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HISTÓRIA DA MÚSICA

BRASILEIRA
AULA 5

Prof. Alan Rafael de Medeiros


CONVERSA INICIAL

Nesta aula, discutiremos alguns tópicos referentes às propostas


(reflexões teóricas e práticas) sobre o campo de produção musical da década de
1950 e parte da década de 1960. Trata-se de um período profícuo no que diz
respeito às ideias em torno do folclore, bem como da expansão da música
popular e seus espaços de circulação.

TEMA 1 – ANOS 1950: FOLCLORIZAÇÃO

Neste tópico, aprofundaremos os conhecimentos sobre as teorias


englobando o folclore na produção musical, pois, como lembramos, trata-se de
um importante elemento amplamente utilizado para criação de música de
concerto. Veremos aqui os desdobramentos dessa realidade na produção
intelectual da década de 1950.

1.1 O fazer musical no cenário popular e a folclorização da música

As novas possibilidades de mercado de trabalho introduzidas com o


advento dos meios de gravação e o surgimento e estabelecimento do rádio como
meio de disseminação musical, tornaram-se uma realidade inquestionável para
a profissionalização musical a partir da década de 1930. Mário de Andrade, um
intelectual do início do século XX e, como sabemos, um dos principais
pensadores sobre o folclore musical, não negou o potencial do material
fonográfico para a pesquisa musicológica, incluindo suas tentativas de
estabelecimento da Discoteca Pública de São Paulo, à época em que chefiava
o Departamento de Cultura.
É preciso ter em mente que os espaços profissionais do musicista foram
ampliados após essa nova gama de mercados, naturalmente, diferenciados em
relação aos locais do fazer musical do início do século. O musicista do início do
século era introduzido à música popular nos conjuntos que tocavam em cafés
concerto, confeitarias, bailes, cabarés, além dos salões de entrada dos cinemas.
Boa parte dos compositores nacionalistas, de Villa-Lobos, passando por
Mignone até Camargo Guarnieri, tiveram experiências sólidas durante o
processo de consolidação no cenário musical. Após o surgimento desses novos
mercados oportunizados, conforme indicamos, pelo advento dos processos de
gravação e a divulgação musical em decorrência do rádio, novas necessidades
são reveladas ao músico popular: o ofício de arranjador.
Mário de Andrade acreditava no potencial das gravações científicas, de
coleta de material folclórico “puro” a ser amplamente utilizado na criação musical
nacionalista. De acordo com Egg (2013, p. 94), os ideais de Mário sobre o
potencial do rádio como veículo cultural e artístico seriam derrubados com o
padrão da radiofonia que emergia naquele contexto, sobretudo em virtude da
regulamentação da publicidade no rádio. Além de Mário de Andrade, lembremos
Luiz Heitor Correa de Azevedo e seu trabalho com o Centro de Estudos de
Folclore, além da parceria já mencionada com a Biblioteca do Congresso.
Mário de Andrade não enxergava o arranjo como uma produção artística
original, para ele o ideário da música popular “autêntica” era aquela registrada
como folclore bruto a ser lapidado pelo compositor formado em conservatório,
munido dos ferramentais tradicionais da música de concerto para dar voz à “alma
do povo”. A ideia de música popular lançada em disco considerada como produto
artístico seria um conceito que apenas mais tarde ganharia corpo, em especial
nos textos de Guerra-Peixe ao longo da década de 1940 (Egg, 2013, p. 92).
A partir de 1944, Guerra-Peixe tornou-se aluno de Koellreuter, o grande
agitador em torno do Grupo Música Viva e a relação da vanguarda musical. Em
1949, após intensa produção dodecafônica vinculada ao Música Viva, ele
retornou para o Recife em 1949 (influenciado pelas prerrogativas do Partido
Comunista Brasileiro em relação ao trato com as tradições populares) para
assumir o trabalho como arranjador da Rádio Jornal do Comércio. Essa mudança
seria decisiva para a produção musical por meio da observação in loco da
tradição nordestina, ao destacar a importância de pesquisas musicais baseadas
na fonte, criticando tanto os folcloristas quanto as gravações disponíveis
(geralmente elaboradas no Rio de Janeiro, divergentes de sua fonte originária).
De acordo com Egg (2013, p. 102), essas atitudes contribuíram para a
reconfiguração do campo do folclorismo relacionado à pesquisa folclórica.
O movimento folclorista da década de 1950 também seria impulsionado
pelas discussões acirradas em torno da “invasão” jazzística no Brasil,
impactando sobremaneira toda uma área da produção musical, em especial do
samba, à época consolidado enquanto manifestação oficial da cultura popular.
De acordo com Saraiva (2008), durante a década de 1950, o jazz começou a se
destacar nas audições e práticas dos grandes centros, proliferado em

