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HISTÓRIA DA MÚSICA

BRASILEIRA
AULA 4

Prof. Alan Rafael de Medeiros


CONVERSA INICIAL

Caro aluno, nesta aula, iremos nos aprofundar sobre o cenário de


produção musical durante a primeira metade do século XX, procurando entender
as principais estruturas de pensamento que nortearam a música desse período.
Analisaremos a intelectualidade em torno do modernismo musical, centrado na
figura intelectual de Mário de Andrade, do musicólogo Luiz Heitor Corrêa de
Azevedo e dos compositores Heitor Villa-Lobos, Francisco Mignone e Camargo
Guarnieri. Do mesmo modo, procuraremos direcionar o olhar para a organização
em torno do samba urbano, um produto musical autoral oriundo das
comunidades cariocas.

TEMA 1 – O MODERNISMO MUSICAL DE MÁRIO DE ANDRADE

Neste tema, voltaremos o olhar para a produção intelectual de Mário de


Andrade, um dinâmico pensador, atuante em diversificados campos artísticos,
que contribuiu significativamente com suas reflexões sobre a música de concerto
brasileira do século XX.

1.1 Mário de Andrade: um “viajante aprendiz”

Mário de Andrade (1893-1945) foi, sem a menor dúvida, uma das figuras
intelectuais de maior atuação no campo das reflexões sobre a música de
concerto do início do século XX. Da sua formação como musicista com a
trajetória enquanto literato, resultou um intelectual que versava com propriedade
em áreas como a crítica musical e a musicologia enquanto reflexão teórica.
Precisamos ter em mente que esse período da produção musical estava
cerceado por um amplo sentimento nacionalista, ou seja, aquele que atribuiu aos
compositores a relevância de buscar no material musical de seus países de
origem o conteúdo primário para a composição. Esse sentimento se opunha ao
internacionalismo vigente desde o fim do século XIX, intensificado pelo
desenvolvimento das ciências humanas e pela expansão territorial oportunizada
pelos imperialismos desse mesmo século.
No Brasil, o projeto musical nacionalista encontrou voz no trabalho de
musicólogos como Renato Almeida (1895-1981), que incorporou a temática com
base no uso do folclore como fonte para se pensar a música; e do mesmo modo

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no trabalho de Mário de Andrade, que durante vasto período de sua carreira
procurou sistematizar, por meio das primeiras pesquisas folclóricas, elementos
musicais destinados à manipulação dos compositores de música de concerto. A
influência de Mário de Andrade se fez sentir em personalidades tais como o
musicólogo Luiz Heitor Corrêa de Azevedo (1905-1992) e compositores
proeminentes como Heitor Villa-Lobos (1887-1959), Oscar Lorenzo Fernandez
(1897-1948), Francisco Mignone (1897-1986) e Mozart Camargo Guarnieri
(1907-1993) — todos empunhando a bandeira do nacionalismo musical, cada
um a seu modo.
De acordo com Egg (2012), o pensador poderia ser entendido como um
crítico musical complementado pelo escritor e poeta, conferencista e ensaísta,
intelectual público, professor, burocrata. Para além da ideia de criação de uma
obra literária original, o autor passou a se enxergar como intelectual vocacionado
ao fomento da cultura brasileira. Seguindo a tendência da intelectualidade do
período, Mário de Andrade acreditava que, para o desenvolvimento das artes no
Brasil, era necessária a integração de três propósitos: o direito à pesquisa
estética, a contínua atualização da inteligência artística brasileira e o
estabelecimento de uma consciência criadora nacional (Coli, 1990).
Mário de Andrade entendia o folclore como a estrutura capaz de unificar
esse modelo nacional, como o lugar dos elementos musicais identitários que
constituiriam o espírito nacional. Para a efetivação do plano de unidade nacional,
a cultura embrionária deveria ser alcançada, a partir do resgate das tradições
populares e visando à renovação e nacionalização das artes.
No compêndio Ensaio sobre a música brasileira, de 1928, ele procurou
indicar as bases para essa concretização, utilizando ferramentas diversificadas
que orientassem a busca pela brasilidade nos elementos integrantes da
composição. Esse processo deveria ser realizado pelo compositor de música de
concerto engajado no trabalho de legitimação de uma música nacional. Defendia
a pesquisa do folclore (música popular) como fonte de reflexão temática e técnica
do compositor (de música de concerto) preocupado, em um primeiro momento,
com a criação de uma música nacional e, num segundo, com a sua
universalização por meio da difusão nos principais polos culturais do exterior, em
especial, da Europa (Contier, 2004).
Além de tudo, acreditava que o compositor deveria basear seu trabalho
em critérios sociais, promovendo a arte brasileira como um indivíduo “eficiente

