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HISTÓRIA DA MÚSICA

BRASILEIRA
AULA 3

Prof. Alan Rafael de Medeiros


CONVERSA INICIAL

O primeiro período republicano

Caro aluno, nesta aula, iremos nos aprofundar sobre o cenário de


produção musical logo no início da Proclamação da República, portanto, a partir
da última década do século XIX. Lembre o quão importante é conhecer o
contexto para além da prática musical em si, pois esta é diretamente influenciada
pelo conjunto de ações dos indivíduos no tecido social, bem como pelas
reivindicações e mudanças de paradigmas presentes no seio da sociedade.
Aqui, estudaremos a mudança sensível na organização social em torno das
práticas musicais pós-República, conhecendo seus principais agentes, as
reflexões vigentes sobre a música e do mesmo modo os lugares do fazer
musical, ampliados cada vez mais a partir dos processos de gravação.

TEMA 1 – REPÚBLICA MUSICAL: ELITES E A MÚSICA DE CONCERTO NO RIO


DE JANEIRO E SÃO PAULO

O fim do século XIX oportunizou uma nova reflexão sobre as estéticas


musicais em vigor na então capital do Império, Rio de Janeiro, modelo que servia
para os demais centros urbanos brasileiros. Vamos conhecer um pouco mais a
fundo algumas características dessas mudanças, bem como as razões que
mobilizaram essa realidade.

1.1 Brasil República – a emancipação da música

A emancipação dos espaços de fruição artística foi responsável indireta


por modelar, no gosto do cidadão urbano da segunda metade do século XIX,
novas sociabilidades musicais, em especial vinculadas ao repertório orquestral
sinfônico que ganharam relevo nesse novo cenário. Estamos falando de um
distanciamento significativo em relação às práticas do Brasil monárquico e sua
vinculação direta com a ópera e outros gêneros dramáticos, dentre os quais
predominavam os modelos italianos e franceses, bem como da vida musical
presente nos salões, abertos às modas trazidas dos principais centros europeus
(Pereira, 2013).
De acordo com Raynor (1981, p.410), com o enfraquecimento das cortes
e patronos das artes, a música de concerto migrou de um contexto de relativa
necessidade social para se converter em prazer remoto oferecido por orquestras

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cada vez mais volumosas. A música de concerto iria perder seu poder de
comunicação imediata entre indivíduos de uma dada sociedade e se converteria
em ferramenta diretamente vinculada ao prazer de uma elite requintada. É nesse
sentido que podemos verificar a atuação dos clubes musicais, voltados para a
associação de membros, quase sempre provenientes dos estratos sociais
privilegiados, ambicionando a música enquanto elemento de civilidade.
As instituições privadas de promoção de música desempenharam papel
significativo no processo de ampliação do gosto musical então vigente, ao
ambicionar obras instrumentais de câmara e sinfônicas, desse modo
amenizando a primazia estabelecida da ópera. Tem-se as bases para uma
mudança significativa que resultou em movimento artístico amplificado nos
primórdios da República, que tomou como base o repertório instrumental ao lado
da tradição do canto lírico (Sampaio, 2012, p. 87).
A efervescência sociocultural impulsionada nos principais polos
brasileiros durante a Belle Époque, sobretudo no Rio de Janeiro, mobilizou,
dentre outros, o cenário da produção musical. Caracterizou-se pelo discurso das
camadas burguesas na busca por sua afirmação no interior dos quadros
hegemônicos, a partir do ideário de civilização, progresso e modernidade como
as molas propulsoras do desenvolvimento da República. Para manter e
promover os interesses e a visão da própria elite, os paradigmas culturais
derivados da aristocracia europeia foram adaptados ao meio carioca, capital da
então República, com essa finalidade (Needell, 1993, p. 11).
No campo da formação profissional musical, o regime republicano iniciou
nova fase para os músicos do Rio de Janeiro, que, sem a tutela imperial,
ambicionavam outro patamar de realização aos moldes do “progresso”. As
instituições de ensino buscavam suplantar as carências experienciadas pelo
então Conservatório de Música do Rio de Janeiro, que às vésperas da república
se encontrava “desprovido dos elementos indispensáveis ao bom desempenho
dos deveres que lhe ficavam pautados”, em condição de “penúria”, tanto o
conservatório, quanto seus professores (Pereira, 2007, p. 65).
O Conservatório de Música do Rio de Janeiro seria transformado, em
1890, no Instituto Nacional de Música, iniciando nova fase da instituição frente
ao projeto de modernidade ambicionada pela recém instaurada República. A
direção do Instituto foi destinada a Leopoldo Miguez (1850-1902) até o ano de
falecimento desse, e a partir daí, ficaria a cargo de Alberto Nepomuceno

