Você está na página 1de 370

DADOS DE ODINRIGHT

Sobre a obra:

A presente obra é disponibilizada pela equipe eLivros e


seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer
conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos
acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da
obra, com o fim exclusivo de compra futura.

É expressamente proibida e totalmente repudíavel a venda,


aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo.

Sobre nós:

O eLivros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de


dominio publico e propriedade intelectual de forma
totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a
educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer
pessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso site:
eLivros.

Como posso contribuir?

Você pode ajudar contribuindo de várias maneiras, enviando


livros para gente postar Envie um livro ;)

Ou ainda podendo ajudar financeiramente a pagar custo de


servidores e obras que compramos para postar, faça uma
doação aqui :)

"Quando o mundo estiver unido na busca do


conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e
poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a
um novo nível."

eLivros .love

Converted by ePubtoPDF
GEOPOLÍTICA, IMPERIALISMO E
DESIGUALDADES INTERNACIONAIS
 
 

 
 
 

JOSÉ WILLIAM VESENTINI


 
 
Editora do Autor, 2020
 
 

SUMÁRIO
Introdução...................................................................
Cap. 1 - Capitalismo, Estado e espaço
geográfico................
Cap. 2 - O imperialismo como
questão..................................
O ponto de vista dos
clássicos..............................
Marx, Engels e o colonismo
As leituras de Hilferding, Luxemburgo e
Kautsky
A interpretação de Lênin
Por quê a leitura leninista predominou?
Os continuadores e os
reformadores....................
Imperialismo ainda tem algum poder
explicativo?
As releituras de Magdoff e
Petras........................
Emmanuel e o intercâmbio
desigual....................
Império de Negri e
Hardt......................................
 
Cap. 3 - A geopolítica
global.....................................................
A ordenação geopolítica após a 2ª
Guerra Mundial
Militarização
Superpotências
A ordem mundial pós-guerra
fria............................
Uni ou
multipolar?...............................................
Globalização e revolução
tecnológica...................
Novos centros de
poder........................................
A dinâmica da nova
ordem..................................
Cap. 4 - Desenvolvimento e desigualdades
internacionais
Pressupostos do
imperialismo..............................
Motivos do
atraso..................................................
China e
Índia.........................................................
Os limites
ambientais............................................
As desigualdades
internacionais...........................
As desigualdades
sociais........................................
Desigualdades sociais na escala
mundial..............
Desenvolvimento, desigualdades e
democracia.......
As desigualdades são
imorais?..............................
A modernidade é
ocidental?..................................
O desenvolvimento é nacional ou
local?...............
Notas
Finais.......................................................................
 
 

Contracapa:
Geopolítica, imperialismo e desigualdades
internacionais é um estudo que explica e questiona a
teoria leninista do imperialismo, alicerce fundamental
para as explicações “radicais” sobre as relações
internacionais e as desigualdades entre as economias
nacionais. Procura ainda analisar as razões para o
desenvolvimento internacional desigual e
compreender em que medida as desigualdades
internacionais (e as sociais, na escala mundial) estão
aumentando ou diminuindo. Além de discutir o que
significa desenvolvimento sustentável e as relações
complexas entre desenvolvimento e desigualdades
sociais, como também entre desenvolvimento e
democracia.
 
 
INTRODUÇÃO
 

Esta é a terceira versão da obra. Foi publicada


originalmente em 1987 pela editora Papirus com o título
“Imperialismo e geopolítica global”, em pleno período da
guerra fria. Foi reeditada em 2003 pela mesma editora,
com atualizações e principalmente com inúmeros
acréscimos e reformulações. Daí o próprio título ter sido
parcialmente alterado para “Nova ordem, imperialismo e
geopolítica global”, pois o mundo ingressava em uma nova
ordenação geopolítica. E, afinal de contas, se tratava
praticamente de uma nova obra, mesmo que em certos
aspectos fosse uma continuação da primeira. Nesta nova e
última edição, de 2020, ela foi novamente atualizada e
também bastante reformulada em função de novos
acontecimentos que redefiniram ou evidenciaram com
maior clareza a nova ordem mundial. Entre estes, cabe
mencionar a ascensão da China, a recuperação da Rússia
e o final daquele período transitório no qual os Estados
Unidos pareciam ser uma “superpotência solitária”, além
do advento de novas pesquisas e teorias em especial na
questão do desenvolvimento humano e das desigualdades
sociais na escala mundial.
Por esse motivo modificamos novamente o título da
obra para “Geopolítica, imperialismo e desigualdades
internacionais”. Pois mais do que uma atualização, esta
edição é uma reformulação da anterior. Não que algumas
das ideias centrais, que resumiremos a seguir, tenham
sido radicalmente alteradas. Tampouco deixamos de lado
a análise da ordenação geopolítica global, agora
procurando compreender melhor suas tendências.
Continuamos enfocando criticamente a teoria do
imperialismo, pois ela contina sendo, implícita ou
explicitamente, o alicerce teórico por trás das
interpretações tidas como radicais da ordenação
geopolítica planetária. Especialmente das explicações
marxistas das relações internacionais e das desigualdades
de desenvolvimento entre as nações. Em todo caso, novos
problemas se impuseram, tanto pelas mudanças na
realidade como na própria discussão teórica. E algumas
partes dos livros anteriores, que da forma como estavam
redigidas interessavam quase que exclusivamente aos
geógrafos, foram retrabalhadas com vistas a uma
interlocução com outros especialistas ou mesmo com o
público letrado em geral.
Sua primeira versão, reiteramos, ocorreu na
penúltima década do século passado, ainda durante a
vigência da guerra fria e da ordem bipolar. A segunda
versão, bastante reescrita, ocorreu no início deste século
em função do final da guerra fria e da emergência de uma
nova ordem mundial. Esta ainda estava em seus
primóridios e vivíamos então um momento transitório de
perplexidades. Basta lembrar que ainda se acreditava
numa indiscutível monopolaridade e alguns chegaram até
a falar num império comandado pelos Estados Unidos, o
que depois se mostrou ilusório. Ninguém imaginava, nos
primórdios do século, que a China se tornaria a primeira
economia mundial e a Índia estaria no caminho para se
tornar a segunda ou no máximo a terceira já em meados
do século, algo que hoje parece cada vez mais evidente.
Como também ninguém previa a recuperação da Rússia,
na época combalida e dominada por máfias e negócios
escusos, mas que já na segunda década do século passou
de novo a atuar geopoliticamente como uma potência.
Invadiu e anexou parte do território da Ucrânia, forneceu
sólido apoio militar para a continuidade do governo
ditadorial da Síria, apesar da oposição dos Estados Unidos
e de Israel, barrou a tentativa norte-americana de impor
sansões ao regime norte-coreano, ajudou na manutenção
do governo Nicolás Maduro na Venezuela, etc.
Nesta última versão, procuramos evidenciar melhor a
nova ordem mundial com seus traços e tendências
principais. Como também procuramos analisar com maior
profundidade a questão do desenvolvimento, pois sua
conceituação se alterou em função de novos estudos e
ocorrências. Primeiro, com o rápido crescimento
econômico da Índia e principalmente da China, que nesta
segunda década do século se tornou no país mais
industrializado do mundo. Depois com a inegável
diminuição da fome e da pobreza absoluta na escala
global, tanto em termos absolutos como principalmente
em relação ao total da população mundial, apesar da
persistência desses problemas em boa parte da África
subsaariana. E o próprio entendimento do que significa
desenvolvimento se alterou radicalmente com a
valorização das liberdades democráticas e principalmente
da sustentabilidade – não somente ambiental, mas
também econômica, cultural e social.
O objetivo último deste livro, no entanto, continua o
mesmo: o de expor, de forma simples e acessível ao
grande público, elementos para uma compreensão das
relações de poder ou da geopolítica no espaço mundial.
Trata-se de uma exposição até certo ponto didática sobre
as relações e imbricações entre espaço e poder na escala
global ou planetária, o que inclui, entre outras coisas, a
compreensão das desigualdades internacionais. Os
principais temas abordados são: o imperialismo e a
questão das desigualdades internacionais, a dinâmica da
nova ordem, a geopolítica e a geoestratégia mundiais.
Por que sucessivas reedições com reformulações?
Não seria melhor deixar de lado a obra original e publicar
outra com um título completamente diferente e não
somente parcialmente modificado? Acreditamos que não
por dois motivos principais. Primeiro, que foram realizados
acréscimos e atualizações, reformulações inclusive, mas
não ao ponto de serem obras totalmente diversas.
Segundo, que a problemática que este livro iniciou – a
discussão sobre a pertinência da categoria imperialismo
para se analisar as desigualdades entre os Estados
nacionais e as relações de poder na escala global – ainda
não se esgotou. Pelo contrário, tornou-se mais importante
ainda no transcorrer deste novo século. Vamos explicar o
porquê disso nas linhas a seguir.
De fato, uma das questões essenciais que
perpassam as ideias aqui expostas é a seguinte: constitui
a teoria do imperialismo, especialmente na sua versão
leninista – que se tornou dominante a partir de 1917 –, um
arcabouço conceitual suficiente, ou mesmo relevante, para
se entender os problemas atuais de relações de
dominação e de desigualdades no nível planetário?
Essa interrogação, que já era importantíssima em
1987, o era ainda mais em 2003, quando o poderio
avassalador dos Estados Unidos, a única superpotência
atuante naquele momento, parecia confirmar a ideia de
um “novo imperialismo”, um “superimperialismo’ ou, como
preferem alguns, de uma “nova Roma” com o seu império
mundial1. Mesmo hoje, em 2020, quando já é evidente o
enfraquecimento (relativo, é claro) dos Estados Unidos e a
ascensão da China e de outros polos econômicos e
geopolíticos, ainda há muitos que advogam a versão que a
globalização nada mais é que uma nova roupagem para o
imperialismo. Ou que as desigualdades internacionais
continuam se ampliando. Entre outras preocupações, foi
exatamente para dialogar criticamente com esses tipos de
interpretações, quase hegemônicas nas universidades
brasileiras, que elaboramos as sucessivas versões desta
obra. Basta lembrar que ainda hoje, na porta da terceira
década do século, a mídia em geral continua a propalar,
muitas vezes com auxílio de acadêmicos, essa
interpretação que as desigualdades internacionais – ou
que a pobreza e a fome – estão aumentando ou que os
países mais pobres estão nessa situação porque são
explorados.
Todavia, como pretendemos demonstrar, essas
representações do “novo imperialismo” (a globalização) e
do constante agravamento nas desigualdades
internacionais são superficiais e completamente
inadequadas para uma correta compreensão das relações
de poder (sejam econômicas ou político-militares) na
superfície terrestre em nossos dias. São representações,
convém ressaltar, no fundo herdeiras e/ou continuadoras
da teoria leninista do imperialismo. Assim, cabe recuperar
as balisas fundamentais da(s) teoria(s) do imperialismo,
para evidenciar que foi uma rica e plural construção
teórica e por quais motivos a versão leninista se tornou
hegemônica.
De forma genérica (iremos aprofundar essa
explanação no capítulo 2), podemos afirmar que o
imperialismo foi visto pelos autores clássicos como a
política expansionista do capital financeiro das metrópoles
capitalistas. O Estado-Nação típico ou o Estado territorial
no seu momento áureo, aquele do final do século XIX e da
primeira metade do século XX, foi percebido como o
garantidor dos interesses da reprodução ampliada do
capital das áreas centrais, em especial das grandes
empresas capitalistas do período – os trustes e os cartéis.
As guerras de pilhagem e interimperialistas foram tidas
como inevitáveis, sendo que o socialismo seria um ponto
de chegada desse processo contraditório, ocasião em que
cessariam os conflitos armados e a exploração econômica
internacional. Todavia, a situação posterior a esses autores
clássicos, o mundo pós-Segunda Guerra Mundial, e mais
ainda o advento da globalização e da revolução técnico-
científica, vivenciaram acontecimentos e processos que
destoaram dessa interpretação e evidenciam outra
realidade.
O capital produtivo se internacionalizou, ocorrendo
a partir de 1945 uma enorme expansão das empresas
multinacionais – ou ou transnacionais, como preferem
alguns com a imaginosa alegação que algumas dessas
empresas são mais poderosas que os Estados nacionais ou
estariam “acima deles”. Considero esta versão fantasiosa
e sem fundamentação na realidade. Esses dois prefixos
(multi e trans), neste caso específico, têm o mesmo
significado. As soberanias estatais sobre seus territórios
ainda não se extinguiram, exceto para os chamados
“Estados falidos” pelas organizações internacionais, mas
que por isso mesmo não são atrativos para investimentos
estrangeiros. Os Estados nacionais, pelo contrário, não
apenas controlam a atuação das empresas em seus
territórios, sejam nacionais ou estrangeiras, como até
mesmo monitoriam e influenciam os tradicionais meios de
comunicações e, em vários casos – na China, na Rússia, na
Coreia do Norte, em vários países islâmicos – até
estipulam o que pode ou não entrar na internet e nas
redes sociais no espaço sob suas soberanias.
Isso patenteia que não tem qualquer sentido usar o
prefixo “trans” com o significado de acima ou além da
soberania estatal. Atente-se ainda para as multas e
imposições que países europeus impõem aos gigantes da
tecnologia, que hoje são provavelmente as empresas mais
poderosas do mundo. Apesar dos protestos norte-
americanos, pois grande parte dessas firmas ainda são
estadunidenses, embora empresas chinesas estejam se
expandindo neste setor. Ou para as proibições para fusões
de certas empresas com o objetivo de evitar monopólios
ou cartéis. Ou ainda a recente fixação de prazos para que
não mais existam veículos automotivos movidos a
combustíveis derivados do petróleo, apesar dos reclames
das empresas petrolíferas tidas por alguns como os
maiores exemplos de firmas transnacionais.
Ademais, existe o fato que muitas das maiores firmas
multi ou transnacionais têm hoje as sua matrizes em
economias antes tidas como periféricas. Alguns países que
eram vistos como integrantes da periferia do capitalismo
mundial, ou então como subdesenvolvidos – como Brasil,
Turquia, África do Sul, México, Malásia, Indonésia e em
especial China, Índia e os “tigres asiáticos” (Coréia do Sul,
Cingapura, Hong Kong, Taiwan) – conheceram um notável
processo de crescimento econômico e particularmente
industrial (superior ao dos países ditos centrais ou
desenvolvidos) e hoje sediam poderosas empresas
multinacionais. Essas empresas, na verdade, sempre são
nacionais que se internacionalizaram. Em última instância,
elas recorrem ao seu Estado de origem para buscarem
eventuais proteções. Basta lembrar que o governo dos
Estados Unidos procura defender (nem sempre com
sucesso) empresas como Apple, Microsoft, Google,
Facebook e outras de sansões europeis ou de outras
partes do mundo. E a China procura da mesma forma
defender os interesses de empresas como a Huawey ou a
Xiaomi, que em grande parte são estatais, daí mais um
motivo para se duvidar daquele sentido forte do termo
transnacionais. Da mesma forma, o Estado sul-coreano
procura defender os interesses externos de suas principais
multinacionais como a Samsung, a LG ou a Hyundai, as
quais só puderam crescer e se expandir
internacionalmente graças à ação e aos objetivos desse
mesmo Estado. Exemplos assim poderiam ser
multiplicados.
Essa eventual defesa de firmas nacionais no
estrangeiro não ocorre porque o Estado (ou o governo)
seria apenas um “comitê para os interesses da burguesia”,
tal como na infeliz declaração de Marx e Engels. Ocorre
porque elas representam o poderio extraterritorial da
economia nacional. No caso de não desempenharem esse
papel, de eventualmente contrariarem os interesses do
Estado de origem, mesmo que sejam interesses eleitorais
do governo vigente, elas podem e costumam ser
penalizadas pelo poder público com pesadas multas,
aumento seletivo de impostos ou subsídios para
concorrentes. Há centenas de exemplos desse tipo.
Quando a economia sul-coreana passou a crescer
lentamente, o governo exigiu reformulações nos
conglomerados – os chaebol (Hyundai, Samsung, Daewoo,
LG e outros) –, que por sinal só se expandiram devido ao
forte apoio estatal. Ou mais recentemente, com deplorável
governo Trump, nos Estados Unidos, que por motivação
eleitoral exigiu – e conseguiu, pelo menos em parte, à
custa de ameaças de sansões – que empresas que
transferiram fábricas para o exterior (na ocasião, com
amplo apoio governamental) trouxessem de volta parte
dos empregos que foram exportados. Empresas com os
maiores valores de mercado do mundo, como Facebook,
Google e outras, só atuam em certos países se
obedecerem às rígidas regras (inclusive de censura a
conteúdos ou mesmo de quebra de sigilo de algum usuário
a pedido do governo local, algo inadmissível no seu país
de origem), sob o risco de serem expulsas a qualquer
momento. Menos recente, porém de grande impacto, foi a
estatização das poderosas empresas petrolíferas (que
eram vistas como o maior exemplo de empresas
transnacionais) no mundo árabe e em vários outros países.
Nos dias atuais, ao contrário do que ocorria até os anos
1970, praticamente todas as maiores empresas no setor
de gás e petróleo no mundo são estatais: Aramco (Arábia
Saudita), KPC (Kuwait), ADNOC (Abu Dhabi), Gazprom
(Rússia), CNPC (China), PDVSA (Venezuela), Statoil
(Noruega), Petronas (Malásia), NNPC (Nigéria), Pemex
(México), Petrobras (Brasil) e outras, que há muito já
desbancaram as outrora poderosíssimas “sete irmãs”
(Exxon, Texaco, Shell, British Petroleum, etc.).
As guerras entre as potências capitalistas, tidas por
Lênin como inevitáveis na fase imperialista (que ele
entendia, equivocadamente, como a “última” do
capitalismo), parecem ter cessado, dando lugar aos
múltiplos conflitos armados nas áreas periféricas. E
também a organizações terroristas e/ou guerrilheiras,
mas que hoje, ao contrário do passado até os anos 1980,
não mais falam em nome de uma pretensa luta
antiimperialista. Até o final do século passado, existiam
autores que defendiam a tese do “subimperialismo”, pela
qual determinados Estados da periferia – como nos
exemplos do Brasil, da África do Sul, da Índia, da
Indonésia e até mesmo do Irã anterior à revolução
muçulmana de 1979 – desempenhariam papéis de
metrópoles subcentrais frente aos países vizinhos, com os
quais manteriam relações de dominação e de reforço-
manutenção do sistema capitalista mundial. Essa versão,
derivada da teoria leninista do imperialismo, naufragou
com a formação de “blocos” ou mercados regionais (como
Apec, Mercosul, União africana e outros), nos quais
predomina a integração e não a submissão/dominação.
Como também pelas mudanças em alguns desses polos
(Irã, por exemplo) ou mesmo pelo maior crescimento de
países que teoricamente estariam sob o jugo de outros
(como a Nigéria frente à África do Sul).
As nações auto-intituladas socialistas, ao contrario
do que se pensava no inicio do século XX – momento em
que emergiu com vigor a problemática do imperialismo
com Hilferding, Kautsky, Rosa Luxemburgo e Lênin, para
citar apenas alguns nomes importantes ligados a essa
temática –, não principiaram nenhuma desmilitarização,
nenhuma cooperação international amistosa e igualitária,
e tampouco a ausência de guerras entre si. O pensamento
auto-intitulado de esquerda teve de refletir agudamente,
repropondo alguns de seus alicerces teóricos, ao se
defrontar com o esmagamento da insurreição húngara de
1956, com a invasão da antiga Tchecoslováquia em 1968
pelas tropas do Pacto de Varsóvia, com a sangrenta
guerra entre o Vietnã e o Camboja (ambos tidos como
socialistas) e com inúmeros outros acontecimentos
similares, que não fazem sentido dentro de uma certa
interpretação do marxismo que foi se tornando
hegemônica a partir da Revolução Russa de 1917 e, de
forma especial, com a Terceira International, a
International Comunista.
Pode-se lembrar também da guerra fria, onde se
assistiu a uma rivalidade/cooperação (no sentido de
expansionismo conflituoso, mas com uma conivência
mútua e obedecendo sempre às implícitas "regras do
jogo") entre as duas superpotências da época – os
Estados Unidos e a União Soviética –, cada uma com a
sua área de influência. Ou ainda as reviravoltas da
política chinesa: do rompimento com Moscou em 1960 à
"revolução cultural" subsequente, passando a seguir, em
especial a partir de 1976, a uma crescente abertura ao
mercado capitalista com uma expansão da economia de
mercado e do consumismo, que gerou uma inegável
melhora nas condições de vida da população em geral
(seu IDH) e, ao mesmo tempo, um agravamento nas
desigualdades sociais e territoriais. Por sinal, grande
parte da chamada esquerda não consegue compreender
que é possível existir crescimento econômico e humano-
social (com redução da pobreza e da fome, com
ampliação da expectativa de vida, com diminuição da
mortalidade infantil, com maior escolarização, etc.)
concomitante a um aumento das desigualdades sociais.
Iremos discutir essa questão no capítulo 4.
Como adequar todas essas transformações
históricas em relação à interpretação clássica do
imperialismo? Seria necessário – e suficiente – referir-se a
um “neoimperialismo” (com ou sem os seus
“subimperialismos”), como propõem alguns, ou então ir
mais longe e propor novas teorias/conceitos que
prescindam da noção de imperialismo? Não seria essa
noção, essa interpretação clássica e renitente, uma
construção teórica já superada pela própria dinâmica do
real?
Não se trata de uma questão meramente
semântica, no sentido mais estrito. Trata-se da
compreensão crítica de aspectos fundamentais do mundo,
da realidade geopolítica planetária, algo indispensável
quaisquer posicionamento e ação na escala global. A
teoria do imperialismo, bem ou mal formulada, foi até há
pouco tempo o principal instrumento conceitual utilizado
para as explicações de “esquerda” – marxistas,
principalmente, mas também socialistas em geral e até
(neo)anarquistas – a respeito da problemática econômico-
política internacional. Ela ainda é, explícita ou
implicitamente, o principal alicerce teórico-conceitual
para grande parte dos que hoje se opõem à globalização.
Desde as teorias da dependência até as explicações
“radicais” sobre o subdesenvolvimento, passando por
inúmeras ideologias terceiro-mundistas – e também
múltiplas retóricas antiglobalização –, todos esses
discursos via de regra, implícita ou explicitamente,
procuravam ou procuram se apoiar na temática do
imperialismo. Esta última é vista como uma espécie de
"gancho" ou sólido apoio teórico no qual todos aqueles
discursos ou interpretações do mundo procuram se
sustentar enquanto forma de legitimação no interior do
pensamento dito “crítico” ou “radical”.
Dessa forma, questionar ou repropor a teoria do
imperialismo significa repensar alguns dos elementos
mais basilares da visão de mundo dominante durante
mais de um século no pensamento de esquerda em geral
e em especial na tradição marxista. Nesta, o século XX foi
interpretado como o (inexorável) momento "de transição"
do capitalismo para o socialismo, sendo que as
"revoluções proletárias" que efetivariam esse processo
iriam ocorrer primeiramente nos países subjugados pela
rapina imperialista.
Para se reatualizar ou, no extremo, superar a
temática do imperialismo à luz da crítica de seus
pressupostos e, principalmente, a partir do seu confronto
com a realidade hodierna, pensamos que é indispensável
trabalhar com a dimensão geopolítica. Geopolítica antes
tão vilipendiada nessa tradição teórica tida como de
esquerda, mas que hoje é cada vez mais revalorizada. A
realidade geopolítica no nível planetário (as relações de
poder entre os Estados) é imprescindível para essa
superação da leitura centrada no imperialismo e por
conseguinte no econômico, isto é, numa pretensa lógica
inelutável do sistema capitalista. Assim, temos que levar
em conta (embora criticando ou buscando superar) os
clássicos do imperialismo – Lênin, Rosa Luxemburgo,
Hilferding, Kautsky . Mas temos também que incorporar
criticamente os clássicos e os contemporâneos da visão
geopolítica: MacKinder, Brzezinsky, Kissinger, Kennedy,
Huntington e outros.
Sem dúvida que são duas tradições discursivas
diferentes e até, em alguns aspectos, alternativas e
comumente tidas como antinômicas. Uma delas – a
vertente do imperialismo – denega a análise das relações
internacionais, que é a essência da outra, isto é, da
análise geopolítica. Procura mostrar uma lógica única e
centrada na produção (onde se insere a exploração social)
e expansão do sistema capitalista mundial, minimizando a
importância dos Estados-nações. Já a outra – a vertente
da geopolítica – não valoriza tanto esse sistema produtivo
mundial (a não ser como somatória das ações dos
Estados, os atores que privilegiam) e raciocina não em
termos de uma lógica econômica e sim de estratégias em
confronto. Creio que ambas percebem ou compreendem
alguns processos que efetivamente existem, embora
sejam parciais ou unilaterais. Podemos até advogar que
elas se complementam, ou podem se complementar,
mesmo que uma tenha sido forjada por autores de
“esquerda” e a outra por teóricos normalmente rotulados
como de “direita”.
Na escala planetária existe sim uma (ou talvez
algumas) lógica econômica que se impõe, aquela da
mercadoria e da busca de lucros, que é importantíssima
para a atuação do sistema financeiro e das empresas em
geral. Mas também existem outras lógicas ou outros
atores que agem segundo diferentes imperativos: o
Estado, em primeiro lugar, e outros grupos, atores ou
organizações importantes nas mudanças que ocorrem no
cenário internacional: grandes culturas ou civilizações,
máfias e grupos criminosos e/ou terroristas, organizações
internacionais intergovernamentais e não
governamentais, etc. Sem esquecer, naturalmente, dos
meios de comunicações globais – não mais apenas
aqueles tradicionais, como televisão, rádio e jornais, mas
também redes de computadores, redes sociais ampliadas
pelos telefones celulares, que foram extremamente
importantes na “primavera árabe” de 2010-3 ou no
recrutamente de militantes para o Estado islâmico.
A(s) teoria(s) do imperialismo procura(m) explicar
a lógica econômica, aquela das transferências
internacionais de capital, de mercadorias, de tecnologia,
de mão-de-obra. Algumas de suas observações são
agudas e pertinentes. Mas não enxerga os outros fatores
e vê o mundo econômico (capitalista) de uma forma
estreita, como se nele só existissem exploradores e
explorados, como se fosse impossível qualquer
associação comercial com benefícios mútuos. Daí, por
exemplo, a incapacidade dos autores marxistas de
compreenderem, desde o início, o processo de unificação
da Europa.
A visão geopolítica, por sua vez, procura explicar a
lógica da ação interestatal, campo no qual produziu
inúmeras ideias profundas e duradouras. Só que ela
minimiza, ou costumava minimizar, a (relativa) autonomia
do sistema financeiro internacional, a atuação das
empresas globais e pouco se preocupa com os demais
atores – com as grandes culturas ou civilizações, com as
ONG’s, com as associações de classe, de etnias, de
gênero, etc. –, os quais apenas enxerga como empecilhos
a serem enfrentados pela ação estatal.
Isso significa que ambas tradições teóricas são
importantes e ao mesmo tempo insuficientes para
compreendermos a realidade internacional dos nossos
dias. Mas o processo do conhecimento, em qualquer área
científica e em especial nas ciências humanas, é sempre
dinâmico e sujeito a mudanças às vezes inesperadas.
Novas ideias são criadas somente através da superação –
o que não significa abandonar totalmente e sim
incorporar parcial e criticamente, explorar novos
caminhos, construir novas vertentes explicativas – das
tradições que engendraram importantes teorias e
métodos.
Buscar uma explicação crítica – e também, porque
não dizer, complexa (no sentido da teoria da
complexidade, onde há a convivência do acaso com a
necessidade, de múltiplos fatores que se entrecruzam e
se influenciam reciprocamente) – da atual realidade
planetária, a nosso ver, passa necessariamente pela
análise da sua dimensão espacial. Conforme demonstrou
com muita pertinência Michel Foucault2, as relações de
poder, em qualquer nível (do micro ao macro, do arranjo
espacial dos tribunais ou da sala de aula às relações
internacionais), sempre necessitam e engendram uma
certa (re)organização do espaço. Seja no plano
econômico, político-diplomático, militar ou até cultural,
essas relações de poder não se inscrevem numa lógica
puramente temporal, mas só existem enquanto situações
concretas de lutas e estratégias, de ações e reações, de
domínios e confrontos, de materialidades e de fluxos
intangíveis que sempre ocorrem no e com o espaço. A
dimensão espacial recoloca o contingente, as diferenças e
alteridades, a complexidade que existe por trás de uma
lógica aparentemente unívoca. É por isso que não existe
“o” poder, no singular, e sim poderes (que se exercem
nos e com os espaços) ou situações concretas de
exercício do poder.
Daí iniciarmos o primeiro capítulo deste livro com
uma sucinta análise ou interrogação sobre a
espacialidade da sociedade moderna. Não somente
porque esse é o nosso enfoque ou approach, algo
evidente num especialista em geografia política.
Tampouco apenas pela indissociabilidade entre poder (ou
poderes) e espaço (ou espaços), um entendimento que
nos permite superar a interpretação teleológica do real,
pois esta tem como âmago o tempo histórico ou a história
vista como a realização progressiva de ou um sentido
preestabelecido. Mas também porque a problemática do
imperialismo sem nenhuma dúvida sempre esteve ligada
ao estudo ou à uma determinada explicação do espaço
mundial com ênfase na questão da violência e em
especial da guerra.
Os próprios debates – talvez os mais agudos entre os
clássicos do imperialismo – sobre a possibilidade de um
"superimperialismo" no qual as guerras entre as
potências capitalistas não mais seriam inevitáveis
(posição de Kautsky, criticada por Lênin), já demonstram
essa forte ligação entre a teoria do imperialismo e a
questão da guerra. E o capitulo exemplar de Rosa
Luxemburgo sobre "militarismo e acumulação de capital",
exatamente na obra em que a autora se refere ao
imperialismo, evidencia isso com mais vigor. Mas os
clássicos do imperialismo apenas resvalavam sobre essa
questão, percebiam a sua enorme importância para a
análise das relações internacionais (ou melhor, para as
perspectivas de uma eventual “revolução mundial”) e, no
entanto, não conseguiam aprofundá-la. Mais do que não
conseguiam, eles na verdade não podiam aprofundar essa
questão, pois a sua forma de encarar o mundo sempre foi
marcada por um forte viés de negligenciar o espaço e
enfatizar somente o tempo, visto na sociedade moderna
como pura lógica comandada pelo movimento do capital.
 
Cap. 1 - CAPITALISMO, ESTADO E ESPAÇO
GEOGRÁFICO
 

A emergência e o desenvolvimento da sociedade


moderna ou capitalista, desde seus albores nos séculos
XV e XVI e principalmente a partir da Revolução Industrial
iniciada em meados do século XVIII, implicou numa
profunda reorganização do espaço e do tempo. Estamos
nos referindo, evidentemente, ao tempo histórico-social e
ao espaço geográfico, o espaço ocupado e (re)produzido
pelos seres humanos, que há tempos abrange toda a
superfície terrestre. Nesses termos, a ordenação do
mundo capitalista teve como alguns de seus pressupostos
fundamentais, além da condenação do ócio e da
valorização do trabalho com vistas a acumular bens, uma
instrumentalização do espaço e do tempo.
Pela primeira vez na história da humanidade passa a
existir, gradativamente, uma temporalidade una para
todas as sociedades, a temporalidade capitalista, onde
tempo é dinheiro, é valor de troca: "se gasta e não mais
se passa"3. E também pela primeira vez surge, ou melhor
foi construído um espaço mundial, fruto da expansão do
capitalismo e do estabelecimento de uma divisão
internacional do trabalho na escala planetária. As
temporalidades e as espacialidades plurais e
diferenciadas, das inúmeras sociedades que viviam os
seus espaços-tempos próprios, no decorrer de três ou
quatro séculos foram violentamente submetidas e
destruídas e/ou subordinadas à dinâmica do capitalismo.
Nesses termos, espaço e tempo sociais,
entendidos como elementos interligados e indissociáveis,
não são dados ou dimensões cuja realidade se possa
estabelecer a priori. Eles são dimensões ou formas de
existir do ser social. A historia não está no tempo mas ela
é o tempo da sociedade. E também não se pode dizer de
forma estrita que a sociedade está (ou "ocupa lugar") no
espaço, pois, de forma mais apropriada, ela possui uma
dimensão espacial ou material, uma espacialidade enfim.
Espaço é o nome que se dá para a corporeidade, a
materialidade dos seres e as suas relações e disposições
recíprocas; e o tempo é uma dinâmica do social, o seu
movimento no sentido de transformações. Tempo e
espaço são indissociáveis porquê não há movimento ou
mudança que não ocorra num lugar, que não envolva
objetos, assim como as ações no sentido de reorganizar o
espaço necessariamente ocorrem num lapso de tempo, ou
melhor, constituem tempo.
Portanto, uma sociedade não apenas está no espaço,
mas ela também é espaço ou tem uma espacialidade,
uma dimensão espacial. Ela é um espaço social, mesmo
com a presença da natureza original, e ao mesmo tempo
o constrói, (re)organiza, (re)produz constantemente. O
espaço geográfico não é um “vazio” preexistente que foi
ocupado pela natureza original e depois modificado pela
ação humana. Ele é todo o conjunto formado pelos
objetos e fluxos (materiais e imateriais) dos seres
humanos ou produzidos por eles: as cidades, os edifícios,
os campos de cultivo, as estradas, as fronteiras, as
comunicações, etc. Não é algo inerte e sim dinâmico,
resultado de ações e reações, de confrontos, de lutas que
mudam, conservam ou (re)produzem os movimentos e as
coisas.
Sem dúvida que o espaço geográfico, como
propagam há séculos os geógrafos, é o resultado em
primeiro lugar da apropriação humana da natureza: tudo o
que existe no final das contas, até mesmo o corpo
humano, é um aspecto ou parte da natureza. Mas a
humanidade, em especial a sociedade moderna na sua
forma plena ou industrial (e mais ainda na sua forma pós-
industrial ou tecnológica), reelabora essa natureza original
produzindo assim uma “segunda natureza”, que se
encontra subsumida na dinâmica do social. Essa segunda
natureza existe de forma mais acabada nas grandes
cidades, nas quais não apenas as obras, os edifícios, as
praças, as avenidas, os transportes e toda a infra-
estrutura são resultados do trabalho humano sobre a
natureza, mas até mesmo o (micro-)clima, o solo, as águas
ou a vegetação expressam em suas características as
marcas da ação antrópica. Podemos assim afirmar que o
espaço moderno é uma forma de existência, um campo de
atuação e de conflontos e ao mesmo tempo uma obra num
duplo sentido: como construção (ou produção) pela ação
humana, e como criação ou objeto de arte.
Mas esse espaço, ou espaços na medida em que é
pleno de diferenças e peculiaridades, não é tão-somente
uma segunda natureza – com ou sem a sobrevivência de
aspectos da primeira natureza, embora mesmo estes
foram de certa forma apropriados pelo social. Por um lado
ele é, especialmente na escala local, afetividade ou
elemento indissociável das emoções e sentimentos da
população que aí vive e com ele se identifica. Por outro
lado, ele é ao mesmo tempo condição e produto da
história, das contradições e conflitos entre grupos, classes,
etnias, gêneros: não se luta apenas no espaço mas
também pelo espaço e com o espaço. São inúmeros os
exemplos que demonstram esse fato. A reorganização do
espaço nacional ou do espaço urbano de Paris pelos
revolucionários de 1789 e posteriormente pelos
participantes da Comuna de 1871, que promoveram
alterações das funções ou usos em edifícios, trocas de
nomes de ruas e praças, destruição de estátuas e
monumentos, remanejamentos territoriais administrativos,
etc. As mudanças na localização da cidade-capital por
parte dos governantes com vistas ao maior controle social
e menor participação popular nas decisões politico-
institucionais (recorde-se aqui de Versalhes da época do
Absolutismo, para citar apenas um caso). A transferência
de parques industriais de áreas nas quais a organização e
tradição de combatividade da classe trabalhadora é forte
para locais onde a fragilidade desses fatores permite
maiores controle e taxa de lucro. Há ainda as lutas pela
posse e por certo tipo de uso da terra no campo e na
cidade, as demandas por moradia popular ou por lugares
públicos nas cidades, etc.
O espaço é igualmente uma das condições – e a
expressão mais visível – do exercício da hegemonia do
Estado, das empresas e da(s) classe(s) dominante. O
poder se exerce no e com o espaço. A lógica do poder
disciplinar, por exemplo, é a ordenação espacial: "A
disciplina e, antes de tudo, a analise do espaço. É a
individualização pelo espaço, a insersão dos corpos em um
espaço individualizado, classificatório, combinatório."4
Pode-se mesmo "ler" o poder através de sua
dimensão espacial: o desenho urbano de uma cidade
(especialmente se for planejada), o zoneamento, a
monumentalidade de certos edifícios públicos (ou de
empresas de grande porte), o nome de ruas ou praças, a
estrutura fundiária no campo, etc., são expressões no
espaço – e, portanto, observáveis e normalmente até
cartografáveis – das relações de poder e dominação. Até
na escala dos micro-espaços esse fato e perceptível. A
organização espacial de um tribunal, por exemplo,
manifesta uma certa concepção histórica de justiça com o
lugar determinado do juiz, do réu, do promotor e do
advogado, do público, etc. E uma sala de aula comum,
com as carteiras dos alunos enfileiradas e voltadas para a
"frente" (para a mesa do professor, para o quadro-negro),
representa uma forma de organização do espaço que
surgiu no final do século XVIII. Essa organização espacial
expressa (e ao mesmo tempo serve a) uma nova
concepção de ensino: o sistema escolar contemporâneo da
Revolução Industrial e da urbanização, da parcelarização e
institucionalização do saber que se divide em
conhecimentos (as "disciplinas" escolares). Como também
do "lugar" preestabelecido da verdade (os órgãos oficiais e
o seu representante, no caso o professor), que deve então
ser apenas reproduzida e assimilada mas não engendrada
na pratica educativa. Mas sem dúvida que a rebeldia de
professores e alunos pode subverter esse arranjo espacial
e implementar outras concepções de ensino-
aprendizagem.
Portanto, a organização, estruturação e construção do
espaço via de regra manifesta ou expressa os interesses
dominantes, em especial aqueles do Estado
(principalmente dos mais poderosos) e do grande capital.
Isso desde o nível dos micro-espaços até a escala
planetária – na qual existe a globalização com uma
(extremamente dinâmica e mutável) divisão internacional
do trabalho, a compartimentação da superfície terrestre
em Estados-Nações com as suas fronteiras e soberanias. E
uma hierarquia, mesmo que provisória, formada pelas
grandes potências mundiais e potências médias ou
regionais, com suas respectivas áreas de influência.
Contudo, as contradições também estão presentes
no espaço, que muitas vezes evidencia interesses
populares que vingaram. Como também o tempo se
expressa no espaço, com a convivência num mesmo local
de objetos e construções de diferentes épocas.
Contradições ou tensões entre classes e grupos
dominantes, entre dominantes e dominados, entre
Estados, entre facções do capital ou empresas, entre
gêneros, entre etnias e/ou grupos culturais. No caso do
espaço urbano das grandes cidades, por exemplo, com
frequência temos de um lado os interesses imobiliários
voltados para a lógica do lucro e, ao mesmo tempo (às
vezes de forma conflituosa), o planejamento estatal que
normalmente é norteado pelos reclamos de elites e/ou
pela racionalidade do capital, ou eventualmente pressões
populares ou por motivações eleitorais. De outro lado,
surgem as ações populares mais organizadas ou em
alguns casos mais espontâneas: as pressões sobre o
planejamento, as ocupações de terrenos ociosos ou de
edifícios sem uso permanente, a construção de favelas ou
de ruas e habitações clandestinas, etc. E no meio rural,
especialmente no caso brasileiro, é frequente a
contradição entre duas formas opostas de uso do solo e
de regimes de propriedade: a capitalista, na qual a terra é
valor de troca, é instrumento para a exploração do
trabalho alheio, e a familiar, na qual o pequeno
proprietário (ou o posseiro) e a sua família usam a terra
como meio de subsistência, sendo que seus ganhos não
são lucros e sim ganhos do trabalho5.
Malgrado as contradições sociais se manifestarem
materialmente no espaço, não se pode no entanto
esquecer que o espaço global da nossa época revela um
amplo predomínio das relações internacionais de
dominação. A esse respeito, as palavras de um estudioso
no assunto não deixam dúvida:
"As classes atualmente no poder procuram por todos
os meios servir-se do espaço como se de um
instrumento se tratasse. Instrumento com vários fins:
dispersar a classe trabalhadora, reparti-la nos lugares
designados para tal – organizar os diversos fluxos,
subordinando-os às regras institucionais –, subordinar,
conseqüentemente, o espaço ao poder – controlar o
espaço e gerir de forma absolutamente tecnocrática a
sociedade inteira. (...) Passa-se da produção das
coisas no espaço à produção do espaço planetário,
esta envolvendo e supondo aquela. Disso se
depreende que o espaço se torna estratégico. Por
estratégia entendemos que todos os recursos de um
determinado espaço dominado politicamente servem
de meios para apontar e alcançar objetivos na escala
planetária As estratégias globais são conjuntamente
econômicas, científicas, culturais, militares e
políticas.”6
Essa produção do espaço, esse espaço planetário
unificado (mas prenhe de contradições) e
fundamentalmente estratégico, não é algo eterno ou
ahistórico. Foi o resultado de um processo no qual o
capitalismo se mundializou e passou a existir na sua
forma plena ou industrial – ou pós-industrial, se
pensarmos na revolução técnico-científica iniciada em
meados dos anos 1970. E no qual o sistema capitalista e
ocidental consolidou-se globalmente (mesmo que
desigualmente) com a expansão econômico e em parte
até cultural em todos os quadrantes da superfície
terrestre.
Não é qualquer sociedade que produz o espaço
nesse sentido forte, que elabora uma segunda natureza
de forma tão profunda e, principalmente, impactando
toda a superfície terrestre. Apenas a sociedade capitalista
realizou esse feito, em especial no seu estágio urbano-
industrial e tecnológico (com ou sem planificação), que
afinal existe hoje praticamente em toda o mundo, mesmo
que com desigualdades e particularidades, inclusive nas
economias menos desenvolvidas e naqueles poucos
Estados que ainda persistem com a retórica (e a prática
extremamente repressiva) do "socialismo real".
Essa redefinição e a reordenação capitalista do
espaço-tempo, com o engendramento de uma
temporalidade una para todas as sociedades, sempre foi
uma unidade contraditória, bem entendido, pois relações
de produção e processos produtivos diferenciados
coexistem organicamente nesse movimento do capital. E
a construção de de um espaço mundial unificado
significou a tentativa de imposição do Mesmo, no qual
existem somente diferenças, mas não alteridades, para
todos os povos e regiões do globo. A alteridade, o(s)
Outro(s), foram sendo progressivamente abolida pela
unificação econômico-militar, pelo genocídio (em alguns
casos), ou pelo etnocídio (na maior parte dos casos). E
també pela imposição do/pelo Estado – o poder político
instituído e locus oficial de toda e qualquer atividade
política.
Com efeito, dois principais axiomas parecem guiar
a expansão do capitalismo da Europa Ocidental para o
restante do mundo a partir do século XV, ou, numa outra
vertente do mesmo processo, a ocidentalização (mesmo
que parcial e relativa) das demais culturas e civilizações.
O primeiro deles é a valorização e a imposição do
trabalho exaustivo, trabalho “produtivo" ou para o
comércio (isto é, produção de valores de troca). E o
segundo é o poder político instituído sob a forma de
Estado: somente povos com Estado são considerados
interlocutores válidos. Só a existência de um Estado – e,
portanto, de uma soberania interna no território (a
“violência legítima”, na expressão de Weber) e externa
pelo reconhecimento como equivalente pelos demais
Estados – possibilita o entendimento das sociedades
como "civilizadas" e não mais como "primitivas".
Mas se toda formação estatal é etnocidária, pois
tende a dissolver o múltiplo no uno, somente com a
sociedade capitalista o etnocídio de outras culturas, e até
mesmo de algumas diferenças e particularidades no seu
próprio interior, atinge graus extremos e nunca vistos
anteriormente. Conforme as palavras de um antropólogo:
"Toda organização estatal é etnocidária. Descobre-se,
assim, no próprio âmago da substância do Estado, a
força de atração do Um, a vocação da recusa do
múltiplo, o temor e o horror à alteridade. (...) Contudo,
a prática etnocidária de abolir a diferença quando ela
se torna oposição, cessa desde que a força do Estado
não corra mais nenhum risco. Percebemos, por outro
lado, que no caso dos Estados ocidentais a
capacidade etnocidária não tem limites, é
desenfreada. O que contém a civilização ocidental,
que a torna infinitamente mais etnocidária do que
qualquer outra forma de sociedade? É o seu regime
de produção econômica, justamente o espaço do
ilimitado, espaço sem lugares no que diz respeito ao
recuo constante do limite, espaço infinito da fuga
permanente para diante. O que diferencia o Ocidente é
o capitalismo, seja ele liberal, privado, como na Europa
do Oeste, ou planificado, de Estado, como [era] na
Europa do Leste. A sociedade industrial, a mais
formidável máquina de produção, é por isso mesmo a
mais assustadora máquina de destruição. Raças,
sociedades, indivíduos; espaço, natureza, mares,
florestas, subsolo: tudo é útil, tudo deve ser produtivo,
de uma produtividade levada a seu regime máximo de
intensidade.”7
O desenvolvimento do capitalismo e a
(re)produção do espaço não podem ser compreendidos
sem ligações com o Estado. Desde a denominada
acumulação primitiva, dos séculos XVI ao XVIII, processo
deflagrador da produção e da sociabilidade capitalistas,
que o Estado vem se expandindo e multiplicando as suas
funções. Sem dúvida que existiram ou existem momentos
em que o Estado capitalista parece se enfraquecer, ou
pelo menos diminui a percentagem dos recursos que
arrecada frente ao PIB nacional. Foi o que ocorreu com a
“onda neoliberal” iniciada nos anos 1970 nos Estados
Unidos e no Reino Unido. Mas essa ideia de um “Estado
mínimo”, nos dias atuais, é relativa e principalmente
enganosa, pois produz apenas uma pequena diminuição
em certos impostos com uma privatização de firmas
estatais. Todavia, o que de fato ocorre é uma redefinição
nas funções do Estado, que deixa de lado algumas
atividades e se torna mais forte ainda em outras, tais
como no setor policial-militar e na área de fiscalização. Já
no caso do Brasil, ao contrário daqueles dois exemplos
clássicos de políticas neoliberais, a participação do
orçamento público no PIB do país cresceu de 27% em 1990
para cerca de 34% em 2019, malgrado algumas
privatizações de empresas estatais que foram realizadas
nesse período. No Brasil nunca houve de fato a
implementação de políticas neoliberais, como afirmam
alguns que, a bem da verdade, estão mais preocupados
em estereotipar adversários que disputam votos no
mesmo espectro ideológico. Aqui, a apropriação estatal
dos recursos da sociedade só prosseguiu sua expansão
nas últimas décadas, sem nenhum interregno. Exceto em
períodos de crise (como as que ocorreram nos governos
Dilma e Bolsonaro), nos quais houve o retraimento do PIB
e portanto da arrecadação de impostos. Mas essa
retraimento momentâneo não foi decorrência de nenhuma
política neoliberal e sim de crises econômicas.
Quanto às origens do Estado moderno, é sobejamente
conhecida a importância da unificação territorial levada a
cabo pelas monarquias absolutistas da época moderna,
algo imprescindível para o fortalecimento da burguesia e
do capitalismo. Unificação que implicou no
enfraquecimento dos poderes feudais locais, no
estabelecimento de fronteiras e legislações protecionistas
dentro do território sob a soberania estatal, com a
imposição da moeda unitária, de taxações centralizadas,
de melhoria das estradas para falicitar o comércio, etc.
Isso sem falar na expansão marítimo-comercial dos
séculos XV e XVI, implementada pelos monarcas e
financiada pelos banqueiros e comerciantes.
Além da proteção de um mercado "nacional" pela
fixação de uma política alfandegária comum e pelo
controle das fronteiras, a ação estatal em prol da
economia capitalista foi intensa e essencial:
estabelecimento de regras que governam as relações
sociais de produção internas à sua jurisdição. Isso desde
obrigações fiscais até o controle da mobilidade geográfica
da força de trabalho, além de incentivos vários à
proletarização desta, e de normas para o trabalho
assalariado (ou para outros tipos de trabalho). O poder de
taxação, que se ampliou enormemente a partir do século
XVI e foi se tornando constante e principal fonte de renda
estatal, que afinal possui um grande efeito redistributivo,
beneficiando certos grupos de pessoas e empresas, e
penalizando outros.
A repressão – e o disciplinamento por variados
instrumentos (inclusive com a expansão do sistema
escolar8) – da força de trabalho, buscando adequá-la à
racionalidade da produção capitalista. A criação de infra-
estrutura – eletricidade, construção e pavimentação de
vias de circulação, ferrovias, água encanada, etc., além
de, mais recentemente, construir aeroportos, lançar
satélites artificiais e instalar cabos submarinos para fins
de comunicação –, que em geral serve primordialmente
aos interesses do mercado, mas que também ocasiona
melhorias no padrão de vida da população. Até Marx já
havia observado que “o capitalismo em apenas um século
produziu mais obras que todas as gerações humanas
anteriores reunidas”, com expansão das comunicações,
eletricidade, maior produtividade na agricultura e na
indústria, etc.9 Ele só não conseguia enxergar – e nem
poderia, pois em grande parte isso ocorreu após sua época
– as inegáveis melhorias ocasionadas pela diminuição das
taxas de mortalidade geral e infantil, da elevação da
expectativa de vida, da maior escolarização da população
em geral, do maior consumo de alimentos (a ponto de, já
no final do século XX, a obesidade ter se tornado um
problema muito maior que a fome ou a subnutrição), etc.
Por fim, seja pela via do planejamento (no nível
interno) ou da diplomacia (no nível externo), ou ainda via
manu militari, o Estado sempre impôs certos interesses
econômicos fundamentais para a dinâmica do sistema
capitalista. Dinâmica essa que não é predeterminada, mas
dependente de tensões/conflitos entre grupos sociais: "A
estrutura do capitalismo histórico foi tal que as alavancas
mais eficazes para ajustes políticos foram as estruturas
estatais(...) Portanto, não é casual que o controle, e se
necessário a conquista, do poder do Estado foi o objetivo
estratégico central de todos os grandes atores na arena
política, ao longo da historia do capitalismo moderno."10
O Estado capitalista engendrou uma intensa
militarização. Aliás, o poder militar, a violência e as
guerras, fazem parte da expansão e mundialização do
sistema capitalista e constituem elementos
imprescindíveis nesse processo. No período inicial ou de
gestação do capitalismo, na chamada acumulação
primitiva, o papel do militarismo foi determinante na
conquista da América, na escravização de africanos, na
desintegração da manufatura indiana com a imposição de
uma política colonial para a Índia, além do genocídio
praticado contra alguns povos que de alguma forma
constituíam "empecilhos" para o domínio europeu e
capitalista no restante do mundo.
Com a eclosão da Revolução Industrial e a passagem
do capitalismo comercial para o capitalismo pleno ou
industrial, assiste-se a uma institucionalização e uma
hipertrofia do militarismo. Este se torna um aparato
privilegiado e permanente no seio do Estado tipicamente
capitalista, o Estado-Nação engendrado em especial no
século XIX. O próprio surgimento das forças armadas
permanentes, especialmente do exército como instituição
e do militar como profissão institucionalizada e legitimada
enquanto elemento imprescindível às funções estatais,
ocorreu apenas com a construção dos Estados nacionais,
sendo algo pós-napoleônico. Nenhuma sociedade anterior,
nem mesmo Roma da antiguidade, teve essa máquina de
destruição que se aperfeiçoa constantemente, essas
instituições militares permanentes e esses enormes
efetivos de soldados que permanecem mobilizados até
mesmo nos períodos de paz. Soldados não mais
mercenários, como era regra geral, e sim identificados
com um Estado nacional, com uma “pátria” que não é
mais é vista como o local de nascimento (como sempre
havia sido) e sim como o território nacional.
Ademais, a sociedade capitalista, especialmente
sob a forma industrial, estruturou-se em inúmeros de seus
aspectos a partir de modelos militares de organização. O
próprio sistema de trabalho fabril, pelo menos na Primeira
e na Segunda Revolução Industrial, foi claramente
inspirado no exército. A rígida hierarquia e divisão do
trabalho no interior da fábrica, as ordens de cima para
baixo sem que o operário saiba (nem tenha o direito de
perguntar) o porquê e o para quê delas, a uniformização
de gestos e vestimentas, os horários prefixados e a
disciplina exigida, etc., além de os operários servirem, tal
como os soldados, de "bucha de canhão" ou instrumento
barato para os desígnios da produção ou da guerra. Foi por
isso que Marx, que viveu no século XIX, denominou os
desempregados e os trabalhadores, respectivamente,
como "exército industrial de reserva" e "exército de mão-
de-obra na ativa".
A competição ou a concorrência entre firmas
capitalistas também manifesta essa influência militar: as
"guerras comerciais" para conquistar espaços e clientelas,
nas quais por vezes se faz uso da violência física, da
espionagem, das pressões, da intimidação e da trapaça.
As competições e os conflitos entre Estados, que algumas
vezes são um subproduto da concorrência entre capitais (e
vice-versa), revela igualmente essa militarização intensa
da sociedade capitalista, na qual freqüentemente a força
militar consolidou hegemonias econômicas.
E não se pode esquecer da importância do
militarismo para a acumulação (ampliada) do capital, algo
que foi muito bem teorizado por Rosa Luxemburgo no
início do século XX:
"O militarismo tem uma função determinada na
história do capital. Ajudou a criar e ampliar esferas de
interesses do capital europeu em territórios não
europeus e extorquir concessões de estradas de ferro
em países atrasados, e a defender os direitos do
capital europeu nos empréstimos internacionais.
Enfim, o militarismo é uma arma na concorrência dos
países capitalistas, na luta pelo domínio de territórios
de civilização não-capitalista. O militarismo tem ainda
outra função importante. De um ponto de vista
puramente econômico, ele é para o capital um meio
privilegiado de realizar mais-valia; em outras palavras,
é um campo de acumulação. (...) Para os fabricantes
de canhões, fuzis e outros materiais de guerra, a
existência do exército é indubitavelmente proveitosa e
indispensável. É provável que o desaparecimento do
sistema de paz armada significasse a ruína para os
Krupp. Praticamente, sobre a base do sistema de
impostos indiretos, o militarismo desempenha estas
duas funções: assegura tanto a manutenção do órgão
de dominação capitalista – o exército permanente –
como a criação de um magnífico campo de
acumulação para o capital. Por outro lado, o poder de
compra da grande massa de consumidores,
concentrado sob a forma de pedidos de material de
guerra feitos pelo Estado, não corre o perigo das
arbitrariedades, das oscilações subjetivas do consumo
individual; a indústria de armamentos será, sem
duvida, de uma regularidade quase automática, de
um crescimento rítmico."11
A autora supracitada escreveu essa obra em
1913, às vésperas da Primeira Guerra Mundial. Assistia-se
então um grande aumento nos gastos militares em
especial na Alemanha, onde ela vivia. Mas esses gastos
cresceram enormemente após essa guerra, nos anos
1930, tendo sido um dos motivos que fez com que a
economia alemão se recuperasse da grave crise
econômica e social pela qual passou. Mas esse novo
fortalecimento militar alemão, numa escalada bem maior
que o anterior, num país que passou a ter um regime
totalitário, levou a aventuras expansionistas (e a atos
genocidas) que conduziram à Segunda Grande Guerra.
Calcula-se que 20 milhões de pessoas morreram na
primeira grande guerra, e quase 80 milhões na segunda.
Mas a guerra, momento coroador do militarismo, também
produz (ou aperfeiçoa e expande) inovações tecnológicas
que depois se propagam para a economia civil. Na
Primeira Guerra houve a invenção e/ou aperfeiçoamento
dos relógicos de pulso, lâmpadas ultravioletas, zíper, raio
X portátil, sonar, gerador, máscaras de gás, fertilizantes
industriais, os primitivos drones, zeppelin, o controle do
tráfego aéreo e a comunicação entre pilotos. E na
Segunda Guerra Mundial tivemos a invenção do
computador, do nylon, do helicóptero, do foguete, dos
dispositivos de visão noturna, do aerossol, das
metafetaminas, da fita adesiva, do radar, da borracha
sintética, aperfeiçoamento dos aviões e dos antibióticos,
etc. Isso tudo mostra que o militarismo, como enfatizou
Rosa Luxemburgo, é de fato um importante campo para a
acumulação de capital.
Dessa forma, capitalismo, Estado nacional,
militarização e construção do espaço na escala mundial
foram elementos coevos e interligados. O
desenvolvimento da sociedade capitalista implicou numa
redefinição e instrumentalização do espaço: passou-se do
espaço como valor de uso, como natureza (e basicamente
primeira natureza), onde o homem vive e da qual é parte
integrante, para o espaço construído, tornado mercadoria
e claramente funcional. Cada parcela do espaço passa a
ter funções próprias e insere-se tanto na divisão territorial
do trabalho quanto na organização material do exercício
da dominação.
No nível planetário o capitalismo engendrou um
espaço mundial unificado, no qual se destaca um "centro"
e uma (ou algumas) "periferia". Embora essa geometria
na escala mundial nunca tenha sido fixa e permanente.
Sempre ocorreram ou podem ocorrer transformações
históricas com redefinição do centro e das periferias.
Antigas potências econômicas e político-militares
acabaram ficando a reboque, tais como Portugal,
Espanha, Países Baixos e mais tarde, já nas últimas
décadas do século XIX, a Inglaterra. E outras
despontaram na liderança – os Estados Unidos, em
especial a partir da segunda metade do século XX,
embora hoje tenha uma predominância cada vez menor
em função do maior crescimento de outros centros de
poder.
Além de áreas centrais e periféricas, sempre
existiram casos intermediários e no fundo essa
organização espacial das relações de poder entre Estados
na escala mundial é dinâmica e inerentemente instável,
mesmo que eventualente dure décadas ou mais de um
século. Os Estados centrais – ou as economias centrais –,
deixando de lado suas origens históricas e as suas
diferenças, costumam ser caracterizados de duas formas
principais. Seriam áreas que recebem parte do
"excedente econômico" produzido na(s) periferia(s) – esse
é o cerne das explicações alicerçadas na teoria leninista
do imperialismo. Ou seriam sociedades com níveis
educacionais e tecnológicos mais elevados, portanto, com
maior produtividade do trabalho e padrões de vida mais
elevados – numa outra forma de explicação, que
prescinde da categoria imperialismo.
A(s) periferia(s), pela sua vez, pode(m) ser vista
como um espaço extremamente heterogêneo, no qual
existem "patamares" ou graus diversos de
industrialização, de volume e natureza do comércio
externo, de acesso da população a bens e serviços
sofisticados, etc. São constituídas pelas sociedades nas
quais via de regra há um relativo atraso econômico com
níveis salariais bem mais baixos que aqueles vigentes no
centro, além de uma carência de democracia e
consequentemente da plena vigência dos direitos
humanos.
Justamente aqui existe uma enorme diferença de
pontos de vista: para alguns, as economias periféricas
são exploradas e necessárias para o desenvolvimento dos
países centrais, sendo que a principal razão para o seu
atraso seria externa. Já para outros as economias mais
atrasadas no geral pouco contribuiriam para o
desenvolvimento das áreas centrais. Esse
desenvolvimento teria sido produzido essencialmente por
revoluções tecnológicas que ampliaram a produtividade
do trabalho. E o menor desenvolvimento decorreria
essencialmente de seus entraves internos – poder público
autoritário e ineficiente, precário sistema escolar com baixo
nível médio educacional e de produtividade do trabalho,
elites corruptas e com interesses imediatistas, etc. No
capítulo 4 retomaremos com maiores detalhes esta
importante questão.
Esse espaço mundial possui enormes diferenças e
desigualdades, que são bem maiores do que as que
existiam durante séculos ou milênios, antes da Revolução
Industrial. Existem regiões do planeta que há muito já
estão no século XXI e outras que ainda se encontram no
século XIX, no estágio da Primeira Revolução Industrial –
ou às vezes até na Idade Média, como o Afeganistão sob o
regime fundamentalista do Taliban. Existem nações cuja
expectativa média de vida é de 83 ou 84 anos (Japão,
Suíça, Hong Kong, Singapura, etc.) e outros nos quais
essa esperança de vida é de apenas 52 ou 54 anos
(República Centro Africana, Chade, Lesoto, Nigéria, etc.).
Seriam essas disparidades geradas por uma lógica única,
tal como apregoam aqueles que insistem no imperialismo
e no sistema mundial? Ou pelo entrecruzamento de
inúmeras lógicas ou estratégias, nas quais até o acaso
teve o seu papel? Existiria de fato apenas uma (ou
algumas, mas interligadas e sendo partes
complementares do mesmo processo) razão para o
desenvolvimento de certas áreas e o atraso de outras, ou,
pelo contrário, haveria uma série de processos distintos e
relativamente autônomos? Acreditamos que essa é uma
questão central para qualquer explicação sobre as
desigualdades internacionais.
De um lado existem aqueles que detectam uma única
lógica ou processo explicador, mesmo que com variações
interligadas. Esse processo seria o sistema capitalista
mundial ou o imperialismo – isto é, a exploração das
áreas periféricas como pré-condição para o
desenvolvimento das economias centrais. Essa
exploração teria ocasionado o subdesenvolvimento
daquelas. Ou, mais recentemente, enfatiza-se a
“globalização neoliberal”, que no fundo nada mais seria
que a nova roupagem do imperialismo. Por outro lado,
existem aqueles que encontram lógicas ou processos
diferenciados, que variam muito de acordo com o caso,
com a época ou com a região do globo: a mentalidade
calvinista e a imigração européia em massa nos Estados
Unidos, o peso da herança católico-inquisisionista e da
burocracia ibérica na América Latina, a importância da
cultura confucionista e da educação intensiva no Japão,
na China e nos “tigres asiáticos”, a influência da tradição
étnico-tribal e das religiões que desvalorizam a mulher e
a educação, em partes da África e do Oriente Médio, etc.
Centro e periferia, ou desenvolvimento e
subdesenvolvimento, no interior da teoria do imperialismo
e seus seguidores, seriam produtos diferenciados (e
imbricados) de uma mesma lógica, do processo de
acumulação de capital ao nível mundial. Nas palavras de
dois importantes arautos dessa visão:
"A economia mundial constituída é uma categoria
produzida pela história. É a economia mundial na fase
do imperialismo. É a economia mundial na qual,
através do jogo da divisão internacional que se impõe,
as relações mercantis dominam. (...) O Estado é o
lugar onde se vai cristalizar a necessidade de
reproduzir o capital em escala internacional. É o lugar
de difusão das relações mercantis e capitalistas,
difusão necessária à realização da divisão
internacional do trabalho. É o lugar por onde transitará
a violência necessária a que ela se realize, já que ele e
o elemento e o meio que tornam possível uma tal
política. ( ... ) Assim compreendida, a economia
mundial constitui um todo em movimento. As relações
de dominação permanecem, mas se modificam. A
política econômica de um Estado da periferia pode
assim tentar se adaptar às transformações ocorridas
na divisão internacional do trabalho, influir em tal
divisão. Desse modo, ela é ao mesmo tempo a
expressão de uma divisão internacional do trabalho e
de uma tentativa para inverter tal divisão. A economia
mundial e vital para o prosseguimento do processo de
acumulação do capital no centro, quando esse último
atinge uma certa fase do desenvolvimento das forças
produtivas. Essa fase é a do imperialismo. Chamamos
a economia mundial que atingiu essa fase de economia
mundial constituida. A partilha do mundo é efetuada
entre as principais potências do centro. A economia de
exportação se põe na ordem do dia. A difusão das
relações mercantis substitui a economia de pilhagem.
Os mecanismos de assalariamento substituem a
escravidão.”12
Introduzimos assim a problemática do
imperialismo, categoria que na tradição marxista-leninista
expressa a política expansionista do capitalismo num certo
momento de sua historia. Momento em que a
concentração e a centralização do capital, na Europa
Ocidental especialmente, já havia atingido graus elevados
(daí o surgimento de cartéis e trustes) e se inicia uma
forte exportação de capitais para as áreas periféricas. E há
também a partilha e colonização da África e da Ásia – a
América já havia se descolonizado, mas a imensa maioria
das economias nacionais do continente era constituída por
neocolônias. Em outras palavras, pode-se dizer que o
imperialismo remete à constituição de uma economia
capitalista mundial – e não apenas mercado mundial, que
já existia desde o século XVI –, engendrada a partir do
final do século XIX. Seria o momento em que a relação de
trabalho tipicamente capitalista, o assalariamento, começa
a ganhar terreno nos países periféricos, apesar de que
ainda subsistem (ou até se reproduzem) relações não
capitalistas, só que agora subordinadas à acumulação do
capital13.
Imperialismo, pelo menos na tradição marxista-
leninista, remete também à partilha do globo entre as
potências econômico-militares capitalistas, processo
contraditório que deu origem a inúmeras guerras, das
quais a Primeira Guerra Mundial (1914-18) foi a que mais
suscitou polêmicas entre os principais teóricos marxistas
da época, que no final das contas foram os forjadores da
questão teórico-política do imperialismo.
Iremos, no próximo capítulo, fazer uma releitura
crítica da problemática do imperialismo. Uma leitura que
procura contextualizar essa construção teórica – vista
portanto como constructo, e não como “fato” ou processo
inquestionável como sugerem vários autores. Uma leitura
que visa destrinchar o(s) sujeito(s) que construiu essa
categoria e as suas motivações. Iremos também analisar
as tentativas de (re)atualizar essa categoria frente às
mudanças históricas que a colocaram em xeque.
Acreditamos que esse labor é necessário para a
construção de uma teoria que busque explicar a realidade
mundial de nossos dias que seja de “esquerda” no sentido
de almejar maiores liberdades ou direitos democráticos,
mas que não compartilhe a visão panfletária dos que
tentam a todo custo manter – na base de “marteladas”,
como diria Nietzsche – a categoria imperialismo como
lógica explicadora do ordenamento geopolítico mundial.
 
