades
de cada torre
— ó lembrança do Oriente —
cintila invisível!
a hóstia do Cosmos)

Aleijadinho e os anônimos

De Antônio Francisco Lisboa


contemplai o crucifixo
no altar da capela-mor

Ó mestre, onde não trabalhou


teu formão contemplo o esplendor!

Roubaram os papéis da Igreja?


(Apenas papéis roubaram?)
Que é de cada recibo
das pagas em ouro de lei?

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Resgatai do esquecimento
o nome dos escultores
o nome dos encarnadores
o nome dos douradores
o nome dos pintores!

Bem da terra
salvação da espécie
passaporte para o eterno:
o homem de cada nome!

O interior inacabado

Revele-se o que não se vê:


Vede o gesto interrompido
e as fases da criação

Os doutores da Igreja à luz natural


O dia inunda a nave
de apenas tábuas rejuntadas
Gregório Ambrósio Agostinho
e Jerônimo suspiram diante
dos brancos emoldurados de silêncio
na capela-mor:
Esta Igreja inacabada
ensina arte e virtude
ostentação não faz reza
muito menos
louvação

Pousou a desafiadora beleza


no interior do Templo
Nos altares de ouro e mármore
também nos descarnados
carne
de incrível madeira dominada!

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Os altares

Duas irmandades
guerreavam nos altares
A capela-mor quase ao cabo
invadem a nave da Igreja
cada lado é uma trincheira
fogo — a imaginação
desafio — a criação
Se a luxúria incrusta altar
no soberbo altar esquerdo
vai ao teto o altar direito
com feéricas figurações
Eram duas irmandades
seus altares são rivais
a desavença desenhou
as soluções desiguais
que no mar de paz da nave
se pacificam m beleza
Seria tratado de paz
concordar com o mesmo púlpito?
Eram duas irmandades:
(Que é do fruto das almas?)
ao lado de ouro e pompa
oferenda de discórdia
Agora em brumas de histórias
cinzas de esquecimento
refulge a ira de Deus
na inconclusão dos altares

Os Anjos

Em vez de andorinhas aos bandos


ou se algum Noé desta nau de tesouros
fizesse entrar a legião dos Anjos

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275
Triunfam na Glória da Imaculada Conceição
ao lado das três Virtudes
do Pai do Filho e do Espírito
na aura de todos os Santos
os Anjos de Catas Altas

Um segura o teto e o lustre


em face e corpo de espanto

Força de muita gordura


Anjinhos sustentam colunas

De leveza muitos outros


esguios apolíneos no espaço
carregam imaginações

Acendem as tochas da capela-mor


de “biscuit” estão no púlpito
voam Anjos pela nave um conduz a Eucaristia
vão ao sonho das crianças asas de pombo
e pelicano

Voam por todo o sempre


os Anjos de Catas Altas

O Senhor dos Passos

Rosto de paixão humana


espectável na divina dor
face de desejo
beleza e pecado
Puro
Santo
Casto
o Senhor dos Passos

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276
Um fantasma

De ouro ornado
veste a cor do tempo
desfolha o padre
os Evangelhos Sagrados

Triste visão de esplendor:


a rica palavra em vão
no púlpito branco —
seguem viagem, os fiéis
na encantada
nau dos Anjos

OSWALDO ANDRÉ
Poema enviado para o Caderno poesia resistência – Revista Barroco Digital n. 2. 2022

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277
O JUÍZO FINAL
(...)
Pacu. Tucunaré. Tambaqui.
Pirarucu.
Castanhas de caju.
Esfaqueei o adolescente preto.
Joguei querosene e pus fogo.
O cheiro não estava tão mal.
Burn, baby, burn.
Detesto arroz com pequi.
Gosto do mar à noite. E da ponte.
Um trem para Nairobi,
um trem para madagascar.

Os japoneses levam tudo a sério.


Os comunistas não têm senso
de humor. Em Bauru, a grama de
pó custa seis reais.
O dólar é o Deus do mundo.
(...)
As garotas gritando pros Beatles.
Nem Hitler conseguiu coisa assim.
O encouraçado Potemkin.
O legista retira minhas vísceras.
Os melancólicos herdarão o mundo?
É deles o resgate do ser?
Self-made-man.
Os palestinos são os judeus dos judeus.
Literatura e forno crematório,
No campo de concentração.
(...)

OTÁVIO RAMOS
Extraído de: O juízo Final. Sabará: Edições Dubolso, 1997.

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GUANABARA: UM MAPA DESCRITIVO
o carnaval é uma convalescença
a baía de guanabara é bela
pelos dentes an-
gulosos — arranha-céus
de boca — de banguela

todo mundo samba cego nela


— édipo de bengala
— abadá: traje de gala —
— lá gallus gallus não cantam manhãs
urubus almoçam carcaça-
moça de sacoplástico e tar–
ta-
rugas na areia suja

por onde surgem andarilhos fugentos


pulguentos guabirus retirantes
rattus rattus alados
primogénitos a correr o fado
multiplicados por pi
-xels mal roenderizados
Amália Rodrigues pia com a guitarra
num disco roído e arranhado

devido à poeira e aos ciscos


suspendidos pelos sismos
das cismas de fragatas gringas
gritando noutra língua —
turistas atrás de encher a boca aqui

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279
de salgados peixes cérberos ali-
mentados a lenga-lengas —
— tendo de 7 barcas zarpado —
sem aguentar os 40 degraus Celsius
do chão de grãos degra-
dados jogados ao azar — do sol-
o de proto-vidro

praia infectada en-


festada de bichos mutantes
fresta de sol que cresta a pele
fukushima antropixalista
ilha de lábios radioativos
ósculos torpes miopes
se s(us)-
urrando hulk de dor

um fudum só

PEDRO ÁVILA
Extraído de: https://casulosblog.com.br/guanabara-um-mapa-descritivo-por-pedro-avila
2019

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280
JENIPAPO E URUCUM

preto e vermelho
presentes dos antigos

tintas árvores
nos corpos escritos

páginas ao vento
cores dos licores

urucum do rubro vivo


pelo brasil afora

jenipapo preto
retinto
guarda um segredo

todos os humanos
incorporam
listram uniformes
vestem totens

RAFAEL FARES
Extraído de: Árvore Nômade. Belo Horizonte: Impressões de Minas, 2019. p. 45.

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281
ÁLBUM DE FAMÍLIA

Meu pai viu Casablanca três vezes (duas


No cinema e uma na tv). Meu avô
Trabalhou na boca da mina. Meu bisavô
Foi, no mínimo escravo de confiança.

RICARDO ALEIXO
Extraído de: Pensando demais para a ventania – Antologia poética. São Paulo: Toda Via. 2018. p. 46.

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282
DENTIÇÃO

Luis XIV nasceu com dentes.


Quatorze dentes, suponho

Sua mãe, don’Ana, teria perguntado:


Para que tanto dente, real herdeiro?
Luis não respondeu, sorriu
Com sua boca cheia de dentes.

Dentistas vieram d’Áustria


Fizeram prognósticos, aplicaram flúor
Recomendaram escovas de cerdas curtas.

Luis XIV, comenta-se


Teve febres intrauterinas, tosse
Mordeu o cordão coçando gengivas.

Nasceu carnívoro.
Como os monarcas.

RITA ESPESCHIT
Extraído de: Lua Gorda. Sabará: Edição do Bolsinho, 2012. p. 29.

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283
A POETISA
para Hissa Hilal, poeta beduína

Um dia não tive rosto


Em outra vida fui beduína
Não recebi moedas ao lavar a lâmpada
nenhuma paga que valha o óleo
queimado nas mãos
Um dia fui beduína aos 43 anos
e meus cabelos louros eram castanhos
com fios brancos sob o niqab negro

Porque também fui beduína


poemas foram queimados
divorciados de mim
debaixo das patas
dos cavalos

Na areia
minhas pegadas são réstias
que resistem

Do couro solado à imagem gasta


de uma boca nunca vista
uma língua vaza
pela fresta

Porque fui beduína


nascida com o dote
da palavra atribuída
à má sorte
Entre estacas provisórias
– escora
para cordas curtas

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284
As letras escritas por minhas mãos
pojaram de uma cana fendida
o leite de pedra
de peitos nunca vistos
e alentaram palavras consoantes
num papel sobre os joelhos
enquanto homens bebiam chá
e riam
à sombra
das tendas de frisa

Beduína, agora levanto o véu


da alma
com a voz do vento
sem trégua

Um eco
centelha no deserto –
rasga a burka do medo
na fenda de um niqab negro

THAIS GUIMARÃES
(Prêmio Off-Flip 2019)
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285
AH!FONSO
(In memoriam)

Em nome do pai, do filho e do espírito,


eu me identifico, hóspede da rua
Cristina, 1300,
residência do poeta

Em nome do pai, do filho e do espírito,


eu me identifico, hóspede da lua,
Cristina, Myriam, Mônica, nos passos

da paixão, e do amor em cada, em quanto,


de André e Victor, Eduardo e Miguel,
Nathalia e Gustavo, Pedro e Isabel

Em nome do pai, do filho e do espírito,


eu me identifico, hóspede da tua
poesia, Cantaria,
e em cada braço te abraço

Em nome do pai, do filho e do espírito,


eu me identifico, hóspede da rua
Cristina, 1300, eu me

identifico, nome de poeta,


e a cada Cláudio me enforco
e em cada Affonso te canto

CLÁUDIO NUNES DE MORAIS


Poema enviado para o Caderno poesia resistência – Revista Barroco Digital n. 2. 2022

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286
Isabel Ávila - ilustração para o poema “AH!FONSO de Cláudio Nunes de Moraes

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287
AS BARROCOLAGENS
DE AFFONSO ÁVILA

Josoel Kovalski1

O
recorte preludia o movimento. Nessa ação de cortar um corpo, o pedaço é remetido ao
trâmite do deslocamento, trânsito que busca um ajuste para outras ações e percepções,
recolocadas em novas formas. Quando do corpo seccionado faz-se poesia, não há
mutilação traumática do organismo, mas concessão, empréstimo, duplicação, reprodução
poética. Designa, ao mesmo tempo, duas operações: extirpar de um e enxertar em outro
corpo. Os dois estados do trecho recortado teimam em permanecerem os mesmos, apesar de
obedecerem a duas instâncias, duas alocações. Ou como disse Antoine Compagnon, a citação

[...] é um órgão mutilado, mas já seria um corpo limpo, vivo e suficiente:


o animalzinho unicelular a partir do qual se explica toda a criação; tem
um coração e membros, um sujeito e um predicado. (COMPAGNON,
1996, p. 36)

Cinese é um transporte. Uma porção de algo que se coloca em um lugar diferente do primordial,
em um espaço outro, um novo contexto, uma parte da possível textualização a dialogar com a
antecedente, com o espaço ilusório da originalidade. Os vazios que ficam são aparências somente
visíveis aos que reencontram a nova poematização recortada da fonte, são vasos comunicantes
entre textos e épocas, viagens, citações. Citar é deslocar, é a cinese em seu étimo grego. Também
é uma evocação latina, um chamar junto, clamar outro texto em socorro de nossas intenções.
Nessa operação, o nascimento de uma nova forma poética, de um novo lugar de poesia, está
associado à permanência da palavra poética transportada – citada – um afixamento com papel
e cola, uma sutura em novo corpo de que faz de outro, de vários, de muitos. Poema-colagem.
O outro formato que as colagens propiciarão, de lugares variados, quem sabe de autores a
princípio distanciados pelas opiniões, temáticas e labutas, será a montagem final, a que reclama
o direito de cidade a partir da reestruturação do poeta citador, jogando recortes cuidadosamente
pensados de formas poéticas e poemas muitos. O poeta monta o edifício a partir de sua leitura.
Quando grifa o subtraço dos versos que destaca, o poeta escolhe pelo desalinho do lápis as
partes que serão remontadas em outras agências, devolvendo em novas roupagens signos que
evocam leituras e reescritas. O trabalho da citação retextualiza fragmentos, recolados na nova

