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11/02/2022 18:37 Aulas

Curso: Filosofia Geral:


Apresentação da Disciplina Aula 1 - O Que É Filosofia? Aula 2 - O Que é Filosofar? Aula 3 - Filosofia e
Teologia
Aula 4 - Linguagem e Pensamento Metafísico
Aula 5 - Linguagem e Pensamento Pós-Metafísico
Aula 6 - Conhecimento Verdadeiro: racionalismo e pensamento fundacional moderno
Aula 7 - Conhecimento Verdadeiro: Conhecimento X Crenças
Aula 8 - Conhecimento Verdadeiro: Contextualismo e Relativismo Aula
9: Um diálogo entre fé cristã e filosofia
Aula 10 - A Mente e o Corpo Humano: monismo anômalo e fé cristã
Aula 11 - A vida em sociedade: descrições metafísicas
Aula 12 - A vida em sociedade: descrições pós-metafísicas
Aula 13 - Decisões e conflitos éticos: descrições metafísicas pré-modernas
Aula 14 - Decisões e conflitos éticos: descrições metafísicas modernas
Aula 15 - Decisões e conflitos éticos: descrição pós-metafísica de Richard Rorty Aula
16 - Decisões e conflitos éticos: descrição pós-metafísica de Jürgen Habermas Aula
17 - Decisões e conflitos éticos: ética filosófica e ética cristã
Aula 18 - A beleza e a moda: estética pré-moderna e moderna
Aula 19 - A beleza e a moda: estética pós-moderna
Aula 20: A beleza e a moda: estética hipermoderna

Apresentação da Disciplina

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QUEM É O DOCENTE DESTA DISCIPLINA?

Aula 1 - O Que É Filosofia?

Tema: A filosofia e suas tarefas

Objetivo: Descrever as principais tarefas da filosofia e sua importância para quem estuda teologia.

Prezado aluno/a, nesta primeira aula você será apresentado à filosofia e terá uma visão geral a respeito de
sua relevância para quem estuda teologia.

Assista o vídeo: "A Filosofia e os conceitosO QUE É FILOSOFIA? Afinal de contas, o que é filosofia? É
uma forma de pensar sobre a vida. Existem outras formas de pensar sobre a vida. Um cientista, por exemplo,
pensa sobre a vida de forma “científica”, está sempre procurando as leis que explicam o funcionamento das
coisas, as comprovações de que essas leis estão bem escritas e que podem servir para prever o
funcionamento futuro das coisas. Um teólogo, por sua vez, pensa sobre a vida a partir da fé, sempre
procurando entender o que Deus revelou à humanidade, e como o ser humano deve responder à revelação
divina. O pensar científico enfatiza como as coisas são. O pensar teológico enfatiza o que Deus quer que o
ser humano seja. Mas, e a filosofia?A filosofia é uma forma de pensar que se ocupa sobre
os problemas mais importantes da vida. Enquanto um cientista pensa a partir
de experiências, e um teólogo a partir da revelação divina, um filósofo pensa
a partir do encanto. Através do encanto, coisas aparentemente sem
importância se tornam relevantes, sobre as quais vale a pena refletir e
pensar. O pensar filosófico nasce, então, de uma experiência de se
maravilhar com algum aspecto da vida, nasce de um olhar diferente para as
coisas do dia-a-dia. A partir desse olhar maravilhado para a vida, a filosofia
constrói conceitos que tentam explicar a vida. Conceitos que procuram
encantar outras pessoas com o mesmo encanto a partir do qual nasce a
reflexão filosófica.Quando pensa sobre algum aspecto da vida, a pessoa que
filosofa também realiza uma conversa, um diálogo. A filosofia é uma forma de
pensar que se realiza no diálogo entre os vários olhares que podem ser
aplicados a alguma coisa. Dialoga com o olhar científico e seus cálculos,
provas, evidências e leis. Dialoga com o olhar teológico e sua fé em Deus e
estudo da revelação divina. Dialoga com o saber do senso comum, um saber
baseado na prática e nos relacionamentos cotidianos. E, especialmente, a
filosofia dialoga com a própria filosofia – ou seja, pessoas que fazem
filosofia gostam de dialogar com outras
pessoas que já fizeram, e com pessoas que ainda fazem filosofia.Uma pessoa comprometida com a fé cristã gosta
de ler a Bíblia, de ler livros cristãos, de frequentar igrejas cristãs, de conversar com outras pessoas cristãs. Quem
está estudando teologia lê livros de outras pessoas que estudaram teologia, conversa com pessoas que gostam de
teologia, se sente mais à vontade entre pessoas assim do que entre pessoas que desconfiam da fé de quem
gosta de teologia. Assim também acontece com a pessoa que filosofa. Ela se sente mais à vontade conversando
com outras pessoas que também filosofam, gosta de ler textos de filósofos e filósofas do presente e do passado,
gosta de dialogar sobre os conceitos e os maravilhamentos filosóficos.

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Assista ao vídeo: "A desbanalização do banal"

UMA DESCRIÇÃO DA TAREFA DA FILOSOFIA

Vejamos um exemplo de diálogo entre filósofos:

John Dewey interpretou a insistência de Hegel na historicidade como a reivindicação de que os filósofos não
tentassem ser a vanguarda da sociedade e da cultura, contentando-se em fazer a mediação entre o passado e o
futuro. Seu trabalho é o de alinhavar as crenças velhas e as novas de modo que elas possam cooperar, em vez
de interferir umas nas outras. Da mesma forma que engenheiros e advogados, o filósofo é útil na solução de
problemas particulares que emergem em situações particulares – situações em que a linguagem do passado está
em conflito com as necessidades do futuro. (RORTY, Richard. “A filosofia e o futuro”. In: RORTY, Richard.
Pragmatismo e Política. São Paulo: Martins, 2005, p. 125)

O exemplo vem de um texto de Richard Rorty, um filósofo estadounidense– nosso contemporâneo. Em seu texto,
Rorty dialoga com dois outros filósofos: John Dewey, também estadounidense, que escreveu nas primeiras
décadas do século XX, e Georg Hegel, um filósofo alemão que escreveu nas últimas décadas do século XIX. E
note que Rorty não só dialoga com os dois, como também aproveita a conversa de Dewey com Hegel para
apresentar a sua própria descrição do que é a tarefa de um filósofo.

Imagino que você tenha percebido que a conversa entre filósofos usa palavras diferentes, estranhas, difíceis.
Dewey e Hegel conversaram sobre historicidade – ou seja, foram filósofos que se encantaram com o fato de que
nós, seres humanos, somos seres históricos – vivemos ao longo do tempo, e imaginamos que o presente é melhor
do que o passado e que o futuro deveria ser melhor do que o presente. É claro que há pessoas que acham que o
passado é melhor do que o presente e esperam que, no futuro, as coisas voltem a ser do jeito que eram. Tanto
faz, porém, a nossa opção. Fato é que somos históricos. Vivemos no presente, lembrando do passado e
sonhando com o futuro. Isso é historicidade.

Como um filósofo pensa a historicidade? Uma das lições de Hegel (segundo a interpretação de Dewey) foi afirmar
que o filósofo não deveria se colocar na vanguarda da sociedade – ou seja, não deveria se considerar como
alguém que está “muito à frente” de seu tempo, como uma pessoa que tem todas as respostas para os problemas
do presente. Pense com Dewey/Hegel: se o ser humano é um ser histórico e novas gerações sempre virão após a
nossa, não faz sentido ser vanguarda – pois a próxima geração terá sua nova vanguarda e assim
sucessivamente. No futuro, as pessoas pensarão e agirão de forma diferente da nossa e não é possível prever
com exatidão como será a vida das pessoas no futuro.

Por isso, por causa da historicidade, é melhor que um filósofo seja mais modesto e se contente em se um
mediador – uma pessoa que faz ligações, que junta coisas separadas, que estabelece amizades. Pensar
filosoficamente, consequentemente, é pensar sobre as relações entre o passado e o futuro, pensar sobre como
podemos juntar as crenças do passado, com as necessidades, crenças e saberes do futuro. Veja, então, que
grande dose de cuidado e imaginação deve ter um filósofo – pois tenta fazer a mediação entre crenças que já
existiram no passado com crenças que ainda não existem, mas que poderão vir a existir no futuro. E tenta fazer
isto de forma que as crenças e os saberes do passado e do futuro não entrem em conflito, mas cooperem umas
com as outras. Um filósofo, então, é alguém que olha para o presente com o olhar admirado da historicidade –
trazendo para o presente tanto o passado quanto o futuro.

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Rorty, por sua vez, acrescenta uma nova visão às reflexões de Hegel e Dewey. Para Rorty, a função da filosofia é
resolver um tipo específico de problemas – “situações em que a linguagem do passado está em conflito com as
necessidades do futuro”. Rorty pensa a partir do fato de que um mediador só é necessário quando há
conflitos, daí, o trabalho do filósofo só é necessário quando as

crenças e os saberes (a linguagem) do passado não mais nos ajudam a resolver os problemas do presente, nem a
encaminhar bem o nosso futuro. Será que existe trabalho para quem quer filosofar? Pode apostar! Conflitos desse
tipo não faltam, seja no dia-a-dia, seja nas situações específicas da ciência, da escola, da política, da religião, etc.

A partir destes diálogos, você já pode perceber a importância da filosofia para quem estuda teologia e para quem
pratica a fé cristã. No cotidiano das igrejas e no trabalho de teólogos, conflitos entre as crenças do passado e as
necessidades do futuro são muito comuns. Quem de nós já não ouviu na igreja, por exemplo, um irmão ou irmã
mais velho dizer, saudosamente, “em meu tempo a igreja era muito melhor” (se é que você e eu já não dissemos
algo parecido). E sabemos que para as pessoas mais jovens na igreja a resposta mais comum a essa saudade
é de rejeição, de preferência por jeitos novos de fazer as coisas. A vida cristã também é vivida na historicidade,
então, fazer filosofia poderá nos ajudar a fazer mediações e diminuir conflitos entre as diversas gerações de
homens e mulheres que se dedicaram à fé.

Aula 2 - O Que é Filosofar?

Tema: A construção de conceitos em filosofia

Objetivo: Apresentar as duas grandes formas de construir conceitos em filosofia.

Nesta segunda aula, você vai aprender um pouco mais sobre o que é fazer filosofia e quais os caminhos
possíveis para a construção de conceitos filosóficos.

O QUE É FILOSOFAR?

Filosofar. É um pensar que nasce da admiração com as situações da


vida e se ocupa de fazer ligações entre saberes, entre crenças,
entre linguagens – do passado com o presente e com o futuro. E uma
das principais formas de fazer esse diálogo filosófico é a construção de
conceitos. Dewey usou a palavra crenças. Rorty usou a palavra
linguagem. Na aula anterior, eu usei a palavra conceitos para me referir
ao que faz a pessoa que filosofa. Historicidade, por exemplo, é um
conceito. Conceitos são palavras que tentam explicar, resumidamente,
soluções de problemas. O problema das relações entre passado,
presente e futuro pode ser explicado pelo conceito historicidade. O
problema da função da filosofia pode ser explicado pelo conceito
mediação. Um outro filósofo, Giles Deleuze, definiu a tarefa da filosofia
como a de construir conceitos.

Ao longo da história da filosofia, podemos traçar duas grandes formas de construir conceitos. Vamos chamar uma
delas de metafísica, ou fundacionista. Vamos chamar a outra de pós-metafísica, ou pós-fundacionista. Mais
palavras complicadas! Não se preocupe, iremos aprender o que essas palavras significam. Para começar a
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descobrir o que essas palavras significam, vamos conversar com um outro filósofo:

Na maioria dos casos, os conceitos que os filósofos isolam para lhes dar atenção, como verdade, conhecimento,
crença, ação, causa, o bem e o certo, são os mais elementares que temos, conceitos sem os quais (estou
inclinado a dizer) não teríamos, ao final, quaisquer outros conceitos. Por que então deveríamos esperar ser
capazes de, por meio de definições, reduzir esses conceitos a outros conceitos mais simples, mais claros e mais
básicos? Deveríamos aceitar o fato de que o que torna esses conceitos tão importantes deve também eliminar a
possibilidade de encontrar um fundamento para eles que alcance os alicerces mais profundos. (DAVIDSON,
Donald. “The folly of trying to define truth”.In BLACKBURN, Simon & SIMMONS, Kenneth (orgs.)Truth. Oxford:
Oxford University Press, 1999, p. 309)

Reparou na palavra fundamento, usada por Davidson? Na linguagem especializada da filosofia, fundamento é um
tipo de conceito que serviria para explicar e garantir a verdade de outros conceitos. A forma metafísica ou
fundacionista de fazer filosofia, então, é aquela que se preocupa em formular conceitos tão simples, claros e
básicos que poderiam servir de fundamento para todos os demais conceitos. Uma forma fundacionista de
filosofar cuida apenas de um tipo específico de problemas: problemas conceituais, ou seja, problemas que
afetam os conceitos. E tenta resolver esse tipo de problemas formulando novos conceitos, ou formulando de forma
mais perfeita antigos conceitos. Mas, e a palavra metafísica? Esta palavra é grega e significa, literalmente, “o que
vem depois da física”, e tem dois grandes sentidos na filosofia.

O sentido mais comum de metafísica é o que se refere à seção da filosofia que trata das explicações racionais
sobre o todo da realidade, a parte da filosofia que estuda a realidade que está além da realidade física, natural. E o
filósofo metafísico faz isso sem dialogar com as ciências, ou com a teologia. Usa apenas a capacidade
especulativa da razão para produzir conceitos que explicam o todo da realidade – e nos fazem perceber que a
realidade é um todo coerente, com sentido e direção. O outro sentido é o usado aqui para descrever as duas
formas de fazer filosofia. Neste segundo sentido, metafísica é sinônimo de fundacionismo – ou seja, se refere a um
tipo de pensar que procura explicar as coisas visíveis mediante coisas invisíveis (idéias, conceitos).

Antes de prosseguir, assista aos vídeos: "Dualismo* Platônico" e "Pensamento Metafísico"

Uma forma pós-metafísica, ou pós-fundacionista, por sua vez, é aquela que o próprio Davidson pratica e descreve
em seu texto – uma forma que se recusa a procurar conceitos filosóficos que sirvam de fundamento para outros
conceitos filosóficos e que, por sua vez, sirvam de fundamento para todos os saberes humanos. Dewey e Rorty
também praticam esse tipo pós-fundacionista de filosofia – filosofar é, segundo eles, resolver problemas, fazer
mediação entre crenças conflitantes, sonhar o futuro sem negar o passado. Eu mesmo também prefiro a forma
pós-fundacionista de fazer filosofia, e é dessa forma que iremos estudar a filosofia nesta disciplina.

Finalizamos a segunda aula. Está acompanhando o conteúdo? Leia novamente esse conteúdo e reflita sobre o
tema estudado.

ula 3 - Filosofia e Teologia

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Objetivo: Discutir as diferenças e semelhanças entre fazer teologia e filosofia e apresentar o fazer filosófico
a partir de uma perspectiva cristã.

Prezado aluno/a, nesta aula você vai conhecer um pouco mais sobre as diferenças entre filosofia e teologia e
sobre o que significa fazer filosofia a partir de um ponto de vista cristão.

AS OPÇÕES QUE DEFINEM A ESTRUTURA E O CONTEÚDO DESTE ESTUDO DA FILOSOFIA

Fazer opções. Estudar um tema tão amplo e tão interessante quanto a filosofia nos obriga a fazer opções. Não é
possível estudar tudo que a filosofia já produziu, nem todos os filósofos que já existiram. Também não será
possível ficar debatendo em profundidade entre as duas formas principais de se fazer filosofia. É preciso optar. Por
isso, em cada texto farei sugestões de leitura para que você, se tiver interesse, possa aprofundar seus estudos
sobre a filosofia, enquanto aprende a filosofar de forma pós-metafísica. E se, nos seus estudos, preferir a forma
metafísica de fazer filosofia, fique à vontade! Em filosofia não há uma autoridade superior que dê a última palavra.
Pensar filosoficamente é pensar em liberdade, criatividade e responsabilidade – sem tribunais que possam
estabelecer, para todas as pessoas e para todo o sempre, qual é a única e verdadeira forma de se fazer filosofia.

Uma outra opção que faço é pensar filosoficamente como cristão. Ao fazer esta opção, estou afirmando para mim
mesmo e para você que, para tentar entender a vida e resolver problemas filosóficos, as crenças e os saberes
derivados da revelação de Deus são uma fonte importante de conhecimento. Ao fazer filosofia como cristão, é
preciso, porém, tomar pelo menos dois cuidados. Primeiro, não podemos confundir filosofia com teologia. Filosofia
e teologia são muito parecidas, tanto que a história das relações entre teologia e filosofia, teólogos e filósofos,
não é uma história de muitas amizades. De fato, é uma história de muitos conflitos. Durante alguns séculos, a
teologia era considerada a rainha dos saberes, e a filosofia era descrita como serva da teologia – isso na chamada
Idade Média, entre os séculos XI e XVI da era cristã. Nas universidades européias, os filósofos estavam
subordinados aos teólogos. Na chamada modernidade, o tempo que começa no século XVI e dura até nossos
dias, a filosofia deixou de aceitar o papel de servada teologia e os filósofos não mais aceitaram o lugar
subordinado que a universidade lhes dera anteriormente. Um dos mais famosos e brilhantes filósofos do século
XIX, Friedrich Nietzsche, escreveu vários livros em que se esforçou para demonstrar a falta de validade do
cristianismo – e até hoje muitos cristãos identificam a filosofia com a crítica e negação da fé cristã.

Neste momento, é importante saber em que sentidos possíveis a expressão Modernidade pode ser usada.
Assista ao vídeo: "Modernidade: a polissemia da expressão"

Filósofos e teólogos fazem trabalhos semelhantes – ambos tentam resolver problemas relativos às coisas
importantes da vida, e ambos fazem isto construindo conceitos. Para que a filosofia não seja confundida com
teologia, um cristão precisa fazer um interessante exercício intelectual. O exercício do diálogo entre crenças cristãs
e crenças filosóficas, crenças baseadas na fé e crenças baseadas na razão. Fazer filosofia em perspectiva cristã
nos convida a fazer mediações entre saberes que nem sempre são amigos entre si. Filosofia e teologia não
precisam ser adversárias. Teólogos e filósofos não precisam ser inimigos. Mas também, não é obrigatório que
teologia e filosofia se entendam em tudo, que filósofos e teólogos concordem cem por cento. Apesar dos conflitos,

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porém, a história das relações entre filosofia e teologia também tem seus momentos de companheirismo. Em
particular, muitos teólogos tiraram proveito das descobertas filosóficas para construir melhor os conceitos
teológicos. E esse diálogo pode ser muito fecundo também com filósofos que negam a validade do cristianismo,
como o já citado Nietzsche.

O segundo cuidado é o de não imaginar que haja apenas uma verdadeira filosofia cristã. Ou seja, não poderemos
confundir filosofia de um cristão com filosofia cristã. Não poderemos confundir a reflexão filosófica com a doutrina
ou a confissão de fé das igrejas. Sei que há cristãos que afirmam o contrário, e tentam provar que a teologia deve
ser o fundamento da filosofia. Não duvido da sinceridade, da inteligência, nem da capacidade desses irmãos e
irmãs. Mas, como fazer filosofia implica em fazer opções, e eu optei por fazer filosofia de forma pós-
fundacionista, não posso concordar com a idéia de uma filosofia cristã. Prefiro falar em uma perspectiva cristã da
filosofia – e as palavras em itálico fazem parte do título de um livro de cristãos sobre a filosofia: Introdução à
Filosofia: Uma perspectiva cristã. GEISLER, Norman L. & FEINBERG, Paul D. São Paulo: Edições Vida Nova,
1983.

Se você comparar estes conceitos filosóficos com os conceitos do livro de Geisler e Feinberg, irá perceber que
nem sempre concordamos. E as discordâncias não são motivo de conflito, de acusação de heresia, ou coisa
semelhante. No diálogo filosófico, formular conceitos de formas diferentes é algo esperado, aceito e desejado. Não
há preocupação em se estabelecer uma única forma definitiva de conceitos filosóficos (a não ser que você faça
filosofia de forma metafísica). Por isso é que também falo em uma perspectiva cristã da filosofia, e não em a
perspectiva cristã da filosofia. E por isso também, este estudo é um convite para você fazer filosofia, pensar
filosoficamente. Não é um convite para você repetir as minhas formulações filosóficas, ou as minhas soluções para
problemas filosóficos. É um convite, e representa meu esforço pessoal para ajudar você a aprender pensar
filosoficamente com autonomia.

Aula 4 - Linguagem e Pensamento Metafísico

Objetivo: Apresentar os autores e as ideias que estão na base do pensamento metafísico, tanto em sua acepção
antiga quanto moderna.

Nesta aula, faremos uma breve apresentação de alguns filósofos que contribuíram para a construção do
pensamento metafísico na filosofia.

A METAFÍSICA ANTIGA

Três grandes filósofos que viveram nos séculos V-IV a.C. deram à filosofia o tom metafísico, ou modo
fundacionista: Sócrates, Platão e Aristóteles.

