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A sugestão de Marc Bloch é claramente dirigida à linguagem escrita, mas é possível dar um

passo adiante e ampliar para os registros dos sons. Isto é, para os historiadores que têm
interesse pela música não basta somente a linguagem escrita para compreender e traduzir o
passado; ele tem que levar em conta os sons desse passado e sua escuta no presente. Claro
que, por diversos motivos, esta não é uma tarefa simples, já que na maioria das vezes esses
sons são impossíveis de serem recuperados ou escutados pelo historiador. 10

Nestas novas condições a música pôde então ser compreendida como fenômeno artístico e
cultural pelos novos conhecimentos em forma de disciplina que surgiam no século xix. Os
conteúdos epistemológicos e metodológicos dessas disciplinas foram, então,
predominantemente marcados pela concepção do conhecimento positivo e pelo exagerado
cientificismo. Bem de acordo com essa mentalidade oitocentista, a musicologia surgiu com a
pretensão de ser a “ciência da música”, com objetivo de entender e explicar cientificamente o
discurso interno da linguagem musical. Mas para isso deveria tratar também dos estilos,
gêneros, artistas e sua coletividade, já esboçando os limites de uma história da música. 12

Sérgio Buarque de Holanda – conhecido por seu gosto juvenil pela boemia e pela dança e
convivência com músicos e poetas20 – em Raízes do Brasil fez apenas pequena referência à
música na festa de Bom Jesus de Pirapora, em São Paulo, quando Jesus Cristo “desce do altar
para sambar com o povo”21, e também cita os “lundus e modinhas do mulato Caldas
Barbosa”.22 Em contrapartida, a obra em três andamentos de Gilberto Freyre sobre a
formação e decadência da sociedade patriarcal no Brasil, desponta uma abundância de sons,
ritmos, músicas e canções. No primeiro volume, Casa Grande e Senzala, os ritmos africanos se
misturam às canções infantis e de ninar, às músicas das festas profanas e religiosas e aos
primeiros lundus e modinhas. No volume Sobrados e Mocambos, a cultura musical do século
xix se apresenta de maneira viva e permanente no cotidiano privado e público. 16

23 São abundantes as referências aos lundus, cantos de trabalho, maracatu, assim como às
músicas das ruas tocadas ao violão, nos batuques e carnaval ruidoso, todas elas reprimidas
pela nova ordem reeuroperizante em ascensão. Ele também problematiza a oposição entre
piano e violão como revelador desse confronto cultural mais amplo. E, ao mesmo tempo,
chega ao detalhamento do uso da unha comprida, de tradição nobiliárquica oriental, que
servia ao manejo da viola e do violão. No terceiro volume, Ordem e Progresso, escrito bem
posteriormente, a música continua presente com comentários e análises sobre modinhas,
polcas e dobrados, entre outros gêneros, e até surge documentada em forma de partituras.
Porém, Gilberto Freyre é exceção no quadro historiográfico brasileiro. 17

Em primeiro lugar, a ausência completa da música, dando razão à reclamação de François


Lesure feita ainda na década de 1960, da “surdez” entre os historiadores e áreas de estudo
próximas.26 Diante deste quadro poderíamos tomar emprestada a crítica de Steven Feld aos
antropólogos e afirmar com ele que se “os musicólogos ignoram o povo, os [historiadores]
ignoram o som”.18

Sobre Castagna: Assim, o texto revela, por exemplo, que a assimilação dos requintes da prática
musical portuguesa na Bahia do século xvii é distinta daquela de Minas Gerais da segunda
metade do xviii. É tardia e lenta em São Paulo, e mais rápida e reluzente no Rio de Janeiro após
a chegada da família real no início do xix, quando a vida citadina se ampliou e se diversificou,
possibilitando também a formação de modinhas e lundus de sabor mais popular e urbano. 23

No entanto, a vida musical do período não se restringia à música apolínea da corte. Ao


contrário, Maurício Monteiro mostra que o universo dionisíaco se ampliou em oposição, mas
também dialogando com o de Apolo, revelando-se na circularidade e diversidade das misturas
musicais ocorridas nas ruas, nas festas religiosas ou profanas, nos encontros informais dos
músicosbarbeiros e assim por diante. Neste ambiente cultural mais informal, híbrido e
misturado, brancos pobres, negros e mestiços de toda ordem (re)articulam suas culturas e,
como afirma o autor, criam um “espetáculo à parte daquilo que acontecia na corte, ou dentro
dos templos, nos teatros ou nas casas mais abastadas. Tinha tanto de sincrético” 24

Aspectos da música no Brasil na primeira metade do século xix, escrito pelo professor Maurício
Monteiro. Para ele, esse é um momento crucial de nossa história cultural e musical, pois a
chegada da Corte portuguesa com seus intérpretes, compositores, copistas, ouvintes, práticas
e hábitos musicais, foi determinante para a organização de um novo circuito da música e
implicou uma “construção do gosto” musical entre os brasileiros.

Cacá Machado:

Entre estes dois universos, porém, haveria espaços de mediação cultural, lugar ocupado pela
polca. Para o autor, esse gênero europeu de música de dança de compasso binário e
andamento vivo, originado na Boêmia, foi a primeira manifestação da moderna música
popular urbana que circulou e foi consumido por amplas e indeterminadas camadas da
sociedade carioca. Foi este incrível processo de adaptação das danças europeias ao ambiente
cultural brasileiro, marcado pelo deslocamento rítmico da síncope, que resultou na criação dos
novos gêneros musicais urbanos, ainda completamente indefinidos na passagem dos séculos.
O texto revela como alguns dos gêneros da música popular, entre eles o maxixe (e, como
desdobramento no século xx, o samba urbano), vão se desentranhando gradativamente dos
modelos europeus, misturando-se com os ritmos afro-americanos, num processo muito
peculiar em que a decantação da síncope é central. 25
Ao comentar as características de sua composição mais conhecida ele disse que “Carinhoso era
uma polca lenta. Naquele tempo tudo era polca (...). Chamei de polca lenta. Depois passei a
chamar de choro. Mais tarde, alguns acharam que era samba”. Aliás, o próprio Pixinguinha é
outro compositor que pode ser compreendido nesse mesmo enquadramento da
intermediação cultural, e ele é o foco da análise de Virginia Bessa no capítulo iv, Imagens da
escuta: traduções sonoras de Pixinguinha. 26

José Geraldo Vinci de Morais: Desprezada pelas elites e intelectuais, o discurso sobre a música
urbana foi construído por autores que participavam quase simultaneamente da vida artística,
da produção e difusão da música de entretenimento, da indústria radiofônica e fonográfica, da
nascente crítica e da vida boêmia, essa última uma espécie de espaço de convergência.
Autores e obras com essa característica formaram até os anos de 1970 o principal acervo da
memória e da história da música popular urbana, confundindo-se na maioria das vezes com
ele. Essa peculiaridade é decorrente também da impossibilidade e dificuldade desses autores
em delimitar as fronteiras entre as duas formas de acesso ao passado, já que a própria
experiência afetiva vivida e sua memória estavam em jogo.

Na realidade, São Paulo também foi conquistada pela moda internacional impulsionada pelo
cinema norte-americano que divulgava suas orquestras, repertórios e modelos coreográficos.
As Big-bands com seus bands-leaders – Benny Goodman, Tommy Dorsey, Glenn Miller – e seus
gêneros dançantes como o swing – aliás comparado a uma decolagem de um avião pelo
conservador e polêmico crítico de música Henry Pleasants – ocuparam as telas e discos. 32

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