Cap. 2 – O IMPERIALISMO COMO QUESTÃO
 

2.1 – O ponto de vista dos clássicos


O engendramento das ideias não pode ser dissociado
do sujeito – individual ou coletivo – que as forjou (ou
reelaborou) e do contexto histórico-social onde ele atua e
do qual é parte integrante. O imperialismo nos fornece
um exemplo meridiano desse fato. Normalmente se
afirma, no interior do marxismo-leninismo, que a teoria do
imperialismo somente foi sistematizada no início do
século XX porque nessa ocasião as “condições objetivas”
necessárias para tal passaram a existir de forma plena: o
alto grau de concentração e centralização dos capitais,
dando origem aos trustes e cartéis; a fusão do capital
bancário com o industrial, com o surgimento de um novo
tipo de capital financeiro; a partilha e colonização da
África e da Ásia pelas potências européias; a exportação
de capitais dos países centrais para a periferia do mundo
capitalista, etc. Isso é uma meia verdade. De forma mais
apropriada, podemos dizer que a intensa (e progressiva)
valorização teórico-politica da problemática do
imperialismo nessa época, no interior das correntes de
esquerda marxista, deveu-se fundamentalmente à luta
política, a estratégias de grupos ou partidos. Não se pode
desvincular a teoria do imperialismo dos debates sobre o
significado das guerras e das nações. Imperialismo e
caminhos (ou potenciais) para a revolução socialista são
elementos interligados nesse momento histórico –
especialmente entre 1910 e 1917 – no qual essa
problemática ganha terreno e torna-se fundamental para
a compreensão do capitalismo mundial e do seu
(pretenso) destino.
A interpretação de Lênin sobre o imperialismo
acabou prevalecendo a partir de 1917, tornando-se
hegemônica no marxismo e até mesmo no pensamento
de esquerda em geral. Aliás, a própria ênfase no
imperialismo como categoria chave para a explicação do
capitalismo mundial ou das desigualdades internacionais
já revela um procedimento leninista. Em Hilferding, Rosa
Luxemburgo ou Kautsky, por exemplo, não existiu uma
supervalorização dessa questão e sequer alguma "teoria
do imperialismo" articulada, mas tão somente o uso da
palavra imperialismo como auxiliar na explicação da
mundialização ou expansão espacial do capitalismo. O que
neles aparece com mais vigor é a determinação do capital
financeiro (em Hilferding), a busca das condições da
reprodução ampliada do capital (em Rosa Luxemburgo) e
uma interpretação do capitalismo e sua expansão que
possa alicerçar a opção política social-democrata pela
democracia parlamentar como caminho válido para uma
transição gradativa até o socialismo (em Kautsky).
Com o leninismo surge de fato uma teoria do
imperialismo, que pretensamente viria preencher uma
lacuna na explicação marxista sobre o capitalismo na
escala mundial. Mas que, na realidade, constitui parte de
um redirecionamento do marxismo: é à luz do partido
bolchevista, do “centralismo democrático” portanto, e da
ideia do "elo mais fraco" – isto é, a revolução social
podendo ocorrer primeiramente em nações capitalistas
menos desenvolvidas, mas onde a rapina, a exploração
burguesa e suas sequelas fossem mais agudas –, que se
deve compreender a teoria (leninista) do imperialismo.
Primeiras décadas do século XX: assiste-se neste
momento histórico a uma agudização da questão das
nacionalidades. A Segunda Internacional (1889-1914) vê
crescer em seu seio os debates e as divergências políticas
que têm por pano de fundo o "pesadelo do
nacionalismo".14 A par disso, e de forma complementar,
multiplicam-se as guerras por territórios e delimitação de
suas fronteiras, por colônias, por injunções separatistas ou
nacionalistas. O movimento operário, tão intenso no
século XIX (recorde-se de 1830, 1848, 1871...), a ponto de
Marx ter escrito inúmeras vezes sobre o caráter "iminente"
da revolução social proletária que daria fim ao capitalismo
(veja-se, por exemplo, O 18 Brumário, escrito em 1852),
ressurgia em cena de forma não tão "pura" ou
aparentemente unívoca: com frequência ele se misturava
e se contaminava com questões étnicas e nacionais.
A par disso, existe o fato de que os dois grandes
clássicos do marxismo, Marx e Engels, há muito que já
haviam deixado o mundo dos vivos, e aquele que foi
durante algum tempo considerado como herdeiro e
principal continuador desse pensamento, Kautsky,
começava então a ser questionado pela sua tendência
social-democrata, pela sua crença na democracia
parlamentar e na possibilidade de uma substancial
melhoria do padrão de vida dos trabalhadores nos quadros
mesmo do capitalismo15. Daí, portanto, o fato de que os
debates, as interpretações e os escritos a respeito da
problemática do imperialismo, no interior do pensamento
marxista, sempre terem se referenciado direta ou
indiretamente à questão da via socialista, do potencial
revolucionário contido, mesmo que contraditoriamente,
nas guerras expansionistas, nas lutas e conflitos
nacionalistas ou étnicos, na dominação e opressão dos
países periféricos. Existem outras leituras ou teorias
sobre o imperialismo, principalmente as liberais, mas não
as levamos em conta nesta obra. Isso porque elas, além
de não terem alcançado grande difusão nos meios
populares e mesmo nos acadêmicos, partem de outras
pressupostos: nelas, por exemplo, não há uma ligação
orgânica entre imperialismo e expansão capitalista e
consequentemente esse conceito não é o principal
explicador das desigualdades internacionais.
 

Marx, Engels e o colonialismo


Recordemos, brevemente, o pensamento dos
fundadores dessa tradição discursiva. Em Marx e Engels
não existe uma teoria (ou mesmo qualquer preocupação)
a respeito do imperialismo. Talvez isso se deva,
parcialmente, às condições históricas “objetivas” de sua
época, isto é, o grau de desenvolvimento do capitalismo
e a natureza de sua mundialização. Isso, contudo, é
bastante questionável. Marx viveu ate 1883 e Engels até
1895, ocasião em que não apenas a concentração e a
centralização do capital nas metrópoles capitalistas
atingiram graus elevados, com o surgimento de
monopólios e grandes empresas (além de já ter sido
deflagrado o processo de colonização da África e da
Ásia), como também se empregava desde a década de
1870, nos meios liberais, o termo "imperialismo" para se
designar a política externa da Inglaterra vitoriana. E
certos autores (Hirschman, Chatelet e Pisier-Kouehner,
entre outros) argumentam, de forma bem fundamentada,
que desde pelo menos 1821 pode-se encontrar em Hegel
uma teoria (econômico-política) do imperialismo, em
certos aspectos semelhante a ideias desenvolvidas
posteriormente tanto por Rosa Luxemburgo quanto por
Lênin, que Marx teria lido mas não retomou porque os
seus objetivos e pressupostos eram essencialmente
diversos.16
Mas o fundamental realmente é que a démarche, o
procedimento teórico-metodológico de Marx privilegia a
lógica das coisas, o capitalismo como modo de produção
com as suas determinações essenciais, enquanto
realidade vista em sua forma “pura” ou isolada
analíticamente. O espaço como expressão material e
disposição/relação entre os fenômenos não tem grande
importância (a não ser sob a forma de algumas
referências esparsas) nesse tipo de construção teórica.
Por vezes se especula sobre como Marx teria abordado o
capitalismo mundial no (hipotético) volume IV de O
Capital: aí ele teria de se defrontar com a questão das
nações e dos Estados, do desenvolvimento desigual e
combinado do capitalismo no plano internacional (e inter-
regional). Parece bastante provável, no entanto, que
dificilmente esse clássico iria desenvolver algo semelhante
a qualquer "teoria do imperialismo". O mais coerente com
as suas premissas – os países mais desenvolvidos, na ótica
capitalista, como candidatos mais imediatos à revolução
social, e nunca os menos desenvolvidos, pois um alto grau
de evolução do modo de produção capitalista é tido como
uma condição sine qua non para o socialismo, etc. – seria
uma interpretação do tipo "acumulação à escala mundial"
ou "relações e imbricações de modos de produção e
formações econômico-sociais sob a dominação do
capitalismo mundial".
Há em Marx e Engels, evidentemente, refêrencias e
escritos a respeito da expansão e mundialização do
capitalismo a partir da Europa Ocidental. Mas o objeto
tematizado por eles não é o imperialismo e nem mesmo o
nacionalismo. O que eles privilegiam, a esse respeito, é a
"questão colonial". O ponto de vista subjacente a esses
textos sobre a dominação britânica na Índia, sobre o
expansionismo territorial norte-americano em relação ao
México, sobre os conflitos militares colonialistas da
Inglaterra frente à China ou à Pérsia, sobre a dominação
francesa na Argélia a partir de 1830, etc., é normalmente
o de considerar o desenvolvimento capitalista das forças
produtivas como algo necessário e positivo historicamente
(pois gera as condições para a eclosão da revolução
social), mesmo que ocasione certos problemas de
violência e mortes. Existe aí um elemento explicador que é
o internacionalismo como princípio: "Proletariado de todo o
mundo, uni-vos" é a frase (e palavra-de-ordem) conclusiva
do Manifesto de 1848; e "Os proletários não têm pátria" foi
outra expressão sarcástica e lapidar utilizada por Marx
num artigo jornalístico posterior.
Não se trata contudo de um simples internacionalismo
e sim de um enfoque que parte da lógica do capital (o
"reino da mercadoria" e sua generalização com
contradições) e vê nas suas realizações um progresso
inequívoco, uma pré-condição indispensável para se
caminhar do "reino da necessidade" para o "reino da
liberdade". Seria isso um etnocentrismo ou até um
eurocentrismo? Num certo sentido sim; todavia, "Não se
trata tanto do eurocentrismo, uma vez que Marx
reconhece o deslocamento do centro de gravidade do
capitalismo – que transfere, portanto, o centro da
revolução – para a Alemanha e, eventualmente – afirma –,
para os Estados Unidos e a Rússia no século XX; trata-se,
sim, de capitalcentrismo, em que converge toda a
evolução humana."17
A questão das nacionalidades, dessa forma, não
tem importância em si mas apenas na perspectiva da
"história universal", de cada caso concreto de lutas
separatistas ou por autodeterminação nacional poder
auxiliar ou atrapalhar o “sentido da história” que seria
corporificado pela classe proletária. Apesar da inegável
riqueza e complexidade das ideias de Marx e Engels (além
de suas aporias e reviravoltas), não se pode evitar, no
que diz respeito a esta questão, a impressão de um certo
"darwinismo nacional", como se houvesse um processo de
"seleção dos povos" mais aptos a realizar os desígnios da
história e da revolução social. Dois autores assinalaram
esse fato: "Na perspectiva da história universal, para
Marx e Engels, a questão nacional não é mais que um
problema subalterno cuja solução virá automaticamente
com o curso do desenvolvimento econômico, graças às
correspondentes transformações sociais; as nações
viáveis superarão todos os obstáculos, ao passo que as
relíquias de povos serão condenadas a desaparecer."18
Num artigo publicado no jornal A Gazeta Renana,
de 1843, Engels elogia os Estados Unidos por terem
arrebatado a Califórnia aos "preguiçosos mexicanos"; que
importância pode ter a "independência" de uns tantos
californianos e texanos de origem espanhola, ou mesmo
as suas agruras em "injustiça e outros princípios morais",
comparado com as obras – grandes cidades, linhas
marítimas, estradas de ferro, exploração das minas de
ouro – que os norte-americanos estão implementando em
poucos anos, argumentou Engels19. Marx, em artigo que
publicou em 1853 no jornal New York Daily Tribune, sobre
o domínio britânico sobre a Índia e a Birmânia, reforça a
visão de Engels. Juntamente com um notável conjunto de
frases preconceituosas em relação aos povos asiáticos e à
natureza, que só serviria para ser subjugada pela ação
humana, ele assinala que no fundo a “missão
progressista” britânica na região atendia ao sentido da
história, ou seja, realizava uma etapa necessária, a
modernização de regiões atrasadas ou pré-capitalistas,
para a posterior construção do socialismo. Ele conclui o
seu artigo da seguinte forma:
"Os efeitos devastadores da indústria inglesa no que
diz respeito à Índia (...) são palpáveis e aterradores.
Mas não devemos esquecer que eles são apenas os
resultados orgânicos de todo o sistema de produção
tal como este é presentemente constituído. Esta
produção baseia-se no domínio todo-poderoso do
capitalismo. A centralização do capital é essencial
para a sua existência enquanto potência
independente. A influência destruidora desta
centralização sobre os mercados do mundo se revela,
na mais gigantesca escala, as leis orgânicas inerentes
à economia política atualmente em vigor em todas
cidades civilizadas. O período burguês da história
tem por missão criar a base material do mundo
novo, por um lado com a intercomunicação
universal baseada na dependência mútua da
humanidade e com os meios dessa
intercomunicação e, por outro lado, com o
desenvolvimento das forças de produção do
homem e a transformação da produção material
num domínio científico dos elementos naturais. A
indústria e o comércio burgueses criam estas
condições materiais para o mundo novo, do mesmo
modo que as revoluções geológicas criaram a
superfície da terra. (...) Ora, por mais repugnante que
possa ser para o sentimento humano testemunhar a
dissolução e desorganização destes milhões de
industriosas organizações sociais patriarcais, não
devemos nos esquecer de que estas idílicas
comunidades de aldeia, por inofensivas que possam
parecer, sempre constituíram a sólida base do
despotismo oriental. Não devemos nos esquecer de
que estas pequenas comunidades estavam
contaminadas pelas distinções de castas e pela
escravatura, de que subordinavam o homem às
circunstâncias externas (...) criando assim um
estupidificador culto à natureza que exibe a sua
degradação no fato de o homem, o soberano da
natureza, cair de joelhos em adoração de Hanuman, o
macaco, e de Sabbala, a vaca. É verdade que, ao
causar uma revolução social no Indostão, a Inglaterra
foi movida apenas pelos mais vis interesses e foi
estúpida na sua maneira de os impor. Mas não é esta
a questão. A questão é: pode o homem cumprir o
seu destino sem uma revolução fundamental no
estatuto social da Ásia? Se não, quaisquer que
tenham sido os crimes da Inglaterra, ela foi o
instrumento inconsciente da história para
originar essa revolução."20
 

As leituras de Hilferding, Luxemburgo e Kautsky


No marxismo da Segunda International emerge uma
gradativa reproposição dessa temática. Da "questão
colonial" passa-se à questão das nacionalidades, das
guerras e do imperialismo. De um lado isso se explica
pelas transformações sociais que ocorriam em ritmo
acelerado desde o final do século XIX. A notável escalada
da anexação de colônias por parte das potências
europeias, que viviam em clima de intensa rivalidade. As
mudanças e redefinições no mapa político europeu e
mundial; a difusão dos "Estados-Nações" – forma politico-
territorial com um evidente significado econômico e
ideológico, tornada vitoriosa pela hegemonia burguesa –
como principio organizativo para todos os "povos
civilizados", ou que aspirassem a sê-1o. E as frequentes
guerras entre os Estados nacionais, com as confusões e
polêmicas que geravam no movimento operário.
De outro lado há a influência de uma situação
paradoxal: o marxismo do início do século XX ao mesmo
tempo em que conquista a maior parte do movimento
socialista e operário internacional, tornando-se aí
praticamente hegemônico, também conhece uma
crescente desagregação, passando a ser cada vez mais
plural. Pode-se dizer que o pensamento de Marx e Engels
foi uma respeitável tentativa de teorizar e expressar o
movimento operário de sua época, a partir do qual eles
extraíam lições e até realizavam autocríticas. O marxismo
subsequente em boa medida acaba por se tornar numa
doutrina, fato que ajuda a explicar tanto sua crescente
popularização quanto sua mixórdia teórica. Ao se difundir
por todos os cantos do planeta (até em lugares onde não
havia nada que lembrasse, mesmo remotamente, um
movimento operário autêntico), e ao se tornar envoltório
fundamental para quase todas as práticas e retóricas
autodenominadas revolucionárias, o marxismo do
finalzinho do século XIX e das primeiras décadas do
século XX acaba por ficar fortemente impregnado por
uma ideologia nacionalista. É nesse momento que a
teoria do imperialismo vem à tona, adquire uma certa
autonomia e é supervalorizada como instrumento
explicador do capitalismo mundial e dos caminhos da
revolução socialista.
O imperialismo como objeto de estudos não tem
suas origens no marxismo e sim no pensamento liberal e
em teóricos que primaziam o Estado como potência na
análise do social. As teorias e interpretações sobre o
imperialismo, existentes desde o século XIX (apesar de se
referirem, em alguns casos, a exemplos de imperialismo
na antiguidade: em Atenas, em Roma, etc.), em geral dão
uma ênfase na dominação militar-econômica de um
Estado sobre outro(s). Não há aí um enfoque de classes
sociais, um ponto de partida na exploração/alienação dos
trabalhadores. O Estado é o sujeito dessa dominação
imperialista. É sabido que tal ótica não é compatível com
os escritos de Marx: este, mesmo enaltecendo a expansão
e o desenvolvimento capitalista (a "missão civilizatória"
burguesa, como afirmava), chegou a escrever sobre a
transferência de riquezas dos "países menos
desenvolvidos para os desenvolvidos", se bem que, como
argumentou, essa diferença em termos de trabalho, esse
excedente transferido internacionalmente, "seja metido à
algibeira por uma classe particular". Não pode haver,
portanto, dentro da lógica dos textos de Marx e Engels,
uma exploração entre países ou entre regiões; o que há é
tão-somente a exploração de classes, mesmo com a
transferência internacional (ou inter-regional) de mais-
valia.
Nesses termos, para Marx a libertação nacional ou
luta por um princípio abstrato de autodeterminação das
nações não é algo necessariamente progressista ou
sequer parte do ideário básico do proletariado. Por esse
motivo, ao se inserir uma teoria do imperialismo no corpo
teórico do marxismo, dificilmente se consegue evitar a
ambiguidade, a coexistência conflitante de premissas
antitéticas. O famoso livro de Lênin Imperialismo, Etapa
Superior do Capitalismo, de 1916, constitui o exemplo
mais representativo (e de maior vigor político-ideológico)
dessa aporia. E a "resolução" disso, com o abandono
definitivo da ótica de classes em favor de uma certa
ideologia nacionalista (apropriada para uma burocracia
que controle ou almeje controlar um Estado totalitário)
encontra-se nas ideias stalinistas sobre "o socialismo num
só país" e sobre a União Soviética como "pátria" do
movimento socialista mundial e "baluarte da luta contra o
imperialismo".
Hilferding, Rosa Luxemburgo e Kautsky,
procuraram enfrentar as novas realidades de sua época,
tanto do capitalismo mundial quanto do movimento
socialista, mantendo-se o máximo possível fiéis ao
enfoque de classes. O pioneiro nas análises marxistas que
valorizam a questão do imperialismo foi Hilferding, que
em 1910 redefiniu capital financeiro e a partir dele
explicou o imperialismo e a estratégia proletária
apropriada para essas novas condições. Em suas
palavras:
"O capital financeiro desenvolveu-se com o
desenvolvimento da sociedade anônima e alcança o
seu apogeu com a monopolização da indústria. O
rendimento industrial ganha um caráter seguro e
contínuo; com isso, a possibilidade do investimento de
capital bancário na indústria ganha extensão cada vez
maior. (...) Com a formação dos cartéis e trustes, o
capital financeiro alcança seu mais alto grau de poder,
enquanto o capital comercial sofre sua mais profunda
degradação. Completou-se um ciclo do capitalismo.
No início do desenvolvimento capitalista, o capital
monetário, como capital de usura e comercial,
desempenha um papel importante tanto para a
acumulação de capital como também na
transformação da produção artesanal em capitalista.
Mas aí tem início a resistência dos capitalistas
`produtivos', isto é, dos capitalistas que obtêm lucro,
portanto dos industriais e comerciantes, contra os
capitalistas do juro. O capital usurário fica
subordinado ao capital industrial. (...) O poder dos
bancos cresce, eles se tornam fundadores e,
finalmente, os soberanos da indústria, cujo lucro
usurpam como capital financeiro. O hegeliano poderia
falar em negação da negação: o capital bancário foi a
negação do capital de usura e ele, por sua vez, é
negado pelo capital financeiro. Chamo de capital
financeiro o capital bancário, portanto, o capital sob a
forma de dinheiro que, desse modo, é na realidade
transformado em capital industrial. É evidente que
com crescente concentração da propriedade, os
proprietários do capital fictício, que dá o poder aos
bancos, e os proprietários do capital que dá o poder
às indústrias, são cada vez mais os mesmos
grupos."21
É nos quadros dessa crescente expansão e
monopolização do capitalismo que surge, para Hilferding,
a questão do imperialismo, definido como “a política de
expansionismo comandada pelo capital financeiro”,
conforme as suas palavras: "Os postulados de uma
política expansionista revoluciona toda a concepção de
mundo da burguesia. (...) Os antigos livre-comerciantes
acreditavam no livre-comércio não somente como a mais
correta política econômica mas também como ponto de
partida para uma era de paz. O capital financeiro perdeu
há muito tempo essa crença. Não acredita na harmonia
dos interesses capitalistas. No lugar do ideal humanitário
irrompe o ideal do poder e da força do Estado. Desta
forma, nasce a ideologia do imperialismo como superação
dos velhos ideais liberais."22
Portanto, o travejamento do imperialismo como
política (e ideologia) de expansão territorial e domínio
sobre povos-nações, repousa no fortalecimento (e
"captura", pelo capital financeiro) do Estado e na sua
consequente ação político-militar-econômica de criar
condições e garantias para a dominação e os lucros das
grandes empresas no exterior, notadamente nas regiões
ou países subjugados pelo expansionismo agressivo da
política imperialista. O crescimento da geração de mais-
valia é o alicerce fundamental nessa explicação, estando
intimamente ligado à exportação de capitais e à
ampliação do espaço econômico das potências
capitalistas:
"A sociedade anônima e a organização desenvolvida
de crédito fomentam a exportação de capital e nisso,
modificam a natureza desta ao possibilitar a
imigração do capital independentemente do
empresário. (...) Entendemos por exportação de
capital a exportação de valor destinado a gerar mais-
valia no exterior. Somente se pode falar em
exportação de capital quando o capital empregado no
exterior permanece à disposição do país investidor e
quando os capitalistas nacionais podem dispor da
mais-valia produzida por esse capital no estrangeiro.
Para a exportação de capital é imperativa a
diversidade da taxa de lucro; a exportação de capital
é o meio para compensação das taxas de lucro
nacionais. O nível do lucro depende da composição
orgânica do capital, isto é, do nível de
desenvolvimento capitalista. Quanto mais avançado
for este, tanto menor será a taxa geral de lucro. [Nos
países periféricos ou menos desenvolvidos] o lucro do
empresário é maior porque a força de trabalho é
extraordinariamente barata, e sua menor qualidade é
compensada por uma jornada de trabalho
exorbitantemente longa. Se a exportação de capital
nas suas formas desenvolvidas é realizada pelas
esferas capitalistas cuja concentração é mais
avançada, a exportação acelera retroativamente o
poder e a acumulação dessas esferas. Portanto, a
política [imperialista] do capital financeiro persegue
três objetivos: primeiro, a criação do maior espaço
econômico possível. Segundo, este é fechado pelas
muralhas do protecionismo contra a concorrência
estrangeira. Terceiro, converte-se assim o espaço
econômico em área de exploração para as
associações monopolistas nacionais."23
A conclusão de Hilferding surge no último capítulo
da obra, mas é possível de ser deduzida desde as
primeiras linhas. Uma conclusão praticamente
padronizada pelos teóricos da Segunda Internacional,
podendo ser encontrada com ligeiras nuanças tanto em
Rosa Luxemburgo quanto em Bernstein, Bukharin, Otto
Bauer e outros, que sempre tratavam da questão das
nacionalidades ou do imperialismo sob um ponto de vista
do proletariado europeu. Tal conclusão é que a difusão do
capital financeiro favorece a tomada do poder pela classe
proletária – dos países desenvolvidos, é claro. Nesse
sentido, Hilferding argumenta e conclui que: "De acordo
com sua tendência, o capital financeiro significa a criação
do controle social da produção. Mas trata-se de uma
socialização em forma antagônica; o domínio da produção
social permanece nas mãos de uma oligarquia. A luta pela
desapropriação dessa oligarquia constitui a última fase da
luta de classes entre a burguesia e o proletariado. (...) A
resposta do proletariado à política econômica do capital
financeiro – o imperialismo – não pode ser o livre-
comércio; só pode ser o socialismo. Do dilema burguês:
protecionismo ou livrecomércio, o proletariado se safa
com a resposta: nem protecionismo nem livre-comércio,
mas: socialismo, organização da produção,
regulamentação consciente da economia não mediante os
magnatas do capital nem em benefício deles, mas
mediante o conjunto da sociedade e em seu benefício."24
Outra importante obra clássica que aborda o
imperialismo, embora seu escopo seja a análise da
reprodução ampliada do capital, é o livro A Acumulação
do Capital, de 1913, escrito por Rosa Luxemburgo.
Revendo, à sua maneira (que suscitou inúmeras
polêmicas, com elogios e refutações), os esquemas
marxistas da reprodução do capital, a autora argumenta
que a acumulação do capital, ou seja, a reprodução
ampliada, não pode ocorrer indefinidamente num meio
tipicamente capitalista (capitalismo "puro"), pois aí ela
seria pouco a pouco inviabilizada pela tendência à
subdemanda e à diminuição das taxas de lucros. A
solução seria a expansão, o domínio ou expansão para
áreas e relações não capitalistas, incorporando-as no
processo de acumulação. O imperialismo, a seu modo de
ver, nada mais é que a expressão política desse
imperativo econômico:
"O imperialismo é a expressão política do
processo de acumulação do capital, em sua luta
para conquistar as regiões não-capitalistas que
não se encontram ainda dominadas.
Geograficamente esse meio abrange, ainda hoje, a
grande parte da terra. Mas comparado com o poder
do capital já acumulado nos velhos países capitalistas,
que luta para encontrar mercados para seu excesso
de produção e possibilidades de capitalização para
sua mais-valia, comparando com a rapidez com que
hoje se transformam em capitalistas territórios
pertencentes a culturas pré-capitalistas (...) o campo
revela-se pequeno para a sua expansão. Assim, o
imperialismo aumenta a sua agressividade contra o
mundo não-capitalista, aguçando as contradições
entre os países capitalistas em luta. Porém, quanto
mais enérgica e violentamente procure o capitalismo
a fusão total das civilizações capitalistas, tanto mais
rapidamente irá minando o terreno da acumulação do
capital. O imperialismo é tanto um método histórico
para prolongar a existência do capital, como um meio
seguro para objetivamente por um fim à sua
existência. (...) Quanto mais violentamente o
militarismo extermine, tanto no exterior como no
interior, as camadas não-capitalistas, e quanto piores
as condições de vida dos trabalhadores, [ele] tornará
impossível a continuação da acumulação e necessária
a rebelião da classe operária internacional contra a
dominação imperialista."25
 

A interpretação de Lênin
A mencionada obra de Lênin sobre o imperialismo, de
1916, possui o subtítulo de Um Ensaio de Vulgarização. E
de fato foi escrita às pressas, embora as ideias
manifestem reflexões de vários anos, com evidente
objetivo político-pragmático. Ela deve ser encarada tanto
como reinterpretação de uma questão já tematizada e
polemizada pelo marxismo da Segunda Internacional. Mas
também – ou principalmente – como parte do projeto
político do bolchevismo onde, naquele momento, havia
uma especial ênfase no questionamento da social-
democracia alemã e seu principal líder, Kautsky. Cabe
recordar que o termo "social-democracia", que para o
marxismo-leninismo virou sinônimo de reformismo (numa
acepção depreciativa), foi uma designação assumida pelas
diversas organizações marxistas desde o final do século
XIX, sob a influência do velho Engels, até por volta de
1914, quando passa a adquirir essa conotação negativa.
Tal fato está ligado às polêmicas e estratégias de partidos
frente ao capitalismo e às guerras, assim como ao
questionamento da liderança teórica de Kautsky, discípulo
dileto de Engels, que foi rotulado como "renegado" por
Lênin e por Trotsky.
Na realidade, Kautsky, assim como o velho Engels,
valorizava o pluripartidarismo e as conquistas trabalhistas
graduais, entendendo a social-democracia como mais um
partido que disputa o poder e implementa reformas, tal
como no exemplo posterior dos países nórdicos. Para o
velho Engels e para Kautsky, a revolução social não
precisaria, necessariamente, ser uma ruptura institucional
radical, uma sublevação sangrenta tal como a Revolução
Francesa, grande fonte de inspiração para todos os
autointitulados revolucionários que surgiram após e devido
a ela. Essa revolução poderia também resultar de
mudanças graduais no capitalismo que o transformasse
em socialismo26. Os líderes bolcheviques, ao contrário,
repudiavam qualquer outro partido que não o deles e,
consequentemente, objetivavam exercer o poder sem
contestações, sem a convivência com outros partidos ou
movimentos com distintos ideários.
A grande preocupação de Lênin, nesse livro de
1916, era reprochar a ideia de "superimperialismo", que
Kautsky vinha desenvolvendo desde 1911 – e que
sistematizou em 1914 no ensaio Der Imperialismus27.
Neste, Kautsky defende a tese de que as guerras
imperialistas não são inevitáveis e seria possível um
"acordo internacional do capital" para se regulamentar
pacificamente as relações externas entre os principais
Estados capitalistas e entre as grandes empresas. Essas
ideias de Karl Kautsky, que em parte ele extraiu de – e
compartilhou com – Friedrich Lange e Edward Bernstein,
dois outros fundadores e teóricos da social-democracia
alemã, representaram de certa forma uma revalorização
das proposições kantianas do Estado reformador. Isto é,
conquistas graduais e pacíficas, dentro da legalidade, no
sentido de democratizar o Estado. Como também da
revalorização da ideia kantiana da paz perpétua, que
posteriormente seriam básicas para a formação da Liga
das Nações e para a fundação da ONU.
Mas Lênin, assim como anteriormente Rosa
Luxemburgo, que foi a primeira a colocar o dilema
“Reforma ou Revolução?” como se fossem realidades
incompatíveis, via nessas ideias tão somente um
reformismo que abandonava a perspectiva revolucionária
e que favorececia a burguesia.
Essa percepção de revolução como oposto a reforma –
ignorando que as duas principais revoluções da história da
humanidade foram reformas graduais que duraram
milênios (a revolução neolítica) ou séculos (a revolução
industrial) – no fundo decorre da identificação com a
Revolução Francesa de 1789. Esta é vista como o protótipo
de revolução politica e social, uma ruptura rápida e radical
das instituições com a derrubada da Bastilha e a mudança
de regime, a prisão de centenas de milhares de pessoas, a
condenação à morte do rei e de pessoas tidas como
“antirevolucionárias”, etc. A ironia dessa percepção é que
a enaltecida “revolução russa” de outubro de 1917 nada
mais foi que um golpe militar (um coup d’État, como até
boa parte dos bolcheviques reconheceram no momento,
embora depois mudando de discurso e passando a falar
numa “Grande Revolução Proletária”) implementado por
um grupelho armados que depôs o frágil governo
provisório de Kerensky. Governo que era tão impopular
havia sido abandonado por boa parte dos guardas que
deviam proteger o Palácio de Inverno, de onde
despachava. Mas havia de fato um processo revolucionário
na Rússia, iniciado em fevereiro de 1917, com graduais
conquistas democráticas lideradas pelos sovietes (o
“tesouro perdido” da revolução, na expressão de Hannah
Arendt). Mas o governo bolchevique, instalado em outubro
desse ano, esmagou os sovietes e reprimiu as liberdades
democráticas. Daí que grande parte da bibliografia, a que
não divulga as versões trotskista ou stalinista (que têm
mais em comum que diferenças substanciais), assinala
que houve na Rússia de 1917 uma revolução social em
fevereiro e uma contra-revolução em outubro.28
Já em 1915, no prefácio que escreveu para o livro de
Nikolai Bukharin, A Economia Mundial e o Imperialismo,
Lênin dispara suas baterias contra a interpretação
kautskista: "Não existe sombra sequer de marxismo em tal
tendência, em tal afã de ignorar o imperialismo existente
e de refugiar-se num devaneio vazio sobre possibilidades
de um dia vir a existir superimperialismo." E completa:
"Será possível, entretanto, contestar que uma nova
fase do capitalismo posterior ao imperialismo – isto é,
uma fase superimperialista seja, no abstrato,
concebível? Não. Teoricamente pode-se imaginar uma
fase desse tipo. Na prática, porém, ater-se a essa
concepção seria cair no oportunismo. (...) Sem dúvida,
a evolução tende para a constituição de um truste
único, mundial, abrangendo, sem exceção, todas as
empresas e todos os Estados. A evolução efetua-se,
porém, em tais circunstâncias e a um ritmo tal, através
de antagonismos, convulsões e conflitos (...) que antes
da fusão `superimperialista' universal dos capitais
financeiros nacionais, o imperialismo deverá
inevitavelmente estourar e transformar-se em seu
contrário [em socialismo]."29
Mas só isso não bastava, principalmente porque o
texto mesmo do bolchevista Bukharin era frágil nas
críticas a Kautsky. Era preciso mais vigor, maior
diferenciação entre a leitura (e estratégia) de Kautsky
sobre o capitalismo e o imperialismo e o ideário
bolchevista face à grande guerra e o seu significado para
o proletariado. Aí surge esse texto clássico de Lênin,
escrito em 1916, que com o tempo se tornou na principal
(e quase exclusiva) referência sobre o imperialismo no
interior do marxismo que prevaleceu com a Terceira
Internacional – a Comintern (1918-47) –, em grande parte
dominada por Stálin. Pode-se dizer que aí começa, mesmo
que de forma embrionária e ainda ambígua, a
interpretação marxista-leninista do século XX como
"momento de transição do capitalismo para o socialismo”,
com as revoluções proletárias ocorrendo primeiramente
nos países explorados, isto é, dominados pelo
imperialismo.
As duas principais referências ou bases de apoio
teórico para o escrito de Lênin foram o citado livro de
Hilferding e a obra de Hobson – Imperialism, a Study, de
1902. A primeira abordagem, como já vimos, é marxista e
parte de uma ótica de classes; a segunda é liberal e vê o
imperialismo (algo contingente e não necessariamente
ligado ao capitalismo) como expansionismo econômico e
militar de nações ou Estados fortes e mal administrados.
Nas próprias referências básicas (mas não só aí, pois o
problema é mais de dilema político-partidário), portanto,
já se pode perceber um amálgama na leitura leninista do
imperialismo, que de fato oscilou entre uma abordagem
de classes e uma nacional Conforme observou com muita
pertinência um analista:
"A resposta revolucionária ao imperialismo é ambígua
em Lênin. Há uma oscilação entre uma proposição de
revolução nacional nas nações oprimidas – a
autodeterminação nacional – e a revolução socialista.
(...) Lênin, contudo, estava descrente do proletariado
europeu. O próprio imperialismo havia corrompido a
classe trabalhadora criando uma `aristocracia
operária', e toda a liderança socialdemocrata era
acusada de haver descambado para o oportunismo.
(...) Se havia alguma possibilidade de enfrentar a
reação mundial, ela era dada pela força social que
representava a burguesia nacional avançada dos
países asiáticos atrasados: ‘Os socialistas devem
apoiar com a maior decisão os elementos mais
revolucionários dos movimentos de libertação
nacional democrático-burgueses e ajudar a sua
insurreição – e quando for o caso, a sua guerra
revolucionária – contra as potências imperialistas que
os oprimem’, escreveu Lênin.”30
Ao contrário de Hilferding, Kautsky ou Rosa
Luxemburgo, que malgrado suas divergências
identificavam no imperialismo uma política expansionista
do capital monopolizado, Lênin acabou meio
confusamente por identificar o imperialismo como uma
fase ou etapa, a última ou derradeira, do capitalismo. É
fato que alguns autores posteriores, na tentativa de
atualizar ou recuperar a teoria leninista do imperialismo,
assinalaram que a primeira edição do livro de Lênin
intitulava-se Imperializm, Kak Novejsij Etap Kapitalizma,
sendo que o vocábulo russo novejsij significa "última" ou
"mais recente" e não "superior" ou "derradeira" como
surge em praticamente todas as edições posteriores.
Todavia, não se pode esquecer que para Lênin – e também
para quase que todos os marxistas do início do século XX –
a fase mais recente ou "mais nova" do capitalismo era
sem dúvida a última; após ela viria inexoravelmente o
socialismo. E a identificação do imperialismo como a
etapa monopolista do capitalismo é clara e repetida
inúmeras vezes nessa obra de Lênin:
"O imperialismo surgiu como o desenvolvimento e a
continuação direta das características fundamentais do
capitalismo. Porém o capitalismo se converteu em
imperialismo somente ao alcançar um grau muito alto
e definido de seu desenvolvimento, quando algumas
de suas características fundamentais começaram a
converterse em seus contrários, quando tomaram
corpo e se manifestaram com todos os traços de época
de transição do capitalismo a um sistema econômico e
social mais elevado. (...) O monopólio é a transição do
capitalismo a um sistema superior. Se fosse
necessário dar a mais breve definição possível
do imperialismo, deveríamos dizer que ele é a
etapa monopolista do capitalismo. Essa definição
incluí o mais ïmportante pois, por uma parte, o capital
financeiro é o capital bancário de alguns poucos
grandes bancos monopolistas fundido com o capital
das associações monopolistas de industriais, e, por
outra parte, assiste-se ao final da repartição do mundo
entre as principais potências capitalistas."31
Um pouco mais adiante nesse mesmo texto, Lênin
assinala cinco "traços essenciais" do imperialismo: o
decisivo papel dos monopólios na vida econômica; o
surgimento do "capital financeiro" (fusão do capital
bancário com o industrial); o papel fundamental das
exportações de capital (e não mais apenas de
mercadorias) para o capitalismo central; a formação de
associações capitalistas internacionais, que repartem o
globo entre si; e a culminação do processo de repartição
da superfície terrestre entre os países desenvolvidos:
como ele enfatiza, daí para o futuro somente será possível
uma redistribuição de territórios e não mais uma
partilha.32
A ideia de nações oprimidas (e não apenas classes
exploradas) é forte nessa obra, bem como a crença na
impossibilidade do capitalismo prosseguir para além dessa
fase: "Os monopólios, a oligarquia, a tendência à
dominação em detrimento da liberdade, a exploração de
um número cada vez maior de nações pequenas ou débeis
por um punhado de nações mais ricas ou mais fortes: tudo
isso deu origem a essas características distintivas do
imperialismo, o que nos obriga a qualificá-lo de
capitalismo parasitário ou em estado de decomposição."33
 

Por quê a leitura leninista predominou?