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(1864-1920), dois compositores de prestígio internacional, representantes da
música de concerto brasileira inseridos nesse projeto de alinhamento
progressista do Brasil frente aos polos europeus.
Ao analisarmos que, durante as práticas musicais da monarquia a
estilística italiana de ópera era entendida como a corrente majoritária, na
República esse ideal era entendido como um modelo “conservador”. Partindo
dessa premissa, o Instituto e toda sua orientação estética se voltava para uma
tendência “progressista”, identificada nas escolas alemã e francesa, e ao se
posicionar nessa direção, criava vínculo entre essas e a República que se
instaurava no país, identificada igualmente como sinal do que havia de mais
civilizado e progressista (Pereira, 2007, p. 74).
Aliado a esse cenário de mudanças, as instituições privadas dirigidas por
compositores passaram a organizar concertos em torno dessas novas
possibilidades estéticas. Em 1912, foi criada a Sociedade de Concertos
Sinfônicos, pelo professor Francisco Nunes (1875-1934) e pelo compositor
Francisco Braga (1868-1945), seu diretor artístico e regente por 22 anos. A
entidade tinha como princípio a divulgação do repertório instrumental, em
especial das correntes estéticas alinhadas aos preceitos republicanos, da
tradição germânica e francesa. O próprio alinhamento estético de Francisco
Braga confirma essa realidade, selecionando a França como local de estudos
após receber bolsa do governo brasileiro (Fukuda, 2009, p. 25)
Em São Paulo o cenário seria semelhante, a partir da formação de
instituições de promoção de concertos e eventos musicais, tais como a
Sociedade de Cultura Artística, em 1922. Entretanto, enquanto instituição
privada mantida sob mensalidade de seus associados, característica comum a
esse tipo de instituição, as dificuldades na contratação de organismos musicais
maiores, como uma orquestra, eram evidentes. O próprio Mário de Andrade se
envolveria no cenário das preocupações sobre as instituições de promoção de
música de concerto, criticando certas preferências e apelo de fácil assimilação
por parte das obras executadas (Toni, 1995).
Nota-se a importância das instituições recém-criadas durante o
estabelecimento da República, relevantes locais de construção do conhecimento
sobre música e sobre fruição de repertórios musicais, cada vez mais alinhados
a novos modelos estéticos. Passaram a reconhecer na música instrumental o
repertório que lograria êxito frente às novas demandas sociais emancipadas no

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período posterior à proclamação da República, demandas estas que
externalizavam o discurso engajado que identificava na música um elemento
caro à modernização e civilização dos estratos sociais brasileiros.

Saiba mais

Aproveite a oportunidade para apreciar uma das obras de Francisco


Braga – episódio sinfônico, relevante compositor dessa primeira fase da
república musical. Tente verificar as sonoridades da estética germânica, em
detrimento da produção musical italiana, anteriormente vigente. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=axkmq08z-3a>. Acesso em: 4 ago. 2020.

TEMA 2 – PERSONAGENS DA MÚSICA POPULAR URBANA NA VIRADA DO


SÉCULO

O avanço lento, mas contínuo, da industrialização nos grandes centros


urbanos, representaria uma delimitação ainda mais clara entre as classes
sociais. Dos interesses e expectativas dessas classes se justificariam o gosto
por um ou outro gênero de música popular, produzida a esse momento e
destinada ao consumo cultural da sociedade urbana (Tinhorão, 1998, p.
208-209). De acordo com o autor, trata-se do momento de maior confirmação no
que toca às práticas musicais populares genuinamente brasileiras, movimento
que, desde a segunda metade do século XIX vinha sendo efetivado, à medida
em que as camadas populares abrasileiravam os gêneros de dança europeus,
reservando aos estratos sociais populares as criações autênticas, enquanto que
para as camadas elitizadas, apenas o consumo das modas importadas.

