Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
– Escola de Música –
1
Belo Horizonte
2020
Entre as sombras da memória e as salas de concerto: intertextualidade e diálogos
musicais no violão brasileiro de Waltel Branco, Othon Salleiro e José Augusto de
Freitas
Between the shadows of memory and the concert halls: intertextuality and musical
dialogues on the Brazilian guitar by Waltel Branco, Othon Salleiro and José
Augusto de Freitas
Abstract
This article aims to study the work of guitarists and composers Waltel Branco, Othon
Salleiro and José Augusto Freitas. Artists little visited by literature specialized in
musicology and the history of the guitar in Brazil, have a fruitful work for the
instrument and dialogue from the aesthetic point of view with the musical languages
that translate the originality of the Brazilian guitar. In order to analyze the dialogues and
languages, the article has as methodology the intertextual and topical perspective of the
works of each of the guitarists. Analysis that externalizes the contact of these composers
with the work of renowned guitarists, such as João Pernambuco, Garoto, Quincas
Laranjeiras and Villa-Lobos. In this way, the text intends to contribute to the
valorization of composers who remain forgotten until today, and are part of the same
musical network of the great composers in the history of the Brazilian guitar.
1
* Aluno do 8° período do curso de Bacharelado em Música pela Universidade do Estado de Minas
Gerais – ESMU-UEMG.
** Pós-Doutor em Música pela Universidade Federal de Minas Gerais, professor na Universidade do
Estado de Minas Gerais
2
Palavras-chave: Brazilian guitar; memory; Intertextuality; topics.
I- INTRODUÇÃO
3
simbólicos. Neste sentido, a hipótese deste texto consiste em argumentar que o
repertório produzido pelos compositores do violão brasileiro Othon Salleiro, Waltel
Branco e José Augusto de Freitas possui regularidades musicais identificáveis como
elementos estruturadores de uma linguagem nacional. Este trabalho pretende analisar a
recorrência de estruturas musicais presentes na obra desses violonistas. Demonstrar a
construção e uma rede de sociabilidades musicais que compartilham linguagens, e
associar a produção desses violonistas aos discursos musicais fundados numa
musicalidade associada ao “violão brasileiro”.
Para compreender esta construção pretende-se analisar a presença de tópicas
musicais que atribuem sentido a produção musical dos violonistas compositores objeto
de investigação. As tópicas são discursos musicais fundados numa musicalidade
específica (no caso deste trabalho, aquela referente ao violão brasileiro). Acácio Piedade
(2017) afirma que estas são observadas como estruturas convencionais e consensuais,
“lugares-comuns dos discursos musicais de modo a serem reconhecidos por uma
audiência e produzir novos significados” (PIEDADE, 2017, p. 275). O aparato retórico
estaria a serviço de um “roteiro de significados musicais” que se constituem numa
narrativa construída a partir desta teia de significados. O estudo das tópicas tornam-se
importantes instrumentos analíticos para o estudo da construção do nacionalismo e
estabelece um fecundo diálogo com a produção acadêmica que investe nos estudos
histórico-culturais (PIEDADE apud ARCANJO, 2018, p. 233).
Este trabalho tem como objetivo trazer à tona três compositores e instrumentistas
pouco visitados pela literatura sobre o violão brasileiro: Othon Salleiro, Waltel Branco e
José Augusto de Freitas. Violonistas, compositores e arranjadores, foram profissionais
com intensa atividade musical na primeira metade do século XX que por motivos
desconhecidos, caíram no esquecimento do meio violonístico. Frequentemente
encontramos nomes como Villa-Lobos, Dilermando Reis, Garoto e João Pernambuco,
compositores que representam o Brasil merecidamente nos programas de concertos de
violão, mas é essenciall a presença de nomes menos falados com obras de grande
expressão como os compositores supracitados no início do parágrafo.
4
II- DESENVOLVIMENTO
O violão já era aceito como solista nos grandes palácios e nos teatros europeus.
Fernando Sor e Giuliani encantavam o público com suas composições virtuosas no
século XIX. As salas de concerto não aceitavam o violão no Brasil, porque associavam
o mesmo instrumento acompanhador e de menor valor. A popularização do
instrumento ajudou no processo de aceitação, como os recitais de Américo Jacomino
mostrando suas composições, ou o renome de professores como Levino Albano da
Conceição e Quincas Laranjeiras. Outro fator contribuinte foi vinda de importantes
violonistas como Augustín Barrios, Josefina Robledo, Regino Sainz de la Maza e
Andrés Segovia. Mostraram outro patamar técnico e interpretativo, apresentaram obras
provavelmente não executadas ainda no Brasil e simultaneamente motivaram a
produção violonística no país (TABORDA, 2011).