A teoria leninista do imperialismo, apesar – ou talvez
devido mesmo a isso – de suas ambiguidades entre a
exploração (e, portanto, o sujeito revolucionário, que seria
o explorado) ser ora de "classe" e ora de "nação", tornou-
se hegemônica a partir de 1917 e, especialmente, com a
Terceira Internacional. As razões disso são múltiplas. Em
primeiro lugar, há a influência do pragmatismo, básico
tanto para a ordenação burguesa do mundo desde os
séculos XVI e XVII – a instrumentalização do saber e da
natureza, a prática ou eficácia nos moldes da ideologia do
progresso como critério último de verdade –, como
também para o marxismo como um todo: os vencedores
tinham razão porque venceram, os vencidos estavam
equivocados, pois o fato de não vencerem é uma prova
disso. E ponto final.
Pouco importa que as ideias de Lênin sobre o
imperialismo sejam bem menos articuladas e logicamente
consistentes que as de Rosa Luxemburgo ou de Hilferding.
Pouco importa que para a realidade posterior à Segunda
Guerra Mundial as ideias de Kautsky é que estão mais
próximas dos acontecimentos. Pouco importa ainda que a
abordagem de Hilferding, entre todas, talvez seja a que
mais se assemelhe à de Marx em O Capital. Como também
pouco importa que, sob o ponto de vista de criatividade, a
obra de Rosa Luxemburgo ganhe de longe dos demais: a
reprodução de relações não capitalistas pelo capitalismo,
ou as ligações que essa autora fez entre militarismo e
acumulação de capital, por exemplo, são originais para a
época e imprescindíveis para uma análise crítica do
capitalismo hodierno (em sendo retomadas e
aprofundadas). Mas o "fato" tido por relevante e impositivo
é que as ideias e a prática de Lênin desembocaram numa
"revolução proletária", ao passo que as demais não. Afinal,
tanto a história do movimento operário quanto a do
socialismo e também a do marxismo (as três se imbricam,
mas não são idênticas), no final das contas, são
igualmente uma "história dos vencedores".
Foi apenas depois da (tardia) percepção, por parte
de grande parte da esquerda, da situação de exploração
da força de trabalho que existia nos países do socialismo
real. E da descoberta das desigualdades sociais intensas,
privilégios e mordomias para certa camada burocrática
que controlava o poder público, opressão de minorias
étnicas ou nacionais, ausência de democracia em todos os
níveis (da fábrica ao parlamento). Foi apenas depois disso
tudo que se começou timidamente a reavaliar as ideias
leninistas sobre o “imperialismo”, o "elo mais fraco", o
"centralismo democrático" e inúmeras outras mitologias
que influenciaram a quase totalidade das correntes tidas
como de esquerda durante praticamente todo o século XX.
Por outro lado, não se pode esquecer que grande
parte do sucesso da teoria leninista do imperialismo
consistiu – e ainda consiste, para alguns – na possibilidade
que oferece de se deslocar o eixo da revolução para os
países periféricos, e do sujeito dela para a "nação"
(portanto o Estado e as camadas dirigentes, normalmente
burocratas ou tecnocratas) ou para um pretensa
"burguesia nacional progressista". As críticas de Lênin à
"aristocracia operária" dos países desenvolvidos, a
sugestão (implícita) de que ela seria num certo sentido
beneficiária da "exploração das nações oprimidas" e a
ênfase não tanto na luta de classes e sim na "luta contra o
imperialismo", são elementos que permitiram o uso dessa
teoria por amplos setores (ou projetos) de diversas partes
do globo, algumas vezes indiscutivelmente autoritários e
repressores dos direitos de cidadania. Entre estes, cabe
mencionar os ditadores que se perpeturam no poder em
países pouco desenvolvidos sob o pretexto de serem
revolucionário por estarem “lutando contra o
imperialismo” ou “contra o capitalismo”, tais como nos
exemplos de Muammar Gaddafi, na Líbia; de Hissène
Habré, no Chade; de Idi Amin Dada, em Uganda; de Pol
Pot, no Camboja; de Haile Mariam, na Etiópia; de Hugo
Chavez e Nicolas Maduro na Venezuela; e tantos outros.
Mas também outros personagens autoritários – como
militares e/ou burocracias nacionalistas, burguesias que
exploram intensamente sua força de trabalho mas
repudiam o "capital estrangeiro", etc. – fizeram uso dessa
teoria para se legitimarem, inclusive frequentemente com
apoio de setores ditos de esquerda.
 

2.2 – Os continuadores e os reformadores


Deixando de lado, neste livro, os percalços da
teoria leninista do imperialismo de 1917 até recentemente
– sua influência em ideários políticos diversos, as
reelaborações que sofreu em inúmeras ocasiões e sob
múltiplos imperativos, sua ligação indiscutível mas
problemática com teorias da dependência e do
subdesenvolvimento, etc. –, pode-se colocar em pauta a
sua pertinência para a compreensão do atual sistema
mundial de produção e de poder. O que é recuperável
nessa teoria, bem como nas ideias de Kautsky, Hilferding e
Rosa Luxemburgo? Pode-se falar ainda em imperialismo?
Em caso positivo, o que isso significa de fato? Como
compatibilizar o imperialismo dos autores clássicos do
início do século XX com certas transformações – como a
continuidade do capitalismo sob a forma planejada ou
keynesiana após a crise de 1929, o novo ciclo de expansão
após 1945, a crescente militarização e seu papel no
sistema produtivo, os dilemas do "socialismo real" que não
conseguiu superar certas contradições capitalistas
básicas e ainda criou ou exacerbou outras, a ausência
desde 1945 de guerras entre as grandes potências
capitalistas, a atual globalização concomitante e
indissociável à revolução técnico-científica, etc. –, que
colocam em xeque algumas de suas determinações
essenciais? Como essa temática do imperialismo tem sido
enfocada pelos autores mais recentes?
Num seminário interdisciplinar realizado em 1969
na Universidade de Oxford, mais de cem especialistas –
historiadores, economistas, sociólogos, antropólogos,
filósofos, geógrafos e outros –, que realizaram
trabalhos/pesquisas ligados de uma forma ou de outra à
questão do imperialismo, procuraram analisar sob
diversos enfoques esse tema. A primeira coisa que ficou
clara, nas discussões, é que se usava o mesmo rótulo –
imperialismo – para fazer referência a processos ou
fenômenos extremamente diferentes e por vezes até
incompatíveis. Um dos organizadores do seminário, ao
publicar alguns dos textos mais representativos das
diversas posições ou correntes, afirmou que: "Apesar de
um novo interesse que o imperialismo vem suscitando
ultimamente, as discussões entre teorias rivais no geral
produziram mais confusão do que aclaramento. Não
existe um acordo acerca do significado mesmo da
palavra, nem do fenômeno que ela pretende descrever.
Para alguns, o objeto de estudos da teoria do
imperialismo é todos os impérios, de todas as épocas
históricas; para outros apenas os impérios coloniais
formais dos séculos XIX e XX; e, para outros ainda,
somente a situação de impérios `competidores' que
Hobson descreveu como característica do mundo a partir
de 1870. Inclusive entre os marxistas esse termo é
empregado ambiguamente, dando-se a ele tanto um
significado técnico – a etapa final de desenvolvimento do
capitalismo (e, aqui, um sistema de relações entre
Estados de todo tipo) – quanto um sentido coloquial – as
relações entre os países capitalistas desenvolvidos e o
Terceiro Mundo.”34
Um professor universitário de economia, motivado
por esse seminário, passou sete anos refletindo, lendo e
analisando as premissas e a estruturação das ideias de
importantes teóricos do imperialismo, especialmente o
liberal Hobson e o marxista Lênin, e num livro onde expõe
seus resultados ele afirma que o uso da palavra
imperialismo para a realidade atual lembra
metaforicamente a "utilização de odres velhos (a teoria
do imperialismo) para vinho novo (os acontecimentos
hodiernos) ". Em suas conclusões, patenteia-se que: "O
mesmo significante, o termo `imperialismo', foi e continua
sendo empregado para designar um conjunto de
tendências distintas, e em certos aspectos antitéticas. “35
As razões mais profundas dessas ambiguidades e
desacordos interpretativos, a nosso ver, são
essencialmente políticas, no sentido lato de visões de
mundo e projetos (mesmo que implícitos) de reordenação
societária diversificados. Num certo sentido, pode-se dizer
que todas as teorias e conceitos das ciências sociais
possuem um significado político. Por detrás de
desentendimentos ontológicos (sobre o que existe ou não),
sempre aparecem não apenas problemas de linguagem
como também de conceitos (que não são meras palavras,
pois um conceito é sempre relacional: o de mais-valia, por
exemplo, só ganha significado quando interligado com
capital e trabalho assalariado, com produção de
mercadorias – que pressupõe a existência do mercado –,
com trabalho socialmente necessário, etc.), o que implica,
em última instância, em visões de mundo diferenciadas.36
E diferentes visões de mundo, especialmente no que
se refere ao estudo do social, costumam dar origem a
diferentes pontos de vista políticos (num sentido amplo).
Mas o caso do imperialismo é especial, é mais evidente
em termos políticos do que outras teorias ou problemas
relativos ao social. Isso porque imperialismo remete
imediatamente (portanto, sem tantas mediações quanto
outras teorias ou conceitos) ao significado do capitalismo
mundial – com as suas desigualdades, diversidades,
conflitos e antagonismos – e, dessa forma, às suas
contradições e potenciais de mudanças. Mesmo um autor
que, ao pretender encetar uma abordagem geográfica do
imperialismo, buscou "separar ciência de ideologia" e
tratar desse problema "como conceito científico e não
ponto de vista político", não deixou de acabar por concluir,
bem ao estilo engagé: "A confusão de relações entre
povo/classes/instituições como relações entre
áreas/nações tem sérias implicações políticas. Concluindo,
parece evidente que o estudo do imperialismo é de
relevância para a Geografia. Resta ver se a Geografia é de
relevância para o estudo – e a luta – contra o
imperialismo.”37
 

Imperialismo ainda tem algum poder


explicativo?
Há pelo menos algo que nos parece evidente: não é
possível no mundo atual – nem na época da guerra fria e
muito menos neste período da nova ordem mundial,
globalização e revolução tecnológica – continuar a usar a
teoria do imperialismo sem profundas redefinições, sem
reavaliar os seus pressupostos essenciais. Evidentemente
que existem autores que prosseguem falando em
"imperialismo" como se fosse um conceito unívoco e sem
problemas: quaisquer novos acontecimentos – seja a
ameaça de uma guerra termonuclear, seja um golpe
militar concretizado ou frustrado na Indonésia ou na
Turquia, sejam os bombardeios norte-americanos sobre o
Iraque ou sobre o Afeganistão, sejam as propostas do
Fundo Monetário Internacional (FMI) na questão das
dívidas externas de alguns países subdesenvolvidos,
sejam as reuniões do Fórum Econômico Mundial em Davos,
etc. – são imediatamente classificados sob essa etiqueta.
Mas esse tipo de procedimento tão somente revela
uma carência de reflexão e de qualquer tentativa de
analisar seriamente a realidade. É uma forma de ver o
mundo que possui uma natureza mais panfletária no
sentido de primaziar a propaganda e a retórica. E não uma
perspectiva científica – esta sendo entendida não no
sentido impraticável de oposição a qualquer forma de
ideologia, e sim como preocupação constante em adequar
as noções e teorias aos acontecimentos, um enfoque no
qual o objeto de estudos nunca está acabado ou “morto” –
isto é, completamente explicado ou determinado – e sim
“vivo”, em movimento ou em-se-fazendo. Os
pesquisadores mais sérios – inclusive alguns marxistas –
preocupam-se em repensar essa teoria, em confrontá-la
com as novas condições históricas, algo que pressupõe
redefinições nos seus pressupostos básicos.
Do ponto de vista complexo ou mesmo crítico, os
conceitos e teorias nunca são eternos ou a-históricos, mas
sempre datados, válidos de forma plena apenas sob
determinadas condições históricas. Os conceitos não são
meramente coisas ou fatos, mas relações sociais, e
portanto, históricas: uma mesma máquina de fiar algodão,
escreveu Marx em O Capital, será capital numa sociedade
capitalista (pois produzirá mercadorias, num processo
onde há extração de excedente sob a forma de mais-valia,
de onde se originará um lucro, etc.) e não será capital
numa outra sociedade com pressupostos diferentes; e o
ouro será dinheiro em certas condições históricas, mas em
outras condições poderá não ser nada além de um simples
adorno. As categorias de análise podem até ter uma
dimensão genérica – por exemplo: o proletariado existindo
já em Roma Antiga, as trocas e o dinheiro na antiguidade,
etc. –, mas elas só adquirem concretude, só surgem de
forma plena, em condições onde haja o entrecruzamento
de suas determinações de existência: o proletariado de
fato é apenas o da sociedade capitalista ("o proletariado
romano vivia às custas da sociedade, ao passo que a
sociedade moderna é que vive às custas do proletariado",
afirmou Marx); e o dinheiro como expressão do capital só
passa a existir concretamente sob as relações sociais
capitalistas.
Deixar de lado os pressupostos históricos de uma
teoria ou de um conceito, usando a torto e a direito essas
categorias como se de uma mera palavra ou rótulo a-
histórico se tratasse, é abandonar a seriedade intelectual
(e lógica) do discurso científico e cair numa retórica vazia
da propaganda ou do panfleto (que até pode ser eficaz e
útil como forma de mobilização, mas é nulo como forma
de se perscrutar o real).
A identificação do imperialismo como uma fase ou
etapa do desenvolvimento do capitalismo, seja ou não a
última ou derradeira, é insustentável logicamente. Nesse
caso, como seria possível associar as determinações
essenciais do capitalismo – a relação capital/trabalho
assalariado, a extração da mais-valia, a produção de
mercadorias, a tendência à concentração e centralização
do capital, etc. – com aquelas outras – a partilha do globo
entre as potências, o capital financeiro comandando a
política e a economia, etc. – do imperialismo? (É de se
notar que essas determinações são de natureza diferente:
as primeiras, traçadas por Marx, possuem o imperativo da
reposição contínua e em todos os momentos desse
sistema produtivo, ao passo que as segundas são às
vezes até contingentes e fenomênicas).
O recurso utilizado, por alguns autores que procuram
recuperar essa teoria, é considerar o imperialismo como
uma política ou expressão expansionista do capitalismo
numa certa fase (o que está mais próximo de Hilferding
ou Rosa Luxemburgo do que de Lênin). Mesmo assim
permanecem certos quiproquós. Se o imperialismo surgiu
apenas no final do século XIX – com o capital financeiro, a
partilha de toda a superfície terrestre pelas potências
capitalistas e a exportação de capital para a periferia –,
como manter essa categoria tão rigidamente determinada
com os novos acontecimentos que modificaram essas
determinações?
A partilha do globo, por exemplo, já chegou há muito
ao seu final: resta apenas a Antártida (que não pode ser
objeto de imperialismo porque é inabitada, portanto, sem
povos ou nações a serem submetidos aos imperativos
capitalistas; além disso até países periféricos - como o
Chile, o Brasil e a Argentina - reivindicaram suas parte
nesse continente gelado, que no final das contas deverá
permanecer como um patrimônio ecológico de toda a
humanidade). O que começa a ocorrer hoje é a partilha,
num certo sentido, do próprio espaço cósmico,
especialmente a camada do espaço ao redor do planeta
que possibilita melhores condições para satélites
artificiais ou para projetos do tipo “guerra nas estrelas”.
Mas a ausência de “nações subjugadas” ou mesmo de
trabalhadores nesses espaços torna irrelevante a ideia de
um novo imperialismo.
E a forma de capital mais avançada já não é a
associação entre bancos e grandes indústrias – o capital
financeiro na acepção de Hilferding, aceita por Lênin –,
mas sim as empresas multi ou transnacionais. (E também
os fundos de investimentos e os fundos de pensões, que
possuem centenas de milhares de cotistas e em alguns
casos originam-se de sindicatos de trabalhadores). Tais
empresas, que às vezes assumem a forma de
conglomerados – isto é, grupos que controlam firmas de
setores ou ramos diversificados: bancos, seguradoras,
indústrias, propriedades agrárias, agências de
propaganda, etc, – , muitas vezes são até estatais
(embora em geral sejam sociedades anônimas, com
milhares de acionistas) e desde algumas décadas que já
deixaram de ser uma exclusividade dos “países
imperialistas” (ou centrais) e em inúmeros casos são
originadas em economias tidas como periféricas como
Coréia do Sul, China, México, Brasil, Índia, Indonésia,
Taiwan e outras.
A própria exportação de capital – que continua
ocorrendo, evidentemente, tendo até se generalizado
muitíssimo mais – não se dá apenas do centro do
capitalismo para os países tidos como dependentes, pois
muitas vezes ela ocorre de alguns países periféricos para
outros ou até mesmo destes para as economias
desenvolvidas. Só para mencionar os exemplos mais
conhecidos e divulgados pela mídia, recorde-se das
empresas coreanas LG, Hyundai ou Samsung, das
chinesas Huawey e Xiaomi, dos atuais investimentos
chineses na Europa visando criar uma “nova rota da
seda”, ou ainda das enormes inversões de capitais (isto é,
dinheiro que visa a geração de mais-valia) de classes
dominantes árabes nos países capitalistas desenvolvidos.
Inclusive, como nos relatou com detalhes a imprensa em
relação à eleição presidencial norte-americana ocorrida
no final de 2001, houve a doação para os candidatos, em
especial para o que se sagrou vitorioso, de enormes
volumes de dinheiro oriundos de países árabes
exportadores de petróleo. Isso desmancha aquela ideia
maniqueísta – típica dos adeptos da teoria do imperialismo
– que as inversões de capitais e as influências ou
ingerências no exterior seriam oriundas tão somente dos
países mais desenvolvidos.
A solução encontrada, para se contornar essas
dificuldades, tem sido a de ampliar a abrangência do
conceito. A imensa maioria dos autores que mantêm a
categoria imperialismo procura diferenciá-lo em fases ou
momentos, que abrangem toda a história do capitalismo:
a fase colonial da época mercantilista, a fase pós-
Revolução Industrial, o imperialismo após a Segunda
Guerra Mundial, o superimperialismo da globalização, etc.
Além disso, é comum se enfatizar que relações
imperialistas ocorrem também entre os países periféricos
e até mesmo entre os desenvolvidos – pois a situação
pós-1945 mostrou a dominação norte-americana na
Europa Ocidental e no Japão – e não exclusivamente do
centro para a periferia do sistema capitalista. E o acento
nas exportações de capitais ou no capital financeiro é
substituído pela ênfase na militarização, em especial no
poderio militar norte-americano (retomando-se assim,
alguns aspectos da análise de Rosa Luxemburgo) ou
então nas necessidades estratégicas de mercados e de
dominação cultural-tecnológica.
 

As releituras de Magdoff e Petras


Um autor importante nessa temática – em especial
nos anos 1970 e 80 – e que expressa bem essa
redefinição do imperialismo (apesar da inequívoca
inspiração leninista) é Harry Magdoff, que escreveu:
"Um dos pontos fundamentais da teoria de Lenin
sobre o imperialismo é a sua classificação como
estágio particular no desenvolvimento do capitalismo,
que surge pelos fins do século XIX. Esta tentativa de
dar ao imperialismo uma data de referência histórica
tão específica tem sido objeto de controvérsias, sendo
a principal objeção levantada o fato de muitos dos
traços característicos do imperialismo poderem ser
encontrados ao longo de toda a história do
capitalismo: a necessidade imperiosa de fomentar um
mercado mundial, a luta pela dominação das fontes
estrangeiras de matérias-primas, a corrida às colônias
e a tendência para a concentração do capital. (...) A
característica essencial do novo imperialismo que
surge no fim do século XIX: a luta concorrencial entre
as nações industriais por posições dominantes com
respeito ao mercado mundial e às fontes de matérias-
primas espalhadas pelo mundo. (...) Circunscrever o
imperialismo a operações realizadas apenas no mundo
subdesenvolvido é realmente estranho se
considerarmos a coerência dos objetivos alemães com
respeito às outras nações européias durante as duas
guerras mundiais: tratava-se de um programa de
reorganizar e controlar tanto os países industrializados
como os não-industrializados a fim de servir às
necessidades de um capitalismo alemão em expansão.
O imperialismo de hoje tem várias características
novas e distintas. São elas, na nossa opinião: 1) a
passagem da tônica, que era posta na rivalidade pela
partilha do mundo, para a luta contra a retração do
sistema imperialista; 2) o novo papel desempenhado
pelos Estados Unidos como organizador e dirigente do
sistema imperialista mundial; e, 3) o surto de uma
tecnologia de caráter internacional.”38
Um dos alicerces fundamentais dessa
(relativamente nova) interpretação sobre o imperialismo,
onde Magdoff é um dos principais – embora não o único –
dos expoentes, é a ideia de um sistema imperialista
mundial liderado militarmente pelos Estados Unidos, que
procuraria a todo custo evitar a "retração" do espaço de
domínio do capitalismo (isso na época da guerra fria) ou
expandir o seu modelo capitalista (na época da
globalização). Trata-se, a nosso ver, tão somente de uma
versão mais rica e sofisticada da teoria stalinista – que,
aliás, é anterior a Stálin, mas foi por ele (e pela Terceira
Internacional) reapropriada e instrumentalizada – sobre o
século XX corno momento de transição necessária e
“inevitável” do capitalismo para o socialismo , que a isso
reage com a crescente militarização e violência.
Apesar de Magdoff ser um autor – e crítico do
capitalismo, especialmente o norte-americano – sério, com
textos que denotam pesquisas e reflexões importantes
sobre determinados aspectos do mundo atual, esse tipo de
leitura do imperialismo que ele ajudou a elaborar acaba
resultando em dogmatismo e teleologia. É como se a
inteligibilidade dos acontecimentos – não só passados
mas também presentes e futuros – já estivesse definida
de antemão na teoria, na "verdade revolucionária".
Qualquer golpe militar direitista em algum país periférico
é sempre interpretado como "contra-revolução liderada
pelos Estados Unidos"; e qualquer transformação social
ou tomada do governo por (pretensas) “forças populares”
ou que se definem como tal – desde levantes camponeses
até revoluções nacionalistas ou religiosas, passando por
golpes militares dados por oficiais que dizem ser
revolucionários ou socialistas, etc. –, é via de regra
enaltecida como "revolução proletária".
Tudo aí está rigidamente determinado, definido
previamente: os fatos devem apenas ser encaixados na
teoria do imperialismo (e do final do capitalismo, aliás,
nascimento inexorável do socialismo), não há lugar para o
novo, para a indeterminação, para se aprender com a
história afinal, que sempre tráz novos acontecimentos ou
processos. Não apenas panfletos oriundos de partidos ou
grupelhos socialistas burocratizados expressam esse viés.
Também em trabalhos acadêmicos e de reflexão essa
simplificação interpretativa transparece, mesmo que de
forma mais ou menos encoberta ou implícita. Por
exemplo: um autor norte-americano, por sinal ligado a
Magdoff, chegou a formular um modelo para as
"revoluções socialistas do século XX" onde se refere ao
Vietnã, a Cuba, à antiga União Soviética, à China, etc., e
inclui todas essas variadas situações, deixando de lado
suas especificidades e estratégias, num esquema único
de "derrubada do capitalismo" por movimentos sociais de
massas sempre lideradas, em última instância, pelo
proletariado urbano e sua vanguarda.”39
Sem dúvida que alguns acontecimentos relatados
por esse tipo de interpretação são verdadeiros: alguns
golpes militares em países subdesenvolvidos
provavelmente contaram com o apoio de firmas e
instituições norte-americanas; os Estados Unidos de fato
passaram a ser o principal líder militar (principalmente) e
também econômico do “mundo ocidental” ou capitalista
desde o pós-guerra e mais ainda a partir dos anos 1990,
embora nesta segunda década do século já se observa
um retraimento da sua atuação internacional; e os países
autodenominados "socialistas" cresceram numericamente
de 1917 em diante, chegando a abarcar cerca de 34% da
população mundial em 1985. (Mas a partir de 1989 esse
“mundo socialista” se desmantelou e praticamente não
existe mais).
O problema é que tais fatos não legitimam aquela
"teoria do imperialismo" na qual existe um "sentido"
unívoco para a "história do século XX". Vejamos,
sucintamente, o porquê disso. Se, por um lado, os Estados
Unidos realmente apoiaram ou até ajudaram na
elaboração de golpes militares autoritários em nações
como, por exemplo, o Chile (1973: assassinato do
presidente Salvador Allende e ascensão do general
Pinochet), por outro lado, não se pode esquecer que
também a antiga União Soviética produziu as suas
invasões ou golpes direitistas: os exemplos da Hungria
(1956) e da Polônia (1981: o general Jaruzelski assume
pela força o poder estatal, prende líderes operários e
decreta a ilegalidade do Sindicato Solidariedade) deixam
isso bem claro. E determinados acontecimentos – tais
como a queda em 1986 do ditador Ferdinand Marcos nas
Filipinas, forçada pelas autoridades norte-americanas, ou
as pressões norte-americanas sobre a Indonésia, em
1999, para que ela aceitasse a independência do Timor
Leste – mostra que para os Estados Unidos interessa não
apenas governos autoritários no mundo tido como
subdesenvolvido, como transparece naquela teoria citada,
mas sim estabilidade política que garanta a continuidade
dos negócios e não favoreça o surgimento de forte
oposição popular.
Não é possível aqui sustentar nenhuma ideia
maniqueísta de que uma das duas antigas superpotências
da ordem bipolar estaria sempre ao lado do "povo", isto é,
do "sentido da história", ao passo que a outra ficaria
sempre ao lado do "imperialismo" ou melhor, da "contra-
revolução". O que ocorre, na realidade, é que tanto os
Estados Unidos quanto a União Soviética, ou a Rússia
atual, apesar das inegáveis diferenças, possuem suas
classes dominantes que visam se autoperpetuar e
procuram nas relações externas apoiar os mecanismos de
dominação – e nunca os "interesses populares" – que lhes
sejam mais favoráveis. É o realismo, a realpolitik em
todos os casos, e não uma pretensa “confraternização
com os povos oprimidos” como proclamam alguns para a
política externa dos países autointitulados socialistas.
Isso nos remete ao mito – felizmente,
desacreditado a partir de 1989-91 – da expansão do
"campo socialista" com a conseqüente retração do
sistema capitalista mundial. Em primeiro lugar o
denominado "mundo socialista" sempre foi extremamente
heterogêneo e conheceu experiências/vias econômico-
políticas bastante diversificadas. E em segundo lugar o
que vem ocorrendo de fato, em especial a partir do final
dos anos 1970, é uma expansão da economia (e,
portanto, de relações sociais) capitalista até o "socialismo
realmente existente". A China, que até o início da década
de 1970 era relativamente autosuficiente, passou a
conhecer uma notável "abertura" para o mercado
capitalista – as exportações chinesas, que se direcionam
notadamente para os países desenvolvidos, por exemplo,
passaram de 3,6 bilhões de dólares em 1976 para mais
de 200 bilhões em 2000 e 2,5 trilhões em 2019 – e até
para procedimentos da economia de mercado em seu
território: a bolsa de valores de Xangai, que havia sido
fechada em 1949, foi reaberta em 1984; a "iniciativa
privada" foi novamente admitida, inclusive sob a forma de
investimentos estrangeiros e firmas multinacionais; as
fábricas, que até o final dessa década produziam com
base em cotas fixadas pelos planos quinquenais,
passaram a levar em consideração a lei da oferta e da
procura.
Também na antiga União Soviética, na Rússia atual e
na Europa Oriental essa expansão capitalista pode ser
notada no volume do comércio exterior, na abertura para
o Ocidente, nas privatizações de empresas estatais, na
instalação de filiais de empresas multinacionais, etc Na
perspectiva dos países capitalistas desenvolvidos essa
expansão para o Leste reflete uma busca de novos
mercados e também, pelo menos em parte, de uma força
de trabalho mais barata, com um relativo elevado nível
educacional e em geral disciplinada. Já na perspectiva
desses países do (antigo) "socialismo real" trata-se de
uma modernização tecnológica e uma ampliação nos
níveis de consumo da população, que de fato estavam e
em geral ainda estão abaixo daqueles que existem no
antigo Primeiro Mundo ou países pioneiros na revolução
industrial. E tudo isso não se destina fundamentalmente a
atender os "interesses sociais" – como querem alguns –, e
sim a acompanhar o desenvolvimento das forças
produtivas dos países capitalistas desenvolvidos e sem
questionar a natureza de classes dessa tecnologia e desse
mecanismo produtivo, que evidentemente não são
"neutros”40
 

Emmanuel e o intercâmbio desigual


Dentre as inúmeras teorias, elaboradas nas últimas
décadas, que propuseram uma superação – e uma
continuidade, pelo menos num certo sentido – da teoria
do imperialismo, destaca-se aquela do intercâmbio
desigual, de Arghiri Emmanuel e outros autores. Seu
ponto de partida é a teoria marxista do valor – o valor-
trabalho, a mais-valia como trabalho não pago e que vai
assumir a forma de lucro – ou de renda da terra, a ser
redistribuída –, as diferenças entre valor de uso e valor de
troca, o tempo de trabalho socialmente necessário à
produção de mercadorias, etc. Com base nessa teoria,
Emmanuel procura explicar o desenvolvimento desigual e
a transferência de riquezas da periferia para o centro do
capitalismo. As explicações tradicionais – que atingiram o
seu maior vigor com os teóricos latino-americanos da
CEPAL, que por sinal inspiraram-se enormemente na
teoria do imperialismo – enfatizavam a “deterioração dos
termos de troca”. Ou seja, o fato de que as mercadorias
exportadas pelas economias periféricas, basicamente
matérias-primas e gêneros agrícolas (pelo menos no
passado; hoje essas economias exportam também bens
industriais em grandes quantidades), tenderem com o
tempo a ter uma oscilação de preços que nunca consegue
acompanhar a subida dos preços dos bens manufaturados
e da tecnologia avançada, que são exportados pelos
países centrais. Essa explicação cepalina, repetida
incessantemente por grande parte da “esquerda” dos
anos 1950 até a pelo menos a década de 1990, ignora
que o maior exportador mundial de produtos agrícolas,
desde pelo menos os anos 1930, são os Estados Unidos; e
que alguns países vistos indiscutivelmente como
desenvolvidos, como a Austrália ou a Nova Zelândia,
exportam principalmente matérias primas, isto é,
minérios e produtos agropecuários.
Mas não é essa a explicação de Emmanuel. A
verdadeira questão, argumenta, não é tanto a natureza
dos produtos (se industrializados ou não) e sim as
condições em que são produzidos: se com mais trabalho
vivo (isto é, com salários mais baixos, mais mão-de-obra
e menos maquinaria) ou se com mais trabalho morto
(máquinas, tecnologia) e, consequentemente, salários
mais altos e mão-de-obra qualificada. Como na
perspectiva marxista só o trabalho vivo gera valor – e,
portanto, mais-valia, base dos lucros –, o país que trocar
mercadorias produzidas com muito trabalho vivo com
outras nas quais não haja tanto trabalho incorporado
levará desvantagem. Assim, se a Argentina e os Estados
Unidos venderem trigo no mercado internacional pelo
mesmo preço, os norte-americanos estarão num certo
sentido recebendo parte do valor corporificado no trigo
argentino. Isso porque o uso de máquinas (logo, de
trabalho morto) é maior nos Estados Unidos, ao passo que
na Argantina há maior exploração da força de trabalho e
incorporação de trabalho vivo. E suma, o pressuposto
dessa explicação é que só o trabalho vivo gera valor ou
mais valia.
A principal base de apoio dessa teoria do
intercâmbio desigual está no fato de que as fronteiras
nacionais são relativas para o capital – ele migra de
acordo com suas conveniências, transfere tecnologia,
transplanta indústrias e troca intensamente mercadorias
a nível internacional –, ao passo que elas seriam
absolutas para a força de trabalho. Os deslocamentos e
até a solidariedade internacional de trabalhadores são
rigidamente controlados e dificultados, as diferenças
salariais (e de níveis de consumo) são gritantes de um
país para o outro, principalmente das economias mais
periféricas em relação aos países desenvolvidos. Assim,
nas palavras desse autor: "O intercâmbio desigual é
imputável a uma relação entre países subdesenvolvidos e
países desenvolvidos qualquer que seja o produto que
uns e outros comercializem(...) O intercâmbio desigual
reflete as relações entre os homens – e de maneira
alguma as relações entre coisas – e, neste caso, as
relações do homem subdesenvolvido com o homem
desenvolvido. (...) Do ponto de vista dos salários, as
fronteiras constituem umbrais de descontinuidade
absoluta. Vemos coexistir no mundo salário de três
dólares por hora nos Estados Unidos com salários de vinte
e cinco centavos por dia na África; em outras palavras,
salários que diferem entre si, trinta, quarenta ou até
cinqüenta vezes.”41
A teoria do intercâmbio desigual ajuda de fato a
esclarecer algumas transformações impensáveis para a
explicação cepalina tradicional, centrada na oposição
entre bens manufaturados versus produtos primários. Por
exemplo: a intensa industrialização de alguns países da
periferia – tais como a Coréia do Sul, Taiwan, Brasil,
México, África do Sul e mais recentemente China e Índia,
além de outros –, que nas últimas décadas tornaram-se
importantes exportadores de bens industrializados desde
micro-computadores a automóveis e aviões, de
smartfones a iates, de suco de laranja a produtos têxtis.
Mas nem por isso esses países teriam superado – a não
ser, Cingapura e Coreia do Sul e, em breve, a China – o
subdesenvolvimento. Eles ainda possuem seus Índices de
Desenvolvimento Humano (IDH) classificados como
médios ou às vezes altos, mas não extremamente altos
como nos países desenvolvidos.
Por outro lado, essa teoria do intercâmbio desigual
procura explicar as enormes exportações de trigo e outros
produtos de origem agrária por parte dos Estados Unidos,
ou da Austrália e da Nova Zelândia, sem que com isso
esses países estejam sofrendo com uma relação
comercial desfavorável – não no sentido de déficits,
comuns na balança comercial estadunidense, e sim de
exploração ou espoliação tal como na explicação
cepalina.
Mas essa teoria dá conta apenas de um pequeno
aspecto da realidade normalmente abrangida pela
categoria imperialismo. A maior parte dessas relações e
desses processos – econômicos e político-militares – fica
por ser explicada, ou seja, é ignorada nessa teoria do
intercâmbio desigual. E também essa dogmática de que
só o trabalho humano vivo gerar valor (ou mais-valia) é
algo extremamente questionável, principalmente nesta
época em que existe um enorme avanço da robotização e
e da inteligência artificial e nem por isso as taxas de lucro
estão diminuindo. Alguns poucos autores, como Robert
Kurz42, vão nessa direção, afirmando que existiria uma
visível tendência para a queda das taxas de lucros devido
ao aumento na “composição orgânica do capital”, isto é,
maior quantidade de trabalho morto – máquinas,
softwares – e menos trabalho vivo. Mas não há nenhuma
evidência factual a respeito dessa pretensa queda nas
taxas de lucro e, no fundo, esse tipo de afirmativa
somente reproduz uma retórica marxista do século XIX e
denega com veemência quase que todos os dados
estatísticos que mostram expansão nos lucros. É mais
uma doutrina baseada na fé, na crença de verdade nas
proposições de Marx, do que uma teoria científica
baseada em comprovações empíricas.
Por sinal, uma forte tendência atual é a expansão da
robótica e de máquinas ou artefatos “inteligentes” (que
podem reproduzir em vários aspectos a inteligência
humana e assim substituir uma ampla gama de
funcionários humanos, de entregadores a carteiros, de
guardas de trânsito a operadores de telemarketing, de
advogados a juízes e médicos, de motoristas de táxis ou
de aplicativos a contadores, etc.) e nem por isso as taxas
de lucro estão diminuíndo ou em vias de diminuir. Pelo
contrário, estão aumentando. Essa crença que só o
trabalho humano vivo gera valor, que Marx extraiu de
David Ricardo, é questionada desde que foi enunciada,
pois a natureza também realiza trabalho e gera valor,
assim como as máquinas e demais artefatos que
substituem ou intensificam o trabalho humano43.
Ademais, as implicações políticas que Emmanuel
deduz dessa teoria do intercâmbio desigual são
radicalmente terceiro-mundistas. Elas representam, na
realidade, uma exacerbação da ideia leninista de
"aristocracia operária" nos países desenvolvidos, e
divergem frontalmente da palavra de ordem marxista
"Proletariado de todo mundo, uni-vos". Para Emmanuel "o
proletariado dos países privilegiados participa na
exploração do Terceiro Mundo", não sendo assim
objetivamente possível uma solidariedade internacional
dos trabalhadores.44
Por trás dessa conclusão política, está a tese de que
o capitalismo por si mesmo é incapaz de melhorar os
padrões de vida dos trabalhadores, que isso só ocorreu
nos países centrais devido aos benefícios recebidos por
causa da superexploração da força de trabalho da
periferia. As "tendências social-democratas" que
Emmanuel vê na classe operária norte-americana e da
Europa Ocidental, a “integração no sistema”, somente
teria sido possível pela "exploração internacional”.45 A
"revolução socialista mundial" (na qual Emmanuel
acredita), portanto, teria necessariamente que começar
na periferia, sofrendo ademais os obstáculos do
conservadorismo dos trabalhadores do centro.
Apesar da relativa originalidade dessa construção
teórica, ela é unilateral e insuficiente para
compreendermos as desigualdades internacionais. O
grande problema dessa teoria, a nosso ver, é um
reducionismo economicista que generaliza capítulos
enormes da história em uma fórmula simplista e
desconhece a importância do político nos imperativos
econômicos. É como se existisse uma "lógica do capital"
independente dos homens e de suas práticas – e e
contradições. Como se a atividade política – a
democracia, por exemplo – fosse apenas uma
superestrutura (ou até um "reflexo") da atividade
produtiva, sem sobre ela agir e provocar
redirecionamentos. Ignora-se assim quase dois séculos de
lutas populares, principalmente operárias e mais tarde
outras, nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, por
direitos democráticos – direitos civis, políticos e sociais, e
direitos de nova geração como os ambientais. Direitos
que, além de terem produzido e garantido esse padrão de
vida alto quando comparado com a força de trabalho da
periferia, foram conquistas selvagens, isto é, "de baixo
para cima", conseguidas com muito suor, lágrimas e
mortes.
Nada disso foi doado pela burguesia ou pela "lógica
do capital", que, ao inverso, quando pode bem que tenta
reduzir essas conquistas: basta ver a política anti-social
dos Estados Unidos e do Reino Unido a partir dos
governos Reagan e Margareth Tatcher. Essas diferenças,
nos níveis de remuneração e de consumo, dos países
ricos em relação aos países subdesenvolvidos, não estão
ligadas indissociavelmente ao intercâmbio desigual, mas
sim a vários outros fatores, em geral políticos e internos a
cada Estado nacional. A tradição de combatividade, os
níveis de organização e as conquistas já conseguidas
desde o século XIX (e que prosseguem, com altos e
baixos, em outro patamar, hoje), pelos trabalhadores em
geral nos países centrais. Também, ou principalmente
desde as últimas décadas do século XX, pelas mulheres,
pelos ecologistas, pelos trans e homossexuais, por etnias
subjugadas, e pelos consumidores.
E predomina o contrário (mas não ausência total)
disso tudo na periferia, embora com sensíveis diferenças
conforme o país. Ou seja, uma enorme fraqueza ou
carência de conquistas permanentes devido a inúmeros
fatores. Primeiro, o excessivo exército de reserva dos
trabalhadores, algo que facilita o pagamento de
baixíssimos salários e dificulta a união dessa força de
trabalho. Segundo, a forte tradição autoritária e de
repressão aos movimentos contestatórios. Existem
também os valores culturais, em geral patriarcais e
machistas, que dificultam sobremaneira as reivindicações
trabalhistas, ambientalistas, feministas ou das
orientações sexuais diferentes da heterossexualidade,
etc.
Se o intercâmbio desigual fosse o elemento
fundante das desigualdades internacionais e do
relativamente elevado padrão de vida dos trabalhadores
nos países centrais, então como explicar que esse nível
de vida dos Estados Unidos, quando comparado com o da
América Latina, por exemplo, já fosse bem superior em
meados do século XIX46, ocasião em que esse país
voltava-se mais para si próprio e não praticava quase que
nenhum comércio, tampouco exportação de capital, com
a periferia?
São as especificidades históricas de cada
sociedade – e história entendida como lutas sociais, que
desde o século XIX vêm ocorrendo primordialmente nos
limites do Estado dito nacional, embora tenha
repercussões mundiais – que explicam essas diferenças
salariais internacionais. Daí que até entre os países
centrais surgem grandes desníveis: basta lembrar de
Portugal e Grécia de um lado, e Noruega e Suíça de outro.
Entretanto, pode-se concluir que a solidariedade
internacional é possível e necessária para as diversas
classes populares. É mesmo condição sine qua non para a
população em geral dos países desenvolvidos conseguir
manter as suas conquistas e impedir que a mobilidade do
capital – as transferências de empresas para as periferias
em busca de inúmeras vantagens: menores impostos,
menor proteção ao meio ambiente e aos consumidores,
mão-de-obra barata, mais controlada e disciplinada, etc. –
gere desemprego e desunião no seu seio.
Não se pode esquecer que a busca dessa
solidariedade já começou, mesmo embrionariamente, e
parte exatamente da pretensa "aristocracia operária" dos
países centrais. As ajudas financeiras de sindicatos
alemães e suecos por ocasião de greves no ABC, em São
Paulo, constituem um exemplo disso. Outros exemplos
são as ajudas de sindicatos do Primeiro Mundo para o
movimento dos sem-terra no México e no Brasil. Ou a
atuação das ONG’s que lutam pelos direitos humanos,
contra o trabalho infantil e o trabalho (semi)escravo,
contra a degradação ambiental, que em sua quase
totalidade possuem as suas origens – e o seu alicerce
financeiro – nos países centrais.
Isso tudo desmente a ideia de que é
principalmente na periferia que as mudanças
revolucionárias acontecem. Esse mito da "revolução"
(social) ter um lugar predeterminado – os países ou
sociedades periféricas, ou subdesenvolvidas – é
absolutamente falso e inclusive pernicioso. Ademais, a
própria história sempre se encarregou de desacreditar
teorias que pretensamente davam conta do futuro. A
história como luta sociais no sentido amplo do termo, o
que inclui as lutas feministas, étnicas, ambientais, por
moradias, por educação e outras, não é a efetivação de
uma lógica econômica transcendente e sim uma abertura
para o indeterminado, para se pensar (e produzir) o novo,
o não previsto, o que romperá (e redefinirá) as
determinações preexistentes. E não há nem pode haver
lugar ou momento prefixados para isso: na práxis
também desempenham seu papel a criatividade e a
inovação. O acaso e até o inesperado (frente à lógica
predominante) sempre desempenharam um importante
papel nas mudanças históricas.
 