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repertórios, na prática dos conjuntos de baile, de alguns programas de rádio,
discos e concertos.
Trata-se de um momento da história da música brasileira em que críticos
e artistas problematizaram a dita “modernização” da música, ou ainda, sua
descaracterização. Os tradicionalistas, entre os quais podemos citar Ary Barroso
(1903-1964), eram contrários à influência jazzística, entendida como nociva ao
caráter nacional incutido na música popular. Vangloriavam o “jazz negro” oriundo
do reduto de Nova Orleans, contrários ao movimento de internacionalização do
gênero (importado inclusive para o Brasil), em uma espécie de negação da
chamada mundialização da cultura.
Em certa medida, esse aspecto das reflexões sobre a cultura popular,
entre as quais podemos destacar o estudo da música, tem como mot principal
uma ideia de resgate de práticas em vias de extinção. O movimento folclorista
acaba por elaborar uma espécie de “museu das tradições populares, ou seja, o
esforço do colecionador identifica-se à ideia de salvação; a missão é agora
congelar o passado, recuperando-o como patrimônio histórico” (Ortiz, 1992, p.
39-40). Essa perspectiva será cristalizada ao longo de toda experiência
oportunizada pelos diversos grupos de pesquisa relacionados à investigação
folclórica, em especial após o estabelecimento da Comissão Nacional de
Folclore (fundada em 1947), fundada pelo musicólogo Renato Almeida (1895-
1981).
Há aqui, na década de 1950, a ressignificação desse conceito de música
de tradição folclórica, já que nesse momento temos o advento dos meios de
gravação e a música urbana popular como propulsores da vida nas cidades. Para
os folcloristas, a ideia de “música brasileira autêntica”, poderia ser ampliada à
música produzida comercialmente, desde que atendesse a alguns critérios
(oportunizando essa mudança na ideia de folclore), que permite a incorporação
da música popular urbana, gravada, veiculada pelo rádio. Trata-se do fenômeno
da folclorização da música popular, permitindo que vários musicistas das
gerações mais antigas (por exemplo, Pixinguinha) aparecessem sob a aura do
verdadeiro folclore (Garcia, 2010).
Seria esse esforço coletivo, desde a atuação de Guerra-Peixe em
Pernambuco para a constituição de um campo novo no que toca ao produto
musical orquestral, até a ampliação e consolidação dos novos movimentos
calcados na canção midiatizada, mais tarde representadas na sigla MPB, que o

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movimento de preservação e resgate das tradições musicais urbanas ganharia
corpo. Esse processo foi amplamente amparado pela intelectualidade musical
do período, entre musicólogos e críticos do meio, entretanto, ainda hoje
encontramos eco no ideário sobre preservação folclórica das culturas populares.

TEMA 2 – ANOS 1950: MERCADO

Os anos de 1950 proporcionaram a ampliação dos espaços de atuação


para musicistas, arranjadores e compositores, sobretudo em virtude do
estabelecimento da rádio como principal meio de entretenimento.
Visualizaremos aqui esse cenário de produção musical específico, que garantiu
repertório consistente e consagrou artistas conhecidos até hoje.