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com valor humano [enquanto] o que fizer arte internacional ou estrangeira, se
não for gênio, é um inútil” (Andrade, 1972, p. 19). Nesse aspecto, a função social
está atrelada à formação da nação por meio da cultura elitizada, já que
diferentemente dos países europeus culturalmente estabelecidos, o Brasil ainda
não possuía essa base, sendo uma atribuição destinada a todo artista engajado.
Para a concretização dessa base cultural nacional, era necessário
estabelecer critérios para uma pesquisa das tradições populares. Após coleta de
materiais, esses elementos populares, diga-se folclóricos, deveriam ser
transferidos para a música nacional de concerto, pelas mãos dos compositores
atrelados ao movimento, e era imprescindível a estes dominarem técnicas
composicionais da música de concerto dos centros europeus. Não há ruptura
com as práticas de composição de música internacional, apenas a redefinição
do material e do processo composicional (Contier, 1988, p. 163).

TEMA 2 – O SAMBA: SURGIMENTO E PROFISSIONALIZAÇÃO

O samba, durante o processo de formatação ao início do século XX,


acabou sendo convertido e passou a ser entendido como ponto comum na
representação do povo brasileiro, uma representação cultural de nós mesmos.
Pode ser entendido, nessa perspectiva, como referência irrefutável para a
construção de uma compreensão sobre nossa formação social. Vamos
aproveitar para entender um pouco mais sobre essa manifestação musical.

2.1 Samba: estratégias de emancipação

O nome samba, derivado da tradição africana, remonta às práticas


festivas dos escravos residentes na Bahia e arredores, práticas essas que
mesclavam a música, a dança e os ritmos percussivos aos elementos religiosos.
Gradativamente, essa prática passou a ser integrada no contexto social mais
abrangente das cidades. Desse modo, a produção musical oriunda dessa
tradição festiva passou a integrar outros gêneros musicais urbanos. Dentro
dessa perspectiva, já ao final do século XIX, em especial no Rio de Janeiro
(então Capital da República, centro de migração nacional), os negros se
organizavam em festividades específicas, dando origem às rodas de samba,
mesclando a rítmica africana com gêneros mencionados anteriormente, tais
como o schottish, a polca, o maxixe, dentre outros.