2.1 Novos pontos de socialização da música popular

Os cafés cantantes da virada do século XIX para o XX, influenciados pelos


music halls ingleses e cafés cantantes franceses seriam ponto de produção
musical amplamente explorado no campo da música popular, tendo como
gênero principal a cançoneta (derivação do francês chansonette). Gênero que
explorava temas da atualidade, não constituiu propriamente um tipo de produto
musical bem delimitado, mas adentrou o século XX como uma canção
humorística cujo nome servia de rótulo para qualquer cantiga engraçada ou
maliciosa pelo duplo sentido (Tinhorão, 1998, p. 213).

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O sucesso popular das cançonetas saídas dos palcos dos cafés
cantantes, dos cafés concerto, e posteriormente das casas de chope e dos
circos, contribuiria para o aparecimento de dezenas de cançonetistas
especializados nesse tipo de repertório. Sua representatividade nesse processo
reside em traduzir-se como um gênero que oportunizou certa democratização
enquanto manifestação artística, aos estratos sociais menos favorecidos, um
estágio a meio caminho entre a cultura popular das classes pobres daquela outra
importada do exterior para consumo dos imitadores da burguesia europeia
(Tinhorão, 1998, p. 218).
A música popular destinada à apreciação do público consumidor de
produções destinadas ao lazer urbano, passível de se transformar em objeto de
comércio por meio da venda de partituras para piano e, posteriormente, na forma
de discos, surgiu de fato com o teatro de variedades a partir de fins do
século XIX. Era um tipo de espetáculo popularizado desde a segunda metade do
século XIX, que dependia quase que completamente de números musicais.
Constituía-se enquanto diversão pública de palco que possibilitava a frequência
da heterogênea classe média brasileira, de gosto ainda vinculado à origem
humilde da qual provinham (Lopes, 2000).
De maneira semelhante, é possível indicar que o teatro de revista se
converteria na confirmação da cultura de rua e de seus respectivos personagens,
contribuindo para a consolidação da autoimagem do carioca. Essa autoimagem
se dava na representação de si, a partir de figuras tais como a do malandro, do
Zé povinho, da mulata, bem como na percepção do outro, identificadas na
caracterização do português, o interiorano, a francesa (Lopes, 2000, p. 24).
Configurado na interação entre música, teatro e dança, o teatro de revista
se desenvolvia a partir de quadros, conectados por um fio condutor, geralmente
representado pelas personagens do compadre e comadre. A ideia era “passar
em revista” fatos contemporâneos da realidade da cidade, de maneira cômica ou
caricata (Mengarelli, 1999).
Esse tipo de produção artística das camadas mais populares demandou
intensa produção de música para sua concretização. Dos inúmeros musicistas
de prestígio inseridos nesse campo de atuação, podemos destacar a figura da
pianista e compositora Chiquinha Gonzaga (1847-1935). Enfrentando um
cenário dominado pela presença masculina, a musicista conseguiu estabelecer,
não sem preconceito, seu lugar nesse campo de atuação, logrando êxito ao

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longo do desenvolvimento desse mercado de trabalho, já que “sua assinatura
num libreto se tornava garantia de casa cheia” (Diniz, 2009, p. 139).
Várias de suas obras mais conhecidas constituem fragmentos do conjunto
musical de uma obra para teatro de revista, como o conhecido tango O Gaúcho
(corta-jaca), para a revista Zizinha Maxixe. A compositora transitava pelos
diversos gêneros populares da época, produzindo obras ao gosto do público da
época, cada vez mais afeiçoado pelo maxixe, que costumava ser inserido no
final da apresentação (Verzoni, 2011, p. 163-164).
Nesse contexto, portanto, de urbanização da vida nos grandes centros,
novos espaços de lazer e fruição das artes seriam impulsionados. Cada vez mais
a música popular seria utilizada como produto artístico a ser consumido pelas
classes sociais médias, ampliando as oportunidades dos compositores e
musicistas vinculados a esse tipo de prática.

Saiba mais

Conheça um pouco mais da obra de Chiquinha Gonzaga, no campo da


produção musical voltada para esse cenário da música de teatro. Procure notar
as nuances sonoras rítmico-melódicas presentes em suas obras para piano,
sobretudo. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=urg7VINK994>.
Acesso em: 17 ago. 2020.