A partir desse momento, violonistas como Mozart Bicalho, José Augusto de
Freitas, Benedito Chaves, Garoto, Dilermando Reis, Armando Neves e Othon Salleiro já
se apresentavam como solistas no Rio de Janeiro e outras capitais. Gradativamente o
violão ganha espaço nos saraus da elite, nas salas de concerto e principalmente no rádio,
meio de trabalho contribuinte na estabilidade de músicos que trabalhavam como
solistas, apresentadores, compositores e arranjadores.
Desde Canhoto, os programas de violão no rádio foram importantíssimos na
divulgação do instrumento solista, dos intérpretes e do repertório. Os grandes
representantes do rádio foram João Pernambuco, Canhoto, Dilermando Reis, Garoto,
Baden Powell, José Augusto de Freitas, entre outros. O sucesso era tanto que os
violonistas eram celebridades no Brasil, como o caso de Dilermando Reis, que chegou a
ser nomeado por Juscelino Kubitschek como fiscal da receita federal para garantir o seu
futuro. Aníbal Augusto Sardinha, o Canhoto, foi mestre da filha de Carlos Campos que
5
era presidente do estado, e também da Sra. e da filha de Júlio Prestes. E Baden Powell,
fez sucesso com suas canções e como instrumentista se apresentando em casas noturnas
e programas de rádio, conseguiu prestígio internacional, se tornou um dos músicos mais
conhecidos do Brasil, e até os dias atuais recebe diversas homenagens aos seus feitos
como músico.
O gênero "Choro" sempre esteve ligado diretamente ao violão, e inspirou
compositores como Heitor Villa-Lobos, Francisco Mignone, Radamés Gnattali e
Camargo Guarnieri. Contribuíram para literatura do instrumento de forma consistente
onde aumentaram o repertório, favoreceram o crescimento da técnica do instrumento e
paulatinamente, o violão erudito brasileiro foi chegando às salas de concerto. Com o
passar do tempo, o Brasil começou a ser representado por violonistas no exterior com
uma crítica positiva. Turíbio Santos e Antônio Carlos Barbosa Lima provavelmente
foram os primeiros a fazer uma carreira internacional e se estabelecerem como solistas.
Mais tarde com o Duo Assad, que é considerado o principal duo de violões da
atualidade, e Fábio Zanon sendo o principal concertista de violão no Brasil de hoje,
projetaram o violão brasileiro no estrangeiro com muita consistência (VCFZ: Rádio
Cultura FM).
Também ligado ao Choro, o violão de sete cordas aparece com uma linguagem
peculiar e se populariza como essencial nos grupos tradicionais. Segundo Fábio Zanon,
o violão de 7 cordas no choro e no samba é o equivalente ao baixo contínuo no barroco.
A origem desse instrumento ainda é um mistério, e a hipótese mais popular hoje é de
que o instrumento chegou ao Brasil com os imigrantes russos. No programa Sete vidas
em sete cordas apresentado por Yamandu Costa, o violonista Vladimir Markuchevich
conta que a Revolução Comunista de 1917 foi uma guerra civil que provocou uma
grande migração para a Argentina e o Brasil, e Anastasia Bardina reitera que havia
repressão, muitas pessoas fugiram para a América. Por esta razão, o violão de sete
cordas russo deve ter sido trazido ao Brasil e se transformou com a cultura local. Um
fato curioso é que no século XIX já se tocava violão de sete cordas na Rússia. O
processo de popularização desse instrumento na Rússia foi o inverso do Brasil, os
Czares e a nobreza praticavam violão de sete cordas, e só com o passar do tempo esse
instrumento chegou até os camponeses e ciganos dando início a uma tradição popular de
se tocar sete cordas na Rússia, segundo o Luthier Vladimir Azhikulov.
Na segunda metade do século XX, Raphael Rabello inicia uma nova escola de
sete cordas que vai do contraponto do choro tradicional ao solo. Gravou com Tom
6
Jobim, Ney Matogrosso e Paulo Moura, foi elogiado por Pat Metheny e Paco de Lucia,
virando uma referência e sendo inspiração para as próximas gerações de violonistas.
A partir desse cenário que Dilermando Reis, Garoto, Baden e Rabello
contribuíram para existir, o Brasil se tornou um verdadeiro celeiro de violonistas.