2.1 Samba-canção e o mercado

A década de 1950 é um período representativo na história brasileira,


quando pensamos no crescimento demográfico e na expansão das cidades, bem
como a ampliação das atividades culturais e de entretenimento, após a invasão
do cinema norte-americano. No campo da produção musical, demarca o
aperfeiçoamento dos processos de gravação por meio de novas tecnologias
(discos de 45 rotações). É nesse cenário de mudanças sociais e culturais
significativas que vemos surgir o samba-canção como estilo musical derivado do
samba das décadas anteriores.
De acordo com Neves (2008, p. 44), influenciou uma geração de novos
compositores que acabaram substituindo as marchinhas de carnaval por sambas
de andamento mais lento e sofisticado, sobretudo nos arranjos instrumentais.
Trata-se, de maneira geral, de um período que antecede grandes momentos da
história da música popular, muitas vezes relegado em segundo plano, dada a
vultuosidade de fenômenos e estilos musicais surgidos posteriormente.
De acordo com Napolitano (2010, p. 64), não há razão para se situar a
música da década de 1950 como entrelugar na história da música popular, como
muitas vezes se pontua entre os historiadores da música brasileira, já que estaria
situada entre os consagrados sambas da década de 1930 e a emergência da
bossa nova da década de 1960. De acordo com o autor, é importante destacar
que esse quadro de desvalorização da música do período tem sua gênese nas
propostas dos folcloristas, que buscavam a questão da “tradição e

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autenticidade”, enquadrando tudo que o que seria incluído e excluído como
manifestações genuínas e, nesse caso, caracterizando as práticas musicais dos
anos 1950 como decadentes.
A década de 1950 contou com práticas radiofônicas que buscaram
acessar todas as camadas sociais, de maneira sensacionalista, apelativa e
melodramático (Tinhorão, 1991), sobretudo nos programas de auditório,
geralmente gravados ao vivo nos estúdios das emissoras. Com os programas de
auditório e os concursos de Rainha do Rádio, gravitando em torno das principais
cantoras de então, instaurou-se o culto da personalidade e da vida privada dos
artistas, um novo paradigma da trajetória de artistas vinculados aos meios de
comunicação, direcionados para o mundo da comunicação de massa. Essa
conjuntura atuava na mescla de valores privados com imagens públicas, a base
nacional para o sistema de estrelato precário que se formava e que, no entender
de Napolitano (2010, p. 65) acabava por traduzir, na sua precariedade técnica e
estilística, os limites do meio técnico sobre o qual se formava a indústria da
cultura no Brasil.
Entretanto, é possível apontar para vários elementos da produção musical
da década de 1950 que apontam para a modernidade musical que seria
incorporada ao repertório valorizado da MPB que se seguiria. O choro foi
ressignificado e imbuído dessa “aura de brasilidade autêntica” ambicionada pelo
movimento folclorista, em especial por ser um dos gêneros embrionários da
cultura musical nacional, livre das interferências do mercado, em nítida oposição
ao samba por parte dos então puristas, que conforme verificamos, à época
questionavam a influência jazzística na composição dos sambas. Esse revival
do choro durou basicamente toda a primeira metade dessa década, contando
com nomes representativos como Waldir Azevedo, Antonio Rago, Jacob do
Bandolim e seu conjunto Época de Ouro.
O samba da geração de 1950, além da já referenciada influência jazzística
advertida pelos folcloristas, convivia com demais gêneros estrangeiros, dentre
os quais destacamos o bolero e o tango, criando derivações do próprio estilo.
Elencado como a representação do popular brasileiro, o samba da década de
1950 passou a se impor em relação ao samba crítico, desafiando as bases
estruturais e colocando em cheque as contradições da nação, antecipando as
canções de protesto da década seguinte (Napolitano, 2010, p. 67), dentre as
quais destacamos as obras de Geraldo Pereira (Ministério da Economia, de