TEMA 3 – OS DIVERTIMENTOS POPULARES E OS LUGARES ONDE SE FAZIA


MÚSICA

A urbanização dos grandes centros será o mote propulsor das novas


práticas culturais nas cidades brasileiras, diversificando e ampliando as
possibilidades de lazer disponíveis à vida em sociedade. A partir da influência
exercida pela capital da República, Rio de Janeiro, as demais cidades irão
importar modelos, estruturas mentais e confluências artísticas de grandes polos
europeus, tendo a França da Belle Époque como modelo. Entretanto, entre as
camadas populares essa realidade era readequada para atender ao gosto do
brasileiro médio, com casas de espetáculo primando pelo teatro de variedades,
oportunizando espaços para o fazer musical que se adequasse às necessidades
desse setor da sociedade.

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3.1 Novas propostas e mecanismos do fazer musical

A mais nova camada proletária brasileira precisou elaborar formas


próprias de participação no cenário social, e enquanto uns poucos melhor
empregados tentavam se espelhar na alta burguesia e em suas atividades
culturais, a grande maioria acabou por cultivar gosto pela reunião em casas de
família, resumidas a comes e bebes embalados ao som das valsas, polcas,
schottisches e mazurcas à base de flauta, violão e cavaquinho (Tinhorão, 1998,
p. 195). O teatro de revista foi um espaço amplamente frequentado pelo
proletariado brasileiro do início do século, assim como outros espaços nos quais
a música popular urbana tinha espaço garantido.
Lembremos que, nessa época, a elite burguesa brasileira transformou os
teatros em espaços de autorreconhecimento (Needell, 1993, p.106), amparando-
se sempre no código artístico-musical francês, por meio do qual se expressavam.
Ao adotar esse modelo, negavam a validade de qualquer outro possível código,
em especial se esse estivesse relacionado com qualquer aspecto da vida das
camadas subalternas, uma realidade a ser esquecida (Augusto, 2014).
O campo musical em várias cidades brasileiras, entre o final do século XIX
e início do XX, passou a ser entendido como um local privilegiado de
entretenimento, sociabilidade e negócio, tanto para editoras de livros e partituras
como para a indústria fonográfica embrionária. É um momento em que se
procuram as vozes certas e as canções de sucesso que simbolizem o gosto das
diferentes classes sociais que dividem o espaço nos centros urbanos.
O perfil desse mercado fonográfico em gestação, no início do século XX,
passava por um processo de maturação. Encontrava-se aberto a muitos
produtos culturais, já que não se era possível prever com exatidão e garantir o
que seria um bom negócio. Apesar do difícil mapeamento, os empresários da
indústria fonográfica descobriram rapidamente o sucesso das músicas populares
e identificadas com as camadas médias da sociedade. De fato, a música popular
gravada tornou-se um bom negócio e ganhou novas e inusitadas dimensões
(Abreu, 2010, p. 93).
Dentre os cantores e compositores, vários artistas seguiam a tradição dos
produtores dos maxixes e choros de fins do século XIX, com irreverência e
cantando a realidade social de seu tempo. Dentre esses, é possível destacar a
figura de Eduardo das Neves, ou Dudu das Neves (1874-1919). Trata-se de um
caso comum de artista polivalente no Brasil do início do século: tocador de
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choros ao violão, modinhas, serestas, organizador de periódicos e em certa
medida um dos protagonistas da indústria fonográfica de seu tempo. Em sua
carreira, apresentou-se nos espaços das classes médias cariocas, tais como
circos, casas de chope, palcos dos cineteatros, nos cafés-cantantes e nos palcos
de teatros, locais nos quais se apresentava como “crioulo Dudu” (Abreu, 2010,
p. 93).
Boa parte de sua trajetória, entretanto, foi direcionada à carreira de
palhaço. Dudu trabalhou em reconhecidos circos da capital e do Brasil, como o
Grande Circo François e o Circo Pavilhão Internacional, chegando a ser
empresário naquele que ficou conhecido como Circo Brasil. Os circos de então
ofereciam números musicais, e o Palhaço Dudu era reconhecido pela população
carioca de então como exímio cantor e violonista chorão. Seu contato e influência
sobre compositores posteriores se faz notar na interação com dois astros do
samba da década de 1920: Sinhô e João da Baiana durante a fase de formação
artística destes.
A obra de Eduardo das Neves, seus versos, canções e repertório, por
meio do humor e da irreverência, acabava por expor o conflito racial em meio a
possibilidades reais de inserção profissional de negros no mercado cultural e de
diversões carioca. Suas canções, ao lado das de outros músicos negros
contemporâneos, indicam alguns caminhos trilhados pelos artistas
afrodescendentes para projetarem seus sonhos e criticarem desigualdades
sociais e raciais, que pareciam perpetuar-se após o fim da escravidão (Abreu,
2010, p. 96).
A apresentação em coretos e na antessala dos cinemas era também uma
realidade no Brasil do início do século XX nesse processo de estabelecimento
da então recente República. Exemplo dessa realidade pode ser verificada na
trajetória de Pixinguinha (1897-1973) e dos conjuntos musicais formados por
esse grande relevo da cultura musical brasileira. Eram comuns formações
instrumentais de musicistas em coretos nas cidades, esses espaços eram
amplamente utilizados como fonte de disseminação musical em espaços
públicos. Diferentemente, a sala de espera dos cinemas eram locais privados,
nos quais diferentes estratos sociais se agrupavam para o divertimento dos
cinemas, um lazer então em expansão.
Pixinguinha e Donga (1890-1974) foram convidados, em 1919, enquanto
tocavam em um coreto com uma formação de 19 musicistas, a readequar essa

