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UFPR - SACOD - DeArtes


Disciplina OA851
História da Música Brasileira I 2023 I
Professor José Estevam Gava

Atividade: fichamento nº 4

VITÓRIA CAROLINA CUNHA

Endereço eletrônico: vitoria.cunha98@gmail.com

Identificação do artigo aqui resumido: A modinha e o lundu no Brasil: as primeiras


manifestações da música popular urbana no Brasil

O contexto social e o fazer musical no Brasil do século XVIII


A partir do início do século XVIII, a população brasileira teve um grande salto
quantitativo, o que contribuiu para a formação de centros urbanos – como Salvador, Ouro Preto,
Rio de Janeiro – e para a ascensão de uma classe média a qual desejava se afirmar como
detentora de seus próprios valores e costumes. Essa camada emergente passou, então, a demandar
um tipo de entretenimento, em uma tentativa de se aproximar do modelo de cultura e do padrão
de vida europeus.
Antes disso, o lazer acontecia de diversas maneiras: por meio das óperas, de festas
profanas – como aniversários de membros da realeza, de cidades ou de alguma figura importante
– e de celebrações religiosas. Também ocorriam eventos musicais patrocinados por donos de
terras, os quais mantinham uma orquestra de negros escravizados – responsável por interpretar
obras europeias de grande sucesso em espaços fechados e restritos às elites. Entre os séculos
XVIII e XIX, porém, a camada burguesa passou a realizar saraus que, além de servirem como
lazer, também acabavam por divulgar a música cultivada por essa classe média. Esses encontros
ocorriam em espaços um pouco menos restritos, onde havia a reunião de músicos amadores e
profissionais na prática de música europeia.
É evidente a importância que a cultura europeia dava à música e, também, ao canto –
não sendo diferente com os europeus que para cá vieram. Além deles, os negros trazidos como
escravos da África também sempre cultivaram uma forte relação com o fazer musical, seja em
seus rituais religiosos ou como divertimento. Portanto, à medida que os centros urbanos se
consolidavam e se desenvolviam, mais esses universos se mesclavam, o que contribuiu para a
construção de um caminho musical próprio na colônia – apesar das ainda fortes imposições
culturais europeias.

O estabelecimento da modinha como um gênero de características próprias


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Foi nesse contexto histórico, social e cultural que, em fins do séc. XVIII, se desenvolveu
o gênero musical da modinha, um tipo de canção lírica que se consolidou tanto no Brasil quanto
em Portugal. Existe uma certa polêmica com relação às origens da modinha – se lusitana ou
genuinamente brasileira –, no entanto, independente do posicionamento nesse sentido, é
impossível negar a relação que o gênero teve com a moda portuguesa, sua antecessora. Essa
última, em meados do século XVIII, designava qualquer tipo de canção e sua prática se dava nos
salões de Lisboa, com a presença de um público mais rico. Já no Brasil, houve, para a palavra
moda, uma outra interpretação: a moda de viola – um estilo de canção bastante presente em São
Paulo e Minas Gerais.
A modinha brasileira, especificamente, acabou se estabelecendo de uma maneira muito
plural, sem assumir uma forma fechada e definitiva. Ela absorveu, da moda de viola, suas
características formais e melódicas, configurando-se como bastante distinta da moda portuguesa.
As canções brasileiras eram mais curtas, mais simples, singelas, delicadas, tratavam,
majoritariamente, de temas amorosos, além de o próprio diminutivo “modinha” ter sido
justificado por Mário de Andrade como demonstração de uma cultura mais afetuosa.
Além dessas particularidades, muitas modinhas se destacaram por terem uma
musicalidade bastante própria e peculiar. No fim do século XVIII, inclusive, autores portugueses
já denunciavam grandes diferenças entre a modinha portuguesa e a brasileira. Essa última
apresentava melodias sinuosas de poucos compassos, cromatismos melódicos, abuso de cadências
femininas e, principalmente, motivos sincopados – algo que se firmou como característico da
música brasileira. Pode-se citar, ainda, o acompanhamento em arpejos de quatro colcheias, que
lembra as batidas do atual pandeiro ou ganzá.
O etnomusicólogo Gerald Béhague destaca, também, aspectos poéticos do estilo
brasileiro, em especial, de Domingos Caldas Barbosa, considerado o maior compositor de
modinhas do período. Em suas obras, ele faz uso de temáticas mais maliciosas, com presença de
metáforas, duplos sentidos e intimidades. Além disso, é perceptível o emprego de neologismos
afro-brasileiros, de diminutivos e, também, de vocábulos de tratamento como “sinhá” e “nhanhá”,
utilizados por escravos no Brasil. A influência que essa sua maneira de compor teve para a
música, tanto em terras brasileiras quanto em Portugal, é muito clara. Barbosa foi para Lisboa em
1775 e, lá, atingiu um enorme sucesso na corte cantando e tocando suas próprias modinhas. Mais
tarde, ainda, diversos dos seus poemas foram musicados por compositores de renome, como os
portugueses Marcos Portugal e Antônio Leal Moreira.

