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Guerra Peixe

compositor multifário
ERNANI AGUIAR

É
difícil, principalmente para um ex-aluno, resumir uma Reynaldo Chaves (violoncelista, industrial, teatrólogo
e poeta) avô do compositor e regente Ernani Chaves (sic), foi o
vida de múltiplas e intensas atividades ligadas
responsável por Guerra-Peixe haver se tornado compositor,
à cultura, como foi a vida do compositor César Guerra- animando-o insistentemente, após G.Peixe haver-se aborrecido com
Peixe (1914-1993): compositor erudito, compositor a composição em virtude
popular, professor, pesquisador, arranjador, violinista, de ciúmes demonstrados pelo diretor e professor (sic)

regente, articulista, produtor radiofônico com da Escola de Música Santa Cecília, dos idos de mais ou menos 1930.

aproximações à pintura e à poesia.


Iniciado por seu pai nas rodas de choro aos oito
anos, aos dez já tocava violino pelas ruas de sua Em 1931, ele foi estudar no Rio de Janeiro, onde
Petrópolis nos dias de carnaval em companhia de dois se fixou definitivamente em 1934, freqüentando
amigos. Daí por diante, afirmando-se a decisão de inicialmente aulas particulares com a grande mestra
seguir a carreira musical, a presença da música popular Paulina d’Ambrosio e ingressou no ano seguinte no
é perene em toda a sua atividade musical, Instituto Nacional de Música, hoje Escola de Música
especialmente a da criação. Guerra-Peixe começou a da Universidade Federal do Rio de Janeiro, seguindo
compor tão logo iniciou seus estudos na Escola de os estudos regulares e se diplomando posteriormente.
Música Santa Cecília de Petrópolis, sendo a primeira Na mesma Escola terminou sua carreira de professor
peça o Tango Nº 1 Otília, dedicado à sua primeira universitário em 1990.
namorada seguindo-se uma série de danças, até mesmo A vivência de Guerra-Peixe na música popular
não brasileiras que estavam na moda. continuou com suas atuações tocando em cafés, casas
A primeira composição de caráter erudito foi uma de chope e bailes, tocando também nos últimos
Abertura, escrita para a pequena orquestra cinemas-mudos. Porém intensos estudos de matérias
da referida escola de música. Ocorreu então um teórico-musicais prosseguiram sob a orientação
incidente: o diretor da escola e regente da orquestra do renomado Mestre Newton Padua.
recusou-se a experimentar a peça, mas o presidente da 1938 foi um ano decisivo para suas idéias musicais,
sociedade mantenedora da entidade, Reynaldo Chaves, após a leitura do Ensaio sobre a música brasileira de
interveio energicamente e a obra foi executada. Sobre Mário de Andrade, que até o fim de sua vida considerou
o fato, que marcou profundamente sua vida, escreveu seu mestre, apesar de nunca ter tido a oportunidade de
Guerra-Peixe na sua relação de obras para canto, que conhecê-lo pessoalmente. Foi realmente a partir dessa
organizou para servir à dissertação de mestrado do leitura que Guerra-Peixe norteou sua busca
barítono Inácio de Nonno: a um caminho pessoal na música brasileira.