Império, de Negri e Hardt


Vejamos agora uma última interpretação que, a
nosso ver, tem como escopo último (e talvez não
completamente consciente para os autores) a
preocupação em reatualizar a teoria leninista do
imperialismo frente à globalização e à nova ordem
mundial. É a obra Império, de Antonio Negri e Michael
Hardt, na qual, apesar de existirem algumas referências à
obsolescência do imperialismo, visto como uma etapa do
capitalismo que foi superada pelas novas condições
históricas – principalmente, segundo os autores, a um
declínio do Estado-nação com os seus limites territoriais
–, na realidade faz amplo uso das categorias e noções de
Lênin. Representações leninistas sobre o capitalismo
mundial e as perspectivas de uma revolução socialista,
porém, misturadas com algumas ideias pinçadas em
Kautsky e Rosa Luxemburgo, em Guattari e Deleuze, e até
mesmo em Nietzsche e Foucault.
É uma obra que pode ser vista, sob o ponto de
vista de projeto político, como uma espécie de
“manifesto” lançado com a intenção de servir de guia
para todos os descontentes (incluídos ou excluídos) com a
globalização – as “multidões”, como eles denominam
(camponeses tanto de países desenvolvidos quanto dos
subdesenvolvidos, técnicos, professores e intelectuais “de
esquerda”, funcionários, militantes ou associados de
ONG’s). E do ponto de vista formal ou de estilo, é antes
de tudo uma obra artístico-literária, pois ela enfatiza
muito mais a estética (a beleza ou a harmonia do texto,
as citações de clássicos da filosofia e da literatura) do que
a análise da realidade.
Partindo de uma interpretação teleológica do
conceito de império – entendido em consonância com os
escritos de Políbio (para o império romano) e dos
“fundadores” do sistema político norte-americano
(Jefferson, Hamilton e outros) –, os autores vêem a sua
“realização completa”, num sentido hegeliano, no final do
século XX e inícios do XXI. É como se já existisse, desde
no mínimo a revolução americana (ou a luta pela
independência), uma tendência ou um movimento no
sentido da constituição de um “império mundial”, com os
Estados Unidos no topo da pirâmide. (A noção de poder
dos autores, apesar de uma série de citações
disparatadas de Foucault e de Guattari e Deleuze, é a
forma piramidal e não a de redes). E também o final do
império, para os autores, já está inscrito na sua própria
lógica, pois ele criaria “multidões” (a serem lideradas
pelos “militantes”) que inexoravelmente irão construir um
“novo modo de produção”. Nas palavras dos autores: “O
modo de produção do povo reapropria-se da riqueza do
capital e também constrói uma nova riqueza, articulada
com os poderes da ciência e do conhecimento social pela
cooperação. A cooperação invalida o título de
propriedade. Propriedade privada dos meios de produção
hoje, na era da hegemonia do trabalho cooperativo e
imaterial, é apenas uma obsolescência pútrida e tirânica.
(...) A organização da multidão como sujeito político,
como posse, começa portanto a aparecer na cena
mundial.”47.
Os autores conseguem enxergar em Lênin um
profeta que teria antevisto a constituição do império:
“Lênin, mais do que qualquer outro marxista, pôde
antever a transição para uma nova fase do capital além
do imperialismo e identificar o lugar (ou, melhor dizendo,
o não-lugar) da soberania imperial emergente. (...)
Finalmente Lênin reconheceu que, apesar de o
imperialimo e da fase do monopólio serem, de fato,
expressões da expansão global do capital, as práticas
imperialistas (...) tinham se tornado obstáculos ao
desenvolvimento do capital. É verdade que o seu ponto
de vista revolucionário revelou o nódulo fundamental do
desenvolvimento capitalista – ou melhor, o nó górdio que
precisava ser desfeito. A análise de Lênin da crise do
imperialismo teve o mesmo poder e necessidade da
análise de Maquiavel da crise da ordem medieval: a
reação tinha que ser revolucionária. Esta é a alternativa
implícita na obra de Lênin: ou revolução comunista
mundial ou Império, e há uma profunda analogia entre
essas duas opções.”48
Essa interpretação, a nosso ver, é antes de tudo
uma expressão da crise da “velha esquerda”, aquela que
raciocina em termos de totalidade e de uma única saída –
e um único sujeito revolucionário (mesmo que
multifacetado, mas sempre orquestrado em todas as suas
partes e com objetivos em comum) – para o sistema
capitalista mundial. Ignora-se a pluralidade societária e
cultural que prevalece no espaço mundial, os caminhos
diversificados que existem ou podem ser criados, e tenta-
se construir um “inimigo” único a ser combatido pelas
inúmeras e muitas vezes contraditórias formas de
protesto anti-globalização. Entre estes existem
proprietários rurais e camponeses do Primeiro Mundo, que
almejam um maior protecionismo nacional. Como também
proprietários rurais no Terceiro mundo, que advogam a
queda das barreiras para as suas exportações. Há ainda
os sindicalistas dos diversos países, que possuem
interesses diversos: alguns querem um maior fechamento
das fronteiras com a proteção da mão-de-obra nacional,
sendo que outros defendem uma livre circulação
internacional da força de trabalho. Ou os grupelhos “de
esquerda” que ainda acreditam em alguma forma de
“revolução socialista” – com eles assumindo o poder,
evidentemente. Tem ainda fundamentalistas religiosos
que combatem a globalização porque odeiam
determinados valores que ela propaga – como igualdade
entre gêneros e outros direitos democráticos. Ou ainda
militantes de ONG’s que possuem propostas
extremamente diversificadas e inclusive contraditórias.
Por sinal, a leitura que os autores fazem das
ONG’s é inegavelmente idealista e até mesmo hilária:
“As forças mais novas e talvez mais importantes da
sociedade civil global chamam-se organizações não
governamentais (ONG’s). O termo ONG não recebeu uma
definição rigorosa, mas podemos defini-lo como qualquer
organização que pretenda representar o Povo e trabalhar
em seu interesse, à parte das estruturas de estado (e
geralmente contra elas).”49.
Desconhece-se assim toda uma história do
“terceiro setor”, do qual as ONGs fazem parte, que via de
regra não é “contra o Estado” e sim o complementa (ou
até o redefine) em vários aspectos. E também a extrema
pluralidade das ONG’s, que nem sempre atendem aos
interesses populares. Em alguns casos elas recebem
financiamentos de empresas multinacionais – e com
frequência agem como uma espécie de “braço político”
destas. Em outros casos são financiadas ou até fundadas
por governos ditadoriais e defendem seus interesses.
Agumas até, a pretexto de proteger o meio ambiente
original, elas são contra a presença de camponeses, de
populações ribeirinhas e até de indígenas em
determinadas áreas florestais. Outras chegam a defender
os interesses de firmas petrolíferas ou que usam carvão
mineral, das quais recebem financiamentos,
argumentando que as fontes de energia renováveis
seriam mais prejudiciais aos consumidores. Essas
“multidões” antiglobalização, a que Negri e Hardt se
referem, dessa forma, são diversificadas e possuem
interesses e propostas divergentes. Não constituem,
portanto, um sujeito histórico que vai revolucionar o
capitalismo ou o pretenso “império mundial”.
 
Cap. 3 – A GEOPOLITICA GLOBAL
 

3.1 - A ordenação geopolítica após a Segunda


Guerra Mundial
Com a crise econômica de 1929-33 e a sua
superação e, especialmente, com a Segunda Guerra
Mundial (1939-45) e os seus resultados, uma nova
racionalidade parece ter se imposto na estruturação
(contraditória) do capitalismo mundial. Essa nova
racionalidade tornou-se mais evidente – e vitoriosa em
praticamente todo o espaço mundial – após a derrocada
do mundo socialista entre 1989-91. E com a revolução
técnico-científica iniciada em meados dos anos 1970,
juntamente com a globalização, que pode ser vista,
embora não se limite a isso, como um novo patamar da
internacionalização do capital.
Os conflitos e guerras interimperialistas cessaram e
as crises militares desde 1945 ocorrem ou ocorreram
somente em áreas periféricas, inclusive no Leste
europeu. Mas não mais entre as grandes potências
capitalistas, como era a regra geral até a Segunda
Grande Guerra. Os tratados militares – principalmente a
OTAN – parecem ter unido os países centrais, que hoje
agem de forma mais ou menos coordenada frente às
ameaças ao sistema global. Ocorreu também a
desagregação dos impérios coloniais europeus (britânico,
italiano, alemão, francês, belga) com a chamada
descolonização, especialmente de áreas/povos asiáticos
e africanos, que se deu com mais vigor entre 1945 a
1960. A partir daí – e também da notável
internacionalização do capital produtivo, sob a forma de
empresas multi ou transnacionais, em especial de 1950
em diante – predomina uma forma de supremacia
internacional indireta, bem mais sutil, centrada nos
fluxos comerciais e tecnológicos e não mais
implementada pela força ou pela dominação colonial.
São os empréstimos externos com taxas de juros
elevados para certos países (e bem mais baixos para
outros), o intercâmbio desigual, a remessa de lucros das
empresas coligadas, os volumosos fluxos de capitais
(especulativos ou não) entre as diversas partes do
mundo. É também o chamado softpower ou poder
cultural de influenciar os demais países com seus meios
de comunicações, universidades e centros de pesquisas,
filmes e séries de televisão, sites e blogs na internet,
maior presença nas redes sociais internacionais, etc.
Já em 1878, o velho Engels assinalava algumas
considerações essenciais para se entender tanto o
surgimento das modernas sociedades anônimas (onde o
que mais interessa é a gestão da empresa, nas mãos da
diretoria, e não tanto a propriedade, que às vezes pode
estar espalhada por centenas de milhares de acionistas),
quanto principalmente a crescente estatização dos meios
de produção capitalistas: “A transformação das grandes
empresas de produção e circulação em sociedades por
ações e propriedades do Estado mostra a possibilidade de
se prescindir da burguesia, pois empregados assalariados
cumprem atualmente todas as funções sociais do
capitalista(...) Mas nem a transformação em sociedades
por ações e nem a transformação em propriedade estatal
priva as forças produtivas de sua qualidade de capital. O
Estado moderno, qualquer que seja a sua forma, é uma
máquina essencialmente capitalista; ele é o capitalista
coletivo ideal. Quanto mais ele se apropria das forças
produtivas, tanto mais se converte no verdadeiro
capitalista coletivo, mais trabalhadores explora.”50
Tais mudanças, apontadas no final do século XIX
por Engels, foram ainda exacerbadas com o transcorrer
do tempo. A hipertrofia das funções e das empresas
estatais no capitalismo, em especial após a “revolução
keynesiana” dos anos 1930, foi enorme: a proporção das
despesas estatais frente ao total do PNB dos Estados
Unidos, por exemplo, passou de 7,1 % em 1913 para
24,6% em 1950 e 33,2% em 1970; e na Alemanha, essa
proporção era de 15,7% em 1913 e subiu para 37,5% em
1950 e 42,5% em 197051. Sem dúvida que houve um
pequeno recuo dessa expansão estatal, pelo menos
durante algum tempo e em alguns países, com a chamada
“revolução neoliberal”. Porém, isso não invalida o processo
de um crescente poderio estatal, hoje muitíssimo maior do
que no século XIX ou que na primeira metade do século XX.
Esses pequenos e provisórios recuos em alguns países,
mesmo que durem décadas, são como as voltas de um
parafuso: no final das contas o sentido é um só, de
aprofundamento da estatização nas economias nacionais.
Esse fato remete às peculiaridades novas da(s)
classe(s) dominante(s) sob estas condições: mais
importante que a propriedade jurídica dos meios de
produção tornou-se a posse e o usufruto não apenas deles
mas também – ou principalmente, em inúmeros casos –
do Estado. Daí a forte presença atual, entre os tomadores
de decisões e entre o estrato mais rico da sociedade (os
1% ou mesmo os 0,1% da população que possui maiores
rendas e/ou propriedades) dos gestores, dos
administradores, dos tecnocratas e burocratas, como
também a associação, às vezes ilegal (via corrupção) de
funcionários públicos do alto escalão com empresas
privadas. Não é por acaso que o sonho de alguns dos
principais dirigentes das grandes empresas particulares é
tornarem-se políticos – governadores, ministros, diretores
ou assessores de importantes empresas ou repartições
públicas, prefeitos de cidades importantes,
eventualmente presidentes ou primeiros-ministros. Entre
estes últimos temos os exemplos de Donald Trump, nos
Estados Unidos, Silvio Berlusconi, na Itália, Piñera
Sebastián, no Chile, Thaksin Shinawatra, na Tailândia,
Petro Poroshenko, na Ucrânia, e vários outros. Nos dias de
hoje, ao contrário do passado – quando em muitos casos
os governos nacionais, inclusive dos Estados mais
poderosos, dependiam dos recursos emprestados por
grandes empresas – uma simples decisão política, em
especial do governo norte-americano, e cada vez mais
também da China e também, em menor grau, das
autoridades europeias, pode de uma hora para outra
inviabilizar totalmente as atividades de algumas das
maiores empresas do mundo.
É lógico que com essas mudanças o capitalismo não
acabou, mas apenas, como já havia previsto Engels, teve
o seu comando tranferido dos capitalistas – da burguesia
– para o Estado. Indissociavelmente ligada a esta nova
classe dominante (ou facção de classe, como queiram),
surge a questão das diferenças profundas entre
ordenados e salários: enquanto estes últimos provêm do
trabalho dito produtivo, isto é, gerador de mais-valia,
portanto explorado na perspectiva marxista, aqueles
primeiros (e mais recentes, tanto que o próprio Engels
não conseguia discerni-los, pois tornaram-se bem mais
evidentes após 1945) são oriundos da redistribuição
dessa mais-valia (que não geram), da exploração do
trabalho alheio portanto. Mesmo se quisermos
negligenciar essa separação entre trabalho produtivo e
improdutivo, que de fato é problemática, há ainda uma
diferença essencial entre ordenados e salários: aqueles
primeiros são de cargos que podem se conceder
aumentos salariais (sempre iguais ou superiores à
inflação) e bônus, ou gratificações diversas, enquanto que
os últimos são rendimentos sujeitos a difíceis negociações
para seus eventuais reajustes, que não raramente são
inferiores às taxas de inflação ocorridas desde o último
aumento.
 

Militarização
Além da estatização, outra característica marcante
do capitalismo a partir da década de 1930 tem sido a
(acelerada) militarização. Como já assinalamos no
capítulo 1, o militarismo, a guerra e a violência sempre
desempenharam um papel importante no
desenvolvimento capitalístico, desde a acumulação
primitiva dos séculos XVI ao XVIII. Mas com a crise de
1929-33 e com a Segunda Guerra Mundial e a guerra fria
subsequente, a militarização se expandiu enormemente
com uma inovação tecnológica sem precedentes e com a
fabricação de um número cada vez maior de armamentos
de todos os tipos. Alguns dados estatísticos podem lançar
uma luz sobre esse assunto: entre 1901 a 1913, gastava-
se em média, no nível mundial, cerca de 4 bilhões de
dólares por ano com produtos bélicos. Somente no ano de
1986, no apogeu da guerra fria, os gastos mundiais com
armamentos chegaram na casa dos 900 bilhões de
dólares. As despesas militares norte-americanas, no
período da guerra fria, situavam-se normalmente em torno
de 5 a 6% do valor total do seu Produto Nacional Bruto
(PNB), algo que sofreu uma pequena queda nos anos
1990, subiu novamente e tornou a declinar na segunda
década do século XXI: a parte destinada a gastos militares
no orçamento de 2002, por exemplo, foi de 550 bilhões de
dólares, o que significa cerca de 6% do PNB estimado em
pouco mais de 9 trilhões de dólares; mas em 2019 esses
gastos atingiram a cifra de 740 bilhões de dólares, ou
3,4% do PIB. Também a Rússia e a China gastam
anualmente centenas de bilhões de dólares com
armamentos, mas a percentagem em reação às suas
produções totais (o PIB) é bem menor que no período da
guerra fria.
Contudo, os gastos militares aumentaram
enormemente neste século em países considerados
periféricos ou não plenamente desenvolvidos: Omã gasta
15% do PIB nesse setor, Arábia Saudita 8,9%, Israel 6,1%,
Rússia 4,6% e dezenas de outros (em especial da África,
Oriente Médio e Ásia central) despendem de 3 a 6% do PIB
com gastos militares52. Isso reforça a tese segundo a qual
as guerras mais catastróficas na atualidade não vão mais
ocorrer na Europa, como era regra geral nos últimos
séculos até 1945, e sim principalmente no lesta da Ásia
(envolvendo Índia, Paquistão, Coreia do Norte e
eventualmente China), no Oriente Médio e na África.
O chamado complexo industrial-militar – isto é, as
intrincadas relações e sobreposições entre o militarismo e
a grande indústria, juntamente com uma significativa
parcela da pesquisa tecnológica – parece que não acabou
com o final da guerra fria. Ele foi presevado e até
impulsionado pelas guerras dos anos 1990: Guerra do
Golfo, de 1991; guerras nos Bálcãs durante toda essa
década, em especial na Bósnia e no Kosovo; e pelos
ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 nos
Estados Unidos, que deram origem aos bombardeios sobre
o Afeganistão. Apesar de ter se originado com a Segunda
Guerra Mundial e se expandido com outros conflitos que
envolveram diretamente os Estados Unidos – a Guerra da
Coréia, a Guerra do Vietnã –, esse complexo industrial-
militar parece ter adquirido um ritmo próprio e intenso de
crescimento, independente inclusive da existência ou não
de guerras, conforme um autor que analisou a crise fiscal
do Estado norte-americano:
"Os maiores produtores militares privados criaram o
que parece ser uma torneira permanentemente ligada
ao orçamento federal. (...) A participação industrial
chega ao nível de 50% do orçamento do Pentágono e
a proporção dos pedidos militares recebidos pelos 50
maiores contratantes da área de defesa cresceu de
58% durante a Segunda Guerra, para 66% em 1963-
64. Não é preciso dizer que os empresários do ramo
de armamento e o Pentágono estão de tal forma inter-
relacionados que chegam a constituir, em muitos
aspectos, uma única entidade: o complexo industrial-
militar. Porém, o próprio Pentágono tornou-se
relativamente autônomo. Como todas as grandes
corporações, ele busca expandir-se e alcançar um
controle monopolista. Diversifica seus produtos que
agora incluem não só armas, teorias estratégicas e
conhecimentos militares. Também compreendem
doutrinação ideológica, pesquisas sociais, trabalho
social e técnicas ‘educativas e médicas
avançadas’.”53
E mais recentemente um importante economista
norte-americano comentou da seguinte maneira o
orçamento para o ano 2002 de seu governo:
“Resumindo, a estratégia do governo é evitar críticas ao
debacle fiscal embrulhando seu orçamento na bandeira
americana. E digo isso literalmente: o relatório sobre o
orçamento estava numa capa vermelha, branca e azul
que lembrava a bandeira dos Estados Unidos. Mas, por
que estou sendo tão cínico? A guerra contra o terror não
é um grande negócio? A resposta é que, emocional e
moralmente, sem dúvida é um grande negócio. Mas sob
o ponto de vista fiscal, é quase um erro completo. É
verdade que o governo está usando a ameaça terrorista
para justificar um enorme reforço militar. Mas há
algumas coisas engraçadas a respeito desse reforço.
Primeiro, se nós realmente temos de nos esforçar para
pagar todos esses armamentos, não deveríamos
reconsiderar os futuros cortes de impostos que foram
concebidos num período de abundância? E é
particularmente difícil levar a sério toda aquela história
pavorosa sobre a guerra quando o governo, ao mesmo
tempo, propõe um corte de impostos adicional de US$
600 bilhões. Segundo, o reforço militar parece ter pouco
a ver com a ameaça verdadeira, a menos que você
imagine que o próximo passo da Al-Qaeda seja um
ataque frontal com várias divisões de blindados
pesados. Nós, que não somos especialistas em assuntos
de defesa, ficamos indagando se um ataque feito por
maníacos com poucas armas justifica o gasto de US$ 15
bilhões em peças de artilharia de 70 toneladas ou no
desenvolvimento de três diferentes caças de última
geração (antes de 11 de setembro, mesmo fontes do
governo sugeriam que isso seria demais). Nenhum
político que esperasse ser reeleito ousaria dizer isso,
mas parece que o novo lema do governo é ‘não se
esqueçam de nenhum fornecedor da defesa’.”54
A permanência desse complexo industrial-militar
norte-americano e o seu desmesurado crescimento no
mundo pós-Segunda Guerra Mundial, são fatos que
podem ser entendidos sob duas etapas. Primeiro, no
contexto da guerra fria e do papel dos Estados Unidos
como o guardião do sistema capitalista internacional. E
segundo com o final da bipolaridade e da guerra fria e o
novo papel de xerife do mundo desempenhado nos anos
1990 e na primeira década deste século por esse país. E a
expansão do terroristo e de grupos guerrilheiros e/ou
terroristas, como o Estado islâmico com forte atuação no
Iraque e na Síria especialmente entre 2011 e 2017,
também forneceu pretexto para a continuidade desses
enormes gastos militares. Mas também existe o fato de
que o militarismo é um importante campo de acumulação
de capital, como demanda permanente e segura para
importantes ramos da indústria (e que cresce à medida
que o papel econômico do Estado se amplia).
As novas dimensões e características do
militarismo e da guerra implicaram numa reatualização
da geopolítica e da geoestratégia a nível planetário.
Houve uma geoestratégia do período da guerra fria, que
iremos resumir neste item, e uma outra diferente no
mundo pós-guerra fria, que iremos analisar no próximo
item. O desenvolvimento da aviação e da velocidade
ultra-rápida, dos foguetes teleguiados, o surgimento de
bombas nucleares e termonucleares, do computador e
dos satélites espaciais militares (que podem obter
imagens com detalhes na escala do metro quadrado em
qualquer parte da superfície terrestre), juntamente com
outros fatores, provocaram significativas mudanças na
estratégia e na tática militares, na logística e nas relações
de força e dominação entre as nações. A guerra, já a
partir da Primeira Guerra Mundial, passa a ter um
significado muito mais amplo do que no passado: a partir
de 1914, em qualquer conflito armado entre países,
morrem muito mais civis que soldados, ao contrário do
que ocorria até então; os valores de heroísmo, bravura ou
mesmo os caracteres tradicionais do "bom soldado" – que
era identificados com o gênero masculino – pouco a
pouco deixam de ser relevantes e o decisivo agora é a
tecnologia dos armamentos. O militar, dessa forma,
transforma-se de combatente em técnico e, nessa
passagem, há uma crescente incorporação de mulheres
nas forças armadas e o número de soldados diminui, pois,
tal como na indústria, o importante é a tecnologia, as
máquinas e os armamentos dito inteligentes, havendo a
necessidade de um número cada vez menor de pessoas –
só que cada vez mais qualificadas – para supervisionar e
manipular toda essa maquinaria que inclui tanto bens
tangíveis como serviços intangíveis (especialmente
softwares).
Qualquer guerra local tem ou pode ter uma
influência e um significado a nível planetário, porém, pela
primeira vez na história da humanidade, a partir da
invenção e do aprimoramento das armas atômicas – e
também das armas químicas e principalmente das
biológicas – a guerra (ou talvez até mesmo um radical e
articulado ataque terrorista) pode virtualmente chegar ao
extermínio total da humanidade, ou pelo menos á
desarticulação total desta forma de civilização que
conhecemos hoje. Daí alguns autores – talvez o mais
conhecido deles seja Paul Virílio –, terem afirmado, não
sem um certo exagero, que a guerra deixou de ser “a
política continuada por outros meios” (segundo a célebre
formulação de Clausewitz) para se tornar no inverso
disso: a política é que parece ser uma expressão dos
interesses e dos métodos militares-estratégicos. 55

De fato, a militarização e a tecnocratização do social


– que caminham juntas – conduzem ao enfraquecimento
da política como participação, como consultas, debates e
trocas de ideias. A velocidade da máquina de guerra, a
“necessidade do sigilo”, a vigilância e a primazia da
"segurança nacional" (isto é, do Estado) em detrimento
dos cidadãos, tudo isso liquida toda uma estrutura
política "normal" da democracia liberal, que tem por base
o diálogo, uma relativa transparência e o confronto de
projetos, o qual, algo importantíssimo, demanda um longo
tempo de maturação que acaba sendo atropelado pelas
rápidas decisões tomadas em nome da segurança
nacional. A guerra, assim, passou a ser um estado
permanente nas sociedades hodiernas e, longe de se
extinguir pelo avanço do conhecimento científico e da
industrialização – como apregoava Comte com a sua
doutrina positivista –, ela os incorporou e com eles se
associou e convive muito bem.
Essa tendência é auxiliada pela enorme importância
da mídia nas sociedades modernas, que molda (ou tenta
moldar, pois nunca consegue totalmente) a opinião
pública, transformando-a em expectadores. Esta sempre
está em busca do imediato, da notícia sensacionalista –
de preferência um bombardeio, um conflito com mortes,
um escândalo, um atentado, um roubo ou um sequestro –
que terá uma repercussão planetária imediata durante
algum tempo, sendo posteriormente substituída por outra
da mesma natureza. Mesmo sendo contrabalançada – às
vezes contrariada, às vezes até reforçada – pela expansão
da internet (onde qualquer pessoa pode virar jornalista e
divulgar notícias ou opiniões num site, blog ou twitter) e
das redes sociais, a mídia tradicional, em especial a
televisão, ainda continua a influenciar grande parte do
público, principalmente os menos alfabetizados. E mesmo
esses “novos meios de comunicações”, propiciados pelas
redes de computadores e/ou de telefones celulares,
também replicam notícias (muitas falsas ou inventadas)
de caráter sensacionalista que prejudicam a democracia
na medida em que influem nas eleições, destroem a
imagem de alguma pessoa ou de algum projeto ou ação,
constroem mitos (por exemplo, de políticos extremamente
autoritários cuja imagem inventada nessas redes é de
alguém incorruptível), etc. Mas sem dúvida que, assim
como a mídia tradicional também possui o seu papel
positivo – com reportagens e denúncias de corrupção, que
às vezes leva à cassação de políticos, ou de atos
violentos por parte de policiais, entre outros –, da mesma
forma os “novos meios de comunicações” podem
contribuir para mudanças democráticas como no caso da
“primavera árabe” na qual os contatos via celulares nos
países árabes fizeram um problema inicialmente da
Tunísia se expalhar por grande parte dos países da região
(Síria, Argélia, Egito, Líbia e outros).
A geopolítica e a geoestratégia tradicionais – isto
é, anteriores à Segunda Guerra Mundial – alicerçavam-se
na guerra convencional e, de forma especial, nos
esquemas clausewitianos. As guerras nada mais são, em
última instância, que sociedades ou nações em confronto
e não apenas exércitos em luta, assinalou Clausewitz56.
Napoleão foi derrotado na Rússia, argumentou esse
estrategista, não devido aos rigores do inverno, como
muitas vezes se apregoa, tampouco devido a menor
quantidade ou qualidade de suas forças militares em
relação às tropas russas, mas principalmente pela coesão
e pelas características (demográficas, ideológicas,
econômicas, territoriais) da nação russa na época. Seria
absolutamente impossível conquistar aquele país – mesmo
com o dobro de soldados ou com um inverno menos frio –
nas condições de "solidariedade inquebrantável" do povo
na luta e disposição de não aceitar a presença em seu
território do invasor.57
Sem dúvida que Clausewitz também demonstrou,
exaustivamente, o peso do território (as distâncias, o
relevo, os rios, as matas, as densidades e concentrações
demográficas, etc.) e dos aliados, na condução
operacional da guerra, além das "forças militares
propriamente ditas". Mas ele enfatizou que "a guerra é
apenas uma parte das relações políticas" e "ajuizar a
guerra de um ponto de vista puramente militar é
inadmissível e mesmo funesto.”58 Entendida como um
"ato de força destinado a submeter o inimigo à sua
vontade", a guerra para esse teórico é um momento
acirrado da competição entre Estados. Em grande parte
esses ensinamentos continuam válidos. A própria
“guerra” contra o Taliban e a El Qaeda, no Afeganistão em
2001, evidenciou que no fundo a verdadeira questão não
era a “natureza aguerrida” do povo e tampouco o relevo
montanhoso daquele país asiático – tal como apregoaram
alguns antes e durante os bombardeios, afirmando que “a
tecnologia moderna jamais conseguiria vencer aquelas
condições adversas”59 –, mas sim a determinação da
sociedade norte-americana, bem mais evoluída
tecnologicamente e com uma coesão e determinação de
vingança propiciadas pelos atentados terroristas de 11 de
setembro daquele ano em solo estadunidente. Dessa
mesma maneira, podemos afirmar que a guerra do Vietnã
foi perdida não nas selvas do sudeste asiático – o conflito
poderia se estender ainda por décadas, pois era
excelente do ponto de vista de campo de
experimentos/fabricações de novos armamentos, de
contratos do governo com empresas de fabricam armas
ou com companhias privadas de mercenários –, mas sim
devido aos fortes e crescentes movimentos de oposição
dentro dos Estados Unidos.
A população, ou melhor, a sociedade – tanto no
aspecto numérico como nos laços culturais-ideológicos de
solidariedade e coesão – e o territórío são elementos
essenciais na guerra pós-napoleônica, que Clausewitz
procurou explicar enquanto conflitos militares envolvendo
as "nações em armas". O pensamento geopolítico
clássico, aquele de Mackinder (principalmente), Kjellén,
Mahan, Haushofer, Spykman e outros, procurou
compreender o jogo de forças militares no plano
internacional à luz desses pressupostos. Num certo
sentido – enquanto visão geoestratégica – todos esses
geopolíticos foram discípulos de Clausewitz. Dessa forma,
os conceitos geopolíticos clássicos de heartland ou "terra-
coração"60, de "potência marítima" (os EUA) versus
“potência continental” (a Rússia), de lebensraum ou
"espaço vital" (de Haushofer), de Manifest Destiny ou
"destino manifesto"61, e tantos outros, sempre partiam
dessa percepção clausewitiana – que no fundo foi
alicerçada nos ensinamentos e na prática de Napoleão,
que por sua vez foi um leitor atento de Montesquieu –,
segundo a qual "A política dos Estados está na sua
geografia" [física e humana, convém esclarecer].
Em parte, mas apenas em parte, as geopolíticas
do mundo bipolar representaram visões de mundo e
práticas político-espaciais que encaram os Estados – e
somente eles – como sujeitos. Mas um novo elemento foi
incluído nessa leitura geopolítica: os sistemas econômicos
– e também os regimes políticos –, isto é, a luta do
capitalismo contra o socialismo ou da “democracia contra
o totalitarismo”. Quanto às “novas geopolíticas” do
mundo pós-guerra fria, elas são extremamente plurais e
em grande parte – embora existam exceções – já
superaram a leitura geoestratégica: elas enfatizam mais
as “guerras” econômicas, tecnológicas e até culturais e
relativizam (mas não omitem) as guerras militares62.
A realidade posterior à Segunda Guerra Mundial
mostrou cabalmente que o raciocínio de Clausewitz
estava correto: mais importante, para o desfecho da
guerra, do que as características territoriais ou o tamanho
da população – elementos que, até a “guerra estratégica”
ou napoleônica, eram os mais valorizados – é a coesão da
sociedade e a modernização tecnológica. Num grau
extremo, deixando-se de lado as guerras de guerrilhas e
os terrorismos, tão somente o tamanho da população já
não possui grande importância na guerra com a
tecnologia de ponta.
Em tese, os 1,3 bilhões de habitantes da China, ou os
1,2 bilhões de moradores da Índia, por exemplo, poderiam
em poucas semanas (ou até horas, se houvesse a
utilização de armas nucleares) serem reduzidos a pó ou
completamente humilhados e dizimados pelas forças
armadas dos Estados Unidos, apesar de existirem cerca
de 5 chineses (e 4,5 indianos) para cada norte-americano.
E a distância entre áreas longínquas, assim como o
obstáculo das montanhas, dos rios e até dos oceanos, já
não constitui mais um grande problema estratégico e
uma forma "natural" e eficaz de defesa. As tropas
napoleônicas, ao irem de Paris a Roma, levaram mais ou
menos o mesmo intervalo de tempo que as legiões de
Júlio César ao fazer esse percurso na ordem inversa, cerca
de mil anos antes. Aquilo que, de forma constante,
durante milênios era mais ou menos fixo, a velocidade
dos deslocamentos, passou a se acelerar com a
Revolução Industrial e o desenvolvimento tecnológico. O
que se contava em meses ou semanas hoje se conta em
horas ou até em minutos e segundos. Isso modifica
profundamente a percepção e a realidade do espaço para
a guerra. Do espaço como relevo-clima-rios-oceanos-
cidades-estradas-distâncias, etc., que a estratégia
clássica expressava, por sinal de forma correta para as
suas condições históricas, passamos então para o espaço-
velocidade, o espaço como unidade da eletrônica, o
espaço relativo, descontínuo e planetário (tendendo,
inclusive, a ser interplanetário devido ao uso do espaço
ao redor do planeta para vigilâncias e até para colocação
de lançadores de raios laser).
Até por volta de meados do século XX, a
geopolítica e a geoestratégia planetárias não levavam
muito em conta a aviação, a velocidade e o espaço
externo à superfície terrestre clássica (que se limitava à
troposfera). Eram teorias e doutrinas da guerra ocorrendo
essencialmente na terra e também nos mares. A partir da
Segunda Guerra Mundial e o desenvolvimento primeiro da
aviação, que já desempenhou um papel relevante nesse
grande conflito, e depois dos foguetes teleguiados e dos
satélites artificiais no espaço ao redor do planeta, isso
mudou radicalmente. As guerras atuais – desde mais ou
menos os anos 1970, pois inclusive aquela grande guerra
foi decidida principalmente em terra com o apoio da
marinha (para o transporte de tropas) – são
principalmente aéreas, o que significa não apenas aviões,
mas também mísseis, foguetes, satélites artificiais, etc.
A geopolítica dos "autores clássicos" – de Mackinder,
Mahan, Haushofer – era a de uma superfície terrestre
plana e centrada na Europa. Havia uma grande discussão
sobre a primazia da terra (posição de Mackinder) ou do
mar (posição de Mahan) no desenrolar das guerras
mundiais. Mas tanto o ar (e logicamente que também o
espaço exterior) como a velocidade eram elementos
negligenciados. A geopolítica pós-Segunda Guerra
Mundial, pelo contrário, partiu da esfericidade da Terra,
do planeta visto e mapeado a partir dos satélites
espaciais, de projeções cartográficas múltiplas e
centradas em diversas regiões do globo e não somente na
Europa Ocidental. Daí então uma nova percepção sobre
quais são as áreas consideradas globalmente como
"estratégicas": não mais essencialmente pontos
continentais fixos e em áreas populosas ou que possuem
abundantes recursos minerais, mas sim pontos "de
passagem", de intensos fluxos aéreos ou marítimos,
muitas vezes móveis e em locais por vezes não povoados:
a Antártida, as camadas atmosféricas acima da
troposfera, o estreito de Ormuz, a região ártica (que se
torna cada vez mais importante com o aquecimento
global que acarreta um derretimento da camada de gelo
que cobre o oceano e dificulta a nagegação), o extremo
sul da África, etc.63
 

Superpotências
As visões geopolíticas da ordem bipolar
enfatizavam sempre a existência de duas superpotências
militares, os Estados Unidos e a União Soviética. O
conceito de “grande potência mundial”, tão caro aos
autores clássicos, foi deixado de lado (embora ele tenha
sido recuperado no mundo pós-guerra fria) e no seu lugar
empregou-se esse conceito de superpotência com uma
base tecnológica-militar (armas atômicas no início, e
principalmente a capacidade de agir militarmente, sem
enfrentar grandes obstáculos, em toda a superfície
terrestre). A guerra fria, sem nenhuma dúvida, foi o
elemento mais importante da ordem bipolar ou da
geopolítica planetária do mundo de 1945 até 1991. Ela
implicou num jogo estratégico e numa relação complexa
entre as duas superpotências, na qual havia ao mesmo
tempo uma rivalidade e uma conivência, uma competição
com uma espécie de vínculo ou acordo tácito. Pode-se
comparar essa guerra fria a uma partida de xadrez:
existem dois adversários que obedecem às "regras do
jogo" (mesmo com trapaças ocasionais, mas com cautela
para evitar o confronto final ou total) e simultaneamente
tentam conquistar espaços – ou "tomar peças do outro
campo" – no tabuleiro, ou seja, na superfície terrestre.
Mas ambos os jogadores – as superpotências –
procuravam evitar que outros agentes participassem
ativamente do jogo. Eles almejavam o monopólio das
decisões planetárias, queriam ser os únicos agentes das
mudanças, o que significa que tentavam – mesmo que
nunca tivessem conseguido totalmente (pois, sempre
houve os que aproveitaram certas brechas na rivalidade
para encetar um caminho relativamente autônomo) –
evitar que as "peças", os demais países, tivessem uma
real autonomia. Enfim, sempre procuraram evitar um
terceiro caminho, uma terceira via diferente do
capitalismo americano e do socialismo soviético.
Os Estados Unidos e a União Soviética, nas
palavras de um estudioso, podiam ser considerados como
"inimigos, porém irmãos"64. “Se um deles não existisse, o
outro reinaria só”, afirmou esse autor. (E foi exatamente
isso que ocorreu, pelo menos durante algum tempo,
quando dos Estados Unidos foram denominados
“superpotência soliária”65, após a crise e a implosão da
URSS em 1991).
O conceito de superpotência implicava no fato de que
qualquer uma delas poderia agir militarmente com
eficácia em todo o mundo – o grande problema para cada
uma era a existência da outra. Viviam no chamado
"equilíbrio de terror", que impuseram a si próprias e a
todos os povos do planeta: a ameaça de uma guerra
termonuclear, um confronto global onde não haveria
vencedores nem vencidos, pois praticamente toda a
humanidade – ou pelo menos aquilo que denominamos
civilização – pereceria. Mas esse "equilíbrio de terror" e
essa rivalidade político-militar sempre possuiu uma
inegável funcionalidade para ambas superpotências na
medida em que foi uma maneira de controlar – ou tentar
controlar – todo o resto do mundo e também as suas
próprias populações internas.66
Existiu – ou ainda existe, na visão de alguns – o
que podemos denominar "ideologia da guerra fria", que
consistiu na interpretação das lutas e conflitos na escala
mundial como encerrando apenas duas vertentes ou
opções: o capitalismo ou o socialismo, o lado dos Estados
Unidos – tido por alguns como o campo da "liberdade" ou
da “democracia” e por outros como a vertente do
“capitalismo explorador” e da “sociedade carcomida” – ou
então o lado da ex-União Soviética, visto por alguns como
o totalitarismo ou “comunismo” e por outros como a
“sociedade igualitária". Essa ideologia possuiu uma
evidente eficácia: a de forçar os governos, os partidos
políticos e até as pessoas, a se definirem em termos de
apenas duas opções. Ou esquerda ou direita. Qualquer
outro caminho era visto com suspeitas, como equívoco ou
incompreensão da história, resultando daí um
maniqueísmo simplificador e um estreitamento no leque
de opções. Na área de influência norte-americana,
especialmente nas periferias, qualquer oposição era
normalmente rotulada de "comunista" ou "aliada a
Moscou", ao passo que na área de influência soviética as
oposições eram sempre reprimidas sob o argumento de
serem “anti-revolucionárias” ou defensoras do
capitalismo.
Essa ideologia da guerra fria permitiu tanto um
maior controle social interno – por exemplo, o
macarthismo nos Estados Unidos, ou a repressão sobre os
"dissidentes" na União Soviética – como também um
enquadramento das áreas ou países satelitizados. Foi em
nome da "defesa do mundo livre" que o governo norte-
americano invadiu o Vietnã (de 1962 a 74) e a Guatemala
(1954), além de ter auxiliado ou promovido vários golpes
militares com intensa repressão sobre movimentos
populares (Chile, El Salvador, Granada e outros). E foi em
nome da "defesa do socialismo" que as autoridades
soviéticas invadiram a Hungria (1956), a Tchecoslováquia
(1968) e o Afeganistão (de 1979 até 1989), além de
terem pressionado para que ocorressem golpes militares
antipopulares em casos como o da Polônia (1981) ou da
Etiópia (1977). É lógico que o controle social interno, da
própria população, sempre foi imensamente maior na
URSS do que nos EUA. Mas o controle das áreas
satelitizadas foi intenso e brutal para ambas as
superpotências.
O que mais importou, nas ações repressivas ou no
auxílio a alguma região, não foi tanto garantir a
“exploração” de alguma nação – tal como diriam os
adeptos da teoria do imperialismo – e sim evitar perder
uma parcela da área de influência, evitar a expansão da
área de influência da outra superpotência, ou ainda, em
certos casos, destruir no nascedouro a possibilidade de
uma "terceira” ou “quarta”via(s), de algum caminho
próprio e independente das duas superpotências. Outra
característica importante dessa geopolítica global das
superpotências da ordem bipolar, desse jogo complexo da
guerra fria, foi a necessidade em alguns casos – isso
devido à posição geoestratégica de certos países, que
podiam servir como "vitrine" ou como "gendarme", ou as
duas coisas ao mesmo tempo – em ajudar ou financiar
constantemente (sem perspectivas de retorno)
determinados Estados ou economias nacionais. Isso
ocorreu com a ex-União Soviética em relação a Cuba, por
exemplo, e com os Estados Unidos em relação a Israel, ao
Japão dos anos 50 e 60 ou à Coréia do Sul de 1954 até os
anos 1970.
A teoria tradicional do imperialismo, em especial na
versão leninista, é incapaz de compreender as imensas
inversões de capitais norte-americanas, que não visavam
lucros, em situações como o Japão pós-guerra, a Coréia
do Sul de 1954 até os anos 1970, Berlim Ocidental e
Israel principalmente a partir de 1967, quando este
recém-criado país do Oriente Médio abandonou
definitivamente o sonho “socialista” (que havia inspirado
os kibutzim) de alguns e se alinhou pragmaticamente ao
campo norte-americano. Os imperativos nesses casos
nunca foram essencialmente econômicos e sim
geopolíticos: Israel era (hoje já nem tanto) uma espécie
de "gendarme" ocidental no Oriente Médio rico em
petróleo, mas instável politicamente. Sob outros
aspectos, Israel é também uma "vitrine" do
desenvolvimento ocidental e capitalista em áreas antes
pobres e desérticas; além disso, não se pode negligenciar
o poderio do lobby israelense nos EUA. Em Berlim
Ocidental (que sempre recebeu muito mais do governo
alemão do que este nela arrecadava) as grandes somas
gastas pelos Estados Unidos, nos anos pós-1945,
destinavam-se a criar o contraste com a parte oriental e
socialista – algo mais ou menos semelhante ao que
ocorreu em relação à Coréia do Sul frente ao seu vizinho
ao norte. Com o Japão (e também, em parte, com a Coréia
do Sul), os objetivos eram criar uma área próspera para
contrabalançar o possível "avanço comunista" no leste da
Ásia.
Também a União Soviética, embora em menor
proporção devido à sua menor e menos eficiente
economia, praticou ações semelhantes. O principal
exemplo foi Cuba, uma espécie de "vitrine do modelo
socialista” na América Latina – região na qual
predominanavam nações pobres e dependentes dos
Estados Unidos. Os soviéticos gastavam com Cuba, até
1991, no mínimo 10 milhões de dólares por dia, pois
compravam açúcar a preços quatro ou cinco vezes
maiores que os vigentes no mercado mundial, vendiam
petróleo a preços bem abaixo dos do mercado
internacional (tanto que Cuba exportava petróleo até o
final dos anos 1980), distribuíam a cada ano dezenas de
milhões de livros didáticos gratuitos e impressos em
Moscou (com conteúdos, especialmente nas disciplinas
história e geografia, sempre rigidamente controlados), etc.
Cabe lembrar que Cuba também desempenhou o papel de
“gendarme” para a URSS, com o envio de tropas para
apoior um dos lados em determinados conflitos que os
soviéticos não podiam intervir diretamente devido às
regras (implícitas) do jogo das superpotências: em Angola
, Etiópia, Guatemala, Congo-Léopoldville e Nicarágua.
Ser uma superpotência na época da guerra fria, em
suma, significou também determinados sacrifícios – isto é,
gastos sem retorno, gastos improdutivos do ponto de vista
da economia nacional. Foi uma realidade muito mais rica e
complexa do que aquela retratada – como centro e
periferia, ou nações imperialistas versus países explorados
– na teoria leninista do imperialismo. Por sinal essa foi
uma das razões das menores taxas médias de crescimento
econômico dos Estados Unidos, em relação ao Japão e à
maioria dos países da Europa Ocidental, como também em
relação a vários países ditos periféricos, na época da
guerra fria, e também foi uma das causas (mas de forma
alguma a principal) da derrocada da economia soviética.
A imensa maioria das guerras e conflitos armados
que ocorreu de 1945 até 1991 na superfície terrestre,
especialmente nos países subdesenvolvidos, foi ou se
tornou, em grande parte, confrontos indiretos entre as
superpotências. Não que eles tenham se originado dessa
forma e sim que foram instrumentalizados como tal.
Mesmo que se tratasse de um conflito tribal ou étnico –
algo muito frequente na África, por exemplo –, e/ou um
conflito territorial, logo uma superpotência se colocava a
favor de um dos lados e a outra passava a apoiar os
adversários deste. Em contrapartida, o lado apoiado pelos
soviéticos começava a usar o discurso de “luta contra o
capitalismo” ou “contra o imperialismo”; e o outro lado
passava a falar numa luta “contra o comunismo”. Isso
fazia com que a origem do conflito fosse minimizada e a
impresa (e também os próprios protagonistas, sempre
ávidos pela ajuda militar e financeira, ou pela assessoria,
de uma das superpotências) passava a escrever sobre
mais uma “disputa entre o capitalismo e o socialismo”.
Por um lado, isso colocou a humanidade à beira de
um confronto direto entre as superpotências, à beira do
chamado apocalipse – algo que era acirrado ainda mais
pela corrida armamentista, o que levou alguns autores a
verem uma certa lógica suicida ou exterminista nesse
jogo geoestratégico da guerra fria.67 Por outro lado,
produziu um mundo aparentemente mais simples, mais
fácil de entender, bem diferente deste mundo pós-guerra
fria no qual não há uma lógica única ou mesmo
predominante para os conflitos. Estes hoje são plurais e
diversificados: ora são étnicos-culturais, ora econômicos,
ora territoriais, ora religiosos, etc. O final da guerra fria,
entre outras coisas, significou também uma redescoberta
da complexidade do mundo.
 