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Inicialmente malvisto, o samba enquanto gênero musical era motivo de
perseguição e mesmo prisão dos musicistas praticantes, justamente pela ligação
direta à matriz africana, à época uma manifestação depreciada. O ponto de
mudança está relacionado ao contato gradual e às “negociações” entre os
agentes criadores do samba e as elites culturais do Rio de Janeiro. Dentre eles,
podemos citar o encontro de Donga e Pixinguinha em um evento fechado em um
café, local no qual figuravam personalidades como os jovens intelectuais como
Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, além dos compositores Heitor Villa-
Lobos e Luciano Gallet. De acordo com Vianna (2007), poderíamos ir mais longe
e mencionar a relação de empresariado entre Arnaldo Guinle e os Oito Batutas,
a relação entre João da Bahiana e o senador Pinheiro Machado, e o interesse
do compositor francês Darius Milhaud (1892-1974) sobre a música popular
urbana carioca.
De acordo com esse autor, portanto, a afirmação mais coerente sobre as
origens do samba se relaciona com a criação de grupos negros pobres
moradores dos morros do Rio de Janeiro, com a interação ativa ou passiva de
outros grupos, de diferentes classes, raças e nações. É desse conjunto de
conexões e relações diretas e indiretas que a prática musical do samba será
constituída (Contier, 1988, p. 35).
O desenvolvimento do gênero encontra eco no incremento dos meios de
gravação, que como vimos, se modernizava frente aos novos procedimentos e
maquinários disponíveis. Sabemos também da empreitada das gravadoras para
efetivar o registro dos gêneros populares urbanos, e que esse quadro de
possibilidades era de fato uma estratégia de trabalho para os próprios músicos
populares do período. Queremos dizer com isso que, dentro do próprio gênero,
os compositores traçavam estratégias para esse mercado à época
semiprofissional de música. Basta remontarmos ao primeiro samba então
gravado da história, o conhecido Pelo telefone, de Donga. O compositor indicou
que era uma prática cercar as gravadoras para conseguir o registro de suas
obras e, consequentemente, alguma projeção profissional (Sodré, 1998),
demonstrando assim certa inteligência popular estratégica desse grupo social
produtor do samba.
É nessa realidade do desenvolvimento dos meios de gravação que o
samba passará a individualizar os autores dos samba-canção (samba enquanto
gênero adaptado à estrutura poética da canção). Por ser uma prática coletiva

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oriunda das festividades religiosas de caráter coletivo, como indicamos
anteriormente, a noção de autoria é subjetiva, uma vez que a composição é
basicamente coletiva, sem um autor específico. A profissionalização da música
no cenário urbano, bem como as obras que passaram a ser gravadas nos discos,
demandaram aos cantores e compositores esse gradual processo de
reivindicação de autoria à música.
Por fim, é desse contexto de emergência da prática musical popular que
o samba será convertido em produto a ser consumido na sociedade urbana,
tendo em vista o caráter “exótico” do gênero identificado pelas camadas sociais
elitizadas. A imitação das modas europeias, e gradativamente a esse período da
aproximação com os padrões norte-americanos, fazia a elite brasileira visualizar
o gênero a partir desse prisma exótico, prática comum quando pensamos na
relação das elites dos Estados Unidos com o blues produzido pelos negros. A
aproximação com a vida urbana era uma necessidade para que o samba fosse
minimamente aceito e adotado pelas classes elitizadas, a partir do afastamento
de sua origem rural/religiosa e a gradual associação ao modelo norte-americano,
seja instrumental, a partir da adoção de instrumentos tais como o saxofone, a
bateria, seja da indumentária, na substituição dos trajes de caboclos pelos
smokings (Tinhorão, 1998, p. 280).

TEMA 3 – OS INTELECTUAIS NA ERA VARGAS

O período conhecido como Era Vargas compreende o momento político


brasileiro centrado nos governos de Getúlio Vargas (1882-1954), que, se
analisado com base no prisma das artes, foi fecundo para a consolidação das
manifestações musicais nacionais. Nesse sentido, é possível afirmar que esse
se tornou o momento da história brasileira em que o nacionalismo musical foi
lançado e efetivado como projeto oficial, servindo a propósitos estéticos e
políticos específicos.

3.1 O nacionalismo musical e a atividade dos intelectuais vinculados ao


movimento

Conforme verificado, com base nas preocupações de Mário de Andrade,


traçamos o perfil do tipo de produto musical ambicionado pela intelectualidade
brasileira da primeira metade do século XX, antenada com os movimentos

