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Eunice Katunda (1915-1990)

Article · April 2015

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Eliana Monteiro da Silva


University of São Paulo
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Eunice Katunda (1915-1990)

Os centenários costumam ser boas motivações para o resgate da obra e da
história de vida de compositores pouco conhecidos do grande público.
Lançamentos de biografias, artigos e gravações são muito benvindos e
despertam em nós a vontade de conhecer melhor esta ou aquela personagem da
vida real. Em março de 2015, por exemplo, comemoramos o centenário de
nascimento de uma das maiores pianistas e compositoras que o Brasil já teve,
apesar de pouco conhecermos sua obra e sua trajetória. Trata-se de Eunice
Katunda, cujo talento e personalidade marcante são dignos de todas as
publicações existentes, notadamente as pesquisas de Nilcéia Baroncelli, Carlos
Kater e Iracele Lívero, e que ainda estão por vir.
Eunice Catunda, (com “C”, como assinava antes de divorciar-se do
matemático Omar Catunda), nasceu no Rio de Janeiro. De acordo com o currículo
redigido pela mesma, iniciou o estudo de piano aos cinco anos, com Mima
Oswald e Bianca Bilhar, passando à orientação de Oscar Guanabarino. Sua mãe, a
pintora Grauben do Monte Lima, dizia que a filha sentara-se ao piano com três
anos e tocara uma música inteira, nunca deixando de surpreendê-la com sua
inteligência. Tal perspicácia foi ressaltada em crítica por Antonio Rangel
Bandeira em 1949, quando apontou que Eunice era uma das artistas mais
inteligentes que ele conhecera, embora nem sempre partilhassem os mesmos
pontos de vista.
Eunice lançou-se aos palcos da cidade maravilhosa aos doze anos,
tocando aos dezessete com orquestra no Teatro Municipal. Naquela ocasião
Guanabarino professaria que a aluna era já uma pianista feita, com condições de
apresentar quantos recitais quisesse. Sendo uma de suas preferidas, chegava a
tolerar que interpretasse obras de Villa-Lobos, muito ousado para seu paladar
conservador. Isso, porém era o mínimo da ousadia para a jovem Eunice, que
estudava russo às escondidas em plena era Getulista!
O casamento em 1934 transferiu-a para São Paulo. Mulher de fibra, não se
resignou aos cuidados do lar e dos filhos, procurando ampliar seus
conhecimentos musicais nas aulas de teoria, harmonia e análise com Furio
Franceschini. A composição veio do contato com Camargo Guarnieri, em 1942.
Por sua influência abraçou a causa da música erudita brasileira, tocando muitas
peças em primeira audição no Brasil e no exterior. Assumia todas estas
atividades sem deixar de lado o estudo do repertório tradicional de piano, como
demonstraram os diversos cursos de História da Música e palestras que ilustrou
com exemplos musicais ao piano, numa época em que as gravações eram
escassas no Brasil. A facilidade com que dominava os mais diferentes estilos fez
com que Eunice fosse agraciada com composições de Claudio Santoro (Paulistana
nº 5), Edino Krieger (Marcha-rancho em forma de fuga), Cesar Guerra-Peixe
(Primeira suíte nordestina) e Gilberto Mendes (Peça para canto e orquestra de
cordas), entre outros. Eunice respondeu a estes gestos de admiração e carinho
estreando todas estas peças com excelência.
Em 1946 volta ao Rio, com dois filhos, por ocasião da viagem de estudos
do marido aos EUA. O mais novo, Daniel, era recém-nascido e a musicista contou
com a ajuda da mãe para dar continuidade à carreira profissional. Na terra natal
conhece o músico Hans Joachim Koellreutter e o grupo por ele criado, o Música
Viva. O resto é história.
Eunice Katunda tornou-se membro do Música Viva em sua segunda
configuração. Quando criou a versão brasileira do grupo alemão coordenado
pelo maestro Hermann Schencher, comprometido com a divulgação em massa da
produção musical contemporânea na década de 1930, Koellreutter convidou
Villa-Lobos para ocupar o cargo de presidente honorário. Após a Segunda
Guerra, porém, a situação de Koellreutter era completamente diferente. Afastado
de suas funções didáticas pelo sangue que lhe corria nas veias, o maestro aposta
na ruptura com o nacionalismo exacerbado – cujo expoente maior era Villa –
divulgando amplamente a música de vanguarda que ganhava força na Europa
Ocidental. Apaixonada e visceral como era em tudo o que fazia, Eunice
mergulhou fundo nas atividades do grupo. Organizava eventos, tocava peças
inéditas ou pouco conhecidas em programas de rádio, escrevia e publicava textos
onde militava pelo atonalismo e assinava manifestos redigidos pelo grupo. Neste
período foram compostas algumas de suas principais obras, como a cantata O
Negrinho do Pastoreio (Prêmio Música Viva 1946), Quatro cantos à morte
(estreada na Suíça sob regência de Hermann Scherchen) e Quinteto Schoenberg
(estreado em Bruxelas).
Em 1948 atravessou o oceano a convite de Koellreutter, para frequentar o