Temos importantes representantes como Yamandú Costa, Thiago Colombo, Alessandro
Penezzi, Rogério Caetano, João Camarero, Luís Leite e muitos outros. Ainda assim, a
história nos permite resgatar nomes que são pouco falados hoje, e trazer uma
problematização da ausência de músicos de primeiríssimo calibre no cenário do violão
nacional.
O livro de Benedict Anderson se destaca por dedicar boa parte de seus estudos
sobre o nacionalismo às Américas e à Ásia. E, também, por perceber as raízes da
cultura do nacionalismo não na teoria política, mas em atitudes inconscientes ou
semiconscientes, dando importância ao veículo das publicações, especialmente aos
jornais, à língua escrita e falada, na construção das novas comunidades imaginadas,
como a nação. Anderson valorizou, assim como os historiadores franceses do
imaginário, o poder da imaginação coletiva, das imagens partilhadas (ANDERSON,
2008).
É conveniente pensar a perspectiva teórica para visualizar a música e a sua circulação
por meio das partituras, concertos e outras formas de difusão como elemento construtor
de identidades e de processos de significação como expressão de uma “tradição
inventada” presente na obra violonística. É neste sentido que Eric Hobsbawm esclarece
que “o termo “tradição inventada” é um termo amplamente utilizado, porém, bem
definido. Este termo se refere tanto às tradições realmente inventadas, construídas e
formalmente institucionalizadas, “quanto as que surgiram de maneira mais difícil de
localizar num período delimitado – às vezes coisa de poucos anos apenas – e se
estabeleceram com enorme rapidez”. Na concepção do historiador, estas podem ser
observadas como um “conjunto de práticas normalmente reguladas por regras, tácita ou
abertamente aceitas (...) visam inculcar certos valores e normas de comportamento
através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao
passado” (HOBSBAWN; RANGER apud ARCANJO, 2018, p. 9).
7
III- RESULTADO E DISCUSSÃO
9
costumes à qual estão atados, que se diferenciam com o local e realidade que cada um
se origina (HOBSBAWN, 1984).
Jacques Le Goff, ao pensar as complexas relações entre história e memória nos
dá pistas para a compreensão dos complexos processos que levam a eventos tais como
as escolhas e recortes da memória que geram lembranças, mas também, esquecimento.
O autor afirma que
O motivo para o sucesso não está mais em ser artista, com todo
histórico e significado que essa palavra tem. A fama hoje é construída
a partir dos interesses dos meios de comunicação de massa e da
10
indústria cultural, e o ser humano "comum" pode tornar-se artista e
famoso da noite para o dia, seja através do Big Brother Brasil ou do
programa que carrega o próprio nome daquilo que propõe
fazer, Fama.
11
Branco. Em “Saudades do Garoto”, Waltel utiliza o mesmo motivo rítmico que Garoto
utiliza na música “Lamentos do morro":
12
Na parte B, Waltel também faz um tema em G (Sol maior) como Garoto, mas
difere na estruturação melódica. Isso seria uma estilizacão, que será explicado mais a
frente.
Sobre alusão, entende-se que ela é uma forma de intertextualidade que faz uma
leve referência a um texto já conhecido. Segundo Zani (2003, p.123), “a alusão não se
faz como uma citação explícita, mas sim, como uma construção que produz a ideia
central de algo já discursado e que, como o próprio termo deixa transparecer, alude a
um discurso já conhecido do público em geral”. Podemos encontrar esse exemplo na
música “Vaneirão” de Waltel Branco. Por ser um rítmo sulista, esse Vaneirão trás essa
sonoridade, como é possível observar nos três últimos compassos da parte A.
14
Figura 7. Trecho do “Vaneirão” que mantém a mesma fôrma nos acordes
arpejados, c. 31-38.
15
Figura 9. A Valsa “Marlene” de José Augusto de Freitas esteticamente mantém
melodia e acompanhamento em um extrato que é bem visível e organizado, c. 1-7.
16
Nesse trecho, Othon Salleiro faz a reexposição do tema, e tem a indicação da
Tambora para criar uma diferenciação. Em “Cueca”, ao reapresentar o tema na segunda
seção, Barrios utiliza o mesmo recurso da Tambora com objetivo idêntico ao de
Salleiro. Elemento que se vale de uma prática popular e faz uma aproximação cultural
entre os compositores.
17
culturais de natureza transregional e transnacional. Mais do que
clichês ou maneirismos, as tópicas são elementos estruturais (motivos,
variações, texturas, ornamentos, etc.) que portam significados e que
constituem o texto musical (PIEDADE, 2009, 127).
