Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Editora filiada à
Editora da UFBA
Rua Barão de Jeremoabo
s/n – Campus de Ondina
40170-115 – Salvador – Bahia
Tel.: +55 71 3283-6164
Fax: +55 71 3283-6160
www.edufba.ufba.br
edufba@ufba.br
A Hora da Música em Uma Casa
Brasileira na Belle Époque paulista
Representações de uma sociedade
em transição
Diósnio Machado Neto
1 Introdução
A Belle Époque paulista foi um período marcado por uma
profunda modificação nas estruturas socioeconômicas da
região. O avanço da industrialização, que vinha na esteira da
pujante economia agrícola que se desenvolvia desde 1870,
impulsionava a riqueza da região. Nessa conjuntura, a elite da
terra pôs em marcha um processo de transformação socioe-
conômico-cultural inédito, no que diz respeito à promoção
do modelo civilizacional através da cultura artística. Já para
a década de 1890, o governo paulista estruturou instituições
e políticas públicas para uma elevação da crítica culta no
estado. Por essa estratégia, entre outras ações, foram criados
a Pinacoteca do Estado (1905) e o “pensionato artístico”,
que era um projeto que enviava jovens artistas para a Europa,
subsidiados pelo governo.
377
Em todo esse processo, dois pintores tornaram-se as referências do que se
buscava: Almeida Júnior e Oscar Pereira da Silva. Ambos produziram obras
que formaram a coluna vertebral da Pinacoteca do estado de São Paulo, e em
ambos era preponderante o discurso da paulistanidade. Suas pinturas aju-
daram consideravelmente a elite da terra a definir uma tipologia de São Paulo
buscando retratar os personagens fundadores da raça, a paisagem da região e
os costumes e hábitos do cotidiano. Não só discursavam sobre uma tradição,
por vezes, inventada como a dos bandeirantes, mas criavam representações de
uma nova ordem social, apresentando em seus quadros os modelos da vida
urbana desejável às famílias que, pouco tempo atrás, vivam ainda nos moldes
coloniais luso-brasileiros.
Nesse movimento, os dois artistas também observam que a prática musical
também foi afetada. No último quartel do século XIX, o piano entrou na sala
de visitas da nova burguesia, substituindo o tradicional apego pelos cordofones
dedilhados. As canções deram lugar as árias das óperas italianas. Enfim, houve
uma profunda transformação das sonoridades que sustentava a transformação
do lugar da cultura.
Todo esse novo cenário pode ser discutido por duas telas de Oscar Pereira
da Silva: Uma casa Brasileira (s.d.) e Hora da Música (1901). É por elas que este
texto buscará analisar uma conjuntura dos novos lugares de escuta, não só
analisando o modelo que se impunha à sociedade emergente, mas, também,
os contrapontos das tensões vigentes pelo desvelamento das oposições entre
o tradicional e o moderno como parte de uma pedagogia iconográfica que se
tornou uma ponta de ação da política pública da época. Dessa forma, buscarei
não apenas sublinhar a polarização entre o bandeirante e o caipira, como e,
principalmente, expor as práticas musicais em dois ambientes paralelos que
nunca perderam vigência no Brasil: a música do âmbito rural – que hoje ressurge
nas muitas faces do movimento sertanejo musical – e a moderna sala de visita
da Belle Époque paulista – hoje transferida para as salas de concertos.
No terceiro Congresso Brasileiro de Iconografia Musical – organizado pelo
Repertório Internacional de Iconografia Musical no Brasil (RIdIM-Brasil) em
2015 –, desenvolvi o tema da formação da iconografia do caipira usando como
base a obra do pintor paulista Almeida Júnior (1850-1899). Destaquei de sua
produção o quadro O violeiro, de 1899, para argumentar que o campo tópico
do caipira se constituiu por um jogo transcultural que mediava uma nova
Figura 1 – Luigi Brizzolara, Estátua de Antônio Raposo Tavares, 1922, Museu Paulista
Este cidadão foi visto, num primeiro momento, como um ser indolente, sem
trato, vadio, ladrão, bêbado, ignorante, preguiçoso, sujo, incapaz, doente,
não-civilizado, de baixa inteligência e mais outras adjetivações negativas e
Figura 2 – Almeida Júnior, Apertando o Lombilho, 1895, óleo sobre tela, 64 x 88 cm.