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Até hoje, grande parte da filosofia se constitui como uma espécie de comentário crítico a esses filósofos antigos.
Dos três, Sócrates não nos deixou nenhum escrito. O que sabemos sobre seu pensamento vem dos escritos de
Platão. Aristóteles, por sua vez, foi discípulo de Platão – embora tenha discordado dele em muitos conceitos e
áreas da filosofia. Platão desenvolveu uma forma peculiar de compreender a realidade em que vivemos. Uma
forma metafísica que é usada até por pessoas que jamais leram Platão, ou sequer souberam de sua existência.

Para Platão, o mundo físico em que vivemos é transitório, mortal, não-definitivo. Ele chamava este mundo de
mundo sensível – que pode ser captado pelos sentidos. Como este mundo é transitório, Platão pensava que ele
não poderia ser a realidade toda, deveria existir algo mais profundo, mais durável, mais verdadeiro. Ele, então,
desenvolveu a noção de que existe um mundo invisível, permanente. Esse mundo, que ele chamava de mundo
inteligível, é composto de idéias, de conceitos. Algumas idéias importantes para Platão foram, por exemplo, (1) o
Bem (com letra maiúscula), que é a forma pura dos atos bons que realizamos no mundo sensível, e que não se
contamina com os atos maus que praticamos; (2) a Verdade, que não pode se confundir com nossas opiniões
no dia-a-dia, mas deve ser entendida como a forma pura dos conceitos que explicam o mundo sensível e o
inteligível; e (3) a Alma, que é a verdadeira essência do ser humano, pois ela é imortal – contrário do corpo que é
mortal. Platão criou o seu conceito de “queda”: a alma imortal cai do mundo inteligível no mundo sensível e se
torna prisioneira de um corpo, formando assim uma pessoa.

Esta é uma das descrições filosóficas da realidade – e é uma descrição metafísica da realidade. O “real” que
vemos é apenas o “aparente”, o “real” real é o que não vemos, mas pensamos (quando pensamos corretamente,
como bons filósofos metafísicos). É por causa do pensamento de Platão que a palavra metafísica veio a ser
usada nos dois sentidos que descrevi na aula anterior. Platão fez da filosofia uma forma metafísica de pensar
sobre a vida – e até hoje há um grande número de filósofos que entendem a filosofia de forma metafísica – mesmo
que seus conceitos (como foi o caso de Aristóteles, discípulo de Platão), não sejam idênticos aos de Platão. O
pensar metafísico, então, não dialoga com nenhum outro tipo de saber humano, pois todos os demais saberes são
construídos a partir da pesquisa sobre o mundo sensível, que é apenas uma aparência, uma realidade ilusória e
enganadora. O pensar metafísico depende apenas de si mesmo, da pura reflexão conceitual, especulativa, sem
qualquer fundamento, a não ser si mesmo – e por isso se torna um pensamento fundacionista. As “idéias”
metafísicas passam a ser o fundamento do mundo sensível e de todo o conhecimento verdadeiro sobre esse
mundo.

UMA FILOSOFIA METAFÍSICA NA MODERNIDADE

Um exemplo de forma metafísica de fazer filosofia, no século XIX, é encontrado no trabalho do filósofo Georg F. W.
Hegel (1770- 1831), considerado por alguns historiadores da filosofia como o último grande pensador sistemático
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metafísico do Ocidente.

Em sua versão metafísica da realidade e da relação do pensamento com a realidade, Hegel afirmou:

Somente o Espírito é Realidade. É a existência interior do mundo, aquilo que essencialmente existe, e existe
por si mesmo; assume forma objetiva e determinada, e entra em relacionamento consigo mesmo – é
externalidade (a qualidade de outro), e existe por causa de si mesmo, mesmo assim, nesta determinação, e na
sua qualidade de outro, ainda é uno consigo mesmo – é contido em si mesmo e é completo em si mesmo, ao
mesmo tempo dentro de si e em prol de si. Este aspecto de ser contido em si mesmo, no entanto, é
primeiramente algo conhecido por nós, é implícito na sua natureza, é Substância espiritual. Precisa ser
contido em si mesmo por amor a si, por contra própria; deve ser conhecimento de espírito, e deve ser
consciência de si mesmo como espírito. Quer dizer que deve ser apresentado a si mesmo como objeto, mas,
ao mesmo tempo, imediatamente anular e transcender essa forma objetiva; deve ser seu próprio objeto em que
se acha refletido. À medida em que seu conteúdo espiritual é produzido por sua própria atividade, somos
somente nós, os pensadores, que sabemos que o espírito existe em prol de si mesmo, que é objetivo para si
mesmo; mas à medida em que o espírito sabe que existe por si mesmo, que é objetivo para si mesmo, então
esta auto-produção, a pura noção, é a esfera e o elemento em que ocorre sua objetificação e onde recebe sua
forma existencial. Desta maneira, tem na sua existência consciência de si mesmo como objeto em que seu

próprio-eu é refletido.1

A visão hegeliana é comumente conhecida como idealismo, pois o Espírito em Hegel não é a pessoa divina da
tradição cristã, mas uma substância intelectual, “mente” – e por isso os pensadores são as pessoas capazes de
apreender o Espírito. As afinidades com a visão platônica são perceptíveis, embora não se possa desconsiderar
as profundas diferenças também entre essas duas visões. Não se trata de um outro mundo, como no platonismo,
mas da essência interior deste mundo. O mundo físico e a história humana são as concretizações do movimento
do Espírito que se desenvolve progressivamente ao longo do tempo. Hegel considerava que em seu próprio
tempo a plenitude do Espírito teria sido alcançada, em particular no estado monárquico da Prússia – pelo que ele
ficou também conhecido como o filósofo do fim da história. Fim, não no sentido de término, mas no sentido de
plenificação, plenitude
– no sentido de que a forma mais adequada e plena de organização da vida humana em sociedade já teria sido
realizada. Plenitude que pode ser entendida como a concretização plena do Espírito na realidade visível.

A FORMA METAFÍSICA DA FILOSOFIA E A FÉ CRISTÃ

Para cristãos, a forma metafísica de fazer filosofia parece muito interessante. É, de fato, atraente – porque parece
ser muito semelhante à forma bíblica de descrever o mundo. É tentador pensar em Deus como o grande
fundamento de tudo o que existe (afinal de contas, Jesus não disse que não há bom, senão Deus?). É tentador
pensar no Espírito Santo como a mente divina que dá sentido ao mundo físico e humano. É tentador pensar na
salvação como a salvação da alma, já que viveremos eternamente após a morte e o corpo “volta ao pó” como se
diz em Eclesiastes. Vejamos, entretanto, as diferenças. Deus – Pai, Filho e Espírito – para nós cristãos, não é
uma ideia, mas um ser pessoal. Esta é uma enorme diferença – você crê em uma ideia abstrata e especulativa,
ou em uma pessoa concreta que criou o mundo e, por amor, enviou seu Filho para a salvação da humanidade e de
toda a criação? Idéias não agem, pessoas sim. Idéias não amam, pessoas sim. Idéias não fazem sacrifícios em

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prol de pessoas, somente pessoas se sacrificam por outras pessoas.

E quanto à alma? Não seria correto interpretar nessa forma metafísica uma passagem como Mt 10.28: “E não
temais os que matam o corpo, e não podem matar a alma; temei antes aquele que pode fazer perecer no inferno
tanto a alma como o corpo”? Devemos reconhecer, porém, que palavras só produzem sentido no conjunto de uma
língua e cultura, de modos que uma palavra não tem um só sentido (nem dentro da mesma cultura, quanto mais
quando usada em diferentes culturas). A palavra alma, na Bíblia, não tem o mesmo significado da palavra alma,
em Platão. A discussão sobre o sentido da palavra alma será feita no próximo texto. Por ora, vamos nos contentar
com uma outra questão, que mostra a grande diferença entre Platão e a Bíblia. O Novo Testamento fala da
salvação como salvação do ser humano inteiro, e fala da vida futura como uma vida que se inicia com a
ressurreição do corpo. Deus salva todo o ser humano e não só a sua “alma”. Ademais, a “queda”, na perspectiva
cristã, não é a queda da alma imortal para o mundo mortal. A “queda” é o pecado “original” - de querer ser igual a
Deus (cf. Gn2).

NOTAS

1 HEGEL, Georg F. W. The Phenomenology of Mind.Citadopor BROWN, Colin.Filosofia e Fé Cristã. Um esboço


histórico desde a Idade Média ate o Presente. São Paulo: Vida Nova, 1983, p. 84-85, grifos em itálicos meus.

Aula 5 - Linguagem e Pensamento Pós-Metafísico

Objetivo: Apresentar os autores e as ideias que estão na base da compreensão pós-metafísica da linguagem.

Olá! Tudo bem? Nesta aula você terá uma introdução ao pensamento pós-metafísico, tendo como referência
o pensamento de autores como Rorty e Habermas.

UMA FORMA PÓS-METAFÍSICA DE FILOSOFAR

Uma coisa boa que aprendemos com Platão, é que nem tudo é o que parece ser à primeira vista. O pensamento
metafísico parece ser bom para a fé cristã, mas, de fato, não é. Pelo contrário, é muito prejudicial para a fé cristã.
Porque nem tudo é o que parece ser, precisamos filosofar. E precisamos filosofar de modo pós-fundacional. E
como fazemos isso? É mais simples do que parece!

Fazemos filosofia de modo pós-fundacional quando permitimos que o diálogo seja o nosso guia,
que a comunicação intersubjetiva tome o lugar da pensamento individual especulativo. No
século XX, o tipo pós-fundacional de filosofia se tornou predominante a partir do que se chamou
de virada linguística. A virada linguística é um conceito que tenta expressar o reconhecimento
de que a linguagem humana só tem sentido no diálogo, na comunicação intersubjetiva. Tenta
expressar o reconhecimento de que as palavras não são substitutas das coisas, nem são a
expressão real das coisas sensíveis. Palavras são apenas signos, são sinais, e só funcionam
dentro dos limites de conversas, de diálogos.

Pense comigo. Por que usamos a palavra justiça para descrever um determinado tipo de ações e relações
humanas? Não há nada na palavra justiça que a ligue aos atos que chamamos de justos. “Isto não é justo,
mamãe!” é uma exclamação comum de crianças diante de uma resposta negativa de sua mãe, ou diante de uma

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ordem para arrumar os brinquedos, ou coisa semelhante. Afinal, é justo ou não é? Para a mãe, é. Para a criança,
não. Se houvesse uma relação direta entre a palavra e a ação, não deveria haver discordância entre mãe e filho
sobre justiça. Por isso, também, dizemos que as palavras e os conceitos não podem servir de fundamento para a
realidade. Não basta gritarmos por “justiça” para que a justiça aconteça, é preciso agir de determinada maneira
para que haja justiça – e nem todas as pessoas em uma sociedade concordarão que aquela maneira de agir é
justa.

Com a ajuda da virada linguística, podemos superar a descrição metafísica do mundo feita por Platão. Começamos
por reconhecer que o mundo “sensível” é o mundo “real” e, a partir desse reconhecimento, entendemos que a
linguagem humana (que forma os conceitos) não é uma realidade fora do mundo, mas é uma característica da
ação humana no mundo sensível. Através da linguagem nos comunicamos uns com os outros e comunicamos
uns aos outros as nossas descrições da vida e da realidade. Assim, não confundiremos as coisas com os
conceitos. Justiça não é o que a palavra “justiça” significa. O conceito de justiça é apenas uma descrição de
coisas que podemos chamar de justas ou injustas. E não é à toa que existem vários conceitos conflitantes de
justiça. Deus não é idêntico aos conceitos que os seres humanos criaram. Os conceitos sobre Deus são apenas
descrições da divindade. As descrições filosóficas, já deve ter ficado claro para você, são descrições
aproximativas, parciais, incompletas da realidade que tentam descrever. Jamais poderiam, então, servir de
fundamentos para a vida ou para a construção de outros conceitos filosóficos ou de outro tipo.

Vamos dialogar novamente. Em 1967, Richard Rorty publicou um livro com o título The LinguisticTurn (A Virada
Lingüística). Na abertura do livro, afirmou o seguinte:

O objetivo do presente volume é fornecer materiais de reflexão sobre a mais recente revolução filosófica, a da
filosofia linguística. Por "filosofia linguística" entendo a perspectiva de que os problemas filosóficos são
problemas que podem ser resolvidos (ou dissolvidos) quer pela reforma da linguagem quer por uma

compreensão mais adequada da linguagem que usamos presentemente.”1

Parece óbvio o que ele diz. E parece que não há diferença entre Rorty e Platão – já que ambos fazem filosofia
como construção de conceitos. Parece, mas a diferença é imensa. Parece óbvio, mas não é. Lembra-se de que o
pensar filosófico é um pensar que nasce do encanto? A virada linguística na filosofia só foi possível a partir do
encantamento de filósofos com o fato de que a linguagem é um meio de comunicação, é uma ferramenta que
usamos para conversar com outras pessoas e conosco mesmos. É uma ferramenta tão importante, que se
costuma dizer, por exemplo, que “damos crédito às palavras” - como se elas fossem pessoas fiéis, dignas de
credibilidade. Quando deixamos de perceber que a linguagem é um meio de comunicação e pensamos que a
linguagem é o meio de expressão da verdadeira realidade invisível, inteligível, caímos em inúmeros problemas
metafísicos insolúveis e nos arriscamos a tornar a convivência humana impossível – a não ser entre pessoas que
pensam de forma idêntica.

Encantado com a linguagem, Rorty se reencanta com a filosofia e descreve a filosofia como um exercício de
conversação, de diálogos sobre as descrições que fazemos das coisas que realmente nos importam. Então, a
filosofia pós-metafísica deixa de ser uma filosofia que procura o mundo verdadeiro e os fundamentos da
realidade. A filosofia deixa de descrever as palavras como uma espécie de cópia da realidade e passa a entender
as palavras como representações de nossos pensamentos, de nossas interpretações da realidade. A filosofia se
torna uma forma de pensar que se ocupa da solução de problemas concretos da vida humana. A filosofia deixa de
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ser especulativa e se torna prática. Deixa de ser mera reflexão e se torna conversação.

Um outro filósofo, Jürgen Habermas (alemão, ainda vivo), escreveu uma obra importante sobre como entender a
sociedade a partir da virada linguística. Esse livro se chama Teoria do Agir Comunicativa (São Paulo: Martins
Fontes, 2012). Nele, descreve a ação comunicativa da seguinte maneira:

O conceito do agircomunicativo, por fim,refere-se à interação de pelo menos, dois sujeitos capazes de falar e agir
que estabelecem uma relação interpessoal(seja com meios verbais ou extraverbais). Os atores buscam um
entendimento sobre a situação para, de maneira concordante, coordenar seus planos de ação e, com isso, suas
ações. O conceito central de interpretação refere-se em primeira linha à negociação de definições situacionais
passíveis de consenso. (Teoria do Agir Comunicativo, v. 1: racionalidade da ação e racionalização social. São
Paulo: Martins Fontes, 2012, p. 166)

Neste texto, Habermas está descrevendo um tipo de ação que, segundo


ele, tem como objetivo fazer com que duas ou mais pessoas (que falam e
agem) sejam capazes de se entender sobre uma situação e agir de forma
coordenada e não conflitiva. Na ação comunicativa, duas ou mais pessoas
interpretam uma determinada situação e negociam as suas interpretações
(suas descrições) da situação, visando chegar a consensos (o que nem
sempre é possível), ou seja, visando resolver problemas presentes na
situação analisada. Através da linguagem, na ação comunicativa, pessoas
interpretam e conversam sobre as várias dimensões do mundo real: (1) a
dimensão que objetiva
(Habermas chama a dimensões de “mundos”, mas acho que isso atrapalha, pois parece falar de vários mundos e
não de várias dimensões de um e único mundo), ou seja, através da linguagem interpretamos e descrevemos as
coisas que existem no mundo – a natureza, o mundo físico, o “mundo sensível” de Platão; (2) a dimensão social,
ou seja, a realidade criada e modificada por seres humanos que convivem em um determinado lugar e tempo; e
(3) a dimensão pessoal, ou seja, nós mesmos, pessoas, que vivemos na dimensão objetiva do mundo e
construímos a dimensão social do mundo.

Repare que usei palavras diferentes para expressar o que a linguagem faz: descreve, interpreta, constrói a
realidade. São formas diferentes de dizer que o nosso conhecimento do mundo é sempre, e inevitavelmente,
mediado pela linguagem. Um filósofo contemporâneo chegou a afirmar, certa vez, que “não há nada fora do
discurso (linguagem)”. Alguns filósofos metafísicos interpretaram essa frase como se ela significasse que o mundo
“físico” não existe, só existe a linguagem. Mas esse é um erro tremendo. Derrida (o filósofo que fez a afirmação)
estava enfatizando que o único mundo que existe – o mundo real em que vivemos – só nos é acessível
mediante a linguagem. É através da linguagem que conhecemos o mundo, que o interpretamos e o descrevemos.
E, assim, o construímos como um mundo humanamente moldado e adaptado.

A LINGUAGEM E A VIDA HUMANA EM SOCIEDADE

Habermas foi um dos filósofos que mais desenvolveu a noção de linguagem como o
meio de interpretação e construção do mundo. Em vários de seus escritos ele nos
ajudou a superar as principais teorias que tentavam explicar como as palavras e
sentenças produzem significado. Por isso, vale a pena refletirmos um pouco mais
sobre a sua descrição da linguagem, que podemos resumir nas seguintes teses:

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(a) a comunicação linguística deve ser compreendida a partir do reconhecimento de

que a linguagem realiza três funções simultâneas: representar estados de coisas


(descrever a dimensão objetiva do mundo), expressar intenções ou vivências de um
falante (descrever a dimensão pessoal do mundo), estabelecer relações com um
destinatário (descrever a dimensão social do mundo).
Conseqüentemente, uma boa descrição filosófica da linguagem tem de ser parceira de
uma boa descrição filosófica da ação em sociedade;

(b) as três principais teorias do significado vigentes ao longo do século XX somente foram capazes de lidar com

uma dessas três funções, reduzindo a linguagem a essa função específica: (1) a semântica intencionalista
somente se aplica à função expressiva da linguagem – porque descrevia a linguagem como o meio de
expressão das intenções de uma pessoa; (2) a semântica formal somente se aplica à função
representacional da linguagem – porque descrevia apenas a linguagem enquanto expressão da dimensão objetiva
do mundo; e (3) a semântica dos usos somente se aplica à função interacional da linguagem – ou seja, só
explicava a linguagem enquanto meio de comunicação. Cada uma dessas teorias é válida no que afirma, mas
delimitada pelo que deixa de afirmar. Uma boa descrição da linguagem e do significado das palavras e frases deve
levar em consideração as três funções da linguagem e as suas respectivas dimensões da realidade;

(3) essas três teorias são representativas da primeira fase da virada linguística, e devem ser
ampliadas pela virada pragmática de Austin e Searle (filósofos anglo-americanos), que criaram a teoria dos
atos de fala (conversas, comunicações em geral) e distinguem as forças locucionária(quando eu falo, comunico
um conteúdo que pode ser entendido ou não. Se o conteúdo for entendido, a fala desempenhou sua força
locucionária. Se não for entendido, a fala precisa ser repetida de forma melhorada); ilocucionária (o que eu falo
leva meu ouvinte a reagir de forma adequada. Por exemplo, a frase “eu aceito”, falada em uma cerimônia de
casamento, pelo noivo ou pela noiva produz um efeito concreto diferente da mesma frase “eu aceito”, como
resposta à pergunta “você aceita este brinde?”) e perlocucionária (posso usar a fala para enganar a pessoa que
me ouve, fazendo-a agir de um modo contrário ao seu interesse, mas adequado ao meu. Quando um pregador, por
exemplo, anuncia que se você der uma boa oferta para a igreja os seus problemas serão resolvidos, está
produzindo um efeito perlocucionário, porque o objetivo não é o bem da pessoa que ouve, mas o aumento da
arrecadação da igreja) dos atos de fala. Tal teoria, porém, também não completa a

virada pragmática, pois reduz a interpretação dos atos de fala à perspectiva da pretensão de validade
proposicional (relativa à sentença = proposição), ou da semântica formal, não sendo capaz, portanto, de distinguir
as condições de sucesso das condições de compreensão. Condição de sucesso (na terminologia técnica de
Habermas) é a condição para que meu ouvinte responda adequadamente ao que eu falo, aceitando minhas idéias
sem crítica. Condição de compreensão é a condição necessária para que meu ouvinte compreenda o que eu falo e
seja capaz de responder criticamente ao que eu falo; e

(4) somente uma teoria como a teoria da ação comunicativa é capaz de dar conta das três funções da linguagem e

de vincular a teoria do significado com a teoria da ação, completando, assim, a virada linguístico-pragmática.
Segundo tal teoria, a função primária da comunicação linguística é produzir entendimento entre os diferentes
participantes da comunicação. Entendimento a respeito das coisas que existem no mundo, entendimento a
respeito das nossas crenças, desejos e vivências, entendimento a respeito de como deve ser a vida humana em
sociedade.