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culturais estéticos que aconteciam em outros polos europeus. A cultura musical
precisava ainda ser efetivada no Brasil, e para tanto, musicólogos e críticos
lançaram mão de uma série de projetos em que o produto musical nacional fosse
ressaltado, a partir da experiência, apropriação e utilização do folclore nas
composições de música de concerto.
A década de 1930 constituiu em definitivo o movimento modernista no
país, tornando-o movimento oficial, no projeto idealização da sociedade
brasileira em seu aspecto modernizante, utilizando-se, portanto, da educação e
da cultura como dimensões prioritárias. A arte direcionou seu olhar para o real,
a partir da reflexão sobre problemas socioculturais e sobre a função da arte no
aparato social. De acordo com Velloso (1997, p. 58), a construção do
nacionalismo se constituiu em uma das preocupações basilares dos intelectuais,
e a partir dos governos de Getúlio Vargas, eles passariam a situar essa tarefa
nos domínios do Estado, uma verdadeira união entre as elites intelectuais e
políticas.
Boa parte dos intelectuais do período estiveram ligados ao aparelho
público do Estado, se envolvendo diretamente na criação de organismos
musicais e órgãos de fomento à cultura musical. Era um momento propício para
essa associação direta com o poder político brasileiro, já que o nacionalismo era
concebido pelo Estado como a verdadeira representação do povo brasileiro,
caracterizando-se, portanto, como o projeto estético capaz de representar de
maneira fiel, o país e suas características particulares. Momento peculiar de
nossa história em que a área da cultura transformou-se em negócio de Estado,
com orçamento para a realização de encomendas artísticas (artes plásticas e
música) e constituindo grupo qualificado para efetivar estes projetos, seja do
ponto de vista artístico, seja do ponto de vista intelectual/burocrático (Micelli,
2003).
Nessa perspectiva, Mário de Andrade, instigador da cultura brasileira,
ensaísta, crítico musical e mentor dos principais compositores vinculados ao
nacionalismo, esteve vinculado a organismos de fomento e ampliação cultural.
Por ser paulista, boa parte de sua atividade esteve vinculada àquele estado, com
algumas incursões pelo Rio de Janeiro. Em 1935, ele foi eleito para a chefia do
departamento de cultura da cidade de São Paulo, empregando esforços para a
criação da Orquestra Sinfônica de São Paulo, do Quarteto Haydn (depois
Quarteto Municipal), Coral Paulistano e Coral Popular.

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De maneira semelhante, foi o responsável pela criação da Discoteca
Pública de São Paulo, um modelo de acervo discográfico a reunir materiais para
a pesquisa musicológica e apreciação. Mário de Andrade acreditava que todas
as instituições de ensino deveriam ter aparelho fonográfico e uma discoteca,
traduzidas em recursos didáticos ao professor de história da música, de estética
e mesmo ao professor de instrumentos, e de maneira semelhante defendia a
ideia de criação de um arquivo de discos público que se vinculasse às pesquisas
musicais (Moya, 2010, p. 43).
Em concordância com o trabalho de Mário de Andrade, Luiz Heitor Corrêa
de Azevedo (1905-1992), importante musicólogo da primeira metade do século
XX, estabeleceu o Centro de Estudos em Folclore na Escola Nacional de Música
(atual UFRJ). Em 1941, ele foi convidado a permanecer por seis meses nos
Estados Unidos como consultor da recém-formada divisão de Música da União
Pan-Americana, estabelecendo parceria com a Biblioteca do Congresso.
Recebeu todo o material e aparelhos de gravação e despesas de viagens, tendo
ficado responsável pela coleta de material musical oriundo de diferentes regiões
do país, em quatro viagens ao longo dos anos de 1942 e 1946 (estados de Goiás,
Minas Gerais, Ceará e Rio Grande do Sul) (Cavalcanti, 2011, p. 93-94). Além de
criador e editor da Revista Brasileira de Música, o primeiro periódico científico de
música do Brasil, entre 1934-1942, em 1947, aceitou o cargo de chefe da Seção
de Música da Unesco, em Paris, posto no qual ficou até 1965.
Heitor Villa-Lobos, o compositor anteriormente mencionado, encontrou no
Estado Novo o mecanismo ideal para a vinculação de suas principais ideias no
campo da produção e ensino musical. Engajado no projeto de construção de um
ideário musical nacional, o compositor via na educação uma ferramenta
importante para o desenvolvimento musical das futuras gerações. Entretanto,
aqui estamos também potencializando seu veio empreendedor, que visualizou
no governo de Getúlio Vargas possibilidades de ascensão e estabelecimento
definitivo enquanto compositor, alcançando um número ainda maior de ouvintes.
No início da década de 1930, Villa-Lobos elaborou um projeto com
intenção de estabelecer o ensino do canto nas instituições de ensino básico de
São Paulo, ampliando esse viés ao enviar correspondência a Vargas,
enfatizando a relevância da música na construção da cultura nacional. A partir
desse contato, seria convidado a chefiar o serviço de música e canto orfeônico.