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tessitura poemática. O poeta-manipulador da tesoura e cola, do CTRL+C e CTRL+V, atualiza
em outra arquitetura poemas, citações, provérbios e mídias antigas. O poema é proteiforme,
remoldado às conjecturas do poeta-colador. A ficção do poema também constrói-se na fiação
da lira entesourada no mundo-biblioteca do poeta, na armação e no jogo aberto da colagem,
procedimento que no século XX com os cubistas, futuristas e surrealistas insistiu-se na movência
e sobreescrita como procedimento estético, mas também como alarde, como mensagem.
Nos tempos do barroco, a linguagem proliferava-se em autocitação. Os artesãos da palavra
enquadravam motivos caros e corriqueiros em suas projeções discursivas, aliando à “Bíblia dos
Iletrados” formas de compreensão que o símbolo poderia proporcionar aos leigos, refazendo e
reestruturando temas conhecidos à luz de um entendimento, de uma comunicação. Palavras e
imagens, verbal e não verbal faziam parte do mesmo universo significante, imprescindível um
sem o outro. As molduras caprichosas de línguas e linguagens eram mediadas pela sacralização
religiosa traduzida em motivos tropicalizados – como as santas de Ataíde e os anjinhos do
mestre Lisboa e, munindo-se de eclesiásticas citações latinas, conformavam um território em
que a mescla revelava o mundo seiscentista como o espaço proliferador de formas.
A relação do poeta com seu público era de vertente mais oralmente socializada do que silen-
ciosamente lida e escrita. O poeta era um orador que, aproveitando-se das formas circulantes,
engendrava seus motivos nas maquinarias poéticas que lhe eram apresentadas e com as quais
desenvolvia uma certa intimidade; seu arcabouço poético-discursivo era ampliada pela leitura
e conhecimento das técnicas que seus pares dominavam. Assim, sonetos, redondilhas e canções
eram marcadores de um mundo relacional entre o poeta e sua publicização hodierna e costu-
meira, ficando termos como “autoria” muito aquém do que hoje se pensa em termos de uma
pressuposta autoridade. De maneira semelhante, não somente o discurso advindo das feiras,
mas também de outras esferas menos mundanas invadiam o cotidiano pela palavra moral dos
clérigos e eclesiásticos, reforçando e reverberando o que as imagens sagradas dos templos con-
diziam no momento mágico-lúdico da proliferação sermonística do ente investido dos poderes
terrenos: o locus do sermonista no púlpito, sua roupa característica, sua centralidade discursiva
e monologal ao proferir sua mensagem, respaldada na palavra divina, nas citações obscuras
aos leigos, concatenava o temor sagrado com seu espetáculo dramatizado no palco litúrgico ao
modo de vida que se deveria vigiar, conformar ou privilegiar.
Trazidos os produtos desses atos ao mundo contemporâneo – os sermões em sua forma-livro; os
poemas publicados e desbastados de sua contingência performática e popular do poeta-orador;
a arquitetura e escultura vistas desvestidas de suas peculiaridades factuais, mas mesmo assim
maravilhosas pela composição e apreciação estética, os textos da época barroca – por si mesma
lúdica em artefatos e rica em citações – voltam a significar em outros contextos textualizados
pela tesoura e cola do poeta, cujo procedimento reconfigura movimentos de leituras inovadoras,
porque multiplicadoras. Nas famosas “colagens”, a operação realizada tem motivos estéticos
diferenciados das aparentadas manifestações que, grosso modo, pululam desde o século XII, pois
sempre envolvem transferências de materiais de um contexto a outro. Na definição do Grupo
Mu, na colagem

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Cada elemento citado quebra a continuidade ou a linearidade do discurso e
conduz necessariamente a uma dupla leitura: a do fragmento percebido em
relação ao seu texto de origem; a do mesmo fragmento incorporado a um
novo todo, uma totalidade diferente. O truque da colagem consiste também
em nunca suprimir inteiramente a alteridade desses elementos reunidos
em uma composição temporária. (Apud PERLOFF, 1986, p. 47, Tradução
minha.)2

Cada elemento da colagem vai referir-se a uma realidade externa, muito embora esteja minando,
pela composição, as referências que parece afirmar. (PERLOFF, 1986, p. 47). No caso do discurso
barroco transitado para a contemporaneidade do século XX, o poema que se produz reflete
ambos os dilemas: o do barroco (histórico) e o da sua releitura contemporânea.
Affonso Ávila propôs esse exercício poético – o da colagem – já nos anos iniciais de sua dedicação
ao estudo do barroco mineiro. Percebeu ele que a técnica do “copia-e-cola” poderia, com alguma
habilidade do novo artesão-poeta, reiterar a eficácia de um discurso anterior, e que os recortes,
inseridos em um cabedal totalmente alheio à intenção do “corpo autoral” de quem emprestava os
trechos, projeta-se como uma outra verve, tanto disseminando novos sentidos, como potenciando
o texto cortado, o autor copiado. O mundo barroco se emula na técnica do refazimento, e no caso
de Ávila, barroco é o mundo evocado, desse mundo são os textos combinados, e em barroco
transforma-se o procedimento, lúdico e festivo a um só tempo. Revigorou assim pretéritos trechos
seiscentistas, nem sempre os de maior conhecimento pelos pósteros, característica, aliás, de nosso
ensaísta-barroco que enfrentou textos e eventos ditos “menores” na historiografia, muitos vindos
à lume graças e ele próprio. As colagens barrocas desenvolvidas e experimentadas por Affonso
Ávila são possibilidades da inserção do ficto em linguagens de escopo e recepções extremamente
alheias a um público do século XX e XXI, muito embora não seja a técnica nem de longe uma
novidade. Contudo, analisando a produção poético-ensaística de Ávila, posso constatar que o
prenhe discurso avilano muniu-se cotidianamente do citar de outrem muitas vezes apossando-
se de esferas em princípio díspares em gênero e conteúdo, mas que ele soube, como poucos
manipuladores do texto poético, transformar em matéria verbal: a colagem fez portanto parte
da alquimia verbal de Affonso Ávila, no sentido, digamos, mais formal e explícito, procedimento
que ele continuou desenvolvendo de maneira um pouco mais implícita, mais velada, e por isso
menos reveladora do que a escancarada e curiosa colagem, “forma artística ressonante, atrativa,
evolutiva e passível de múltiplas mídias.” (DRAG, 2020, p. 1)
Saúl Yurkievich, questionando os engessados parâmetros em que se debruçavam alguns
artistas e afins, falou com propriedade da técnica do copiar e colar. Dizia ele que no recorte dos
“fragmentos pré-formados extraídos de obras ou mensagens preexistentes” a integração em uma
nova mensagem revelaria uma poética embasada no dissímil, no dissonante, no descontínuo.
Tal operação dá-se na “sobreposição aleatória, nas contiguidades insólitas, no multiforme, no
multirreferente” (YURKIEVICH, 1986, p. 53). O produto final, compósito de vários discursos,
de vários autores, fragmentos imantados pela lógica racional de quem os sobrepõe, de quem os
une, é caminho trilhado por uma dinâmica “anexionista”, para falar com o crítico argentino, um
procedimento adesivo de implicação também heterogênea.

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Retomada (neo)barroca que lança adiante uma recuperada história constante nos trechos
barrocos recortados, o poema surgido e sua construção final proposta também ajudam a implicar,
na história ressurgida, a visão que o sujeito poético nutria dos eventos. A seleção escolhida
dos recortes revelam, ou podem revelar, o reflexo da carga ideológica em que o poeta estava
inserido. Pois como disse Compagnon (1996, p. 32), “O essencial da leitura é o que eu recorto,
o que eu ex-cito.” Dessa forma, as Barrocolagens de Affonso Ávila inserem ou potencializam
recargas semânticas impelidas pela contemporaneidade dos tempos e espaços do autor mineiro,
ironizando e criticando instâncias políticas e estruturas de poder que se repetem ao longo dos
tempos de perplexidade e de aparentados dilemas. A linguagem descobre e revela uma outra
realidade, uma “instância valorativa, estética e eticamente significativa” (Semana Nacional de
Poesia de Vanguarda, 19633), reformulando a realidade e “induzindo o leitor a tomar consciência
de si mesmo e de sua existência social”. (IDEM). Affonso Ávila, com as Barrocolagens, está
instaurando uma linguagem por manobras, in-citando um jogo com “as palavras de sua tribo”,
uma tribo barroca e concernente à atmosfera mineira, mas que pelo fluxo verbal poetizado
ganha um expansionista status de abrangência nacional.
Os conjuntos transitórios de significação poética alicerçados pela dinâmica lúdica avilana,
captados a partir de textos de variados e diversos matizes, proferidos ou publicados por figuras
barrocas de outrora – as Barrocolagens – agrupam componentes (ou pedaços) de impressões,
emprestando partes de um corpo textual estranho, mas que iluminará o conjunto, o novo órgão
poético, integrado por partes de um todo, disjecta membra, captação de força verbal. Assim,
um discurso do padre António Vieira sobre o amor de Deus, por exemplo, é reinserido, pelas
partes coletadas, em um discurso outro, manipulado, reconduzido, sobre o amor mais corporal,
mais carnal. A forma, antes o parágrafo, lógico e progressivo, tornar-se, transforma-se no fervor
do verso: não somente uma nova vestimenta, mas um novo movimento para frases pensadas e
escritas em outros contextos. Como escreveu Compagnon (1996, p. 36), “A frase vive: podemos
transplantá-la; o que não significa matá-la mas somente intimá-la.” Versificada, a frase entra
em outro estatuto, participa de outra dinâmica, desveste-se de sua ancianeidade mas sem largar
muito longe a roupa que a cobria.
O jogo pode ser sério e não-sério, como avisou Frank Warnke, indicando tal dualidade nos
procedimentos por ele identificados nos poetas metafísicos e barrocos. Esses últimos, nas
considerações do autor de Visions of Baroque, convidam-nos a jogar um jogo cuja linguagem
séria, porque especulativa e dramática, é, ao mesmo tempo cheia de jocosidade e entretenimento,
transformando-se em uma espécie de partida, e cuja exegese explicativa e dissecadora de seus
mais profundos mecanismos tiraria a graça, o encanto, tornando-se uma recusa em entrar
no jogo do poema, da linguagem. Poema-jogo, definiu-o Darby Williams, cujo artigo sobre a
ludicidade do poema muito interessou a Affonso Ávila e seus estudos sobre o “lúdico”, elemento-
chave em sua suma barrocológica. O lúdico foi o conceito operatório de sua leitura barroca
e de seus procedimentos poéticos, de sua maquinaria poemática responsável, entre várias
propostas lúdicas, pelas Barrocolagens que ora consideramos. Com isso, podemos perceber que
o tratamento dado ao jogo como forma de “rebelião do artista” e ao elemento lúdico como forma
de “protesto e participação” (SANT’ANNA, 1972, p. 125) dominaram muito da cena avilana
também em seu fazer poético. Foi Affonso que publicou a tradução por ele feita do artigo de

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Williams em março de 1972, no Suplemento Literário do Minas Gerais, na mesmo edição do dia
18, quando aparece sua primeira Barrocolagem: “SALTAM OS MONTES DAS MINAS NESSA
HORA”.
Vindas à lume em separata em 19814, na Revista BARROCO 11, as Barrocolagens iniciam-se
com uma “capa” em que Affonso Ávila foi fotografado em frente à casa onde nasceu Gregório
de Matos, poeta máximo do barroco brasileiro cuja colagem é consoante no poema 5, não
analisado aqui. A foto em frente ao local tombado pelo IPHAN e que à época funcionava a
União Espírita Baiana” (hoje Federação Espírita da Bahia) pode ser lida como uma “interação
entre texto, fotografia e tradição poética” (SILVA, 2006, p. 160) indicando encontrar-se o poeta
mineiro na linha de tradição do poeta baiano. Além disso, as Barrocolagens são dispostas nas
páginas em caixa alta, recurso gráfico expressivo e valorizado pelo poeta mineiro, que inicia sua
operação textual introduzindo a AA seguida pelo nome dos autores entre parênteses. Como
lembrou Antônio Miranda5 – que acreditava serem as Barrocolagens a chave para se entender
a poesia de Affonso Ávila – “Os especialistas chamam a atenção para a sigla “AA” que aparece
no alto da página, dando a entender que Affonso Ávila é também o crisol ou amálgama de
autores que o precederam, não somente os poetas arcádicos, mas sobretudo os cronistas que
inscreveram a história de Minas.” Percebeu Rogério Barbosa da Silva que os AA6 tanto denotam
“autores”, como conotam, anagramaticamente, Affonso Ávila (SILVA, 2006, p.165). De qualquer
forma, o próprio poeta se inscreve em uma linha de tradição, posicionando-se à frente dos seus
citados, visto que é sua tesoura e cola que farão emergir o novo texto decalcado das fontes que
Ávila, ludicamente, nos indica nos cantos superiores direitos de suas colagens barrocas.
As Barrocolagens foram uma experiência poética colocadas – ou coladas – em 5 partes, ou
movimentos. Indicadas por seu autor como tendo sido compostas entre 1968 e 1975, parece-me
que essas leituras reflexas de seus palimpsestos barrocos e aparentados, de sua enorme gama
bibliográfica de textos em que se debruçou pelas décadas de 1960-70, impregnaram-se como
uma espécie de resto, de eco, de uma sombra fantasmática a acompanhar a produção poética
do ensaísta. Por uma questão de espaço, farei algumas considerações sobre algumas das cinco
colagens. Iniciemos pela primeira.
Ela será apontada como o verso que a abre, “SALTAM OS MONTES DAS MINAS NESSA
HORA”, a chave-de-ouro do soneto do padre José Filippe Gusmão e Silva, dedicado ao bispo de
Mariana, Dom Frei Manuel da Cruz. A peça, constante no Áureo Trono Episcopal, publicado
em Lisboa em 1749, mostra mais uma das homenagens que recebeu o prestigioso bispo quando
de sua investidura na diocese de Mariana, em 1748, evento minuciosamente explorado por
Affonso Ávila nos seus Resíduos Seiscentistas em Minas. Do poeta José Filippe Gusmão e Silva,
tido pelo autor em seu referido estudo como um dos mais virtuosos na “concepção, técnica e
invenção” poética (ÁVILA, 2006, p. 50) é retirado o verso ápice que diz que de alegria, pela
chegada do Bispo, os montes saltam. A colagem, em sua operação cirúrgica, capta o momento
auge em que o Ribeirão do Carmo eleva-se à altura do contentamento em receber um bispado,
e por extensão, tudo o que refletiria em ser uma zona contemplada como o centro religioso das
Minas, refletindo sua elevação à cidade por El-Rei pouco tempo antes, bem como o progresso
que tal ação representava para aquela população.