As tópicas como objeto de estudo foram exploradas de forma mais incisiva pelo
especialista americano Leonard Ratner, que ganhou notoriedade e interesse com seu
estudo sobre tópicas musicais na música do séc. XVIII (RATNER,1980), onde o autor
associa características e tradições da música europeia do período estudado (RIPKE,
2015). A partir da visibilidade dos estudos de Ratner, vários autores continuaram os
estudos sobre tópicas ajustando-as e utilizando-as para a música latino-americana de
forma geral. Gabriel Moreira, Paulo de Tarso Salles, Acácio Piedade e Melanie Plesch
são alguns exemplos de especialistas no estudo das tópicas.
Sobre as tópicas musicais podemos observar na música popular brasileira para
violão a tópica “época de ouro” associada à “baixaria”, como ocorre no Choros nº 1 de
Villa-Lobos com os cromatismos descendentes:
18
Outro exemplo de tópica “época de ouro” se encontra na terceira parte do
“batuque" de Othon Salleiro, onde se notam arpejos e baixarias típicas de um bordão de
violão de sete cordas:
Outra tópica que se encaixa muito bem para notar figuras retóricas na música
brasileira é a “tópica canto de xangô". Analisada por Juliana Ripke sobre as definições
dos estudos sobre Villa-Lobos do musicólogo finlandês Eero Tarasti (TARASTI, 1996),
a tópica supracitada é representada por uma combinação da melodia contra um
acompanhamento sincopado, onde remete a evocação e reverência típicas de rituais
afro-brasileiros, contrastando com um ostinato de ritmo denso (RIPKE, 2015).
Pode-se notar o uso dessa tópica em “Jongo” de Paulo Bellinati, e em “Saudades
do Garoto” de Waltel Branco:
19
Figura 16. “Jongo” – Paulo Bellinati, c. 25-36.
IV- CONCLUSÃO
20
habilitam a tocar música tradicional de concerto. O estudo da retórica na música hoje é
muito importante para entender as próprias formas, estruturas e elementos musicais. O
resgate de compositores poucos visitados pela literatura do violão é notável pela
importância da diversidade do repertório, pelo universo histórico-cultural que envolve a
obra e o compositor, e pela a ampliação do espectro que envolve a cultura musical do
violão brasileiro.
PARTITURAS:
21
Augustín Barrios Mangoré. Cueca. Disponível em:
https://pt.scribd.com/document/361794609/Agustin-Barrios-Cueca-pdf. Acesso em:
09/10/2020.
Waltel Branco. Saudades do Garoto, Vaneirão. Disponível em: A obra para violão solo
de Waltel Branco, por Cláudio Menandro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
22
PRANDO, Flávia, Othon Salleiro: um Barrios brasileiro? Análise da linguagem
instrumental do compositor-violonista, São Paulo, 2008.
PIEDADE, Acácio. Perseguindo fios da meada: pensamentos sobre hibridismo,
musicalidade e tópicas, Belo Horizonte, 2011.
MANFRINATO, Carolina. O uso da intertextualidade na Bachianas Brasileiras n°4 de
Heitor Villa-Lobos, Curitiba, 2012.
RIPKE, Juliana. Tópicas afro-brasileiras em Villa-Lobos e outros compositores
brasileiros: o canto de xangô, 2015.
PIEDADE, Acácio. Tópicas em Villa-Lobos: o excesso bruto e puro, 2009.
RATNER, Leonard G. et al. Classic music: Expression, form, and style. New York:
Schirmer Books; London: Collier Macmillan Publishers, 1980.
TARASTI, Eero; FORSELL, Paul; LITTLEFIELD, Richard (Ed.). Musical semiotics in
growth. Indiana University Press, 1996.
ZANI, Ricardo. Intertextualidade: considerações em torno do dialogismo. Em questão,
v. 9, n. 1, p. 121-132, 2003.
ZANON, Fábio. O violão no Brasil depois de Villa-Lobos. Textos do Brasil, Ministério
das Relações Exteriores, Brasília, v. 12, p. 78-85, 2006.
LODI POUBEL, Monnik. Ilustres e desconhecidos – A difícil relação entre os
compositores e o público na música popular brasileira. A Nova Democracia. Disponível
em: https://anovademocracia.com.br/no-12/1046-ilustres-e-desconhecidos-a-dificil-
relacao-entre-os-compositores-e-o-publico-na-musica-popular-bra. Acesso em:
02/04/2020.
23