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1951), Wilson Batista, Ismael Silva (Antonico, de 1950) e Zé Keti (A voz do morro,
de 1954). Em São Paulo, há destaque para a obra do grupo Demônios da Garoa,
que consagraria o compositor Adoniran Barbosa.
No que toca à estruturação musical, o samba-canção caracterizou-se pelo
tratamento entendido à época como moderno, baseado nos timbres e
instrumentação do cool-jazz, com caixa de bateria, dedilhados ao piano e baixo
marcando sutilmente a linha mais grave. Essa estrutura pedia performances
vocais mais contidas e as estruturas harmônico-melódicas eram mais
complexas, com inserção intensa de dissonâncias. Poderíamos destacar a fase
pré-bossa nova de Tom Jobim (Eu sei que vou te amar), Ary Barroso (Risque),
a cantora Dolores Duran (A noite do meu amor), além do LP Canções praieiras,
de Dorival Caymmi, de 1954 (Napolitano, 2010, p. 67).
Outro ponto importante do período foi a adesão aos gêneros que remetiam
a elementos musicais oriundos da tradição sertaneja ou nordestina. Podemos
evidenciar a emancipação do baião nos centros radiofônicos e o aparecimento
da música caipira, traduzidos, inclusive, pelo forte movimento migratório desse
contexto, do qual é possível destacar as obras de Luiz Gonzaga (Xote das
meninas) e Jackson do Pandeiro (Sebastiana).
Seja como for, o samba-canção está circunscrito em um período de
reestabelecimento do cancioneiro popular, envolto por uma revisão sobre o que
era considerada a essência da música popular e da autenticidade da música
brasileira. Justamente por essa somatória de elementos estético-críticos, a
compreensão sobre sua função na sociedade, que nesse período ampliava sua
realidade por meio das novas sociabilidades estabelecidas nos auditórios das
grandes emissoras de rádio, se mostra pertinente para a revisão de sua função
enquanto produto elaborado e consumido por esses indivíduos.

TEMA 3 – BOSSA NOVA

O fim da década de 1950 presenciou a criação desse gênero musical que,


seguramente, ainda hoje representa a cultura musical brasileira e a projeta
internacionalmente. Para além do gênero em si, trata-se de um movimento que
colocou o Brasil em evidência e, do mesmo modo, tentou traduzir, em partes, o
projeto de modernização da cultura nacional e a redefinição do panorama
musical brasileiro da virada da década de 1950 para 1960.

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3.1 Lugar social da canção brasileira

A bossa nova inaugurou um ciclo novo de institucionalização da música


brasileira, recodificando inclusive o próprio conceito de música popular. Seria
possível dizer que o processo de redefinição da música popular brasileira a
conduziu à sua institucionalização, tanto no tocante à configuração de uma
cultura de protesto e resistência quanto à consolidação de um produto altamente
valorizado do ponto de vista econômico e sociocultural, sobretudo contribuindo
para a formulação da identidade social da nova classe média emergente em
meio ao processo de desenvolvimento capitalista (Napolitano, 2010, p. 13).
Interessante notar que, durante a década de 1960, a MPB acabou por
desenvolver meios de disseminação próprios, bem como critérios de julgamento
e de valor, elementos estes que acabaram por contribuir para situar esse gênero
(que por sua vez passou a englobar uma gama de subestilos musicais) como
uma instituição cultural. Esse modelo diverge das práticas anteriores, cujos
ícones já estavam postos, entretanto, a bossa nova, apesar do caráter inovador,
mantém um diálogo com materiais, parâmetros e estilos então existentes, e
hegemonizados pelo rádio.
De acordo com Napolitano (2010, p. 14), o surgimento da Bossa Nova a
partir de 1959 foi potencializado pelo que chamou de mutações no plano da
música popular. O autor menciona a crescente importância da televisão e a
consolidação do LP como principal suporte da canção, bem como o
fortalecimento dos estrados sociais das classes médias, mais abastadas, mais
informadas, que passaram a ver a música popular como campo de expressão e
comunicação. A polarização historiográfica no entorno do movimento da Bossa
Nova reside na confirmação da expropriação cultural, racial e classista por parte
da pequena burguesia internacionalizada em relação ao povo pobre e negro
(Tinhorão, 2014, p. 157), de um lado, e no inegável salto qualitativo em relação
ao primeiro mundo da música (Castro, 1990), de outro.
É importante termos cuidado ao vislumbrar a ideia corrente de ruptura
radical relegada à Bossa Nova em relação às práticas anteriores, quando
sabemos que, apesar de certa revelia em relação ao samba-canção e sua
aproximação formal com os boleros, a expressão de música autêntica
visualizada no samba carioca não era completamente negada enquanto gênero
matriz da música urbana brasileira. Do ponto de vista sociocultural, entretanto, a