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O curso de composição foi concluído em 1943, de Janeiro e convidou Guerra-Peixe para ir estudar
no Conservatório Brasileiro de Música, sempre com com ele em Zurich, sendo seu hóspede e trabalhando
Pádua. Criou, César nesse período um grande número na rádio local. Ao mesmo tempo recebeu também um
de composições, desde experiências sinfônicas até convite de Recife para trabalhar também em rádio.
pequenas peças para instrumento só, porém, Guerra preferiu o Recife e sempre disse que foi
extremamente crítico consigo, colocou-as num “index” a melhor coisa que fez na vida. Foi um dos períodos
de composições proibidas de serem tocadas, com mais férteis de sua vida quando, além de compositor
poucas exceções, mas compôs também música popular. erudito, seguindo novas linhas estéticas, e orquestrador,
A primeira peça que mereceu entrar no Catálogo iniciou suas atividades de professor, articulista
de Obras (por ele chamado de “cata logo”), manuscrito e a grande obra de pesquisador.
precioso onde anotou todas as obras até a última, várias Pesquisou maracatu, Xangô, catimbó, côco, pastoril,
vezes expressando idéias, foi a Sonatina 1944 para zabumba (conjunto instrumental), cabocolinhos, reza-de-
flauta e clarinete. defunto, frevo, pregões, toques de vendedores ambulantes,
“Convertido” ao dodecafonismo, após seu manifestações culturais religiosas ou não, folguedos,
encontro com Hans Joachin Koellreutter, com quem atividades sociais, todas com músicas próprias, em dez
passou a estudar, seguiu essa linha estética durante seis cidades pernambucanas.
anos (1944-1950), na verdade dividido em dois: um Na época foram seus alunos: Clóvis Pereira, Jarbas
cada vez mais solicitado e dedicado arranjador e Maciel, Guedes Peixoto, Lourenço da Fonseca Barbosa
compositor de música popular e o compositor erudito, (Capiba) e Severino Dias de Oliveira (Sivuca).
segundo ele próprio "sem a menor preocupação A permanência em Recife foi de três anos, quando
nacionalizante". novas obras importantes foram criadas e surgiu seu
Integrando o Grupo Música Viva, dos seguidores mais importante
de Koellreutter, com colegas notáveis compositores trabalho de pesquisa:
como Cláudio Santoro, Edino Krieger e Eunice o ensaio Maracatus do
Katunda, foi que suas obras ganharam projeção Recife, que décadas
internacional e a admiração de personalidades como mais tarde serviu para
Juan Carlos Paz e Hermann Scherchen, que regeram salvar tal manifestação
obras suas respectivamente em Buenos Aires e Zurich. do desaparecimento.
Mas as origens do compositor eram muito fortes e Imediatamente após
as “linhas cosmopolitas” começaram a fraquejar quando o período recifense,
Guerra-Peixe buscou um possível encontro entre seguiu-se outro maior e
dodecafonismo e música brasileira. As idéias de Mário tão proveitoso quanto
de Andrade estavam vivas em seu pensamento, o nordestino: oito anos
fazendo-o sentir a necessidade de uma saída para a em S. Paulo, quando,
música brasileira chamada "erudita", com o apoio de Rossini
até então baseada num discutível folclore. Também Tavares de Lima,
colocou-se o problema da comunicação da nova secretário da Comissão
música com o público, tão descurado no Século XX. Paulista de Folclore
Tiveram início suas discussões com Mozart iniciou naquele Estado
de Araújo que culminaram em sua primeira visita ao outra grande pesquisa,
Recife em 1949 onde teve contacto com uma música incluindo jongo, tambú,
viva, nacional, sem manipulação alguma. O resultado cateretê, cururu, dança de
foi a ruptura com o dodecafonismo. Em seguida, Santa Cruz, dança de São Guerra-Peixe.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL
ocorreu uma coincidência: Scherchen passou pelo Rio Gonçalo, folia de reis, – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO

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Moçambique, congada, Caiapós, moda-de-viola e Com a criação da Sinfonia nº 2 Brasília, encerrou-se
samba-lenço em seis cidades paulistas, concluindo pelas a segunda fase da obra composicional do mestre.
semelhanças e contrastes entre o folclore Se a primeira, segundo ele, foi a “dodecafônica”
pernambucano e o paulista. Em S. Paulo (1955) (1944-1950), a segunda foi a “nacionalista” (1950-1960).
compôs as duas Suítes Sinfônicas Paulista nº 1 Entre a segunda e a terceira fase, que chamo de
e Pernambucana nº 2. “síntese nacional” (1967-1993) (ou seria a inconsciência
No fim da década de 50, seu catálogo de nacional preconizada por Mário de Andrade?)
composições já estava bastante enriquecido com dois o compositor ficou seis anos sem criar nenhuma obra.
quartetos, duas suítes, uma sonata e uma sonatina para Voltou para o Rio de Janeiro em 196l e, em 1963,
piano, música de câmara diversificada, o Pequeno voltou ao seu instrumento, o violino. Passou a tocar na
concerto para piano e grande parte do elenco de mais de Orquestra Sinfônica Nacional da Rádio MEC, onde
trinta partituras para cinema. Continuava a compor permaneceu até a aposentadoria e na mesma Rádio
música popular e já era detentor de numerosos criou programas de música brasileira. Continuou ainda
prêmios. mais atuante como arranjador para emissoras
A fundação da nova capital e a instituição de um de televisão e foi professor nos Seminários de Música
Concurso Sinfonia Brasília, levou-o à composição de da Pró Arte e depois no Seminário de Música do
uma obra de grandes proporções, notável pela forma Museu da Imagem e do Som (MIS). Pouco a pouco,
e pela orquestração, capaz de empolgar qualquer essas aulas foram se transformando no seu Curso
plateia. Obra totalmente descritiva, inclui um trecho de Composição que se tornou um dos mais famosos
do discurso de Kubitschek na inauguração da cidade. do País. Passaram por suas aulas Antonio Guerreiro,
Esta obra e outras atividades concorreram para que Ayrton Barbosa, Felícia Wang, Guilherme Bauer,
Guerra-Peixe fosse, às vezes veladamente, às vezes Haroldo Mauro Jr., Heitor Alimonda, Jards Macalé,
explicitamente perseguido por alguns esbirros Jorge Antunes, José Maria Neves, Maria Aparecida
da ditadura militar (1964-1984). Ferreira, Marlene Fernandes, Nélio Rodrigues, Nestor
de Holanda Cavalcanti, Rildo Hora, todos seguindo
caminhos diversos. Eu fiz o curso completo entre
DISCOGRAFIA
1969 e 1972.
CD GUERRA PEIXE – MÚSICA POPULAR
Já em plena maturidade, ampla experiência e total
Orquestra de salão “Tira o dedo do pudim” – OSTDP9798 - domínio da técnica composicional, iniciou a “terceira
Produção independente fase” com mais uma sonata e uma sonatina para piano,
CD SEBASTIÃO TAPAJÓS INTERPRETA RADAMÉS GNATTALI & GUERRA PEIXE seguindo-se toda a obra para violão que inclui
Sebastião Tapajós, violão – Tapajós Produções - 1998 a primeira sonata brasileira para o instrumento, novas
CD GUERRA-PEIXE – MUSICA DE CÂMARA
obras para canto e piano, as quatro composições para
Ricardo Amado, violino; David Chew, violoncelo; Ruth Serrão,
piano; Pauxy Gentil, flauta; José Botelho, clarineta; Noel Devos,
coro a capela, a segunda Sonata para violino, dezenas
fagote; Inácio de Nonno, barítono; Rildo Hora, harmônica de obras diversas e, no elenco de obras sinfônicas,
de boca. RioArte – RD 005 – 1996 – Rio de Janeiro quatro importantes criações: Museu da Inconfidência,
CD A RETIRADA DA LAGUNA Retirada da Laguna, Assimilações e Tributo a Portinari, sua
Orquestra Sinfônica Nacional – César Guerra-Peixe, regente penúltima obra.
Acervo FUNARTE de Música Brasileira
Aos 47 anos de idade, foi eleito para
CD TRIBUTO A GUERRA-PEIXE
a Academia Brasileira de Música, ocupando a cadeira
Incluindo: Tributo a Portinari e Sinfonia Nº 2 “Brasília” de C.
Guerra-Peixe nº 34, cujo Patrono é Araújo Vianna, sucedendo seu
Orquestra Sinfônica de Porto Alegre e Coral da OSPA – Ernani Mestre Newton Pádua. Quem o sucedeu foi seu colega
Aguiar, regente e amigo Edino Krieger, atualmente (2004) ocupando
ACIT Comercial e Fonográfica – 1994 a Presidência do Sodalício.