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formação para um grupo de oito músicos visando apresentações no Cine Palais,
um cinema de prestígio na cidade do Rio de Janeiro. Importante destacar que
esse espaço, a sala de espera, eram um local de prática musical para os
espectadores que aguardavam as sessões de cinema, tendo a música um papel
importante nesse processo. Nesse sentido, natural verificar a concorrência entre
os cinemas para atrair maior público, inclusive a partir dos conjuntos musicais
que se apresentavam.
Não sem críticas da elite local frequentadora do Palais, questionando as
vestimentas regionalizadas dos integrantes e a presença de quatro negros no
conjunto, as noites de apresentações no Cine Palais eram amplamente
frequentadas pela população local, destacando assim o conjunto, que ficou
conhecido como Os 8 Batutas. Dado o sucesso, foram empresariados e iniciaram
uma turnê que percorreu inúmeras cidades brasileiras, de 1919 até praticamente
1922, com curtos intervalos, incluindo uma rápida turnê pela França (Cabral,
2007).
O exemplo dessa empreitada de músicos de prestígio tais como
Pixinguinha e Os 8 Batutas demonstra a intersecção dos espaços públicos, como
os coretos, e as salas privadas dos cinemas luxuosos cariocas no Brasil
republicano. Mais além, demonstra a tênue linha que demarcava esses espaços
e a integração e interação, não sem críticas, de estratos de diferentes classes
sociais nos divertimentos musicais do início do século XX.

Saiba mais

Vamos apreciar uma obra historicamente estabelecida pelo conjunto Os


8 Batutas: Urubu, gravada em 1922. Procure notar as sonoridades
características desse contexto. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=petuj9UJtLw>. Acesso em: 4 ago. 2020.

TEMA 4 – A CASA EDISON E AS PRIMEIRAS GRAVAÇÕES NO BRASIL

Conforme indicado anteriormente, a realidade das gravações


potencializou um mercado incipiente que atraiu gostos, gêneros e práticas
musicais heterogêneas. As próprias gravadoras não entendiam, àquele
momento inicial, os gostos então vigentes dos diferentes estratos sociais, nem
mesmo entendiam seu poder de alcance nessa sociedade. Os anos que
sucederam o desenvolvimento dos meios de gravação foram amplificados pelos

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repertórios disseminados nos discos, oportunizando novos mecanismos de
fruição musical e criando um imaginário sonoro no Brasil do início do século XX.