Pinacoteca do Estado de São Paulo
É justificável que nos brasileiros, não tendo uma tradição experimental esta-
belecida, copiemos os modelos de outras nações mais velhas e mais experi-
mentadas, pois impossível seria armar de chofre um trabalho razoável, pau-
tado pelas múltiplas necessidades do momento presente e tendo a virtude de
produzir no futuro com a presteza dos antigos milagres.//As mesmas nações
já definidas por uma longa prática, vêm-se na conjuntura de remediarem quo-
tidianamente as novas exigências acomodando-se à evolução.//Feitas, porém,
tais considerações com respeito à circunstância de não haver obra definitiva,
amesquinharmo-nos copiando cegamente como autômatos os moldes de
outras nações, sem a mínima obediência às indicações dos nossos interesses
presentes e futuros, é por demais inconsciência ou preguiça, é declarar falida a
fé nas próprias forças. (GAZETA ARTÍSTICA, 1911b, p. 4)
O remédio seria que o Estado de São Paulo, que mostra interessar-se pelo que
respeita à arte, o que já demonstrou com a fundação da Pinacoteca, e cabal-
mente com a manutenção de diversos moços na Europa, fizesse melhor, em vez
de afastar do contato da nossa terra os futuros artistas nacionais, importando
por sua conta e risco dois ou três mestres de gêneros que mais se avizinham às
nossas tendências. [...] Não tardaria em desenvolver-se o gosto artístico por
esses gêneros, entre os quais sobressairia fatalmente a paisagem, tornando-se
a nossa melhor pintura, por motivos numerosos e facilmente perceptíveis//E
dupla vantagem nos favoreceria: nacionalizar os nossos artistas e naturalizar,
certamente, os seus próprios mestres em contato com a radiante natureza bra-
sileira onde a primavera é imorredoura. (GAZETA ARTÍSTICA, 1911a, p. 4)
É forçoso que o Estado, por qualquer forma, proceda a uma seleção, e firme
um critério seguro para vedar a entrada de produções medíocres, que só vêm
deturpar a ideia louvável e importantíssima desse fator propaganda de arte e de
educação artística. A Pinacoteca não é, não pode ser uma simples coleção cuja
importância decorra de uma quantidade avultada de quadros que possuam:
não é também um meio de se dispensar proteção descabida a artistas sem
mérito, ou um salão onde se exibem telas oferecidas pela mediocridade. O seu
fim é muito nobre, muito justo, quiçá indispensável para a salubridade da alma
popular. É tão-somente produzir o prazer espiritual para aquele que tem apu-
rado o gosto pela arte, e concorrer para a educação estética daqueles que ainda
não obtiveram essa grandiosa ventura. Para que se desempenhe dessa missão
é preciso o máximo cuidado, o escrúpulo de submeter à censura, as telas quer
oferecidas, quer adquiridas com gastos para o Estado. (GAZETA ARTÍSTICA,
1911c, p. 5)
5 A casa “brasileira”:
a iconografia musical para marca da distinção
Se até o presente momento vim sublinhando o esforço de caracterização
dos personagens míticos da paulistanidade pelos artistas da Belle Époque. No
entanto, a ação se expandia para além das entidades representativas da saga
da terra. Em paisagens e ambientes domésticos, a narrativa da raça também se
consubstanciava. Por elas, desvelava-se algo da moradia rural, como nas pinturas
de Almeida Júnior, mas também alguns costumes das casas urbanas.