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Sua relação vinculada ao serviço público foi sendo alterada conforme o próprio
governo de Vargas sofria alterações:

a) inicialmente, como Superintendente do Ensino Musical e Artístico da


Secretaria de Educação, sua atuação dava-se restritamente no âmbito do
Distrito Federal;
b) quando assumiu a organização de grandes concentrações orfeônicas
passou a se relacionar diretamente com o Ministério da Educação e
Saúde, bem como com Getúlio Vargas;
c) no fim de sua trajetória como funcionário público, na direção do
Conservatório Nacional de Canto Orfeônico, tornou-se responsável pela
formação de todos os professores habilitados a ministrar a disciplina em
todas as escolas e colégios públicos do país.

É importante frisar que tanto Heitor Villa-Lobos quanto o regime de Vargas


se beneficiaram mutuamente dessa interação, superando parte da historiografia
vigente que situou o compositor como politicamente ingênuo, preocupado
exclusivamente com questões de ordem estética. Para Vargas, as agremiações
orfeônicas e o ensino de música com temática cívica e patriótica nas escolas
públicas brasileiras representaram perfeitamente sua proposta populista de
governo, um mecanismo eficiente de propaganda. Para Villa-Lobos, essa
relação representava a divulgação permanente de suas obras, a atenção
frequente da sociedade ao seu nome, e por último, a garantia de estabilidade
econômica, garantindo sua sobrevivência artística. Nesse caso, caracterizou-se
como uma negociação entre o chefe de estado e o compositor (Cherñavsky,
2003, p. 16-17).
Podemos verificar que nesse período, portanto, a intelectualidade passou
a se associar com o Estado para garantir a ampliação dos espaços de produção
artística, de novos organismos de fomento à cultura e mesmo das práticas
musicais. Além da intelectualidade, a própria classe artística passou a mobilizar
esforços para que esses espaços fossem legitimados em torno do fazer musical,
confirmando a estética vigente do nacionalismo, ambicionada inclusive pelo
aparato estatal para caracterizar uma nova ideia de país, dissociando-a do
passado republicano da virada do século XIX.

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TEMA 4 – OS COMPOSITORES NACIONALISTAS

A partir do momento em que o cenário de produção em torno do


nacionalismo se consolidou, o arcabouço das composições foi sensivelmente
alinhado a essa premissa estética. Compositores, críticos, intelectuais e toda a
comunidade musical voltaram seu olhar e sua escuta para o projeto, que tinha,
agora, o Estado como parceiro ideal. Vamos aproveitar este momento para
conhecer um pouco mais sobre alguns compositores que, em maior ou menor
grau, produziram obras relacionadas a esse contexto.