O encontro entre a modinha e o lundu: raízes da música popular brasileira


É bastante interessante perceber essas particularidades da modinha brasileira, pois fica
evidente que, apesar da dependência política que o Brasil tinha de Portugal, já nessa época,
caminhávamos para uma direção musical própria. Ao ouvirmos estas composições, ainda, é
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possível associar tais características peculiares, como a síncope, ao choro, ao maxixe e ao próprio
samba, estilos que surgiriam apenas a partir de um século depois. Portanto, pode-se afirmar que
as raízes do que se tornaria a música popular brasileira já estavam sendo, ali, estruturadas.
Porém, para que se tenha uma melhor compreensão dessas particularidades da modinha,
é essencial traçar um paralelo com o lundu, uma dança popular brasileira introduzida no país por
escravos angolanos e que foi bastante popular em meados do século XVIII. O autor José Ramos
Tinhorão definiu essa dança como resultado da mistura de elementos da cultura negra, portuguesa
e espanhola e indicou que o costume de sua prática foi exercido por negros e mestiços ao longo
dos séculos XVIII e XIX. O lundu era dançado com o acompanhamento de instrumentos já
ocidentais, como a viola, juntamente com o batuque dos negros e era marcado por elementos
coreográficos como a umbigada, um sensual requebrado, alguns trejeitos das mãos e estalidos dos
dedos.
A partir do desenvolvimento dos centros urbanos e da consequente convivência entre
pessoas das mais diversas classes e realidades sociais, a dança lundu e a modinha, então, se
aproximaram. Isso fez com que tais gêneros absorvessem elementos e características um do
outro: a modinha incorporou a síncope presente nos batuques do sensual lundu, enquanto esse
último assumiu as formas musicais da mais comportada modinha – originando o lundu-canção.
Segundo Mozart de Araújo, as composições frutos dessa fusão são a prova mais concreta das
misturas que já ocorriam no século XVIII entre as culturas popular afro-brasileira e da classe
média.
Tratando mais especificamente do lundu-canção, é possível defini-lo como uma obra
para uma ou duas vozes, em compasso binário simples, geralmente escrita em tonalidade maior e
composta por fragmentos curtos, além de apresentar síncope melódica e esquema formal variado.
Quanto ao texto, frequentemente, é feito uso de refrões e de estrofes compostas por quatro versos
em redondilha maior, ou seja, que contam com sete sílabas poéticas cada. A temática, assim
como nas modinhas, permanece amorosa na maior parte das canções, mas, no caso do lundu, há
também um direcionamento para o cômico e o sensual.
No século XIX, os lundu-canções passaram a ser mais presentes nos repertórios de
apresentações populares. Dessa forma, alguns outros temas que representavam essas classes
passaram a ser, também, abordados – é o caso, por exemplo, do famoso lundu Lá no largo da sé
velha, cuja letra faz uma crítica a práticas de corrupção que ocorriam na época. No mesmo
período, passam a ser compostos lundus com ritmo diferenciado, ainda em compasso binário, mas
composto – já anunciando tendências da tradição musical romântica.
No decorrer do século XIX, os gêneros musicais da modinha e do lundu foram se
tornando autônomos, estabelecendo suas características próprias, e se consolidando dentro do
universo cultural e expressivo brasileiro, independente de distinções relacionadas a classes
sociais. Diversos compositores transitaram por esses estilos e contribuíram, de alguma forma,
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para a sua produção: desde José Maurício Nunes Garcia e Marcos Portugal até, mais tarde, Heitor
Villa-Lobos, nas primeiras décadas do século XX. Além deles, muitos outros nomes conhecidos
da música popular também sofreram grande influência desses gêneros, como, por exemplo, Xisto
Bahia, Chiquinha Gonzaga e, também, Tom Jobim e Chico Buarque.
Portanto, apesar das modinhas terem, em seu início, cativado primeiramente as elites
econômicas, aos poucos, tais barreiras sociais foram sendo apagadas, ao mesmo tempo em que
suas tradições foram se fundindo e se permitindo conversar com a prática do lundu. Nesse
sentido, pode-se dizer que ambas as manifestações culturais tiveram grande contribuição no
sentido de construir uma cultura musical originalmente brasileira e de ajudar a nos definir como
povo.

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