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Estamos, pois, em pleno mundo barroco mineiro, momento em que a áurea terra, com a chegada
do Bispo vê o destino dourado, como finaliza seu “Epigrama”, Antônio Dias Cordeiro7, poeta
cujo latim o impediu de ser pelo ensaísta analisado nos Resíduos Seiscentistas em Minas, no
capítulo que trata da Academia cultista do Áureo Trono. Contudo, traduzido, vem Antônio
Dias Cordeiro colaborar com a colagem avilana. O dito poema do padre-poeta, em dez versos,
canta um Maranhão que, entristecido, chora a saída de seu Bispo, ao mesmo tempo que a terra
das Minas vê surgir seu futuro garboso graças à instalação do bispado. Porém, justamente nesse
tempo já se iniciava o declínio aurífero e as riquezas começavam, se não a escassear, pelo menos
a não demonstrar tantos sinais de sobejos. O próprio Dom Manuel da Cruz queria evitar festas
por sua chegada por crê-las dispendiosas. Mas se o áureo metal não avultava, de dourados
destinos, de áurea idade a presença de um bispado poderia vaticinar esperanças.
Para encerrar esse primeiro trecho, indicado pelo poeta com o número 1, evoca-se uma frase
de Simão Ferreira Machado, cronista do Triunfo Eucarístico, evento realizado em Vila Rica,
em 1733, e estudado a fundo nos Resíduos, “A GRANDEZA DA FORTUNA CIFRADA EM
BREVE ESFERA DE MATÉRIA E TEMPO”. O poeta embrenhado nos estudos barrocos nos
anos 1960 deixa transparecer em poesia dois textos de fundamental relevância e importância em
sua barrocologia, o Áureo Trono e o Triunfo Eucarístico. Ao mesmo tempo, esses dois textos que
revelam boa parte de seu propósito com tal estudo, a saber, “focalizar aspectos da vida social e
ocorrências de teor cultural que, encarados em seus conjunto, denunciem as raízes seiscentistas
da civilização implantada na capitania” (ÁVILA, 2006, p. 51), são matéria que torna textualmente
o barroco mineiro mais relevante, principalmente pela importância social e coletiva que os
citados eventos ocasionaram com suas festas e movimentação lúdica. Basicamente a barrocologia
avilana, aquela que por mais de quatro décadas se foi desenvolvendo e aperfeiçoando, inicia sua
envergadura com o estudo desses dois textos do século XVIII. Iniciar, pois, suas Barrocolagens
com uma delimitação geográfica e social de seu barroco, elegendo para isso as Minas, é fator
compreensível para quem parte desse locus gerador, barroquizado tanto pelos textos escolhidos
como pelo próprio poeta que o renomeia.
O segundo trecho dessa primeira colagem é um recorte extraído de Nuno Marques Pereira,
chamado Compêndio narrativo do peregrino da América, Volume II, não publicado até o século
XX quando a ABL o faz, em 1939. O episódio faz menção ao que o Peregrino vê pelo óculo mágico
na “Torre Intelectual” (PEREIRA, 1939, p. 137)8, ou seja, os pecados capitais sendo ilustrados
pelo comportamento das gentes das Minas Gerais, evocando a lembrança de que as riquezas nos
fazem ficar desatentos aos princípios espirituais de nossa salvação. Conforme o Peregrino, as
riquezas são “fontes seminárias de donde procedem os pecados, e todos os mais vícios; porque
é certo, que todo aquele que se ocupa em procurar riquezas não pode tratar da sua salvação.”
(PEREIRA, 1939, p. 139). Assim, na dinâmica sequencial do poema-colagem-jogo de Ávila,
tem-se a alegria do progresso urbano e da riqueza, mas tem-se também as consequências dos
descaminhos que nos fazem esquecer as obrigações espirituais, enveredando pelos medievais
sete pecados, mas um resíduo impregnado na imaginação. O trecho 2 encerra-se com a citação
de Bellomodo, interlocutor do Peregrino, que diz:

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ESSES HOMENS E MULHERES QUE TENDES VISTOS
NESTAS PARTES DAS MINAS DO OURO EM TÃO DIVERSAS FORMAS
FICAI ENTENDENDO QUE SÃO OS SETE PECADOS MORTAIS 9

Os trechos mesclam-se entre pedaços de poemas, versos deslocados, trechos da prosa (prévia
alocutória do Triunfo Eucarístico, por exemplo) e de outros livros não compostos para serem
“ficção”. Assim, no terceiro movimento temos o historiador Diogo de Vasconcelos com sua
História Antiga das Minas Geraes explicitando a Revolta de Vila Rica, episódio em que Felippe
dos Santos é morto em 1720. À página 364 da edição de 1904, foi o poeta recortar o movimento
3 das considerações do historiador mineiro.

3
AS MINAS COMO A CÓLQUIDA TIVERAM O SEU VELO DE OURO
DEFENDIDO PELO DRAGÃO QUE NÃO DORMIA
E POR TOUROS QUE VOMITAVAM CHAMAS

Diogo de Vasconcelos, nesse momento, está enfatizando o papel da História na construção


dos mitos, referentes esses últimos à construção de discursos fantasiosos, “pois a história não
é mais a encenação emotiva do maravilhoso tendente ao furor patriótico de nossos ouvintes.”
(VASCONCELOS, 1904, p. 364) Está também revendo o papel do historiador, não prejulgando,
por nosso tempo e ideais, as ações pretéritas, “a menos, que em lugar da História, ponhamos a vida
de figuras romanescas.” (IDEM) Curiosamente, sua analogia para com o evento do protomártir
de Minas Gerais evoca figuras mais míticas que as descritas pelo Heródoto que ele critica. As
Minas como alegoria argonáutica10, se por um lado romantiza o episódio da sublevação, a ele
lança diferenciados olhares, principalmente quando deslocados para a nova dinâmica do verso.
Finalizando o último trecho da colagem é chamado o jesuíta Antonil, quem, evocando sub-
repticiamente a Eneida, coroa a Auri sacra fames das Minas Gerais, indicando que a sede
insaciável do ouro estimulou a tantos de deixarem suas terras e a meterem-se por “CAMINHOS
TÃO ÁSPEROS COMO SÃO OS DAS MINAS, que dificultosamente se poderá dar conta do
número das pessoas que atualmente lá estão”. (ANTONIL, 2011, p. 224) Assim, o primeiro
painel é montado indicando, pela concreção de vários pedaços, um dispositivo antropobarroco,
um indicador da população “transplantada” teorizada nos ensaios de Affonso Ávila publicados
em 1967, 1969 e 1971. Ademais, o perfil sociológico do agora habitante das Minas se caracteriza
em um “esboço de mineiridade” que a meu ver é essa primeira Barrocolagem. De modo áureo,
também termina com chave dourada ao citar o poeta Mathias Antônio Salgado:

4
CAMINHOS TÃO ÁSPEROS COMO SÃO OS DAS MINAS
AI DE NÓS! AI DO REINO! AI DE MINAS GERAIS!

O trecho final, pertencente à Relação das Exéquias11 do “Rei Barroco”, Dom João V mostra,
por um lado, o início do declínio aurífero e econômico das Minas, seguindo, em uma possível
leitura da colagem, um viés cronológico; por outro lado, revela o cabedal de textos principais

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que o ensaísta se dedicou para compor sua teorização barroca, ou seja, três momentos “festivos”:
o Áureo Trono Episcopal de Mariana, o Triunfo Eucarístico de Vila Rica e, por fim, as exéquias
realizadas em 1751 em São João del-Rei pelo passamento do monarca. Affonso Ávila debruçou-
se sobre a festa como teatralização barroca, mas também concluiu que muito da caracterização
do homem barroco do século XVIII nas Minas advinha da dramatização visual da morte. Dessa
forma, os sermões, e em especial o constante na Relaçam fiel comprovam que o dispositivo
festivo daquela sociedade incluía a morte como espetáculo. Diz-nos Affonso Ávila em O lúdico
e as projeções do mundo barroco,

As populações das vilas coloniais mineiras, afeitas a um estilo de vida de


coloração tipicamente barroca, incluíam até mesmo até mesmo a morte ou
o motivo de luto como um ato, ainda que dramático, da sua festa, contínua e
coletiva, um ensejo a mais de afirmação da sua inata disponibilidade lúdica.
(ÁVILA, 1971, p. 189)

O trecho acima faz parte de seu estudo sobre a morte como celebração barroca. Ou seja, seu
poema revela-se como uma súmula avilana de sua teorização, tendo as três festas como elementos
geradores, englobando também considerações de outros autores e textos. Além disso, próprio
do jogo, o poeta coloca a parte final pertencente a um dístico localizado acima da sacristia da
igreja Matriz Nossa Senhora do Pilar, em São João del-Rei, onde realizaram-se as exéquias e
onde deveria estar a máquina fúnebre chamada “Obelisco Funeral”, que reza: “Vae nobis! Regno!
Vae, Aurifodina, tibi!”12 (Relaçam, p. 26). Nesse Obelisco Funeral, com os dísticos visualmente
os ornamentando, repete-se o recurso expressivo do poema-cartaz, processo já verificado
anteriormente nas festas cívico-religiosas de Vila Rica e Mariana. Técnica também explorada
pela poesia de vanguarda brasileira, incitando o leitor da poesia a notar a materialidade da
linguagem consoante nos painéis de poemas, recurso barroco-moderno.
Durante o longo dos anos 1970 vários livros de poemas de Affonso Ávila foram lançados, amostrando
reflexas, na construção poemática, suas pesquisas no âmbito da linguagem poética, da consciência
crítica, indicando a “redescoberta das formas do passado com o frescor do presente.” como
escreveu Rogério Barbosa da Silva (2013, p. 208). Além disso, estava Affonso Ávila questionando
o papel dos artistas em um Brasil cheio de transformações tecnológicas, mas sobretudo, políticas e
governamentais. Em 1969 foi lançado o muitas vezes resenhado Código de Minas, cujas pesquisas
para a produção iniciaram-se em 1963 e que revelaram, ou ajudaram a revelar, não só a codificação
sistemática do autoritarismo embrenhado nas Minas, e, por extensão, no Brasil, mas também o
mundo barroco encrustado na própria condição mineira. Ao mesmo tempo que revolucionaria
a barrocologia brasileira com seus Resíduos Seiscentistas, estava em gestação seu Código, vindo a
lume em época de recrudescido autoritarismo, desmandos e silenciamentos. Depois disso veio o
outro código, o nacional de trânsito, título que remetem-nos à movência e à vivência dos nacionais
sob um código rígido em um país cuja governança autoritária ilustrava-se nas sanções e castigos
para quem desobedecesse o conjunto de leis, muitas vezes não tão exposto, mas cifrado, codificado
nos interstícios, nas dobras do discurso. Como resultado, temos o ponto ápice da crítica obra de
Affonso Ávila, uma poesia que conjuga seus ensaios sobre o fazer poético disseminados em seu

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O poeta e a consciência crítica, de 1969, e que retoma, superados os ânimos vanguardistas de duas
décadas anteriores, uma constante experimentação sígnica, multissêmica, polivalente, captando
modos, formas e discursos de outrora, repaginando-os.
Em fins da década de 1970, mais especificamente em 1978, quando da publicação do Discurso da
difamação do poeta, Affonso Ávila inclui, além dos poemas que intitulam a antologia, partes do
Código de Minas e do Código Nacional de Trânsito e, na sua inteireza, a Cantaria Barroca, série
de poemas sobre Ouro Preto “e o que a Vila Rica pôde e pode significar na cultura brasileira,
na vivência do homem-humano, na sensibilidade do poeta, na consciência do cidadão.”, como
disse Lauro Palú (1979, p. 351) em estudo sobre a poesia de Ávila. As Barrocolagens, por seu
turno, não entram em antologias até o ano de 1990, embora tenham aparecido esporadicamente
em edições do Suplemento Literário do Minas Gerais, em 197213 e 197314. As Barrocolagens ou
“montagens de poemas apropriados de minhas leituras barrocas e congêneres” (BUENO, 1993,
p. 46) encerram-se em 1975, momento-chave na concepção da sua teoria do barroco, como tive
oportunidade recente em demonstrar alhures.15
Seguindo pelas considerações de algumas Barrocolagens, a segunda é a talvez mais famosa,
que “teve sucesso em Portugal” (BUENO, 1993, p. 46) chamada por seu primeiro verso: “OS
REMÉDIOS DO AMOR E O AMOR SEM REMÉDIO”, calcada no famoso sermão de Vieira.
Essa segunda colagem apresenta o tema universal do amor. Saímos do mundo barroco mineiro
da primeira barrocolagem para voltarmo-nos para o século XVI e XVII, quando viveram os
mestres barrocos Vieira, Góngora, Juan de la Cruz, Garcilaso de la Vega. A peça termina com
uma pitada de ironia humorística oswaldiana (AMOR-HUMOR).
A espinha dorsal da colagem, diferentemente da primeira, é um sermão do Padre Vieira em
que, nos trechos recortados, inserem-se fragmentos sobre o amor extraídos dos poetas supra
nominados, um para cada estância do poema. Nesse jogo, a seriedade e rigidez austera vieiriana
são minadas pelas incursões que o amor recebe dos poetas espanhóis, terminando cada subitem
do poema com uma quebra propositada, uma queda no lírico amor, palavra permanente em sua
forma em vários idiomas, que só vai mudar no português ao encontrar, espelhada, o vocábulo
“humor” de Oswald de Andrade, operação tão antropofágica quanto reconhecia o próprio
Ávila a teoria barroca das Américas, percebendo nas respostas dos colonizados ao colonizador
a “síntese antropológico-filosófica da teoria da antropofagia do modernista brasileiro Oswald
de Andrade.” (ÁVILA, 2004, p. 30). As Barrocolagens estão, pois, sumariamente, refletindo a
barrocologia avilana. Arrisco-me a dizer que basicamente toda a sua teorização inovadora do
barroco mineiro, brasileiro e, por extensão, ibero-americano está pulsando entre as dobras dos
cinco movimentos desse grande poema-síntese, construído em vários anos e leituras.
Sigamos pelo sermão de Vieira.
Por muito tempo a prosa, diferentemente do verso e do discurso elevado discurso atribuído
à poesia, tinha como atributo essencial sua “condutibilidade” direta, sem voltas (ou volteios),
apontando diretamente seu alvo, sua exposição. Deveria, assim, dispensar-se de tropos, dos
complementos do discurso poético e artístico. Daí encontrarmos em sua etimologia o adjetivo
latino de primeira classe “prorsa” que, aqui em sua versão feminina indica aquela “que vai em
linha reta”, que se conduz diretamente, donde “provorsa”, o que aponta para a frente. O verso,