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11/02/2022 18:37 Aulas
UM DIÁLOGO ENTRE FÉ CRISTÃ E FILOSOFIA

Uma pergunta que eu imagino que você está se fazendo, neste instante, é: “para que serve tudo isto afinal?” Esta
pode ser uma boa pergunta filosófica – se entendemos a filosofia como um diálogo que resolve problemas e que
prepara um futuro melhor, toda discussão filosófica precisa ser útil para a vida humana. Darei alguns exemplos:

(a) Pensar de modo não-metafísico nos ajuda a não confundir nossos conceitos com a realidade que eles tentam

explicar. Posso descrever Deus de várias maneiras, mas Deus não muda porque nossos conceitos sobre ele
mudam. Posso descrever Deus de várias maneiras, mas nenhuma delas será uma descrição perfeita de Deus –
que não pode ser perfeitamente e plenamente conhecido e descrito por nenhum ser humano. Em outras palavras,
nós podemos ler criticamente as obras teológicas, os testemunhos de vida, as confissões de fé das igrejas e até
mesmo a própria Bíblia. Ler criticamente não significa ler contra, mas ler com discernimento, procurando entender
o que se está dizendo e quais são os critérios de validade do que se está dizendo (você não se lembra daquele
verso de II Pedro em que o apóstolo fala que algumas pessoas chegaram a distorcer o sentido das cartas de Paulo
porque nelas havia passagens difíceis? Essas pessoas leram acriticamente, sem discernimento);

(b) Pensar de modo não-metafísico nos ajuda a não separar a reflexão da ação, a teoria da prática, a linguagem

das relações pessoais. Somente construímos conhecimento válido e útil mediante o diálogo crítico e honesto a
respeito da realidade em que vivemos. Uma situação concreta que pode ser refletida a partir deste conceito é a da
pregação, por exemplo. É costume das igrejas que a pregação não seja discutida, debatida pela audiência e que
nem mesmo seja discutida pelo pregador durante a sua preparação. Não há nada na Bíblia que ensine que deve
ser assim, este é um costume eclesiástico. Por que não mudar, se aprendemos melhor e construímos melhores
conhecimentos no diálogo uns com os outros?;

(c) Pensar de modo não-metafísico nos ajuda a ter critérios para discernir criticamente as idéias e as falas de

outras pessoas. Por exemplo, se alguém nos fala a respeito de si mesmo, de suas vivências ou intenções, o
critério de validade do que ela fala é o da sinceridade, da honestidade (sinceridade significa que as ações
da pessoa são coerentes com a fala da pessoa sobre si mesma). Se alguém fala a respeito da sociedade, o critério
de validade é o da justiça (justiça social), neste caso, significa que as decisões e normas sobre a sociedade terão
de ser boas para todas as pessoas envolvidas, e não só para algumas. Se alguém fala a respeito de alguma
coisa do “mundo sensível”, o critério de validade é o da objetividade (a objetividade significa que se alguém fala
que “está chovendo hoje” a sua fala só é válida se efetivamente estiver chovendo hoje). Em outras palavras, não
precisamos aceitar passivamente tudo o que nos dizem. Uma situação concreta, como exemplo. Você fica doente
e vai a um médico. É comum que o médico nos atenda rapidamente e, depois de um breve exame (se suficiente),
nos diga o que temos e que devemos fazer para curar a doença. Acreditamos que um médico sabe o que faz e
aceitamos passivamente o que ele nos diz. Mas não precisa (e nem deveria) ser assim. Podemos dialogar com
o médico, pedir explicações sobre a doença, sobre o tratamento, sobre os remédios prescritos e, se acharmos
necessário, podemos consultar outro médico e comparar as suas opiniões sobre nossa doença. E isso é bem
melhor do que acreditar nos “médicos” leigos que nos receitam remédios que “deram certo” para eles. Como posso
comprovar a validade objetiva da “receita” dada por um conhecido que ficou doente e tomou um determinado
remédio? Pode ter dado certo para ele, mas isso não significa que dará certo para todas as pessoas que têm
uma doença parecida (ou igual);

(d) Por fim, aprendemos que as palavras não têm sempre o mesmo significado. O significado das palavras

depende do ato de fala em que elas estão sendo usadas. Para sermos mais exatos ainda, o significado depende
do “jogo de linguagem” em que a palavra é usada. Jogo de linguagem é expressão criada pelo filósofo Ludwig
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11/02/2022 18:37 Aulas
Wittgenstein, que mostrou que na comunicação humana nós seguimos regras (como num jogo), e que regras
diferentes são usadas em diferentes situações de comunicação (diferentes jogos de linguagem). “Condição de
sucesso”, por exemplo, em um jogo de linguagem não filosófico, poderia significar algo como “para que você
consiga fazer bem alguma coisa é necessário que...”. Na terminologia técnica de Habermas, porém, em seu jogo
filosófico de linguagem, “condição de sucesso” significa algo bem diferente, como vimos acima. Isto nos ajuda a
não mais confundir a “alma” de Platão com a “alma” da Bíblia; ou o “Espírito” de Hegel com o “Espírito” de Deus. A
mesma palavra, usada em diferentes jogos de linguagem, tem significados bem diferentes – e até antagônicos,
como é o caso destes exemplos em particular.

NOTAS

1 RORTY, Richard. The Linguistic Turn. Recent Essays in Philosophical Method. Chicago: Chicago University
Press,1967, p. 3.

Aula 6 - Conhecimento Verdadeiro: racionalismo e pensamento fundacional moderno

Objetivo: Apresentar brevemente o pensamento de René Descartes e do racionalismo moderno, bem


como expor criticamente o pensamento fundacional moderno.

No texto anterior estudamos os principais aspectos de uma descrição filosófica da linguagem. Vimos que todo o
nosso conhecimento sobre o mundo (objetivo, social e pessoal) é mediado pela linguagem, de modo que não
pode existir conhecimento sem diálogo, sem relações interpessoais. Neste texto nossa discussão terá como foco
a validade dos nossos conhecimentos. Tentaremos responder a duas perguntas principais: quem conhece? Como
sabemos que o conhecimento é verdadeiro?

O RACIONALISMO FILOSÓFICO E A BUSCA DA VERDADE

Você se lembra do que tenho chamado de o modo metafísico/fundacional de fazer filosofia, não é? Lembra-se do
exemplo que dei de um filósofo metafísico, Platão, e sua descrição da realidade (dividiu a realidade em dois
mundos: sensível vs. inteligível). Agora começarei com outro exemplo de um filósofo metafísico/fundacional,
chamado René Descartes (francês, viveu entre 1596 e 1650). Descartes é considerado como o fundador da
filosofia moderna (modernidade é o nome que se costuma dar ao período da história ocidental que vai de cerca de
1500 a 1950) e, a partir de seus escritos, a discussão sobre o conhecimento se tornou a principal discussão
filosófica da modernidade.

A frase que tornou Descartes célebre, e que é conhecida até por pessoas
que nunca estudaram filosofia, é “penso, logo sou” (em latim, cogito, ergo
sum). Esta frase é o resumo de uma longa trajetória intelectual, o fruto de
uma cuidadosa e ampla busca de Descartes para chegar ao conhecimento
verdadeiro, isento de quaisquer falhas. Nessa trajetória, Descartes
estabeleceu as bases do que se costuma chamar de racionalismo, ou seja,
a corrente filosófica que subordina todo conhecimento verdadeiro ao uso
adequado e exclusivo da razão. Mas qual foi essa trajetória afinal?
Preocupado com o problema do ceticismo (corrente filosófica que nega a
possibilidade de existir

https://ead1.fuv.edu.br/mod/book/tool/print/index.php?id=9003 15/3
11/02/2022 18:37 Aulas
conhecimento seguro e verdadeiro), Descartes se esforçou por demonstrar como se dá o conhecimento
verdadeiro e isento de dúvidas. Fez isso a partir da aplicação de um método racional: a dúvida metódica.
Descartes colocou em dúvida o conhecimento que vem dos sentidos, colocou em dúvida o conhecimento que
vem da mente e, por fim colocou em dúvida o conhecimento matemático. Ainda não satisfeito, inventou a
possibilidade de um gênio maligno enganar o ser humano que busca o conhecimento. Concluiu, por fim, que em
todo esse processo uma coisa permanece imutável: o ato de duvidar ou, melhor ainda, o ato de pensar.

Achou, assim, o fundamento da verdade – a certeza derivada do pensamento. Porque sou capaz de pensar e
efetivamente penso sobre o meu conhecimento (sobre os meus próprios pensamentos), posso chegar a uma
certeza absoluta – certeza que é uma espécie de intuição intelectual, uma certeza que não precisa ser provada
por evidências externas ao pensamento, pois é algo imediato, uma certeza auto-evidente. A partir desse critério
inabalável de conhecimento verdadeiro, Descartes propôs, inclusive, uma “prova da existência de Deus”,
conhecida como argumento ontológico (a palavra vem do idioma grego: ontos quer dizer “ser”, ontológico é o
argumento relativo ao ser). Com Descartes temos, também, a primeira versão do teísmo moderno – uma
reformulação do teísmo clássico de Aristóteles (lembra-se dele? Um dos três fundadores da filosofia em tom
metafísico?) - o argumento “ontológico” de Aristóteles era mais ou menos assim: tudo no mundo se move, e se
tudo se move algo deve ser fixo para que possamos conhecer e viver bem, logo, deve haver um motor (algo que
faz mover) que seja imóvel – e que seja a causa (não- causada) de todas as causas. Um importante teólogo
medieval, Anselmo (c. 1033-1109) também desenvolveu um argumento ontológico para “provar” a existência de
Deus, argumento que foi retomado por Descartes.

Colin Brown resumiu assim o argumento ontológico:

“De um lado, a ideia de si mesmo como ser finito subentendia a existência de um ser infinito. Do outro lado, a

própria ideia de um Ser Perfeito (como no argumento de Anselmo) subentendia a existência dele.”1

Podemos sintetizar toda a filosofia moderna como um grande movimento intelectual que, com diversas tendências
e formas, tem um ponto central em comum: o fundamento de todo conhecimento verdadeiro passa a ser o próprio
ser humano. Podemos falar da filosofia moderna como um conjunto de tendências filosóficas antropocêntricas,
que se desenvolveu em oposição à filosofia medieval que era teocêntrica.

Vejamos, resumidamente, outros exemplos de


filósofos modernos.

Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) teve como


ponto de partida a dúvida, como Descartes, mas sua
resposta foi diferente. Para ele, o fundamento do
conhecimento verdadeiro não era a certeza, mas a
sinceridade do coração.
Só a sinceridade do coração é que permitiria o

funcionamento da certeza. Por isso, Rousseau foi um dos pioneiros no campo da


filosofia da educação, pois para ele as crianças eram puras, de coração sincero. A
má educação social é que
desfigurava a pureza original das crianças.

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11/02/2022 18:37 Aulas

David Hume (1711-1776) e John Locke (1632-1704) foram os pais do Empirismo (palavra que deriva do grego
empiria, experiência) que, contrário a Descartes, afirmava que todo conhecimento verdadeiro nasce da experiência
dos sentidos, não existindo certezas imediatas – somente o conhecimento provado pela experiência pode ser
considerado verdadeiro.

Immanuel Kant (1724-1804), talvez o maior filósofo moderno, é conhecido como o pai do Iluminismo (vem do latim
lumina, luz), que é uma síntese das posições antagônicas do racionalismo cartesiano/rousseauniano e do
empirismo. Para Kant, o conhecimento nasce da experiência dos sentidos, mas se concretiza mediante o
trabalho da razão, que dá forma ao conhecimento informe (sem forma) que vem da experiência sensória.

UMA CRÍTICA FILOSÓFICA AO PENSAMENTO FUNDACIONAL MODERNO

O problema central de toda a epistemologia (termo técnico derivado do grego, que se refere à “teoria do
conhecimento”) moderna é que o seu fundamento da verdade (o sujeito) não é tão confiável assim. Os chamados
“pensadores da suspeita” demonstraram a fragilidade da pessoa humana (o sujeito) como fundamento do
conhecimento. Darwin, um biólogo, com a sua teoria da evolução colocou em xeque o subjetivismo moderno, pois
se o ser humano não é radicalmente diferente dos demais seres que existem no mundo, por que deveria ele ter um
estatuto tão especial assim? Freud, pai da psicanálise, constatou que as nossas certezas intelectuais e morais não
eram tão seguras assim, pois poderiam estar apenas encobrindo desejos mais profundos reprimidos por vários
fatores de ordem emocional e interpessoal. Marx, um economista, desvendou as ilusões do sistema capitalista,
mostrando que nosso aparentemente verdadeiro conhecimento sobre a sociedade poderia estar enganado. Mas
foi Friedrich Nietzsche (1844- 1900) quem, no campo da filosofia, produziu o maior ataque contra a ideia moderna
de sujeito como fundamento da verdade e foi um dos precursores da virada linguística.

Vejamos uma síntese da posição de Nietzsche:

Ele toma como pressuposto que a linguagem se desenvolve à medida que o homem deixa de ser guerreiro,
selvagem, e passa a viver em uma situação de paz, em comunidade. Vivendo socialmente, o homem cria a
linguagem. A linguagem constitui-se de modo tal que, pela própria estrutura de suas regras gramaticais, seus
usuários operam, obrigatoriamente, com o modelo que leva os enunciados (aquilo que falamos) a mostrar
um sujeito que desempenha uma ação. O sujeito, segundo tal relato, não é uma estrutura ontológico-
metafísica. Ele é, sim, apenas e tão-somente uma estrutura lingüística, um elemento de comunicação que se
desenvolve pelo imperativo da vida gregária (em um local fixo). Mas no decorrer do uso da linguagem, o
homem, cada vez mais, substancializa metafisicamente tal elemento linguístico. Passa a acreditar que o

sujeito é uma entidade ontológica.2

Já mencionei que Nietzsche é um filósofo que criticou fortemente o Cristianismo e desenvolveu um forte argumento
pelo ateísmo. Não precisamos concordar com sua visão da religião, mas não deveríamos permitir que essa
discordância nos impedisse de perceber o valor de sua crítica às diversas formas de subjetivismo moderno
(racionalista, empirista, iluminista, etc.). Deveríamos, como cristãos, também perceber a ajuda que a crítica de
Nietzsche ao racionalismo acaba, sem querer, oferecendo ao pensamento cristão. Seguindo a antropologia*
bíblica, sabemos que o ser humano é pecador, e que o pecado afeta não só a vida moral, mas também a vida
intelectual do ser humano. Como pode, então, um sujeito finito e pecador ser a base, o fundamento de toda certeza
e conhecimento verdadeiro? Como pode, por exemplo, o conhecimento verdadeiro ser baseado na sinceridade do

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11/02/2022 18:37 Aulas
coração se com a Bíblia aprendemos que “enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e perverso; quem
o poderá conhecer?” (Jr 17.9)? Como pode, por exemplo, o conhecimento verdadeiro ser baseado no
comportamento moral do ser humano (como diria Kant), se com a Bíblia sabemos que “do céu é revelada a ira de
Deus contra toda a impiedade e injustiça dos homens que detêm a verdade em injustiça” (Rm 1.18)? Enfim,
como podemos afirmar a existência de um conhecimento pleno e absolutamente verdadeiro se “agora vemos
como por espelho, em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei
plenamente, como também sou plenamente conhecido” (I Co 13.12)?

Na próxima aula continuaremos esta conversa. Enquanto isso, releia o texto cuidadosamente e reflita sobre o
exposto.

NOTAS

1 BROWN, Colin. Filosofia e Fé Cristã. Um esboço histórico desde a Idade Média até o Presente. São Paulo: Vida
Nova, 1983 , p. 39.

2 GHIRALDELLI Jr., Paulo. Caminhos da Filosofia. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2005, p. 61. Grifos do autor.
Explicações em parênteses são acréscimos meus.

Aula 7 - Conhecimento Verdadeiro: Conhecimento X Crenças

Objetivo: Mostrar que o conhecimento se dá por meio da validação intersubjetiva das nossas crenças.

Podemos concordar com a crítica dos pensadores da suspeita ao sujeito metafísico e fundacional da filosofia
moderna. De fato, quem conhece é o ser humano em diálogo com outros seres humanos. Não se trata de negar o
caráter pessoal do conhecimento, nem de eliminar o sujeito do saber, mas de destacar o fato concreto e inegável
de que produzimos saberes e ações sempre em diálogo com outros sujeitos. Não precisamos concordar com tudo
o que pensaram, mas faríamos bem em valorizar a sua crítica ao fundacionalismo e subjetivismo metafísico
moderno. Mas, se é assim, como podemos, então, saber se nossos conhecimentos são verdadeiros?

Vamos chamar, daqui para frente, nossos conhecimentos de crenças (este é o termo preferido por vários filósofos
pós-fundacionais

– já mencionei que não tem o sentido exclusivo de crença “religiosa”). Uma crença é verdadeira se ela for bem
justificada, ou seja, se ela for capaz de convencer pessoas de que ela é verdadeira; se tiver bons argumentos
que a justifiquem. Vimos, acima, como o fundacionismo moderno justificava as crenças – uma crença é verdadeira
se o sujeito que produz a crença a formula racionalmente e subjetivamente. A partir dessa noção moderna,
poderíamos descrever quatro grandes tipos de crenças:

(1) As crenças derivadas do senso comum, ou seja, do conhecimento cotidiano das pessoas. As crenças do senso

comum, segundo o fundacionismo, teriam pouca possibilidade de verdade, pois não são formuladas nem
mediante a certeza intelectual, nem mediante a pesquisa empírica. Quando eu era menino, minha avó me dizia
que não podia tomar leite depois de comer manga, pois poderia ficar doente. Ela também dizia que depois de
comer não poderia ler. Essas crenças são crenças do senso comum e hoje em dia já foi demonstrado que são
falsas.

(2) As crenças derivadas do compromisso religioso que podem ter origem em algum tipo de revelação divina.

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11/02/2022 18:37 Aulas
Segundo o fundacionismo moderno, tais crenças também teriam pouca possibilidade de justificação,
especialmente porque não eram produzidas pelo sujeito pensante, mas por uma autoridade fora do mundo, fora
do sujeito, e que impediria a autonomia, a maioridade do sujeito.

(3) As crenças derivadas da experimentação científica, que teriam um alto grau de validade e verdade, pois eram

comprovadas não só pelo sujeito, mas pela repetição das ocorrências estudadas e pela comprovação de que as
leis cientificamente formuladas efetivamente explicavam a realidade e podiam prever o comportamento futuro dos
objetos estudados.

(4) As crenças derivadas da argumentação filosófica, que teriam ainda um mais alto grau de validade, pois que

seriam comprovadas pela certeza racional, a qual mostraria, sem sombra de dúvida, que aquilo que pensamos
corretamente corresponde efetivamente ao que acontece no mundo.

A visão fundacional/metafísica do conhecimento verdadeiro, nas suas mais variadas tendências, tem em comum a
teoria da verdade como correspondência – é verdadeira a crença na qual existe uma correspondência (uma
adequação) entre a crença e o objeto da crença. Já critiquei essa posição numa aula anterior, aproveitando a
crítica de Habermas às teorias do significado no século XX. De fato, não é possível provar que haja tal
correspondência entre uma crença e um objeto no mundo. E não é possível porque todas as nossas crenças são
crenças linguageiras (feitas de linguagem, como vimos no texto anterior). Podemos dizer que “entre” a crença e o
objeto da crença (deuses, cavalos, futebol, moda, saúde, etc.) existe a mediação inevitável da linguagem. Todas as
crenças humanas são linguageiramente constituídas. Dessa forma, a distinção hierárquica das crenças, feita pelo
fundacionismo metafísico não tem o valor que os fundacionistas lhe atribuem. As crenças derivadas do senso
comum, do compromisso religioso, da experimentação científica e da argumentação filosófica – todas elas,
igualmente – são formuladas mediante a linguagem e só podem ser justificadas mediante a linguagem.

A imaginada correspondência entre crença e objeto é melhor formulada como um acordo intersubjetivo a respeito
de coisas e situações que existem no mundo. Não há correspondência direta, mas mediada entre a crença e o
objeto. E isso vale inclusive para as crenças científicas, que também são formuladas linguageiramente. Uma
crença é cientificamente verdadeira quando é validada mediante o acordo intersubjetivo de cientistas
especializados em um determinado campo da ciência. Uma crença é filosoficamente verdadeira quando é validada
mediante o acordo intersubjetivo de filósofos que estudam um mesmo objeto. E assim vale para os demais tipos de
conhecimento. Não precisamos, então, por um lado, cair em um tipo de absolutismo da verdade racional, pois
sabemos que a verdade racionalmente elaborada (argumentativamente ou cientificamente) pode ser alterada
mediante novas

formulações do acordo intersubjetivo de cientistas, filósofos, etc. Não precisamos, por outro lado, cair no ceticismo,
pois a validação intersubjetiva das nossas crenças é capaz de mostrar que a dúvida cética é inadequada, é
desnecessária – pois o ceticismo só se justifica se acreditamos que existam verdades absolutas, fundamentadas
em algo que esteja “fora” dos limites do tempo e do espaço (seja um deus, seja um motor imóvel, seja o sujeito
pensante, etc.).

Na próxima aula continuaremos a nossa conversa falando sobre as diferenças entre contextualismo e relativismo.

Aula 8 - Conhecimento Verdadeiro: Contextualismo e Relativismo

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Objetivo: Mostrar as diferenças entre contextualismo e relativismo e debater a questão da justificação do
conhecimento e sua relevância para a fé cristã a partir do pensamento de Richard Rorty.