4.1 A música perpetuada no tempo: os processos de gravação

De acordo com Gonçalves (2011), o desenvolvimento das técnicas de


registro e reprodução sonora oportunizou aos indivíduos a identificação com a
música gravada e reproduzida em larga escala, e estreitou laços simbólicos e
afetivos com uma canção apropriada e consumida por vários outros sujeitos.
Essa percepção mudaria definitivamente a relação do espectador com o som e
a música, e do mesmo modo, a própria compreensão do musicista com o
mercado de trabalho.
Desde sua chegada no Brasil, em 1891, Frederico Figner fez fama
atraindo públicos para as audições das gravações de seus fonógrafos da Pacific
Phonograph Company. Em 1896, desembarcou na Capital Federal após
temporadas de viagens em diversas cidades brasileiras, rumando para o Sul no
sentido Montevidéu e Buenos Aires. No Rio de Janeiro, iniciou seu negócio por
entender o potencial da tecnologia que tinha em mãos para uma população
interessada por novidades importadas, e com poder aquisitivo. Fundou sua loja
em 1897, dedicando-se à venda e gravação dos fonógrafos de cilindro, e em
1902 lançou o primeiro suplemento de discos gravados no Brasil.
De acordo com Silva (2001, p. 3), o pioneirismo da Casa Edison pode ser
entendido como o estabelecimento do incipiente mercado fonográfico brasileiro,
a primeira loja de discos do país, atuando simultaneamente em que também
atuava no ramo das gravações. Nesse seu suplemento de estreia, destacam-se
as gravações da Banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro, formada pelo
maestro Anacleto de Medeiros (1866-1907), e que mais tarde seria chamada
também de Banda da Casa Edison. Desse período, destacam-se a gravação de
polcas, valsas, modinhas, maxixes e schottisches, que acabaram por constituir
um repertório das primeiras gravações nacionais de discos planos para
gramofones.
A intensa modernização dos processos de gravação ampliou o universo
da apreciação e crítica musical. Todo um conjunto de atividades profissionais
ligadas a uma “escuta crítica” da música passaram a ter nos discos um potencial
aliado. Jornalistas, intelectuais, artistas e ouvintes passaram a analisar os
produtos fonográficos, impulsionando a imprensa a destinar colunas

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especializadas sobre novos lançamentos, um novo setor da crítica musical
especializada em assuntos relacionados à música gravada (Cascaes, 2016,
p. 68).
É importante mencionar que enquanto esse equipamento não foi tido
como ultrapassado, e do mesmo modo enquanto os próprios concorrentes
estrangeiros competiram no mercado brasileiro com discos fabricados segundo
processos igualmente rudimentares, a Casa Edison manteve-se dominante no
mercado, com amparo na excelente rede de distribuição que havia montado em
diversos polos brasileiros. A partir de 1924, entretanto, os engenheiros
norte-americanos da Victor Talking Machine partiram para nova etapa no campo
das gravações e reprodução de sons, criando em primeiro lugar as vitrolas
ortofônicas e mais tarde as chamadas eletrolas, “acionadas eletricamente”. A
iniciativa brasileira perdeu impulso, e o próprio Frederico Figner iria se ver
reduzido em pouco tempo à condição de mero comerciante de discos, máquinas
de escritório e artigos musicais (Tinhorão, 1978, p. 29).
Após a transição do método de gravação do sistema mecânico para o
sistema elétrico em fins da década de 1920, a atividade musical ganha mais um
campo de atuação, músicos são requeridos para trabalhar nos estúdios
fornecendo material para consumo da população. Com o advento do rádio, na
década de 1930, esse processo é acentuado, criando um mercado de trabalho
ainda mais consistente e que abrigaria instrumentistas, maestros, compositores,
copistas, arranjadores, cantores, mobilizando o cenário profissional como
poucos momentos da história da música popular brasileira.

TEMA 5 – VILLA-LOBOS: DA FORMAÇÃO NO RIO DE JANEIRO À


CONSAGRAÇÃO EM PARIS

Nessa confluência de novas potencialidades para a ampliação da vida


urbana, no campo da produção musical de concerto, as inovações
técnico-teóricas experimentadas na Europa do início do século XX exerceriam
notada influência sobre os compositores brasileiros. A música orquestral
brasileira das primeiras décadas desse século receberia das mãos de Heitor
Villa-Lobos (1887-1959), de maneira significativa, um produto musical que se
destacava pela similaridade às inovações musicais do seu tempo, inserindo o
elemento nacional como característica diferenciada em sua obra.