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vindo dos sulcos e arados “o que se volta” (de vertere, cujo particípio passado é versus) destaca
as viradas com as rupturas, quebras de linha “cujo efeito depende do que veio antes (voltar), em
contraste com a prosa cujo sentido depende do que está por vir (o fim de uma frase; o próximo
evento no enredo de um romance)”, como tão bem teorizaram Ginsburg e Nandrea (2006, p.
245). Assim como há várias formas de ligação nos versos sobre o que vai para a frente, como o
enjambement, há pausas em que o descanso e a reflexão são exigidos do leitor. Obviamente que
o aprisionamento de um tipo único de percepção leitora para com a prosa e com os poemas
versificados são tão insustentáveis quanto a defesa de um escrita como superior a outra.
Mas como estamos no terreno do poema-jogo e da colagem poética, inseridos no terreno tanto
do mundo barroco quanto da poesia experimental e crítica, nada melhor do que nos divertirmos
com a transposição dos parágrafos tornados versos, em que o maior e mais sublime sentimento
já cantado – o amor – também transforma-se do incondicional Amor do Cristo ao amor-carnal,
veneno em versos. Ademais, estamos em território vieiriano, em que a engenhosidade de seu
discurso vai muito além de mero comentário das Sagradas Escrituras, como muito bem percebeu
Antonio José Saraiva (1980). Como uma chancela, em cada trecho do poema feito do sermão
cortado vem em socorro um poeta barroco; em cada um dos 4 segmentos dessa barrocolagem
– para cada um dos 4 remédios no famoso sermão de Vieira –, aparece, como para confirmar
a nova condução versificada do amor divino para um amor humano, uma entidade poética.
Vejamos o parágrafo que transcrevo do Sermão do Mandato, pregado em Lisboa, no Hospital
Real, em 1643.

Os remédios do amor e o amor sem remédio são as quatro coisas, e uma


só, [...] O primeiro remédio que dizíamos é o tempo. Tudo cura o tempo,
tudo faz esquecer, tudo gasta, tudo digere, tudo acaba. Atreve-se o tempo
a colunas de mármore, quanto mais a corações de cera? São as afeições
como as vidas, que não há mais certo sinal de haverem de durar pouco,
que terem durado muito. São como as linhas que partem do centro para
a circunferência, que, quanto mais continuadas, tanto menos unidas. Por
isso os antigos sabiamente pintaram o amor menino, porque não há amor
tão robusto, que chegue a ser velho. De todos os instrumentos que o armou
a natureza o desarma o tempo. Afrouxa-lhe o arco, com que já não tira,
embota-lhe as setas, com que já não fere, abre-lhe os olhos, com que vê o
que não via, e faz-lhe crescer as asas, com que voa e foge. (VIEIRA, 1958,
p. 158-9)

Nota-se que o poeta não simplesmente pinçou aleatórias frases do discurso para compor curiosos
versos, mas usou basicamente toda a forma paragrafal que inicia o terceiro capítulo do sermão,
colando-o em nova estrutura – o verso – e permitindo que a frase final do soneto de Góngora
“concluísse” a divisão do primeiro remédio: o tempo faz restar, do amor, a amargura, ou na bela
chave gongórica: “Y SÓLO DE AMOR QUEDA EL VENENO”. A experiência temporal faz nos
perder do amor a novidade, como dirá Vieira na sequência. Obviamente o poeta colador está
transportando o poema para a esfera do demasiado humano, pois o amor perfeito “vive imortal
sobre a esfera da mudança, e não chegam lá as jurisdições do tempo”. (VIEIRA, 1958, p. 161)

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Além disso, irrelevante aqui lembrar das oposições barrocas, mas do remédio (tempo) de Vieira
sobra a experiência (veneno) de Góngora. Movimentando suas instâncias, o poeta dispõe em
contraposição ao amor que cura, o veneno de que se arma o amor em “La dulce boca que a
gustar convida”.
Na sequência, após recortar a “ausência” e tudo o que ela reclama (mudança, distância, saudades,
lágrimas) e carimbar o texto colado com um fechamento do poeta místico Juan de la Cruz (1542-
1591), Ávila expõe quase que como uma “amostra” o terceiro remédio, a ingratidão, sentimento
colocado pelo padre jesuíta como o “mais forte”, conquanto na colagem barroca ganhe menos
espaço. Enquanto “o tempo e a ausência combatem o amor pela memória”, a ingratidão o faz
“pelo entendimento e pela vontade” (VIEIRA, 1958, p. 181). Assim,

3
O TERCEIRO REMÉDIO DO AMOR É A INGRATIDÃO
E FERIDO O AMOR NO CÉREBRO E FERIDO NO CORAÇÃO,
COMO PODE VIVER?
QUIEN SUFFRIRA TAN ASPERA MUDANÇA
DEL BIEN AL MAL? O CORAÇÓN CANSADO!

Sem pretender fazer uma exegese, notamos o par entendimento/memória ferindo, pela
ingratidão, tempo e ausência o cérebro e o coração do amor, sede da lembrança, pelo menos para
Vieira. Dessa maneira, a pergunta que divide a estância, provinda de considerações teológicas
sobre o amor, descamba como epicentro do poema a conjugar tanto Vieira quanto Garcilaso de
la Vega: Como pode viver? Ou seja, como o amor ferido pode resistir? O coração tomado na
ingratidão sente-se cansado, áspera mudança. O deslocamento para o óbvio amor carnal, quase
romântico, permite a condução do poema como tema também deslocado.
Para finalizar, o último remédio: o melhorar do objeto, ou seja, algo que venha maior para
obnubilar o menor, pois diz Vieira (1958, p. 190), quase que ironicamente, que “um amor com
outro se apaga”, e se dois amores no coração lutam, “sempre fica a vitória do melhor objeto”,
donde a conclusão na barrocolagem, “EM APARECENDO O MAIOR E MELHOR OBJETO,
LOGO SE DESAMOU O MENOR”. O amor, em última instância, se “não é intenso não é amor”,
ou seja, a conclusão última é a de que o sentimento que moldara praticamente toda a história
literária universal, que atravessou oceanos e séculos, sempre pode ser substituído por um outro
amor, um amor de outro ente. Obviamente que Vieira estava falando do amor divino, que eterno
e imortal se comparado ao amor carnal e terreno, mas ao poeta colador, seguindo a dinâmica
expositiva que se apropria para descrever o sentimento, nada mais interessante que concluir com
a deixa oswaldiana AMOR/HUMOR, pois para esse outro sentimento se envereda a própria
constatação do amor infinito enquanto potencialidade duradoura, mas que ironicamente
sucumbe na apresentação de outro objeto, melhorado, modificado.
A próxima “colagem barroca” de Ávila que veremos apareceu em 21 de abril de 1973, data em
que se lembra da infame morte do Patrono da Nação Brasileira, Joaquim José da Silva Xavier, o
Tiradentes. O poema foi publicado no Suplemento Literário do Minas Gerais, sendo para aquele
momento ilustrado com desenhos de Márcio Sampaio.

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Seus evocados, citados e colados em nova disposição e tema – o poema de colagem barroca –
relembram e reproduzem, pela escolha de Affonso, passagens célebres de documentos oficiais
e de historiadores intérpretes dos processos de prisão, flagelação e morte do alferes. Assim,
encabeçam o poema as indicações dos Autos de Devassa da Inconfidência, seguidos por Lúcio
José dos Santos e, finalmente, Francisco Antônio Lopes. Essa “Barrocolagem” foi subdividida
por seu autor em 7 partes. Iniciemos, como mera exemplificação, pela primeira:

1
JOAQUIM JOSÉ DA SILVA XAVIER: ALFERES DO REGIMENTO DA
CAVALARIA PAGA DE MINAS GERAIS, TEM MUITO GRANDE
NÚMERO DE TESTEMUNHAS, QUE O CULPAM EM QUE PROFERIA
AS SEDICIOSAS PROPOSIÇÕES, DE QUE - A AMÉRICA PODIA SER
INDEPENDENTE, E LIVRE DA SUJEIÇÃO REAL, E QUE OS FILHOS
DELA ERAM UNS VIS E FRACOS QUE NÃO FAZIAM, O QUE FIZERAM
OS AMERICANOS INGLESES, QUE ELE SE ACHAVA COM ÂNIMO
DE CORTAR A CABEÇA AO GENERAL CONSERVA-SE PRESO NA
FORTALEZA
É FILHO DE MINAS

Affonso Ávila inicia, como a capita do poema, como trecho introdutório, a referência que se
seguirá ao longo desse movimento 3 das Barrocolagens, a saber, a “Lista das pessoa presas”
constante no volume VII dos Autos de Devassa. Tanto encabeça a lista (2016, p. 47), quanto o
poema o nome à época sinônimo de ignomínia, alferes da cavalaria paga de Minas Gerais.
Rui Mourão já dizia (1962, p. 153) que cada composição de Affonso era uma “tentativa de superação
de formas já alcançadas e de audaciosa incursão em novos planos de sensibilidade”. Assim, trata-
se de um poeta que está sempre apresentando como poema último “aquele que oferece a medida
última de seu amadurecimento”. Mergulhando nas raízes barrocas do século XVIII, o século
que revelava os resíduos caracterizadores de dita mineiridade, tanto perseguida como índice de
mentalidade mineira, como “inventada” pelos poetas, para concordar com Maria José de Queiroz
que já em fins dos anos 1960 dizia que “A mineiridade não está em Minas, mas nos poetas que
a inventaram”. Essa barrocolagem, fazendo-se a partir dos Autos condenatórios e de um libelo
acusador prontamente listado com os nomes dos “párias”, reflui-se em inventiva e fecunda práxis
contemporânea ao poetizar, como forma ajustada ao movimento, uma nova pele, um novo corpo
reformulado pelo tema do único a sofrer a condenatória pena capital, cabeça perdida desse novo
corpo poético, reinserida como objeto bizarro de expressão de poder e exemplo de punição aos
que pensassem em liberdade, assombrando os contemporâneos da Vila Rica conspiratória.
O assunto, é bem verdade, sempre esteve presente nas constatações e considerações de Affonso
Ávila. Ele via a Inconfidência como um projeto de nação possível, e seus personagens como
celebridades de um viver poético, lastro de uma Minas Gerais humanizada por um Iluminismo
tropical. Seguindo, pois, essa barrocolagem com o tema do Tiradentes e a Inconfidência Mineira,
vem o colador em seu poema mostrar, como auge de sua maturidade e da sua pesquisa histórica
das Minas seiscentistas, o evento máximo do mundo barroco mineiro, aquele que fechava o
século XVIII com as cores do neoclássico iluminista de Gonzaga, do discurso reto do cônego