Uma consequência clara da concepção pós-fundacional de conhecimento verdadeiro é que todo conhecimento
verdadeiro (bem justificado) é justificado por pessoas no tempo e no espaço. Em outras palavras, todo nosso
conhecimento é contextual. A afirmação de que não existe conhecimento absoluto não é a mesma coisa de que a
afirmação do relativismo. Relativismo é o nome que se costuma dar a um tipo de ceticismo, uma forma de
descrever o conhecimento como algo que somente é válido dentro de limites muito estreitos. Na prática, ser
relativista significaria afirmar que não há conhecimentos verdadeiros que possam orientar a vida humana, seja no
plano intelectual, seja no moral, seja no religioso. Contextualismo não é relativismo. O contextualismo reconhece e
afirma os limites do conhecimento verdadeiro, mas não nega a existência de conhecimento verdadeiro, nem
diminui a validade do conhecimento bem justificado. Donald Davidson (1917-2003), importante filósofo
estadunidense, afirmava a racionalidade (e, por extensão, a validade) da maioria de nossas crenças.

Jürgen Habermas enfatiza o caráter temporal dos acordos intersubjetivos e nos lembra de que não duvidamos da
maioria de nossas crenças porque (1) elas funcionam efetivamente no dia-a-dia, e (2) porque há um movimento
circular entre os acordos do senso comum e os acordos científicos e filosóficos, de tal modo que um tipo de
conhecimento alimenta os demais e vão, assim, produzindo conhecimentos que nos dão segurança quanto à sua
validade.

Um exemplo bem prático: quando você liga um aparelho de televisão não duvida de que esse aparelho irá
funcionar, não precisa discutir a relatividade do funcionamento do aparelho, pois a experiência cotidiana de
gerações e o desenvolvimento tecnológico da indústria de aparelhos eletrônicos gera um amplo acordo
intersubjetivo sobre a validade das crenças envolvidas no fazer e assistir televisão. É claro que um aparelho
poderá apresentar defeitos, mas esses defeitos não anulam a confiança no conhecimento amplo que tem a ver
com a indústria televisiva. Este exemplo também nos ajudará a formular melhor a distinção entre os tipos de
conhecimento. Podemos, na tradição da filosofia pragmatista, dizer que há apenas dois tipos de conhecimento: o
científico e o não- científico. O que diferencia um do outro?

O conhecimento é científico quando a sua finalidade e o seu resultado são crenças capazes de predizer o
comportamento ou o funcionamento de determinados objetos ou situações. O conhecimento é não-científico
quando não é capaz de fazer esse tipo de predições. O conhecimento é científico quando atende interesses de
ordem técnica, ligados à dimensão objetiva do mundo. É não- científico quando atende interesses de ordem
humana, ligados às dimensões pessoal e social do mundo. E, em uma visão contextualista, não há hierarquia de
verdade entre os tipos de conhecimento. A validade de uma crença está ligada à sua capacidade de resolver
problemas concretos da vida. Conhecimento científico e não-científico são igualmente válidos, dentro dos seus
respectivos limites, na medida em que atendem a diferentes necessidades e resolvem diferentes tipos de
problemas. Isto nos ajuda, por exemplo, a superar as soluções ruins para a relação entre ciência e fé. No
fundacionismo, ou a ciência é verdadeira ou a fé é verdadeira – as duas não podem ser verdadeiras ao mesmo
tempo. No contextualismo de estilo pragmatista, crenças científicas e crenças religiosas podem ser igualmente
verdadeiras, pois cada uma delas atende a diferentes interesses e necessidades humanas (no texto oito
trataremos mais detalhadamente a questão da filosofia da religião).

O contextualismo também nos ajuda a estabelecer os limites da filosofia no mundo contemporâneo:

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Desvestida de reivindicações fundacionalistas, e com uma sensibilidade falibilista, ela entra em cooperação
com outras ciências. Frequentemente, a filosofia serve somente como uma guardiã contra teorias empíricas
com abordagens fortemente universalistas. Como as ciências, a filosofia continua a focar nas questões da
verdade; diferentemente delas, porém, ela mantém uma conexão intrínseca com a lei, a moralidade e a arte.
Ela investiga questões normativas e avaliativas a partir da perspectiva interna desses mesmos domínios. Ao
assumir seriamente a lógica das questões de justiça, ou gosto; ao reconhecer a estrutura dos sentimentos
morais e experiências estéticas, ela preserva a habilidade única de mudar de um discurso para outro e de

traduzir de um idioma especializado para outro.1

A filosofia pós fundacional se torna, então, em um discurso dialogal e mediador entre outros tipos de discurso.
Habermas destacou os discursos científico, legal, moral e estético. Podemos acrescentar o discurso religioso. A
filosofia ajuda a validar conhecimentos verdadeiros e a traduzir os conhecimentos válidos, produzidos em
diferentes campos do saber e agir humanos, para outros campos do saber e do agir humano. Prestemos atenção
em alguns detalhes do texto de Habermas:

(1) A filosofia precisa ter uma “sensibilidade falibilista” – a falibilismo é o reconhecimento de que nossos acordos

intersubjetivos podem ser melhorados, ampliados, reformulados. Logo, a filosofia que tem sensibilidade falibilista
reconhece que as suas descrições da realidade não são a última palavra sobre a realidade (e o mesmo deve
valer para qualquer tipo de conhecimento humanamente produzido);

(2) “teorias empíricas com abordagens fortemente universalistas” são as teorias científicas (formuladas a partir de

experiências concretas sobre objetos específicos dentro de condições específicas) que fazem com que os
conhecimentos locais elaborados metodicamente sejam aceitos como tendo valor universal (válido para todo o
sempre, em todos os lugares, e para todos os âmbitos do saber). Contra tais tipos de teoria a filosofia pode nos
ajudar – mostrando seus limites (todo saber científico é contextual). Por exemplo, as teorias da evolução têm valor
exclusivamente dentro dos limites do objeto que tentam explicar e devem ser validadas ou não-validadas a
partir de argumentação legítima dentro desses limites. Teorias de evolução não podem ser extrapoladas para
provar a inexistência de deus, por exemplo; nem para negar a crença de que um deus criou o mundo. Por outro
lado, crenças religiosas na criação do mundo por deus não deveriam ser usadas para negar a validade das teorias
da evolução de espécies, enquanto essas teorias permanecem como teorias específicas sobre como as espécies
animais e vegetais se tornaram o que são na atualidade;

(3) A filosofia é um tipo de saber dialogal e mediador. Diferentemente do racionalismo cartesiano, por exemplo, que

afirmava o conhecimento filosófico independente de quaisquer outros conhecimentos, a filosofia pós-metafísica


reconhece que precisa dialogar com outros tipos de saberes. Reconhece que as ciências, a lei, a moralidade, as
artes, o senso comum e as religiões produzem crenças próprias com as quais a filosofia irá dialogar a fim de
construir as suas próprias crenças. A partir desse diálogo, filósofos também se tornarão capazes de colocar em
diálogo crenças científicas com crenças morais, crenças morais com crenças religiosas, etc. Em um mundo
globalizado como o nosso, em que há um volume imenso de crenças nos diversos campos do saber humano,
precisamos compreender as crenças uns dos outros e tentar chegar a acordos intersubjetivos (sejam pessoais,
sejam institucionais, sejam nacionais) que nos ajudem a viver melhor no planeta ameaçado de devastação
ecológica, ameaçado por fundamentalismos religiosos terroristas, ameaçado por nacionalismos violentos,
ameaçado pela ganância infinda de pessoas e corporações empresariais, etc.

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Vejamos como Rorty define os limites do conhecimento filosófico:

A meu modo de ver, nestes tempos, nosso principal trabalho consiste em contribuir para o convencimento dos
cidadãos das comunidades democráticas, de que eles não conseguirão obter melhor orientação política de
cientistas e tecnólogos do que a que, no passado, obtiveram de sacerdotes e filósofos. Devemos tentar
convencê-los de que as metas de sua comunidade não podem ser fixadas nem pela ‘realidade’, nem pelos
pretensos experts em realidade (e, em particular, convencê-los de que estes não são mais dignos de crédito do
que os experts em Deus ou no Ser). Devemos dizer-lhes, no espírito da ‘razão comunicativa’ de Habermas,

que não necessitam respeitar outra autoridade além da dos acordos que eles mesmos construam livremente.2

Com esta citação voltamos à questão do conhecimento verdadeiro, ou seja, bem justificado. Note como Rorty
contextualiza a sua fala: “cidadãos das comunidades democráticas”. O grande desafio se torna, então, formular
acordos com números cada vez mais crescentes de pessoas e grupos sociais. O diálogo amplo, com liberdade
democrática, respeito aos participantes, e interesse genuíno em melhorar a vida, se torna o meio principal de
formulação de crenças válidas e verdadeiras nos mais variados campos do saber e agir humanos. Nesse diálogo,
especialistas de várias áreas poderão contribuir, mas a sua palavra de experts não poderá ter maior valor do que a
palavra de não-especialistas. Os acordos não podem ser dominados por nenhum tipo de elite do saber – seja
política, econômica, científica, religiosa, etc. A capacidade de produzir crenças verdadeiras é uma capacidade de
todo ser humano e exige, então, amplo diálogo e inclusão social. E isso se faz urgente ainda mais no campo das
decisões políticas e econômicas, que não podem ser deixadas nas mãos de um pequeno grupo de “especialistas”
(políticos, economistas, cientistas sociais, etc.), mas devem ser tomadas pelo maior número possível de cidadãs e
cidadãos em países democráticos.

NOTAS

1 HABERMAS, Jürgen . “The relationship between theory and practice revisited”. Truth and justification.Cambridge:
MIT Press, 2003, p. 286.

2 RORTY, Richard . “La contingencia de los problemas filosóficos: Michael Ayers en torno a Locke”. Verdad y
Progreso. Escritos filosóficos. Barcelona: Paidós, 2000, p. 318.

Aula 9: Um diálogo entre fé cristã e filosofia

Objetivo: Fazer uma breve reflexão sobre a consequência da visão pós-fundacional para a evangelização.

Faremos uma breve reflexão sobre uma consequência


prática da visão pós-fundacional do conhecimento para a
evangelização. Faço isto em conversação com uma
especialista em ministério evangelístico, Rebecca Pippert,

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também conhecida como Becky Pippert:

A forma com que nos comunicamos é tão importante


quanto aquilo que comunicamos. Na verdade, as duas
coisas não podem ser separadas. Nosso estilo e nossa
atitude mostram conteúdo da mesma forma que nossas
palavras. Se nossas atitudes nos apresentarem como
pessoas embaraçadas e grandes defensores
de nossas ideias, o que provavelmente acontecerá é que o não-cristão com quem estamos conversando
adotará a mesma postura. Se supusermos que eles ficarão absolutamente fascinados ao descobrir a
verdadeira natureza do cristianismo, provavelmente ficarão mesmo. Se esbanjarmos entusiasmo, em vez de
ações defensivas, e se ouvirmos atentamente, em vez de parecer um aparelho de som tocando o disco:
“Respostas às perguntas que você nunca fez”, os não-cristãos ficarão curiosos. [...] Deveríamos falar com os
não-cristãos do mesmo modo que falamos com cristãos. Em várias situações deveríamos ser capazes de
contar as experiências e pensamentos para ambos os grupos. Isso evita que tenhamos uma mentalidade do
tipo ‘nós e eles’. Não devemos pensar que nossos amigos não-cristãos não estão interessados em nosso lado
espiritual. Precisamos convidá-los para entrar em nossa vida, para compartilhar daquilo que temos e se alegrar
com aquilo que nos alegra. Não devemos agir como superiores por conhecer a Deus ou ter mais
informações sobre ele. Em vez disso, alguém

já disse que devemos ser ‘mendigos que contam a outros mendigos onde se pode encontrar comida’.1

Se desejamos que mais pessoas aceitem como válidas as nossas crenças cristãs, precisamos aprender a
comunicar o Evangelho de forma cada vez mais dialogal, cada vez mais inclusiva e, consequentemente, cada
vez menos manipuladora, emocionalista e redutora. Precisamos aprender com o Apóstolo Paulo, quando este
afirmou que “não somos falsificadores da palavra de Deus, como tantos outros; mas é com sinceridade, é da parte
de Deus e na presença do próprio Deus que, em Cristo, falamos” (2Co 2.17).

NOTAS

1 PIPPERT, Rebecca M. Evangelismo Natural. Um novo estilo de comunicar sua fé. São Paulo: Mundo Cristão,
1999, pp. 136, 138-139.

Aula 10 - A Mente e o Corpo Humano: monismo anômalo e fé cristã

Objetivo: Apresentar a perspectiva de Donald Davidson a respeito do ser humano e discutir sua contribuição para
a fé cristã.

Donald Davidson formulou uma alternativa ao monismo e ao dualismo, a qual ele deu o nome de monismo

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anômalo (que tem uma anomalia, um defeito, uma impropriedade). Segundo Davidson, só há uma substância na
realidade, a que chamamos de material – e que ele não se preocupa em definir. Na descrição davidsoniana do ser
humano, a mente não é uma substância mas apenas o nome que damos às propriedades mentais que também
podem ser chamadas de eventos mentais à medida em que acontecem constantemente – e são descritos pela
biologia como acontecimentos cerebrais, logo, corpóreos. Assim, para Davidson, os eventos mentais são
simultaneamente eventos físicos, mas os eventos mentais não são idênticos aos eventos físicos (no tocante ao ser
humano, todos os eventos são corpóreos, tanto os mentais quanto os físicos). Em que se diferenciam os eventos
mentais dos físicos?

Eventos físicos (andar, correr, esmurrar, espirrar, etc.) mantêm relações causais que podem ser descritos
mediante leis naturais (científicas) que nos ajudam a prever tais tipos de eventos. Vejamos um exemplo bem
simples: se você andar, irá percorrer uma determinada distância mas, se você correr, irá percorrer a mesma
distância em um tempo menor. Os eventos mentais, por outro lado, não podem ser descritos mediante leis de
tipo científico – ou seja, não podemos prever os efeitos dos eventos mentais, da

mesma forma que podemos prever os efeitos causados por eventos físicos. Outro exemplo simples: se uma
pessoa se apaixona (um evento mental) por outra, o normal é que procure a outra pessoa, declare-se a ela e
procure estabelecer um relacionamento. Entretanto, nem todas as pessoas que se apaixonam fazem isso – não há
leis mentais, psicológicas ou mesmo psicofísicas que possam descrever a relação ente eventos mentais e físicos
de forma causal. Essa é a anomalia do monismo anômalo de Davidson: eventos mentais e físicos são corpóreos,
mas não podem ser descritos igualmente, mediante leis de tipo científico. Como explicamos então os eventos
mentais? Os eventos mentais, segundo Davidson, somente podem ser explicados mediante razões – só
podemos explicar eventos mentais dizendo o porquê desses eventos acontecerem.

Como afirma o próprio Davidson:

“explicar através de razões evita termos de lidar com a complexidade dos fatores causais, destacando apenas
um deles, algo que é possível fazer quando deixamos de prover, dentro da teoria, um teste claro de quando

as condições antecedentes se sustentam.”1

Dou novamente a palavra a Davidson para que ele mesmo explique o que entende por razões:

Uma razão torna racional uma ação somente se nos conduz a ver algo que o agente viu, ou pensou que viu,
em sua ação -- alguma característica, consequência, ou aspecto da ação que o agente procurou, desejou,
considerou, valorou, tomou como dever, benefício, obrigação, ou consentimento. Não podemos explicar porque
alguém fez o que fez simplesmente contando a ação particular por ele dita. Nós devemos indicar o que houve
a respeito da ação dita por ele Qualquer indivíduo que faz algo por uma razão, então, pode ser caracterizado
como (a) alguém que tem algum tipo de predisposição em direção a ações de uma certa espécie, e (b)
alguém que acredita (ou conhece, percebe, nota, lembra) que sua ação é daquela espécie. Em (a) incluímos
desejos, vontades, necessidades, impulsos, e uma grande variedade de perspectivas morais, princípios
estéticos, preconceitos de ordem econômica, convenções sociais, metas e valores públicos e privados na
medida em que esses podem ser interpretados como disposições de um agente dirigidas para uma ação de

uma certa espécie.2

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Como, então, se relacionam eventos mentais e físicos? Segundo Davidson, sempre mediante relações causais – e
relações de duas mãos. Os eventos mentais podem causar eventos físicos: se você tem saudades de alguém, este
evento mental pode causar os eventos físicos de se levantar da sua cadeira, pegar o telefone, discar o número
daquela pessoa e conversar com ela. Por sua vez, os eventos físicos também podem causar eventos mentais:
sinto o aroma de um delicioso café (evento físico), que me causa odesejo (evento mental) de tomar um
cafezinho. Com esta descrição, Davidson evita os problemas presentes nas formas dualistas de relacionamento
mente-corpo que vimos acima (interacionismo, ocasionalismo, paralelismo e epifenomenalismo), bem como os
problemas do monismo puro – problemas presentes não só em filosofia, mas também em certas descrições da
realidade feita por cientistas da área da física ou da biologia. Por exemplo, a descrição que comumente aparece
em meios de comunicação de que um determinado gene provoca diretamente um determinado efeito mental, de
modo que se poderia estabelecer uma lei científica depredição dos efeitos mentais de eventos físicos de tipo
genético. Em outras palavras, a descrição de Davidson não comete o erro do reducionismo (reduzir propriedades
mentais a propriedades físicas). Por isso, a posição de Davidson sobre o ser humano também é chamada de
fisicalismonão-redutivo.

Com esta descrição, Davidson também é capaz de ampliar os argumentos que justificam as descrições não-
fundacionais do conhecimento, as de tipo contextualista(como vimos no texto anterior). Segundo Davidson, todas
as nossas crenças – acerca de nós mesmos, acerca de outras pessoas e acerca do mundo, ocorrem em uma
espécie de triangulação permanente – de modo que não podemos afirmar que as crenças acerca de nós mesmos
tenham um caráter especial, privado, que só nós mesmos sabemos, ao invés do caráter público das crenças
sobre outras pessoas e sobre o mundo. Isso porque, como seres corpóreos e linguageiros, todas as nossas
crenças são construídas mediante o diálogo com outras pessoas, no tempo e no espaço. Até mesmo as crenças
que eu tenho acerca de mim mesmo são construídas intersubjetivamente – fato que a psicologia social e a
sociologia têm demonstrado com força e freqüência.

Um comentarista de Davidson assim sintetiza o valor da sua descrição:

“Sua posição, como ele mesmo diz, admite um único tipo de redução: ontológica. Não há dois mundos nas
descrições que fazemos, há um mundo apenas, pois as entidades mentais, diz, não acrescentam nada à
mobília física do mundo. Mas temos de descrever tal mundo usando os termos do campo mental e os
termos do campo físico. Davidson, então, advoga um monismo ontológico e um dualismo conceptual. Se
chama seu monismo de 'monismo anômalo', assim é porque ele assegura sua tese de que não há leis

psicofísicas estritas”.3

Em uma perspectiva cristã, a filosofia deve nos ajudar a entender melhor e a descrever melhor as nossas crenças.
Como o monismo anômalo de Davidson pode nos ajudar nessa tarefa? Um tópico é o da doutrina da criação. De
acordo com Hebreus 11.3 “Pela fé entendemos que os mundos foram criados pela palavra de Deus; de modo que
o visível não foi feito daquilo que se vê”. Este verso pode ser bem explicado com a ajuda do fisicalismo não-
redutivo: tudo o que existe foi criado por Deus, que não usou nenhum material, a não ser a sua própria palavra.
Podemos chamar tudo o que existe na criação de mundo físico, que não criamos nenhum problema para a fé e a
teologia cristãs. Basta que lembremos de que tudo o que existe foi criado por Deus somente mediante a Sua
própria palavra. Uma descrição dualista do mundo exigiria que Hebreus 11.3 tivesse sido escrito de outra maneira
– teria de dizer que Deus usou alguma matéria-prima, física, já existente, para criar o mundo. Mas não é isso que
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a Bíblia nos ensina – foi a palavra de Deus (assim também Gênesis 1) que o Senhor usou para criar o mundo
“físico” - poderíamos dizer que uma substância “espiritual” foi a fonte de toda substância “física”. Só que isto
seria menos adequado do que dizer que uma substância divina foi a fonte e causa de toda substância física –
para evitarmos a confusão dualista entre “espírito” e “matéria”. Por outro lado, sabemos que o mundo não é
Deus, nem divino – somente Deus é Deus. Assim, temos um monismo ontológico de tipo anômalo.

O monismo anômalo também nos ajuda a entender melhor como Paulo pode falar da ressurreição do corpo e
afirmar que todas as pessoas que ressuscitarem com Cristo terão um corpo espiritual. Vale a pena ler esse trecho,
relativamente longo, de I Coríntios 15, versos 36-50:

Mas alguém dirá: Como ressuscitam os mortos? e com que qualidade de corpo vêm? Insensato! o que tu
semeias não é vivificado, se primeiro não morrer. E, quando semeias, não semeias o corpo que há de nascer,
mas o simples grão, como o de trigo, ou o de outra qualquer semente. Mas Deus lhe dá um corpo como lhe
aprouve, e a cada uma das sementes um corpo próprio. Nem toda carne é uma mesma carne; mas uma é a
carne dos homens, outra a carne dos animais, outra a das aves e outra a dos peixes. Também há corpos
celestes e corpos terrestres, mas uma é a glória dos celestes e outra a dos terrestres. Uma é a glória do sol,
outra a glória da lua e outra a glória das estrelas; porque uma estrela difere em glória de outra estrela. Assim
também é a ressurreição, é ressuscitado em incorrupção. Semeia-se em ignomínia, é ressuscitado em glória.
Semeia-se em fraqueza, é ressuscitado em poder. Semeia-se corpo animal, é ressuscitado corpo espiritual. Se
há corpo animal, há também corpo espiritual. Assim também está escrito: O primeiro homem, Adão, tornou-
se alma vivente; o último Adão, espírito vivificante. Mas não é primeiro o espiritual, senão o animal; depois o
espiritual. O primeiro homem, sendo da terra, é terreno; o segundo homem é do céu. Qual o terreno, tais
também os terrenos; e, qual o celestial, tais também os celestiais. E, assim como trouxemos a imagem do
terreno, traremos também a imagem do celestial. Mas digo isto, irmãos, que carne e sangue não podem
herdar o reino de Deus; nem a corrupção herda a incorrupção.

