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GEOPOLÍTICA, IMPERIALISMO E
DESIGUALDADES INTERNACIONAIS
SUMÁRIO
Introdução...................................................................
Cap. 1 - Capitalismo, Estado e espaço
geográfico................
Cap. 2 - O imperialismo como
questão..................................
O ponto de vista dos
clássicos..............................
Marx, Engels e o colonismo
As leituras de Hilferding, Luxemburgo e
Kautsky
A interpretação de Lênin
Por quê a leitura leninista predominou?
Os continuadores e os
reformadores....................
Imperialismo ainda tem algum poder
explicativo?
As releituras de Magdoff e
Petras........................
Emmanuel e o intercâmbio
desigual....................
Império de Negri e
Hardt......................................
Cap. 3 - A geopolítica
global.....................................................
A ordenação geopolítica após a 2ª
Guerra Mundial
Militarização
Superpotências
A ordem mundial pós-guerra
fria............................
Uni ou
multipolar?...............................................
Globalização e revolução
tecnológica...................
Novos centros de
poder........................................
A dinâmica da nova
ordem..................................
Cap. 4 - Desenvolvimento e desigualdades
internacionais
Pressupostos do
imperialismo..............................
Motivos do
atraso..................................................
China e
Índia.........................................................
Os limites
ambientais............................................
As desigualdades
internacionais...........................
As desigualdades
sociais........................................
Desigualdades sociais na escala
mundial..............
Desenvolvimento, desigualdades e
democracia.......
As desigualdades são
imorais?..............................
A modernidade é
ocidental?..................................
O desenvolvimento é nacional ou
local?...............
Notas
Finais.......................................................................
Contracapa:
Geopolítica, imperialismo e desigualdades
internacionais é um estudo que explica e questiona a
teoria leninista do imperialismo, alicerce fundamental
para as explicações “radicais” sobre as relações
internacionais e as desigualdades entre as economias
nacionais. Procura ainda analisar as razões para o
desenvolvimento internacional desigual e
compreender em que medida as desigualdades
internacionais (e as sociais, na escala mundial) estão
aumentando ou diminuindo. Além de discutir o que
significa desenvolvimento sustentável e as relações
complexas entre desenvolvimento e desigualdades
sociais, como também entre desenvolvimento e
democracia.
INTRODUÇÃO
A interpretação de Lênin
A mencionada obra de Lênin sobre o imperialismo, de
1916, possui o subtítulo de Um Ensaio de Vulgarização. E
de fato foi escrita às pressas, embora as ideias
manifestem reflexões de vários anos, com evidente
objetivo político-pragmático. Ela deve ser encarada tanto
como reinterpretação de uma questão já tematizada e
polemizada pelo marxismo da Segunda Internacional. Mas
também – ou principalmente – como parte do projeto
político do bolchevismo onde, naquele momento, havia
uma especial ênfase no questionamento da social-
democracia alemã e seu principal líder, Kautsky. Cabe
recordar que o termo "social-democracia", que para o
marxismo-leninismo virou sinônimo de reformismo (numa
acepção depreciativa), foi uma designação assumida pelas
diversas organizações marxistas desde o final do século
XIX, sob a influência do velho Engels, até por volta de
1914, quando passa a adquirir essa conotação negativa.
Tal fato está ligado às polêmicas e estratégias de partidos
frente ao capitalismo e às guerras, assim como ao
questionamento da liderança teórica de Kautsky, discípulo
dileto de Engels, que foi rotulado como "renegado" por
Lênin e por Trotsky.