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Luís Vieira, mas século que em sua estrutura e em seu pensamento ainda vigoravam o fluxo
barroquizante arcaico e resistente, alicerçando esquemas governamentais baseados na condição
subalterna dos protegidos, nas disputas internas pelas graças de sua majestade representada em
avatares locais tão torpes ou questionáveis quanto a estrutura que se criticava, e contra a qual
pretendia se levantar.
Passando para o segundo subitem dessa colagem, a terceira das Barrocolagens, o poeta, “guiado”
pelos Autos de Devassa e subsidiado pelos historiadores do século XX, Lúcio José dos Santos e
Francisco Antônio Lopes, vai nominar os envolvidos na conjuração tendo como especificidade
seu local de nascimento, nesse caso Minas Gerais. Além disso, a ordem de encabeçamento na
listagem está, a meu ver, condicionada à importância que os nomes inseridos tiveram para com
o “caso” Tiradentes. Dessa forma, encima o que poderíamos chamar de corpo poemático, de
um todo orgânico do tronco da Inconfidência, os nomes de Domingos Fernandes Cruz (em
sua casa encontrava-se escondido e fora preso o alferes) e Manuel José de Miranda (que teria
tentado favorecer a fuga de Joaquim José), ambos presos e filhos de Minas, características
também definidora dos outros oito citados do subitem 216. Os demais componentes desse
trecho do poema também são “filhos de Minas”, mas ainda não estavam presos no momento da
redação dos Autos, cuja “lista” de pessoas presas fora redigida ainda em 1789. O último citado
dos “mineiros” foi Cláudio Manuel da Costa, que não se enquadrava nos dois quesitos acima
(ainda por prender ou está preso), pois apareceu morto na prisão.
Depois de Tiradentes, o “cabeça”, seguido pelos “mineiros”, teremos a parte 3 do corpo poético
recortado dos Autos. Essa parte inclui apenas três nomes, todos nascidos ou filhos “da capitania
do Rio de Janeiro”. São eles: Salvador do Amaral Gurgel, Francisco de Paula Freire de Andrade
e Ignácio José de Alvarenga Peixoto. Na parte 4, seguindo o mesmo esquema da parte anterior,
temos os “filhos da capitania de São Paulo”: Manuel Joaquim do Rego Fortes e os irmãos Carlos
Corrêa de Toledo e Mello e Luiz Vaz de Toledo Piza.
Na parte 5 aparecem os “filhos do Reino”, os nascidos em Portugal e que, estivessem ou não
presos em 1789, tiveram parte na conjuração. São eles: Antônio de Oliveira Lopes, Vicente
Vieira da Motta, Domingos de Abreu Vieira e, finalmente, Tomás Antônio Gonzaga. De Minas
Gerais, passou-se geograficamente por São Paulo e Rio de Janeiro atingindo, por fim, Portugal
de onde emanavam inclusive figuras intelectuais, ou de lidas voltadas ao labor mental, como
o guarda-livros Motta ou o poeta com “capacidade para direção das leis e governo”, Gonzaga.
Além do Tiradentes, Affonso Ávila lista 30 nomes, terminando com o estrangeiro “natural da
Irlanda”, Nicolau Jorge Gwerk. A parte final da “peça histórica”, a Barrocolagem 3, encerra-se
com o subitem 7, como segue:

7
HÁ MUITAS PESSOAS QUE ERAM SABEDORAS E MUITAS EM QUE SE
DÃO PRESUNÇÕES, PRINCIPALMENTE OFICIAIS DO REGIMENTO
DE MINAS, QUE SÃO PARENTES UNS DOS OUTROS OU POR SI OU
PELA ALIANÇA DOS CASAMENTOS; MAS JUDICIALMENTE NÃO
HÁ PROVA, PORQUE TODOS SE ACAUTELARAM EM NÃO QUERER
DIZER NADA.

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Citando quase que textualmente o desembargador José Cedro Machado Coelho Torres, redator
da “Lista de pessoas presas”17, nosso poeta encerra a peça “colada” em seu movimento 3, o
mais “histórico” das “Barrocolagens”. Suas escolhas recortadas mostram a recarga semântica
reveladora de sua dicção poético-ensaística, semelhante a que o caracterizou na cunhagem dos
grandes estudos que fazia sobre o Barroco no Brasil e, em especial, em Minas Gerais, palco
das formulações dos conjurados, locus capital cuja Vila Rica foi o epicentro. Sim, movimento
malfadado, não realizado, a conjuração ficara à boca-pequena, nos diz que diz a alimentar
com regozijo torpe as intenções dos traidores e delatores principais. Mas, também, populares
de alguma forma dele sabiam, assim como alguns militares, milicianos, parentes e conhecidos,
além de alguns apadrinhados politicamente e que, senhores do dinheiro, acabaram escapando
ilesos. Havia-se de punir exemplarmente um, precisava-se, pelas provas e procedimentos
judiciais, embasar a escolha de quem pagaria a conta, com a vida, um sonho de liberdade. Essa
barrocolagem não somente sintetiza o evento, estruturando-o no ano de 1789, como faz jogar
com o que dele sabemos, com o que aconteceria para além do relatado, do recortado-colado.
Escolheu Affonso colar as figuras principais e menores do processo indicando, além de onde
provinham, suas situações de encarcerados ou ainda não presos à época.
As Barrocolagens foram um empreendimento único na poética avilana. Já defendi que seus ensaios
são poéticos, mas nenhuma produção poemática revelou tanto de sua construção ensaística,
de suas leituras barrocas, de sua suma barrocológica, sem dúvida, uma das mais peculiares
das Américas. Nossas considerações sobre sua poesia lúdico-barroca englobam tantos fatores
sintetizados nos versos escolhidos, nas linhas poéticas geradas a partir de momentos prosaicos,
históricos ou factuais que acabaram se agigantando, fator que nos fez deixar para outrem as
considerações sobre duas peças restantes, os movimentos 4 e 5 das Barrocolagens de Affonso
Ávila, embora acredite que o método seja o mesmo e sua subtração não desabone a análise que
fizemos das amostras elencadas por essas laudas.
A poesia-jogo, fator de semelhança entre a visualidade das vanguardas e o período barroco
mostra-se como procedimento não somente curioso, mas de uma abordagem desdobrada em
vários discursos e eventos: cada verso decalcado, cada frase colada em verso supõe, escondidas
em seus vãos, um encadeamento histórico, amostra heroica de um momento, uma “épica do
instante” construída como uma partida de um jogo barroco, no qual assumimos adentrar e
responsabilizando-nos por onde sejamos levados. A poesia de Affonso Ávila conduz-nos pelos
enredos da mineiridade, pelos desvãos do século barroco em Minas Gerais, refletindo em verso
e prosa o mundo barroco que a todos encanta e que sua poesia consegue ainda mais tornar em
evidência, uma evidência poética manejada por um mestre dos versos, competente até mesmo
nas escolhas das frases de outrem, revelador dos espaços e tempos do homem barroco.

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Referências
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Affonso Ávila). In: Minas Gerais. Suplemento Literário. Belo Horizonte: 18/03/1972.

Notas
1 Josoel Kovalski - Doutor em Letras pela UFPR.

2 Each cited element breaks the continuity or the linearity of the discourse and leads necessarily to a double reading:
that of the fragment perceived in relation to its text of origin; that of the same fragment as incorporated into a
new whole, a different totality. The trick of collage consists also of never entirely suppressing the alterity of these
elements reunited in a temporary composition.

3 Disponível no Apêndice (p. 133 a 138) de O poeta e a consciência crítica. (1978)

4 Depois republicadas em ÁVILA, Affonso. O visto e o imaginado. Editora Perspectiva, 1990; e em ÁVILA,
Affonso. Homem ao termo: poesia reunida (1949-2005). Belo Horizonte: UFMG, 2008.

5 http://www.antoniomiranda.com.br/ensaios/affonso_avila_ensaio.html

6 Quando da publicação das Barrocolagens no Suplemento Literário de Minas Gerais, em 1972 e 1973, assim
como na publicação da segunda Barrocolagem “Os remédios do amor e o amor sem remédio”, em 13 de maio
de 1973 na revista Colóquio-Letras de Portugal, o nome do autor mineiro aparece por extenso.

7 O verso escolhido, também o final, traduzido por José Lourenço de Oliveira, “VÊ SUA ÁUREA IDADE A
ÁUREA TERRA” (“Aurea nunc fatis Aurea terra videt”) (Áureo Trono Episcopal, p. 147)

8 O óculo do alcance é uma alegoria para o discurso, “pelo qual se conhece tudo aquilo que se pode imaginar com
livre entendimento” (PEREIRA, 1939, p. 138), assim como a “Torre intelectual” é alegoria para o entendimento
do homem.

9 Antes disso o Peregrino descreve a Bellomodo o que vê, a saber: “Vi pelas ruas destas vilas a uns homens
pendenciando com outros, e vi a outros homens arrastando sacos e canastras pelas ruas e estradas. Vi a outros
correndo atrás de mulheres, e as mulheres correndo atrás de homens. Vi a outros, como loucos, saltando e
mordendo a si próprios. Vi a outros assentados em mesas de muitos manjares, com as bocas e as mãos cheias,
e outros com frascos e garrafas postos à boca. Vi a outros arrepelando-se e puxando pelos cabelos e barbas. Vi
a outros em varandas, e outros debaixo de sombras de arvores dormindo ao sono solto.” (PEREIRA, 1939, p.
137-138)

10 Os Argonautas, para Diogo de Vasconcelos, seriam os descobridores paulistas. Cf. ROMEIRO, Adriana. Diogo
de Vasconcelos: um historiador para as Minas Gerais. In: ROMEIRO, Adriana; SILVEIRA, Marco Antonio
(ORGS). Diogo de Vasconcelos: o ofício do historiador. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.

11 Monumento agradecimento, tributo da veneraçam, obelisco funeral do obsequio, RELAÇAM fiel das reaes
exequias, que á defunta Magestade do fidelíssimo e augustissimo rey o senhor D.JOÃO V. etc. Lisboa:
Officina de Francisco da Silva, 1751.

12 “Ai de nós! Reino! Ai de ti, Minas!”. Affonso Ávila usou a tradução do dístico realizada pelo erudito padre
Lauro Palú.

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13 Saltam os montes das Minas nessa hora.

14 Joaquim José da Silva Xavier: alferes

15 Em minha tese intitulada “Affonso Ávila e a barrocologia americana: pensamento barroco e releitura das
Américas”. Nesse trabalho, comparo as principais teorias do barroco advindas da tríade cubana – Carpentier,
Lezama Lima e Severo Sarduy – fazendo-as dialogarem com a barrocologia avilana.

16 São eles: Francisco Antônio de Oliveira Lopes, Luís Vieira da Silva, José Álvares Maciel, o padre José Lopes de
Oliveira, Domingos de Vidal Barbosa, João da Costa Rodrigues, Manuel da Costa Capanema e o padre José da
Silva de Oliveira Rolim.

17 Ou “Lista das pessoas que se acham presas em consequência das notícias de que se premeditava uma conjuração,
e em consequência das diligências judiciais a este respeito, dando uma ideia das presunções ou provas que
resultam contra cada uma delas.” (2016, p. 47)

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AA (José Filippe de Gusmão / Antônio Dias
Cordeiro / Simão Ferreira Machado / Nuno
Marques Pereira / Diogo de Vasconcellos /
Antonil / Mathias Antônio Salgado)

1
SALTAM OS MON11ES DAS MINAS NESTA HORA
V'.m SUA ÃUREA IDADE A ÃUREA TERRA
A GRANDEZA DA FORTUNA CIFRADA EM BREVE ESFERA DE MATÉRIA E DE TEMPO
2

VI PELAS RUAS DESTAS VILAS A UNS HOMENS PENDENCIANDO COM OUTROS


E VI A OUTROS HOMENS ARRASTANDO SACOS E CANASTRAS PELAS RUAS E
ESTRADAS
VI A OUTROS CORRENDO ATRAS DE MULHERES E AS MULHERES CORRENDO ATRAS
DE HOMENS
VI A OUTROS COMO LOUCOS SALTANDO E MORDENDO A SI PRõPRIOS
VI A OUTROS ASSENTADOS EM MESAS DE MUITOS MANJARES COM AS BOCAS E AS
MÃOS CHEIAS
E OUTROS COM FRASCOS E GARRAFAS POSTOS Ã BOCA
VI A OUTROS ARREPELANDO-SE PUXANDO PELOS CABELOS E BARBAS
VI A OUTROS EM VARANDAS E OUTROS DEBAIXO DE SOMBRAS DE Ã.RVORES
DORMINDO A SONO SOLTO
ESSES HOMENS E MULHERES QUE TENDES VISTOS
NESTAS PARTES DAS MINAS DO OURO EM TÃO DIVERSAS FORMAS
FICAI ENTENDENDO QUE SÃO OS SETE PECADOS MORTAIS
RESENHA
PATRIMÔNIO CULTURAL E
REVOLUÇÃO TECNOLÓGICA:
OS MEIOS DIGITAIS PARA AMPLIAÇÃO DAS PRÁTICAS CULTURAIS

O
livro Patrimônio Cultural e Revolução Tecnológica destaca-se as relações sociais na
contemporaneidade, pois são pautadas por meio do desenvolvimento da cibercultura
e da diversidade cultural, na sociedade conectada virtualmente. A cibercultura cria
influências no meio ambiente cultural, porque as novas tecnologias passaram a fazer parte da
cultura e sua reinterpretação.
Os dispositivos jurídicos que regulam o ambiente cultural onde o ser humano está inserido
refletem no modo de vida e nas relações sociais e virtuais da sociedade. O meio cultural influencia
no modo de pensar, criar, agir e fortalece o desenvolvimento da identidade e memória cultural
de um povo e, na atualidade, passaram a ser potencializadas pelas tecnologias digitais.
A positivação desses direitos cul-
turais encontra-se na Constituição
Federal brasileira de 1988, nos ar-
tigos 215, 216 e 216 A, que são os
dispositivos que tutelam o pleno
exercício dos direitos e garantias ao
acesso às fontes das diversidades de
culturas no âmbito nacional. Os di-
reitos culturais estão consolidados
também na Lei de Incentivo à Cul-
tura n° 8.313/91, que instituiu o Pro-
grama Nacional de Apoio à Cultura
(Pronac), cuja finalidade é captar e
canalizar recursos para o setor cul-
tural. As Leis estaduais também im-
plementam a proteção à cultura e, no
Estado de Minas Gerais, por exem-
plo, a Lei n° 22.944/2018 institui o
Sistema Estadual de Cultura, o Sis-
tema de Financiamento à Cultura e
a Política Estadual de Cultura. Esses
dispositivos jurídicos são norteado-
res para efetivação do acesso à cultu-
ra e proteção dos direitos e deveres