O que diferencia o corpo atual do corpo ressurreto (espiritual) é que o corpo atual morre, ou seja, é corrupto. Paulo
chama esse corpo de “terreno”, pois em Gn 2 se diz que Deus criou Adão da terra. Chama, também, o corpo de
“animal” (melhor tradução seria anímico, ou seja, “de alma”, pois vem do latim anima, que traduz, a palavra
grega psiquê), porque, segundo Gn 2, Deus soprou em Adão o fôlego da vida e Adão se tornou ser vivente (a
palavra hebraica traduzida por ser é a palavra nefesh, que no grego se traduz normalmente por psiquê). O corpo
que agora temos é terreno, pois é da mesma espécie do corpo do homem terreno, do primeiro homem, Adão. O
corpo que teremos após a ressurreição será celestial, porque da mesma espécie que o corpo do homem celestial,
Jesus Cristo, e por isso, indestrutível. Por isso, Paulo pode chamar o corpo ressurreto de corpo espiritual – veja
que Paulo não tem uma visão dualista do ser humano:corpo e espírito não são diferentes substâncias que se
opõem. O ser humano é corpo e sempre será corpóreo – como é agora, será também após a ressurreição. A
diferença é que agora o corpo que temos é mortal, é “de alma”; enquanto o corpo ressurreto não mais morrerá,
será “de espírito”.

Semelhantemente, podemos evitar todos os problemas teológicos que derivam das visões dualistas do ser humano
presentes nas explicações dicotomista (o ser humano é feito de duas substâncias: corpo e alma, ou corpo e
espírito) e tricotomista (o ser humano é feito de três substâncias, corpo, alma e espírito). Dicotomia e tricotomia
são tentativas de explicar textos como I Ts 5.23: “E o próprio Deus de paz vos santifique completamente; e o vosso
espírito, e alma e corpo sejam plenamente conservados irrepreensíveis para a vinda de nosso Senhor Jesus
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Cristo.” Ao invés de substâncias, os termos corpo, alma e espírito podem ser melhor entendidos como palavras
que descrevem diferentes dimensões do ser humano: a palavra corpo, neste verso, enfatiza a dimensão corpórea
do ser humano; a palavra alma enfatiza a dimensão intelectual e emocional do ser humano; a palavra espírito
enfatiza a dimensão transcendental do ser humano – ou seja, o ser humano em sua relação com Deus. (Ah! Você
deve ter reparado que as palavras “alma” e “espírito”têm significados diferentes em I Corintios 15 e I
Tessalonicenses 5. Se você se lembra bem do texto anterior, não terá problemas com isto, pois já sabe que a
mesma palavra pode significar coisas diferentes quando usada em diferentes contextos ou em diferentes atos de
fala.)

Um último exemplo da ajuda que a descrição monista anômala pode oferecer à teologia cristã. Cremos que o Filho
de Deus se encarnou na pessoa de Jesus Cristo. Na doutrina cristológica das igrejas cristãs, se costuma afirmar
que Jesus é simultaneamente humano e divino. Não é possível eliminar todas as dúvidas, pois a encarnação é um
mistério da fé, mas o fisicalismo não-redutivo nos ajuda a perceber que não há qualquer incompatibilidade entre
Deus e o ser humano, pois este foi criado da Palavra de Deus, de modo que Deus e ser humano podem
perfeitamente conviver harmoniosamente. É claro que o fisicalismo não-redutivo não consegue explicar como,
em uma única pessoa, Jesus, a essência divina e a essência humana puderam conviver – mas nos ajuda a
perceber que não há incoerência na crença cristã da encarnação. A encarnação faz sentido e é plenamente
coerente com o conjunto das crenças cristãs.

NOTAS

1 DAVIDSON, Donald. "The Irreducibility of Psychological and Physiological Description, and of Social to Physical
Sciences". in STEVENSON, Leslie (ed.) The Study of Human Nature. Oxford: Oxford University Press, 1981, p.
324.
2 DAVIDSON, Donald. “Actions, reasons and causes” in: Essays on Actions and Events,
Oxford: Clarendon Press, 2001, p. 32. 3 GHIRALDELLI Jr., Paulo. Caminhos da Filosofia.
Rio de Janeiro. DP&A Editora, 2005, p. 43.

Agora que você concluiu a aula 10, aproveite para realizar as seguintes atividades:

Fórum 1

Atividade Dissertativa 1

Atividade Objetiva 1

Aula 11 - A vida em sociedade: descrições metafísicas

Objetivo: Apresentar a concepção metafísica da vida em sociedade a partir do pensamento platônico e da


modernidade.

Neste texto passaremos a tratar das questões filosóficas relativas à vida em sociedade, particularmente as
questões políticas. Na filosofia, política não é um termo que se refere apenas ao governo, eleições e outros
aspectos da organização estatal. Política é um termo que vem do grego polis (cidade) e originalmente significa o
“governo” da cidade, uma área do pensamento humano que se ocupava de como deveria ser a vida da cidade.
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Como a organização política fundamental não é mais a cidade, mas o Estado e a Nação, a palavra política passou
a significar o estudo das formas e meios de organização e governo da nação. A filosofia política se ocupa de
alguns temas específicos, que a fazem se diferenciar das ciências políticas em geral e da própria atuação política
em particular. Esses temas estão ligados aos grandes valores e noções que usamos para descrever a ação
política, tais como: poder, justiça, lei, formas de governo, direitos, legitimidade, identidade, utopia.

UMA DESCRIÇÃO METAFÍSICA DA VIDA EM SOCIEDADE

Iniciamos conversando sobre uma forma metafísica de pensar a política. Voltemos aos textos de Platão. Você se
lembra de que ele dividiu a realidade em dois mundos distintos: o sensível e o inteligível. Ao mundo sensível
pertencem as coisas físicas, naturais; e ao mundo inteligível as coisas ideais, tais como a alma, o conhecimento,
etc. Pois bem, em sua teoria política Platão desenvolve a sua metafísica e descreve a sociedade também de
forma hierárquica, a partir do conceito de alma. Seu objetivo era oferecer aos seus leitores uma descrição da
cidade ideal, que correspondesse, no mundo sensível, à pólis ideal do mundo inteligível. Ele divide os seres
humanos em três categorias ou classes. No topo da hierarquia estão os governantes que são as pessoas que
desenvolveram a sua sabedoria, sendo eles mesmos governados pela razão, pelo conhecimento do mundo
inteligível. Na pólis platônica o rei perfeito é um sábio, capaz de governar a cidade com a razão e
não com os desejos do mundo sensível. Abaixo dos governantes vêem os soldados ou guerreiros. Os
soldados são as pessoas que desenvolveram a coragem, sendo regidos pelo espírito (que fica abaixo da razão)
– e têm a função de proteger a cidade de todas as ameaças externas. Na base da pirâmide social (e ontológica)
estão os trabalhadores, (naquele tempo, trabalhador é um termo que se referia a trabalhadores braçais
exclusivamente) as pessoas que somente conseguiram desenvolver a virtude da moderação e, assim, se
tornaram capazes de controlar os apetites (desejos) da sua natureza sensível e, dessa forma, podem servir à
cidade.

Na visão metafísica da pólis platônica, as pessoas não poderiam subir de posição na pirâmide, pois a sua função
deveria ser a de servir à cidade com as suas virtudes específicas, de modo que a pólis fosse harmônica, forte,
perfeita. Esta forma de governo é comumente chamada de aristocrática (do grego: kratos poder e aristos
poucos, pequeno número), porque o direito de governar é

restrito a poucas pessoas (os sábios que, é claro, eram filósofos). Com variações, essa forma de conceber a vida
política está presente em diversas tendências filosóficas e ainda alimenta os sonhos de muitas pessoas e
instituições com desejos aristocráticos. Em tal cidade, a legitimidade seria definida como o exercício da sabedoria
no governo – legitimidade é um termo técnico que descreve uma forma de governo legítima, adequada, aceita.
Nela, a identidade de seus habitantes derivava da força da cidade, e se constituía no exercício das funções que
ajudassem a cidade a ser perfeita. A justiça seria a distribuição adequada das funções entre as pessoas conforme
as suas respectivas virtudes e as diferenças sociais e econômicas eram reconhecidas como justas se
correspondessem à hierarquia ontológica. A proposta de Platão pode ser chamada de utopia (do grego topos lugar
com o prefixo privativo u - sem), ou seja, uma realidade ainda não existente, que não encontrou seu lugar. Utopia,
porque a cidade ideal de Platão jamais existiu, mas serviu de combustível para muitos sonhos de poder
aristocrático e até mesmo como uma forma de legitimação da chamada democracia grega que não passava, de
fato, de uma aristocracia, na medida em que somente os cidadãos livres (somente homens) podiam participar do
governo. É claro, porém, que podemos avaliar essa utopia como negativa, na medida em que visa apenas o
favorecimento dos poucos homens capazes de viver sob o governo da razão, os filósofos platônicos.

Ao longo da história ocidental, a partir do século IV d.C., o Cristianismo se tornou a religião “oficial” do Império

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Romano e, ao chegar a Idade Média, a filosofia européia era praticamente uma subdivisão da teologia. A visão
metafísica da política passou, então, a receber uma descrição de cunho mais teológico, na qual o poder sagrado
dava sustentação ao poder profano – ou seja, o poder eclesiástico servia como legitimação do poder político. As
descrições do governo se tornaram teológicas, com propostas diversas de formas teocráticas (do grego: theós
deus e krátos poder), de modo que os reis humanos eram vistos como representantes de Deus na terra e seu
governo não poderia ser questionado, já que não se pode questionar Deus. A forma concreta de organização
política era a imperial – o domínio de um rei (imperador) sobre muitas terras e muitos povos, e a grande utopia era
a ampliação dos domínios territoriais do Império.

Na filosofia moderna, as tendências políticas construídas no tom metafísico podem ser divididas em dois
grandes tipos: as contratualistas e as dialéticas – e, em grande medida, se constituíram como formas de
oposição às visões teológicas da política. Em comum entre as visões contratualistas está a visão de que os
seres humanos viveram originalmente em um “estado de natureza”, no qual havia mais ameaças à vida social do
que possibilidades de organização adequada da vida coletiva. Em função desse perigo, os seres humanos
constituíram o “estado de civilização”, cuja principal característica seria o contrato, o acordo entre as pessoas
para viverem em comum, abrindo mão de parte de suas liberdades a fim de impedir a destruição de uns pelos
outros. A forma mais visível e concreta desse “contrato social” seria a legislação constitucional, mediante a qual as
regras gerais da convivência harmônica seriam definidas e poderiam, assim, ser obedecidas por todos. Caberia
ao Estado, detentor do direito de formular as leis, o dever de garantir a sua obediência e o bem-estar do povo.
Vários foram os filósofos que desenvolveram descrições contratualistas (como John Locke, Thomas Hobbes,
Jean-Jacques Rousseau e Immanuel Kant), com várias diferenças entre suas idéias e propostas, mas não nos
ocuparemos da análise delas individualmente.

As descrições diáleticas da filosofia política enfatizavam o caráter conflitivo da convivência humana em sociedade
e se esforçavam por construir noções e modelos de compreensão que permitissem controlar os conflitos de modo
que a vida coletiva pudesse se dar harmonicamente. As duas mais famosas descrições dialéticas da política forma
formuladas por Georg Hegel e Karl Marx. Hegel desenvolveu uma teoria idealista da dialética, interpretando a
história e a sociedade humanas como efeito da relação tensa das idéias antagônicas que, no seu
desenvolvimento, progrediam até a constituição de uma forma perfeita de organização da vida social. Ficou
famosa a sua descrição do movimento espiritual da história como o da tensão entre tese, antítese e síntese – uma
espécie de reconstrução da hierarquia ontológica platônica. Karl Marx ficou famoso por propor uma reviravolta
completa na visão hegeliana, que ele mesmo descreveu como colocar a dialética hegeliana, que estava de ponta-
cabeças, sobre os seus pés. Ao invés de um movimento ideal, espiritual, Marx concebeu a história como o
movimento conflitivo das classes sociais, definidas por sua posição econômica. Na descrição marxiana, a história
humana também se dirigia a um fim ideal, a sociedade comunista na qual não haveria mais pobreza e injustiça.
Tanto Hegel quanto Marx concebiam a história e a política como subordinada a leis intrínsecas, que não
poderiam ser quebradas e garantiriam que a humanidade chegaria ao seu pleno desenvolvimento.

Três pontos comuns entre as tendências contratualista e dialética. O primeiro é que suas descrições não
receberam, na prática, uma plena confirmação, ou seja, não se concretizaram em sociedades plenamente
harmônicas e justas. O segundo, a preferência por formas democráticas constitucionais e não aristocráticas de
governo, que se tornaram as formas padrões no mundo ocidental. O terceiro, a distinção entre sociedade civil
(população) e estado (instituições de governo e polícia), este com o monopólio do exercício legítimo da violência
(polícia e exército). É certo que a não realização plena dos modelos políticos de tom metafísico não invalida o
número de contribuições que esses pensadores modernos deram não só à filosofia, mas também às ciências e
prática política. Entretanto, encaminharam a possibilidade de formas não-metafísicas de filosofia política, das quais
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examinaremos um exemplo na próxima aula e mais dois nos próximos textos sobre ética.

Aula 12 - A vida em sociedade: descrições pós-metafísicas

Tema: Uma descrição pós-metafísica da vida em sociedade

Objetivo: Apresentar as formulações do filósofo Michel Foucault a respeito da vida em sociedade e suas as
possíveis contribuições para uma perspectiva cristã de filosofia política.

Uma das mais interessantes formas não-metafísicas de filosofia política foi formulada por Michel Foucault (1926-
1984), na qual ele analisa que o exercício do poder político na modernidade constituiu-se a partir da apropriação
do modo eclesiástico de exercício do poder pelos sacerdotes, ao qual ele chamou de poder pastoral.

Em que consiste o poder pastoral? Foucault destaca quatro características:

(1) O pastor exerce poder sobre um rebanho e não sobre uma terra. é o relacionamento Pastor-Deus com seu

rebanho que é

primário e fundamental aqui. Deus dá, ou promete, uma terra a seu rebanho;

(2) “o pastor reúne, guia e lidera seu rebanho. ... o que o pastor reúne são ovelhas dispersas inversamente,

basta o pastor

desaparecer para o rebanho ser disperso. Em outras palavras, a presença imediata e a ação direta do pastor
fazem o rebanho existir;
(3) o papel do pastor é assegurar a salvação de seu rebanho ... [e não só salvá-los todos] é uma questão de

bondade constante, individualizada e teleológica; e


(4) exercer poder é um 'dever' tudo o que o pastor faz gira ao redor do seu rebanho. Essa é sua preocupação

constante.

Quando elas dormem ele vigia. O tema da vigilância é importante. Ele destaca dois aspectos da devoção do
pastor. Primeiro, ele age, trabalha, expõe-se em favor daqueles a quem nutre e que estão dormindo.
Segundo, ele as vigia. Presta atenção a cada uma delas e as escaneia. ... O poder pastoral implica em

atenção individual a cada membro do rebanho.”1

Conclui, então, que:


“podemos dizer que o pastorado cristão introduziu um jogo que nem os gregos nem os hebreus imaginaram. Um
jogo estranho cujos elementos são vida, morte, verdade, obediência, indivíduos, identidade; um jogo que parece
não ter nada a ver com o jogo da cidade sobrevivendo através do sacrifício dos seus cidadãos. Nossas
sociedades provaram ser realmente demoníacas desde que conseguiram combinar esses dois jogos – o da

cidade-cidadão e o do pastor-rebanho – naquilo a que chamamos de estados modernos.”2

Sua grande contribuição, a partir dessa análise do “poder pastoral”, foi a de propor uma nova forma de estudar o
poder e a política. Vejamos como ele mesmo descreve essa nova forma:

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“consiste em usar as formas de resistência contra as diferentes formas de poder como um ponto de partida.
............................................................................................................................................................... Mais do que

analisar o poder do ponto de vista de sua racionalidade interna, ela consiste em analisar as relações de

poder através do antagonismo das estratégias.”3

A grande mudança é a dessubstanciação do poder e sua compreensão como uma forma de ação e relações.
Poder não é, poder se exerce. Não se tem poder, se exerce poder.

A análise de várias dessa lutas (antagonismos), empreendida por Foucault, destacou os seguintes elementos
partilhados por todas elas: são lutas transversais, isto é, não são limitadas a um país; o objetivo destas lutas são os
efeitos do poder enquanto tal; são lutas imediatas, no tempo e no espaço. Mas a preocupação principal da
análise foucaultiana foi a relação entre poder e indivíduo.

Segundo ele, as lutas do poder:

são lutas que questionam o estatuto do indivíduo: por um lado, afirmam o direito de ser diferente e enfatizam
tudo aquilo que torna os indivíduos verdadeiramente individuais. Por outro lado, atacam tudo aquilo que
separa o indivíduo, que quebra sua relação com os outros, fragmenta a vida comunitária, força o indivíduo a se
voltar para si mesmo e o liga à sua própria identidade de um modo coercitivo. ... são batalhas contra o
'governo da individualização'. são uma oposição aos efeitos do
poder relacionados ao saber, à competência e à qualificação; lutas contra os privilégios do saber. Porém, são
também uma oposição ao segredo, à deformação e às representações mistificadoras impostas às
pessoas. O que é questionado é a
maneira pela qual o saber circula e funciona, suas relações com o poder. Em resumo, o régime dusavoir
[regime do saber]. ...

[e] todas estas lutas contemporâneas giram em torno da questão: quem somos nós? Elas são uma recusa a
estas abstrações, do estado de violência econômico e ideológico, que ignora quem somos individualmente, e
também uma recusa de uma investigação científica ou administrativa que determina quem somos ...o
principal objetivo destas lutas é atacar uma técnica,

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uma forma de poder uma forma de poder que faz dos indivíduos sujeitos. Há dois significados para a palavra
sujeito: sujeito a

alguém pelo controle e dependência, e preso à sua própria identidade por uma consciência ou

autoconhecimento. Ambos sugerem uma forma de poder que subjuga e torna sujeito a.”4

Foucault desloca o eixo dos estudos de filosofia política da constituição do Estado, da nação e da vida social como
um todo, para o estudo de como o exercício do poder nos estados ocidentais assujeita os indivíduos e os procura
moldar no formato de cidadãos que aceitam essa sujeição como legítima. E a chave para a compreensão desse
processo está na descoberta de como o saber se relaciona com o poder, de como se constituiu, ao longo da
Modernidade, um conjunto de saberes “científicos” sobre a pessoa humana, de modo tal que esse assujeitamento
não precisasse se realizar mediante a força física, mas mediante a persuasão intelectual (na qual os cientistas e
especialistas assumem o lugar dos sacerdotes no processo de discipulado dos indivíduos). Foucault rejeita
categoricamente as noções e práticas do poder político que tratam indivíduos como se fossem totalidades (povo,
população, as classes sociais, os cidadãos) e ignoram, assim, a individualidade e os direitos de cada um. Revela,
assim, que o poder político não poderia ser bem-sucedido sem o apoio permanente de um poder “intelectual”, da
constituição de um regime de saber que fizesse com que os indivíduos aceitassem a validade de sua condição de
sujeitos. Tal regime de saber foi tão eficaz que a palavra sujeito (que significa estar subjugado a algo ou alguém)
assumiu o sentido de pessoa livre, que age e faz a história.

Foucault afirma, então, em contraste com o pensamento metafísico político moderno que

“talvez, o objetivo hoje em dia não seja descobrir o que somos, mas recusar o que somos. Temos que imaginar
e construir o que poderíamos ser para nos livrarmos deste 'duplo constrangimento' político, que é a simultânea
individualização e totalização próprias às estruturas do poder moderno. A conclusão seria que o problema
político, ético, social e filosófico de nossos dias não consiste tanto em liberar o indivíduo do Estado nem das
instituições do Estado, porém nos liberarmos tanto do Estado quanto do tipo de individualização que a ele
se liga. Temos que promover novas formas de subjetividade através da recusa deste tipo de individualidade

que nos foi imposto há vários séculos.”5

Note que o eixo se desloca da utopia nacional para a libertação individual. Ou seja, Foucault segue uma direção
oposta à dos filósofos políticos modernos que, a partir da análise do indivíduo, chegaram às formulações sobre
como deveriam ser o Estado e a sociedade. E se desloca de forma tal que não se trata de uma visão ingênua e
individualista, mas uma aguda crítica do poder no mundo ocidental moderno.