4.1 A produção musical nacionalista

Conforme indicamos, o nacionalismo tencionou à criação de um contexto


cultural propício para a produção artística no Brasil, a partir, sobretudo, da
primeira metade do século XX, em especial após a Semana de Arte Moderna de
1922. Dentre as personalidades relacionadas às propostas nacionalistas
figuraram o musicólogo Luiz Heitor Corrêa de Azevedo (1905-1992), o crítico
José de Andrade Muricy (1895-1984), e como compositores representantes do
movimento destacamos Heitor Villa-Lobos (1887-1959), Francisco Mignone,
Mozart Camargo Guarnieri (1907-1993), dentre outros, influenciados pela
questão nacional como temática prioritária de suas respectivas produções.
Por se tratar de um campo estético no qual a individualidade e as opções
criativas cabem a cada compositor, o “artesão” dos sons, em alguns casos os
movimentos estéticos passam por embates internos entre os teóricos e entre os
próprios compositores. É importante mencionar que no plano musical, as
divergências entre Mário de Andrade, Renato Almeida, Heitor Villa-Lobos,
Camargo Guarnieri, Lorenzo Fernandez, dentre outros intelectuais, eram
pontuais, sem nenhum confronto teórico-metodológico ou político, de uma
natureza polêmica ou contundente.
Heitor Villa-Lobos, a partir da década de 1930, como se sabe, esteve
empenhado no seu vínculo às esferas públicas como compositor do governo
getulista. Nesse sentido, contribuiu pouco com as preocupações estéticas do
nacionalismo, já que o prestígio atingido após sucesso em Paris e na atuação
junto ao Estado Novo “colocaram-no acima da crítica, de tal modo que as
restrições à sua figura aparecem sempre de forma velada” (Egg, 2007, p. 2).
Entretanto, sua vultuosa obra ressalta a presença marcante dos temas

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nacionais, folclóricos, cívicos, de interesse musicológico, que podemos destacar
na sua série dos 14 Choros (compostos entre 1920-1928) e das nove Bachianas
brasileiras (1930-1945).
Além de Villa-Lobos, outros compositores se associaram diretamente ao
nacionalismo enquanto corrente estética. Francisco Mignone (1897-1986), filho
de imigrantes italianos, desde cedo educado musicalmente sob influência da
tradição italiana, conseguiu transitar, em sua formação musical, entre a música
popular — utilizando o pseudônimo Chico Bororó em suas composições para
evitar o repúdio da classe artística elitizada — com a formação convencional de
música de concerto. Mignone recebeu bolsa de estudos para aperfeiçoamento
na Itália, permanecendo em Milão entre 1920 e 1929, período no qual sua
produção se relacionou mais à música daquele contexto, naturalmente.
Mário de Andrade seria o mentor que instigou Mignone à superação do
italianismo em prol do nacionalismo. Nesse contexto, nas trocas constantes com
seu interlocutor Mário de Andrade, passou a dar prioridade à produção
nacionalista, com características líricas herdadas do melodismo italiano e
adaptadas aos ritmos brasileiros, com a ambientação mais primitiva dos rituais
afro-brasileiros, que lhe forneceram todo o material de base para as obras
orquestrais do seu “ciclo negro”. A partir de então, sua produção ganhou matiz e
força nacionalista, direcionada à música sinfônica, de câmara e pianística, além
de algumas obras vocais (Barros, 201, p. 41).
Da obra representativa de Mignone, indica-se o “ciclo negro”, conjunto de
quatro bailados com temática associada aos ambientes afro-brasileiros, do
mundo contemporâneo dos rituais de umbanda ou candomblé ao mundo
Senzalas e da realidade nos tempos da escravidão. A ordem cronológica:
Maracatu do Chico Rei (1933), o Babaloxá (1936), o Batucajé (1936) e O leilão
(1941), a primeira e a última com temáticas da herança escravocrata, a segunda
e terceira da realidade da umbanda ou candomblé (Barros, 201, p. 41).
Outro compositor pupilo de Mário de Andrade foi o paulista Camargo
Guarnieri, a partir de 1928. Tanto Camargo Guarnieri quanto Francisco Mignone
seriam personagens chave no tocante ao engajamento do compositor na
disseminação do nacionalismo musical, sabendo-se que formaram outros
compositores, alargando a rede de compositores associados à estética e suas
concepções artísticas. De sua obra, destacamos a Dança Brasileira (1928),