3.2 - A Nova Ordem Mundial


Nova ordem ou desordem? Conflitos entre
“blocos” e/ou potências econômicas ou choques
civilizacionais? Monopolaridade ou multipolaridade? Um
único império mundial liderado pelos Estados Unidos? A
universalização da democracia ou um predomínio de
“zonas cinzentas” das máfias, do narcotráfico e das redes
terroristas?
O mundo pós-guerra fria suscita polêmicas e
interpretações antagônicas. Não há mais um consenso tal
como o que existia na época da bipolaridade, na qual se
aceitava que o principal conflito mundial era ideológico
(capitalismo versus socialismo) e também uma opção
entre dois tipos de economia (planificada ou de mercado).
Hoje há um amplo predomínio, ao menos aparente, da
economia de mercado, porém, ao mesmo tempo existem
múltiplas e díspares tensões e contradições no espaço
mundial. Não há mais uma hierarquia dos conflitos e
muito menos um que seja hegemônico, tal como era a
guerra fria no período da ordem mundial bipolar. Isso
apesar de alguns autores apostarem neste ou naquele
potencial como o mais importante. Alguns nos choques
culturais ou civilizacionais. Outros nas disputas
comerciais e/ou tecnológicas. Na oposição entre
democracia e regimes autocráticos. Na radical diferença
entre os “rápidos” (em termos de incorporação de novas
tecnologias) e os “retardários”. Na dicotomia entre
interdependência (globalização ) ou autonomia nacional.
Ou ainda ainda na oposição entre o nacional e o global
(sendo este complementado ou auxiliado pela busca de
maior autonomia regional ou local).
A nova ordem mundial, nesses termos, seria pós-
moderna68. A bipolaridade teria sido a última ordenação
geopolítica planetária moderna no sentido do progresso
entendido como algo unívoco e herdeiro do Iluminismo – o
esclarecimento ou predomínio da Razão, o
desenvolvimento científico junto com o econômico ou
material, o avanço da secularização pelo mundo – e da
oposição dual entre dois pólos: a luz e a escuridão, a
esquerda e a direita, o socialismo e o capitalismo. A nova
ordem pós-moderna, por sua vez, conhece uma retomada
da religiosidade – no mundo islâmico, especialmente, mas
também nos países cristãos e em Israel pelo avanço dos
fundamentalistas. E uma complexidade no sentido de não
ser mais possível afirmar que alguma das alternativas (e
elas são inúmeras e não mais apenas duas) está “do lado
da história ou do progresso” e a outra “do lado do
atraso”. São ambientalistas (defendendo em geral a
sustentabilidade, o meio natural e o futuro da
humanidade) em conflito com desenvolvimentistas (que
objetivam a melhoria das condições de vida no curto
prazo, com mais estradas, ferrovias, hospitais, alimentos).
São grupos religiosos que se opõem (cada um acreditando
portar a verdade revelada), mesmo que muitas vezes
interesses materiais e territoriais sejam um dos motivos
para esses conflitos (mas praticamente nunca é possível
afirmar que um dos lados é progressista e o outro
retrógrado). São movimentos populares, algumas vezes
instrumentalizados por ideologias autoritárias ou
totalitárias – veja-se, por exemplo, o caso da Irmandade
Muculmana, no Egito, ao mesmo tempo buscando chegar
ao poder num país de governo extremamente autoritário
e antipopular e, paradoxalmente, afirmando que quando
controlar o governo irá acabar com as eleições, o
pluripartidarismo e a rotatividade no exercício do poder.
São Organização Não Governamentais que se
multiplicam, se expandem e se internacionalizam, e
mesmo tendo amplo apoio pela crescente descrença nos
Estados e por uma eficaz divulgação de suas mensagens,
com frequência têm propostas conflitantes. Até nas redes
sociais e na internet há um acirrado antagonismo entre os
pontos de vista plurais, que por vezes são radicais e
fundamentalistas. Nestes novos meios de comunicações,
uma quantidade muito maior de pessoas (em comparação
com o que ocorre com os meios de comunicações
tradicionais) participa, escreve e dá suas opiniões, muitas
vezes enfáticas devido à menor possibilidade de serem
detectados e/ou fisicamente reprimidos. Mas também
devido à rapidez das mudanças. Mudanças demográficas,
com envelhecimento populacional e intensas migrações
internacionais e inter-regionais, que acirram novas formas
de preconceitos e racismos. Mudanças econômicas com
extinção de certas profissões devido ao avanço
tecnológico, transferências de empresas de um país ou
região para outros, muitas vezes com o aumento no
número de desempregados. Mudanças de valores e
comportamentos de uma geração a outra – basta
lembrarmos das conquistas de gênero ou de orientação
sexual, exorcizados pela imensa maioria até
recentemente e que ainda suscita polêmicas extremas
nas redes sociais.
Existiria afinal uma nova ordem mundial ou uma
desordem, uma ausência, nos acontecimentos
internacionais, de qualquer lógica ou sentido? Creio que
essa dúvida é infundada, pois toda desordem, todo caos,
seja no mundo social ou até na natureza, sempre possui
uma lógica ou um sentido explicador, mesmo que ele não
seja totalmente conhecido a não ser por aproximações
baseadas em probabilidades. E a noção de uma ordem
mundial costuma ser entendida como uma situação de
equilíbrio instável, no qual evidentemente existem
conflitos, guerras, zonas cinzentas, etc. A ideia de uma
ordenação geopolítica internacional pressupõe em primeiro
lugar um espaço mundial unificado e integrado, com
relações diplomáticas, comerciais e financeiras constantes
entre os países, algo que só ocorreu a partir da expansão
marítimo-comercial européia e capitalista dos séculos XV e
XVI. Mais do que isso, como observou Henry Kissinger69, a
edificação de uma ordem mundial que passou a vigorar em
toda a superfície terrestre, mesmo que com eventuais
contestações, expansão territorial de Estados que se
tornaram mais poderosos, decorreu da aceitação,
primeiramente na Europa (onde surgiu) e depois no restante
do mundo, do conceito de soberania legitimado pelo Tratado
de Vestfália de 1648, no qual os Estados beligerantes
reconheceram o direito de qualquer um deles a ter um
poder incontestável – o monopólio da violência legal ou
legítima, como posteriormente diria Max Weber – dentro de
um determinado território, daí se usar a expressão Estado
territorial para se referir ao Estado moderno.
Outro autor que se dedicou ao tema, assinalou que são
exatamente as desigualdades de poder entre os Estados,
com a presença de alguns poucos Estados poderosos, as
grandes potências, que garante a existência de uma ordem,
ao invés de uma anarquia internacional: “A contribuição das
grandes potências à ordem internacional deriva do fato da
desigualdade de poder entre os estados que participam do
sistema internacional. Se os estados tivessem todos o
mesmo poder, como são iguais perante a lei, e todos
pudessem afirmar suas pretensões com a mesma força dos
demais, é difícil ver como os conflitos internacionais seriam
resolvidos (...) a não ser mediante alianças que
introduzissem um elemento de desigualdade. As demandas
de certos estados (os fracos) poder ser na prática
ignoradas, enquanto as de outros (os fortes) são admitidas
como as únicas relevantes na pauta do que precisa ser
resolvido”.70
Nesse sentido, estudiosos dessa temática utilizam as
expressões "grande potência" ou "potência mundial",
indissociavelmente ligada à noção de ordem internacional.
Esta normalmente é vista como uma situação de equilíbrio
dinâmico, sempre instável ou provisório, de forças entre os
Estados nacionais. (Afinal é o Estado quem atua nas
relações internacionais e executa tanto a diplomacia quanto
a guerra). Esses atores privilegiados no cenário global, os
Estados, são equivalentes apenas na teoria – pois há vários
que são frágeis em termos de economia, de população, de
território e recursos naturais, e de poderio militar; em
contrapartida, há alguns poucos extremamente fortes. Por
isso a existência de potências grandes ou mundiais, mas
também as médias ou regionais, é um elemento
estabilizador, que evita a “guerra de todos contra todos” e
estabiliza e define a (des)ordem mundial.
Como descreveu Sergio Pistone71, cada Estado
possui a sua soberania ou poder supremo no interior de seu
território, não estando portanto submetido a nenhuma outra
autoridade supraestatal, o que em tese redundaria numa
espécie de "anarquia internacional". Mas a existência das
grandes potências e de países que com elas se alinham,
formando uma espécie de hierarquia entre os Estados
nacionais, introduz um elemento estabilizador, uma "ordem"
afinal, nessa situação em que não há um poder global ou
universal legítimo e que esteja acima das soberanias
estatais. O que convencional chamar de ordem mundial,
portanto, consiste nessa hierarquia que vai dos Estados
fortes – as grandes potências – até os "fracos", passando
pelas “potências médias ou regionais”, que formam um
sistema de países onde na prática há o exercício do poder
pela diplomacia (ou, no caso extremo, pela guerra) e pelas
relações cotidianas (comerciais, financeiras, culturais). Por
esse motivo, via de regra costuma-se definie uma ordem
mundial pela presença de uma ou mais grandes potências
mundiais: ordem monopolar72, bipolar, tripolar, pentapolar,
multipolar etc.
Como podemos perceber, não se avança muito quando
se questiona a noção de uma nova ordem, como fazem
alguns, e se enfatiza o termo desordem numa acepção
hobbesiana, isto é, a “luta de todos contra todos” na
medida em que não há um pacto para se aceitar um
soberano planetário, isto é, um poder acima das soberanias
estatais. Pois praticamente toda ordem mundial é instável e
sujeita à eclosão de conflitos e de guerras. Mas estes
conflitos e guerras, normalmente, são explicáveis pela
lógica que preside a ordem mundial e, portanto, não a
denegam. Às vezes sim, mas nestes casos são rupturas ou
possibilidade de crise e redefinições (ou o final) da ordem
vigente, tal como foram, por exemplo, a Primeira e a
Segunda guerras mundiais ou o final da União Soviética em
1991. Um dos papéis das grandes potências é exatamente o
de administrar esses conflitos, procurando evitar que
cheguem ao extremo e procurando de alguma forma intervir
direta ou indiretamente nas guerras para manter a
estabilidade do sistema que as beneficia. Podemos então
dizer que o conceito de ordem mundial não é positivista no
sentido de ordem sendo igual a uma rígida disciplina, a um
arranjo hierárquico inquestionável, com uma ausência
quase total de contestações e de conflitos, Mas sim, na falta
de uma melhor conceituação, complexa no sentido de
ordem sendo algo sempre dinâmico e portanto instável, no
qual as disparidades, as tensões e os conflitos são
"normais" ou constitutivos.
 

Uni ou multipolaridade?
Sem dúvida que a nova ordem mundial resultou do
avançar da revolução técnico-científica (ou Terceira
Revolução Industrial, embora atualmente alguns falem
numa Quarta Revolução Industrial pelo avanço da
inteligência artificial e da robótica) e da globalização e,
em especial, da rápida desagregação do “mundo
socialista” com a profunda crise na União Soviética e o
seu final em 1991. Nascida, portanto, a partir da ruína da
bipolaridade – que foi o mundo da guerra fria e da
preponderância das duas superpotências, que existiu de
1945 até 1989-91 – , ela ainda suscita inúmeras
controvérsias e costuma ser definida ora como multipolar
(por alguns), ora como monopolar (por outros) ou até
mesmo como uni-multipolar.
Aqueles que advogam a mono ou unipolaridade
argumentam que existe uma única superpotência militar, os
Estados Unidos, e que a sua hegemonia planetária é
incontestável após o final da União Soviética. E aqueles que
defendem a ideia de uma multipolaridade não enfatizam
tanto o poderio militar e sim o econômico, que consideram
como o mais importante nos dias atuais. Eles sustentam
que a União Europeia já é uma potência econômica quase
tão importante quanto os EUA e que tanto o Japão (que logo
deverá superar a sua crise) quanto principalmente a China
(a economia que mais cresce no mundo desde os anos 1990
e que já se tornou no segundo maior PIB do mundo, apesar
de alguns, inclusive o principal líder chinês em 2020, terem
afirmado que o valor da produção bruta da China é
subestimado pelo baixo valor do yuan e já é maior que o
norte-americano) também são polos econômicos
importantíssimos na escala mundial. Além disso,
raciocinam, a Rússia ainda é uma superpotência militar,
apesar de sua economia fragilizada e dependente
basicamente das exportações de petróleo e gás natural. A
China vem modernizando rapidamente o seu poderio militar
– já é o segundo país no mundo em valor total de gastos
com armamentos. E as forças armadas da Europa, em
especial as da Alemanha, França e Itália, tendem a se
unificar com o desenrolar da integração continental.
Até mesmo os momentos de crise (Guerra do Golfo,
em 1991; conflitos na Bósnia e no Kosovo, em 1993 e 1999;
e a luta contra o terrorismo, em 2001) são vistos sob
diferentes perpectivas por ambos os lados. Os que insistem
na monopolaridade pensam que essas crises exemplificam a
hegemonia absoluta e sem concorrentes dos Estados
Unidos, enquando que os que advogam a multipolaridade
explicam que essa superpotência em todos esses momentos
críticos necessitou do imprescindível apoio da Europa, em
primeiro lugar, e até mesmo da ONU, além de ter feito
inúmeras concessões à Rússia e à China em troca do seu
suporte direto ou indireto, ou a sua omissão, nesses
bombardeios contra o Iraque, contra a Sérvia e contra o
Afeganistão.
Talvez a melhor caracterização da nova ordem
mundial tenha sido a fórmula conciliatória encontrada por
Samuel P. HUNTINGTON73, que a definiu como uni-
multipolar. Ou ainda as considerações de Zaki LAÏDI74, que
assinalou que em alguns aspectos – em especial no poderio
militar – a nova ordem é monopolar; em outros aspectos –
no poderio econômico, por exemplo – ela seria multipolar; e
em outras situações ou aspectos – por exemplo, no sistema
financeiro mundial, no crescimento das organizações
globais, sejam interestatais ou não governamentais, sejam
legais ou clandestinas – essa ordenação mundial seria
apolar.
Pensamos que a nova ordem mundial pode ser
considerada, pelo menos provisoriamente, como uni-
multipolar, porém, a a dimensão multipolar tende a
predominar com o maior crescimento econômico (e também
tecnológicos e até militar) da China e de outros países
(Índia, por exemplo). Mas o importante não é sua definição
e sim sua compreensão. Ela encerra alguns
importantíssimos aspectos novos: o avançar de uma
globalização concomitante com a formação de “blocos” ou
mercados regionais e o (relativo) enfraquecimento das
soberanias estatais, que dividem uma parte do seu poderio
com outros atores globais, outras instituições – desde as
organizações internacionais e a mídia global até as ONG’s,
passando pelas grandes culturas ou civilizações, pelas
máfias, pelas redes terroristas, etc. – que se expandem
continuamente e passam a ter um crescente papel nas
decisões e nas ações ao nível planetário75.
Quanto à ideia de um “império mundial” liderado
pelos Estados Unidos, pensamos que se trata de um clichê
ou uma noção altissonante sem base empírica e que tem
como principal função servir como palavra-de-ordem para
determinados manifestantes anti-globalização. A
comparação da atual supremacia norte-americana com o
império romano, explícita nessa visão, não tem
fundamentação histórica, conforme afirmou
categoricamente um especialista:
“Vejo mais as diferenças [entre essas duas situações].
Os romanos de fato conseguiram fazer uma coisa que
os americanos não alcançaram: eles transformaram os
habitantes de seu império em cidadãos romanos. Há um
acontecimento que considero um dos maiores da
história e do qual se fala pouco, que é o Edito de
Caracala (212 d.C.), que levou a cidadania romana a
todos os habitantes do império. Já no primeiro século da
era cristã, o próprio São Paulo, que era judeu, claro, se
dizia antes de tudo um cidadão romano. (...) Os
americanos estão num mundo em que a
americanização deve forçosamente parar num certo
momento. Com sua potência militar ou econômica, eles
dominam muitos Estados, mas não estão numa situação
que lhes permita fazer das pessoas que dominam
verdadeiros americanos. Isso é ao mesmo tempo bom e
ruim. É bom, porque as pessoas conservam o que se
chama hoje de sua identidade. É ruim, porque isso
impede que essas pessoas se tornem membros inteiros
da democracia americana, que é, apesar de seus
enormes defeitos, uma democracia.”76
Essa proposição, a bem da verdade, pode ter – e
tem efetivamente – duas leituras: ou se entende por império
um domínio absoluto dos Estados Unidos ou se relativiza
isso e apregoa-se um “império sem um centro totalmente
localizável no espaço”, um predomínio da
desterritorialização no nível mundial, um “império sem uma
Roma concreta”. Esta última leitura predomina, misturada
de forma ambígua com a outra, no mencionado livro de
Negri e Hardt. E aquela primeira é muito comum em parte
da mídia e de alguns militantes anti-globalização. Mas
qualquer que seja a leitura de uma “nova Roma” com o seu
império mundial não existe base factual de sustentação. No
primeiro caso – de os EUA (em especial o seu governo
federal e o Pentágono, complementados pelo alcance
extraterritorial de sua economia) serem identificados com o
centro do “império” –, permance a diferença colocada pelo
historiador Le Goff, além do fato de que a noção de império
não pode prescindir de uma dominação política e econômica
direta. E também o crescente poderio de outros centros
mundiais de poder: da China à Europa, da Rússia ao Japão. E
no segundo caso – o de um “império aterritorial” – existe
um hegelianismo exarcebado e temporão, uma doutrina
idealista que dificilmente poderá ser colocado à prova na
análise empírica da realidade.
Globalização e revolução tecnológica
Globalização ou mundialização? Não vamos aqui
abordar a polêmica sobre o melhor termo para se explicar
essa crescente interdependência entre todos os povos e
economias – globalização (que de acordo com uma série de
autores norte-americanos, britânicos e japoneses seria algo
novo, iniciado nos anos 1980) ou mundialização do capital
(que de acordo com uma tradição francesa seria um
processo já antigo, vindo desde os séculos XV e XVI).
Tampouco iremoso dialogar com os autores que afirmam
que a globalização é um mito na medida em que o
coeficiente de abertura externa da maioria das economias
nacionais – e também o montante do comércio
internacional, em termos relativos – no início do século XX
era maior do que na atualidade.77
Acreditamos ser possível conciliar todas essas
perspectivas na medida em que a atual globalização pode
ser vista como um novo patamar do secular processo de
mundialização do capitalismo e, por outro lado, ela não se
resume ao comércio internacional de mercadorias – se fosse
apenas isso de fato ela não teria nada de novo ou de
superior frente ao início do século XX. Muito mais que o
aspecto comercial (as exportações e importações de cada
economia nacional) , o que realmente define a globalização
são as novas tecnologias (em especial as redes de
computadores, a robotização, a engenharia genética e
outras) e o novo e muito mais poderoso sistema financeiro
internacional, além de uma interdependência – não apenas
econômica e tecnológica, mas também ambiental, cultural,
social, etc. – nunca vista anteriormente.
A Globalização é indissociável da Terceira Revolução
Industrial, ou revolução técnico-científica, iniciada em
meados da década de 1970 (e não a partir de 1945, como
apregoam alguns autores). Ela não existiria sem o
microcomputador, inventado em 1975, sem as fibras óticas,
produzidas em escala industrial pela primeira vez nos anos
1970, sem as redes de computadores enfim78, que
permitiram o advento das “empresas em rede” e do novo
sistema financeiro internacional, no qual as principais bolsas
de valores de todo o mundo funcionam ininterruptamente
de forma interligada. E como assinalou com propriedade
uma autora, os três instrumentos mais importantes da
chamada “revolução das telecomunicações” – o telefone, o
cumputador e a televisão – só se expandiram em todo o
mundo a partir do final dos anos 197079.
Dessa forma, foi a eclosão da revolução técnico-
científica com as suas novas tecnologias – em especial a
informática e as telecomunicações –, juntamente com o
abandono por parte dos países desenvolvidos (a começar
pelos Estados Unidos), no início dos anos 1970, do que
ainda restava do padrão ouro, seguido pela liberalização
geral dos controles cambiais80, que deu origem a este
processo de globalização descoberto ou tematizado como
tal nos anos 1980.
A globalização e a Terceira Revolução Industrial são
processos interligados e interdependentes, que se
influenciam mutuamente, pois por um lado não haveria a
integração planetária sem as novas tecnologias, e por outro
lado uma série de traços essenciais dessa nova revolução
industrial – tais como a maior importância do mercado
global frente aos nacionais, a concorrência e os preços
sendo cada vez mais definidos na escala internacional, a
produção interdependente (uma peça é fabricada num país
e outra numa economia nacional diferente), as empresas
em rede, etc. – não seriam possíveis sem o avançar da
globalização. Revolução técnico-científica e globalização,
portanto, são aspectos essenciais da nova ordem mundial,
apesar de terem surgido antes de 1989-91, antes da crise
terminal do socialismo real – crise essa, por sinal, que
contribuíram para deflagrar81.
A nova ordem mindial, por um lado, se consolida ou se
inicia de fato com o final do “mundo socialista” (e a
consequente incorporação definitiva, no sentido de
completa e não de eterna, de um terço da humanidade no
mercado capitalista global). Entretanto, não há dúvida que
essa nova ordenação geopolítica já vinha se esboçando
desde os anos 1970 com o avançar da revolução técnico-
científica (e da complementar globalização) e com o
desenvolvimento internacional desigual, que, juntamente
com o processo de unificação europeia, estava engendrando
novos polos ou “potências” na economia mundial: o Japão e
o Mercado Comum Europeu, atual União Européia. E um
pouco mais tarde a China, atual candidata a emular com os
Estados Unidos em toda a superfície terrestre, algo que já
começa a ocorrer com a expansão econômica e geopolítica
chinesa no Pacífico Norte, no Índico e sul da Ásia, na Ásia
Central e na África. Isso sem contar que a China já é o
principal parceiro comercial de maioria dos países sul-
americanos (desbancando os Estados Unidos) e também de
inúmeros países na África, na Ásia e na Oceania.
Uma nova ordem mundial, nesse sentido, é sempre
uma decorrência ou uma certa continuação da anterior, na
qual determinados acontecimentos ou processos – que não
são “necessários” no sentido de algum determinismo, pois
em muitos casos resultam de ações ou decisões que têm
muito de contingente – modificam de forma substancial a
correlação internacional de forças. O aspecto mais visível ou
mais espetacular de uma ordem mundial é a hegemonia
político-militar: a enorme influência que a Inglaterra exercia
sobre todos os recantos do globo do final do século XVIII até
o final do XIX – época de uma ordem mundial monopolar –
deve-se em grande parte aos seus navios de guerra (a
marinha britânica era imbatível) e às suas estratégias
(diplomáticas, geopolíticas) para dominar os povos
subjugados pelo império britânico. Mas é evidente que não
existe um poderio militar sem uma sólida base econômica82
(e, nos dias de hoje, tecnológica), que lhe serve de
sustentáculo. Não foi apenas a força militar que construiu e
manteve o poderoso império britânico, mas também – ou
principalmente – os capitais, a pujança industrial, a
economia mais desenvolvida do mundo na época, pelo
menos até o final do século XIX (quando foi ultrapassada
pela alemã e principalmente pela norte-americana), que
precisava de mercados externos, de fontes de matérias
primas e de consumidores.
Também a ordem bipolar da segunda metade do século
XX foi uma decorrência não apenas do maior poderio militar
norte-americano e soviético, em comparação com os
demais países. Mas também do fato de que, no mundo pós-
1945, a ex-União Soviética era indiscutivelmente a maior
economia do chamado Segundo Mundo: o seu PIB, em 1950,
era maior do que os de todas as outras economias nacionais
planificadas somadas. E os Estados Unidos tinham a
economia mais poderosa no chamado mundo capitalista: o
seu PIB, em 1950, era superior aos da Europa Ocidental, da
África, da América Latina e do Japão em conjunto.
Já nos anos 1980, quando o PIB do Japão já havia
ultrapassado o da URSS (e representava não mais 9% do
norte-americano, como nos anos 1950, e sim mais de 30%
deste), quando o PIB dos países da Europa Ocidental em
conjunto já era superior ao dos EUA, um importante alicerce
da bipolaridade estava apodrecido e abalava todo o edifício
dessa ordenação geopolítica. É por esse mesmo motivo que
a atual unipolaridade militar não deverá se sustentar por
muito tempo – a não ser por, no máximo, umas duas ou três
décadas83. Exceto se algo imprevisível e significativo ocorra,
tal como crises profundas na Europa e na China, uma guerra
nuclear entre China e Índia, um extremamente acelerado,
embora improvável, crescimento da economia norte-
americana junto com uma estagnação chinesa, etc. Pois a
economia norte-americana, que já representou cerca 45%
da produção econômica total do mundo – em 1950 –, hoje
em dia representa 24,4% desse total84 (algo ainda
impressionante para uma única economia nacional) e dentro
de algumas décadas, provavelmente, deverá representar
menos de 20% da economia mundial. A China, em
contrapartida, mesmo desconsiderando o baixo valor de
câmbio da sua moeda, representa 16,3% da economia
mundial (em 2019, segundo o Bando Mundial) e, se mantido
o seu atual ritmo acelerado de crescimento, já deverá
abocanhar 23,8% do PIB mundial em 2030, enquanto que os
Estados Unidos nesse mesmo ano, mais uma vez mantendo
suas atuais taxas anuais médias de crescimento econômico
(de 2010 a 2019), representarão também 23,8% desse
total.
Ou seja, será exatamente nesse ano, em 2030, que a
produção econômica chinesa estará superando a
estadunidense pelas estatísticas das organizações
internacionais (ONU, Banco Mundial e FMI), embora seja
mesmo provável que isso já tenha ocorrido por vários
motivos. Primeiro, o valor do PIB chinês é calculado em
yuans e depois transformado em dólar para efeitos
comparativos, o que, levando-se em conta o baixo valor de
câmbio da moeda chinesa (mantida propositadamente
dessa forma para favorecer as exportações), sem dúvida
que é subvalorizado. Segundo, as evidências mostram que
uma economia que já se tornou na maior exportadora
mundial e maior parceira comercial para centenas de países
ao redor do mundo (muito mais do que os Estados Unidos),
inclusive em regiões tidas como áreas de influência daquela
grande potência americana (como a América Latina em
geral, salvo algumas exceções, Austrália e Nova Zelândia,
grande parte das economias africanas, etc.), não é possível
que represente hoje, segundo dados de 2019, apenas 68,8%
da economia norte-americana85.
 

Novos centros de poder


Enfim, no aspecto econômico já em meados do século,
em 2050, teremos uma supremacia chinesa – e
provavelmente a Índia em segundo lugar e os Estados
Unidos em terceiro, também segundo projeções baseadas
nas atuais taxas de crescimento das economias nacionais. E
essa mudança econômica sem dúvida que terá impactos no
plano geopolítico, com uma maior influência chinesa na
África, em grande parte da Ásia (rivalizando com a Índia) e
até na Europa, além da América Latina e Oceania. Isso
inclusive já começa a ocorrer. Com a recente contração
internacional estadunidense, que cada vez mais volta para
seu tradicional isolacionismo e negligencia sua
preponderância geopolítica especialmente na Ásia e na
África, a China tende a se expandir (econômica e
geopoliticamente) ainda mais, ocupando o vazio deixado
pela diminuição da presença dos Estados Unidos. Há alguns
anos que a China se fortalece nos oceanos Pacífico e Índico,
reivindicando uma ampla área no encontro desses oceanos,
no mar da China Meridional, a leste do Vietnã, a oeste das
Filipinas e ao norte da Malásia. A China reclama uma zona
marítima que vai muito além das 200 milhas reconhecidas
internacionalmente, alegando que, segundo mapas chineses
antigos, toda essa zona, com suas inúmeras ilhas, pertencia
ao império chinês. Também vem construindo várias ilhas
artificiais nessa zona marítima, como forma de expandir
suas 200 milhas territoriais e também como bases de apoio
para suas frotas. E protestou veementemente quando a
Índia, a pedido do Vietnã, começou a fazer prospecções de
petróleo próximo ao litoral vietnamita. Embora essa área
litorânea se situe dentro das 200 milhas territoriais do
Vietnã, a China alega que lhe pertence, e há anos vem
militarizando esse mar com navios de guerra cada vez mais
numerosos, circulando diariamente na tentativa de intimidar
esses países e controlar essa zona marítima. Há uma
crescente disputa geopolítica no oceano Índico. A expansão
econômica e geopolítica da China, que vem aumentando
sua presença econômica e militar nesse oceano, tem
preocupado a Índia, que sempre se considerou a potência
regional nessa zona marítima ao sul do seu território. A
China vem realizando projetos de construção no Paquistão,
rival da Índia, e seus navios de guerra navegam
constantemente pelo oceano Índico.
A recente expansão naval chinesa se deve à pretensão
de hegemonia na Ásia, e também na África, além do fato de
o oceano Índico ser a principal rota marítima do comércio
internacional de petróleo, pois a China hoje é a maior
importadora mundial – e a Índia vem em terceiro lugar
(após os Estados Unidos), o Japão em quarto e a Coreia do
Sul em quinto. A China, portanto, está na corrida para se
tornar uma superpotência, aproveitando o vácuo criado na
região pelo declínio do poder dos Estados Unidos, que pouco
a pouco se retraem e contribuem para a expansão chinesa.
Em 2013, a China ampliou sua zona marítima de defesa,
sobrepondo-a à zona japonesa. Além disso, anunciou novos
regulamentos de pesca e a necessidade de autorização
chinesa para navios estrangeiros operarem em mais da
metade do mar da China, que banha China, Japão, Taiwan e
Coreia do Sul. Com os Estados Unidos preocupados com as
intermináveis crises no Oriente Médio, com o seu entorno
mais imediato (México e Canadá, além da América Central)
e, notadamente, com seus problemas internos, potências
regionais como Índia, Japão e Austrália (no Pacífico Sul)
começam a investir mais no setor militar e a se unir para
confrontar a China. Esses três países assinaram pactos de
defesa e têm realizado exercícios militares conjuntos. Em
dezembro de 2013, pela primeira vez a Marinha japonesa
realizou um exercício marítimo no oceano Índico, em
conjunto com a Marinha indiana. Esses três países estão se
aliando para suprir a possibilidade de os Estados Unidos
deixarem de equilibrar o crescente poder da China nessa
região do Índico, da parte asiática do Pacífico e do sul desse
oceano. Mas toda essa tendência de expansão da China,
bem como os intermináveis problemas fronteiriços entre
Índia e Paquistão, ou entre Índia e China, mostra que
conflitos militares intensos, talvez até mundiais, não serão
mais deflagrados na Europa e sim na Ásia.
Em busca de maior protagonismo mundial,
especialmente na Ásia, África e até na Europa, a China em
2013 lançou o programa OBOR (One Belt One Road, isto é,
um cinturão e uma estrada), também chamado de nova rota
da seda, que consiste numa série de investimentos chineses
e conjuntos com pelo menos 60 países europeus, asiáticos e
africanos, sobretudo nas áreas de transportes e
infraestrutura. Esses investimentos deverão ser tanto
terrestres (o cinturão), conectando a Europa, o Oriente
Médio, a Ásia central e a África — regiões de extrema
importância geopolítica — quanto marítimos (a rota),
passando pelos oceanos Índico e Pacífico e também pelos
mares Mediterrâneo e Vermelho. O projeto deve se conectar
com as obras chinesas que já estão sendo feitas na África e
na Ásia central. Tal programa tem ideias arrojadas, como a
de um corredor de gasodutos e oleodutos vindos da Ásia
central, riquíssima em gás natural e petróleo, ou uma
infraestrutura de redes de telefonia, internet, rodovias e
ferrovias cortando desde a Europa até a Ásia. Mas essa nova
rota da seda não é pensada como um arranjo multilateral,
negociado entre os diversos países ao mesmo tempo, mas
sim como acordos bilaterais da China com cada país em
particular.
Em resumo, é provável que a multipolaridade na ordem
mundial seja cada vez mais evidente no transcorrer do
século, embora com uma supremacia mais chinesa do que
norte-americana. Até no aspecto tecnológico, que nas
últimas décadas os Estados Unidos desfrutaram de uma
indiscutível liderança, vem ocorrendo uma maior expansão
chinesa – e, secundariamente, indiana. O governo chinês,
nos últimos anos, vem gastando 200 vezes mais que o
governo dos Estados Unidos com pesquisas em inteligência
artificial, e existe um plano chinês para se tornar o líder
mundial nessa área até 2030, ao passo que os EUA (com o
governo Trump) vem reduzindo seu financiamento para a
ciência. O sistema autoritário da China e a propriedade
estatal das três principais empresas de telecomunicações
do país permitiram que ela expandisse muito a cobertura
sem fio 5G, que é pelo menos 20 vezes mais rápida do que
a 4G, possibilitando melhor conectividade entre todos os
tipos de dispositivos, de carros sem motorista a aparelhos
inteligentes. Empresas chinesas como a Huawei e a Xiaomi
já possuem tecnologia mais avançada que as norte-
americanas e, apesar das pressões dos EUA, começam a
ganhar concorrências realizadas em vários países para a
implantação do sistema 5G.
Mas nada é completamente previsível na história e
talvez o mundo – pelo menos o mundo desenvolvido, no
qual cada vez mais a China se inclui86 – tenha ingressado
numa fase de cooperação internacional no lugar das
tradicionais rivalidades político-militares e o mais
importante para a garantia do “sistema global” seja não o
poderio isolado deste ou daquele Estado nacional e sim
determinados tratados ou alianças econômicos e militares.
O próprio conceito – e os objetivos – de guerra mudou
com a revolução técnico-científica, com a globalização e
com os novos armamentos “inteligentes”. Não totalmente, é
claro, pois a realidade mundial é plena de desigualdades e
situações diferenciadas e a natureza beligerante dos
Estados territoriais continua existindo. Mas como tendência
não há dúvida que a guerra, cada vez mais (embora existam
exceções ou sobrevivências de realidades anteriores),
implica não num extermínio em massa do inimigo e sim na
destruição de alvos estratégicos específicos procurando
limitar o número de mortos. As chamadas “armas
inteligentes” – baseadas, fundamentalmente, na
informática e na inteligência artificial
destroem alvos específicos sem ocasionar matanças
indiscriminadas. São mais precisas que os armamentos de
destruição em massa, que predominaram durante a maior
parte do século XX. O que significa que não é mais
necessário o transporte de grande quantidade delas (algo
que altera radicalmente a logística militar) e faz com que as
informações sejam muito mais estratégicas para a
supremacia militar. Esta deixa de estar ligada ao tamanho
da população ou mesmo à quantidade de soldados (existe
uma perceptível mudança no sentido de diminuir o número
de militares, só que aumentando a escolaridade e a
qualificação deles) e passa a depender da economia
moderna, da tecnologia avançada.
Revolução tecnológica e globalizção
A revolução técnico-científica, aliada à globalização,
ademais, redefine o mercado de trabalho, eliminando um
imenso número de profissões e/ou atividades e criando
outras, esvaziando mais ainda o setor primário e
principalmente o secundário (e também o terciário, embora
aqui inúmeras novas funções e atividades sejam criadas) e
ao mesmo tempo exigindo uma mão-de-obra cada vez mais
escolarizada, qualificada e flexível. As promessas de robôs
com base no aprimoramento da inteligência artificial, que
poderá emular a inteligência humana em vários aspectos,
sugerem que é possível substituir com vantagem não mais
apenas trabalhadores de fábricas, de entregas,
telemarketing, guardas de trânsito, motoristas (os veículos
se tornarão autônomos), etc., mas também pessoas que
trabalham em contabilidade, advocacia e no judiciário em
geral, medicina e várias outras do setor terciário ou
prestação de serviços. Ao mesmo tempo, reorganiza ou
(re)produz o espaço geográfico com uma nova (relativa)
descentralização da indústria e principalmente das
atividades terciárias e com novos fatores sendo
determinante para a alocação das empresas: não mais
proximidade de matérias primas e mercado consumidor, e
sim telecomunicações, energia e transportes e em especial
força de trabalho qualificada.
A globalização se expande de forma concomitante
com uma nova regionalização geoeconômica do mundo, isto
é, com a formação de "blocos" ou mercados regionais. Essa
tendência já havia começado anteriormente, com o avançar
da unificação europeia desde o final dos anos 1950. Mas foi
com a derrocada do socialismo real, com a implosão da
URSS e o final da bipolaridade, que ela se consolida e se
expande para vários continentes: a competição econômica,
tecnológica e comercial torna-se, a partir daí, mais
importante do que a disputa ideológica. Devemos recordar
que foi apenas em janeiro de 1994 que o Nafta – o Acordo
de Livre-comércio da América do Norte – entrou em vigor,
ao passo que o Mercosul – o Mercado Comum do Sul –
somente entrou em vigor em janeiro de 1995 (apesar de
que o Tratado de Assunção, que criou o “bloco”, foi assinado
em 1991). Quanto ao outro importante mercado
internacional, a Apec – Cooperação econômica da Ásia e do
Pacífico –, ele só adquiriu as atuais características de
“bloco” econômico com o Tratado de Seatle, assinado em
1993. Ao contrário de algumas leituras equivocadas
realizadas em 1989-90, quando alguns imaginaram que
esses mercados implicariam num “fechamento” do espaço
mundial, que ficaria dividido entre três ou quatro blocos
rivais e relativamente autosuficientes, o que se observa é
que a globalização e a formação de “blocos regionais” são
dois processos complementares e interligados – e não
processos contraditórios.
A constituição de mercados regionais, na realidade,
expressa a forma pela qual a globalização caminha na
dimensão político-territorial. Ela não rivaliza com a
globalização nem a obstaculiza , mas, pelo contrário,
constitui um dos aspectos desta. Em outras palavras, isso
significa que a globalização não é um processo puramente
“econômico”, levado a cabo pelas empresas multi ou
transnacionais (ou pelo sistema financeiro internacional) e à
revelia dos Estados-nações. Ela é também – e talvez até
principalmente – um processo político implementado por
decisões e ações estatais, por acordos internacionais que
expandem o comércio mundial (de bens e de serviços), os
fluxos de capitais entre as diversas economias nacionais, as
telecomunicações, etc. Estas últimas, por exemplo, não
seriam possíveis – pelo menos não da forma global tal como
existem hoje – sem os entendimentos entre governos para
construir os principais cabos transoceânicos de fibras óticas,
sem os acordos interestatais para permitir a receptação de
sinais de satélites, para regulamentar as novas e mais
rápidas comunicações telefônicas (por vozes e por dados),
que possibilitam a existência das “empresas em rede” e até
das redes sociais.
Enfim, a globalização é um processo complexo e
multifacetado. Possui dimensões tecnológicas, econômico-
financeiro-comerciais, (geo)políticas, culturais, sociais e
ecológicas. E se se desenvolve tanto por acordos
interestatais quanto pela ação ou reação de inúmeros
outros agentes: empresas, indivíduos, grupos sociais,
organizações internacionais intergovernamentais e não
governamentais, etc. É evidente que na história humana
nada é inevitável e muito menos a globalização. Outras
alternativas, inclusive outra forma de globalização poderiam
ter ocorrido ou ainda podem ser idealizadas.87 Só que ela
resultou de um complexo jogo de forças, que ajudou a
definir as suas características. Ela se adequou
perfeitamente à revolução técnico-científica e à nova ordem
mundial consolidada a partir dos término da guerra fria.
Quer gostemos ou não, ela constitui um aspecto ou uma
parte importante deste novo século e desempenha um
relevante papel nas suas transformações.
Dessa forma, não é possível qualquer projeto nacional
coerente para o século XXI que não leve em consideração a
revolução técnico-científica (especialmente agora, nesta
fase denominada Quarta Revolução Industrial, com o
notável avanço na inteligência artificial e na robótica), a
globalização e a complementar formação de associação de
países ou mercados regionais. Sem dúvida que a
globalização é uma realidade execrável para muitos, que a
combatem sob diversos pretextos ou interesses. Mas ela
existe de fato – não é somente um “discurso neoliberal”,
como alguns apregoam, e tampouco a “nova roupagem do
imperialismo”. E faz parte do contexto ou das “condições
objetivas” no qual a nossa existência e as nossas ações
estão enraizadas. Por sinal, até mesmo os antiglobalistas
dependem dela para suas ações: se comunicam via internet
ou redes sociais com o uso de computadores ou telefones
celulares, viajam de avião para participar de manifestações
em vários recantos do globo, aproveitando portanto a
enorme expansão dos meios de transportes que caracteriza
a globalização, possuem cartões de crédito e/ou débito
internacionais (tidos como um dos grandes símbolos da
globalização) para pagar suas despesas, etc.
 

Dinâmica da nova ordem


A nova ordem mundial possui um ritmo de mudanças
muito mais rápido do que a ordem anterior, a bipolar.
Rápidas mudanças tecnológicas. Mudanças econômicas –
basta ver a ascenção da China e da Índia, considerados
países extremamente atrasados até os anos 1980.
Intensos fluxos internacionais de capitais. Maciços
movimentos de pessoas, tanto na expansão do turismo
internacional como nas migrações em massa, com
dezenas de milhões de pessoas todos os anos –
refugiados e migrantes legais ou ilegais – indo para a
Europa, os Estados Unidos, os países árabes exportadores
de petróleo e outros. Mudanças de valores culturais – por
exemplo, em ações afirmativas em vários países, na
legalização de casamentos homossexuais ou do aborto,
na crescente incorporação feminina à força de trabalho,
nas mudanças no modelo de família, que deixa de ser
patriarcal e apenas heterossexual, além do crescente
número de pessoas que vivem sozinhas, etc. Por isso
mesmo esta ordem mundial é mais instável que a
anterior.
Ela possui variados conflitos e tensões. Mesmo sem a
pretensão de detalha-los, acreditamos que seja possível
um entendimento genérico a partir de duas constatações:
eles se tornaram mais complexos e plurais com o final da
guerra fria e tendem a ser mais globais e, direta ou
indiretamente, interconectados. No que diz respeito à
maior complexidade e pluralidade, isso decorreu do final
da guerra fria e da disputa ideológica entre capitalismo e
socialismo. A dissolução do “mundo socialista” – e
também, em grande parte, da própria utopia socialista –,
juntamente com a derrocada da União Soviética, que era
o único centro mundial de poder que de certa forma
limitava a expansão da economia de mercado e a ação
geopolítica dos Estados Unidos, suscitou em muitas
partes do mundo uma busca de novas alternativas (no
plural). Em alguns casos ocorreu um fortalecimento de
antigas tradições culturais, em outros casos o(s)
fundamentalismo(s) substituiu(ram) a antiga utopia
socialista e, em outros ainda, caminhou-se para a
criminalidade pura e simples.
Determinadas identidades culturais, que
aparentemente estavam adormecidas durante a guerra
fria, emergiram com vigor nesta nova ordem mundial.
Isso, a par do aumento nos fluxos demográficos
(migrações e turismo internacionais, aumento dos
refugiados), fez com que houvesse uma redescoberta da
enorme diversidade que existe na humanidade.
Juntamente com a difícil convivência com os “outros” nas
sociedades que se tornam cada vez mais multiétnicas e
multiculturais. Como também na escala planetária pela
expansão dos meios de comunicações que divulgam
valores e modos de vida que se chocam com
determinadas culturas ou religiões. Para alguns somente
um completo retorno às “tradições” (religiosas ou até
nacionais, sempre idealizadas) – e, no limite, uma
expulsão ou uma conversão dos “outros”, dos
“estrangeiros” ou dos “infiéis” – traria uma harmonia para
este mundo pleno de diferenças, desigualdades e
injustiças. São os racistas e os fundamentalistas, que em
muitos casos não se limitam ao discurso e partem para a
ação violenta (agressões, depredações, terrorismo). Para
outros – inclusive muitos ex-comunistas – não há mais
nenhum ideal pelo qual valha a pena lutar e,
consequentemente, deve-se explorar ao máximo e sem
qualquer escrúpulo as oportunidades de ganhos
monetários: são os mafiosos, os traficantes (de
armamentos, de drogas variadas, de prostituição, adulta
ou infantil, de trabalho semi-escravo, etc.), os novos
piratas e os novos mercenários.
Também os conflitos armados, ao contrário do que
se pensou inicialmente (em 1989-90), parecem ter se
expandido com o final da bipolaridade. A ausência do jogo
da guerra fria, da disputa entre as duas superpotências,
que se intrometia em ou intermediava quase que todos os
demais conflitos do globo, deixou uma espécie de “vazio”
que logo foi preenchido por violentos choques étnico-
culturais-territoriais que em alguns casos produziram
verdadeiros extermínios em massa: na África (Somália,
Ruanda, Sudão, Chade, Nigéria, Líbia e outros), nos
Bálcãs, no Oriente Médio (Kuwait, Iraque, Síria, Líbano,
Israel e Palestina), e no sul da Ásia (Afeganistão,
Caxemira, Punjab). Talvez o mundo tenha sido menos
instável e inclusive menos perigoso na época da
bipolaridade, apesar da intensa corrida armamentista e
da ameaça da guerra termonuclear entre as
superpotências. A guerra fria foi ao mesmo tempo uma
rivalidade e uma cooperação implícita e os conflitos
étnicos-territoriais e/ou culturais eram por ela
normalmente dissolvidos ou abafados – ou no mínimo
administrados. Não que eles não existissem, pelo
contrário: em alguns casos eram estimulados pelas
superpotências, que gostavam, sempre que houvesse
oportunidades, de expandir sua área de influência ou até
eventualmente testar novos armamentos ou estratégias.
Só que eles eram relativamente controlados ou limitados
pelo chamado “equilíbrio de terror” e pela conivência
tácita entre as duas superpotências.
No mundo pós-guerra fria o holocausto, a virtual e
catastrófica guerra termonuclear entre superpotências, é
uma possibilidade extremamente remota. Porém, os
conflitos locais e regionais – que passam a encerrar uma
dimensão global – se multiplicam, inclusive entre Estados
detentores de armamentos nucleares (como entre Índia e
Paquistão, ou envolvendo a Coreia do Norte ou até a
China). Mas talvez todos esses conflitos violentos sejam
apenas provisórios e a nova ordem, que ainda não se
encontra totalmente configurada, caminhe no sentido de
forjar instituições internacionais – uma ONU fortalecida e
redefinida, por exemplo88, ou então uma OTAN que inclua
a Rússia e até a China – que equacionem ou minimizem
esses problemas. Mas para isso é também imprescindível
que os Estados nacionais formalizem uma mais profunda
e clara divisão de tarefas com os “novos” agentes que
dispõem de um crescente poderio em todos os níveis ou
escalas: as organizações não governamentais, a mídia,
principalmente em relação às “novas mídias”, as grandes
culturas ou civilizações, com destaque para as principais
religiões, os fortes movimentos separatistas que existem
em vários países, etc.
Os inúmeros conflitos ou tensões da nova ordem
mundial tendem a ser cada vez mais conectados e
globais. Por um lado há a crescente interdependência
entre todos os locais, entre todos os povos, culturas e
economias. Não apenas pelo aspecto econômico – os
fluxos comerciais e financeiros, produção complementar,
redes de empresas. Mas também pelas comunicações,
pelas redes de computadores e pelos celulares com seus
aplicativos, hoje em dia disseminados por todo o mundo,
inclusive nos países e áreas mais pobres. Pelos problemas
ambientais em comum. E pelos valores – pelo menos
alguns deles – que se universalizam. Por outro lado, e de
forma complementar, a intensidade, a velocidade e o
alcance planetário das informações hoje faz com que
praticamente todos saibam as mesmas notícias no
mesmo instante e se sintam como interessados (ou até
responsáveis) pelos problemas de áreas distantes.
Os meios de comunicações – que em grande parte
tendem a se tornar mais variados, segmentados e
interativos – passam a desempenhar um crescente papel
nas relações de poder. Como escreveu um autor: “O
poder, como capacidade de impor comportamentos,
reside nas redes de trocas de informações e de
manipulação de símbolos que estabelecem relações entre
atores sociais, instituições e movimentos culturais por
intermédio de ícones, porta-vozes e amplificadores
intelectuais. (...) Não há mais elites estáveis do poder. Há,
contudo, elites resultantes do poder, ou seja, elites
formadas durante seu breve período de detenção do
poder em que tiram vantagens da posição política
privilegiada para obter acesso mais permanente aos
recursos materiais e às conexões sociais. A cultura como
fonte de poder e o poder como fonte de capital são a
base da nova hierarquia.”89
Isso não significa que a mídia tradicional – TV,
jornais, rádio, que também possuem portais de notícias
na net – “manipule” a opinião pública a seu bel prazer,
como querem alguns. Tampouco que predomine uma
“sociedade do espetáculo” no sentido maniqueísta do
tempo substituído pela publicidade e do espaço
instrumentalizado como separação ou isolamento dos
trabalhadores90. Na realidade os meios de comunicações
são um campo de lutas (culturais, simbólicas) e não um
instrumento puro e simples das elites ou do capitalismo.
Um campo de lutas que se tornou mais importante na
medida em que as “novas indústrias”, no sentido amplo
do termo (ensino e pesquisa, mídia, assessorias, setor
financeiro...), adquiriram uma maior importância, para a
reprodução do capital, do que a fábrica ou as “relações de
produção” no entendimento clássico.
Não se trata do “capital” ou do(s) proprietário(s)
decidindo tudo de cima para baixo, nem de uma relação
conflituosa entre os “trabalhadores” (jornalistas, técnicos
de informática ou telecomunicações) e os capitalistas ou
os diretores. Trata-se de um equilíbrio instável entre
vários participantes, que possuem maior ou menor poder
de acordo com as circunstâncias. O público (leitores,
espectadores ou ouvintes, internautas), os anunciantes,
os proprietários (que podem ser milhares de acionistas),
os diretores (que muitas vezes têm interesses
divergentes). Os técnicos e os jornalistas (de diversos
matizes ideológicos). A preocupação com os concorrentes
e com os lucros, os “amplificadores intelectuais” ou
ícones/mitos nacionais e/ou internacionais que não
podem deixar de ser ouvidos (e que em alguns casos são
extremamente críticos). E a própria realidade (ou a
percepção dela), que nunca pode ser completamente
ignorada ou distorcida nesta época de redes sociais e de
computadores, na qual mesmo um indivíduo isolado pode
transmitir a sua versão para todo o mundo.
A nova ordem geopolítica mundial, enfim, encerra
um maior potencial de conflitos e estes são mais variados
e complexos – e também mais interdependentes e de
alcance global – do que aqueles da bipolaridade. Por um
lado isso é negativo: a revolução técnico-científica
também possibilita novas formas de guerras e até de
terrorismos (informáticos, biotecnológicos, químicos, de
comunicações, etc.) e estas podem acabar se tornando
permanentes e incontroláveis. Mas por outro lado isso é
positivo: a Terceira (ou a Quarta, se aceitarmos esta ideia
de uma nova fase) Revolução Industrial e a complementar
globalização parecem estar constituindo uma sociedade
mundial e esta poderá, mais cedo ou mais tarde, construir
determinados canais democráticos para se deliberar e
agir de comum acordo. Pelo menos segundo a vontade da
maioria. Ou melhor, dos Estados mais fortes, em primero
lugar, e, possivelmente, também de outras instituições
internacionais nas quais os mais fracos também têm voz.
Deliberar e agir com vistas a resolver ou minimizar os
grandes problemas geopolíticos e talvez até econômico-
sociais (na medida em que, pelo menos em tese, a
exclusão de inúmeros povos e áreas não interessa ao
sistema global) do espaço mundial.
Cap. 4 - Desenvolvimento e desigualdades internacionais
 

A teoria do imperialismo foi um alicerce fundamental para quase


todas as teorias “radicais” sobre a dependência ou o subdesenvolvimento.
Mas foi justamente esse o ponto fraco dessas interpretações. Foi se legitimar
numa teoria com evidentes objetivos político-programáticos e que no fundo
apenas justificava uma certa estratégia (leninista) para se fazer a “revolução
social” – ou, mais precisamente, para se “tomar o poder” enquanto partido
burocratizado e centralizado que fala em nome do proletariado. Também aqui
os limites dessa teoria são tangíveis e as explicações mais recentes sobre as
desigualdades internacionais a deixam de lado e buscam outras
determinações – diferentes da “lógica do sistema global” ou do imperialismo –
para se compreender o desenvolvimento (visto agora como humano e
sustentável e não apenas econômico) e, consequentemente, o
subdesenvolvimento.
O ponto que talvez seja o mais importante é que não se acredita mais
num processo ou modelo único de desenvolvimento, válido para todos os
povos e regiões do planeta. O(s) caminho(s) do desenvolvimento – e a própria
maneira de entender essa situação – varia(m) muito conforme a cultura e
conforme as condições históricas e geográficas. E, de forma complementar,
não existe uma única realidade do subdesenvolvimento, mas sim inúmeras. E
o “atraso” ou não desenvolvimento de alguma economia nacional ou de
regiões do globo não é mais considerado como uma pré-condição
indispensável para o desenvolvimento de outras. Esse tipo de lógica – que o
desenvolvimento de alguns pressupõe e necessita do subdesenvolvimento de
outros – foi típica das explicações alicerçadas na teoria do imperialismo e no
fundo imagina a economia mundial como um conjunto fixo de riquezas, como
um imenso bolo no qual alguém que se apropria de um enorme pedaço,
necessariamente deixa apenas pequenas porções para os demais.
Existe sim uma ligação, uma interdependência entre todas as partes do
mundo. Mas essa interligação é complexa e cheia de nuances. Ela não se
explica pela ideia simplista que o alto padrão de vida em algumas áreas exista
devido ao atraso e à exploração em outras. Que os países subdesenvolvidos
são o outro lado, a outra face do desenvolvimento, que o desenvolvimento
enfim necessita “explorar” determinadas áreas periféricas ou dependentes.
 