Na realidade, Kautsky, assim como o velho Engels,
valorizava o pluripartidarismo e as conquistas trabalhistas
graduais, entendendo a social-democracia como mais um
partido que disputa o poder e implementa reformas, tal
como no exemplo posterior dos países nórdicos. Para o
velho Engels e para Kautsky, a revolução social não
precisaria, necessariamente, ser uma ruptura institucional
radical, uma sublevação sangrenta tal como a Revolução
Francesa, grande fonte de inspiração para todos os
autointitulados revolucionários que surgiram após e devido
a ela. Essa revolução poderia também resultar de
mudanças graduais no capitalismo que o transformasse
em socialismo26. Os líderes bolcheviques, ao contrário,
repudiavam qualquer outro partido que não o deles e,
consequentemente, objetivavam exercer o poder sem
contestações, sem a convivência com outros partidos ou
movimentos com distintos ideários.
A grande preocupação de Lênin, nesse livro de
1916, era reprochar a ideia de "superimperialismo", que
Kautsky vinha desenvolvendo desde 1911 – e que
sistematizou em 1914 no ensaio Der Imperialismus27.
Neste, Kautsky defende a tese de que as guerras
imperialistas não são inevitáveis e seria possível um
"acordo internacional do capital" para se regulamentar
pacificamente as relações externas entre os principais
Estados capitalistas e entre as grandes empresas. Essas
ideias de Karl Kautsky, que em parte ele extraiu de – e
compartilhou com – Friedrich Lange e Edward Bernstein,
dois outros fundadores e teóricos da social-democracia
alemã, representaram de certa forma uma revalorização
das proposições kantianas do Estado reformador. Isto é,
conquistas graduais e pacíficas, dentro da legalidade, no
sentido de democratizar o Estado. Como também da
revalorização da ideia kantiana da paz perpétua, que
posteriormente seriam básicas para a formação da Liga
das Nações e para a fundação da ONU.
Mas Lênin, assim como anteriormente Rosa
Luxemburgo, que foi a primeira a colocar o dilema
“Reforma ou Revolução?” como se fossem realidades
incompatíveis, via nessas ideias tão somente um
reformismo que abandonava a perspectiva revolucionária
e que favorececia a burguesia.
Essa percepção de revolução como oposto a reforma –
ignorando que as duas principais revoluções da história da
humanidade foram reformas graduais que duraram
milênios (a revolução neolítica) ou séculos (a revolução
industrial) – no fundo decorre da identificação com a
Revolução Francesa de 1789. Esta é vista como o protótipo
de revolução politica e social, uma ruptura rápida e radical
das instituições com a derrubada da Bastilha e a mudança
de regime, a prisão de centenas de milhares de pessoas, a
condenação à morte do rei e de pessoas tidas como
“antirevolucionárias”, etc. A ironia dessa percepção é que
a enaltecida “revolução russa” de outubro de 1917 nada
mais foi que um golpe militar (um coup d’État, como até
boa parte dos bolcheviques reconheceram no momento,
embora depois mudando de discurso e passando a falar
numa “Grande Revolução Proletária”) implementado por
um grupelho armados que depôs o frágil governo
provisório de Kerensky. Governo que era tão impopular
havia sido abandonado por boa parte dos guardas que
deviam proteger o Palácio de Inverno, de onde
despachava. Mas havia de fato um processo revolucionário
na Rússia, iniciado em fevereiro de 1917, com graduais
conquistas democráticas lideradas pelos sovietes (o
“tesouro perdido” da revolução, na expressão de Hannah
Arendt). Mas o governo bolchevique, instalado em outubro
desse ano, esmagou os sovietes e reprimiu as liberdades
democráticas. Daí que grande parte da bibliografia, a que
não divulga as versões trotskista ou stalinista (que têm
mais em comum que diferenças substanciais), assinala
que houve na Rússia de 1917 uma revolução social em
fevereiro e uma contra-revolução em outubro.28
Já em 1915, no prefácio que escreveu para o livro de
Nikolai Bukharin, A Economia Mundial e o Imperialismo,
Lênin dispara suas baterias contra a interpretação
kautskista: "Não existe sombra sequer de marxismo em tal
tendência, em tal afã de ignorar o imperialismo existente