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Bossa Nova veio amplificar um conjunto de tensões por meio da inserção de
novos segmentos sociais no panorama musical (Napolitano, 2010, p. 15), e da
reflexão sobre a inserção do país na modernidade.
Diferentemente da ideia de “marco zero” da Bossa Nova, pensada após o
álbum Chega de Saudade, de João Gilberto, é preciso levar em conta o seu
processo de assimilação, e não necessariamente de negação ou erradicação
completa, do cenário musical do samba tradicional e do samba-canção
bolerizado. Esse ambiente potencializado na Bossa Nova, de não limitação aos
moldes de estilos musicais restritivos, mas de certa liberdade formal que vai
povoar a produção dos novos compositores e que vai redefinir o cenário da
produção musical dessa década de 1960.
A Bossa Nova seria, portanto, o filtro pelo qual antigos paradigmas de
composição acabariam sendo assimilados pelo mercado musical dos anos 1960
(Napolitano, 2010, p. 16). O arcabouço da Bossa Nova permitiu, por exemplo,
que Elis Regina assimilasse o estilo de sua inspiração maior, Ângela Maria, e do
mesmo modo, que Chico Buarque incorporasse elementos do samba de Noel
Rosa em sua estilística composicional. A própria negação do bolero pela corrente
vigente da Bossa Nova precisaria ser revisitada, uma vez que suas nuances
interpretativas, como a sutileza vocal, arranjos contidos, condensação dos
efeitos instrumentais, estão amplamente presentes na interpretação do novo
estilo. Essa realidade aponta para as tensões existentes na música desse
período, que de modo algum exclui o impacto dos novos procedimentos criativos
da geração de 1960.
Do ponto de vista mercadológico, a Bossa Nova trouxe para o primeiro
plano a figura do compositor, já que, na década de 1950, havia privilegiado
sobremaneira o cantor intérprete, amplificado ainda mais durante os grandes
festivais da canção, local no qual quase sempre esses dois indivíduos do fazer
musical se fundiam. Quanto aos espaços de disseminação do estilo, é possível
destacar os círculos privados restritos, locais nos quais a introspecção imperava,
e a boemia, lugares públicos em que a prática musical era revelada.
Por fim, poderíamos dizer que, de maneira geral, a Bossa Nova foi o estilo
que melhor caracterizou a ampliação dos extratos sociais emancipados no Brasil
pós-década de 1960. Do mesmo modo, evidenciou as dicotomias sociais
existentes entre o Brasil tradicionalizado daquele a ser modernizado diante do

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bombardeio da cultura internacional. Sua estrutura seria imprescindível para o
surgimento da canção engajada, tema do próximo tópico.

TEMA 4 – CANÇÃO ENGAJADA (1962-1968)

Uma preocupação crescente no cenário da música da década de 1960


pós-Bossa Nova relaciona-se com a consolidação do público jovem, para além
da conquista de novos ouvintes, ainda vinculados aos programas de
entretenimento radiofônico, cujo apreço pela música da década anterior ainda
persistia (sobretudo pelo samba-canção e compositores da velha guarda). Tal
como os movimentos folcloristas vinculados à música de concerto e à pesquisa
como fonte de produção da música, a Bossa Nova trilhou caminho semelhante,
opondo-se entre uma bossa jazzística de outra de matriz “brasileira” herdeira do
samba urbano. Essas discussões foram oportunas e aproveitadas pelo Conselho
Popular de Cultura para aglutinar jovens universitários, então um público-alvo
estratégico importante para a Bossa Nova.

4.1 Engajamento na Música Popular Brasileira (MPB)

Vinicius de Moraes indicaria, em certa ocasião que na Bossa Nova havia


duas linhas principais: a linha brasileira e a linha jazzística. O pessoal da linha
brasileira (ele próprio, Tom Jobim, Baden Powell, Carlos Lira, Menescal) estaria
cada vez mais identificado com os temas tradicionais, pesquisando as fontes
brasileiras. Esse seria o mot de uma geração de compositores alinhados às
preocupações crescentes do projeto musical que se desenhava na década de
1960 e que culminaria nas canções de protesto.
Os artistas dessa bossa nova tida como nacionalista procuravam um tipo
de comportamento musical (conjunto de procedimentos criativos, interpretativos
e receptivos) que deveria dar conta dos desafios colocados pelo momento
histórico e pela singular situação da música na sociedade brasileira. Entre esses
desafios, figurava a ideia de contribuição para uma conscientização ideológica e
a elevação do gosto médio, meta tradicional do compositor da bossa nova
(Napolitano, 2010, p. 26).
O Conselho Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes
foi elemento aglutinador das discussões em torno da bossa nova, àquele tempo
entendido como estilo nacional já consolidado, com compositores envolvidos