Foucault percebe que, por estar enraizado na vida social, o exercício do poder não se restringe ao Estado, mas
perpassa toda a realidade social, em lugares e formas múltiplos, que se cruzam, se encontram, se confrontam. As
estratégias de libertação, conseqüentemente, não passam em primeiro lugar pela extinção do Estado, ou pela
ocupação dos cargos estatais, mas pela desgovernamentalização das relações de poder que as pessoas exercem
umas em relação às outras.

“É certo que o Estado nas sociedades contemporâneas não é simplesmente uma das formas ou um dos
lugares – ainda que seja o mais importante – de exercício do poder, mas que, de um certo modo, todos os
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outros tipos de relação de poder a ele se referem. Porém, não porque cada um dele derive. Mas, antes, porque
se produziu uma estatização contínua das relações de poder (apesar de não ter tomado a mesma forma na
ordem pedagógica, judiciária, econômica, familiar). Ao nos referirmos ao sentido restrito da palavra 'governo',
poderíamos dizer que as relações de poder foram progressivamente governamentalizadas, ou seja,

elaboradas, racionalizadas e centralizadas na forma ou sob a caução das instituições do Estado”.6

A utopia foucaultiana, assim, não é o sonho de uma “nação ideal”, mas de um novo tipo de pessoa, cujas relações
não sejam mais estruturadas segundo a forma estatal do governo – relações de poder que delimitam, restringem,
tolhem o raio de ação das pessoas e, ao mesmo tempo, constituem uma forma comum de identidade. Nas
próprias palavras de Foucault:

“a racionalidade política tem crescido e se imposto no decorrer de toda a história das sociedades ocidentais.
Primeiro, fincou sua posição na idéia de poder pastoral, então, na de razão do estado. Seus efeitos
inevitáveis são a individualização e a totalização. A libertação somente poderá vir se, não atacarmos apenas

um desses dois efeitos, mas as próprias raízes da racionalidade política.”7

Trata-se, então, não de construir uma nova forma de Estado, mas uma nova forma de pessoa, uma forma não
caracterizada pela subjugação da identidade individual à identidade coletiva. Uma forma de pessoa não mais
assujeitada aos saberes e às estratégias do poder, mas capaz de cuidar de si, de se governar e de exercer
relações de poder libertadoras e não mais dominadoras no âmbito do dia-a-dia.

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Como vimos nas aulas anteriores, não é necessário concordar plenamente com um filósofo para nos apropriarmos
de aspectos valiosos do seu pensamento. Por isso, também precisamos perguntar que contribuições a análise
foucaultiana do poder tem a oferecer para uma perspectiva cristã da filosofia. E são várias, das quais destaco as
seguintes:

(1) A descrição do poder pastoral, por Foucault, embora seja uma explicação do exercício das relações sacerdotais

nos primeiros séculos da Cristandade católico-romana (sécs. IV-X d.C.), pode nos ajudar a compreender melhor os
mecanismos de poder envolvidos na relação entre pastores e membros de igrejas (tanto no âmbito do
catolicismo, como no do protestantismo). Pode nos ajudar também a constituir formas de resistência à tendência
inerente ao poder pastoral de outorgar ao pastor uma imagem super- humana, de alguém extremamente especial,
dotado de um contato mais íntimo e direto com Deus e o sagrado, detentor assim de uma posição e de uma
autoridade que não poderiam ser questionadas – pois seria a autoridade do próprio Deus na terra. Pastores não
são crentes especiais, não são cristãos melhores do que os demais, não são super-heróis da fé. São pessoas que
creem em Cristo, como quaisquer outras, sujeitas às mesmas dificuldades, limites e tentações. Por isso, não só
exercem o cuidado pastoral em relação à comunidade cristã, mas também deveriam receber o cuidado pastoral
da própria comunidade.

À comunidade cristã cabe, também, o dever e o direito de analisar criticamente o exercício do poder ministerial de
seus pastores, ajudando-os a manter os padrões de pastorado presentes no ministério terreno de Jesus.
Ajudando-os a exercer o ministério como seres humanos, aceitando os limites da condição humana. Ajudando-os a
exercer o ministério pastoral em resposta à exortação apostólica: “Aos anciãos, pois, que há entre vós, rogo eu,
que sou ancião com eles e testemunha dos sofrimentos de Cristo, e participante da glória que se há de revelar:
Apascentai o rebanho de Deus, que está entre vós, não por força, mas espontaneamente segundo a vontade de
Deus; nem por torpe ganância, mas de boa vontade; nem como dominadores sobre os que vos foram confiados,
mas servindo de exemplo ao rebanho.” (I Pedro 5.1-3)

(2) A descrição do poder enquanto exercício de relações de dominação e lutas de resistência, nos ajuda a repensar

as relações de poder no âmbito das instituições eclesiásticas. Necessitamos de uma nova ética das relações de
poder na instituição eclesiástica e na família cristã. Tal ética política eclesiástica terá de informar como as igrejas
deveriam articular suas estruturas de poder, de modo tal a atenderem os valores da libertação, aliança e reino de
Deus – ou seja, que formas de governo seriam mais adequadas? Que relações de poder deveriam ser exercidas
entre ministros ordenados e membros da igreja? Em que consiste a legitimidade de dirigentes da denominação? É
necessário reconhecer que a teologia e a ética do poder eclesiástico estão defasadas – ainda as construímos no
modo metafísico moderno da filosofia política! A mesma avaliação vale, penso, para as relações de poder na
instituição familiar. No âmbito da ética política na família e na igreja, ainda estamos praticando modelos
assimétricos, hierárquicos, fundados em relações dominadoras e não em relações de poder emancipatórias;
modelos “mundanos” e não modelos escriturísticos.

À luz da teologia bíblica do poder, instituições, organizações e movimentos cristãos deveriam ter como princípio
ético normativo o da “maior coordenação possível com o mínimo de subordinação necessária”. Esta seria, a meu
ver, uma tradução mais adequada da noção neotestamentária de submissão e obediência aos líderes cristãos, pois
todos nós cristãos estamos sob a mesma ordem: a amorosa ordem libertadora, fraterna e amorosa do reino do
Filho amado: “entre vós não será assim: ao contrário, aquele que dentre vós quiser ser grande, seja o vosso
servidor, e aquele que quiser ser o primeiro dentre vós, seja o servo de todos. Pois o Filho do Homem não veio
para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mc 10:43-45).

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Uma vez que nosso Deus é o deus que ouve o clamor das vítimas da injustiça, uma ética política evangélica em
âmbito eclesial terá como eixo a responsabilidade: ouvir e responder ao clamor de todas as vítimas da injustiça,
especialmente e prioritariamente daquelas que não são ouvidas nem atendidas pela sociedade e suas estruturas
de poder. Na prática, isto quer dizer que o cumprimento eclesial da ética política evangélica se concretiza no
exercício da missão integral que Deus confiou ao Seu povo. Ética e missão, sob o regime da graça, então, se
fundem. E o mesmo vale para a liturgia, para a educação cristã, para a comunhão ministerial e fraterna entre
cristãos. Educar para a cidadania e o discernimento, adorar para imitar a Deus no cuidado e solidariedade,
congregar para servirmos uns aos outros e, em comunhão, servirmos a toda a criação de Deus, seguindo os
passos de Jesus Cristo.

NOTAS

1 FOUCAULT, Michel. “Pastoral power and political reason” in CARRETTE, Jeremy. R. (ed.) Religion and Culture.
Michel Foucault. Nova Iorque: Routledge, 1999, p. 137-138.
2 FOUCAULT, p. 143.

3 FOUCAULT, Michel. “O Sujeito e o Poder”, in RABINOW, Paul. & DREYFUS, Hubert. Michel Foucault, uma
Trajetória Filosófica. Para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995,
p. 234.
4 FOUCAULT, p. 235.

5 FOUCAULT, p. 239.

6 FOUCAULT, p. 247.

7 FOUCAULT, Michel. “Pastoral power and political reason” in CARRETTE, Jeremy. R. (ed.) ReligionandCulture.
Michel Foucault. Nova Iorque: Routledge, 1999, p. 152.

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Aula 13 - Decisões e conflitos éticos: descrições metafísicas pré-modernas

Objetivo: Apresentar as concepções éticas pré-modernas, especialmente a perspectiva platônica e cristã antiga e
medieval.

O estudo da filosofia política nos mostra que é impossível tratar das questões políticas sem tratar, também, das
questões éticas. Por isso nossa atenção neste texto se voltará para a ética filosófica, que se ocupa de várias
questões, entre as quais: como saber o que é certo e errado?, como tomar decisões eticamente corretas?,
sabemos o que é certo mas agimos errado, por quê?, entre outras questões.

A palavra ética, porém, é usada em dois sentidos distintos, os quais


devemos perceber com clareza a fim de podermos avançar em nosso
estudo. No cotidiano costumamos falar, por exemplo, que “fulano não tem
ética” e com isto queremos dizer que tal pessoa não se comporta
adequadamente. Na linguagem cotidiana, então, a palavra ética costuma se
referir ao próprio comportamento das pessoas. Na linguagem técnica da
filosofia, ética é um termo que se refere ao campo de estudos do
comportamento moral do ser humano. Ética filosófica é o estudo da
“ética” cotidiana, ou seja o estudo das
questões filosoficamente importantes relacionadas à ação humana no que ela pode ser avaliada de boa ou má,
justa ou injusta, certa ou errada. Alguns autores ainda distinguem ética de moral. Nesses casos, a palavra moral
tem um sentido semelhante a sentido da palavra ética na linguagem cotidiana – poderíamos falar, também, que
“fulano é imoral”, ao invés de falar que “fulano não tem ética”. Outros autores, porém, tratam as palavras ética e
moral como sinônimas. Neste livro, prefiro usar os termos ética e moral como termos que se referem a realidades
distintas – a ética é o campo de estudos da moral ou moralidade (os costumes e comportamentos morais das
pessoas).

DESCRIÇÕES METAFISICAS PRÉ-MODERNAS DA ÉTICA

Já vimos que Platão, em seu pensamento metafísico, fundiu política, ética e


educação em sua descrição da cidade ideal. O pensamento de Platão é um
bom exemplo da temática dominante no mundo grego clássico no que diz
respeito à ética. A maioria dos filósofos gregos antigos pensava na ética
como a área da filosofia que deveria ensinar o ser humano a viver bem. E,
para viver bem, acreditavam, era necessário viver de acordo com as virtudes
que tornam o ser humano uma pessoa em harmonia com a polis, consigo
mesmo, com o cosmos (o mundo todo, concebido pelos gregos como dotado
de sentido e racionalidade) e com a razão. O grande inimigo da vida
virtuosa, para o pensamento
grego clássico, era a incontinência – a incapacidade da pessoa controlar os seus impulsos. Positivamente, então, a
moderação era a virtude ética fundamental. Moderação significa controlar os impulsos e desejos de tal forma

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que só se aja de acordo com a harmonia da razão. Uma característica notável da ética clássica grega é a não-
separação entre a vida individual e a coletiva, de fato, a ética grega afirmava a prioridade do coletivo sobre o
individual – com o seu conceito de harmonia. Daí, finalmente, importância da educação. O agir com moderação
dependia do conhecimento da pessoa sobre a sua própria essência, já que o Bem é uma propriedade do ser (uma
propriedade metafísica), inscrito portanto na pessoa. Dada à condição decaída da alma, porém, era necessário
formar filosoficamente a pessoa para que, na linguagem platônica, esta pudesse superar os limites do mundo
sensível e viver de acordo com as possibilidades do mundo inteligível.

Se voltarmos nosso olhar para a ética da Cristandade antiga e medieval,


encontraremos algumas mudanças sensíveis em relação á ética grega. Em
primeiro lugar, a ética da Cristandade parte do pressuposto de que o ser
humano é pecador e que não pode, sem a ajuda da graça divina, viver de
forma eticamente adequada. Em segundo lugar, a ética da Cristandade é
uma ética primariamente individual – é através da relação individual com
Deus e com a Igreja que a pessoa consegue alcançar o estado de graça e,
assim, fazer a vontade de Deus no plano ético. E esta é a terceira grande
diferença: os valores éticos, as virtudes éticas não são definidas
racionalmente, mas fazem parte da essência de Deus e são comunicadas
ao ser humano mediante a revelação divina. Como o ser
humano foi criado à imagem e semelhança de Deus, a bondade divina está de alguma forma presente no ser
humano e este é capaz de perceber a natureza divina manifestada na própria criação, de modo que a ajuda da
graça não se restringe (como é mais comum no Protestantismo) à vida cristã propriamente dita, mas está presente
na própria natureza e na vida cotidiana. Como vimos no texto anterior, no período da Cristandade, a ajuda
concreta da Igreja para o indivíduo pode ser entendida como o exercício do poder pastoral – mediante o qual os
sacerdotes dirigiam a vida dos fiéis, tanto positivamente, quanto terapeuticamente na confissão

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dos pecados e penitência. Se no pensamento clássico a moderação era a virtude fundamental, no pensamento da
Cristandade, o livre-arbítrio é o eixo fundamental da ética, livre-arbítrio que dota o indivíduo de possibilidade de
escolha, mas também da responsabilidade de escolher o caminho da graça e não o do pecado.

Aula 14 - Decisões e conflitos éticos: descrições metafísicas modernas

Objetivo: Apresentar três perspectivas éticas: deontológica, teleológica e naturalista.

Na filosofia moderna, permanece a prioridade do indivíduo sobre a coletividade nas questões éticas, e a noção de
liberdade (uma releitura do conceito de livre-arbítrio) ocupa lugar central – mas há uma forte e constante recusa
em vincular a ética à essência divina, ou mesmo à revelação divina. Assim como a razão está inscrita no sujeito,
também a moralidade e a ética estão inscritas no sujeito racional, de modo que se pode desvincular totalmente a
ética da religião e se postular uma ética secular e autônoma em relação às instituições religiosas. Kant, por
exemplo, escreveu um importante tratado sobre a ética, ao qual deu o título de Crítica da Razão Prática. O título já
é uma declaração de propósito e de direcionamento das propostas: a ética inscrita nos limites da razão. Para
Kant, a liberdade era a condição necessária para se praticar um ato moral. Sem liberdade não se pode cobrar
moralidade de ninguém, na medida em que as decisões éticas são decisões que envolvem uma escolha entre
alternativas – e só o sujeito racional livre é que poderia fazer as escolhas adequadamente. O caráter metafísico da
noção kantiana de liberdade está em sua vinculação estreita com a racionalidade e em sua definição como uma
propriedade do sujeito transcendental (sujeito dotado de razão, que pode transcender os limites da vida puramente
sensível, corpórea ou sentimental).

A ética kantiana é uma ética de princípios universais. Como a ética se dirige ao sujeito livre, ela deve ser
diferenciada das leis – que são o trabalho do Estado, fundado na restrição voluntária das liberdades individuais em
prol do bem comum. Uma vida eticamente adequada seria, então, uma vida vivida de acordo com princípios éticos
aos quais a pessoa adere livremente, porque é uma pessoa racional e a moralidade faz parte da racionalidade. Na
busca de uma fundamentação forte para a ética, Kant propôs um princípio universal fundamental, que deveria ser a
fonte e o critério de validade de todos os demais princípios éticos. A esse princípio se dá o nome de imperativo
categórico, cuja formulação mais conhecida é: Aja somente segundo aquela máxima pela qual você pode, ao
mesmo tempo, desejar que se torne uma lei universal. Nesta definição, máxima é o princípio ético internalizado
pela pessoa, e a expressão “ao mesmo tempo” se refere ao tempo em que você está realizando a ação. Uma
versão simplificada e popularizada do imperativo categórico diz “não faça aos outros aquilo que você não quer que
façam a você”. Na versão kantiana, mais forte, as decisões éticas têm de ser tomadas pelo sujeito que leva em
consideração o alcance universal de seus atos, de modo que tal sujeito possa dizer: “isto que eu estou fazendo
deve ser feito por toda e qualquer pessoa, em todo e qualquer lugar, em todo e qualquer tempo”. Kant se inspirou
na ética cristã para desenvolver a sua própria descrição da ética, e ao fazê-la, substituiu Deus pela razão prática.
Não é necessário, para o sujeito livre, obedecer a leis ou princípios que tenham sua fonte em um outro Ser. No
próprio ser humano estão presentes todas as propriedades necessárias para o exercício da liberdade e da
moralidade, sem a necessidade de ajudas externas. Fica claro, então, que para Kant não se pode pensar no ser
humano como pecador e nem se pensar na necessidade de uma salvação outorgada pela graça divina. O ser

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humano é autônomo (do grego autos=eu mesmo e nómos=lei, princípio), ou seja, tem em si mesmo a fonte e o
critério de verdade e de moralidade.

A ética kantiana é de tipo deontológico, ou seja, baseado no dever (um dever que está inscrito no ser=ontos). Em
contraste com éticas do tipo deontológico, outros filósofos modernos desenvolveram éticas teleológicas,
baseadas nas conseqüências da ação (do grego telos= fim, finalidade). A mais famosa tendência ética teleológica
é conhecida como utilitarismo. Os dois mais famosos proponentes do utilitarismo foram Jeremy Bentham (1742-
1832) e John Stuart Mill (1806-1873). Em síntese, a proposta do utilitarismo pode ser descrita como “a ação
eticamente correta é aquela que promove, ou busca promover, a felicidade do maior número possível de pessoas”.
Bentham enfatizava o aspecto quantitativo da utilidade, enquanto Mill destacava também o aspecto qualitativo da
utilidade – é necessário distinguir entre bens mais úteis e menos úteis, e constituir uma escala de valores.
Diferentemente, então, das éticas de virtude e de dever, o utilitarismo fundamenta a ética nas conseqüências das
ações, de modo que não se pode definir, de antemão, se uma ação é eticamente correta ou não – é necessário
avaliar as suas conseqüências – e tais conseqüências podem, em tese, somente ser perceptíveis a longo prazo,
o que cria uma situação de incerteza.

Uma descrição ética moderna, concorrente das éticas do dever e das éticas utilitaristas, é a da ética naturalista.
Não se trata, aqui, do conceito metafísico de natureza, mas de um conceito físico de natureza. Do ponto de vista
da ética, o naturalismo significa basicamente a afirmação de que não há diferença entre o que o ser humano é e o
que ele deve fazer. O naturalismo é uma descrição ética tipicamente marcada pela mentalidade científica
monista. Podemos dizer que o naturalismo é, em contraste com a posição de Davidson, um fisicalismo redutivo –
na medida em que não vê qualquer diferença entre eventos físicos e eventos mentais. A ação ética, no
naturalismo, é aquela baseada no conhecimento das leis naturais, das leis físicas ou psicofísicas que explicam a
realidade. Se conhecemos como as coisas são, já sabemos o suficiente para decidir como as coisas devem ser,
pois não há diferença entre ser e dever-ser. Comportamento ético é, portanto, comportamento em conformidade
com as leis da natureza. O

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11/02/2022 18:37 Aulas

naturalismo está na base da justificação ética de experimentos e realizações científicas que fogem ao controle dos
valores tradicionais. Em termos fortes, a ética naturalista da pesquisa científica dirá: “se pode ser feito, deve ser
feito” - por exemplo, “se podemos fazer uma bomba altamente destrutiva que acabará com a guerra, então
devemos fazê-la”, ou “se podemos clonar uma pessoa, devemos fazê-lo”, etc.

Diante dos avanços da ciência e da tecnologia, Hans Jonas desenvolveu, nos anos 70 e 80 do século passado,
uma nova descrição da ética, capaz de fazer frente à “civilização tecnológica”. No mundo em que vivemos, as
éticas baseadas em relações pessoais (como a kantiana, por exemplo), estão ultrapassadas, são incapazes de
lidar com os novos problemas éticos que surgem do avanço tecnológico. É necessário, agora, construir uma ética
de defesa da vida em todo o planeta, que está ameaçada pelas conseqüências desconhecidas de avanços
tecnológicos. Faz-se imperativo construir uma ética da responsabilidade – especialmente dos detentores de
conhecimento científico –perante o planeta e seus habitantes. Como ele mesmo escreveu: “O conhecimento sobre
as conseqüências dos nossos atos, que são a partir de agora entrelaçados com a tecnologia, é fundamental.
Temos de saber o que fazemos e temos de elevar o nosso conhecimento à altura das inovações tecnológicas e
suas conseqüências no futuro. Já o conhecimento torna-se, assim, um dever ético. Acontece que o conhecimento
presente nunca pode estar idêntico com o conhecimento do futuro. Depois sempre sabemos mais do que antes.
Logo surge do dever ético de adquirir conhecimento um problema ético, que resulta da diferença entre o poder do
ato e o conhecimento limitado que posso ter das conseqüências deste ato antes da sua execução (JONAS, Hans.
Das PrinzipVerantwortung. VersucheinerEthikfür des technologischeZivilisation. Frankfurt: Suhrkamp, 1984, p. 28).
Antes de fazer o que é tecnologicamente possível fazer, deve-se pesar cuidadosamente as conseqüências e,
mais ainda, deve-se levar em conta que não podemos saber com certeza as conseqüências futuras das inovações
tecnológicas do presente. Se é um dever ético produzir conhecimento, pesquisar e inovar; é também um dever
ético, ainda superior, de reconhecer que o simples fato de poder fazer algo não nos dá o direito de fazê-lo, sem
pesar as conseqüências globais de nossas ações. Embora afirme o caráter precário das éticas metafísicas
anteriores, Jonas acaba por assumir uma forma metafísica de ética, e reconstitui o imperativo kantiano em uma
nova máxima: “que a humanidade continue a existir”.