e de refugiar-se num devaneio vazio sobre possibilidades
de um dia vir a existir superimperialismo." E completa:
"Será possível, entretanto, contestar que uma nova
fase do capitalismo posterior ao imperialismo – isto é,
uma fase superimperialista seja, no abstrato,
concebível? Não. Teoricamente pode-se imaginar uma
fase desse tipo. Na prática, porém, ater-se a essa
concepção seria cair no oportunismo. (...) Sem dúvida,
a evolução tende para a constituição de um truste
único, mundial, abrangendo, sem exceção, todas as
empresas e todos os Estados. A evolução efetua-se,
porém, em tais circunstâncias e a um ritmo tal, através
de antagonismos, convulsões e conflitos (...) que antes
da fusão `superimperialista' universal dos capitais
financeiros nacionais, o imperialismo deverá
inevitavelmente estourar e transformar-se em seu
contrário [em socialismo]."29
Mas só isso não bastava, principalmente porque o
texto mesmo do bolchevista Bukharin era frágil nas
críticas a Kautsky. Era preciso mais vigor, maior
diferenciação entre a leitura (e estratégia) de Kautsky
sobre o capitalismo e o imperialismo e o ideário
bolchevista face à grande guerra e o seu significado para
o proletariado. Aí surge esse texto clássico de Lênin,
escrito em 1916, que com o tempo se tornou na principal
(e quase exclusiva) referência sobre o imperialismo no
interior do marxismo que prevaleceu com a Terceira
Internacional – a Comintern (1918-47) –, em grande parte
dominada por Stálin. Pode-se dizer que aí começa, mesmo
que de forma embrionária e ainda ambígua, a
interpretação marxista-leninista do século XX como
"momento de transição do capitalismo para o socialismo”,
com as revoluções proletárias ocorrendo primeiramente
nos países explorados, isto é, dominados pelo
imperialismo.
As duas principais referências ou bases de apoio
teórico para o escrito de Lênin foram o citado livro de
Hilferding e a obra de Hobson – Imperialism, a Study, de
1902. A primeira abordagem, como já vimos, é marxista e
parte de uma ótica de classes; a segunda é liberal e vê o
imperialismo (algo contingente e não necessariamente
ligado ao capitalismo) como expansionismo econômico e
militar de nações ou Estados fortes e mal administrados.
Nas próprias referências básicas (mas não só aí, pois o
problema é mais de dilema político-partidário), portanto,
já se pode perceber um amálgama na leitura leninista do
imperialismo, que de fato oscilou entre uma abordagem
de classes e uma nacional Conforme observou com muita
pertinência um analista:
"A resposta revolucionária ao imperialismo é ambígua
em Lênin. Há uma oscilação entre uma proposição de
revolução nacional nas nações oprimidas – a
autodeterminação nacional – e a revolução socialista.
(...) Lênin, contudo, estava descrente do proletariado
europeu. O próprio imperialismo havia corrompido a
classe trabalhadora criando uma `aristocracia
operária', e toda a liderança socialdemocrata era
acusada de haver descambado para o oportunismo.
(...) Se havia alguma possibilidade de enfrentar a
reação mundial, ela era dada pela força social que
representava a burguesia nacional avançada dos
países asiáticos atrasados: ‘Os socialistas devem
apoiar com a maior decisão os elementos mais
revolucionários dos movimentos de libertação
nacional democrático-burgueses e ajudar a sua
insurreição – e quando for o caso, a sua guerra
revolucionária – contra as potências imperialistas que
os oprimem’, escreveu Lênin.”30
Ao contrário de Hilferding, Kautsky ou Rosa
Luxemburgo, que malgrado suas divergências
identificavam no imperialismo uma política expansionista
do capital monopolizado, Lênin acabou meio
confusamente por identificar o imperialismo como uma
fase ou etapa, a última ou derradeira, do capitalismo. É
fato que alguns autores posteriores, na tentativa de
atualizar ou recuperar a teoria leninista do imperialismo,
assinalaram que a primeira edição do livro de Lênin
intitulava-se Imperializm, Kak Novejsij Etap Kapitalizma,
sendo que o vocábulo russo novejsij significa "última" ou
"mais recente" e não "superior" ou "derradeira" como
surge em praticamente todas as edições posteriores.