Pressupostos do imperialismo
Alguns pressupostos da teoria do imperialismo – que existem, parcial ou
totalmente, em praticamente todas as interpretações “radicais” sobre o
subdesenvolvimento – não mais se sustentam. Vamos fazer uma pequena lista
deles e depois mostrar o porquê cada um não tem mais – se é que alguma vez
teve – qualquer fundamentação científica. Um deles afirma que o sistema
global, o sistema capitalista mundial, tem uma lógica única que explica todas
as desigualdades internacionais. É como se cada parte não tivesse real
autonomia e fosse apenas uma engrenagem da máquina unitária. Outro é que
não há desenvolvimento sem o seu par, o seu outro lado necessário: o
subdesenvolvimento. Isso significa que as áreas ricas vivem às custas das
pobres e não há desenvolvimento sem a retirada de riquezas em áreas que,
por esse motivo, ficam na situação oposta, isto é, no não-desenvolvimento. E
outro pressuposto afirma que o “verdadeiro” desenvolvimento não é
capitalista e sim socialista, que somente numa sociedade mundial igualitária e
sem economias de mercado, sem a propriedade privada e a busca de lucros, é
que todos os povos poderiam ser plenamente desenvolvidos. O capitalismo,
assim, é entendido como um sistema que necessariamente gera
subdesenvolvimento e desigualdades (sociais e regionais), e somente a sua
radical substituição por um novo sistema socioeconômico permitiria a tão
almejada igualdade e o desenvolvimento de todos os povos.
A ideia de uma lógica única comandando todas as desigualdades
planetárias tem por base dois princípios fundamentais. Primeiro, que o todo,
ou a totalidade, é algo superior e que se impõe a cada uma das suas partes.
Segundo, que essa totalidade – o sistema capitalista mundial – já se propagou
para toda a superfície terrestre, já se tornou hegemônica em todos os
recantos do globo. O autor da atualidade que expressa com maior clareza e de
forma mais radical essa ideia é Imannuel WALLERSTEIN91, que numa
entrevista jornalística reiterou com veemência esse seu ponto de vista:
“Tanto os economistas neoliberais quanto os desenvolvimentistas tradicionais
sempre acreditaram que o ‘desenvolvimento’ fosse um processo nacional e,
portanto, fundamentalmente dependente das ações realizadas dentro do
próprio país, seja no que se refere a políticas públicas, seja em tudo o que
gira em torno dos valores culturais ou da estrutura social. [Todavia] O
sistema-mundo é estruturado de tal forma que há um eixo centro-
periferia, no qual algumas zonas geográficas produzem bens de alto valor
agregado (de modo quase monopólico) enquanto outras regiões produzem
bens de baixo valor agregado para mercados altamente competitivos. É
impossível, dentro desse sistema, que todos os países tenham o
mesmo padrão de vida, que todos aqueles que hoje são pobres
possam ‘desenvolver-se’ e tornar-se tão ricos quanto aqueles que já
são ricos agora. Alguns Estados podem mudar de posição e subir ou descer
na hierarquia, mas a hierarquia é constante. Os EUA têm sido, ao menos
desde 1945, o poder hegemônico no sistema-mundo. Hegemonias, como
monopólios, nunca duram. Elas se autodestroem. A hegemonia dos EUA tem
apresentado sinais de declínio desde a década de 1970. (...) O sistema-
mundo moderno é a economia-mundo capitalista. Ele teve início no século 16
num segmento específico do planeta: na Europa ocidental e em partes das
Américas. Ele se expandiu geograficamente e inclui todo o planeta desde o
século 19. Vivemos nos últimos 400 anos num único sistema histórico, a
economia-mundo capitalista. Estamos num caminho comum bastante
particular. Esse sistema tem suas regras, suas contradições, seu modo de
desenvolvimento. A economia-mundo capitalista tem sido um sistema
histórico incrivelmente bem-sucedido no que se refere ao que quer fazer, que
é a interminável acumulação do capital. Ela atingiu, em 400 anos, uma
enorme expansão da produção mundial e um incrível avanço tecnológico.
Logicamente, ela também criou uma enorme quantidade de destruição
e de empobrecimento de amplos segmentos das populações
mundial. Um dos princípios básicos da economia-mundo capitalista é
a distribuição desigual da mais-valia. Com o tempo, isso leva a uma
constante polarização – econômica, social e demográfica – do sistema-
mundo.”92
Como se percebe nessa longa citação, não seriam os Estados – nem
qualquer outro fator interno às sociedades: política macroeconômica, iniciativa
empresarial, sistema jurídico-político, traços culturais ou geográficos, etc. – que
influenciariam a sua situação de desenvolvido ou subdesenvolvido, mas sim a
lógica do sistema global. A economia-mundo capitalista se imporia sobre cada
um das suas partes – as economias nacionais, as regiões do globo – e ela
necessitaria engendrar um centro e uma(s) periferia(s), sendo que esta(s)
enviaria(m) ao centro uma parte da mais-valia nela(s) produzida.
Estamos aqui no velho terreno da polêmica sobre o maior peso dos fatores
“externos” ou “internos” para os processos históricos de cada sociedade93 e essa
interpretação minimiza completamente os elementos “internos” e enxerga uma
entidade “externa” onipotente – o sistema-mundo –, que no final das contas seria
a grande (ou melhor, a única) responsável pela situação de maior ou menor
desenvolvimento econômico e social de cada um dos Estados-nações.
É um tipo de percepção que desvaloriza completamente a história
concreta – isto é, as lutas sociais, as estratégias e os projetos deste ou daquele
agente ou protagonista – em prol de uma lógica econômica fantasmagórica e
inexorável, de uma “história” escatológica e sem sujeitos. Além disso ela
também compartilha do pressuposto – ou crença – de que o desenvolvimento de
algumas áreas é um resultado da transferência internacional de riquezas – isto é,
de mais-valia – e que, dessa forma, existiria uma “exploração” das economias
periféricas pelas centrais. Apesar da orientação marxista, essa visão contraria
frontalmente os escritos de Marx, que afinal foi o forjador da ideia de exploração
social fundamentada no trabalho vivo não pago, isto é, na mais valia. Só existe
exploração ou tranferência de mais valia entre pessoas, entre o trabalho e o
capital, afirmou com veemência Marx, e nunca entre regiões ou entre países. Em
sua principal obra, ele enfatizou que: “Já vimos que a taxa da mais valia
depende, em primeiro lugar, do grau de exploração da força de trabalho. (...)
Outro fator importante para a acumulação é o grau de produtividade do trabalho
social. [Assim] um fiandeiro inglês e um chinês podem trabalhar o mesmo
número de horas com a mesma intensidade. (...) Apesar dessa igualdade, há uma
enorme diferença entre o valor do produto semanal do inglês, que trabalhou com
uma poderosa máquina automática, e o do chinês que trabalha com uma roda de
fiar. No mesmo espaço de tempo em que um chinês fia uma libra-peso de
algodão, o inglês consegue fiar várias centenas de libra-peso.”94
Fica implícito nessa citação que a Inglaterra era mais desenvolvida do que a
China não devido a uma transferência de riquezas desta para aquela, mas sim
porque tinha uma tecnologia mais avançada e uma maior produtividade do
trabalho. Isso, para Marx, significava maior quantidade de mais valia relativa e
portanto uma maior exploração do trabalhador inglês em comparação com o
chinês. Para Marx, enfatizando, a Inglaterra era mais rica porque produzia
internamente mais riquezas ou mais valia – e isso mesmo com os operários
ingleses trabalhando a mesma quantidade de horas por semana que os chineses,
ou até mesmo com estes últimos trabalhando bem mais – só que produzindo
menos devido à menor produtividade do trabalho, fruto do menor
desenvolvimento tecnológico.
Aliás, é exatamente por esse motivo que a “revolução social”, para esse
clássico, deveria necessariamente ocorrer primeiro nas regiões mais
desenvolvidas, ou seja, com maior acumulação de capital e portanto com maior
exploração do trabalhoEm todo o caso não é esta a nossa objeção fundamental.
Não será nos escritos de Marx – e sim no confronto com a realidade – que
iremos evidenciar as insuficiências desse tipo de explicação.
 

Motivos do atraso
Se as economias subdesenvolvidas estivessem nessa situação devido à
transferência internacional de mais valia, então uma conseqüência lógica desse
fato é que as áreas ou nações mais “atrasadas” seriam as mais “exploradas”.
Ora, não é isso o que acontece na realidade. As economias mais
subdesenvolvidas do mundo – tais como Serra Leoa, Níger, República
Democrática do Congo, Zimbábue, Chade, Sudão do Sul, Burundi, República Sul-
Africana, Mali, Eritreia, Serra Leoa, Moçambique, Etiópia, Guiné-Bissau, Sudão,
Etiópia e outras –, ao contrário do que pensam alguns, são áreas pouco atrativas
para os capitais dos países desenvolvidos. Possuem baixo volume de comércio
exterior (exportações e importações, tanto de bens como de serviços) e poucas
empresas estrangeiras, às vezes nenhuma. O grande problema delas não é o de
serem “exploradas e sim relativamente “esquecidas”. Isto é, são economias que
não receberam nem recebem grandes inversões de capitais, que não têm
grandes atrativos para as empresas estrangeiras, embora atualmente seja a
China quem mais investe nesses países com vistas a produzir, a baixo custo,
matérias primas para suas indústrias ou alimentos para o gado e para sua
população.
São portanto economias nas quais ainda não há tanta exploração de
riquezas naturais (minérios, petróleo) ou mesmo de riquezas agícolas que visem
abastecer os mercados internacionais. Quando essas economias começam a ser
mais “exploradas”, com investimentos estrangeiros visando extrair petróleo ou
minérios, ou produzir gêneros agrícolas para exportação, na verdade a pobreza
começa a diminuir e não a aumentar. Assim, quando há essa exploração dos
recursos naturais (petróleo, minérios, solos para agropecuária), normalmente são
países com rendas per capita e padrões de vida (expectativa de vida,
mortalidade infantil, índices de escolaridade, etc.) maiores que esses
mencionados, que estão na lista dos mais baixos IDHs do mundo. Estes são
países extremamente pobres que exportam muito pouco para o exterior – o que
eles mais “exportam”, pelo menos nas últimas duas décadas, é emigrantes ou
refugiados. Ah!, exultariam alguns: aí está a “exploração” internacional dos
países ricos, que necessitariam dessa força de trabalho barata para o seu
elevado padrão de vida. Nada disso. Na realidade em grande parte esses
migrantes entram clandestinamente na Europa ou os Estados Unidos, que não
necessitam deles, pois vão contribuir para aumentar as taxas de desemprego.
Em geral, nos dias atuais – desde pelo menos a revolução técnico-científica, com
o avanço na mecanização e na robotização – esses migrantes quase que não
possuem serventia nessas economias avançadas, que têm necessidade muito
mais de força de trabalho qualificada do que de mão de obra barata. Esta última,
aliás, nem é muito possível nesses países devido aos salários mínimos
relativamente elevados e à intensa fiscalização para o cumprimento das
legislações trabalhistas avançadas quando comparadas aos países mais pobres.
Mas e as dívidas externas? Não seriam elas a principal causa do
subdesenvolvimento desses países, como alegam alguns? Também não. Em boa
parte, essas economias mais pobres sequer pagam as parcelas de suas dívidas
externas – quando elas existem – e esses minguados recursos não são de
maneira alguma importantes para o elevado padrão de vida das sociedades
desenvolvidas. A bem da verdade, esses países mais pobres, os de menores
índices de desenvolvimento humano, via de regra mais recebem recursos
financeiros ou produtos – equipamentos, medicamentos, alimentos – de fora,
especialmente a título de ajuda de instituições internacionais, de alguns países
ricos e de algumas ONG’s, do que os enviam para o exterior. O grande empecilho
que existe para seu desenvolvimento não é a (pretensa) lógica do sistema
capitalista e sim suas questões nacionais específicas: guerras civis ou de
guerrilhas; grande diversidade étnica e até de idiomas e culturas, com disputas
pelo controle do poder público ou de certas regiões no país; governos em geral
extremamente autoritários, ineficientes e corruptos; ausência de
empreendedorismo ou mesmo de condições sociais, jurídicas e econômicas que o
possibilitem; etc.
Daí então uma grande parte dos pensadores “de esquerda” nos últimos
anos ter deixado de lado essa ideia de “nações exploradas” – ou mesmo de
classes exploradas para os casos dos desempregados, dos sem teto, dos sem
terra, etc. –, pois para haver exploração (social) é necessário haver trabalho não
pago, ou seja, geração de mais valia. Ninguém é explorado porquê não tem
emprego, terra ou capital. Por isso a noção de “excluídos” – para indivíduos,
grupos sociais, regiões ou povos – é mais adequada para essas situações de
pobreza ou de carência. A categoria “exploração” pressupõe trabalho, atividade
produtiva, extração de riquezas em benefício de outros, ao passo que a noção de
“exclusão” significa apenas não estar incluído, estar à margem de alguma coisa –
seja do trabalho (isto é, da “exploração”), do acesso à escola ou à saúde
gratuítas, do acesso à moradia ou à terra, do acesso à internet (a chamada
exclusão digital), etc.95
Mas se chegarmos até esse ponto – o de falar em “excluídos” e não mais em
“explorados” – então não tem mais sentido afirmar que o desenvolvimento dos
países ricos se faz às custas do subdesenvolvimento das áreas pobres. Pois para
que isso ocorra – isto é o desenvolvimento e o subdesenvolvimento serem faces
opostas e complementares do mesmo processo de acumulação mundial – teria
que haver necessariamente uma efetiva inclusão dessas regiões mais
subdesenvolvidas no sistema global, com enorme produção e exportação a
baixos preços de riquezas, algo que não existe - ou existe numa quantidade
ínfima – nessas economias mais pobres do mundo. O contrário é que é
verdadeiro: os países que mais exportam riquezas (seja petróleo, minérios,
produtos agrícolas ou bens industriais mais simples), são exatamente os que, em
geral, possuem as maiores taxas de crescimento da economia (algo que
possibilita, embora não necessariamente, um desenvolvimento humano ou
social), tais como a China (depois que se abriu para o capitalismo), ou a Índia
(depois que deixou de ser uma economia fechada e realizou reformas no sentido
de desburocratização, diminuição de impostos para produção e exportação,
privatização de empresas estatais ineficientes, incentivos ao empreendedorismo,
etc.), entre vários outros.
 

China e Índia
Pode-se argumentar que nem todos os países periféricos constituem esses
países mais pobres, com os menores IDHs do mundo. Alguns países tidos como
“periféricos” (um termo, por sinal, bastante questionável) exportam grandes
quantidades de minérios, de petróleo, de produtos agrícolas ou até de bens
manufaturados produzidos – pelo menos em alguns casos – com o uso de uma
mão-de-obra extremamente barata. A China, por coincidência – justamente esse
Estado com um governo (mas não uma economia) que ainda se proclama
“comunista” – é desde os anos 1990 a mais importante dessas economias antes
vistas como periféricas e que vêm inundando o mercado mundial com produtos
industrializados variados, produzidos com o uso de uma força de trabalho
“disciplinada” (ou seja, reprimida) e cujos salários são baixíssimos em termos
internacionais.
Tanto o salário mínimo quanto o salário industrial médio na China, apesar de
terem aumentado nos últimos anos, ainda são inferiores até mesmo aos do
Brasil. Mas isso possibilitou à China se tornar no país mais industrializado do
mundo desde 2010, quando superou os Estados Unidos no valor da produção
industrial, e também gerou uma notável melhoria nas condições de vida da
imensa maioria da população: as taxas de mortalidade infantil, a pobreza e a
fome caíram enormemente, o IDH chinês, como já mencionamos, subiu bastante
(era baixo até inícios dos anos 1980, depois se tornou médio e desde 2015 já é
considerado alto). E isso tudo com salários baixos em comparação com os países
desenvolvidos e até mesmo em comparação com países como o Brasil, a
Argentina ou o México. Mas esses empregos industriais, com esses salários
baixos pelos padrões internacionais, são intensamente disputados, pois não
podemos esquecer que até os anos 1980 havia mais de 800 milhões de pessoas
que viviam abaixo da linha internacional da pobreza na China – hoje são menos
de 100 milhões.
Esse mesmo exemplo pode ser, mutatis mutandis, aplicado à Índia. Apesar
de um crescimento econômico (e social) mais recente que a China (ela só
acordou para a necessidade de reformas liberalizantes quando percebeu que seu
vizinho e tradicional adversário estava despontando como uma das maiores
economias do mundo). Apesar dos salários médios extremamente baixos em
termos internacionais, vem com esse crescimento econômico diminuíndo,
embora bem menos que a China, a pobreza e a fome que há décadas (ou
séculos) existem nesse país tão diversificado. E vários outros casos podem ser
mencionados – Indonésia, Turquia, Vietnã, Chile e outros – de países que vêm
tendo um bom ritmo de crescimento econômico nas últimas décadas exatamente
porque se abriram mais (e não porque romperam, como recomendam as teorias
do imperialismo e da dependência) para o capitalismo, para investimentos
estrangeiros e para o comércio externo.
Alguns outros casos, especialmente os “tigres asiáticos”, também
exemplificam essa constatação. Singapura, Coreia do Sul e Taiwan tinham
economias consideradas, no início dos anos 1970, bem menos desenvolvidas que
a brasileira – e com salários médios e rendas per capita mais ou menos
semelhantes ou até menores que os do Brasil. Hoje são países considerados pela
maioria dos especialistas como praticamente desenvolvidos, com salários médios
bem maiores que os do Brasil, com rendas per-capita elevadas (de 65 mil, 32 mil
e 27 mil dólares em 2019, segundo o Banco Mundial, sendo a que do Brasil era
de 9 mil dólares), e com outros invejáveis índices econômico-sociais: elevadas
taxas de escolaridade e inexistência de analfabetismo para a população com
mais de 7 anos de idade, alta expectativa de vida, baixíssimas taxas de
mortalidade infantil, amplo acesso da população em geral à educação, à saúde, à
telefonia, à água tratada, à rede de esgotos, etc. E essa melhoria não foi
conseguida ficando à margem da globalização ou do sistema capitalista
internacional e sim se integrando mais, produzindo e exportando bem mais do
que no passado. E também graças ao combate à burocracia e à corrupção
(especialmente em Singapura, que era considerado até os anos 1970 um dos
países onde mais havia corrupção em todo o mundo). Além da diminuição de
impostos, dos incentivos a investimentos estrangeiros, à produção e à
exportação, o estabelecimento de normais legais que garantem os contratos e
criam um clima de estabilidade, etc.
Ao contrário das explicações alicerçadas no imperialismo ou no capitalismo
como responsável pelo subdesenvolvimento – nas quais uma maior integração da
periferia no sistema global significa uma maior “exploração” e, portanto, maior
pobreza –, esses casos demonstram que a maior integração ao sistema mundial
pode e costuma ser benéfica e inclusive trazer um efetivo desenvolvimento não
apenas econômico, mas também humano ou social. E a bem da verdade não
existe nenhum caso de desenvolvimento, desde que esse processo se iniciou
com a Revolução Industrial, que não tenha ocorrido com forte ligações com o
sistema produtivo mundial, com aumento no comércio externo.
Na realidade só passou a existir desenvolvimento no sentido que
entendemos hoje – com também seu contrário, o atraso ou subdesenvolvimento
– a partir da Revolução Industrial iniciada em meados do século XVIII. Até então
predominavam economias de base agrária e com pequenas desigualdades
internacionais. Comparado com nossa realidade atual, todas as sociedades eram
pobres.96 Havia, evidentemente, pessoas extremamente ricas em comparação
com seus compatriotas (reis, nobreza, grandes comerciantes e proprietários
rurais), embora com baixíssima expectativa de vida frente à imensa maioria da
população mundial da atualidade. Mas não existia de fato nenhuma economia
desenvolvida ou rica. A industrialização, com as máquinas ampliando a
produtividade do trabalho, é que gerou economias que deslancharam, que se
destacaram frente às demais por uma maior produção e diversificação de
riquezas (bens e serviços) por habitante. A pobreza, dessa forma, precede o
desenvolvimento e não é uma decorrência ou um efeito deste.
Mas o desenvolvimento, mesmo impulsionado pela tecnologia e elevação
da produtividade do trabalho, sempre se expande com o intercâmbio com
outras economias. E contrário também é verdadeiro. Ou seja, via de regra os
países mais pobres do mundo são relativamente fechados, com poucos
investimentos estrangeiros e pouco comércio externo. Sem dúvida que
também existiram e existem determinadas injunções internacionais que
atravancam o desenvolvimento de certas sociedades: o colonialismo (que já
não mais existe), o pagamento das dívidas externas (mas que em geral, salvo
exceções, foram recursos desperdiçados e em parte desviados para contas
particulares), as dificuldades que os países desenvolvidos criam para
transferir tecnologia avançada para os países subdesenvolvidos, os capitais
especulativos que desestabilizam algumas moedas nacionais, etc. Mas essas
injunções não são inquebrantáveis; elas apenas dificultam bastante, mas não
impossibilitam, o desenvolvimento das economias menos desenvolvidas.
Afinal, elas também existiram para os “tigres asiáticos”, que bem ou mal,
souberam como superá-las. A dívida externa da Coreia do Sul, por exemplo, já
foi maior que a do Brasil, e esse país asiático também enfrentou enormes
dificuldades para colocar no mercado internacional os produtos que hoje
exporta em grande quantidade: micro-computadores, especialmente chips (é
um dos maiores exportadores mundiais), produtos eletrônicos em geral,
automóveis, aço, navios, etc.
Alguns fatores são extremamente importantes para o desenvolvimento
econômico e social. Primeiro, um Estado eficiente, que tenha uma consistente
e contínua política econômica, que não seja hipertrofiado (isto é, que não seja
um peso ou um parasita para a sociedade) e que se ocupe primordialmente de
algumas atividades básicas (educação, saúde, previdência, lei e ordem,
fiscalização). Segundo, um ótimo sistema educacional acessível à população
em geral, desde o nível básico até as universidades e institutos de pesquisas
científicas e tecnológicas. Complementarmente, uma força de trabalho
qualificada, com elevada escolaridade média. E um sistema legal que garanta
os contratos e o clima de estabilidade, fundamental para o empreendedorismo
e os investimentos. Como também um razoável mercado consumidor (que
pode ser ampliado através da integração em algum mercado regional), o que
significa uma população com elevado nível médio de poder aquisitivo.
Não há mais nenhuma dúvida que o elemento tido hoje como o mais
importante para o desenvolvimento é o chamado “capital social”, isto é, a
população: sua escolaridade, sua cultura, suas condições de saúde e higiene,
seu nível de rendimento e poder aquisitivo. E também o “capital natural” – ou
seja, a conservação e a preservação dos recursos naturais, a preocupação
com a as gerações vindouras – é importantíssimo, principalmente quando se
pensa num desenvolvimento sustentável. E o contrário também é verdadeiro:
os maiores obstáculos ao desenvolvimento econômico e social sustentável
não são tanto os “externos” (dívidas, barreiras às exportações, empresas
estrangeiras) e sim a ineficiência, a hipertrofia, a burocratização e a corrupção
do Estado – e também na sociedade em geral, algo que desperdiça preciosos
recursos. E o descaso para com a educação e a saúde, a negligência frente ao
uso racional dos recursos naturais e a presença de preconceitos e
discriminações (contra as mulheres ou contra determinadas etnias e/ou
grupos sociais ou de orientação sexual), o que implica numa subutilização dos
recursos humanos ao deixar de lado uma enorme parcela da população, ao
impedir ou dificultar seu acesso à educação, ao trabalho ou às decisões
importantes.
 

Os limites ambientais
A questão dos limites ambientais para o desenvolvimento surgiu a partir
de um estudo de 1972, patrocinado pelo Clube de Roma, que foi uma
associação de cientistas, patrocinada por empresários, que surgiu na capital
da Itália em 1968. Essa associação publicou, em 1972, o relatório The limits of
grown [os limites do crescimento], que em síntese afirma que os recursos
naturais do nosso planeta não aguentariam o intenso crescimento
populacional e das atividades humanas, que num meio ambiente finito não
seria possível um crescimento (econômico e demográfico) infinito. Esse
constatação foi violentamente combatida por setores da esquerda que a viam
como uma forma (imperialista) de evitar o desenvolvimento do então
chamado de Terceiro Mundo. Mas no fundo não se pode negar a
impossibilidade de que os 9,6 bilhões de seres humanos projetados para
2050 tenham todos os mesmos níveis de consumo (de água potável, de
eletrodomésticos, veículos, etc.) de um norte-americano médio de 1972 – ou
de hoje, o que seria pior ainda. Não haveria recursos naturais para tanto e as
consequencias ambientais (desmatamentos, perda de biodiversidade,
mudanças climáticas, poluição atmosférica e das águas, etc.) seriam
insustentáveis.
De fato, não é possível um crescimento infinito num meio ambiente finito.
O mencionado estudo patrocinado pelo Clube de Roma, que foi a origem
dessa questão, infelizmente, preocupava-se mais com o crescimento
demográfico numa visão neomalthusiana, e não tanto com o tipo específico de
desenvolvimento, se sustentável ou não. Foi considerada como uma
preocupação “de direita” ou conservadora, embora autores como Celso
FURTADO e Cornelius CASTORIADIS97, dentre outros, se apropriaram dessa
temática dando a ela um colorido “de esquerda” ao deixarem de lado a ênfase
na demografia (afinal, uma criança norte-americana consome em média 35
vezes mais que uma criança indiana e quase 300 vezes mais que uma
africana!) e colocando em pauta a problemática econômico-social (Furtado) e
a questão filosófica do absurdo contido na ideia ocidental e capitalista de
crescimento infinito (Castoriadis). Mas em todos esses estudos existe a
mesma falha básica que comprometeu a tese de Malthus: o não
reconhecimento da inovação tecnológica ou pelo menos uma ausência de
percepção que o sentido da tecnologia sofre mudanças.
Sim, é verdade que seria virtualmente impossível continuar a produzir
mais e mais automóveis, cidades e edifícios, campos de cultivo, estradas, etc.,
numa progressão infinita, pois não haveria espaço físico para isso na
superfície terrestre, a enorme poluição (do ar, das águas, do acúmulo do lixo)
nos sufocaria. E sequer existiriam recursos naturais suficientes: minérios,
petróleo, água potável, solos agriculturáveis. Só que a tecnologia vem
mudando, inclusive em parte graças a esse pioneiro estudo de 1972
patrocinado pelo Clube de Roma, a partir da introdução do conceito de
sustentabilidade. Esse conceito, que se tornou imprescindível para se
repensar o desenvolvimento, surgiu no rasto desse estudo do Clube de Roma,
graças ao chamado Relatório Brundtland98, produzido em 1987 pela Comissão
Mundial Sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, da ONU, chefiado pela
então primeira-ministra da Noruega, Gro Harlem Brundtland, advindo daí o
nome do relatório.
Na época do estudo The limits of grown só se imaginava automóveis
movidos a derivados de petróleo (extremamente poluidores), sendo que hoje
já existem veículos automotivos movidos a eletricidade, como também (em
menor proporção) a hidrogênio, que não ocasionam nenhuma poluição
atmosférica. Naquela época existiam os imensos “cemitérios de automóveis”,
pois não havia o reaproveitamento de materiais que hoje começa a se tornar
regra geral. Naquela época praticamente não existia a coleta seletiva e a
reciclagem do lixo. Nem mesmo se conhecia a “produção intangível”, que hoje
é essencial: os softwares que controlam a temperatura da geladeira, do ar
condicionado ou da água numa máquina de lavar roupas, por exemplo, ou que
controlam a programação num aparelho moderno de televisão. Já em 2000, ao
contrário de 30 anos atrás, cerca de 70% do custo de um automóvel era
formado pela produção intangível; e o PIB norte-americano nesse mesmo ano,
medido em toneladas, era o mesmo que um século atrás, porém, quando
medido em dólares – principalmente devido à produção intangível – era 20
vezes maior99. Isso em 2000; e hoje, em 2020, mais ainda.
Ou seja: todos esses autores – desde os cientistas do Clube de Roma
até Furtado e Castoriadis – não levaram em conta as mudanças tecnológicas,
com a criação e a progressiva implementação de uma tecnologia verde ou
“limpa”100, e muito menos a produção cada vez mais intangível. Eles só
raciocinaram em termos de produção material (por tonelada) e daquela
tecnologia predominante no início dos anos 1970.
Todavia, a implementação da sustentabilidade, ou de desenvolvimento
sustentável, permite um desenvolvimento de todos os Estados nacionais
desde que com base em novos padrões de consumo e de tecnologia “limpa”
ou verde. Como ênfase no transporte coletivo e veículos não mais movidos a
derivados do petróleo, geração limpa de energia (apenas energia solar, eólica,
das marés, geotérmica, hidráulica, etc., com a eliminando as usinas
termoelétricas), completa reciclagem do lixo, eliminação dos plásticos exceto
os que são biodegradáveis, etc. Esse conceito de sustentabilidade,
inicialmente econômico-ambiental, depois se expandiu para abarcar outras
dimensões: social e cultural. Seria um desenvolvimento ecologicamente
correto, economicamente viável e socialmente justo, como também
preocupado em preservar culturas tradicionais ameaçadas pelo avanço da
modernidade. É uma nova concepção de desenvolvimento que não mais tem
como referência o modo de vida dos norte-americanos da segunda metade do
século XX.
Sem dúvida que existem os limites ambientais para o crescimento
econômico. É evidente que se pensarmos em mais e mais toneladas ou
quantidade – de automóveis, de máquinas de lavar, de computadores, de
prédios, de estradas, etc. – então teremos que concluir que essa noção de um
crescimento infinito é um absurdo ambiental e inclusive lógico. Mas a ideia
atual de desenvolvimento não é a de crescimento material – o “mais e mais”
quantitativo a que se refere Castoriadis. E sim de aprimoramento: veículos
automotivos mais seguros, que não poluam a atmosfera e que sejam feitos
com materiais recicláveis e/ou reciclados. Residências mais confortáveis e
“ecológicas”, com o uso de materiais mais adequados e o seu
reaproveitamento, maior uso de vegetação, controle racional via computador,
com menor desperdício de energia ou de água, etc. Menos consumismo e
reciclagem completa do lixo, infovias que, em parte, substituem as estradas
(os produtos que podem ser distribuídos on-line crescem mais que os
tradicionais, que necessitam de uma distribuição física), uso conservacionista
dos recursos naturais, etc.
Mesmo o crescimento populacional, que de fato ainda exerce uma grande
pressão sobre os recursos e também impede que alguns países – os campeões
mundiais de natalidade, hoje em dia localizados mais na África subsaariana e
em partes do mundo muçulmano – tenham uma real melhoria nas suas rendas
per capita e em seus IDHs, tende a se estabilizar e ficar relativamente
estagnado (taxa mundial de nascimentos equivalente à de óbitos) por volta de
2040 ou 2050.
Nesse sentido – isto é, se pensarmos que a ideia de desenvolvimento
não é fixa e imutável e sim constantemente redefinida (inclusive em função
de cada realidade específica: seja civilizacional ou nacional) – não existe um
claro limite ambiental para que todos os povos possam, cada um conservando
os seus valores, serem “desenvolvidos”. Desenvolvidos não no sentido de
todos se tornarem iguais aos norte-americanos pelo seu atual padrão de
consumo ou consumismo, algo absurdo inclusive sob o aspecto da diversidade
cultural. E sim no sentido de poderem alcançar elevados indicadores sócio-
econômicos para a população em geral: elevadas expectativas de vida, baixas
taxas de mortalidade geral e infantil, altos índices de escolaridade, amplo
acesso à água tratada, à rede de esgotos, à eletricidade e à tecnologia
moderna (do computador ao telefone, da internet aos mais avançados
tratamentos médicos e odontológicos), etc.
Seria isso algo impossível, apenas um mito como afirmaram alguns, um
privilégio reservado somente a uma minoria da humanidade? Não há
comprovação disso e a crescente melhoria do padrão de vida médio da
população no mundo – medido pelo crescimento dos índices de IDH de quase
todos os países nas últimas décadas, mostra que isso é possível. Juntamente
com os avanços da tecnologia “limpa” – expansão da geração de eletricidade
com fontes solar e eólica, de veículos automotivos movidos a eletricidade, da
reciclagem do lixo, da proibição do uso de embalagens com plásticos não
biodegradáveis, etc. Não que seja inevitável – basta ver os retrocessos
ocasionados por medidas desastrosas (sempre atendendo a escusos
interesses de empresas petrolíferas, de fabricantes de armamentos, de
madeireiras, de firmas que objetivam lucros imediatos desconsiderando a
sustentabilidade, etc.), implementadas por governos como Trump nos Estados
Unidos, ou Bolsonaro no Brasil, entre outros. E sim que é possível.
É lógico que sempre existiram e provavelmente sempre existirão
defasagens ou diferenças – e até mesmo desigualdades, embora não
necessariamente extremas – entre pessoas, entre regiões e entre povos ou
nações. Mas isso não quer dizer que uma parte do mundo está condenada,
dentro do sistema capitalista mundial, a viver sempre na miséria e no
subdesenvolvimento. Em contrapartida, acreditar que outro sistema dito
“revolucionário” vá produzir uma homogeneização do social (seja no nível
nacional ou – maior absurdo ainda – no plano mundial), é professar o mais
extremo idealismo. É no fundo imaginar outra humanidade, outro ser humano
diferente do que sempre existiu – quem sabe algo semelhante a alguns livros
de ficção científica, nos quais se fabrica, via clonagem, pessoas exatamente
iguais, ou então se realiza uma lobotomia radical em todos os recém-nascidos.
Essa crença é uma das decorrências do Iluminismo com a sua ilusão de
clarear ou espalhar luz para todos os cantos da experiência humana, todas as
as escuridões e injustiças, como se fosse possível uma sociedade humana
transparente de ponta a ponta. Como disse com propriedade Habermas: “Não
duvido de modo algum da influência saudável do pós-modernismo sobre os
debates atuais. A crítica a uma razão que submete o todo da história a uma
teleologia é tão convincente como a crítica à pretensão risível de preparar um
fim para todas as alienações sociais.”101
 

As desigualdades internacionais
Frequentemente veicula-se, seja em livros ou artigos acadêmicos, em
jornais, na internet, ou na televisão, a tese ou julgamento que as
desigualdades internacionais e as sociais estão se aprofundando. Acreditamos
que existe certo mal-entendido neste tema, pois muitas vezes se confunde
desigualdades internacionais com desigualdades sociais. Vamos tentar
destrinçar este quiproquó começando pelas desigualdades internacionais.
Sobre estas, não existe qualquer sustentação nas estatísticas internacionais –
sobre evolução dos PIBs, das rendas per capita ou dos IDHs da quase
totalidade dos países – que estariam se agravando, isto é, que os países ricos
estão ficando cada vez mais ricos em comparação com as nações pobres. O
contrário é que é verdadeiro. Ou seja, vem ocorrendo nas últimas décadas
uma diminuição nas desigualdades internacionais, como iremos demonstrar.
Praticamente todos os países do mundo – ou quase todos, pelo menos
a imensa maioria – conheceram nas últimas décadas uma elevação da
expectativa de vida, uma diminuição das taxas de mortalidade
(principalmente a infantil, que é a mais significativa), um maior acesso –
embora extremamente desigual em termos regionais e sociais – à eletricidade,
à água encanada e tratada, à telefonia, ao saneamento básico, etc. Veja a
tabela seguinte para evidenciar esse fato.

Indicadores sócio-econômicos de alguns países selecionados (I)

  PIB em PIB em Renda Renda IDH IDH


1980 2019 per per em em
 
País (em (em capita capita 1990* 2019
milhões milhões em 1980 em
de de (em 2019
dólares) dólares) dólares) (em
dólares)

EUA 2.587.100 21. 12.553 65.760 0,860 0,920


584.400

Japão 1. 5.263.500 9.466 41.690 0,816 0,915


039.980

Singapura 10.480 372.062 4.500 64,582 0,718 0,935

China 253.230 14,554.300 310 10.410 0.502 0,758

Índia 2.910.800 276 2.130 0,427 0,647


142.010

México 1.258.286 3.290 9.430 0,650 0,767


166.700

Brasil 1.839.758 1.229 9.130 0,611 0,761


237.930

Tanzânia 63.177 448 1.080 0,370 0,528


4.350

Chade 164 700 0,298* 0,401


500 11.314

*Os IDHs só se iniciaram nesse ano de 1990, portanto não existem para 1980. O IDH do Chade só
começou a ser calculado em 2000 (devido a conflitos internos e guerra civil) e foi estimado nesse ano
em 0,298
 
 
 
 
 
 
 
Indicadores sócio-econômicos de alguns países selecionados (II)

  Taxa de Taxa de Expectativa Expectativa Taxa de Taxa de


mortalidade mortalidade de vida em de vida em analfabetismo analfabetismo
País
infantil por infantil por 1980 2019 em 1980 em 2019
mil mil (população (população
(em anos) (em anos)
habitantes habitantes com 15 anos com 15 anos
em 1980 em 2019 e mais) e mais)

EUA 12,6 6,0 73 79 1% 0,2%

Japão 7,4 1,8 76 84 0,2% 0%

Singapura 12,0 2,1 72 83 17,2% 2,7%

China 47,8 6,8 66 77 46% 3,7%

Índia 117,8 28,3 54 69 59,4% 24,6%


México 54,0 12,2 67 75 17,8% 4,7%

Brasil 76,5 12,4 62 76 25,4% 6,9%

Tanzânia 106,9 36,0 50 65 55% 22%

Chade 123,4 69,1 44 54 93% 77%

Tabelas elaboradas a partir de várias fontes:: Banco Mundial. Relatório sobre o Desenvolvimento
Mundial – 1992; e World Development Indicators – 2020; UNDP. Human Development Report – 1993 e
2020.

Como se percebe pelos dados estatísticos desses países selecionados –


dois sempre tidos como países desenvolvidos (EUA e Japão), dois
indiscutivelmente entre os mais pobres do mundo (Tanzânia e Chade) e os
demais cosiderados pobres até pelo menos os anos 1970, mas em
desenvolvimento, seja num ritmo mais lento ou rápido – não é possível
afirmar categoricamente que as desigualdades internacionais estão se
ampliando nas últimas décadas. Cabe realçar que estamos tratando das
desigualdades internacionais – isto é, entre economias nacionais –, e não das
desigualdades sociais (entre pessoas), assunto que deixaremos para examinar
mais adiante.
As estatísticas – não somente desses nove países selecionados, mas
também de praticamente todos os demais – mostram que em geral todas as
sociedades nacionais estão melhorando seus índices de desenvolvimento,
seus IDHs, embora algumas de forma mais rápida e outras lentamente ou às
vezes até conhecendo curtos períodos de retração. Todos os países, nas
últimas décadas, vêm conhecendo melhoras no valor do PIB e da renda per
capita, nas taxas de alfabetização, nos índices de mortalidade infantil, no
acesso à eletricidade e ao saneamento, etc. Não é possível então afirmar que
o desenvolvimento de alguns se faz às custas do maior atraso de outros. Sem
dúvida que esse desenvolvimento é desigual na medida em que alguns o
vivenciam num ritmo acelerado e outros (uma minoria, contudo) ficam quase
estagnados. Mas isso sempre foi normal desde pelo menos o século XVIII, e
essa relativa estagnação, durante alguns anos ou raramente décadas, não
impede que no prazo mais longo eles também conheçam melhorias
econômicas e sociais. Em todos esses casos de retração momentânea ou
relativa estagnação, sempre existem fatores intrínsecos, principalmente
guerras com vizinhos, guerras civis ou guerrilhas que ocasionam grande
mortandade e destruições – casos do Chade, Sudão, Sudão do Sul, Iraque, Irã,
República Democrática do Congo, Síria, Afeganistão e vários outros. E às
vezes também a catástrofes naturais (Haiti). Em todos esses casos existem
governos autoritários, corruptos e extremamente ineficientes do ponto de
vista de políticas macroeconômicas voltadas para promover o
desenvolvimento.
Se levarmos em conta tão somente uma minoria de países ricos e uma
minoria de países pobres, aqueles que ainda têm um IDH considerado baixo
(que abrangem no máximo 12% da população mundial), então talvez
possamos afirmar que as desigualdades internacionais se ampliaram nas
últimas décadas. Mas não a pobreza e a fome, que sem dúvida declinaram
tanto do ponto de vista absoluto (número total de pessoas nessas condições)
como também do ponto de vista relativo (a percentagem das pessoas nessas
condições em relação à população total do globo). Em alguns poucos países
ou regiões a pobreza e a fome aumentaram, mas não na escala mundial e
tampouco nos países extremamente populosos como China, Índia ou
Indonésia, nos quais, ao contrário, esses indicadores vêm declinando
substancialmente.
Examinemos alguns exemplos. A renda per capita dos Estados Unidos era
de 12 553 dólares em 1980 e, em 2019, de cerca de 65.760 dólares, enquanto
essa renda na Tanzânia era de 448 dólares em 1980 e de apenas 1.080
dólares em 2019. Dessa forma, a renda média dos norte-americanos era 28
vezes superior à da Tanzânia em 1980 e 60 vezes maior em 2019.
Chegaremos a conclusões semelhantes se compararmos a evolução da renda
per capita dos Estados Unidos nesse período com países pobres como Etiópia,
Serra Leoa, Chade, Níger ou Afeganistão. Todavia, se fizermos essa mesma
comparação com países como China, Índia, Indonésia, Chile, Turquia, Brasil e
vários outros, que em conjunto abrange muito mais da metade da população
mundial, veremos que o oposto ocorreu: as desigualdades, nestes casos,
diminuíram. A renda per capita da China em 1980 era de 310 dólares — 40
vezes menor que a dos Estados Unidos —, mas, em 2019, era de 10.410
dólares, apenas seis vezes menor que a norte-americana. A renda média dos
indianos era de 276 dólares em 1980 (45 vezes menor que a dos norte-
americanos), ao passo que, em 2019, essa renda já era de cerca de 2 130
dólares, 30 vezes menor que a dos estadunidenses. Ou seja, nesse caso dos
Estados Unidos versus China e Índia, exatamente os dois países mais
populosos do mundo, as desigualdades internacionais, embora ainda sejam
significativas, diminuíram bastante. O mesmo vale para numerosos outros
países do chamado Sul geoeconômico. Vejamos o caso do Brasil: sua renda
per capita em 1980 era de cerca de 1 229 dólares, dez vezes menor que a
norte-americana; em 2014, era de 9 130 dólares, sete vezes menor. Esse
mesmo raciocínio vale, mutatis mutandis, para os valores de IDH – que
incluem índices de educação e saúde, além dos econômicos –, que também
mostram que, para a maioria dos países e da população mundial, as
desigualdades de desenvolvimento diminuíram nas últimas décadas.
Podemos até afirmar, com base em claras evidências, que a revolução
tecnológica e a globalização acasionaram, dos anos 1980 até o presente, um
progresso econômico e social sem precedentes na história da humanidade. E
uma sensível diminuição nos índices de pobreza e fome: em 1980 existiam
1,88 bilhão de pessoas que viviam abaixo da linha internacional da pobreza, o
que equivalia a 42,5% da população mundial; esse número em 2019 havia
caído para 705 milhões ou 9,2% da população mundial102. Em 1990 havia
1,11 bilhão de pessoas passando fome no mundo, ou 20,6% da população
mundial, ao passo que em 2015 essa quantidade de pessoas em situação de
fome tinha caído para 795 milhões (216 milhões a menos), que perfaziam
10,8% da população mundial.103
Nunca antes tinha ocorrido uma diminuição dessa proporção na escala
global em tão curto espaço de tempo. Sem dúvida que esses números ainda
são grandes e até mesmo intoleráveis, mas o que estamos analisando aqui
não é como acabar com a fome e a pobreza no mundo104, e sim a questão das
desigualdades internacionais, as quais, ao contrário do que normalmente se
afirma, estão diminuíndo. E estão encolhendo devido a – e não malgrado ou
apesar de – uma maior integração das economias nacionais no sistema global.
E as economias que ficam para trás são exatamente as menos integradas no
sistema global, isto é, as que recebem menos investimentos estrangeiros, que
quase não possuem firmas estrangeiras em seus territórios, que possuem um
baixíssimo valor de comércio externo, especialmente de exportações, etc.
A globalização, ao contrário do que afirmam alguns105, não gera
invariavelmente pobreza nem desigualdades. Em alguns casos sim, mas no
geral não – pelo menos para a imensa maioria da população mundial. No
balanço final produz muito mais impactos positivos do que negativos.
Evidentemente que também existem perdedores, e não apenas ganhadores,
na globalização e na revolução tecnológica. Inúmeras profissões desaparecem
ou são depreciadas, o mesmo ocorre com regiões inteiras que se empobrecem
devido à inundação a baixos preços de produtos similares aos que fabricam, o
que ocasiona fechamento de empresas locais, desemprego e estagnação.
Existem vários estudos mostrando os efeitos negativos da globalização em
algumas regiões que viviam da fabricação de móveis, brinquedos, calçados,
produtos têxteis, etc., e que se empobreceram devido à importação de
produtos similares a baixos preços. Como também há os casos de locais que
se transformaram para pior em termos ambientais e sociais – com
desmatamentos e poluição das águas, perda de biodiversidade, expulsão de
populações tradicionais, etc. – devido ao “progresso” ocasionado pelo
aumento do turismo ou pela instalação de alguma fábrica que produz para o
mercado externo. Mas sempre há perdedores em qualquer processo histórico-
social, mesmo que este no final implique em desenvolvimento humano. E
essas perdas ambientais não são inevitáveis e sempre poderiam ser obstadas
pela ação do governo regional e/ou nacional, principalmente quando há uma
eficaz mobilização da população local com contatos com a mídia, incluindo-se
os novos meios de comunicações, e pressão sobre políticos. E o fechamento
de empresas, mesmo com inevitáveis perdas de emprego e empobrecimento
local, no final das contas beneficia a maioria da população nacional devido
aos preços mais baixos dos produtos similares. Além disso, há vários
exemplos de locais ou regiões (e pessoas com profissões que vão
desaparecendo ou sendo substituídas por máquinas) que se reinventaram e
voltaram a se desenvolver, inclusive mais que antes, a partir de estratégicas
que mudaram a economia local.
 

As desigualdades sociais
Examinemos agora outro fator importantíssimo no desenvolvimento
social: as desigualdades sociais, ou seja, desigualdades na distribuição da
renda no interior de cada sociedade nacional. Conforme podemos perceber
pelo quadro “Desigualdades sociais em alguns países”, em vários casos –
Estados Unidos, China, Índia, Indonésia e Tanzânia – essas desigualdades se
ampliaram de 1980 até 2018. Mas em outros casos – França, México, Coreia
do Sul, Brasil e Angola – elas até diminuíram no decorrer dessas quase quatro
décadas. Portanto, não se pode afirmar taxativamente que a globalização vem
acentuando as desigualdades sociais (exceto no caso da população mundial
como um todo, que mencionaremos mais adiante), pois estas variam muito
conforme cada sociedade específica e os fatos que explicam essa relativa
concentração ou desconcentração são normalmente internos a cada país.
 

Quadro – Desigualdades sociais em alguns países


País Proporção Proporção Índice Proporção Proporção Índice
da Renda da de da da de
Nacional RN nos Gini* RN nos RN nos Gini*
nos 10% 10% em 10% 10% em
mais ricos mais 1980 mais ricos mais 2018
em 1980 pobres em 2018 pobres
em 1980 em 2018
Brasil 45,9% 0,8% 58,0 42,5% 1% 53,9

EUA 25,3% 2,3% 34,7 30,4% 1,8% 41,1

México 46,3% 1,3% 50,1 36,4% 2% 45,4

China 25,8% 3,5% 35,2 29,4% 2,7% 38,5

Índia 26,4% 3,6% 32,1 30,1% 3,5% 38,5

França 28,5% 2,5% 35,2 25,8% 2,7% 31,6

Noruega 21,9% 3,9% 27,0 21,6% 3,6% 26,9

Coréia do 24,0% 2,6% 31,7 23,8% 2,6% 31,6


Sul

Indonésia 3,5% 3,5% 32,4 29,3% 2,9% 37,8

Angola 40,3% 1% 52,0 39,6% 1,3% 51,3

Tanzânia 27,1% 2,7% 37,0 33,1% 2,9% 40,5

*O índice de Gini é a medida de desigualdade social mais aceita pelas organizações internacionais e
consiste em valores de 0 a 100, no qual o 0 seria uma sociedade onde todos têm exatamente os
mesmos rendimentos e 100 o oposto, uma sociedade onde uma só pessoa concentra toda a renda
nacional. Em resumo, quando maior esse índice, maiores as desigualdades sociais, e vice-versa.
Elaborado a partir de várias fontes: World Bank – World Development Report – 1983 e 2020; e páginas
do World Bank sobre “income share by…”, disponíveis in: https://data.worldbank.org/indicator. Acesso
em 11 dez. 2020.
 