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dentro do meio ambiente cultural, juntamente com o art. 216-A da Constituição Federal Bra-
sileira de 1988.
Referente a essas relações sociais culturais e virtuais potencializadas pelas tecnologias, evidencia-
se a pesquisa iniciada no ano de 2017, na cidade de São Paulo, no Centro Regional de Estudos
para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br) e no Núcleo de Informação
e Coordenação do Ponto BR (NIC.br), onde se desenvolve o estudo sobre as influências da
Cultura e Tecnologias no Brasil.
Nesse teor, entre cultura e tecnologia, projetos culturais são criados dentro do meio ambiente
cultural, utilizando as potencialidades da inteligência artificial para propiciar interações
diretas entre os diversos públicos, como por exemplo, o projeto “A voz da arte” na pinacoteca
de São Paulo. O projeto inédito no Brasil, iniciado em abril de 2019, demonstra o potencial
da exposição, divulgação, interação das obras de artes plásticas com a inteligência artificial e
a instituição cultural cria desenvolvimento cultural, econômico e sustentável, expandindo
essas ações para museus, teatros, pinacotecas, entre outras instituições e patrimônios. Essas
tecnologias digitais usadas em exposições e no ambiente cultural ampliam as recriações digitais
e propiciam reconexões entre a sociedade, obras de artes e artistas.
Diante do exposto, o trabalho destaca o seguinte questionamento: O meio digital pode ser
utilizado como forma de proteção de culturas e modos de vida, no Brasil contemporâneo?
A pesquisa tem como objetivo geral, investigar as proteções intergeracionais do direito ao
acesso à cultura, dos patrimônios e do meio ambiente cultural e sua relação com os meios
digitais das novas tecnologias de informação como instrumento de valorização, preservação
e disseminação das manifestações culturais no século XXI no Brasil. São estabelecidos como
objetivos específicos:
• Definir o conceito de cultura, meio ambiente cultural, patrimônio cultural, meio ambiente
digital, cibercultura, ciberespaço.
• Analisar quais as diretrizes desenvolvidas pela internet e suas tecnologias digitais que
ampliam a proteção e busca de fomentos para a cultura.
• Indicar quais os dispositivos jurídicos, leis, decretos do ordenamento jurídico brasileiro
são utilizados para garantir e proporcionar acesso à cultura, mediante as potencialidades
da internet e o meio ambiente digital.
• Identificar se existe desenvolvimento sustentável exercido pela administração pública e o
setor de gestão no meio ambiente cultural no Brasil.
• Compreender os instrumentos das novas tecnologias digitais e dos meios de comunicações
e verificar se são protegidos pelo ordenamento jurídico brasileiro adequadamente, para
disseminar manifestações culturais.
Nessa abordagem, a hipótese assim se apresenta: o meio ambiente cultural para a sociedade possui
importância indispensável na formação humanitária para o desenvolvimento do exercício da
cidadania e da efetivação de direitos fundamentais, influenciando na formação ética e moral de
cada indivíduo. A sociedade se desenvolve inserida no meio ambiente cultural e digital, pois as

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inovações tecnológicas se mostram mecanismos de democratização para preservação e proteção
de bens, patrimônios e instituições culturais.
Constata-se que os meios digitais (internet) criam conexões e extensões para maior proteção,
prevenção, fiscalização, transparência e disseminação de políticas públicas culturais. A utilização
do meio digital, nas instituições culturais, desenvolve progressos culturais, sociais e econômicos
para a sociedade.
Nesse âmbito que envolve as instituições e o meio ambiente cultural, torna-se necessário o
desenvolvimento da educação patrimonial, como fator base na formação da cidadania, com
participação comunitária, a fim de que se alcance a proteção e a valorização de patrimônios,
centros culturais e manifestações artísticas.
O presente trabalho se desenvolve por meio da pesquisa qualitativa, sendo os objetivos da pesquisa
exploratórios, com viés explicativo e descritivo, com ênfase à proteção cultural, mediante as
potencialidades dos dispositivos tecnológicos e leis que regulam o meio ambiente digital.
De fato, utiliza-se a metodologia dialética para a compreensão dos motivos, percepções,
interações e discursos produzidos pelos patrimônios e instituições culturais no Brasil. Serão
utilizados os métodos dialético e comparativo, interligados com o hermenêutico, argumentativo
e empírico (análise de casos concretos), aplicando-se as técnicas de pesquisa com abordagem
bibliográfica em doutrinas, artigos científicos, dissertações e legislações.
Acrescentam-se, como referenciais teóricos, as obras de Pierre Lévy, Cibercultura e O que é
virtual? Na mesma conjuntura será utilizada a obra do autor Bruno Zampier Lacerda, intitulada
como “Bens Digitais: cybercultura, redes sociais, e-mail, músicas, livros, milhas aéreas, moedas
virtuais”. Na sequência a essas temáticas, os autores Roque de Barros Laraia e Luiz Gonzaga de
Mello são utilizados para esclarecer e definir conceitos no âmbito cultural.
O livro se divide em sete partes, sendo a introdução e o desenvolvimento, a partir do primeiro
capítulo até as considerações finais. No capítulo dois inicial, apresenta-se a história mundial da
proteção do patrimônio cultural, demonstrando-se a realização de eventos, congressos e convenções
ao longo dos anos que foram essenciais para promover o reconhecimento e expansão da proteção
dos patrimônios em diversos países. Em seguida, busca-se discutir a história da proteção cultural
no Brasil, com o surgimento de legislações e decretos para garantia da valorização e preservação
dos bens. A partir dessas perspectivas abordadas, relata-se a proteção atual do patrimônio cultural
brasileiro, bem como se apresentam os instrumentos usados para viabilizar melhor fiscalização,
monitoramento e progresso dos patrimônios e relações socioculturais.
No terceiro capítulo, abordam-se a origem e as características da revolução tecnológica,
demonstrando-se que teve início no Estados Unidos e se expandiu para outros países, devido à
elaboração, acesso e expansão de programas com as interconexões das funções dos computadores.
No quarto capítulo, desenvolve-se a análise dos conceitos e desdobramentos do meio ambiente
digital, da cultura e do meio ambiente cultural. De fato, demonstram-se as especificidades das
ligações e influências que ocorrem entre essas áreas e a população, já que os patrimônios e a
cultura fazem parte da história da sociedade e as relações socioculturais são compartilhadas no
ambiente digital, juntamente com as tecnologias.

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Nesse contexto, no quinto capítulo do livro apresentam-se os princípios do direito cultural no
Brasil, os quais são importantes no ordenamento jurídico brasileiro, por possibilitarem melhorias
na preservação do ambiente cultural. No capítulo sexto, explicitam-se as diretrizes dos princípios
do direito ambiental brasileiro, expondo-se como foram criados, desenvolvidos e aplicados para
nortear a proteção dos patrimônios e relações socioculturais no ambiente cultural e digital.
Nesse mesmo sentido, no sétimo capítulo demonstram as interações do meio ambiente cultural
e do ambiente tecnológico. Assim, destacam-se como os patrimônios, as instituições e relações
socioculturais estão cada vez mais interconectadas aos dispositivos tecnológicos e funções no
ambiente digital. Por fim, nas considerações finais, verifica-se a necessidade de eficiência do
aparato jurídico brasileiro para garantir progresso na proteção e preservação dos patrimônios e
relações socioculturais no ambiente digital.
No decorrer dessa análise do livro, verificou-se que as influências do desenvolvimento do
aparato jurídico no transcurso da história da proteção do patrimônio cultural no Brasil foi base
fundamental para legislação da proteção dos patrimônios na contemporaneidade. Constatou-
se, também, que as influências dos progressos legislativos refletem na Constituição Federal
Brasileira de 1988, conforme será abordado a seguir.
Na compreensão dos relatos a respeito do desenvolvimento jurídico no decorrer dos anos, no
Brasil, para a proteção dos patrimônios e do ambiente cultural vinculado com o ambiente natural,
destaca-se primordialmente a Constituição da República do Brasil de 1988. Essa Constituição
passou a tutelar o ambiente natural fundamentado no artigo 225, estabelecendo a proteção dos
patrimônios e do ambiente cultural, através da positivação nos artigos 215, 216 e 216 A.
No que tange à Constituição da República do Brasil de 1988, especificamente para a proteção
dos patrimônios e o ambiente cultural, percebe- se que a Constituição recepcionou o Decreto-
Lei nº 25 de 1937, estabelecendo tal dispositivo jurídico tivesse força vinculante no território
nacional. O Decreto influenciou outros dispositivos jurídicos na Constituição visando à proteção
e preservação dos patrimônios culturais materiais no Brasil.
Ademais, o progresso da revolução tecnológica e do meio ambiente digital se desenvolve como
ferramenta de inclusão e de fácil acesso para a melhoria das instituições e do ambiente cultural,
pois reflete constantemente na contemporaneidade, influenciando o Estado e a população, a
fim de proteger e preservar a diversidade das manifestações culturais. Indubitavelmente, as
tecnologias junto ao ambiente digital proporcionam a produção, exposição e amplificação
de ações educativas patrimoniais nos museus, pinacotecas, cinematecas e outras instituições
culturais, possibilitando a difusão de culturas e arte para a população.
No decorrer desta análise, percebe-se que os instrumentos das tecnologias e relações digitais
precisam ter melhores proteções eficazes na prática, pois o ordenamento jurídico brasileiro deve
se adequar constantemente para garantir relações pacíficas no ambiente digital. Ademais, os
Estados e governantes devem oferecer alternativas seguras para amenizar ou sanar os conflitos
virtuais, que estão visivelmente carregados de discursos de ódio e violência.
As interações tecnológicas, junto ao ambiente cultural, ajudam a valorizar, restabelecer e
promover difusão de culturas, pois não podem ser apagadas ou esquecidas. Por isso o Estado

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necessita proporcionar melhor inclusão digital com fácil acesso para comunidades, pois as
tecnologias ajudam a garantir o exercício da cidadania.
Observa-se que as interações tecnológicas e o meio digital vêm sendo utilizados como forma de
proteção, preservação, valorização e resgate de culturas e modos de vida, no Brasil contemporâneo.
De fato, a sociedade se desenvolve amparada pela utilização das inovações tecnológicas, pois se
mostram mecanismos que influenciam na democratização, capazes de proporcionar melhorias
na fiscalização, monitoramento, na geração de fomentos no setor cultural, possibilitando ampla
divulgação dos bens, instituições e das manifestações culturais.

GIANNO LOPES NEPOMUCENO


Professor da Fundação Dirce Figueiredo

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MILAGRE NO SERTÃO DE MINAS:
A PRODIGIOSA LAGOA

A
pós uma demora de vários anos desde a aprovação do projeto, finalmente o Instituto
Cultural Amilcar Martins apresenta a todos os interessados na história de Minas uma
nova edição comentada do famoso opúsculo Prodigiosa lagoa descuberta nas Congonhas
das Minas do Sabará publicado de maneira apócrifa em Portugal na primeira metade do século
XVIII, cuja autoria até agora era atribuída ao cirurgião baiano João Cardoso de Miranda.
Desde a sua primeira edição, em 1749, o texto da Prodigiosa lagoa tem gerado muita polêmica,
não apenas sobre quem teria sido seu verdadeiro autor, mas sobretudo sobre o inusitado
conteúdo desta obra.
As águas da Lagoa Grande, como então era chamada, seriam de fato milagrosas, como chega a
ser sugerido até mesmo pelo título do livreto? Os peregrinos que ali se banhavam ou bebiam a
sua água em meados do século XVIII teriam realmente encontrado a cura para as suas doenças,
dando origem ao povoado e à construção da capela dedicada à Nossa Senhora da Saúde?
Ou, por outro lado, haveria talvez
uma explicação científica para
as propriedades medicinais da
prodigiosa lagoa, as quais, aliás,
em pouco tempo se perderam,
restando apenas no nome Lagoa
Santa, a lembrança do seu passado
glorioso.
Neste livro, além de publicarmos
os dois textos do século XVIII
que descrevem a lagoa e seus
supostos milagres, convidei quatro
pesquisadoras especialistas na
história de Minas e uma especialista
em acervos de obras raras, para
nos ajudarem a desvendar esses
mistérios. Sendo essas a professora
Diná Araújo que reconhece sua
inequívoca autenticidade e chama
a atenção para elementos gráficos
que se diferenciam entre dois
exemplares e que nos fazem crer
que a obra pertencente ao ICAM