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Participou, ainda que à distância, do famoso e escolhido por um júri formado por 50 musicistas com
Movimento Armorial, liderado por seu amigo Ariano esmagadora maioria de votos.
Suassuna, compondo para a Orquestra do Movimento O prêmio foi entregue a 15 de outubro de 1993,
seu celebrado Concertino para violino e pequena orquestra durante o concerto de abertura da X Bienal de Música
além do Duo Característico para violino e violão (“peça Brasileira Contemporânea, perante uma plateia que
singelíssima”, segundo ele) e da peça, hoje obrigatória lotou o Theatro Municipal do Rio de Janeiro
em todas as orquestras de cordas do País, Mourão, e que o aclamou numa consagração... e despedida.
na versão do seu ex-aluno Clóvis Pereira. Cercado pelo carinho de amigos e admiradores,
Em dezembro de 1983, recebeu um telefonema mas especialmente de sua sobrinha-neta Jane Guerra-
de Recife, informando que no carnaval do ano Peixe e de seus alunos Antonio Guerreiro e Randolf
seguinte, daquela Cidade, voltaria a sair um Maracatu, Miguel, viveu seus últimos dias, falecendo ao cair
reconstituído graças a seu livro Maracatus do Recife. O da tarde de 26 de novembro na casa de sua ex-esposa
Mestre considerou seu melhor presente, antecipado, Célia Guerra Peixe, deixando um imenso legado
dos 70 anos e disse: à música e à cultura brasileira.
Já se viu? Eu, sem outro meio de comunicação, A figura humana do compositor foi singular.
a não ser um livrinho de 171 páginas, a 2500 quilômetros do Polêmico, brigão, intempestivo, defensor de causas
Recife, indo de raro em raro a essa Cidade, influir no seu
justas. Capaz de passar em segundos da raiva
carnaval? Chorei de emoção.
aterradora à gargalhada sonora, alegre, relaxada.
Setuagenário, com uma vida agitadíssima, passou
Ao contrário de outros que preferiram toda a vida estar
a pesquisar dança de salão e gafieira e frequentou (e ao lado de poderosos, políticos e influentes, Guerra-
dançou) assiduamente a “estudantina” no Rio Peixe sempre preferiu o lado oposto, ainda que essa
de Janeiro. Ainda foi professor na Escola de Música da posição lhe trouxesse só prejuízos.
Universidade Federal de Minas Gerais, onde teve como Professor exigentíssimo, selecionador, incapaz
alunos Alina Sidney, Francisco Gelape (prematuramente de interferir nas preferências estéticas de cada aluno,
falecido), Harry Crowl, Lucas Raposo e Nelson Salomé. respeitador das idéias dos jovens, incentivador.
O cansaço da idade levou a que alguns amigos Quantos não tiveram suas aulas a preços reduzidos
obtivessem sua transferência para a UFRJ. ou... grátis?
Existe ainda um elenco de musicistas seus amigos Amigo leal de seus amigos, não se furtava em
que, assim como ele, considerava Mário de Andrade apoiá-los, auxiliá-los até mesmo pecuniariamente,
seu Mestre. Entre eles Rogério Rossini, Ruth Serrão, o que lhe valeu uma série de ingratidões. Admirador
Sonia Vieira e o compositor David Korenchendler. das pessoas que o cercavam, não hesitou em escrever
O Mestre aproximava-se dos 80 anos, reconhecido, um hino para o colégio onde estudava o filho de uma
verdadeiro ícone vivo da música brasileira, empregada sua, simplesmente por verificar o esforço
“colecionando” merecidos prêmios que a mãe fazia para educá-lo.
e reconhecimentos públicos (foi o único músico Este foi César Guerra-Peixe, que se auto-definiu
a ganhar três vezes o Golfinho de Ouro do MIS), em uma entrevista ao ex-aluno Lucas Raposo: “Queira
culminando com o primeiro Prêmio Nacional ou não, apesar do verniz artístico, eu sou mesmo é do
da Música, concedido pelo Ministério da Cultura povão. Não fora eu filho de um humilde ferrador.”

ERNANI AGUIAR
Ex-aluno de César Guerra-Peixe. Compositor e Regente. Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Membro da Academia Brasileira de Música.

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