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inclusive no meio universitário, lembrando que as audiências jovens eram
também uma preocupação estética dos compositores da bossa nova. Do ponto
de vista prático, entretanto, as formulações do CPC eram em certa medida
monolíticas e pouco se adequavam ao espírito da própria Bossa Nova. Temos,
nesse momento da história da música popular, alguma investida mais incisiva de
cunho político-ideológico buscando fazer frente ao estado autoritário que
passava a ser desenhado no cenário social, e mesmo com artistas de renome
buscando algum tipo de alinhamento estético com as propostas engajadas do
CPC, a música produzida dentro dos anseios da esquerda universitária, embrião
das canções de protesto, utilizou amplamente a bossa nova como referencial
estético, ainda que tenha sido criticada pelo seu material alienante.
De maneira geral, poderíamos ressaltar as principais imagens poéticas
que se tornariam recorrentes na canção engajada: a romantização da
solidariedade popular; a crença no poder da canção e do ato de cantar para
mudar o mundo; a denúncia e o lamento de um presente opressivo; a crença na
esperança do futuro libertado. A síntese desse processo gestado nos primeiros
manifestos do CPC parece ter orientado melhor o caminho, indicando ao jovem
artista engajado, nacionalista e de esquerda, a aptidão para a criação de uma
arte nacionalista e cosmopolita, politizada e intimista, comunicativa e expressiva.
(Napolitano, 2010, p. 34).
Com o golpe militar de abril de 1964, a questão da consciência política
passou a gerenciar as tarefas culturais, naturalmente recaindo sobre artistas e
intelectuais essa aura de mobilização. As mobilizações de artistas acabaram
migrando para São Paulo, centro cultural em que foi possível mobilizar
espetáculos envolvendo a bossa nova nacionalista, englobando a preocupação
com as questões culturais do aspecto nacional desse estilo musical a temáticas
de protesto. Após o sucesso dos shows realizados nesse centro urbano, boa
parte organizada pelos cursos universitários da Universidade de São Paulo –
USP (shows estes que oportunizaram, inclusive, primeiras apresentações
públicas de figuras como Chico Buarque), as emissoras de TV verificaram o
potencial dessa empreitada que atraía uma grande parcela da juventude,
transportando posteriormente os eventos para os seus espaços.
No teatro Paramount, de São Paulo, vários outros eventos acabaram
sendo realizados, legitimando a afirmação dessa cultura, então crescente, de
oposição – jovens, nacionalistas e de esquerda –, ao passo que eram

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sofisticados e modernos. Esses eventos aglutinaram nomes como Chico
Buarque, Elis Regina, Toquinho, Gilberto Gil, Tom Jobim e Nara Leão, para citar
apenas alguns nomes.
Por fim, com a migração desse modelo para os auditórios de televisão, o
sucesso de audiência dos programas a que a moderna MPB foi vinculada parece
ter relativizado as críticas dos artistas e intelectuais engajados. Saber que, por
meio desse processo, haveria um público consumidor mais efetivo e não mais
restrito ao circuito universitário, fez com que a MPB da década de 1960 e a
música engajada transitassem pela inevitabilidade dos interesses comerciais
como um mal necessário para sua efetivação. Trata-se de uma das muitas
dicotomias encontradas na música desse contexto, impasses de conciliação
entre as ideias de “comunicação e expressão, qualidade e popularidade,
mercado e engajamento político” (Napolitano, 2010, p. 69).

TEMA 5 – FESTIVAIS DE TELEVISÃO E TROPICALISMO

É impossível pensar esse momento sem levarmos em conta a


popularidade da televisão brasileira como o grande veículo de comunicação e
palco de toda manifestação musical que pretendesse ser popularizada.
Analisaremos, nesse momento, os festivais da canção ocorridos entre 1967 e
1969, além de outra corrente musical de relevo, conhecida como Tropicalismo,
a contracultura do movimento duradouro da bossa nova.

