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UFPR - SACOD - DeArtes


Disciplina OA865
Estética da Música 2023 II
Professor José Estevam Gava

Atividade: fichamento 7

VITÓRIA CAROLINA CUNHA


Endereço eletrônico: vitoria.cunha98@gmail.com

Assuntos gerais deste fichamento/documentação: FUBINI, 2008, p.35-44 – A música e o


sentido da sua historicidade (capítulo 3).

História da música e metafísica da música


Uma das características presentes na civilização ocidental é a elaboração de uma
consciência histórica, baseada na recordação e na reflexão sobre o passado, a fim de que se tenha
consciência do presente. Para além do problema da especificidade do pensamento musical, no
entanto, outra questão distanciou a música das outras artes: nada disso ocorreu com ela. Portanto,
não houve a elaboração de uma história que remetesse à sua longa trajetória. Desenvolvendo-se,
assim, a parte das outras artes, a música até muito recentemente não teve consciência da sua
historicidade ou da sua classicidade. Existem inúmeras razões para isso. A primeira delas é que a
música, enquanto arte do tempo, não deixa rastros depois de sua execução, ou seja, tem vida
efêmera. Sendo arte do tempo presente, não se pensava no prolongamento de sua existência.
Além disso, as notações antigas eram imperfeitas, meramente aproximativas, portanto, não
serviam como documentos válidos a uma fiel reconstrução. Muitas culturas, inclusive, jamais se
preocuparam em escrever sua música. O desenvolvimento da música, ao longo dos séculos, deu-
se, também, em um ritmo histórico diferente relativamente ao das outras artes. Muitas músicas,
até bem recentemente, existiram apenas no ato de sua primeira execução. Soma-se a isso o fato de
que outros artistas estavam habituados a lidar com o presente tendo em vista o passado e o futuro,
mas os músicos, não.
Prova dessa consciência histórica precária é o fato de que os primeiros esboços de
história da música se deram em fins do século XVIII, enquanto que outras artes já tinham suas
histórias razoavelmente bem descritas. Assim, cada geração de músicos tomava seu mestre como
modelo, jamais buscando um modelo de classicidade, ou seja, de consciência de toda a evolução
da música. Não havendo uma história consolidada, as discussões sobre música, desde a
antiguidade, restringiram-se a discussões contemporâneas. Quando se tomou por base um
passado mais remoto, isso se deu com base em suposições e idealizações, já que, da música,
pouco se sabia concretamente. Foi o caso do classicismo grego transformado em “modelo” pelos
renascentistas. Galileu e o círculo florentino criticavam, assim, os polifonistas em nome de uma
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classicidade grega que era, na verdade, inexistente e desconhecida. Por fim, a chamada Grande
História sempre privilegiou eventos políticos, só muito recentemente abordando questões
culturais, artísticas e de minorias, por exemplo. Como resultado, a consciência que temos da
historicidade da música é ausente ou muito precária.

Marginalidade histórica da música e marginalidade social do músico


Existe, ainda, uma outra causa para essa falta de consciência histórica. Até o período
barroco, a música era acessória e subalterna. Ela apenas complementava a palavra, a poesia, a
função religiosa e o teatro, ou seja, não tinha importância alguma. Também era marginalizada
como arte menor, um exercício manual sem implicações intelectuais. Por outro lado, desde a
antiguidade, muitos foram os tratados exclusivamente teóricos sobre música, estes
providenciando alguns poucos conhecimentos sobre ela. Essa produção a respeito dos aspectos
não audíveis da música, correspondentes às harmonias cósmicas e à filosofia era valorizada.
Portanto, o que se considerava algo superior e digno de fato era apenas a reflexão sobre música.
A marginalidade histórica da música se intersecciona com a própria marginalidade do
músico e do executante. Até o século XVIII, compositores e músicos eram apenas servos. Eles
nem chegavam perto de serem comparados a arquitetos, pintores, escultores e homens letrados,
por exemplo. Portanto, a ideia aristotélica de que a prática musical não era digna de um homem
livre se conservou por muito tempo. Guido d’Arezzo, na Idade Média, chegou a considerar o
músico prático como um “animal”. No século XVIII, o problema diminuiu, mas não foi
resolvido. Só então, a música e os músicos começaram a adentrar o mundo da inteligência e da
cultura, tornaram-se merecedores de uma história própria. Por conta disso, a música se refugiou
em uma tradição muito mais fechada e separada em relação às outras artes.
Em contrapartida, a especulação sobre música desenvolveu-se seguindo uma trajetória
completamente independente da música em sua forma concreta. Essa elaboração de teorias feitas
na pura abstração manteve, assim, pouco contato com a concretude da música e a própria
realidade dos músicos. Uma das teorias filosóficas mais antigas, que resultou dessa separação, foi
a bipartição entre música “humana” – dos instrumentos, audível, concreta, mas servil, irrelevante
– e música “mundana” – dos mundos, das esferas celestes, inaudível, intangível, mas do plano
metafísico e, então, considerada. Esse fracionamento em dois canais distintos, o teórico e o
prático, que não se comunicam e têm desenvolvimentos independentes, é anormal e peculiar ao
campo da música. Esses canais só iniciaram aproximação com o século XVIII, com a música
adentrando o mundo das artes, da cultura e da reflexão. No entanto, a essência numérica e
metafísica da música ainda existe hoje em dia. O desconhecimento sobre a música concreta do
passado associado às reflexões teóricas geralmente separadas da prática tornam a historiografia
da música extremamente problemática, por depender de canais de tradição oral. Por outro lado,
devido à sua própria natureza fluida e temporal, a música se desenvolveu de modo peculiar, com
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dinâmica interna própria, conjugando múltiplos estilos e múltiplas culturas ao longo do tempo e
do espaço. Assim, a música, por não existir e por ser arte temporal, tem mais mutabilidade,
comunicando-se muito mais com outras culturas, em comparação a outras artes.

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