Aula 15 - Decisões e conflitos éticos: descrição pós-metafísica de Richard Rorty

Objetivo: Apresentar a perspectiva ética de Richard Rorty, que parte das noções de adaptação e solidariedade.

Como um exemplo de ética pós-fundacional, podemos mencionar o filósofo


contemporâneo Richard Rorty, que redescreve a ética utilitarista a partir das noções de
adaptação e de solidariedade. Usando uma famosa expressão darwiniana, Rorty
descreve o ser humano como “bípede sem penas”, um ser semelhante aos demais seres
existentes no planeta, ou seja, sem qualquer qualidade especial na sua natureza que o
torne um ser essencialmente moral – no sentido metafísico do termo. Nessa descrição, o
ser humano é melhor visto como uma rede de crenças, desejos e emoções, sem nada por
detrás dela – nenhuma substância ou essência. Dessa forma, comportamento ético é
apenas comportamento adaptativo – agir de modo semelhante, em circunstâncias

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11/02/2022 18:37 Aulas
similares, ao modo dos outros membros da comunidade relevante para o indivíduo. Em
sua ética, Rorty é coerentemente contextualista: a definição do que é comportamento ético
deve ser feita pela comunidade de pessoas que se afetam mutuamente – de modo que as
ações éticas são aquelas ações que são justificadas pela prática do maior número
possível de pessoas da mesma comunidade.

Para evitar que essa noção de adaptação seja mera acomodação aos costumes de um dado grupo social, e
mesmo que se torne uma forma de legitimar a “lei do mais forte”, Rorty acrescenta o princípio da solidariedade –
que significa o desejo e a prática de ampliar ao máximo possível a nossa comunidade relevante. Assim, a
comunidade relevante não será determinada por características de classe, raça, credo ou preferência sexual,
política, etc. A comunidade relevante deverá incluir o maior número possível de seres humanos, de outros bípedes
sem pena, pois, não havendo essências subjacentes às pessoas, não se pode postular diferenças de valor
baseadas em características econômicas, raciais ou religiosas. Esta visão deve ser combinada com a
compreensão rortyana de democracia - um estilo de vida (mais do que uma forma de governo) caracterizado pela
liberdade estendida ao maior número possível de pessoas, possibilitando a elas a realização de seus desejos,
sonhos e potenciais.

Assim, a ética rortyana está intrinsecamente ligada ao seu próprio projeto de renovação da filosofia:

Tal como o vejo, o progresso filosófico se produz sempre que encontramos um modo de integrar as visões de
mundo e as intuições morais que herdamos de nossos antepassados, com novas teorias científicas, ou novas
teorias e instituições sócio-políticas, ou com outras novidades. Cito, amiúde, o ensinamento de Dewey, de que ‘a
tarefa da filosofia, seus problemas e seus temas, surge das tensões e pressões da vida comunitária na qual nasce
uma dada forma de filosofia’. As tensões e pressões em que Dewey pensa, são as que aparecem quando se
tenta colocar um novo líquido espumoso e borbulhante nos odres velhos. Também cito

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11/02/2022 18:37 Aulas
frequentemente a sua afirmação de que ‘a filosofia não pode emitir nada mais do que hipóteses, e ...essas
hipóteses só têm valor enquanto tornam as mentes humanas mais sensíveis à vida que as rodeia’ [...] Porém,
torna-se mais plausível quando se repara que uma das maneiras de se fazer mais sensível aos sucessos e
esperanças do próprio tempo, é deixar de fazer perguntas que foram formuladas no passado. Os grandes filósofos
ocidentais deveriam ser lidos, primariamente, em chave terapêutica, e não em chave construtiva; como se o que

nos disseram fosse que problemas não discutir.1

Em sua auto-descrição, Rorty usa a expressão “ironista liberal” – liberal no sentido político no contexto
estadunidense – um democrata amplo, e ironista no sentido filosófico de alguém que não aceita a validade
absoluta de nenhum sistema filosófico, nem mesmo a do seu próprio jeito de descrever a realidade.
Semelhantemente, Rorty pode ser descrito como um pensador utópico, pois afirma permanentemente o futuro
como a meta a que devemos almejar – afirma o ser humano como um ser incompleto, em processo de
transformação, tornando-se dia a dia naquilo que ele é e deseja ser. Nesse esforço de ler terapeuticamente os
filósofos ocidentais, Rorty propõe uma nova descrição de justiça, com a qual encerro esta breve reflexão sobre a
ética rortyana, deixando para você o prazer de responder à pergunta ética de Rorty:

“seria uma boa idéia tratar a ‘justiça’ como um nome para a lealdade em relação a um certo grupo bem amplo,
o nome para a nossa mais ampla e ordinária lealdade, ao invés de o nome dado a algo diferente da lealdade?
Poderíamos substituir a noção de ‘justiça’ pela de lealdade para com tal grupo – por exemplo, o grupo dos
concidadãos, ou o grupo da espécie humana, ou o de todas as coisas vivas? O que perderíamos nesta

substituição?”2

Um último exemplo de proposta ética pós-fundacional elaborada por Jürgen Habermas. Ao invés de construir sua
visão ética ao redor das noções de adaptação e solidariedade, como Rorty, Habermas a constrói a partir das
noções de aprendizagem social e discurso – noções que somente fazem sentido levando em consideração a
historicidade humana, pois a aprendizagem social é fenômeno que se dá de geração em geração, assim como o
discurso, uma forma de ação humana que se molda ao longo da história. Segundo Habermas,

“os sistemas sociais podem a partir das capacidades de aprendizado de sujeitos socializados, constituir novas
estruturas para resolver problemas de direção e de controle que ponham em perigo sua existência. É por isso
que o processo evolutivo de aprendizagem das sociedades depende das competências dos indivíduos que dela

fazem parte”.3

A ação ética, consequentemente, se modifica e desenvolve à medida em que cresce o aprendizado social e as
pessoas vão moldando novas formas de vida em sociedade e organização social, na busca de
melhoramento constante da vida humana.

O desenvolvimento pessoal e social descrito por Habermas se torna manifesto em três níveis de comunicação entre
as pessoas:

(1) Ao nível da interação mediatizada simbolicamente, falar e agir são ainda articulados no quadro de um único

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11/02/2022 18:37 Aulas
modo de comunicação, determinado em forma imperativa ... Os participantes dão por suposto que, nas relações
interpessoais, eles poderiam
- em princípio - mudar de lugar; mas conservam-se prisioneiros de sua atitude prática.

(2) É ao nível do discurso diferenciado em termos proposicionais que falar e agir se separam pela primeira vez. A e

B podem ligar a atitude prática de participantes à atitude proposicional de observadores; ambos podem não só
assumir a perspectiva do outro participante, mas trocar a perspectiva de participante pela de observador. Por isso,
as duas expectativas recíprocas de comportamento podem se coordenar de tal modo que constituam um sistema
de motivação recíproca, ou - pode-se também dizer - um papel social. A esse nível, as ações se separam das
normas.

(3) Ao nível do discurso argumentativo, que é o terceiro nível, podem ser tematizadas as pretensões de validade

que ligamos a atos linguísticos. Na medida em que, num discurso, motivamos afirmações ou justificamos ações,
tratamos as asserções e as normas (que servem de fundamento às ações) em termos hipotéticos, ou seja, em
termos tais que elas poderiam ser corrigidas ou não corrigidas e poderiam subsistir certa ou erradamente. Normas
e papéis revelam-se carentes de justificação: a sua validade pode ser contestada ou fundada somente em

referência a princípios.4

O primeiro nível é o da fala cotidiana, na qual nós conversamos uns com os outros, trocando idéias e opiniões,
mantendo quase sempre uma atitude auto-centrada e conservadora – nossa tendência é reforçar a nossa própria
visão do mundo, ao invés de modificá-la na conversação, especialmente no caso de conflitos éticos, em que
tendemos a defender os nossos próprios interesses e normas sociais. No segundo nível, as pessoas que
conversam começam a avaliar as suas próprias idéias e noções, e se colocar no lugar de observadores
imparciais, tentando formular uma interpretação mais adequada da situação e emitir juízos morais menos
centrados no indivíduo e seus próprios interesses. Já no terceiro nível, o nível do discurso, submetemos as nossas
opiniões já previamente analisadas, a um exame ainda mais rigoroso e questionamos os critérios de validade
dessas opiniões. Nesse nível, passamos a partilhar argumentos uns com os outros, visando formular consensos
éticos – na forma de princípios contextuais universalizáveis – que orientem a ação pessoal e coletiva.

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NOTAS

1 RORTY, Richard. in Verdad y Progreso. Escritos filosóficos. Barcelona: Paidós, 2000, p. 16s.

2 RORTY, Richard. “Justice as a largerloyalty”. in FESTENSTEIN, M. & THOMPSON, S. (eds.). Richard Rorty:
Critical dialogues. Malden: Blackwell, 2001, p. 225. 3 HABERMAS, Jürgen. Para a Reconstrução do Materialismo
Histórico. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 135.
4 HABERMAS, p. 135s.

Aula 16 - Decisões e conflitos éticos: descrição pós-metafísica de Jürgen Habermas

Objetivo: Descrever a proposta ética de Habermas, que parte das noções de aprendizagem social e discurso.

Nesta aula, apresentaremos a de proposta ética pós-fundacional elaborada por Jürgen


Habermas. Ao invés de construir sua visão ética ao redor das noções de adaptação e
solidariedade, como Rorty, Habermas a constrói a partir das noções de aprendizagem
social e discurso – noções que somente fazem sentido levando em consideração a
historicidade humana, pois a aprendizagem social é fenômeno que se dá de geração em
geração, assim como o discurso, uma forma de ação humana que se molda ao longo da
história. Segundo Habermas, “os sistemas sociais podem a partir das capacidades de
aprendizado de sujeitos socializados, constituir novas estruturas para resolver problemas
de direção e de controle que ponham em perigo sua existência. É por isso que o processo
evolutivo de aprendizagem das sociedades depende das competências dos indivíduos
que dela fazem

parte”.1 A ação ética, consequentemente, se modifica e desenvolve à medida em que


cresce o

aprendizado social e as pessoas vão moldando novas formas de vida em sociedade e


organização social, na busca de melhoramento constante da vida humana.

O desenvolvimento pessoal e social descrito por Habermas se torna manifesto em três níveis de comunicação entre
as pessoas:

(1) Ao nível da interação mediatizada simbolicamente, falar e agir são ainda articulados no quadro de um único

modo de comunicação, determinado em forma imperativa... Os participantes dão por suposto que, nas relações
interpessoais, eles poderiam - em princípio - mudar de lugar; mas conservam-se prisioneiros de sua atitude
prática.

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(2) É ao nível do discurso diferenciado em termos proposicionais que falar e agir se separam pela primeira vez. A e

B podem ligar a atitude prática de participantes à atitude proposicional de observadores; ambos podem não só
assumir a perspectiva do outro participante, mas trocar a perspectiva de participante pela de observador. Por isso,
as duas expectativas recíprocas de comportamento podem se coordenar de tal modo que constituam um sistema
de motivação recíproca, ou - pode-se também dizer - um papel social. A esse nível, as ações se separam das
normas.

(3) Ao nível do discurso argumentativo, que é o terceiro nível, podem ser tematizadas as pretensões de validade

que ligamos a atos lingüísticos. Na medida em que, num discurso, motivamos afirmações ou justificamos ações,
tratamos as asserções e as normas (que servem de fundamento às ações) em termos hipotéticos, ou seja, em
termos tais que elas poderiam ser corrigidas ou não corrigidas e poderiam subsistir certa ou erradamente. Normas
e papéis revelam-se carentes de justificação: a sua validade pode ser contestada ou fundada somente em

referência a princípios.2

O primeiro nível é o da fala cotidiana, na qual nós conversamos uns com os outros, trocando idéias e opiniões,
mantendo quase sempre uma atitude auto-centrada e conservadora – nossa tendência é reforçar a nossa própria
visão do mundo, ao invés de modificá-la na conversação, especialmente no caso de conflitos éticos, em que
tendemos a defender os nossos próprios interesses e normas sociais. No segundo nível, as pessoas que
conversam começam a avaliar as suas próprias idéias e noções, e se colocar no lugar de observadores
imparciais, tentando formular uma interpretação mais adequada da situação e emitir juízos morais menos
centrados no indivíduo e seus próprios interesses. Já no terceiro nível, o nível do discurso, submetemos as nossas
opiniões já previamente analisadas, a um exame ainda mais rigoroso e questionamos os critérios de validade
dessas opiniões. Nesse nível, passamos a partilhar argumentos uns com os outros, visando formular consensos
éticos – na forma de princípios contextuais universalizáveis – que orientem a ação pessoal e coletiva.

A ética habermasiana é chamada de ética do discurso, ou discursiva, pois ao invés de procurar fundamentos para
a ação ética no ser, na essência, na natureza ou no sujeito individual, descreve a ação ética como o fruto de uma
discussão bem argumentada e crítica a respeito das situações de conflito ético existentes em um dado lugar e
tempo. Na argumentação, um dado grupo social elabora princípios válidos para o seu próprio lugar e tempo
(por isso é contextual), mas deve fazer isso levando em consideração

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11/02/2022 18:37 Aulas

que tais princípios devem ser universalizáveis, ou seja, devem ser passíveis de aplicação também em outros
contextos. Fica clara aqui a filiação kantiana da ética de Habermas. A diferença fundamental está que, em Kant,
os princípios éticos já são, por natureza, universais, na medida em que se fundamentam nas propriedades
universais do sujeito transcendental. Em Habermas, porém, os princípios éticos são locais, construídos nas
interrelações sociais do dia-a-dia, mas passíveis de universalização mediante a discussão crítica e argumentativa
sobre os mesmos.

NOTAS

1 HABERMAS, Jürgen. Para a Reconstrução do Materialismo Histórico. São


Paulo: Brasiliense, 1983, p. 135. 2 HABERMAS, p. 135s.

Aula 17 - Decisões e conflitos éticos: ética filosófica e ética cristã

Objetivo: Apontar as possíveis contribuições da filosofia para a reflexão ética cristã.

Quais contribuições esta discussão sobre a ética filosófica pode nos dar para que possamos entender e descrever
melhor a ética cristã? Ofereço apenas algumas sugestões, na intenção de estimular você a refletir critica e
criativamente sobre a ética.

(1) Precisamos reconhecer que não há uma ética cristã absoluta e universal no sentido metafísico desses termos.

A própria realidade das denominações cristãs, que propõem diferentes maneiras de conceber detalhes da ética
cristã, deveria nos alertar para esse fato. Não é necessário apresentar exemplos dessas discordâncias na definição
de valores e comportamentos morais pelas igrejas cristãs, pois são de conhecimento amplo e público nos meios
eclesiais. Entretanto, embora vejamos essa realidade em nosso dia-a-dia, ainda há uma forte tendência a
defender a validade superior de “nossa” ética, em detrimento da validade de “outras” éticas cristãs. A discussão
filosófica nos ajudará, então, a superar essa tendência de absolutizar uma descrição da ética e imaginar que tal
descrição deveria ser aceita por todos os demais cristãos.

(2) Essa pluralidade de visões éticas não nos

deveria fazer cair em um relativismo cristão


ingênuo. Ao contrário, devemos vê-la como um
desafio para o diálogo crítico e construtivo,
procurando aprender e crescer uns com os outros
e, assim, formular princípios éticos cada vez mais
universalizáveis – não só entre nós evangélicos e
cristãos, mas também para fora dos limites
eclesiásticos.

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11/02/2022 18:37 Aulas
(3) Muitos autores não-cristãos, e inclusive autores

cristãos, têm definido a ética cristã como uma ética


do dever. Neste texto, você terá notado, eu usei o
termo Cristandade e não Cristianismo para falar de
uma proposta de ética cristã, anterior a
Modernidade. Fiz isso por pelo menos dois motivos
– não confundir uma descrição da ética com a
ética cristã, e oferecer material para refletirmos
sobre a pluralidade de descrições da ética nas igrejas cristãs. A razão mais importante, porém, foi a possibilidade
de fazer a seguinte pergunta: sendo o Evangelho um convite para a transformação da vida humana, a partir da
graça de Deus, até que ponto é legítimo falar da ética cristã como uma ética do dever? Uma ética baseada na
noção bíblica da graça de Deus não seria melhor descrita como uma ética da gratidão e da solidariedade (ou
talvez você prefira o termo mais comum, amor)? Ou, usando uma linguagem mais contemporânea na filosofia, do
cuidado (proposta predominante no pensamento feminista) e do reconhecimento (proposta de Axel Honneth, da
nova geração da escola de Frankfurt)?

(4) Uma última reflexão sobre as relações entre as descrições filosóficas da ética e as descrições teológicas

cristãs. Em alguns círculos teológicos se afirma uma radical diferença entre uma ética cristã e uma ética secular.
Afirma-se que, em função da noção teológica de que a pessoa sem Cristo está morta no pecado, a ética cristã
somente pode se aplicar a pessoas efetivamente comprometidas com Cristo e seu Evangelho – pois um
comportamento à altura dos princípios do Evangelho somente seria possível mediante a ação do Espírito Santo na
pessoa. Até que ponto, teologicamente falando, é legítima esta noção?

Aula 18 - A beleza e a moda: estética pré-moderna e moderna

https://ead1.fuv.edu.br/mod/book/tool/print/index.php?id=9003 47/3
11/02/2022 18:37 Aulas

Objetivo: Descrever as concepções pré-modernas e modernas da arte da


experiência estética.

Na filosofia platônica, o Belo era uma das formas puras do mundo inteligível. A beleza, no mundo sensível,
somente representava uma pálida imitação do Belo. Desde Platão a filosofia se ocupa do tema da beleza, e da
ação humana que se ocupa primariamente com a beleza – a arte (na palavra se englobam diversas formas de
“arte”, tais como as artes plásticas, as literárias e poéticas, as fotográficas e cinematográficas, as sonoras, as
multi-midiáticas, as arquitetônicas – dependendo, é claro, da concepção de arte de cada autora ou autor). A
seção da filosofia que trata da beleza e da arte é chamada de estética (de forma semelhante à palavra “ética”,
no uso cotidiano a palavra “estética” é usada para se referir à beleza propriamente dita e não ao estudo da
beleza). Na filosofia estética tentamos responder a perguntas do tipo: Beleza e feiúra são realidades
autônomas? Como definimos o que é belo? Como olhamos e apreciamos o belo e o feio? Existe distinção entre
arte e arte-popular? Gosto se discute? Nas duas últimas décadas, porém, outros temas entraram na filosofia da
estética, tais como a moda, a relação entre arte e mídia (com o advento de formas artísticas produzidas em
computador, com a discussão sobre se o cinema é uma arte ou uma indústria, etc.), e o caráter espetacular da
sociedade (ou seja, a sociedade vista como, predominantemente, um conjunto de relações fundadas na imagem
das pessoas e instituições), aos quais também dedicaremos alguma atenção.

DESCRIÇÕES PRÉ-MODERNAS DA ARTE E DA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA

Em Platão e Aristóteles, a arte era concebida como uma forma de imitação


da realidade do mundo sensível – e se usava a palavra grega mímesis
(imitação) para se referir a esse conceito. A noção da arte como mímesis
(alguns autores usam a forma aportuguesada mímese) foi a noção
predominante desde a filosofia grega clássica até os primeiros séculos da
Modernidade. A arte deveria ser, consequentemente, uma representação o
mais perfeita possível do mundo físico. Se você frequenta museus, ou presta
atenção nos monumentos e estátuas nas praças públicas, se lembrará de
muitas estátuas e pinturas que impressionam pela riqueza de detalhes com
que representam a realidade. Há estátuas de pessoas e animais que
mostram inclusive detalhes das tensões de músculos e expressões faciais.
Essa noção mimética da arte está
indissoluvelmente ligada à noção metafísica da verdade como correspondência entre a ideia e o objeto
representado pela ideia. Assim como no campo do pensamento se imaginava que as palavras e os conceitos
deveriam corresponder (na forma da linguagem) aos objetos descritos (físicos ou não), também no campo da
estética se imaginava que a verdadeira arte deveria fazer corresponder a obra de arte à realidade por ela
representada.

DESCRIÇÕES MODERNAS DA ARTE E DA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA

No auge do pensamento moderno, a partir das últimas décadas do século XIX, a noção de mímese foi colocada
em segundo plano e se passou a enfatizar a compreensão da arte como expressão – dos sentimentos e das

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11/02/2022 18:37 Aulas
vivências do ser humano.