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é, provavelmente, a primeira impressão do opúsculo de 1749 e, por isso, o exemplar mais raro
de que se tem notícia.
A historiadora Júnia Furtado dois artigos fundamentais para o entendimento do valor histórico
dos documentos: um que discute o opúsculo e sua autoria e outro, intitulado A prodigiosa lagoa:
contexto histórico e poder de cura, além de descrever o exame dos pacientes e a análise da água
feitos pelo Dr. Cialli.
O estudo da professora Vera Alice Cardoso Silva, com o título A lagoa e sua cidade: Lagoa
Santa, Lagoa Grande, Lagoa Central, focaliza as mudanças na conexão da “lagoa prodigiosa”
com a cidade, que tem origem em meados do século XVIII. O arraial que se formou a partir
dessa descoberta passou a ser chamado de Lagoa Santa, denominação popular que considerava
milagrosas as curas ou melhoras das doenças e achaques não resolvidos por remédios e
tratamentos disponíveis à época.
Além de contribuir com seu artigo, a professora Vera Alice Cardoso Silva é coeditora deste livro,
dividindo comigo as difíceis tarefas de organização e revisão de uma publicação acadêmica.
O ensaio da pesquisadora Cristina Ávila, intitulado Prodigiosa Lagoa: os usos e costumes curativos
na capitania de Minas Gerais, propõe que o contexto da descoberta da “prodigiosa lagoa” e o
modo como foi apresentada no opúsculo em exame, sugerem olhares variados sobre a época e
a mentalidade dos habitantes dessa parte do Brasil no século XVIII. De acordo com a autora, o
domínio da mentalidade barroca em Minas Gerais naquele tempo permitia a mistura de religião,
ciência e todo tipo de práticas populares para enfrentar as doenças e outras dificuldades.
Finalmente, no artigo, De prodigiosas a medicinais: as águas da Provincia de Minas Gerais, a
professora Rita de Cássia Marques apresenta uma síntese da história da descoberta e exploração
das águas virtuosas em Minas, sobretudo das fontes e dos balneários localizados no sul da
província. Na segunda metade do século XIX vários livros foram publicados sobre as estações
de águas de Caxambu, Lambari, Cambuquira, Caldas, Poços de Caldas, Araxá e São Lourenço,
e em 1924 foi publicado o livro As águas minerais do Brasil, que elenca as estações de águas
minerais do país
Agradeço a contribuição de todas as pessoas que participaram desse projeto, principalmente
ao Deputado Federal Eduardo Barbosa que, através de sua grande sensibilidade à preservação
e divulgação da Cultura e da história de Minas Gerais, apresentou a emenda parlamentar nº
31860004 ao Orçamento Geral da União, o que permitiu a publicação deste livro, além de outras
ações necessárias à preservação de nosso acervo.
Agradeço ainda a historiadora e estudante de doutorado Valquíria Ferreira da Silva que fez as
transcrições paleográficas dos textos de Cialli Romano; além da valiosa colaboração da equipe
do ICAM, especialmente a Lucilene Rodrigues e Amanda Vasconcelos, responsáveis pela
coordenação e produção editorial do livro e ao designer gráfico Sérgio Luz, velho colaborador de
nosso programa editorial, pelo talentoso e competente trabalho de projeto gráfico e editoração.
Finalmente, agradeço ao Palácio do Correio Velho – Leilões e antiguidades, de Lisboa, pela
cessão da imagem de um desenho da Lagoa Grande no século XVIII, à Biblioteca Municipal do
Porto na pessoa da gentil senhora Carla Azevedo que prontamente cedeu a imagem de um dos

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manuscritos do médico italiano Antônio Cialli Romano, à Dra. Cristina Pinto Basto, Diretora
da Biblioteca da Ajuda e à Professora Ana Paula Megiani. da Universidade de São Paulo, pela
pronta reprodução e disponibilização dos manuscritos de João Cardoso de Miranda existentes
nas duas instituições.

AMÍLCAR MARTINS FILHO


Diretor do ICAM e membro da Comissão Editorial da Barroco Digital

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REGISTRO
MÚSICA E REMINISCÊNCIA:
NOTAS PARA UM CONCERTO EM HOMENAGEM A RUFO HERRERA

Lá, no mais profundo da emoção humana,


onde não se pode conhecer,
é onde começa a música.
I Ching - Livro das Mutações, por Rufo Herrera

O
ano de 2022 marca algumas efemérides importantes no calendário cultural como o
centenário da Semana de Arte Moderna e os cem anos de nascimento do compositor
Gilberto Mendes. Nesse contexto, a Fundação de Educação Artística de Belo Horizonte
decidiu homenagear os 89 do compositor Rufo Herrera, nascido em 1933. Qualquer marca
temporal é mera convenção, “bobagem de contar tempo, de colar números na veste inconsútil
do tempo, o inumerável”, conforme escreveu Carlos Drummond de Andrade (1988, p. 814)
no poema “Manuel Bandeira faz noventanos”. Daí ser desnecessário uma contagem exata para
realizar essa justa homenagem.
Sob a curadoria de Cristina Guimarães e Paulo Sérgio Malheiros, aconteceu no dia 07 de
agosto de 2022, na Sala Sergio Magnani, um concerto que reuniu seis obras deste compositor,
de diferentes fases de sua produção1. Excluiu-se, por razões da montagem, obras cênicas e
formações instrumentais ampliadas. Embora a amostra seja reduzida é representativa de uma
obra volumosa e multifacetada que carece ainda de uma catalogação sistemática2.

O COMPOSITOR
Rufo Herrera nasceu em 1933 em um pequeno distrito rural de Córdoba (Argentina). De família
campesina e filho de um pai violeiro e payador, desde a infância demonstrou aptidão para
a música. Aos seis anos foi apresentado ao bandoneón, instrumento típico na música popular
argentina que o acompanha até os dias atuais. Transferiu-se para Buenos Aires, onde realizou
estudos de bandoneón e violoncelo, trabalhando em orquestras profissionais de tango. Em
1961 percorreu vários países da América Latina realizando pesquisa sobre a música dos povos
remanescentes das civilizações originárias do continente. Em 1963 estabeleceu-se em São Paulo
desenvolvendo estudos de composição sob a orientação do maestro e compositor Olivier Toni
e piano complementar com Marta Cerri. Convidado pelo grupo de compositores da Escola de
Música da Universidade Federal da Bahia, transfere-se para Salvador, integrando o movimento

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emergente da música contemporânea brasileira. Ali desenvolve, sob orientação do compositor
suíço-brasileiro Ernst Widmer, pesquisa e aperfeiçoamento na linguagem musical contemporânea
e suas novas técnicas de estruturação, incluindo as multimídias. Em julho de 1976 é convidado
por Berenice Menegale, diretora da Fundação de Educação Artística e à época coordenadora dos
Festivais de Inverno de Ouro Preto, para ministrar uma oficina de arte integrada que resultaria na
criação do Grupo Oficcina Multimédia, em 1977. Desde então fixou-se definitivamente na cidade
de Belo Horizonte. Em 1992, após um encontro com Astor Piazzolla forma o Quinteto Tempos
com o qual gravou três discos. De 1994 a 2019 foi professor na Universidade Federal de Ouro Preto
(UFOP), onde, junto ao professor Ronaldo Toffolo, fundou a Orquestra Experimental da UFOP,
atual Orquestra Ouro Preto. Recebeu os títulos de Doutor Honoris Causa pela UFOP e de Cidadão
Honorário, concedido pela Câmara Municipal de Ouro Preto.

A HOMENAGEM
O concerto – quase monográfico –, que colocou em evidência memórias e reminiscências de
lugares e situações vividas e imaginadas por Rufo Herrera, incluiu ainda uma obra de Marco
Antônio Guimarães e a leitura de um texto de João Guimarães Rosa. Um roteiro com imagens
e breves comentários projetados entre cada uma das peças apresentadas foi elaborado pelos
autores deste artigo. Embora o repertório escolhido não represente a totalidade de sua trajetória
e tampouco tenha sido organizado cronologicamente, apresenta um retrato de algumas facetas
da poética do compositor conforme pretendem demonstrar as notas a seguir:

NOTURNO, PARA PIANO E CORDAS (1996)


Intérpretes: Regiany Carlos e Samira Vilaça (violinos), Ciro Quaresma (viola), Clarissa Carvalho
(violoncelo), Marcus Gabriel (contrabaixo), Arthur Versiani (piano) e Valdir Claudino (regente).

Neste Noturno as seções são baseadas num princípio de repetição, criando zonas expressivas
que se encadeiam sem preocupação em desdobrar uma lógica discursiva evidente. Tal
procedimento provoca alterações sutis no fluxo do tempo que tem mais a ver com um tipo de
reiteração ritual e com um “despojamento voluntário de materiais” (PARASKEVAÍDIS, 2009,
p. 4-5) do que com as repetições de tendência mais mecânica, característico no minimalismo
norte americano. Nesse sentido, a peça talvez possa ser identificada como o que a compositora
Graciela Paraskevaídis denominou “minimismo” latino americano, cujo princípio fundamental
consiste em “repetições de células de uma maneira não mecânica, enriquecidas sutilmente
por elementos como o ostinato, comuns aos usados em culturas indígenas e afro americanas
(AHARONIÁN, 2003, p. 3).

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Fig. 1 - Apresentação da obra “Noturno” para piano e quinteto de cordas. Foto: Guilherme Machala.

IDEOFONIA 1, PARA PIANO, CLARINETA E VIOLONCELO (1982)


Intérpretes: Jefferson de Assis (clarineta), Jayaram Marcio (violoncelo) e Arthur Versiani (piano).

Composta durante o Festival de Inverno em Diamantina, é uma obra móvel. Isso quer dizer que
a ordem temporal das estruturas musicais é decidida pelos músicos, no momento da execução.
Além da mobilidade e abertura, a obra traz elementos da cultura andina, como um fragmento
de poema em quéchua, do escritor peruano José Maria Arguedas:

A águia
sagrada
ouvirá o som da quena
dos filhos do
sol.

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Fig. 2 – Fragmento da parte do piano de Ideofonia 1, de Rufo Herrera

Os fragmentos do texto de Arguedas são recitados pelos músicos durante a performance,


reforçando o conceito de “teatro instrumental” no qual os elementos musicais atuam como
personagens, dialogando e interagindo horizontalmente entre si e com os aspectos cênicos e
textuais.

Fig 3. Apresentação da obra “Ideofonia 1” para piano, clarinete e violoncelo. Foto: Guilherme Machala.

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ANDINAS NO. 3, PARA VIOLA CAIPIRA (2007)
Intérprete: Celso Faria (violão)

Composta originalmente para viola caipira. Apresenta dois subtítulos: “Puna” e “Monotonia”.
O primeiro faz alusão a Puna de Atacama (norte do Chile e Argentina), ambiente presente
em outras obras do compositor. O segundo se refere à monotonia do deserto de Atacama,
representado pela textura estática e ressonâncias longas dos harmônicos naturais da viola.

SENDA AIMÁRA, PARA FLAUTA E VIOLÃO (2011)


Intérpretes: Alef Caetano (flauta) e Giuliano Coura (violão).

É também uma reminiscência da paisagem sonora andina e uma homenagem ao povo originário,
“inspirada em reminiscências do meu convívio com os aimará em 1961”. É composta por três
episódios, cada um situado por uma epígrafe que evoca um afeto, um estado de espírito que se
transforma ao longo do caminho: o lamento estático e ressoante no altiplano, a descida do serro,
mais movimentada, e o encontro para festa, já no vale.
Episódio 1: “Vidála”. “Puna, silencio y viento, el hérke suena a lamento... algún índio há muerto,
algún indio há muerto...”. Em Puna, no deserto de Atacama, o lamento de uma herke, espécie de
corneta longa, comunica a morte de um índio.

Episódio 2: Andante moderato - “Chaya”. “Hoy es domingo de chaya, hemos de bajar el serro... así
nomá-y ser, así nomá-y ser...”. A Chaya tem um espírito festivo e também comunica algo, nesse
caso a descida do altiplano em lhamas carregadas de milho e batatas, para se reunir em feiras
no vale.

Episódio 3: “Huayno” - Allegro moderato. “En el valle han de bailar y chupar, hasta cair de
machaditos... así nomáy ser”. Já no vale dançam o huayno, canto e dança de origem pré-hispânica,
posteriormente denominada carnavalito, e bebem até cair.

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AMBITUS NATURALIS, PARA
QUARTETO DE ARCOS (1991)
Intérpretes: Alexandre Kanji (violino),
Vitor Dutra (violino), Cleusa Nébias
(viola) e Antônio Viola (violoncelo).
Estreada na Bienal de Música Brasileira
Contemporânea, no Rio de Janeiro em
1991, essa peça para quarteto de cordas
apresenta uma concepção não-tonal com
um material diatônico com perturbações
cromáticas e mudanças súbitas de textura
numa escrita camerística bastante
detalhada. Em 1991, ano de composição
da peça, o compositor, estabelecido em
Belo Horizonte já há 15 anos, talvez
considerasse a cidade seu “ambiente
natural”.