5.1 Fim da década de 1960 e dicotomias estéticas

À época dos festivais da canção, a TV Record era a emissora de maior


audiência, especialmente em função de seus programas musicais e
humorísticos. Dessa forma, acabou sendo convertida no espaço ideal desse tipo
de projeto, que envolvia uma espécie de disputa entre compositores do gênero
mais aceito entre as diferentes camadas populares, englobadas pela sigla da
música popular brasileira moderna.
O formato “festival da canção” acabou sendo incrementado em fins de
1966, após o representativo sucesso adquirido no II Festival da MPB da Record,
em especial pelo êxito obtido pela música A banda, de Chico Buarque, bem como
de Disparada, de Geraldo Vandré e Théo de Barros. Os festivais atraíram a
atenção de milhões de espectadores aos eventos produzidos, e colecionou

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grandes nomes da música popular daquele contexto. De acordo com Zappa
(2011), o Festival de 1967, o II Festival da MPB reuniu uma geração
praticamente imbatível da MPB: Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil,
Roberto Carlos, Elis Regina, Nara Leão, Geraldo Vandré, Jair Rodrigues, para
citar os nomes mais representativos.
Em 1968, temos a disputa cada vez mais insistente dos violões comedidos
da MPB com as guitarras elétricas distorcidas da crescente tropicália, um período
em que os estilos começam a coexistir nos bastidores das emissoras de
televisão. Nesse ano, a canção São Paulo meu amor, de Tom Zé, foi agraciada
com o primeiro lugar do festival. No quinto e último festival da Record, de 1969,
Paulinho da Viola saiu vencedor com sua canção Sinal Fechado.
A partir de 1967, a TV Globo passou a produzir o Festival Internacional da
Canção – FIC, rivalizando com os tradicionais Festivais da MPB. O primeiro
vencedor foi Dorival Caymmi, com a canção Saveiros, e no ano seguinte, 1968,
consta a célebre vitória de Sábia, de Tom Jobim e Chico Buarque,
insistentemente vaiada pela audiência em sua preferência pela música Pra não
dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré. Nesse mesmo ano houve a
hostilização do público a Caetano Veloso e sua É proibido proibir, que, àquele
mesmo ano, a exemplo de Gilberto Gil, precisou buscar exílio na Inglaterra em
função das perseguições políticas. O ano de 1969 foi marcado pela vitória de
Cantiga por Luciana, de autoria de Edmundo Souto e Paulinho Tapajós.
A natureza eclética e a coexistência de produtos musicais distintos podem
ser entendidas como a característica prioritária dos festivais. Em pacífica
convivência, visualizamos a Jovem Guarda e a Bossa nova e suas temáticas
despretensiosas envolvendo automóveis, barcos e pôr-do-sol, ao lado da música
engajada da MPB e da Tropicália, tecendo severas críticas em pleno epicentro
da Ditadura Militar brasileira. Juntamente com a música engajada da MPB da
década de 1960, o Tropicalismo foi um movimento fortemente engajado nesse
contexto.
Emergido por meio do signo da cultura pop evidenciando tentativas de
associação com o moderno (a exemplo do uso de guitarras elétricas), o
tropicalismo propunha uma retomada assumida e irônica do elemento “cafona
de nossa cultura”, assumindo o caráter contestador dessa iniciativa (Franz, 2005,
p. 129). De acordo com Holanda e Gonçalves (1982), existe uma preocupação
estética nesse contexto de fins dos anos 1960 quanto ao redimensionamento da