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inicialmente para piano, depois orquestra, e seus 50 ponteios, ciclo de obras
para piano.
Diferentemente de Villa-Lobos ou Mignone, a obra de Camargo Guarnieri
estava mais voltada às estruturas tradicionalizadas da música de concerto, como
concertos, sinfonias, quartetos e aberturas. Entretanto, ao invés dos temas
folclóricos evidentes, presentes nas músicas dos dois compositores
mencionados, suas melodias eram menos evidentes, com uso de um
contraponto não tonal, elaborando efeitos de tensão permanente pelo caráter
não homofônico de suas obras. Queremos dizer com isso que sua obra era
menos relacionada com o mimetismo da música folclórica e sua rítmica
sincopada de fácil assimilação, e mais associada ao conjunto nacional que
dialogava com o universalismo das técnicas de composição (Egg, 2010, p. 140).
Enquanto em Villa-Lobos temos o compositor inventivo, de genialidade
bruta, resultante de uma abordagem composicional sem estruturação formal
bem definida, com inventividade do ponto de vista composicional e dos recursos
timbrísticos da orquestra, em Mignone temos o melodista, hábil compositor de
melodias, lírico, com acompanhamento bem delimitado e de bom gosto da linha
melódica principal, bem como domínio da paleta de cores da orquestra.
Guarnieri, por outro lado, era o compositor que tinha, para além do talento e
inspiração, a construção elaborada e o trabalho intelectual, que tinha na lógica
da estruturação musical canônica (clássica, tradicionalizada), o mot de seu
produto musical nacional (Egg, 2010, p. 141).

TEMA 5 – O GRUPO MÚSICA VIVA: ENTRE A VANGUARDA E O


NACIONALISMO NA DÉCADA DE 1940

Neste momento, analisaremos outra corrente estética ao longo da década


de 1940, intensificada a partir do estabelecimento do grupo Música Viva,
estimulada especialmente pelo compositor alemão Hans-Joachim Koellreutter
(1915-2005). Como temos visto, o nacionalismo musical imperou soberano
durante a primeira metade do século XX. Entretanto, o período das décadas de
1940 a 1960 passou a ser campo de discussões sobre o nacionalismo e uma
crescente oposição das estéticas universalistas de vanguarda, esta voltada à
música experimentalista, em sintonia direta com questões do mundo
contemporâneo.

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5.1 Música Viva e a crítica ao nacionalismo

Quando chegou ao Brasil em 1937, Koellreutter trouxe consigo vivências


em cursos de composição com base em estéticas de vanguarda na Europa e
influenciaria uma geração de compositores ao longo da década de 1940. É
preciso delimitar, neste momento, o campo estético específico existente entre o
nacionalismo musical, que detalhamos anteriormente, das propostas de
vanguarda, esta associada aos processos de composição presentes na
contemporaneidade, de caráter universalista e, portanto, não circunscritos às
barreiras culturais de um determinado país.
Ao longo de sua permanência no Brasil, Koellreutter se tornou referência
na produção relacionada à vanguarda, e com isso inspirou, se convertendo em
espécie de mentor (tal como Mário de Andrade fora aos nacionalistas), de um
grupo de jovens compositores, dentre os quais se destacaram César Guerra
Peixe (1914-1993) e Claudio Santoro (1919-1989). No Manifesto Música Viva de
1946, publicado nos boletins do grupo, se posicionariam contrariamente ao
produto musical estabelecido, uma vez que buscavam uma arte embasada no
nascimento do novo, uma orientação alinhada às estéticas de vanguarda
europeias, e às escolas de composição em voga.
De acordo com Kater (2006), o movimento tinha como norte o enfoque
educativo, de criação musical e divulgação, pilares do Música Viva. Para além
da difusão prática da música, outra iniciativa ligava-se à circulação de um boletim
mensal, voltado à atualização do ambiente musical. Essa atualização estaria
ligada à revelação de obras do passado (de autores desconhecidos ou não), e
do mesmo modo pela apresentação teórica das novas técnicas musicais.
Tanto Claudio Santoro quanto Guerra Peixe seriam críticos do movimento
nacionalista, em um primeiro momento. Enquanto Claudio Santoro questionava
a falta de criatividade dos nacionalistas, amparados exclusivamente pela
espontaneidade folclorista, Guerra Peixe criticava a supervalorização do folclore
em detrimento da música popular dos centros urbanos. De acordo com ele, os
compositores nacionalistas limitavam-se a copiar uma música popular do
passado que não era efetivamente utilizada. Santoro compôs, nessa inclinação
contemporânea, obras como A Sonata para violino e piano n. 1 (1940) e a
Sinfonia n. 1 (1941), além do Quarteto n. 1 (1943) e a Sinfonia n. 2 (1945). Dentre