Vejamos a definição dessa descrição da arte pelo filósofo brasileiro Antônio


Joaquim Severino:

“Já a arte é a forma de expressão das experiências que os homens têm através dos sentimentos e da
imaginação. É a expressão objetivada da sensibilidade estética, por meio da qual o homem vivencia o
mundo, a realidade e a sua própria existência sob a perspectiva de uma valoração específica que tem a ver
com certa intuição mais diretamente ligada à percepção de nossos sentidos: visão, audição, tato, gosto e

olfato”.1

Com esta noção, a arte também é desvinculada da esfera da verdade e do


pensamento, filiando-se à esfera da imaginação, da intuição, dos sentidos –
e, de modo mais intenso ainda, à esfera dos valores. Esta noção da arte
como expressão e não como imitação veio a se tornar a noção mais
presente não só nos meios filosóficos, mas também nos ambientes não
filosóficos do cotidiano. Nesta noção de arte, então, o mais importante não
é a representação da realidade com a maior precisão e riqueza de detalhes
possíveis, mas como a obra de arte expressa os sentimentos de seu autor,
como as vivências do autor são comunicadas aos admiradores através da
obra. Passou-se a ser dada maior importância, também, à recepção da obra
de arte pelas pessoas que a admiram, de modo que em algumas descrições
da arte, mais importante do que os
sentimentos do autor são os sentimentos do apreciador – ou seja, os sentimentos e vivências que a obra de
arte evoca (provoca) em quem a admira.

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11/02/2022 18:37 Aulas

A noção expressiva da arte está, então, diretamente ligada à noção moderna de sujeito – e não mais à noção de
natureza, ou mundo, como na descrição mimética. Uma noção alternativa da arte, que encontrou maior
apreciação em círculos artísticos do que em filosóficos e populares, é a que vê a arte sob o ponto de vista da
forma, pelo que se chama de formalismo. O formalismo é uma descrição da arte que procura desvincular a arte
não só da realidade, mas também do sujeito. Procura oferecer uma descrição da arte como uma realidade
autônoma, caracterizada exclusivamente pelos aspectos formais da obra de arte. O critério de reconhecimento de
uma obra de arte estaria ligado, consequentemente, ao modo como os elementos formais de cada tipo de arte
seriam utilizados, combinados e recombinados em cada obra específica.

Alguns autores interpretam o expressionismo e o formalismo em conjunto, como modernismo, conforme


podemos perceber na seguinte citação:

Artistas modernistas almejaram a autonomia nas artes, aspirando libertar a arte da religião, da moralidade e da
política, permitindo assim, ao artista, perseguir alvos puramente estéticos. De fato, uma característica primária
do modernismo é sua crença na autonomia da arte, o que envolve uma tentativa deliberada de abstrair a arte
da ideologia social, a fim de focalizar exclusivamente o meio estético propriamente dito. A crença na arte por
amor à arte e na autonomia da arte conseguiram, em última instância, descentrar o projeto estético da
representação e da imitação da realidade, levando-o à preocupação com os aspectos formais da arte.
Começando com os impressionistas franceses na pintura, a arte modernista rompe com modos realistas de
representação e o conceito de arte como mímese, uma imitação da realidade, a fim de explorar visões
alternativas e fazer experiências com as possibilidades estéticas de uma dada mídia artística. Este projeto
modernista ecoou através das artes, gerando experimentos com novas formas, estilos e modos de

criatividade estética.2

Na nossa próxima aula vamos estudar como se configure a arte pós-moderna. Até lá releia cuidadosamente o texto
e reflita sobre os conceitos aqui apresentados.

NOTAS

1 SEVERINO, Antonio J. Filosofia. São Paulo: Cortez Editora, 1993, p. 178.

2 BEST, Steven & KELLNER, Douglas.The Postmodern Turn.s/l.: Guilford Publications, 1998, p. 92.

Aula 19 - A beleza e a moda: estética pós-moderna

Objetivo: Discutir as concepções pós-modernas de arte e estética, bem como falar da relação entre arte e
transformação social.

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As três formas distintas de descrever a arte que vimos na aula anterior têm em comum uma valoração, que
distingue a arte “erudita” da cultura popular – a qual não se chamava de arte. Em descrições pós-modernas da
arte, essa distinção é fortemente questionada. A recusa da distinção parte da premissa de que a distinção
somente foi válida em função das instituições envolvidas no comércio e difusão das obras de arte, e não na
própria obra de arte como tal. Ora, se a arte é expressão de vivências e sentimentos, se a arte é interpretação
da realidade feita pelo artista, nada justificaria a distinção entre arte e não-arte nas valorações ditas canônicas.
Usou- se o termo cânon (do grego, literalmente “medida” ou “regra”) de forma similar à usada no ambiente
religioso que atribui a um determinado conjunto de textos um caráter canônico, ou seja, de autoridade revelatória
e religiosa superior. O cânon artístico é constituído, nas concepções elitistas, somente das obras que são
reconhecidas como artísticas por instituições (e seu pessoal) detentoras da capacidade de apreciar e reconhecer
verdadeiras obras de arte, distinguindo-as das imitações, falsificações e também das más tentativas em se
produzir uma obra artística. Na pintura, por exemplo, Andy Warhol se notabilizou por seus quadros de
embalagens de produtos em supermercados. Na literatura, se passou a reconhecer o caráter literário de escritos
produzidos por pessoas “comuns”. Na música e na dança, é outorgado o reconhecimento artístico a expressões
“populares” e alternativas, tais como funk, hip-hop, etc. Grande valor estético é atribuído, nessas descrições
pós-modernas, a formas sincréticas de obras de arte, ou seja, obras de arte que misturam elementos muito
distintos entre si – tais como fotos, lenços, equipamentos antigos, imagens religiosas, etc. A essas formas
sincréticas se dá o nome de pastiche – valorizado particularmente pela sua transgressão das normas estéticas
descritas como modernistas (conforme acima).

As descrições pós-modernas da arte e da experiência estética podem ser classificadas como sendo de dois tipos
no tocante à relação da arte com a mudança social. Por um lado, há defensores de uma arte pós-moderna
completamente desvinculada de projetos políticos ou ideológicos – a arte feita, ou por amor à arte, ou,
simplesmente, como uma expressão pessoal, uma performance pessoal, uma realização individual e
individualista – até mesmo como uma forma de substituição do envolvimento sócio-político. Por outro lado, há as
pessoas que defendem o valor da arte e da experiência estética como meios de ampliação da

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consciência crítica e do comprometimento com as mudanças sociais em busca de um


mundo mais justo para todos. Dentre as formas de estética pós-moderna crítica (ou de
resistência) estão, por exemplo, aquelas que denunciam o caráter anti-feminino da maior
parte da arte moderna, bem como as que denunciam a elitização da arte e/ou o seu
ocultamento das injustiças, dos preconceitos e da violência.

Na segunda metade do século XX, outra descrição da arte encontrou espaço e boa
recepção entre filósofos e outros tipos de pensadores e pensadoras: a descrição da arte
como linguagem ou como discurso. Isto se dá na onda da semiotização das produções
humanas, decorrente da chamada virada linguística. O termo semiótica vem do grego
semeion=sinal, e é usado em vários sentidos, os quais destacam, porém, o caráter de
significação e comunicação do semeion (sinal ou signo). Semiotização é, assim, a
prioridade dada às técnicas linguísticas e/ou semióticas na compreensão e descrição dos
fenômenos culturais e científicos em geral. A arte é descrita, consequentemente, como
um tipo específico de comunicação, de produção e transmissão de significados –
poderíamos dizer, também, como um sistema simbólico. Nesta descrição, a obra de arte
passa a ser interpretada a partir de critérios derivados das diversas disciplinas
semióticas e de análise do discurso, e a própria experiência e sensibilidade estéticas
são vistas como formas específicas de apreciação e manifestação de sentidos e/ou
significados. A autonomia da arte (e do senso estético) é, assim, negada de tal modo
que a arte passa a ser vista e valorizada lado a lado com outras formas de produção de
significados. A experiência estética, que se valorava como algo muito especial, que
somente as pessoas capazes de entender a arte poderiam ter de forma qualitativa, é
democratizada e retirada da esfera platônica do Belo ou da esfera kantiano-hegeliana
do Sublime (aquilo que acontece de forma extraordinária, acima do nível ordinário da
percepção humana). A semelhança com as noções pós-modernas é visível, mas nem
todas as descrições da arte como linguagem podem ser denominadas também de pós-
modernas no sentido acima dado ao termo.

ARTE, ESTÉTICA E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL

Uma descrição da arte, concorrente com as descrições


modernas que enfatizaram a autonomia da arte em relação à
sociedade, pode ser
encontrada nos escritos de alguns autores da chamada Escola de Frankfurt (porque
seus proponentes lecionavam na cidade alemã de Frankfurt), também conhecida como
Teoria Crítica (porque defenderam a noção de que toda teoria sobre a sociedade
precisa ser crítica da sociedade e igualmente auto-crítica). Construída a partir de dados
provenientes do marxismo e da psicanálise, a descrição crítica da arte e da experiência
estética da Escola de Frankfurt teve como seus principais proponentes Theodor Adorno
(1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973). A arte modernista é vista
predominantemente de forma negativa – ao invés de ser uma forma adequada de
sublimação (o mecanismo mediante o qual, segundo a teoria psicanalítica, a pessoa
bloqueia adequadamente os impulsos destrutivos do inconsciente e os canaliza para
realizações sócio-culturais positivas), é concebida como uma forma de repressão – ou

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seja, os impulsos destrutivos do inconsciente são apenas “aprisionados” psiquicamente,
mas podem ser liberados em circunstâncias sociais específicas.

Com o surgimento dos processos tecnológicos de reprodução e distribuição, a arte passa


a se tornar uma indústria (não é mais necessário ir a um museu específico para se
apreciar um quadro de Picasso, por exemplo, pode-se apreciá-lo em revistas, gravuras,
na televisão, etc.) – de modo que, não só a obra de arte em si é modificada pelo meio de
difusão, mas também o seu potencial libertador (sublimador) é submetido às regras de
mercado, e a obra de arte se torna mais uma mercadoria. Enquanto mercadoria, contribui
ainda mais amplamente para a difusão dos mecanismos sócio- psíquicos de repressão.
A obra de arte, assim submetida à indústria cultural, torna-se reificada (do latim
res=coisa) e perde a sua aura (termo usado por Walter Benjamin, outro membro da
Escola de Frankfurt), aquela qualidade que faz de uma obra qualquer, efetivamente,
uma obra de arte. Embora a
teoria da indústria cultural não possa ser aceita em sua totalidade, ela destacou um aspecto importante, que é
amplamente reconhecido: o sistema capitalista possui uma capacidade imensa de transformar em mercadoria (em
coisa, objeto) toda e qualquer forma de trabalho realizada pelos seres humanos. A obra de arte, mercantilizada,
deixa de ter um potencial libertador (a nível pessoal e social) e passa a exercer um papel alienante (que separa
a pessoa da realidade e do compromisso com a mudança da realidade), um papel tranqüilizador, de modo que as
injustiças sociais não sejam enfrentadas adequadamente, mas apenas suportadas de forma mais tranquila. A
televisão, por exemplo, é descrita, na teoria da indústria cultural, como um dos meios tecnológicos de
comunicação mais apropriados para a alienação social. Por exemplo, através de seus programas jornalísticos e
para-jornalísticos, a violência é retratada de tal modo que as pessoas passariam a se tornar insensíveis para com a
mesma e passariam também a adotar a lógica da violência como resposta para a própria violência (o que se vê em
programas que exaltam a vingança – prender, arrebentar, matar... – diante de crimes cometidos contra as pessoas
“de bem”).

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Na próxima aula, continuaremos esta conversa, falando sobre a estética na hipermodernidade e também
sobre as implicações das concepções estéticas para a fé cristã.

Aula 20: A beleza e a moda: estética hipermoderna

Objetivo: Apresentar as reflexões de Gilles Lipovetsky sobre a moda e também discutir a importância das
questões estéticas para a fé cristã.

Antes de começar o estudo desta aula, assista aos vídeos: "Esgotamento da Modernidade e advento da Pós-
Modernidade" e "Pós- Modernidade como ruptura e continuidade". Você pode revisar, também, o vídeo
"Modernidade: a polissemia da expressão", da aula 3.

Um filósofo francês contemporâneo, Giles Lipovetsky, tem se dedicado a discutir filosoficamente não só temas
tradicionais da filosofia, mas temas quase sempre ignorados pela tradição filosófica. Entre esses temas, pesquisou
e escreveu sobre a moda e sua importância nas sociedades atuais. Em recente entrevista publicada em um jornal
da USP, ofereceu as seguintes características de sua descrição da moda:

De início, para precisar as coisas, quando utilizo o conceito de moda nas sociedades contemporâneas não limito a
questão da moda somente às roupas. A moda, doravante, tem uma lógica que anexa objetos e territórios os mais
variados e, no fundo, coincide com o desenvolvimento da sociedade de consumo e de comunicação de massa.
Ora, nos anos 60, tínhamos o costume, na tradição marxista, de analisar esta emergência da sociedade de
consumo como algo que sufoca o indivíduo, que massacra a individualidade com a manipulação do marketing e da
publicidade, mas creio que esta é uma visão que não coincide com a realidade, porque precisamente a sociedade
contemporânea, que legitima o prazer, que oferece sem cessar novas escolhas aos indivíduos, permitiu,
finalmente, o desenvolvimento do individualismo. Dizendo de outro modo, permitiu a paixão por governar-se a si
mesmo, a paixão pela autonomia individual na vida familiar, na vida sexual, na relação com a religião, até
mesmo na relação com o político.

Então, o crescimento do fenômeno da moda na sociedade contemporânea liga-se à sociedade pós-moderna na


medida em que foi a moda que nos arrancou da sociedade disciplinar, autoritária, convencional, em proveito de
uma sociedade hiperindividualista, na qual os indivíduos vivem em self-service, onde podem escolher seus
modos de vida e não mais submeter-se a coações, no trabalho em particular, ou na falta de trabalho, com a
questão do desemprego. Mas creio que o que é preciso compreender é que a produção de massa, que coincide
com a lógica da moda, foi um fator considerável de individualização de comportamento e esta individualização
nova, que se acrescentou, coincide com a pós-modernidade. (citado a partir da publicação online da entrevista.
Para ver a entrevista completa, clique aqui. Obs.: Para ler a entrevista completa, acesse o GoogleBooks através do

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link e role o cursor para cima para encontrar o início da entrevista).

Leitor e leitora atentos terão percebido o contraste entre a descrição de Lipovetsky e a descrição da indústria
cultural da Escola de Frankfurt. Para o filósofo francês, as novas situações oferecidas pela publicidade e
marketing, e pelas mídias eletrônicas e informáticas em geral, ao invés de reprimir os indivíduos e massificá-los,
possibilitam o aprofundamento do processo moderno de individuação, a tal ponto que as sociedades atuais podem
ser chamadas de hiper-modernas (ao invés de apenas pós-modernas) ou de hiper-individualistas, ao invés de
apenas individualistas (o prefixo hiper- é uma intensificação do prefixo super). Nesse processo, a moda ocupou
lugar importante, de fato, o principal meio de modificação das sociedades modernas repressoras (Lipovetsky
prefere usar a terminologia de Michel Foucault, ao invés da terminologia da Escola de Frankfurt – por isso fala em
“sociedade disciplinar, autoritária, convencional”).

A moda representaria, também, uma nova forma de experiência estética, não mais vinculada à obra de arte em
sua permanência, mas vinculada à transitoriedade do cotidiano, à efemeridade da vida (de efêmero, passageiro,
transitório). E a moda pode fazer isso porque sua lógica é distinta da lógica estética moderna – é a lógica do
presente e não a da permanência:

Hoje, a mídia, a informação, os objetos são inseparáveis da lógica da moda, quer dizer, da renovação e da
sedução, e então, é todo nosso ambiente cotidiano que é organizado pela lógica da moda. É um campo
extremamente extenso e a interrogação filosófica não pode permanecer estranha a este novo desenvolvimento
da moda. [...] A moda é uma estrutura social centrada sobre o presente, já que na moda é preciso mudar. O
modelo legítimo na moda é o atual, diferente das ideologias em que o tempo marcado é o futuro, ou da
tradição em que o tempo marcado é o passado. Ao contrário, a moda está centrada no atual, no presente,
por isso muda sempre. O laço entre a moda e contemporaneidade é quase essencial e a novidade da nossa
época é que esta lógica da contemporaneidade e do presente reencontra-se em quase todas as esferas e,
então, a lógica da moda é o que faz recuar cada vez mais a lógica da tradição, do respeito às formas do
passado em proveito da invenção contínua de novo ambiente, novas formas, novas maneiras de pensar. O que
não quer dizer que a moda destrói a cultura do passado, mas faz o passado perder sua força de imposição. A
moda, essencialmente, é reciclagem das formas antigas e o contemporâneo é fazer com que tudo o que nos

chega do passado reencontre-se reciclado na perspectiva da lógica da individualidade, da liberdade individual.1

Sem a intenção militante dos movimentos de transformação social ou dos agentes políticos, a moda acaba se
tornando o grande veículo de transformação da sociedade moderna em, efetivamente, uma sociedade de
indivíduos, regida pela lógica da individualização plena. A estética se amplia de tal forma que ocupa todos os
campos e setores da vida humana – pelo que se pode falar de uma estetização da vida, que atinge indistintamente
a política, a sexualidade, a ética e a religião. A lógica do presente, a lógica da renovação, da sedução, passa a se
tornar a lógica predominante no comportamento humano, afetando todos os setores da vida que passam a se
render a ela. No caso da religião, por exemplo, ao invés do compromisso ético, ou do compromisso doutrinário, ou
ainda do compromisso institucional, a lógica da religiosidade se torna a lógica do prazer individual, do consumo de
bens religiosos que permanentemente se renovam e se apresentam de formas cada vez mais efêmeras, e
sedutoras aos sentidos e aos desejos das pessoas.

UM DIÁLOGO ENTRE A FÉ CRISTÃ E A FILOSOFIA

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11/02/2022 18:37 Aulas
Várias contribuições à fé e à teologia poderiam ser discutidas no tocante às questões da estética filosófica. Uma
delas, por exemplo, seria a constatação da grande dificuldade das igrejas evangélicas brasileiras lidarem com a
arte em suas mais variadas formas. Embora o quadro geral esteja passando por mudanças significativas, ainda é
possível se afirmar que o protestantismo evangélico brasileiro praticamente em nada contribuiu com a dimensão
artística da cultura no Brasil. Podemos contar nos dedos das mãos as obras literárias, ou as obras musicais, por
exemplo, que, formuladas por evangélicos, tenham tido repercussão significativa na

cultura brasileira em geral. Isto nos faz perceber a importância de refletir e atuar mais adequada e ousadamente no
campo da contextualização do Evangelho – em sua descrição evangélica – em nossa cultura. Devemos aos
estudiosos da missão (missiólogos: pessoas que se especializam na missiologia) a valorização do termo e da
prática da contextualização – que poderíamos explicar como a adaptação crítica e relevante de valores e
princípios do Evangelho em uma cultura específica. Sabemos, agora, graças principalmente a missiólogos, que
o Evangelho não existe em “forma pura” (como uma espécie de Forma metafísica platônica), mas sempre em
formas contextualizadas – que apresentam maior ou menor qualidade de expressão da ação salvífica de Deus.
Precisamos reconhecer, conseqüentemente, a importância da experiência estética e das várias formas da arte
como veículos de contextualização do evangelho em nossa cultura e sociedade. Para fazer isto, porém,
precisamos discernir que tipo de estética e de arte seriam mais interessantes para que a mensagem do
Evangelho fosse comunicada de forma fiel e relevante. As diversas descrições da arte e da estética, neste
capítulo, podem ser usadas como um recurso para essa atividade de discernimento.

Outra possível aplicação se daria no campo da análise das práticas litúrgicas (cúlticas) presentes no meio
evangélico atual. Poderíamos perguntar até que ponto, por exemplo, formas litúrgicas que se apresentam como
“renovadoras” não seriam formas litúrgicas submetidas à lógica da moda e sua consequente hiperindividualização
e presentificação da adoração a Deus. Se assim for, como poderíamos buscar uma efetiva renovação litúrgica que
não fosse apenas um tipo de tradicionalismo saudosista? Se a lógica da moda não pode ser assumida como uma
lógica pertinente para a liturgia cristã, também a lógica tradicionalista não pode ser vista como a solução para as
questões litúrgicas. Você se lembra que, na descrição rortyana da filosofia, a tarefa desta é fazer dialogar passado
e presente, com vistas à construção de um futuro melhor? Citando novamente as palavras do próprio Rorty: “o
filósofo é útil na solução de problemas particulares que emergem em situações particulares – situações em que a

linguagem do passado está em conflito com as necessidades do futuro”.2 Isto nos indica que, no campo da liturgia,
um grande trabalho a ser feito é o trabalho “filosófico” da contextualização – visando a um futuro melhor para as
práticas litúrgicas e para as igrejas cristãs engajadas na missão de Deus em prol da salvação de toda a criação.

Mas a discussão mais importante a ser feita é aquela relativa às relações entre o modo argumentativo de se fazer
teologia e o modo estético (narrativo, literário, ou mediante outras formas de arte) de se falar da fé e fazer teologia.
Será a arte uma alternativa à religião na busca de reencantamento do mundo desencantado pela ciência
naturalista redutiva? Ocuparia a arte o lugar da religião e da teologia, ou poderíamos ver a arte como mais uma
aliada na busca humana por completude e transcendência? Poderemos redescrever a ética como uma estética da
existência?

NOTAS

1 D'ALMEIDA, Tarcísio. Moda em diálogos: entrevistas com pensadores. 1 ed. Rio de Janeiro: Memória Visual,

2012.

2 RORTY, Richard. “A filosofia e o futuro”. In: RORTY, Richard. Pragmatismo e Política. São Paulo: Martins, 2005,.

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