De fato, as razões para essas disparidades – em alguns países há maior


concentração, em outros menor, em alguns a concentração aumentou nesse
período, e em outros diminuíu – são inúmeras e via de regra relacionadas a
fatores endógenos de cada sociedade. Elas são muito complexas e variadas, e
diferentes de um país para outro, além de se alterarem com o tempo, com as
mudanças históricas em cada sociedade. Iremos a seguir mencionar algumas
delas. Primeiro, temos os níveis salariais e de outros emolumentos percebidos
pelas diversas categorias profissionais, tanto no setor privado como no
público, que variam bastante conforme o país. Por exemplo, enquanto os
salários médios mensais para professores do ensino médio no Brasil é de 300
dólares, no Japão é de 3.650 dólares, em Luxemburgo 8,3 mil e na Suíça de
9,1 mil dólares106. E diferenças semelhantes, ou até maiores, existem em
relação a várias outras atividades.
Segundo, os níveis educacionais da força de trabalho, que são
importantíssimos nesta questão pois exercem grande influência nos
rendimentos das pessoas: aquelas com maior nível educacional, em média,
ganham muito mais que as que têm baixo nível de escolaridade. Não por
acaso sociedades onde há um elevado nível médio de escolaridade – Noruega,
Suíça, Suécia, Nova Zelândia, Bélgica, Japão, Coreia do Sul, Finlândia e outros
– são também países com os menores índices de Gini, ou as distribuições
sociais da renda menos concentradas.
Outro fato que vai se tornando cada vez mais importante com o
crescente envelhecimento populacional são as aposentadorias: o sistema
previdenciário influi bastante na distribuição social da renda, pois o número e
a proporção de aposentados vem se expandindo em praticamente todo o
mundo: no Brasil, por exemplo, já são 31 milhões de pessoas (em 2020) ou
15% da população total (ou 30% em relação à força de trabalho total, segundo
dados do IBGE) que vive de aposentadoria. E existem vários outros países nos
quais a proporção de idosos (e de aposentados) é maior ainda. Portanto, o
nível dos ganhos de aposentadoria vai se tornando um elemento fundamental
para a distribuição social da renda em especial nos países onde há um maior
envelhecimento populacional.
A seguir, temos a relação entre inflação versus reposição salarial ou
versus aposentadorias. Em alguns casos os reajustes anuais dos salários (ou
das pensões) não cobrem a inflação do período, tal como ocorria
frequentemente no Brasil nos anos 1970 e 80, por exemplo (ocasião em que a
concentração na distribuição social da renda se agravou enormemente), o que
significa que os assalariados em geral vão tendo seus rendimentos defasados
em relação àqueles que vivem de lucros, de ordenados (diretores de
empresas, por exemplo), de royalties, de juros, de honorários e outros ganhos
diferentes dos salários. Estes ganhos normalmente não são tão afetados pela
inflação porque eles próprios podem aumentar seus preços, honorários,
ordenados, etc. Ou até ganham com a inflação ao investirem volumosas
somas no mercado financeiro ou a subirem os preços de seus bens e serviços
acima da inflação, o que evidentemente depende do tipo de produto ou
serviço (se essencial ou não), se o consumior tem ou não outras opções, etc.
O sistema de impostos também é essencial: a sensível concentração na
distribuição da renda que ocorreu nos Estados Unidos a partir dos anos 1970
(veja o quadro com os dados desse país, que por sinal é o país desenvolvido
com a pior distribuição social da renda) foi resultante, principalmente –
embora não apenas, pois também o sistema financeiro e a liberalidade com
que os CEOs das empresas se dão enormes gratificações, às vezes até quando
a firma está tendo sucessivos prejuízos , contribui para esse processo –, de
governos neoliberais que diminuíram os impostos para as pessoas e as
empresas mais ricas e os mantiveram para a maioria da população e das
demais firmas. Isso com o questionável argumento que essa diminuição iria
acelerar o crescimento econômico porque essa minoria de empresas e
pessoas é que mais investe e, portanto, produz crescimento econômico. O
sistema de impostos, em resumo, pode ser mais regressivo ou mais
progressivo, e isso varia muito conforme o país e conforme o tipo de imposto.
Impostos regressivos são aqueles em que a alíquota diminui à proporção que
os valores aumentam, que foi o que passou a ocorrer nos Estados Unidos. E
tarifas progressivas são aquelas em que a alíquota aumenta à proporção que
os valores sobre os quais incide são maiores, como por exemplo o imposto de
renda no Brasil.
Sintetizando, podemos concluir que não é verdadeira a ideia que o
desenvolvimento capitalista ou a globalização engendrem, necessariamente,
uma crescente injustiça social, com maior concentração na distribuição social
da renda. Com já mencionado, os fatores que normalmente influenciam nessa
questão, em cada sociedade nacional específica, são de natureza endógena
(embora possam ser influenciados por circunstâncias exógenas): o poder de
barganha ou pressão dos diversos agentes econômicos e sociais (sindicatos,
empresas, corporações, instituições...), a relação entre os aumentos salariais
e a inflação, o sistema tributário e fiscal, os níveis das pensões para os
aposentados, o sistema educacional, etc.
O aumento ou a diminuição das desigualdades sociais, dentro das
sociedades nacionais, nesses termos, não é produzido por uma dinâmica ou
lógica capitalista independente das ações humanas, mas sim pelas
estratégias dos diversos atores ou agentes sociais, a começar pelo poder
público, e que variam muito no tocante ao peso específico exercido por cada
um deles, sempre em função do contexto histórico. É por isso que em alguns
períodos uma mesma sociedade pode vivenciar uma concentração na
distribuição social da renda (por exemplo, o Brasil dos anos 1970 e 80), e em
outros períodos pode ocorrer o inverso (como no Brasil a partir dos anos 1990,
quando a inflação – que exercia uma pressão enorme sobre os salários e o
poder aquisitivo da população em geral – foi controlada, e posteriormente
políticas de auxílio governamental aos mais pobres, mesmo sendo populistas
e eleitoreiras, também contribuíram para essa relativa desconcentração na
distribuição social da renda).
Desigualdades sociais na escala mundial
Quanto à questão da distribuição da renda no nível da população
mundial, as evidências parecem sugerir que tem havido concentração nas
últimas décadas, com uma minoria se apropriando de uma parte crescente do
PIB mundial. Mas as evidências aqui são problemáticas e sempre sujeitas a
controvérsias. Vejamos os que provavelmente são os dois estudos mais
representativos ou os mais mencionados entre os que defendem a tese que as
desigualdades sociais globais estão se ampliando. São eles o volumoso estudo
de Piketty e os relatórios da ONG Oxfam, que na verdade surgiram devido ao
sucesso daquele estudo.
O primeiro relatório feito pela ONG britânica Oxfam, baseado em dados
do banco Credit Suisse, afirma que os 1% mais ricos do mundo já possuem,
desde 2016, de metade da riqueza total dos habitantes do globo, ou seja,
praticamente o mesmo que os 99% restantes da população107. Isso seria algo
inédito e teria ocorrido pela primeira vez na história da humanidade. O
problema é que os dados mencionados nesse estudo discordam frontalmente
das estatísticas – muito mais abrangentes e confiáveis – de outras fontes
como a ONU, o Banco Mundial ou o FMI. Se os 1% mais ricos nos Estados
Unidos dispõem de 18,7% da renda nacional, na China dispõem 13,9%, na
Índia de 21,4%, na Indonésia 10,7%, no Brasil 27,6%, na Nigéria 11,4% e em
Bangladesh 15,8%108, e só esses países mencionados em conjunto já
abrangem mais da metade (52%) da população mundial, como é possível que
esse hipotético 1% detenham 50% da renda total do planeta? Como se sabe
que a renda mundial consiste na soma de todas as rendas nacionais, e se em
nenhuma destas os 1% mais ricos possuem mais do que 32% da renda
nacional, evidentemente que não é possível que na escala mundial os 1%
mais ricos abocanhem 50% da renda total.
Contudo, os defensores desse estudo afirmam que estão medindo
riquezas (fortuna acumulada, propriedades) e não apenas renda. Mas não
existem, em nenhum país do mundo, dados confiáveis sobre a riqueza total
dos indivíduos. E o próprio banco Credit Suisse, que forneceu os dados usados
pela Oxfam, admitiu que eles são parciais (abrangem apenas 17 países que
têm informações sobre riquezas, e mesmo assim incompletas, sendo para os
demais países foram feitas extrapolações) e que o estudo sobre distribuição
da riqueza “está apenas na sua infância e ainda pleno de equívocos”. Além
disso, essa ONG se notabiliza por constantemente procurar estar em
evidência na mídia: há anos que, no dia da abertura de toda reunião do Fórum
Econômico Mundial, em Davos (Suíça), invariavelmente ela lança um novo
estudo mostrando que as desigualdades estão se ampliando, e sempre conta
com ampla cobertura pela mídia (televisão, jornais, revistas e sites na net).
Em 2018, por exemplo, lançou um novo relatório exagerando a afirmação
anterior e afirmando que agora os 1% mais ricos dispõem de 82% da riqueza
global (e não mais 50%) e que apenas 42 bilionários possuem juntos um nível
de riqueza maior que metade da humanidade.109
Esses supostos estudos da Oxfam, na realidade, mesmo alcançando
ampla repercussão pela mídia tradicional – que, afinal, sempre divulga
notícias sensacionalistas e que vão sensibilizar o público, qualquer que seja a
sua natureza, e esse tipo de mídia quase nunca assume alguma autocrítica
frente a notícias falsas que divulgou anteriormente – não foram levados a
sério pelos institutos de pesquisas econômicas e até alguns jornais ou revistas
liberais (que nos países anglo-saxônicos são tidos como de esquerda)
predominaram as críticas.110 Mas são críticas não por questionarem que as
desigualdades sociais em geral estão aumentando, e sim pela metodologia
não científica e pelas estatísticas extremamente duvidosas.
Mas a volumosa pesquisa de Thomas Piketty, de 2013, o primeiro a
mostrar que as desigualdades sociais são enormes e em geral estão se
ampliando, foi elogiado por eminentes economistas, até por alguns
ganhadores do prêmio Nobel. Esse economista francês com certa inspiração
marxista (embora nuançada), percebível até no título da sua obra, realizou
durante anos um estudo sobre o tema com farto material histórico,
abrangendo três séculos, sobre as desigualdades de riquezas (rendimentos e
fortuna acumulada) em 20 países, onde chegou à conclusão que as
desigualdade tendem a aumentar, mas de forma alguma com dados tão
extremos como nos referidos estudos da Oxfam.111
Piketty não se arriscou a especular sobre a distribuição da riqueza na
escala global, mas sim em países selecionados e onde há estatísticas
confiáveis. Ele afirmou, por exemplo, que no pais que era considerado o mais
democrático e meritocrático de todos, os Estados Unidos, os 10% mais ricos já
dispõem de 50% da renda nacional, enquanto 90% da população, que seriam
os trabalhadores, ficam com os restantes 50%. E no tocante a riquezas em
geral (e não apenas rendimentos), a desigualdade seria ainda maior, com os
1% de "super ricos" ficando com cerca de 35% do patrimônio norte-
americano, e os 10% mais ricos com 70% dessa riqueza total.
Ele concluiu que, ao contrário da tese predominante que afirma que o
desenvolvimento acarreta melhoria na justiça social (isto é, que os países
mais pobres têm uma pior distribuição de riquezas, e à medida em que se
desenvolvem essa distribuição vai ficando menos concentrada), no século XXI
vem ocorrendo uma crescente concentração na distribuição da renda apesar
do acelerado desenvolvimento econômico global. Ele admite que essa tese foi
verdadeira durante grande parte do século XX – e de fato, quando se examina
estatísticas sobre distribuição social da renda ou sobre o índice de Gini nos
diversos países, percebe-se facilmente que, em sua imensa maioria, os países
subdesenvolvidos têm piores índices que os países desenvolvidos –, mas que
deixou de ser desde pelo menos o início deste século devido a maior
valorização da remuneração do capital em relação à taxa de crescimento da
produção. Em suas palavras:
“A primeira [conclusão] é que se deve sempre desconfiar de qualquer
argumento proveniente de determinismo econômico quando o assunto é a
distribuição da riqueza e da renda. A história da distribuição da riqueza
jamais deixou de ser profundamente política (...) A segunda conclusão,
que constitui o cerne deste livro, é que a dinâmica da distribuição da
riqueza revela uma engrenagem poderosa que ora tende para a
convergência [isto é, para melhor distribuição] ora para a divergência, e
não há qualquer processo natural ou espontâneo para impedir que
prevaleçam as forças desestabilizadoras, aquelas que promovem a
desigualdade.”112
Analisando quais são essas forças de convergência e de divergência que
influem nessa questão, o autor assinala que o principal mecanismo de
convergência, que reduz as desigualdades, é a difusão do conhecimento e a
formação e qualificação da mão de obra, em suma a expansão da educação. E
o principal fator de divergência, ou concentração na distribuição de riquezas,
seria o seguinte:
“Quando a taxa de remuneração do capital excede substancialmente a
taxa de crescimento da economia – como ocorreu durante a maior parte
do tempo até o século XIX e é provável que volte a ocorrer no século XXI –,
então, pela lógica, a riqueza herdada aumenta mais rápido do que a renda
e a produção. Basta então aos herdeiros poupar uma parte limitada da
renda do seu capital para que ele cresça mais rápido do que a economia
como um todo. Sob essas condições, é quase inevitável que a fortuna
herdada supere a riqueza constituída durante uma vida de trabalho e que
a concentração de capital atinja níveis muito altos, potencialmente
incompatíveis com os valores meritocráticos e os princípios de justiça
social que estão na base de nossas sociedades democráticas
modernas.”113
Após procurar demonstrar sua tese central, que a distribuição da riqueza
tende a se concentrar quando os ganhos financeiros superam o crescimento
da produção, com numerosos dados no volumoso livro114, ele sugere que
deveria haver algum grau de cooperação internacional no sentido de taxar
mais os ganhos com capital (isto é, os ganhos apenas financeiros e que não
visam produção) e ao mesmo tempo investir mais e melhor em educação. Ele
insiste ainda na necessidade de valorização dos impostos progressivos
especialmente sobre ganhos do capital (e logicamente também sobre
heranças). Dessa forma, é um estudo plausível e alicerçado em dados
confiáveis, e as desigualdades sociais, mesmo que tenham diminuído em
vários países nos últimos anos ou décadas, provavelmente estão mesmo se
ampliando na escala global devido ao fato dessa concentração estar
ocorrendo nos países mais populosos e com maiores rendas nacionais (China,
Estados Unidos, Índia, Alemanha, além de vários outros com PIBs menores
como Nigéria ou Bangladesh ), que, em conjunto, perfazem a maioria da
população e da renda mundiais.
E as propostas ou apelos de Piketty para acordos internacionais para
limitarem ou taxarem os capitais especulativos voltados para lucros imediatos
e que não produzem bens nem serviços – que de fato geram instabilidade,
depreciam algumas moedas nacionais e ocasionam crises como a de 2007-8,
além de produzirem estagnação ou até regressão temporária em alguns
países – são plenamente aceitáveis. Mas, como assinalaram vários
especialistas, são também idealistas tendo-se em vista as dificuldades em
discernir capitais especulativos e produtivos, além do predomínio da
realpolitik nas relações internacionais, com cada Estado preocupado com seus
interesses específicos. E suas recomendações de investir mais e melhor na
educação, e também de enfatizar impostos progressivos, mesmo não sendo
novas (há décadas que muitos insistem nisso), são importantes e realistas.
A questão das desigualdade sociais, contudo, possui outras vertentes ou
frentes de discussão, em especial a econômica (suas relações com o
desenvolvimento), a política (suas relações com a democracia) e a ética ou
moral (se a desigualdade é per se imoral). Vamos iniciar com a questão
econômica.
Desenvolvimento, desigualdades e democracia
Alguns argumentam que as desigualdades sociais estão aumentando em
países de rápido crescimento, como a China ou a Índia, exatamente porque
esse processo seria inerente ao crescimento econômico, com abertura para o
empreendedorismo, isto é, com a permissão (pois antes eram economias
fechadas e burocratizadas) ou inventivos para as pessoas inovarem, para
investirem e abrirem seus negócios. Isso geraria desigualdades não pelos
pobres estarem ficando mais pobres, como querem alguns, e sim pelo fato de
que uma minoria está ficando bem mais rica e se destacando em relação à
maioria. Mas essa minoria no fundo estaria até mesmo auxiliando a maioria
pelo fato de iniciarem mais empreendimentos que expandem a produção e a
oferta de empregos. Argumenta-se, com base em dados fiáveis, que os pobres
estão ficando menos pobres – isto é, suas rendas médias e o seu poder
aquisitivo vêm crescendo, e a pobreza absoluta e fome crônicas estão evias
de se extinguir na China e diminuindo bastante na Índia.
Portanto, o crescimento das desigualdades na distribuição de riquezas
nesses países onde há um sensível crescimento da economia (bem superior
ao crescimento demográfico) nos últimos anos ou décadas – conjunto no qual
pode-se também incluir vários outros países além de China e da Índia:
Indonésia, Filipinas, Bangladesh, Nigéria, Vietnã, Camboja, Turcomenistão,
Tajiquistão, Myanmar, Turquia, etc. – não seria um problema, mas, pelo
contrário, algo louvável na medida em que está produzindo diminuição da
pobreza e da fome, além da expansão de empregos que, mesmo com baixos
salários, são positivos em relação às ainda menores remunerações que essa
força de trabalho percebia anteriormente.
Lembra-se ainda dos “tigres asiáticos”, nos quais até os anos 1980
predominavam baixos salários médios em termos internacionais, mas que
hoje são praticamente países desenvolvidos, com IDHs muito altos. Esses
baixos salários, dessa forma, seriam importantes para atrair investimentos.
Porém, quando a economia já tinha se expandido bastante, a subida dos
salários (tal como vem ocorrendo ultimamente na China) torna-se
fundamental para o crescimento do mercado interno. Os exemplos citados são
bem fundamentais e plausíveis – e inclusive reforçam a famosa tese de Simon
Kuznets, prêmio Nobel de economia em 1971, que afirma que as
desigualdades são maiores nas economias mais pobres e tendem a diminuir
com o crescimento econômico, tal como ocorreu com os “tigres” e com vários
outros países na segunda metade do século XX. O problema é saber se esse
exemplo também ocorrerá nos países mais pobres que também estão ou
tendem a crescer economicamente e que, em geral, têm governos
extremamente autoritários. Pois no final das contas o aumento dos níveis
salariais, dos quais em geral depende a maioria da população, são sempre
decisões políticas – nas quais se incluem, evidentemente, as lutas sindicais e
as pressões sobre o poder público. São estas que determinam eventuais
aumentos superiores (ou não) em relação à inflação. Mas o mercado também
exerce grande influência, pois a força de trabalho não consegue substanciais
aumentos salariais em situações onde há excesso de trabalhadores
disponíveis. E quando a legislação barra ou dificulta enormemente as
demissões, a economia deixa de ser atrativa para os investimentos.
O desenvolvimento consiste, afinal, numa série de indicadores sócio-
econômicos, que inclusive vão além do IDH (embora o incluam) na medida em
que este não mede sustentabilidade e tampouco direitos democráticos ou de
cidadania plena. Direitos ou liberdades que hoje não se restringem aos
tradicionais direitos civis, políticos e sociais, mas se alargam cada vez mais
com a invenção e inclusão (a partir de lutas, evidentemente) dos direitos
ambientais (inclusive das árvores e dos animais), da igualdade entre gêneros
e etnias, do combate às discriminações culturais, regionais, de orientação
sexual e outras.
Expansão das liberdades sim, e igualdades também, porém, com limites
na medida em que o igualitariasmo ingênuo é pernicioso para o social: ele
atravanca a democracia e o desenvolvimento. A igualdade é um ideal
importante e defensável, mas complexo e pleno de nuances. Igualdade em
relação a que? Se respondermos “em relação à renda ou à propriedade”,
então estaremos criando uma desigualdade em relação às oportunidades, aos
talentos e competências de cada um, pois para lograrmos aquele tipo de
igualdade teremos que limitar a liberdade, ou seja, teremos que reprimir os
mais talentosos, os mais criativos e inclusive os mais produtivos. E se
respondermos “igualdade em relação às oportunidades” – algo
inquestionavelmente democrático, pois não limita a liberdade –, então
teremos que admitir que alguns vão se sobressair frente aos demais.
O problema aqui, cabe repetir, é o de definir os limites aceitáveis para as
desigualdades e não pretender ingenuamente acabar com elas, algo que
numa sociedade complexa só pode ser tentado – apenas tentado, pois nunca
é de fato conseguido – às custas da supressão da democracia, o que significa
que alguém – uma pessoa, um grupo, um partido – vai exercer o poder de
forma totalitária.
Existe assim um cotejo complexo entre desigualdades sociais e
democracia. Alex de Tocqueville já assinalava, no século XIX, a relação entre
democracia e certa igualdade social que seria imprescindível para que as
instituições democráticas funcionem bem. Não há dúvida que todos os países
plenamente democráticos são desenvolvidos e vice-versa, ou seja, não há e
nunca houve nenhum país efetivamente desenvolvido que não seja uma
democracia. E todos países democráticos possuem uma distribuição social da
renda não muito concentrada quando comparada à maioria dos países mais
pobres – a única exceção são os Estados Unidos nas recentes décadas, a partir
dos anos 1970, quando as desigualdades começaram a subir no país.115
Amartya Sen, prêmio Nobel de economia (embora sua formação acadêmica
seja em matemática e filosofia) e um dos idealizadores do IDH, demonstrou
duas verdades essenciais: que o desenvolvimento não apenas pressupõe, mas
consiste mesmo numa expansão das liberdades ou dos direitos democráticos,
e que é impossível uma igualdade em todos os aspectos116. Uma igualdade
total elimina a liberdade e vice-versa, uma liberdade total gera enormes
desigualdades.
É fácil perceber que, no mundo real, e não na imaginação de autores
como Rousseau (o primeiro a enfatizar essa questão) ou Marx (no fundo um
seguidor de Rousseau neste aspecto), as pessoas nascem desiguais – tanto
física (herança genética, biotipo) como em termos de meio social. Este último
significa não apenas maior ou menor riqueza, mas também ou principalmente
os valores culturais, pois a família é a instituição que mais influencia na
educação (no sentido amplo) de uma pessoa117. E com o transcorrer da vida
de cada um – suas diversas experiências de vida, de maior ou menor
aproveitamento e evolução educacional, de empenho e iniciativas, de
produtividade, de desenvolvimento de talentos, habilidades e competências,
etc. – essas diferenças podem diminuir (em alguns casos) ou até se agravar
(na maioria), mas sempre existem.
A própria vigência de liberdades democráticas conduz a uma certa
desigualdade na medida em que as pessoas e os grupos são desiguais nas
suas potencialidades, nas suas necessidades, no seu valor de barganha para a
sociedade, na criatividade ou nas formas de luta. E tentar impor uma
igualdade total através da única forma possível, qual seja, de cima para baixo,
pela repressão através de um regime não democrático – um partido único no
poder (ou um líder carismático) que diz representar os trabalhadores ou o
povo –, como foi demonstrado ad nauseam pelas experiências históricas, é
algo que sempre resulta em privilégios abusivos para alguns, que mandam e
desmandam de forma arbitrária, que usam em seu proveito pessoal os bens
tidos como públicos.
 

As desigualdades são imorais?


Existe ainda a questão moral suscitada pelas desigualdades sociais. Essas
desigualdades são intrinsicamente imorais? Essa problemática existe de forma
latente desde pelo menos o século XIX, com a Revolução Industrial e o
trabalho exaustivo (inclusive feminino e infantil) que predominava nos atuais
países desenvolvidos. Nessa ocasião, alguns – mas não Marx, que, como
vimos em suas análises do colonialismo, pouco se importava com o aspecto
moral da violência e da exploração e as avaliava em função tão somente do
(pretenso) “sentido da história” – acusaram o capitalismo de ser imoral
porque inevitavelmente geraria exploração social e desigualdades. Foi uma
polêmica de natureza mais religiosa, que pouco prosperou na medida em que
existem vários entendimento do que é moral, e para alguns (como os
protestantes em geral, especialmente os puritanos) o capitalismo é inclusive o
mais moral de todos os sistemas porque liberta o trabalhador da servidão e
acarreta uma liberdade para que qualquer pessoa possa prosperar. E o
trabalho visando acumular bens, ou os empréstimos a juros, ao contrário da
visão que predominou na Europa durante séculos, passaram a ser vistos como
positivos e não mais como pecaminosos e imorais.
Além disso, como observaram alguns autores neste século – quando
novamente se questionou a moralidade do capitalismo após sua aparente
“vitória” com o final do “mundo socialista” –, a moral diz respeito a atos
humanos, a deveres de cada pessoa no sentido de viver corretamente e fazer
o bem, não tendo sentido avaliar a moralidade de um sistema econômico, que
por definição seria amoral (e não imoral) assim como a genética (na qual
pode-se fazer clonagens questionáveis do ponto de vista ético) ou a física (a
partir da qual pode-se fazer armamentos atômicos)118.
Em síntese, poderíamos questionar, por exemplo, a moralidade de
pessoas que exploram mão de obra (semi) escrava, ou que fazem
empréstimos a juros abusivos e ilegais, mas nunca um sistema de mercado,
de propriedade privada e livre iniciativa – ou mesmo qualquer outro sistema
socioeconômico em si. Seria o mesmo que taxar de imoral uma sociedade dita
primitiva ou selvagem que pratica o canibalismo, prática que, por sinal, foi
extremamente comum para os nossos antepassados mais remotos. Isso
consistiria numa atitude etnocêntrica (ou anacrônica) de julgar outras
sociedades ou épocas pelos nossos atuais valores e costumes. Evidentemente
que isso muda completamente se for o caso da prática do canibalismo em
nossa sociedade atual, algo que seria não apenas imoral, seria intolerável,
ilegal e sujeito a severa punição.
Esta questão da moralidade, agora muito mais das desigualdades sociais
e nem tanto do capitalismo, voltou à tona novamente a partir do mencionado
livro de Piketty e dos numerosos demais trabalhos que vieram no seu rasto,
principalmente os “estudos” bombásticos da Oxfam. Isso devido ao enorme
interesse (e indignação) suscitado pela constatação do elevado grau das
desigualdades e de sua suposta tendência a se ampliar ainda mais. Um
filósofo que abordou esse assunto concluiu que, mesmo sendo favorável ao
combate às desigualdades sociais extremas (com as que existem em seu país,
os Estados Unidos), não acredita que esse problema seja intrinsicamente
imoral. Ele afirmou que: “Centrarmo-nos na desigualdade, que não é em si
mesma censurável, é interpretar mal o desafio que estamos na verdade a
enfrentar. A principal preocupação deveria ser reduzir tanto a pobreza como a
riqueza excessivas. Tal poderá de fato implicar a diminuição da desigualdade.
Mas esta não pode ser, por si só, nossa ambição essencial. (...) Do ponto de
vista da moralidade não é importante que todos tenham o mesmo. O que é
moralmente importante é que todos tenham o suficiente. Se todos tivessem
dinheiro suficiente, não seria relevante nem constituiria preocupação saber se
alguém teria mais que os outros.”119
A questão das desigualdades sociais, dessa forma, não deve ser um
problema per se. Elas são inevitáveis e inerentes a qualquer sociedade
complexa e com grande efetivo populacional. E amiúde constituem um
inventivo para a competição, que, dentro da ética e da legalidade
democrática, é sempre saudável para a inovação, para o crescimento da
economia e mesmo para o desenvolvimento de competências e habilidades
das pessoas, ou seja, para o aprimoramento pessoal de cada um. O problema
maior é o combate à pobreza e à fome, o combate às exclusões de vários
tipos, tais como em relação ao acesso a sistemas educacional e de
atendimento médico-hospitalar no mínimo razoáveis, à água tratada, ao
saneamento básico, a um nível adequado de alimentação e de conforto, etc.
Existindo tudo isso para todos, não tem qualquer sentido moral e tampouco
econômico combater os que se sobressaíram ficando mais ricos, desde que
isso tenha ocorrido dentro da legalidade democrática (sem privilégios, sem
apadrinhamentos ou o uso do poder público para fins particulares), e por
empreendimentos nos quais recursos foram arriscados (dinheiro, tempo e
inteligência) e que acabaram dando certo. Pois estes de alguma forma
inovaram e criaram novas opções de consumo, de lazer, de entretenimento,
de bens (tangíveis ou intangíveis) ou de serviços. E normalmente criaram
também empregos, contribuindo enfim para o desenvolvimento.
O que se deve combater veementemente são as injustiças, e não as
desigualdades em si. Não é inaceitável que uma pessoa ou grupo fique
milionário ou até bilionário com base num empreendimento tecnológico que
vingou, por exemplo; ou que criou, desde um pequeno mercado, uma rede de
supermercados; ou ainda que fundou uma fábrica que, com o tempo e
dedicação, se transformou numa empresa multinacional com inúmeras
indústrias espalhadas por vários países. O inaceitável e até escandaloso é
alguém que enriqueceu à custa de privilégios, de instrumentalização da
legalidade para fins privados, sempre contrariando o princípio democrático de
todos iguais perante a lei. Vemos frequentemente estes casos, por exemplo,
em juízes da suprema corte poderem ter duas ou mais aposentadorias
públicas, com valores elevadíssimos, quando isso é interditado à imensa
maioria da população, que só pode ter uma aposentadoria no sistema público
com um limite (baixo) de valor; ou de políticos ou dirigentes de empresas
estatais que, com associação ou no mínimo conivência com governantes, se
apropriam de recursos e empresas públicos; dos que se enriquecem com
agiotagem; dos CEOs que se dão aumentos, gratificações e bônus milionários,
às vezes até em épocas de crise e sem contrapartida para os trabalhadores
das empresas que dirigem.
 

A modernidade é ocidental?
Seria a modernidade – e, portanto, também a noção de desenvolvimento –
uma ideologia ou um projeto de dominação ocidental? Alguns autores vão nessa
direção, afirmando que “a ideologia do desenvolvimento”, vista como uma nova
roupagem da modernidade e da secular ideia de progresso, não passa de uma
forma de dominação ocidental e capitalista sobre os demais povos do planeta. O
subdesenvolvimento, nas palavras de um importante arauto dessa visão, seria
basicamente “Esse olhar, essa palavra do Ocidente, esse julgamento sobre o
Outro, decretado miserável antes de o ser, e assim se tornando porque foi
irrevogavelmente julgado. O subdesenvolvimento é uma denominação
ocidental.”120.
Esse autor ainda complementa que: “A industrialização, filha da
ocidentalização, vê seu destino fortemente ligado ao da sua mãe. O fracasso da
industrialização provoca o fracasso da ocidentalização, já que a participação
concreta na ‘cultura ocidental’ supõe um direito de ingresso de 10 mil dólares
per capita. O fracasso se traduz pela inserção apenas das elites na modernidade
do Ocidente, enquanto as massas são marginalizadas. A modernidade como
projeto societal está em crise.”121
Essa interpretação tem um fundo de verdade. Não há dúvida que a
modernidade nasceu no Ocidente, na Europa ocidental, e depois se
espalhou pelo resto do mundo, embora com diferenças e/ou adaptações,
enfrentando resistências e inclusive se redefinindo em função destas.
Também é fato que a noção de desenvolvimento, que se popularizou após a
Segunda Guerra Mundial, representa uma nova versão da modernidade e
da ideia de progresso, que surgiu apenas no século XVIII. Só que isso não
significa que não sejam valores universais, inclusive porque até as
populações mais pobres e carentes almejam um maior padrão de vida,
almejam as condições materiais propiciadas pelo desenvolvimento. Um
conhecido historiador resumiu isso muito bem: “O progresso é uma ideia
tardia na história mundial. Ela não existia antes do século 18. O século 19
foi o da dominação da ideia de progresso, em particular tecnológico,
industrial e político. Depois, veio o terrível século 20, duas guerras
mundiais, o Holocausto, os gulags, o que se passa na África, e deixamos de
acreditar no progresso. Mas eu penso que o progresso é ao mesmo tempo
um fato e uma necessidade fundamental do espírito humano.” 122
Existem sem dúvida um enorme exagero no entendimento da
modernidade e do desenvolvimento como como ideais exclusivos da
civilização ocidental. Originários sim, mas nunca exclusivos, pois hoje são
ideais reproduzidos ou às vezes reelaborados em praticamente todo o
mundo. Apesar disso, há ainda em afirme que a democracia e os valores a
ela associados representariam tão somente um “cavalo de Tróia” que o
Ocidente usa para dominar outras culturas. 123 Esquece-se que sempre
ocorreram trocas culturais na história da humanidade, influências
recíprocas entre civilizações, e que o próprio Ocidente capitalista
incorporou inúmeros conhecimentos e conquistas de outras culturas: do
direito romano à matemática indiana através dos árabes, da filosofia e da
lógica gregas à bússola e à pólvora chinesas. Como assinalou Claude Lévi-
Strauss, o “progresso” da humanidade sempre consistiu num jogo em
comum, numa coligação entre diferentes culturas 124 . Só que isso implica
numa aparente contradição, pois por um lado esse jogo em comum ou essa
troca poderia resultar numa homogeneização, mas, por outro lado, a
diversidade cultural é uma pré-condição para o progresso 125 .
É por esse motivo que as instituições internacionais, a começar
pela ONU e pela UNESCO, dentre outras, costumam ter um duplo objetivo:
o de preservar a diversidade e ao mesmo tempo expandir determinados
valores ou atitudes – como a democracia e os direitos humanos, a
preservação de patrimônios históricos e ecológicos, e o acesso à ciência e
à tecnologia moderna – que são ou estão se tornando universais. As
inúmeras culturas ou civilizações são diferentes e esse fato é enriquecedor
para a humanidade. Mas não é verdade que o desenvolvimento social ou
que a democracia – processos relativamente distintos mas que no final das
contas são inseparáveis – sejam atributos exclusivos do Ocidente. Somente
se os concebermos de uma forma demasiado restrita é que eles poderiam
ser vistos dessa forma: a democracia tão somente como o sistema liberal
anglo-saxônico e o desenvolvimento apenas como a reprodução do estilo
de vida norte-americano. Mas esse entendimento estreito deixa de lado o
avançar do desenvolvimento (e da democracia) em países como o Japão,
Cingapura, Coréia do Sul, Costa Rica, Índia e outros. E também não enxerga
que o progresso material e determinadas liberdades democráticas são
realidades ou aspirações antigas e possíveis de serem achadas, guardadas
as devidas diferenças e proporções, em diversas civilizações e em vários
momentos da história.
E hoje em dia o desejo de dispor de mais liberdades individuais
(mesmo não esquecendo o coletivo), o ideal de igualdade social
(especialmente de oportunidades), a criatividade e a invenção de novos
objetos e técnicas, a vontade de debelar inúmeras doenças e viver mais, a
possibilidade de dispor de um conhecimento cada vez mais amplo sobre o
mundo, o esforço no sentido de produzir mais alimentos, de dispor de
melhores meios de comunicações, etc., são valores encontráveis em várias
culturas. Talvez não em todas, e tampouco da mesma forma ou com a
mesma expressão. Mas sem dúvida que esses valores existem hoje em
praticamente todas as “grandes culturas” da atualidade: a ocidental, a
islâmica, a japonesa, a oriental-confucionista, etc.
 

O desenvolvimento é nacional ou local?


Podemos colocar ainda a seguinte dúvida: o desenvolvimento é um
fenômeno nacional ou regional e/ou local? Não se trata de uma interrogação
meramente retórica e sim o diálogo com um grande número de autores,
inclusive geógrafos, que enfatizam a região ou a localidade. Um conhecido
economista japonês chegou a dizer que o desenvolvimento nacional é uma
abstração, que o crescimento econômico e social não ocorre no nível da
economia nacional e sim em determinadas regiões – Tóquio e Osaka, para o
Japão; São Paulo, para o Brasil; o Norte da Itália, para aquele país, etc. –, que
em muitos casos seriam até mesmo atrapalhadas pela necessidade de
subsidiar outras regiões “acomodadas”. Em suas palavras: “Meu argumento é
simples: num mundo sem fronteiras [globalizado] o interesse nacional
tradicional – que se tornou pouco mais do que um manto para o subsídio e a
proteção – não tem um lugar significativo. (...) Para os Estados-nações e,
especialmente, para os seus líderes, a questão básica continua sendo a
proteção – de territórios, recursos, empregos, setores industriais e mesmo da
ideologia. Em contraposição existem as zonas econômicas naturais do mundo
sem fronteiras, que denomino ‘Estados-regiões’: unidades geográficas como o
norte da Itália, o Alto Reno, o País de Gales, a Bay Area de San Francisco na
Califórnia e outras. Essas regiões possuem uma capacidade (relativamente)
irrestrita de explorar extensamente os quatros ‘Is’ da economia global
[investimentos, indústria, informação e indivíduos (consumidores)].”126
E inúmeros economistas, geógrafos e sociólogos prestam assessoria a
este ou aquele município com vistas a promover o seu “desenvolvimento”,
que é entendido como algo essencialmente local. Existe um elemento de
verdade nessa perspectiva, mas existe também certo viés unilateral. Sem
dúvida que podemos, com uma estratégia adequada, “desenvolver” ou
melhorar bastante os indicadores sócio-econômicos (e até mesmo
determinadas liberdades, mas sempre com limites traçados pela realidade
nacional) de uma região ou de um município específico. Mas o território
nacional ainda é o locus determinante na realidade do desenvolvimento.
É fato que a noção de desenvolvimento pode ser aplicada às diversas
escalas ou níveis espaciais. Podemos dizer, por exemplo, que a Europa é mais
desenvolvida do que a África (escala inter-continental) ou que a Europa
Ocidental é mais desenvolvida que a Oriental (escala das “grandes regiões”
no plano continental). Como podemos também afirmar que o Norte da Itália é
mais desenvolvido que o Sul desse país, ou que o Sul do Brasil é mais
desenvolvido do que o Nordeste (escala regional propriamente dita, das
regiões internas a um Estado-nação). E podemos igualmente dizer, numa
escala local, que o Município de Jundiai, em São Paulo, é mais desenvolvido do
que o Município de Fernando Falcão, no Maranhão. Em todos esses casos
estamos tomando como base uma série de indicadores econômico-sociais:
produção econômica total e renda per capita, distribuição social da renda,
escolarização, nível e expansão do atendimento médico-hospitalar,
expectativa de vida, índices de mortalidade geral e infantil, percentagem da
população com acesso à água tratada e à sanitarização, número de
computadores e de acesso à internet por mil habitantes, e até mesmo o
usufruto de determinadas liberdades – de ir e vir, de votar sem
constrangimentos, de poder falar em público ou publicar livremente as suas
ideias, etc.
Só que a escala privilegiada na questão do desenvolvimento é a
nacional, a do território sob a soberania de um Estado. Desde o final do século
XVIII – e desde as obras clássicas de economia política, de Adam Smith, David
Ricardo e outros, que no fundo apenas retratavam uma realidade que se
impunha – que a produção econômica é entendida e praticada na
competência dos territórios nacionais. Não há nenhuma dúvida que no
passado isso já foi diferente: os impérios ou as cidades-Estado da antiguidade
clássica, os feudos da Idade Média, as repúblicas na época do Renascimento,
etc; todavia, em todos esses períodos ainda não havia a ideia de
desenvolvimento, que como já mencionamos é contemporânea da
modernidade e em especial da Revolução Industrial127.
Cabe recordar que foi a partir da Revolução Industrial – e não antes, com
o colonialismo do século XVI, como imaginam alguns – que essa diferenciação
entre desenvolvidos e subdesenvolvidos, tal como entendemos hoje,
começou a ocorrer. É lógico que a colonização também contribuiu para criar
essas diferenças, mas o fator primordial foi quem acompanhou a
industrialização clássica – e ampliou com máquinas a produtividade do
trabalho – e quem ficou para trás. No caso da África subsaariana, a região
mais pobre do mundo, a colonização dificultou sobremaneira o deslanchar das
economias ao criar fronteiras arbitrárias e acirrar diferenças étnicas e tribais
que até hoje continuam a entravar o desenvolvimento de vários países nessa
região. Mas tanto o padrão de vida médio das diversas regiões do globo, como
as desigualdades entre elas, eram extremamente baixos em comparação aos
atuais.
Segundo estimativas históricas de Angus Maddison, consideradas as mais
confiáveis a respeito da renda per capita dos diversos continentes, no início
do século XVIII a Europa pouco se destacava frente à Ásia, e todo continente
Americano, incluindo Estados Unidos e Canadá, tinham um nível de vida
semelhante, com poucas diferenças. Mesmo o Japão, que depois se tornou
desenvolvido, pouco se destacava de seus vizinhos asiáticos. A África já
estava um pouco atrasada em relação à Europa (por motivos mais internos),
mas as diferenças internacionais eram irrisórias comparadas às que
começaram a ocorrer com a industrialização de alguns países.128 O atraso ou
subdesenvolvimento, cabe reforçar, é anterior ao desenvolvimento e não um
subproduto deste.
Talvez num futuro não muito distante a economia nacional poderá
ocupar uma posição secundária frente à escala continental com o avanço dos
mercados regionais, que às vezes também caminham no sentido de uma
união política. Ou mesmo frente às escalas regional e/ou local, com uma
(eventual) abertura sem limites de todas as economias nacionais. Todavia,
malgrado as proclamações exageradas de autores como Kenechi Ohmae e
outros129, essa não é a realidade atual. O Estado-nação e a economia nacional
continuam a ter um papel preponderante e o desenvolvimento ainda ocorre e
é determinado na escala do território nacional. Mesmo que tenha perdido uma
parte de sua soberania – em alguns lugares menos e em outros mais (como na
União Europeia, por exemplo, ou muito mais nos “Estados falidos”) –, o Estado
nacional ainda detém um poder hegemônico sobre as forças armadas e a
guerra (ou o estado de sítio), a moeda e o sistema financeiro, os impostos
(pelo menos a maior parte deles), as relações exteriores, etc.
Exemplificando: apesar de o Brasil possuir alguns municípios com
elevados padrões de vida, ou até algumas micro-regiões relativamente ricas,
como a chamada de “Califórnia paulista”, ele ainda é um país
subdesenvolvido e essas áreas privilegiadas não são autônomas e sim
dependentes de todas as injunções políticas, econômicas e culturais do Estado
nacional. Ou seja, das migrações internas, do poder público federal (e
estadual) ineficiente, do sistema de impostos arcaico, da moeda que se
desvaloriza constantemente, etc. E o mesmo se dá no caso dos países
desenvolvidos, por exemplo em algumas localidades considerados pobres nos
Estados Unidos ou na Alemanha, que apesar de terem relativamente baixas
rendas per capita, às vezes menores que a de alguns locais do Brasil ou da
Argentina, estão localizadas em economias nacionais poderosíssimas (nas
quais podem pleitear subsídios) e a sua população afinal está integrada num
espaço nacional democrático dentro do qual pode circular à vontade.
Por sinal é exatamente este o elemento fundamental nessa questão da
escala privilegiada do desenvolvimento: o controle sobre a circulação da força
de trabalho, que é antes de tudo praticado nas fronteiras nacionais, embora
no caso (único) da União Europeia ele já tenha sido extendido para os limites
do bloco. Mesmo neste caso peculiar da União Europeia, essa liberdade de
circulação da força de trabalho é obstada por fatores culturais tais como o
idioma e até os preconceitos contra trabalhadores estrangeiros,
especialmente de determinados países que fazem parte do bloco e em
determinadas atividades. Mas na hipótese de um espaço mundial sem
fronteiras nacionais, sem nenhuma forma de controle sobre as migrações
internacionais, parece evidente que uma parte significativa das populações
dos países subdesenvolvidos, especialmente os mais jovens, iria se transferir
para as economias desenvolvidas, o que ocasionaria uma (relativa)
homogeneização social na escala planetária.
NOTAS FINAIS