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as obras de Guerra Peixe com viés universalista, destacamos a Sinfonia n. 1
(1946) e o Noneto (1945).
Na perspectiva estética brasileira do período, temos, portanto, dois
movimentos que passaram a ser contrapostos pelo grupo de compositores: o
nacionalismo e a vanguarda. A produção de vanguarda em música, que passava
a ser potencializada a partir da década de 1940, foi questionada em debate
acirrado após a publicação da carta aberta do compositor Camargo Guarnieri em
1950, sob o pretexto da defesa da “cultura brasileira” e da música em particular.
O discurso de Guarnieri retomou questões sobre o “popular” e o “nacional” na
música brasileira, consoante às ideias defendidas por seus pares já citados nesta
aula, preocupado com os “perigos” da arte moderna como uma força capaz de
“destruir” o nacionalismo (Tacuchian, 2006, p. 12).
Com o enfraquecimento do Música Viva entre 1951 e 1952, os
compositores do movimento, cada um a seu modo, passaram a valorizar a
produção nacionalista. Importante ressaltar a oposição das propostas estéticas
desses compositores dissidentes não se configurava em conflito contra o
nacionalismo musical, mas um conflito dentro do nacionalismo musical, na busca
por outros formatos de “nacionalismo”, amparado em pesquisa científica do
folclore para a organização de estrutura técnica, no caso de Claudio Santoro, e
na incorporação dessa na nova música popular urbana em Guerra Peixe,
mediante uma lógica composicional coerente e com técnicas atualizadas (Faria,
1998, p. 17).

NA PRÁTICA

A apreciação crítica é de extrema importância para a formação do músico


e do educador musical. Vamos apreciar exemplos musicais característicos do
nacionalismo musical e outros derivados dessa vanguarda musical oriunda do
Grupo Música Viva, procurando apreciar as diferenças estética presentes.

1. A primeira obra, característica do nacionalismo musical, exalta elementos


folclóricos como a ferramenta prioritária que norteia toda obra. O ritmo
também é preponderantemente característico. Você consegue identificar
essas nuances?
2. A segunda obra, característica do grupo Música Viva, se associa às
correntes então em voga na Europa, fazendo uso de técnicas

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dodecafônicas e atonais na compreensão do arcabouço composicional.
Ela parece semelhante ao exemplo anterior ou se opõe radicalmente ao
que foi apreciado anteriormente?

FINALIZANDO

Nesta aula, tivemos a oportunidade de aprofundar os conhecimentos


sobre a produção musical circunscrita, sobretudo entre as décadas de 1930 e
1940. Exploramos o cenário intelectual em torno das ideias de Mário de Andrade
sobre o nacionalismo musical e pela busca verdadeira sobre um espírito musical
capaz de captar a cultura brasileira. Nesse sentido, verificamos o samba e sua
profissionalização no cenário brasileiro do período, tencionando à sua
assimilação pelas diversas camadas sociais.
Ao analisar o contexto dos governos de Getúlio Vargas, verificamos a
inserção da intelectualidade e do uso do aparelho estatal para o fomento da
cultura, ampliando assim as práticas musicais, os espaços do fazer musical, os
organismos oficiais de execução e, por fim, a formação do público em geral. Com
base nessa estrutura, aproveitamos para entender um pouco mais a corrente
nacionalista, bem como seus principais representantes e, por fim, a
contraposição da corrente vanguardista, ilustrada no grupo Música Viva e suas
estratégias de diferenciação no campo da composição musical.
Por fim, é importante perceber que todas as estruturas musicais estão
intrinsicamente relacionadas ao contexto de produção ao qual pertencem,
influenciadas, sem exceção, pelas discussões filosóficas do período, pelas
estéticas musicais vigentes e pelas possibilidades do mercado de trabalho na
música.

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REFERÊNCIAS

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