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5.1 Do início da trajetória à consagração como compositor

Da tradição musicológica que se debruçou sobre a personagem de


Villa-Lobos, é certo que houve uma certa necessidade de justificar o presente
desse compositor a partir de uma “elaboração” do seu passado. Inúmeras
bibliografias da primeira metade do século XX procuraram posicionar o
compositor, à época nosso maior representante do nacionalismo musical, em um
cenário muitas vezes fictício, contribuindo para o surgimento de todo um cânone
mitológico oficial em torno de sua figura (Guérios, 2009, p. 37).
As discussões estéticas que circunscreveram o período vivenciado por
Villa-Lobos, no campo da música orquestral, gravitavam entre propostas de
internacionalização, ou seja, uma prática composicional que se alinhasse aos
principais modelos composicionais europeus do romantismo do século XIX, e
uma outra ideia crescente desde a segunda metade do século XIX relacionada
com o advento dos nacionalismos musicais. Esse projeto nacional estaria
enraizado em um produto estético que abarcasse a experiência musical oriunda
do país do compositor, e para tanto ele precisava ter em mãos os elementos
musicais característicos de sua nação para a construção de suas obras. As
manifestações musicais folclóricas eram alvo dos compositores favoráveis a
esse novo cenário, emprestando das melodias populares, dos ritmos
característicos dos gêneros de dança, da construção harmônica e estrutural das
peças, elementos genuinamente nacionais que contribuiriam para o
reposicionamento da música orquestral brasileira.
É nesse contexto que podemos destacar a influência da música popular
exercida sobre Villa-Lobos, sabendo-se que esta se deu notadamente a partir da
experiência do choro como manifestação musical no Rio de Janeiro urbano do
início do século. Sua incursão na vida boêmia carioca, mencionada por muitas
personagens representantes desse cenário à época, participando das rodas de
choro, inclusive, como instrumentista, contribuiu sobremaneira para a construção
do mote “popular” na sua concepção estética enquanto compositor.
Nesse projeto de confluências e divergências entre internacionalismo e
nacionalismo, não exclusivo, mas alvo de grupos de críticos e compositores no
Brasil, Villa-Lobos procurou exercer o ofício de compositor. Ao longo da década
de 1910, elaboraria obras tais como Danças Africanas (1914), Uirapuru (1917),
Amazonas (1917), mostrando, desde o título da obra, um interesse por essa
associação direta com a música de cunho nacional.
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A Semana de Arte Moderna de 1922 seria um momento em que a
diversidade de correntes vigentes seria colocada em cheque: a crítica à arte
europeizada seria duramente criticada pelos artistas e intelectuais ligados ao
movimento, dentre os quais destacamos a figura de Mário de Andrade (que como
sabemos foi importante crítico musical e musicólogo do início do século XX). A
música ambicionada era essa que encontrava eco nas manifestações culturais
genuinamente nacionais, tendo Villa-Lobos a incumbência de preparar o
repertório musical do evento, justamente por ser entendido como representante
dessa estética no plano composicional.
No campo da composição, os propósitos da Semana, em termos de
ruptura com a arte do passado, não foram efetivamente levados a cabo. Como
principal representante musical do evento, Villa-Lobos ainda procurava se
estabelecer no cenário e, para tal empreitada, utilizou de maneira consciente
influências de compositores consagrados da música ocidental. Conhecer as
técnicas composicionais estabelecidas pela produção europeia, e colocá-las em
prática, era fundamental para demonstração de competência no ofício do
compositor
Em 1923, portanto um ano após a Semana de Arte Moderna, o compositor
chegava em Paris com intuito de divulgar sua obra. Recém-chegado, a convite
de um grupo de artistas envolvidos com os acontecimentos da Semana de Arte
Moderna, Villa-Lobos teve contato com a intelectualidade parisiense, em
especial com o compositor Erik Satie (1866-1925) e o dramaturgo Jean Cocteau
(1889-1953), este último tecendo severas críticas às suas improvisações ao
piano no dia em que se conheceram. Esse primeiro contato com a
intelectualidade local demonstrou ao compositor brasileiro que o caminho
destinado ao reconhecimento em meios parisienses seria um tanto mais árduo.
A partir do contato com a aristocracia artística parisiense, é notória a
mudança de enfoque que se deu em sua abordagem composicional. Villa-Lobos
começou a utilizar amplamente a rítmica característica da música popular, com
os quais conviveu para além dos espaços oficiais dos teatros brasileiros, e que,
entretanto, não tinha incorporado ainda suas obras muito em função ao valor
pejorativo das práticas populares. O elemento rítmico seria a marca prioritária de
suas obras a partir de então, a partir dessa perspectiva de utilização dos
elementos nacionais. Aproveitou essa nova compreensão para, desde seu
retorno de Paris, em 1924, pesquisar cantos indígenas, a partir dos fonogramas