Nesse sentido, a Belle Époque inaugurou, também, o gosto pela nova mídia
iconográfica, a fotografia. Por fotos nos chegaram as imagens dos salões, das
casas abastadas e, também, das casas da pequena burguesia que rapidamente
Figura 3 – Valério Vieira, Os Trinta Valérios, 1901, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
Figura 6 – Anônimo, Negra ao violão, padre dançando, ca. 1829, Coleção Particular
Há muito que os malcriados dizem que as senhoras tem todas grande pro-
pensão para a música, especialmente para a rabeca, instrumento que ninguém
afina com tamanha perfeição; eu cá não vou para aí e dou a palma ao feio sexo
[...] Eu zango com a atitude de uma mulher, a serrar com o arco da rabeca,
como uma endiabrada; atitude elegante só a da harpa e lyra [sic], mas Deus
me livre de ver mulher minha a tocar rabeca, flauta, corne, serpentão, berimbáo
[sic] ou zabumba. (REVISTA COMMERCIAL, 1858, p. 4)
2 José Feliciano radicou-se no Rio de Janeiro, em 1846. Entre muitas atividades literárias, colabo-
rava com a Revista do Conservatório Real de Lisboa.
Figura 8 – Oscar Pereira da Silva, Uma Casa Brasileira, óleo sobre tela, 40 x 59 cm.
Coleção Particular
7 Conclusão
O primeiro aspecto a ser concluído é sobre o esforço iconográfico feito por
uma elite paulista no processo de transição para uma sociedade urbana, liberal,
letrada e imersa nos cânones da cultura artística europeia. Nesse processo, a
intervenção estatal jogou um importante papel fundando instituições como
a Pinacoteca do estado e, sobretudo, reunindo um acervo que continha uma
narrativa das grandezas da raça, mesmo quando por discursos aparentemente
contraditórios ou ambíguos.
Tratei de discutir que esse discurso não só estava na apresentação dos
pilares do homem, mas na representação da moradia, e seus usos e costumes
cotidianos. Nesse processo, coube a arte uma espécie de pedagogia iconográ-
fica, onde os artistas foram instados por políticas públicas a desenvolver uma
pintura de verossimilhança, reproduzindo utensílios, vestimentas e práticas,
como a música. O faziam, primeiro, amparados numa retórica assimilada do
academicismo novecentista. Segundo, usando a estratégia da oposição: o caipira
versus o bandeirante; o violão na oposição com o piano; o canto lírico marcando
a canção popular.
Nessa perspectiva do discurso, enquanto a Hora da Música é uma tela abso-
lutamente sincronizada com a época, Uma casa brasileira abre fendas sobre a
representação do tempo que só podem ser resolvidas por pequenos detalhes,
como a ação e representação das mulheres na sala de visitas.
Assim, comparando as duas telas de Oscar Pereira da Silva, há suficientes
evidências para discutirmos que nesse processo buscava-se, também, harmo-
nizar o tradicional e o moderno para dar a Belle Époque não só um sentido de
progresso, mas de um progresso que assimilava suas raízes.
Enfim, considerando a mesma autoria das duas telas, e sobrepondo um histó-
rico onde um mesmo artista se dedicava a pintar o rústico e o moderno, as duas
obras de Oscar Pereira da Silva revelam mais do que estava retratado. Revelam,
sobretudo, o entreato de realidades que deveria ser exposto para a superação
definitiva de um passado que não poderia ter uma solução de continuidade no
Referências
APERTANDO o Lombilho. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura
Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2017. Disponível em: http://enciclopedia.
itaucultural.org.br/obra933/apertando-o-lombilho. Acesso em: 27 ago. 2018.
INEP. Mapa do Analfabetismo no Brasil. Brasília, DF: INEP, [2001
Disponível em: http://inep.gov.br/documents/186968/485745/
Mapa+do+analfabetismo+no+Brasil/a53ac9ee-c0c0-4727-b216-
035c65c45e1b?version=1.3. Acesso em: 15 jan. 2017.
ASSIS, Machado de. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. v. 2.
ASSIS, Machado de. Várias Histórias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
DEBRET, Jean Baptiste. La diner / Les delassemens d´une aprés diner. Paris:
Firmin Didot Frères, 1835. 50,4 x 33,4 cm. Disponível em: http://www.
brasilianaiconografica.art.br/obras/18735/la-diner-les-delassemens-dune-apres-
diner. Acesso em: 27 ago. 2018.