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relação com o público, uma clara crítica à militância conscientizadora e à
valorização das realidades menos perceptíveis ligadas à experiência cotidiana,
bem como a respectiva recusa do ideário nacional populista visando a uma
brasilidade renovada.
A relação conflituosa entre a esquerda e o tropicalismo era uma realidade,
e apesar de ser um estilo musical engajado em seus próprios termos, este não
buscava uma associação direta com os preceitos da política revolucionária do
período. Para a esquerda, a alienação da jovem guarda em suas canções
sentimentais sobre temáticas englobando passeios automobilísticos, utilizando
inclusive formas musicais execradas por ela (o rock norte-americano), era
semelhantemente visualizada no Tropicalismo, sob outra ótica. Neste último,
apesar do enfoque sobre a realidade nas letras, o rock e as guitarras distorcidas
descaracterizam a ideia de canção engajada e, por consequência, a cultura
brasileira (Coelho, 1989, p. 163). Seria por essa conjuntura de elementos que,
àquela ocasião, Caetano Veloso foi vaiado de maneira veemente.
Diferentemente da visão corrente sobre a realidade brasileira do período,
a Tropicália propôs uma ideia de sociedade mais complexa que a sugestão da
esquerda, focada estritamente no atraso social. Para os tropicalistas, enquanto
o país experiencia a apoteose do moderno (arquitetura de Brasília), divide
igualmente espaço com o arcaico e com a miséria. Naturalmente, pela sua
estética musical voltada para as possibilidades musicais amplificadas então em
voga, o tropicalismo flerta com a mistura entre nacional e internacional,
acreditando neste último como um elemento constituinte da sociedade, marcante
da própria vida cotidiana. Aqui, novamente, mais uma clara oposição em relação
à esquerda engajada nos meios culturais.
Ao construírem uma versão alternativa de sociedade brasileira, os
tropicalistas criavam do mesmo modo uma versão de revolução quando
comparados à esquerda engajada. Divergindo das canções de protesto e da
acessibilidade com o propósito de criar um campo de comunicação com as
massas, o tropicalismo encara novas formas poéticas como veículo de
propagação da arte revolucionária, fazendo uso, por exemplo, da poesia
concreta de Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos (Coelho,
1989, p. 171).
Dentre os membros do Tropicalismo, podemos destacar as figuras de
Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Os Mutantes, o letrista Torquato Neto, Gal

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Costa e Jorge Ben. Do movimento, destaca-se essa aura rebelde que buscou
emancipar a manifestação cultural enraizada exclusivamente na produção
musical nacionalizada, buscando diálogo com as principais correntes estéticas
em voga em outros polos. A estética de enfrentamento ia de encontro ao próprio
movimento revolucionário do país, criticando boa parte das propostas da
esquerda do contexto, que se mobilizavam em torno das canções de protesto.

NA PRÁTICA

A apreciação crítica é de extrema importância para a formação do músico


e do educador musical. Vamos apreciar exemplos musicais característicos do
Tropicalismo e outros mais gerais da música de protesto da Era dos Festivais,
procurando observar as diferenças estética presentes.

1. A primeira obra, representante da Era dos Festivais, caracteriza-se pela


utilização específica de alguns instrumentos e uma nuance geral
organizadora do esquema musical. Que características são essas?
2. A segunda obra, agora vinculada ao Tropicalismo, se associa ao
internacionalismo musical, buscando na instrumentação, inclusive, uma
forma de distinção e crítica ao projeto musical estabelecido. Sonoramente,
ela possui quais características?

FINALIZANDO

Nesta aula, pudemos acompanhar uma série de manifestações


caracterizantes do cenário musical da década de 1960, aguçando o olhar para
os projetos culturais e as respectivas expectativas sociais do contexto. Em um
primeiro momento, direcionamos o olhar para a reconfiguração intelectual em
relação ao samba urbano como novo patrimônio autêntico do imaginário
folclórico na década de 1950. De maneira semelhante, estudamos o mercado do
samba-canção, inicialmente um gênero secundarizado pela historiografia da
música brasileira, mas que possui suas particularidades as quais, inclusive,
contribuíram para a emancipação e o estabelecimento dos estilos subsequentes.
Analisamos a Bossa Nova como fenômeno em meio a esse processo de
profissionalização da música nos espaços radiofônicos e, posteriormente,
televisivos, indicando as principais personagens e suas propostas. Ao final desta
aula, direcionamos o olhar para a produção musical da canção engajada, sua

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relação com o cenário social e político do período e, por fim, essa mesma
estrutura ampliada para o produto musical dos festivais da televisão e o
Tropicalismo, já que, cada um a seu modelo, intensificaram as críticas ao
contexto político e cultural vivenciado pela sociedade brasileira de fins da década
de 1960, por meio de pressupostos estéticos – nacionais e internacionais –
caracterizantes da produção musical.

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REFERÊNCIAS

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