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recolhidos durante a expedição Rondon, em 1908. A estética francesa, influência
à época do compositor Villa-Lobos em formação, foi abandonada, e a nova
abordagem das sonoridades orquestrais encontrou inspiração no então
compositor russo Igor Stravinsky (1882-1971) (Guérios, 2009).
Seria apenas em Paris, local no qual permaneceu efetivamente, e não ao
longo da Semana de Arte Moderna, portanto, que Villa-Lobos descobriu-se
compositor nacional, momento no qual passou a se construir como artista
brasileiro. Desde então, criaria obras essencialmente nacionais e daria início a
essa aura mítica em torno de si próprio, ao construir falas emocionadas sobre
sua nação e seu pertencimento ao imaginário nacional (Moreira, 2011, p. 84).
Para que essa verdadeira conversão ocorresse, foi necessário o contato com as
impressões europeias a respeito da nacionalidade e da própria nação brasileira.

Saiba mais

Aproveite a oportunidade para conhecer um pouco mais da obra de Villa-


Lobos após sua consagração em Paris. A sua série Bachianas Brasileiras é
representativa desse contexto, buscando emancipar a forma em um alinhamento
claro entre as sonoridades clássicas estabelecidas com nuances da produção
musical brasileira. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=5mf3SQ3dVz8&t=32s>. Acesso em: 4 ago.
2020.

NA PRÁTICA

A apreciação crítica é de extrema importância para a formação do músico


e do educador musical. Vamos apreciar dois exemplos musicais procurando
compreender essa mudança na concepção estética do compositor brasileiro
Heitor Villa-Lobos.

1. A primeira obra, oriunda da influência francesa sobre Villa-Lobos e sobre


o meio carioca de seu tempo, tem traços característicos de sonoridades
brasileiras?
2. A segunda obra, composta após seu retorno de Paris, justifica um cenário
de mudança estética? Quais as principais características musicais que
justificam esse cenário de mudanças?

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FINALIZANDO

Nesta aula, exploramos contextos socioculturais que contribuíram para o


estabelecimento de novas práticas musicais, bem como novos cenários onde o
fazer musical tornou-se possível.
Com o advento da República, tivemos um novo arcabouço intelectual que
contribuiu sobremaneira para novas modalidades de pensamento no campo das
estruturas artísticas. Quando colocadas em prática, determinaram uma guinada
na produção cultural do início do século XX. Estudamos as principais instituições
de ensino de música no pós-Proclamação da República, conhecendo o trabalho
de compositores como Leopoldo Miguez, Francisco Braga e Alberto
Nepomuceno. De maneira semelhante, exploramos um pouco mais algumas
manifestações musicais presentes durante o processo de urbanização dos
centros brasileiros, sobretudo na capital da República, Rio de Janeiro. Nesse
momento, conhecemos a realidade dos teatros de revista e a necessidade de
produção musical específica para esse tipo de espetáculo, com destaque para a
obra de Chiquinha Gonzaga.
Do mesmo modo, entendemos as especificidades existentes entre os
espaços públicos e privados do fazer musical, adotando como exemplo os
coretos e as salas de espera dos grandes cinemas cariocas. Aqui, o relato de
Pixinguinha durante a formação do grupo Os 8 Batutas é emblemático ao ilustrar
as festividades populares nos coretos e o decoro e a pompa das antessalas dos
cinemas. Nesse processo dicotômico entre o público e o privado, averiguamos a
emancipação e estabelecimento definitivo dos processos de gravação a partir da
instalação da Casa Edison, responsável não apenas pela venda de
equipamentos e discos, mas também pela gravação de boa parte do repertório
de música popular urbana do início do século XX.
Por fim, conhecemos essa faceta de Heitor Villa-Lobos, um dos nossos
expoentes no que se refere ao nacionalismo musical, enquanto se formava
compositor. As trocas culturais, as influências no Brasil dos chorões e as
referências averiguadas na Paris da década de 1920 foram cruciais para seu
estabelecimento como um compositor essencialmente nacionalista.

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REFERÊNCIAS

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