Fig. 4 - Frontispício do manuscrito de Ambitus Naturalis, de Rufo Herrera

LUAR DE AGOSTO, PARA BANDONEÓN SOLO (2015)


Intérprete: Otto Hanriot (bandoneón)

Integrava inicialmente a Suíte Austral, para bandoneón solo, composta por quatro peças que
se relacionam a gêneros musicais do sul do continente americano: (1) Huella, (2) Pampeano,
(3) Seresta e (4) Tango. Ainda que escritas segundo o idiomatismo instrumental próprio do
bandoneón essas peças evocam o violão, instrumento no qual seu pai executava milongas
tradicionais. “Luar de agosto” seria a quinta peça da suíte, mas acabou sendo separada, passando
a ser executada como peça isolada.
A relação de Rufo Herrera com o bandoneón é íntima, profunda e atravessada por um “realismo
mágico” que poderíamos pensá-lo como uma perspectiva orientada a partir dos objetos, tal como
sugere Timothy Morton (2013, p.23) em seu ensaio “Magia realista: objetos, ontologia e causalidade”.
Uma relação de alteridade que acompanhará o compositor desde a infância até os dias atuais,
somando oito décadas. É o que Rufo registra no encarte do CD “Bandoneón” gravado em 2002:

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Numa noite de julho de 1938, me apareceu o duende. Tinha eu apenas cinco anos e não foi susto
nem medo, foi paixão, o que senti ao ouvir o acorde inicial de um velho tango que, fraseando um
dialeto de outros mundos, me disse: vem, eu te levarei ao encontro do seu destino (HERRERA,
2002).

E reforça no poema Bandoneón:

mântrico duende barroco-porteño


misteriosos secretos del sonido
que atravesando nieblas
de otros tiempos
penetra el alma de nostalgia
eterna
y se anida en el pecho
de los hombres
com la mística unción que evoca
otras esferas
del universo estelar
en harmonias.

Fig. 5 - Rufo Herrera e seu bandoneón, em pintura de Carlos Bracher (2005)

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ETERNE, PARA PIANO, DE MARCO ANTÔNIO GUIMARÃES (1976)
Intérprete: Berenice Menegale (piano)

O compositor Marco Antônio Guimarães, também integrante do grupo de compositores da


Bahia, é quem apresenta Belo Horizonte a Rufo Herrera. Dentre diversas parcerias, os dois
construíram o teatro Heloísa Guimarães, na antiga casa da Fundação de Educação Artística.
Uma textura extremamente despojada apresenta uma espécie de pedal, iniciado com um toque
acentuado na nota sol que depois é reiterada em pianíssimo, em lapsos de tempo irregulares e
imprecisamente medidos. Sobre esse pedal constante em toda a peça, surgem outros sons: acima,
abaixo, próximos, distantes, fortes, suaves. Em bilhete a Berenice Menegale, a quem a peça é
dedicada, Marco Antônio Guimarães escreveu: “o ataque inicial determina uma contagem em
direção à eternidade. Interferências humanas na continuidade do tempo”. Ideia que se conjuga
perfeitamente com o sentido e a própria metáfora dos eventos apresentados neste concerto,
possibilitando-nos entrever o pensamento e a sensibilidade do compositor.

Fig. 6 - Berenice Menegale executando “Eterne” de Marco Antônio Guimarães. Foto: Guilherme Machala.

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MINAS GERAIS, LEITURA ILUSTRADA DO TEXTO DE JOÃO GUIMARÃES ROSA
Grupo Oficcina Multimedia, direção de Ione Medeiros
Leitura: Jonnatha Horta Fortes, Heloisa Mandareli, Thiago Meira. Edição de video: Henrique
Torres Mourão.

Fig. 7 – Página do manuscrito de Balada para Matraga, de Rufo Herrera

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A obra de Rufo Herrera se relaciona com diversas linguagens artísticas, não apenas em suas
obras cênicas como óperas, balés, teatro e trilhas para cinema. Suas criações estão atravessadas
por inúmeras referências da literatura e da poesia de autores como José Maria Arguedas, Alejo
Carpentier, Juan Rulfo, Jorge Luís Borges, Darcy Ribeiro, Ferreira Gullar, Monteiro Lobato e
João Guimarães Rosa, este último de especial predileção do compositor, presente em obras
como “Balada para Matraga” (1985) e “Sertão: sertões” (2001).
Por isso, o Grupo Oficcina Multimédia realizou a leitura de um texto intitulado “Minas Gerais”,
incluído no livro “Ave palavra” para representar a proximidade e a presença de Rufo com o
estado que adotou como seu, nos últimos anos:
Aí, plasmado dos paulistas pioneiros, de lusos aferrados, de baianos trazedores de bois, de
numerosíssimos judeus manipuladores de ouro, de africanos das estirpes mais finas, negros
reais, aproveitados na rica indústria, se fez a criatura que é o mineiro inveterado, o mineiro
mineirão, mineiro da gema, com seus males e bens. Sua feição pensativa e parca, a seriedade e
interiorização que a montanha induz – compartimentadora, distanciadora, isolante, dificultosa.
(...) sua honesta astúcia meandrosa, de regato serrano, de mestres na resistência passiva. Seu vezo
inibido, de homens aprisionados nas manhãs nebulosas e noites nevoentas de cidades tristes,
entre a religião e a regra coletiva, austeras, homens de alma encapotada, posto que urbanos e
polidos. Sua carta de menos. Seu fio de barba. Sua arte de firmeza (ROSA, 1985, p. 271).

Referências bibliográficas
AHARONIÁN, Coriún. An Approach to Compositional Trends in Latin America. Leonardo Music Journal,
vol.10, 2000, pp. 3-6.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Discurso de primavera. In: Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
1988.

COURA, Giuliano. 2021. Da Puna ao Valle: Percurso da vida e da obra de Rufo Herrera e proposta para uma
edição de performance de Senda Aimára. Dissertação (Mestrado em Música) – Escola de Música, Universidade
Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2021.

HERRERA, Rufo; Orquestra Experimental da UFOP (Interp.). Bandonéon. Belo Horizonte: Karmim, 2002. 1
CD. Acompanha encarte.

MORTON, Timothy. Magia realista: objetos, ontología y causalidad. Open Humanities Press. Londres, 2020.
Versão eletrônica disponível em: http://www.openhumanitiespress.org/books/titles/magia-realista/

NOGUEIRA, Ilza. Grupo de compositores da Bahia: implicações culturais e educacionais. Revista Brasiliana.
Rio de Janeiro, n.1 p. 28-35, janeiro 1999.

PARASKEVAÍDIS, Graciela. 2009. Conferencia inaugural simposio La otra América. Versão eletrônica
disponível em: http://www.gp-magma.net/es_bio.html- Acesso em 31-8-2020.

ROSA, João Guimarães. Minas Gerais. In: Ave, palavra. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1985. p. 269-275.

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Sites
Site oficial de Rufo Herrera: www.rufoherrera.com

Site da Fundação de Educação Artística: https://feabh.org.br/

Notas
1 O concerto pode ser assistido em https://www.youtube.com/channel/UCbk6BbzvpCg8mNDN9t3t0RA

2 A coleção de partituras de compositores latino americanos da biblioteca da Fundação de Educação Artística


reúne hoje 53 obras de Rufo Herrera, material que vem sendo catalogado no âmbito do projeto de residência
pós doutoral “Labirintos do Sul: abertura, mobilidade e indeterminação na música latino-americana (Brasil,
Uruguai e Argentina, 1980 - 2010)” acolhido pelo Programa de Pós graduação em música da UFMG, na linha
“Música e cultura” sob supervisão do prof. Dr. Flávio Terrigno Barbeitas.

FRANCISCO CESAR LEANDRO ARAÚJO


Músico, ex-integrante do Grupo Oficcina Multimédia
e colaborador da Fundação de Educação Artística.

GUILHERME PAOLIELLO
Professor do curso de música da Universidade Federal de Ouro Preto.

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SACRO : EM COMPASSO EXTÁTICO,
CONECTANDO O CORPO À TERRA E AO CÉU

Wagner Corrêa de Araújo1

“Estamos vivos em 2022 e isso é muita coisa. Estamos todos conectados pelo ar, pelo chão e pelo
som ao nosso redor. Vivemos em um país em que seguir fazendo dança é um ato  de extrema
coragem e amor”. Dando vazão a estas palavras tão necessárias a um tempo em que são cada vez
mais recorrentes os ataques à necessária conexão entre a arte, o  homem e a terra, a performer,
bailarina e terapeuta Micheline Torres inspirou o ideário dramatúrgico da mais nova criação
coreográfica de Márcio Cunha.
Titulado simbolicamente como Sacro, este espetáculo de dança-teatro também faz eco a um vínculo
sagrado entre o corpo e a natureza numa transcendência gravitacional com as energias cósmicas
através de sua representação performática.  Na busca da empatia coreográfica correspondente
ao  que o filósofo Merleau-Ponty chama de fenomenologia da percepção capaz, assim, de possibilitar
o “entrelace sinestésico” ou troca sensorial entre o artista/bailarino e o espectador.
Dando ainda eco a uma propensão coreográfica de busca inventiva do movimento natural que
estabeleça um despertar psicofísico entre a ambiência da natureza e a interioridade humana.
Que vem desde a sua precursora/visionária Isadora Duncan, passando por nomes da dança pós-
moderna, até chegar a contemporâneos como o anglo/paquistanês, Akram Khan.
Márcio Cunha é um dos mais contumazes adeptos desta tendência, exemplarmente mostrada
em suas últimas criações cênicas como  Rosário (2018)  e  Barro  (2019), além de outras de
experimentalismo virtual para tempos pandêmicos e, agora, neste Sacro em sua volta ao palco
presencial.
 Tornando prevalente seu conceitual estético e  coreográfico no entorno do cósmico encontro do
homem com os elementos orgânicos, numa dança na e pela natureza. Diferencial apenas por sua
não participação, como de hábito, no papel de performer protagonista/bailarino solo.
Mas acumulando um tríplice ofício artístico por sua concepção, direção e ambientação cênica,
tendo como intérpretes reconhecidas personalidades da dança contemporânea brasileira,

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integrantes de uma geração potencial de coreógrafos/bailarinos, a saber Denise Stutz, Frederico
Paredes e Giselda Fernandes.
Situados espacialmente em envolvente concepção cenográfica (Márcio Cunha) com cadeiras
formatadas como galhos de arvores, na plasticidade de uma instalação paisagística sugestionando
elementos ambientais, ressaltados em variações luminares (Juca Baracho). Portando os bailarinos
uma indumentária cotidiana em tonalidades de predominâncias claras, por Karlla de Luca.

Sob uma trilha incidental (Leonardo Miranda) à base de acordes fragmentários que vão de solos
instrumentais, como uma original transcrição para flautim do hino nacional, a instantâneos
trechos de Bach ou de cantos de terreiro. Entremeados pela prevalência de sonoridades florestais,
ruídos de ventos, chuvas e cantos de pássaros.
O gestual dos bailarinos, ora expressando a vivência lúdica/sensorial de questões ecológicas
ora mergulhando na interioridade do eu, numa autodescoberta palpável da conexão física e
espiritual com si mesmo e com a natureza.
Do dançar inicializado em círculo tridimensional, três bailarinos como um só corpo, empenhados
na abertura de portas metafísicas sob posturas meditativas ou energizadas no acionamento das
tensões em movimentos mais bruscos.
Ao lado de uma mascaração facial teatralizada entre intuitivas manifestações de alegria ou de
dor, no desafio dos enigmas do  Sacro  e diante do difícil suporte da condição humana e sua
corporeidade terminal transmutada em parte orgânica do solo.
Integralizando emotivamente o que se poderia denominar de uma “biomimética” coreográfica
nesta dança do Ser com a Terra.  Numa pulsão transcendente capaz de remeter ao emblemático
ideário de Martha Graham no acreditar que onde quer que um bailarino pise é solo sagrado...

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Fotos: Leonardo Miranda

Notas
1 Wagner Corrêa de Araújo - Jornalista especializado em cultura, roteirista, diretor de televisão, crítico de artes
cênicas.

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O LEVANTE DE BELA CRUZ

E
m 1833, na região de Carrancas, em Minas Gerais, um grupo de escravizados se rebelou
contra seus senhores em nome da liberdade. Liderado por Ventura Mina, o levante
deixou diversos mortos, entre eles dez pessoas da família do Barão de Alfenas, incluindo
mulheres e crianças, e dezesseis escravizados. Pouco documentado, o episódio tem indícios da
participação de um oponente político do Barão, acusado de incitar o massacre, e influenciou leis
que definiram o rumo do país.
O filme tem direção de Elza
Cataldo, direção de fotografia
de Marcelo Borja, roteiro de
Elza Cataldo, Christiane Tassis e
Pilar Fazito, com consultoria de
Joel Zito Araújo. Traz entrevis-
tas com especialistas, em espe-
cial com o pesquisador da UFJF
Marcos Ferreira de Andrade,
com descendentes da família
Junqueira e com descendentes
de escravizados. O filme traz
também entrevista com o ar-
tista plástico Dalton Paula, que
criou o retrato do líder Ventura
Mina, e registra seu processo de
criação. O retrato ilustra o car-
taz do filme. Maurício Tizumba
e Sérgio Pererê fazem participa-
ção especial, com performan-
ces musicais. A produção é da
Brokolis do Brasil.
Link do trailer:
https://vimeo.com/587893508

ELZA CATALDO
Diretora, produtora e roteirista de cinema

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