Os marxistas das primeiras décadas do século XX,


assim como boa parte dos socialistas e dos anarquistas
dessa época, viam a escalada de guerras que sucedia em
seu tempo como algo lamentável, porém, auspicioso ou até
"progressista" por ocasionar mudanças políticas e sociais
radicais. Fiéis aos bordões utilizados por Marx e Engels – tais
como “não se faz omelete sem quebrar ovos” ou “a
violência e as guerras representam as dores do parto da
revolução” –, eles imaginavam que as guerras imperialistas
poderiam significar o "último estertor" do capitalismo. Sua
derradeira crise antes de se tornar superado
historicamente, antes do triunfo do socialismo. Devemos
transformar essas guerras inter-Estados em guerras civis,
em guerras de classes, proclamaram vários teóricos da
Segunda e mesmo da Terceira Internacional.
Alicerçando essa forma de percepção,
principalmente para os marxistas, existia (e ainda existe
para muitos) todo um entendimento teleológico da história:
a sucessão de "modos de produção" até se chegar ao seu
último estágio com o "comunismo" (tendo no "socialismo"
um período de transição); o "proletariado" como classe
destinada a (ou com a "missão" de) revolucionar o
capitalismo e construir uma sociedade sem classe, sendo,
portanto, um sujeito histórico pré-determinado e redentor; o
visível otimismo quanto ao futuro, que seria transparente e
inequívoco apesar dos percalços do presente,. A teoria do
imperialismo, como vimos, partiu dessa filosofia da história,
operando, entretanto, um deslocamento no eixo pré-fixado
da "revolução": do proletariado dos países desenvolvidos
passa-se às nações subjugadas pela dominação
imperialista.
Mas a grande preocupação não foi redirecionar o
sentido do desenvolvimento social e tecnológico, nem
mesmo a de alterar profundamente os mecanismos
institucionais de poder. A principal aspiração foi a de trocar
quem está no "comando", isto é, substituir os capitalistas e
seus “lacaios" (os governantes) pela "vanguarda do
proletariado" organizada sob a forma de um partido. O
resultado foi o que se viu: burocracias oriundas dos partidos
comunistas se apropriando do poder público que se torna
todo poderoso, o que eliminou não as desigualdades e sim
as liberdades que existiam, mesmo poucas, que enfim
reprimiu violentamente toda e qualquer forma de oposição
e de crítica, seja na política, na cultura, nas artes ou nos
meios de comunicações. Mas no fundo não eliminou as
desigualdades sociais e muito menos a exploração da mão
de obra, desde que esta seja entendida como trabalho
exaustivo, disciplinado e com baixa remuneração. E o fato
de, nessas economias planificadas, muitas vezes se
substituir dinheiro (tão exorcizado) por vales ou cupons,
nunca escondeu a espoliação, principalmente porque
sempre havia falta de bens e serviços nas lojas comuns, a
que a maioria da população tinha acesso (mas não nas lojas
especiais, destinadas apenas a certos membros do partido),
advindo daí enormes e constantes filas para as pessoas
adquirirem suas pequenas cotas de pão, leite e outros
produtos básicos.
A economia centralmente planejada e burocratizada,
ao eliminar a concorrência entre empresas e com isso
limitar a inovação tecnológica, produziu um sistema que
não conseguiu acompanhar as transformações das
economias de mercado ou capitalistas. Estas geraram
sucessivas revoluções tecnológicas, desde aquela iniciada
no início do século passado, com o taylorismo, o fordismo e
a produção em massa, que inegavelmente expandiram o
consumo e a qualidade de vida da população, até
principalmente a revolução técnico-científica iniciada em
meados dos anos 1970, que alargou ainda mais a distância
entre os países que nela embarcaram e aqueles que
permaneceram com suas economias fechadas,
burocratizadas e pouco dinâmicas. Somente a volta à plena
integração no sistema capitalista mundial – com o retorno
dos investimentos estrangeiros, das empresas privadas e da
busca de lucros, além da expansão do comércio externo – é
que possibilitou o rápido crescimento econômico (e social)
da China, e a posterior recuperação da Rússia com base na
superexploração de petróleo e gás natural visando suprir o
mercado europeu, principalmente, e os mercados da China,
Turquia e Coreia do Sul.
A situação mundial dos nossos dias, desde pelo
menos o mundo da guerra fria (e mais ainda com o seu
final), leva indubitavelmente a uma profunda revisão nessa
teoria finalista e etapista da história e nas categorias nas
quais se fundamenta: proletariado, revolução socialista,
comunismo, imperalismo, modo de produção, exploração
baseada na mais valia, etc. Se abordamos aqui apenas a
questão do imperialismo – e não esses demais conceitos,
todos questionáveis – é porque imperialismo, no marxismo
dominante a partir da terceira década do século XX, foi a
principal categoria a partir da qual as relações e as
desigualdades internacionais eram entendidas.
O futuro do social nunca é transparente ou legível
com clareza – a não ser parcial e aproximadamente em
alguns aspectos, como nas prováveis mudanças
tecnológicas, ou nos prováveis crescimentos demográfico e
econômico –, mas mesmo assim sempre com
probabilidades, ou cenários possíveis, e nunca certezas.
Cenários que têm por base as tendências passadas e
presentes, e quase nunca levam em conta (exceto como
especulações) possíveis mutações radicais que, por
definição, são imprevisíveis.
Já não há mais dúvidas que as desigualdades
internacionais de uma forma geral ou para a imensa maioria
dos países não estão se ampliando. Elas estão de fato
encolhendo, pelo menos desde o início dos anos 1980 até
2019. As estatísticas internacionais referentes ao PIB, à
renda per capita e principalmente ao IDH de cada país
mostram isso claramente. Essas desigualdades crescem
apenas em certas circunstâncias ou períodos, e geralmente
para aquele pequeno conjunto de nações com os piores
índices de IDH do mundo. E mesmo assim, uma vez
solucionados problemas de governos extremamente
corruptos com economias fechadas, estatizadas e
burocratizadas, e/ou de guerras civis ou com vizinhos, de
catástrofes naturais, etc., eles acabam deslanchando tal
como ocorreu por exemplo, com a Etiópia, que neste século,
de 2001 até 2019, vem conhecendo um crescimento
econômico anual médio de 8,9% ao ano, ou com Uganda
(8,1% ao ano no mesmo período)130, entre outros exemplos
de países com baixos IDHs e que estão crescendo a um
ritmo bem superior ao dos países desenvolvidos. Isso
mostra que não tem mais sentido procurar entender as
desigualdades internacionais a partir de categorias como
imperialismo, exploração entre nações ou mesmo centro e
periferia vistos como realidades inescapáveis e
necessariamente reproduzidas pelo sistema global.
Quanto às desigualdades sociais na escala da
população mundial, as evidências sugeram que em geral
estão se agravando. Mas não devido a uma lógica
inexorável do capitalismo e sim por processos internos nas
principais economias (com PIB e rendas nacionais mais
elevados) do mundo, como Estados Unidos, China, Índia,
Japão e outros. No entanto, em vários outros países – na
França, Noruega, México, Coreia do Sul, Bélgica, Países
Baixos, Finlância, Malásia e até no Brasil – essas
desigualdades sociais, medidas pelo índice de Gini,
diminuíram desde os anos 1980 até pelo menos 2019, ano
dos últimos dados disponíveis131.
E os motivos para essa dinâmica concentradora ou
desconcentradora são antes de tudo internos – e ligados a
decisões políticas, como já vimos – e não a alguma lógica
inerente ao capitalismo global ou a uma pretensa
exploração de alguns países por outros. Esses fatores
internos são variados e normalmente conjunturais. No caso
dos Estados Unidos foi principalmente o sistema fiscal e
tributário que se tornou mais regressivo. E nos casos da
China e da Índia isso se deveu à abertura das economias,
com incentivos à produção, à inovação e ao
empreendedorismo, diminuição de impostos e de burocracia
para produzir e exportar, incentivos aos investimentos
estrangeiros, etc., que resultaram num forte crescimento
econômico com notável enriquecimento de uma minoria –
inclusive, infelizmente, de políticos ou membros do partido
no poder que se apossaram ou viraram sócios de firmas que
foram privatizadas ou que foram criadas com fortes
subsídios estatais. Mas esse processo não prejudicou a
maioria da população desses países, que também se
beneficiou com a inegável progressiva elevação no seu
padrão médio de vida, nos seus valores de IDH.
Isso significa então que o capitalismo é eterno, que a
globalização é inevitável e sempre benéfica, ou que não há
mais bandeiras de luta para se construir um mundo melhor?
É evidente que não. Nada é eterno e nenhum processo
histórico-social, por mais que beneficie a maioria, deixa de
produzir perdedores e empobrecimento em certas áreas ou
categorias sociais. O capitalismo, em toda a história da
humanidade, parece ter sido o sistema socioeconômico que
produziu os melhores resultados em termos de progresso
econômico e social-humano. Ele elevou a expectativa de
vida das pessoas, diminuiu os índices de mortalidade geral
e infantil, produziu mais bens e serviços per capita do que
em qualquer época anterior – ou frente ao sistema que se
dizia alternativo, o socialismo real. Mas capitalismo não se
reproduz da mesma forma em todos os países: lutas sociais
e decisões políticas modificam vários aspectos do sistema
socioeconômico. O modelo japonês, como se sabe, é
diferente do anglo-saxônico, que por sua vez é diferente do
brasileiro. E sem dúvida que o modelo capitalista
socialdemocrático dos países nórdicos é bem superior ao
anglo-saxônico no tocante à igualdade, à segurança e à
qualidade de vida das pessoas.
É evidente que ainda persistem e às vezes se agravam
inúmeros problemas nacionais e globais, que cada vez mais
se entrelaçam nesta crescente interdependencia. Desde
problemas políticos – por exemplo, o enfraquecimento da
democracia em alguns países, ou a sua total ausência em
inúmeros outros. Ou o notável número de refugiados a cada
ano devido a guerras locais, grupos guerrilheiros ou
governos extremamente repressivos. O crescimento dos
preconceitos e até dos fundamentalismos em especial nos
países que recebem muitos imigrantes e/ou refugiados a
cada ano. Até os problemas econômicos, tais como, por
exemplo, os indecorosos ganhos financeiros com capitais
especulativos que muitas vezes ocasionam instabilidades
que impactam a economia real. Ou os os aumentos salariais
e gratificações que os CEOs de bancos e empresas em geral
se concedem todos os anos, sem contrapartida para os
trabalhadores. Ou os funcionários públicos de alto escalão,
especialmente no Brasil e em outros países com democracia
bastante falha e incompleta, que criam para si escandalosos
privilégios como aumentos nos salários já altíssimos
(maiores até que nos países desenvolvidos) superiores à
inflação, mesmo em épocas de crise ou de regressão da
economia, além de gratificações diversas, auxílio-moradia
mesmo para quem já reside no local de trabalho, férias de
60 dias, possibilidade de várias aposentadorias com
recursos públicos e com valores acima do máximo permitido
à maioria da população, nepotismo e compadrio na
ocupação de cargos públicos, etc. Ou os políticos que
desviam para contas particulares preciosos recursos
públicos – seja pela supervalorização de obras e serviços,
seja pela colocação de parentes ou amigos (ou deles
próprios) em cargos de decisão nas diversas instituições e
empresas públicas com a visível finalidade de se
apropriarem de parte das receitas. Ou da persistência – e
até agravamento, em alguns casos – da pobreza absoluta e
da fome em boa parte da África subsaariana e em alguns
poucos países de outras regiões. Ou os enormes
desmatamentos nas florestas tropicais, a poluição do ar e
das águas e o constante empobrecimento da biodiversidade
no planeta, fatos que comprometem a qualidade de vida
desta e principalmente das futuras gerações.
Mas isto tudo só será conseguido a partir do
enfrentamento dos variados governos autoritários,
ineficientes e corruptos, das economias fechadas e
burocratizadas, e não de um combate contra o “sistema
capitalista”, como este se fosse um sujeito histórico cuja
ação produziria os problemas de cada país. Enfatizar a luta
contra abstrações como o “capitalismo”, a “globalização” ou
o “imperialismo”, é embater contra moinhos de vento, é um
posicionamento político-ideológico que, consciente ou
inconscientemente, desvia as atenções das verdadeiras
causas dos problemas econômicos, sociais e ambientais,
sejam estes nacionais ou globais. É afinal fazer o jogo dos
privilegiados, que não raramente repercutem esse tipo de
discurso panfletário e pseudocrítico, no fundo inócuo para
os seus interesses. Pois sabem que se trata de uma cortina
de fumaça para obnubilar o esclarecimento sobre as
verdadeiras causas das desigualdades, da pobreza ou da
fome, das baixas condições de vida nos países nos quais
mandam e desmandam.
Hannah Arendt demonstrou, com muita perspicácia,
que os momentos verdadeiramente revolucionários – nos
quais a maioria da população conquista ou expande direitos,
amplia enfim o espaço da democracia – nunca são
promovidos pelos “revolucionários profissionais”, aqueles
que decoram cartilhas marxistas ou anarquistas e se
autointitulam vanguarda do povo ou dos trabalhadores. São
produzidos pela ação mais ou menos espontânea das
massas que lutam por conquistas pontuais e não por uma
“revolução” que como num passe de mágica mudaria tudo
de uma hora para outra.132
Essas conquistas democráticas não se inscrevem no
esquema da substituição de um modelo ou sistema por
outro, tal como apregoam os “revolucionários profissionais”,
que no fundo somente desvirtuam os processos
revolucionários com vistas a assumirem a sua liderança.
Mas consistem na criação de novas práticas, as quais
aperfeiçoam, expandem, redirecionam ou recriam processos
que já existem, mesmo que embrionariamente, no atual
estado de coisas. São conquistas, enfim, de direitos
trabalhistas, dos consumidores, de moradia e infraestrutura,
de liberdade de expressão e de crítica, de gênero ou de
etnias, de um meio ambiente sadio e outros.
A utopia de implementar através de uma
“revolução” um sistema socioeconômico totalmente diverso,
outra sociabilidade diferente da atual, “uma outra
globalização” na qual não existam perdedores nem
excluídos, outra economia na qual não mais exista a
competição, a propriedade privada ou o lucro, nunca é o
produto espontâneo das massas. E sim uma doutrina que
alguns intelectuais apregoam com base na leitura de
autores dos séculos XVIII e XIX – ou de algum autor recente
que apenas glosa, simplifica ou tenta atualizar suas ideias. E
quando esses intelectuais conseguem chegar ao poder com
promessas altissonantes e irrealizáveis, o resultado é o
totalitarismo, a submissão do social ao Estado comandado
por um só partido que pretende deter o controle sobre tudo
mesmo que carregado de “boas intenções”. Isso é inevitável
na medida em que contraria a complexidade da ordem
social moderna e até os valores mais arraigados no seio da
população em geral.
A propósito de como o ideal utópico com frequência
resulta em totalitarismo, Foucault descreveu bem um
exemplo desse tipo: “Eu diria que Bentham [o inventor do
Panapticon] é o complemento de Rousseau. Na verdade,
qual é o sonho presente em tantos revolucionários? É o de
uma sociedade transparente, ao mesmo tempo visível e
legível em cada uma de suas partes; que não haja mais nela
zonas obscuras (...) ou desordem; que cada um do lugar que
ocupa possa ver o conjunto da sociedade; que os corações
se comuniquem uns com os outros; que os olhares não
encontrem mais obstáculos, que a opinião reine, a cada um
sobre cada um.”133.
A ação política, como ensinaram vários mestres como
Maquiavel, Gramsci ou Foucault, é antes de tudo
estratégica. Isso quer dizer que ela se insere numa relação
de forças e não na aplicação pormenorizada de uma
doutrina ou um esquema pré-existentes. Tampouco existe
um sujeito específico destinado a fazer uma “revolução” ou
promover uma mudança radical. Esta resulta sempre de um
encadeamento de acasos e necessidades sempre
particulares: as confrontações entre forças diversas e
desiguais, repartidas por campos diferentes e às vezes
opostos. Afinal, “Os objetivos, os interesses, as vontades, as
representações das diversas facções empenhadas na luta,
(...) tudo isso desempenha o seu papel. A estratégia global
só aparece a posteriori como encadeamento dos riscos e
das partidas perdidas ou ganhas, como sequência de
acontecimentos.”134
Lutas no sentido de constantes conquistas pontuais
são de fato necessárias. Para se controlar os fluxos
internacionais de capitais especulativos, que desestabilizam
inúmeras economias nacionais. Para equacionar as dívidas
externas de alguns países extremamente pobres, cujo
pagamento consome a cada ano recursos preciosos. Para se
combater as epidemias ou pandemias – como a da AIDS, ou
mais recentemente a do novo coronavírus, e outras que
certamente virão –, que matam dezenas de milhões de
pessoas todos os anos, em especial nas regiões menos
desenvolvidas e entre as camadas mais pobres das
populações. E isso não poderá ser feito sem um
enfrentamento com a poderosa indústria de medicamentos,
para o barateamente de medicamentos e/ou vacinas. Para
apregoar uma concórdia, uma coexistência pacífica entre
civilizações, entre etnias e culturas diferenciadas (algo
fundamental na África subsaariana e no sul da Ásia),
combatendo assim todas as formas de fundamentalismos,
que no final das contas se reproduzem – em maior ou menor
proporção – em todas as grandes culturas e religiões. Para
buscar uma solução aos intermináveis conflitos que
suscitam guerras permanentes no Oriente Médio, em várias
partes da África, no sul da Ásia e em outras regiões do
globo. Para expandir os direitos democráticos – mas sem
imposições neocolonialistas – em todos os recantos da
superfície terrestre: direitos das mulheres, das crianças e
dos idosos, de etnias e culturas minoritárias em certas
sociedades, de orientações sexuais diferentes da
heterossexual, dos camponeses sem terra, dos indígenas,
etc. Para buscar soluções viáveis contra a degradação da
natureza e a intensa poluição ocasionada pelo modelo
econômico e tecnológico dominante, que ainda tem por
base fontes de energia não renováveis, o amplo uso de
plásticos não biodegradáveis, o consumismo com o
crescimento na produção do lixo, o desperdício no uso da
água potável, a pesca predatória nos rios, mares e oceanos,
etc. Como também com vistas a um mundo mais
interdependente e com maior liberdade de circulação das
pessoas (e não apenas dos capitais) e que ao mesmo tempo
conviva com e respeite as diferenças e promova
determinados valores universais tais como, por exemplo, a
democracia e os direitos humanos. Isso tudo são conquistas
possíveis – e que, em boa parte, já estão até sendo
conseguidas, pelo menos em vários lugares – e não uma
enganosa utopia de fazer uma “revolução contra o capital”.
Não se trata mais do embate do trabalho contra o
capital e sim de uma nova hegemonia no sentido
gramsciano: legitimar determinados valores democráticos e
pluralistas que possibilitem um mundo sem pobreza
absoluta nem fome, com desigualdades aceitáveis e que
não sejam resultado de negócios escusos ou apropriação
dos bens públicos por alguns, com proteção das áreas
florestais, dos mares e oceanos e manutenção da
biodiversidade, com a proteção de culturas tradicionais
ameaçadas pela macdonaldização. Mas não existe modelos
ou caminhos pré-estabelecidos e muito menos um sentido
unívoco para a história. Se qualquer projeto e estratégia
democráticos têm necessariamente que levar em conta a
escala global ou planetária, o seu ponto de partida ainda é
o nível local e/ou nacional. Na imensa maioria dos casos,
sua base de ação será a escala local, embora sempre
levando em conta as determinações e as influências
recíprocas frente à escala nacional, na qual se decidem as
grandes questões que impactam toda a população do
país. Sem dúvida que hoje a internet e as redes sociais
possibilitam diálogos com outros povos – basta
lembrarmos da suas influências na “primavera árabe” –,
mas as mudanças ocorrem mesmo no nível nacional como
esse mesmo exemplo mostra em seus diferentes
resultados nos países onde ocorreu: na Tunísia, no
Marrocos, no Egito, na Síria, na Líbia, etc.
Mas é uma ilusão, inclusive perigosa, imaginar uma
sociedade sem desigualdades nem relações de poder. As
relações de poder e as desigualdades são inerentes a
qualquer agrupamento de pessoas, a qualquer sociedade
humana. Assim, nunca iremos alcançar o “paraíso” no
sentido de um sistema totalmente transparente e sem
contradições e atritos. As diferenças e alteridades, que
são enriquecedoras para a humanidade e devem ser
preservadas, sempre poderão conduzir a choques e
enfrentamentos. A única alternativa que conhecemos hoje
para minimizar os conflitos e as relações bastante
assimétricas de poder – mas nunca elimina-los
completamente – é a constante expansão e reinvenção da
democracia. Mas esta não é uma utopia no sentido de
uma realidade outra já pronta ou esquematizada, e sim
um processo que pode e deve ser constantemente
aprimorado.
Democratizar as relações internacionais, que sempre
foram marcadas pelo predomínio dos interesses das
grandes potências, algo extremamente difícil mas não
impossível. Democratizar as inúmeras sociedades nas
quais diversas formas de autoritarismo ou até
totalitarismo ainda imperam. Abrir mais canais ou fóruns
de diálogo entre as civilizações, culturas e religiões,
combatendo os diversos fundamentalismos. Expandir o
sentido e a prática dos direitos humanos ou de cidadania,
para neles incluir os demais seres vivos e as condições
que garantam um meio ambiente sadio. Tudo isso é
importante e ao mesmo tempo insuficiente. E são projetos
difíceis de operacionalizar, pois cabe reconhecer que
devido a alguns valores arraigados, eles podem contrariar
os anseios da maioria da população em determinadas
sociedades.
Tais ideais poderão soar como demasiadamente
limitados e frustrantes para aqueles acostumados com as
promessas grandiloquentes contidas nas teorias do
“sistema mundial” ou do imperialismo como etapa última
do capitalismo, onde com o seu final estariam
solucionados todos os principais males da humanidade.
Em contrapartida, poderão soar como idealistas e
ingênuos para os que encaram o mundo em termos
“realistas”, nos quais as injustiças, as desigualdades
extremas, os conflitos e as guerras, as discriminações
variadas e a dominação incontestável da humanidade
sobre a natureza, vista como mero instrumento, seriam
inescapáveis e inerentes à “natureza humana”. Talvez um
desses dois lados tenha razão e o final do capitalismo
produziria um “paraíso” neste mundo, ou então existiria
uma “natureza humana” imutável e sempre agressiva e
plena de discriminações contra os “outros”. Mas, no final
das contas, preferimos a esclarecedora fala de Riobaldo,
personagem criado por Guimarães Rosa em Grande
sertão: veredas:
 
“O real não está na saída nem na chegada, ele se
dispõe para a gente é no meio da travessia”.
 

São Paulo, dezembro de 2020


Notas

[←1]
Veja-se, por exemplo, o badalado livro de NEGRI, A. e HARDT, M.
Império. Rio de Janeiro, Record, 2000, talvez o mais representativo do
conjunto de obras que propaga essas ideias mesmo que utilizando a
categoria “império” no lugar de “imperialismo”. No final do capítulo 2
faremos um exame mais detalhado das proposições destes autores.
[←2]
Cf. FOUCAULT, M. Microfísica do Poder, Rio de Janeiro, Graal, 1979,
pp.209-227.
 
[←3]
Sobre essa nova concepção de tempo com a modernidade, cf. THOMPSON,
E. P. Tempo, disciplina de trabalho e capitalismo industrial. In: Costumes
em comum. SP, Cia das Letras, 2005.
[←4]
FOUCAULT, M. - Microfisica do Poder, Rio de Janeiro, Graal, 1979.
[←5]
Cf. MARTINS, J. de S. O Cativeiro da Terra. 9ª. edição revista e ampliada. SP,
Editora Contexto, 2010.
[←6]
LEFEBVRE, Henri. Espacio y Política. Barcelona, Peninsula, 1976, pp.139-
140.
[←7]
CLASTRES, Pierre. Arqueologia da Violência, São Paulo, Brasiliense, 1992,
pp. 58-60.
[←8]
Para evitar mal-entendidos, cabe esclarecer que disciplinamento, no
entendimento foucaultiano que adotamos, é um exercício do poder não
apenas e nem principalmente repressivo. Por exemplo: a escolarização é
disciplinadora (em termos de preparar direta ou indiretamente força de
trabalho, de inculcar nacionalismo e outros valores culturais, inclusive a
concepção de espaço e tempo mercantilizados), mas isso não impede que
seja extremamente progressista ao promover difusão do conhecimento e
ao contribuir para desenvolver competências e habilidades que vão
ampliar a qualidade de vida das pessoas.
[←9]
Apud BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar. Cia das Letras,
1986.
[←10]
WALLERSTEIN, I. - O Capitalismo Histórico, São Paulo, Brasiliense,
1985, p. 39.
 
[←11]
LUXEMBURGO, R. - A acumulação do Capital. Rio de Janeiro, Zahar,
1976, pp. 399-410.
 
[←12]
SALAMA, P. e MATHIAS, G. - O Estado Superdesenvolvido, São Paulo,
Brasiliense, 1983, pp. 38-43.
[←13]
Essa ideia de relações não capitalistas sendo toleradas ou até reproduzidas
pela acumulação capitalista são de Rosa Luxemburgo. Elas foram aplicadas
e até retrabalhadas no Brasil rural por José de Souza Martins em vários
estudos.
[←14]
Cf. GALLISSOT, R. - "Nação e Nacionalidade dos Debates do Movimento
Operário", in HOBSBAWN, E. (org.) - História do Marxismo, Rio de Janeiro,
Paz e Terra, 1984, Vol. IV, pp. 173-250.
 
[←15]
A bem da verdade essa opção social-democrata com a valorização das
conquistas democráticas dentro do capitalismo já havia sido iniciada por
Engels nos últimos anos de vida. Ele considerava Kautsky como seu
discípulo predileto e herdeiro, mas os marxistas do século XX omitiram
completamente esse fato e taxaram apenas Kautsky como “renegado”.
[←16]
Cf. HIRSCHMAN, Albert O. "Sobre Hegel, imperialismo e estagnação
cultural", in Almanaque, SP, Brasiliense, 1979, n.° 9, pp. 68-72; e
também CHATELET, F, e PISIER-KOUCHNER, E. As Concepções Politicas
do Século XX, RJ, Zahar, 1983, pp.293-327.
 
[←17]
GALISSOT, R. – op. cit., pg.190.
[←18]
HAUPT, U. e LOWY, M. - Los Marxistas y la Cuestion Nacional,
Barcelona, editorial Fontamara, 1980, pp. 20-21.
[←19]
Engels, in MARX, K. e ENGELS, F. Sobre o Colonialismo, Lisboa, ed.
Estampa, 1978, vol. 1, pp. 103-104.
[←20]
MARX - "O Dorninio Britânico na Índia", in MARX, K. e ENGELS, F. Sobre o
Colonialismo, op. cit., pp. 47-48. Os grifos são nossos.
 
[←21]
HILFERDING, R. - O Capital Financeiro, S. Paulo, Abril Cultural, 1985, col.
Os Economistas, pp. 217-20.
[←22]
HILFERDING, R. op.cit., pp. 314-315.
[←23]
Idem, pp.296-306, passim.
 
[←24]
Idem, pp. 342-344.
 
[←25]
LUXEMBURGO, Rosa. Acumulação do Capital, op. cit., p.392 e p.411.
[←26]
Em suas últimas obras – Anti-Dühring e Dialética da Natureza, esta
inacabada –, Engels procurou mostrar como, segundo as “leis da dialética”,
o quantitativo pode se transformar em qualitativo, ou como reformas
graduais, inclusive na natureza, podem resultar em metamorfoses ou
mudanças radicais, o que pode ser lido como uma legitimação para que a
revolução social, a mudança do capitalismo em socialismo, pudesse
também ocorrer gradativamente. Veja-se sobre isso nossa análise in:
Geografia, Natureza e Sociedade, editora Contexto, 1997.
[←27]
Cf. SALVATORI, M.L. - "Kautsky entre a Ortodoxia e o Revisionismo", in
HOBSBAWN, E. (org.) - História do Marxismo, op. cit., vol. 11, pp. 299-339.
[←28]
Sobre esse episódio da história russa, cf. ARENDT, H. Sobre a Revolução,
SP, Cia das Letras, 2011; FERRO, Marc. A Revolução Russa de 1917. SP,
Perspectiva, 1988, 2ª edição; e
MCMEEKIN, Sean. The Russian Revolution: A New History, New York, Basic
Books, 2017.
Também o importante texto de CASTORIADIS, C. “O papel da ideologia
bolchevique no nascimento da burocracia”, in: A experiência do
movimento operário, SP, Brasiliense, 1985, pp.226-46, demonstra como
antes mesmo de 1917, Trotsky, Lênin e os bolcheviques – e também boa
parte dos socialistas da época – compartilhavam uma ideologia burocrática
e autoritária.
[←29]
LÊNIN. "Prefácio", in BUKHARIN, A Economia Mundial e o Imperialismo, S.
Paulo, Abril Cultural, col. Os Economistas, 1984, pp. 12-13.
 
[←30]
GALVÃO, Luiz Alfredo. "Marxismo, Imperialismo e Nacionalismo", in
Debate e Crítica, S. Paulo, Hucitec, 1975, n.° 6, pp. 44-45.
 
[←31]
LÊNIN. El Imperialismo, Etapa Superior del Capitalismo, Buenos
Aires, ed. Anteo, 1971, pp. 108-109. Grifos nossos.
[←32]
Cf. LÊNIN - op. cit., pp. 109-110 e p. 95.
 
[←33]
LÊNIN - op. cit., p. 153. Observe-se aí o uso da categoria exploração
para as relações entre nações, algo, como já vimos, impensável para
Marx.
[←34]
OWEN, R. - "Introducción", in OWEN e SUTCLIFFE (org.) - Estudios sobre
la Teoria del Imperialismo, México, ed. Era, 1978, p. 16.
[←35]
ARRIGHI, G. - La Geometria del Imperialismo, México, 5iglo Veintiuno,
1979, p. 171.
 
[←36]
A respeito das conexões lógicas entre problema ontológico e visões de
mundo, consulte-se o importante texto de QUINE, W.V. - From a Logical
Point of View, Cambridge, Harvard University Press, 1953, pp. 1-19.       
[←37]
FOLKE, S. - "Primeiras Reflexões sobre a Geografia do Imperialismo",
in Seleção de Textos, AGB, S. Paulo, 1978, n.° 5, pp. 25-36.
(Traduzido de Antipode: a Radical Journal of Geography, vol.5, n.° 3,
dez. 1973).
[←38]
MAGDOFF, Harry. A Era do Imperialismo, Porto, Ed. Portucalense,
1972, pp.14-27, passim. Os grifos são nossos.
 
[←39]
PETRAS, J. Imperialismo e Classes Sociais no Terceiro Mundo, Rio de
Janeiro, Zahar, 1980, pp. 224-257. Por final este autor, James Petras, é
mais um dos que a partir dos anos 1990 começa a investir contra a
“globalização neoliberal” fazendo uso dos velhos argumentos leninistas
que são apenas adaptados a este novo cenário internacional.
[←40]
Mantivemos esse parágrafo nesta nova edição do livro para evidenciar que
no mínimo desde 1986, quando redigimos sua primeira edição, já
enfatizávamos expansão do capitalismo até esse antigo Segundo Mundo,
algo que se ampliou consideravelmente após 1989-91.
[←41]
EMMANUEL, A. - "El Intercambio Desigual", in BETTELHEIM e Outros -
Imperialismo y Comercio Internacional, Córdoba, Pasado y Presente,
1971, pp, 8-17, passim. Os grifos são do autor.
[←42]
Cf. KURZ, R. O colapso da modernização. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992.
 
[←43]
Cf. SHUMPETER, J. A. Capitalismo, socialismo e democracia. RJ, Fundo de
Cultura, 1961. O autor analisa a teoria do valor de Marx – que pouco difere
da de Ricardo, a não ser na retórica marxiana de simplificar e vilipendiar
este último autor – e demonstra como ela é insustentável frente às
evidências empíricas.
[←44]
EMMANUEL, A. - op. cit., pp. 163-167.
[←45]
Idem, ibidem
[←46]
Cf. TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América, São Paulo,
Itatiaia/Edusp, 1977 (original de 1834, em francês). Esse autor francês
visitou os Estados Unidos durante dois anos – 1831 e 1832 – e ficou
espantado pelo que denominou "revolução democrática" (o federalismo, o
espírito individualista e de iniciativa privada, as associações voluntárias e
comunitárias, etc.), além de ter assinalado a menor hierarquia – em
relação á Europa (e com a América Latina mais ainda) – dos salários e da
relação patrão-empregado. É fato que nessa época havia ainda a
escravidão nos EUA, especialmente no sul do país, mas o número de
homens livres pobres (e até proletários) era enorme e possuía um grau de
participação na expansão econômica bem superior ao dos homens livres
pobres do Brasil, por exemplo.
 
[←47]
NEGRI, A. e HARDT, M. Império. Rio de Janeiro, Recorde, 2001, p.434.
[←48]
Idem, pp.253-4. Os grifos são dos autores. É impressionante como os
autores afirmam isso com a maior tranqüilidade, ignorando completamente
as ácidas críticas de Lênin a Kautsky, cujas ideias de um
“superimperialismo” estão muito mais próximas da noção de um “império
[capitalista] mundial”.
 
[←49]
Idem, p.333. O uso de Povo com maiúscula e de estado com minúscula é
dos autores.
[←50]
ENGELS, F. - El anti-Düring, Buenos Aires, Claridad ,1970, p. 291. (Os grifos
são nossos)
[←51]
Apud MANDEL, E. - O Capitalismo Tardio, op. cit., p. 194. Dados do FMI,
referentes a 2011, mostram que as despesas públicas nos Estados Unidos
atingiram 41,4% do PIB, na Alemanha 45,3%, na França 56% e no Brasil
37,3%. Esses dados estão disponíveis in:
https://www.imf.org/external/datamapper/exp@FPP/USA/JPN/GBR/SWE/ITA/
ZAF/IND/CHL/FRA/GRC/NLD/ESP/RUS. Acesso em 08 dez. 2020.
 
[←52]
Esses dados mencionados são de 2019 e obtidos no site do International
Institute for Strategic Studies: https://www.sipri.org/sites/default/files/2020-
04/fs_2020_04_milex_0_0.pdf. Acesso em 08 dez. 2020.
[←53]
O’CONNOR, J. USA: a crise do Estado capitalista. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1977, pp.63-72.
 
[←54]
KRUGMAN, Paul. “A defesa e o terrorismo”. In: O Estado de S.Paulo,
06/02/2002.
[←55]
Cf. VIRILIO, P. Guerra Pura. A militarização do cotidiano. Entrevistas a
Sylvere Lotringer. São Paulo, Brasiliense, 1984.
[←56]
CLAUSEWITZ, Karl Von. Da Guerra. Lisboa, Martins Fontes, 1979, pp.733-
743.
[←57]
CLAUSEWITZ, op.cit., pp.764-768.
[←58]
CLAUSEWITZ, op.cit., pp.737-743.
[←59]
Nessa ocasião escrevemos um texto, a pedido de um organizador de
antologia de artigos sobre geopolítica - CARVALHO, L. A. Geopolítica &
Relações internacionais. Curitiba, Juruá, 2002, pp.275-93 –, mostrando a
falácia desses argumentos, e acreditamos que a evolução posterior do
conflito mostrou a justeza do nosso ponto de vista.
[←60]
Segundo Mackinder, heartland ou “coração da Terra” seria uma vasta
região que se estenderia, no sentido norte-sul, das costas geladas do
oceano Ártico aos desertos da Ásia Central, e no sentido leste-oeste, dos
confins da Sibéria às terras situadas entre os mares Branco e Negro. Seria
uma espécie de lugar nevrálgico para as guerras e conquistas na Eurásia
(a “ilha-mundo”) e por tabela o resto do mundo. Mackinder resumiu sua
teoria assim: “Quem governar a Europa oriental comanda a
heartland;quem governar a heartland comanda a ilha-mundo; e quem
governar a ilha-mundo comanda o mundo.”
[←61]
Doutrina geopolítica norte-americana do século XIX justificadora do
genocídio dos indígenas e do expansionismo territorial para o oeste e para
o sul.
[←62]
Cf. VESENTINI, J.W. Novas geopolíticas. São Paulo, Contexto, 2000.
[←63]
Cf. VIRILIO, P. Vitesse et Politique. Paris, Galilée, 1977.
[←64]
ARON, Raymond. Paz e Guerra Entre as Nações, Brasília, UNB, 1986, pp.
657-695.
[←65]
HUNTINGTON, Samuel P. A superpotência solitária. In: DUPAS, G., LAFER,
C.; SILVA, C. E. (Org.). A nova configuração mundial do poder. São Paulo:
Paz e Terra, 2008, p. 135 – 152.
[←66]
Cf. CHOMSKY, N. - Armas Estratégicas, Guerra Fria e Terceiro Mundo, in
THOMPSON e Outros. Exterminismo e Guerra Fria,S.Paulo, Brasiliense,
1987, pp. 188-205.
 
[←67]
THOMPSON, Edward. Exterminismo e guerra fria. S.Paulo, Brasiliense,
19085. E também CASTORIADIS, C. Diante da guerra. S.Paulo, Brasiliense,
1982.
 
[←68]
Cf. LAÏDI, Zaki. “Sens et puissance dans le système internacional.” In:
L’Ordre mondial relâché. Paris, Presses de la Fondation Nationale des
Sciences Politiques, 1992, pp.13-44.
[←69]
Cf. KISSINGER, H. Ordem Mundial. SP, Objetiva, 2014, especialmente na
Introdução – a questão da ordem mundial.
[←70]
BULL, H. A sociedade anárquica. Brasília, Editora da UNB, 2002, p. 236.
[←71]
PISTONE, S. Relações Internacionais, in: BOBBIO, N. (Org.). Dicionário de
Política, editora da UNB, 1986, pp.1089-1098.
[←72]
Hedley BULL (op.cit.) não admite a existência de uma única grande
potência mundial e, portanto, de uma monopolaridade, que para ele seria
um império e não uma ordem mundial, que necessariamente deve ter um
equilíbrio de poder entre as grandes potências. Mas a imensa maioria dos
demais autores que estudam esse tema não compartilham essa visão e se
referem a uma (eventual) ordem monopolar.
[←73]
O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial. Rio de
Janeiro, Objetiva, 1977.
[←74]
“Sens et puissance dans le système internacional.” In: L’Ordre mondial
relâché, op.cit.
[←75]
Um autor que analisou com perspicácia o relativo enfraquecimento da
soberania estatal (ou melhor, do crescente compartilhamento dessa
soberania com outros atores) foi David HELD – La democracia y el orden
global. Barcelona, Paidós, 1997.
[←76]
LE GOFF, Jacques. O início da História. Entrevista publicada in Folha de S.
Paulo, Caderno Mais!, 14 de abril de 2002.
[←77]
Cf. THOMPSON, G. e HIRST, P. Globalização em questão. Petrópolis, Vozes,
1998.
[←78]
Cf. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. A era da informação:
economia, sociedade e cultura. Volume I, São Paulo, Paz e Terra, 1999, pp.
64-80.
[←79]
CAINCROSS, Frances. O fim das distâncias. São Paulo, Nobel/Exame, 2000,
pp.19-38.
[←80]
Cf. KENNEDY, Paul. Preparando para o século XXI. Rio de Janeiro, Campus,
1993, p.48.
[←81]
Cf. VESENTINI, J.W. A nova ordem mundial, op.cit. Nessa obra mostramos
com detalhes a influência da Terceira Revolução Industrial no esgotamento
das economias planificadas, que nunca conseguiram acompanhar a
modernização tecnológica dessa nova fase da industrialização devido à
falta de concorrência entre as empresas, à excessiva burocratização e
centralização das decisões, etc., que são incompatíveis com a produção
flexível.
[←82]
Essa verdade elementar foi tematizada, dentre outros, por Marx e Engels
no século XIX. Mais recentemente Paul KENNEDY (Ascensão e queda das
grandes potências. Rio de Janeiro, Campus, 1989, especialmente pp.1-10)
demonstrou, com uma excelente análise histórica, que em geral o poderio
econômico vem antes do militar e este último não se sustenta – embora
possa sobreviver durante algumas décadas, dependendo do contexto
internacional – depois que o poderio econômico é enfraquecido ou deixa de
existir.
[←83]
Cf. BRZEZINSKI, Zgbigniew. The grand chessboard. American primacy and
its geoestrategic imperatives. New York, Basic Books, 1997. Esse
importante estrategista norte-americano (foi assessor para política externa
no governo Clinton) argumenta que a atual supremacia planetária dos EUA
é algo “sem dúvida provisório” e que poderá se prolongar por mais tempo
– por mais algumas décadas – desde que o governo dessa superpotência
utilize uma “geoestratégia adequada, em especial para a Eurásia”, que é
exatamente o que esse livro procura esquematizar.
[←84]
Informação referente a 2019 e calculada pelas estatísticas do Banco
Mundial, disponível in:
https://databank.worldbank.org/data/download/GDP.pdf. Acesso em 08 dez.
2020.
[←85]
Todos esses dados citados no parágrafo foram extraídos ou calculados a
partir da referida página do Banco Mundial mencionada na nota anterior.
[←86]
Segundo informações do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD), em 2015 o IDH (Índice de Desenvolvimento
Humano) da China já atingiu o patamar considerado alto, mas não ainda
“muito alto”, que seria característico dos países considerados
desenvolvidos por essa organização. Como o IDH chinês – com todos os
dados que o constituem (econômicos, educacionais e de saúde) – está
avançando de forma acelerada a cada ano, até no máximo 2030 esse
índice provavelmente já estará no patamar tido como muito alto. Todavia,
essa conceituação de desenvolvido como IDH muito alto é problemática
por dois motivos principais. Primeiro, porque não leva em conta a
sustentabilidade: entre os países com elevadíssimos IDHs, por exemplo,
existem alguns (como Kwuai ou Arábia Saudita) que dependem
basicamente de exportações de petróleo e nos quais grande parte da força
de trabalho é constituída por estrangeiros que não desfrutam dos mesmos
direitos trabalhistas que os nacionais. Segundo, porque não leva em conta
a democracia, que é constitutiva do desenvolvimento: todo país
efetivamente desenvolvido – desde os EUA até a Noruega, Nova Zelândia,
Suíça, Países Baixos, etc. – possui uma democracia consolidada, com a
efetivação dos direitos civis, políticos e sociais, com o avançar dos direitos
de nova geração (ambientiais, de orientação sexual e outros). A China sem
dúvida logo terá um IDH muito alto, mas o extremo autoritarismo de seu
regime político constitui uma dúvida para que ela possa ser considerada
como plenamente desenvolvida.
[←87]
Cf. SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Rio de Janeiro, Record,
2000.
[←88]
Uma redefinição nessa importante organização internacional, a nosso ver,
é condição indispensável para sua sobrevivência neste século, ou para não
se tornar completamente irrelevante. Ela precisa de adequar às mudanças,
especialmente na questão ambiental (aquecimento global e mudanças
climáticas, enorme perda de biodiversidade com os desmatamentos e a
poluição nos mares e oceanos), nas alterações no equilíbrio de poder na
escala mundial: países ou regiões subrepresentadas na ONU vão se tornar
cada vez mais relevantes, tais como, por exemplo, a Índia, que deverá se
tornar na segunda maior economia do mundo já em meados do século; ou
no caso da África, que na virada para o século XXII deverá superar a Ásia e
ser o continente mais populoso, etc.
[←89]
CASTELLS, M. Fim de milênio. A era da informação: economia, sociedade e
cultura. Volume 3. São Paulo, Paz e Terra, 1999, pp.424-5.
[←90]
Cf. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. São Paulo, Contraponto,
1997.
[←91]
Especialmente na obra The Capitalist World-Economy (Cambridge
University Press, 1979).
 
[←92]
WALLERSTEIN, I. “Wallerstein desfaz a ilusão do progresso”. Entrevista ao
jornal Folha de S. Paulo, 10/02/2002. (Os destaques são de nossa autoria).
[←93]
Essa é uma tradicional e em grande parte estéril discussão teórica, embora
constantemente reproduzida: vide o famoso escrito de Mao Tse-Tung:
Sobre la Contradiccion, B.Aires, La Rosa, 1969. Em primeiro lugar, no
mundo moderno existem interpenetrações e influências recíprocas entre
fatores “endógenos” e “exógenos”, que em alguns casos são inseparáveis.
Em segundo lugar – e o que é mais importante –, a maior ou menor
influência deste ou daquele fator ou processo sempre depende de cada
realidade específica, é algo que varia muito de acordo com ao lugar e o
momento, não sendo possível nenhuma generalização que dê conta de
todas as situações possíveis numa única fórmula. Em todo caso, como até
Mao Tse-Tung assinalou, nas questões referentes aos Estados territoriais
modernos via de regra os fatores internos são os mais relevantes, mesmo
que por vezes influenciados por circunstâncias externas.
 
[←94]
MARX, K. O Capital. Livro 1, volume 2. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
1975, pp.696-704, passim.
[←95]
Existem entendimentos variados sobre exclusão, inclusive polêmicas sobre
a sua pertinência na medida em que, vivendo numa sociedade, ninguém é
excluído do ponto de vista sociológico. Mas a exclusão não remete ao todo
social e sim à carência de bens ou serviços específicos. Um importante
autor que questionou essa noção escreveu que: “a exclusão deixa de ser
concebida como expressão de contradição no desenvolvimento da
sociedade capitalista para ser vista como um estado, uma coisa fixa
(...) a sociedade capitalista desenraiza, exclui, para incluir de outro modo,
com as suas próprias regras, segundo a sua própria lógica” (MARTINS, José
de S. Exclusão social e a nova desigualdade, SP, Paulus, 1997, Martins,
p.17 e p.32). Seria, em suas palavras, “uma ‘exclusão includente’
produzida pelo capitalismo”. Malgrado a perspicácia dessa percepção, no
velho e bom estilo Rosa Luxemburgo (o que só engrandece o autor), há o
problema que seu ponto de partido é uma totalidade imaginada, o
“sistema capitalista”, que é entendido como se fosse um agente histórico –
e ademais onipresente. E passa desapercebido que exclusão é uma noção
ética – no sentido dado por Richard RORTY (Pragmatismo e política, SP,
Martins, 2005, p.101-22) –, que implica em ação afirmativa, em demanda
por novos direitos.
[←96]
Cf. SACHS, J. O fim da pobreza. SP, Cia das Letras, 2005.
[←97]
FURTADO, C. O mito do desenvolvimento econômico, RJ, Paz e Terra, 2005;
CASTORIADIS, C. “Reflexões sobre o desenvolvimento e a racionalidade”.
In: As encruzilhadas do labirinto/2. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987,
pp.135-158.
[←98]
Esse estudo foi publicado no Brasil com o título de Nosso Futuro Comum
(editora FGV, 1988).
[←99]
CAIRNCROSS, F. O fim das distâncias, op..cit., p.250.
[←100]
Um bom estudo sobre as mudanças tecnológicas no sentido de uma
tecnologia “limpa”, que permita o desenvolvimento econômico sustentável
(a produção de veículos automotores a hidrogênio ou a eletricidade, de
prédios e residências “ecológicos”, de como reaproveitar a água ou
dessalinizar de forma econômica e sustentável a água do mar, de como
obter com menores espaços e custos novos alimentos, etc.), é o livro de
HAWKEN, P., LOVINS, A. e LOVINS, L. H. Capitalismo natural. SP, Editora
Cultrix/Amaná-Key, 1999.
[←101]
HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-nacional. São Paulo, Littera Mundi,
2001, p.186.
[←102]
População abaixo da linha internacional da pobreza definida como 1,9 dólar
ao dia ou menos por pessoa. Essas informações são do Banco Mundial e
disponíveis in: https://data.worldbank.org/indicator/SI.POV.DDAY?
view=chart. Acesso em 11 dez 2020.
[←103]
FAO - World hunger falls to under 800 million, eradication is next goal, in:
http://www.fao.org/news/story/en/item/288229/icode/. Acesso em 11 dez.
2020. A FAO define fome como prevalência de desnutrição, entendida
como consumo alimentar habitual nsuficiente para fornecer os níveis de
energia dietética necessários para manter uma vida normal ativa e
saudável.
[←104]
Sobre as razões da pobreza no mundo e propostas para eliminar esse
problema, cf. SACHS, Jeffrey. O fim da pobreza. SP, Cia das Letras, 2005.
[←105]
Cf. CHOSSUDOVSKY, M. A globalização da pobreza, SP, Moderna, 1999; e
SANTOS, M. Por uma outra globalização, SP, Record, 2005.
[←106]
Informações coletadas em várias fontes: sites da AAE (Association of
American Educators), de Our World in Data e do OECD -
https://data.oecd.org/eduresource/teachers-salaries.htm). Acessos em 13
dez. 2020.
[←107]
Veja-se esta notícia da BBC, reproduzida na época em quase todos os
portais de notícias ao redor do mundo:
https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160118_riqueza_estudo
_oxfam_fn. Acesso em 11 dez. 2020.
[←108]
Todos esses dados foram extraídos do World Inequality Database,
disponíveis in:
https://wid.world/world/#sptinc_p90p100_z/US;FR;DE;CN;ZA;GB;WO/last/eu
/k/p/yearly/s/false/24.339999999999996/80/curve/false/country. Acesso em
12 dez. 2020.
[←109]
Cf. The Independent, in:
https://www.independent.co.uk/news/business/comment/oxfam-right-
highlight-global-economic-inequality-despite-brickbats-thrown-its-critics-
a8171926.html. Acesso em 12 dez. 2020.
[←110]
Veja-se, por exemplo, o jornal Financial Times: Three reasons to question
Oxfam’s inequality figures. In: https://www.ft.com/content/bc09a15d-d04d-
3f15-9b61-8bad80392947. Acesso em 12 dez. 2020.
[←111]
PIKETTY, T. O Capital no século XXI. SP, Garamond, 2014. Publicada em
francês em 2013, esta obra foi traduzida para dezenas de idiomas e
recebeu rasgados elogios, embora também algumas críticas. Ela vendeu
milhões de exemplares, tornando-se um best seller internacional (durante
algum tempo foi o livro mais vendido pela Amazon), além de ampla
cobertura na mídia, o que provavelmente tenha inspirado a Oxfam a
escrever e divulgar seus “estudos” todos os anos com dados cada vez mais
sensacionalistas e que repercutem enormemente nos meios de
comunicações.
[←112]
PIKETTY, T. op. cit., p.27. Interessante que, apesar da declarada inspiração
em Marx, após analisar as oscilações para baixo ou para cima na
concentração da distribuição de renda nesses 20 países (e os motivos
disso), o autor teve que admitir que essa dinâmica não se deve a uma
lógica inexorável do capitalismo, como Marx imaginava, e sim a decisões
políticas.
[←113]
Idem, p.32-3.
[←114]
Além das estatisticas no livro de quase 700 páginas, sempre com dados
oficiais ou de pesquisadores e organizações internacionais fidedignos, ele
disponibilizou na internet centenas de tabelas e gráficos sobre o assunto,
além de explicações sobre de onde e como foram obtidos ou retrabalhados
esses dados. No caso da edição brasileira, esse anexo técnico pode ser
encontrado in: https://www.intrinseca.com.br/ocapital/.
[←115]
Cf. dados do Banco Mundial in:
https://data.worldbank.org/indicator/SI.POV.GINI?locations=US. Os Estados
Unidos até 1970 tinham um índice de Gini abaixo de 33, mas em 2019 já
era de 41,1 – considerado elevado e maior até que vários países não
desenvolvidos tais como Albânia, Armênia, Azerbaijão, Egito, República da
Guiné, Índia, Libéria e outros. Portanto as relações entre democracia e
desigualdades medidas pelo índice de Gini são complexas: praticamente
todos países democráticos, com a recente exceção dos Estados Unidos,
possuem baixos índices, mas também alguns países pobres (embora não a
maioria) possuem esse índice abaixo de 33.
[←116]
SEN, A. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo, Cia das Letras, 2000;
e Desigualdade reexaminada. Rio de Janeiro, Record, 2001.
[←117]
Cf. DELLORS, J. (Org). Educação – um tesouro a descobrir, Brasília,
Unesco/Mec, 1998. Esta obra coletiva mostra que a família é a instituição
que mais influencia a educação dos jovens por sua maior ou menor
valorização da escolarização e do conhecimento, da meritocracia, do gosto
pela cultura, literatura, artes, etc. É por isso que certos grupos étnicos
costumam ter, em média, um melhor desempenho escolar do que outros
em sociedades multiétnicas – por exemplo, no Brasil ou nos Estados
Unidos, os descendentes de japoneses, chineses, judeus, alemãos e outros.
É porque seus valores familiares valorizam imensamente a educação e a
cultura em geral, e os mais velhos (pais, avós, tios) costumam acompanhar
e estimular vida escolar das crianças e dos adolescentes.
[←118]
Cf. COMTE-SPONVILLE, A. O capitalismo é moral? SP, Martins Fontes, 2005.
[←119]
FRANKFURT, H. G. Sobre a desigualdade. SP, Gravida, 2015, p.13-5.
[←120]
LATOUCHE, Serge. A ocidentalização do mundo. Petrópolis, Vozes, 1994,
pp.68-9.
[←121]
Idem, pp.92-3.
[←122]
LE GOFF, Jacques. Op.cit.
[←123]
Cf. HUNTINGTON, S. O choque de civilizações e a recomposição da ordem
mundial, Editora Objetiva, 1966. Nessa mesma linha, alguns autores latino-
americanos argumentam que os reclames de países desenvolvidos – ou de
ONGs neles sediadas – contra os desmatamentos e o trabalho infantil ou o
escravo, sugerindo sansões comerciais frente aos produtos oriundos
dessas áreas, estariam apenas “tentando impedir exportações dos países
periféricos”.
[←124]
LÉVI-STRAUSS, C. Raça e História. Lisboa, Editorial Presença, 1975, pp.91-
99. Este autor assinalou ainda que todas as culturas que se fecharam às
influências estrangeiras acabaram estagnadas.
 
[←125]
Idem, pp.92-3.
[←126]
OHMAE, Kenechi. O fim do Estado-nação. A ascensão das economias
regionais. Rio de Janeiro, Campus, 1996, pp.73-5.
[←127]
Cf. BAIROCH, Paul. Revolución industrial y subdesarrollo. México, Siglo
Veintiuno, 1967.
 
[←128]
Cf. http://www.ggdc.net/maddison/oriindex.htm. Acesso em 18 dez. 2020.
[←129]
Cujas interpretações, a bem da verdade, são antes de tudo desejos ou até
projetos. Eles não analisam ou auscultam a realidade, mas pretendem
contribuir para a sua mudança nos termos em que julgam mais adequados.
[←130]
Em contrapartida, nesse mesmo período os Estados Unidos cresceram em
média 2,6%, a Alemanha 2,0% e o Japão apenas 1,9%. Esses dados podem
ser obtidos no site do Banco Mundial in:
https://data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.MKTP.KD.ZG?view=chart.
Acesso em 17 dez. 2020.
[←131]
Essas informações podem ser pesquisadas in:
https://data.worldbank.org/indicator/SI.POV.GINI?view=chart&locations=JP-
MY. Acesso em 17 dez. 2020.
[←132]
ARENDT, H. Sobre a a Revolução, op. cit.
[←133]
FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Op.cit., p.215. O Panapticon foi um tipo
de arquitetura de presídios, idealizada por Jeremy Bentham no século XVIII,
que visava o controle, a vigilancia constante sobre os presos. Estes
deveriam saber que estavam sendo observados e assim interiorizar essa
mecanismo de poder. Esse modelo foi posteriormente aplicado a outras
instituições como escolas, hospitais, sanatorios, asilos, etc.
 
[←134]
LEFEBVRE, H. A Reprodução das Relações de Produção, Porto, Publicações
Escorpião, 1973, pp. 89-90.
 

Você também pode gostar