curso de regência de Hermann Scherchen na Bienal de Veneza e conhecer a
música do primeiro mundo. Travou amizade com músicos brilhantes como Luigi
Nono e Bruno Maderna, com quem varou noites estudando e discutindo
contraponto, bem como os possíveis caminhos da música do pós-guerra. Em
conjunto com os dois italianos, escreveu um ciclo de nove Líricas Gregas para
oferecer a Scherchen. Também contaminou-os com os ritmos afro-brasileiros do
candomblé baiano, cujo “tema de Iemanjá” foi usado por Nono como base à sua
peça Polifônica-Monodia-Rítmica. O etnocentrismo europeu já dava sinais de
desgaste, e outros sistemas de organização musical eram pesquisados
“extramuros”, por músicos como John Cage e Olivier Messiaen.
Talvez por esta razão, de volta ao Brasil, Eunice encanta-se com a Bahia.
“A Europa me mostrou toda esta força de povo novo, instintivo, expansivo, quase
brutal em suas expressões de arte ainda tão puras, tão desligadas da arte
cerebral das civilizações mais antigas, já prisioneiras da tradição...” publica a
compositora na revista Fundamentos. Rompe com Koellreutter e o Música Viva,
renega o dodecafonismo e as técnicas musicais de vanguarda e viaja com o filho
mais velho a Salvador, para se aprofundar no conhecimento do folclore
brasileiro. Instalando-se em um terreiro, recolhe cânticos de candomblé e ritmos
utilizados nos rituais místicos, que usará em futuras composições. Como era de
seu feitio, logo torna-se parte daquele universo, sendo batizada filha de Oxum e
estabelecendo laços de profunda amizade com outros artistas que por lá
passaram, como o fotografo Pierre Verger, o artista plástico Rubens Caribé e o
escritor Jorge Amado. Desta fase são os Dois estudos folclóricos, A negrinha e
Iemanjá, Impressões de candomblé, entre outras peças.
Na década de 1960 divorcia-se de Omar, passando a assinar Eunice
Katunda. Mística, descobre a Sociedade Teosófica Brasileira (atual Sociedade
Brasileira de Eubiose) no momento em que rompe com a ideologia e o Partido
Comunista, heranças de seu casamento. Mais uma vez mostra-se passional e
militante, assume funções de redatora da revista da instituição (Dhâranâ), faz
pesquisas no âmbito da filosofia, transcreve mantras para partituras, compõe e
rege um coral amador. Recebe do mestre supremo da STB autorização para
iniciar outros jovens nos ensinamentos teosóficos. Afasta-se e sente-se afastada
pela comunidade musical do eixo Rio-São Paulo, tanto por querelas motivadas
por questões estéticas como políticas.
Em plena ditadura militar, Eunice tenta retomar a carreira de intérprete
nos Estados Unidos. Leva uma carta de recomendação de ninguém menos que a
dama do piano Guiomar Novaes. As primeiras críticas são entusiastas: “Ela toca
tudo!”, atestavam os jornalistas nova-iorquinos embevecidos. Sua Sonatina 1965
também recebe elogios. Mas a pianista não conseguiu obter o dinheiro
necessário para se manter na metrópole, e retornou ao Brasil em menos de um
ano.
Foi nas comemorações de 40 anos do Grupo Música Viva que Eunice
Katunda voltou ao cenário musical brasileiro. Reatou com Koellreutter, recriou
antigas composições, estreou-as em bienais e festivais de música
contemporânea. Passou a frequentar os Festivais de Música Nova e os Cursos
Latino-americanos de Música Contemporânea, nos quais ministrou cursos de
composição e palestras. Reascendeu a chama da paixão pela arte, pela música e
pelo ser humano, agora sem bandeiras radicais ou animosidades. Simplesmente
Eunice.
Faleceu em 1990, aos 75 anos. Deixou uma obra preciosa, que inclui
composições, poemas, textos e gravações. A maioria deste acervo, assim como o
de outras compositoras, permanece desconhecido do grande público e merece
ser divulgado. Oxalá este centenário contribua para mudar este panorama.

BARONCELLI, Nilcéia. Mulheres compositoras, elenco e repertório. São Paulo:
Roswitha Kempf Editores, 1987.
CATUNDA, Eunice. Curriculum Vitae. Acervo da família Catunda.
KATER, Carlos. Eunice Katunda, musicista brasileira. São Paulo: Annablume
Editora, 2001.
LÍVERO, Iracele. Louvação a Eunice: um estudo de análise da obra para piano de
Eunice Katunda. Tese apresentada à UNICAMP, Campinas, 2009.
MONTEIRO DA SILVA, Eliana. Katunda, Barbosa e Resesnde: compositoras
brasileiras acima de qualquer suspeita. Actas do I Encontro Ibero-americano de
Musicologia de Lisboa, 2012.

Eliana Monteiro da Silva é pianista e Profª Doutora em Música pela ECA-USP.
Autora do livro Clara Schumann: compositora x mulher de compositor e do CD
Clara Schumann – lieder e piano solo, ambos comercializados pela Clássicos
Editoriais, tem como objeto de pesquisa a divulgação de composições realizadas
por mulheres. Em 2015, prepara o lançamento do CD BrasEliana, em que
figuram, entre outras peças brasileiras, composições de Eunice Katunda.

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