Todavia, não se pode esquecer que para Lênin – e também
para quase que todos os marxistas do início do século XX –
a fase mais recente ou "mais nova" do capitalismo era
sem dúvida a última; após ela viria inexoravelmente o
socialismo. E a identificação do imperialismo como a
etapa monopolista do capitalismo é clara e repetida
inúmeras vezes nessa obra de Lênin:
"O imperialismo surgiu como o desenvolvimento e a
continuação direta das características fundamentais do
capitalismo. Porém o capitalismo se converteu em
imperialismo somente ao alcançar um grau muito alto
e definido de seu desenvolvimento, quando algumas
de suas características fundamentais começaram a
converterse em seus contrários, quando tomaram
corpo e se manifestaram com todos os traços de época
de transição do capitalismo a um sistema econômico e
social mais elevado. (...) O monopólio é a transição do
capitalismo a um sistema superior. Se fosse
necessário dar a mais breve definição possível
do imperialismo, deveríamos dizer que ele é a
etapa monopolista do capitalismo. Essa definição
incluí o mais ïmportante pois, por uma parte, o capital
financeiro é o capital bancário de alguns poucos
grandes bancos monopolistas fundido com o capital
das associações monopolistas de industriais, e, por
outra parte, assiste-se ao final da repartição do mundo
entre as principais potências capitalistas."31
Um pouco mais adiante nesse mesmo texto, Lênin
assinala cinco "traços essenciais" do imperialismo: o
decisivo papel dos monopólios na vida econômica; o
surgimento do "capital financeiro" (fusão do capital
bancário com o industrial); o papel fundamental das
exportações de capital (e não mais apenas de
mercadorias) para o capitalismo central; a formação de
associações capitalistas internacionais, que repartem o
globo entre si; e a culminação do processo de repartição
da superfície terrestre entre os países desenvolvidos:
como ele enfatiza, daí para o futuro somente será possível
uma redistribuição de territórios e não mais uma
partilha.32
A ideia de nações oprimidas (e não apenas classes
exploradas) é forte nessa obra, bem como a crença na
impossibilidade do capitalismo prosseguir para além dessa
fase: "Os monopólios, a oligarquia, a tendência à
dominação em detrimento da liberdade, a exploração de
um número cada vez maior de nações pequenas ou débeis
por um punhado de nações mais ricas ou mais fortes: tudo
isso deu origem a essas características distintivas do
imperialismo, o que nos obriga a qualificá-lo de
capitalismo parasitário ou em estado de decomposição."33
Militarização
Além da estatização, outra característica marcante
do capitalismo a partir da década de 1930 tem sido a
(acelerada) militarização. Como já assinalamos no
capítulo 1, o militarismo, a guerra e a violência sempre
desempenharam um papel importante no
desenvolvimento capitalístico, desde a acumulação
primitiva dos séculos XVI ao XVIII. Mas com a crise de
1929-33 e com a Segunda Guerra Mundial e a guerra fria
subsequente, a militarização se expandiu enormemente
com uma inovação tecnológica sem precedentes e com a
fabricação de um número cada vez maior de armamentos
de todos os tipos. Alguns dados estatísticos podem lançar
uma luz sobre esse assunto: entre 1901 a 1913, gastava-
se em média, no nível mundial, cerca de 4 bilhões de
dólares por ano com produtos bélicos. Somente no ano de
1986, no apogeu da guerra fria, os gastos mundiais com
armamentos chegaram na casa dos 900 bilhões de
dólares. As despesas militares norte-americanas, no
período da guerra fria, situavam-se normalmente em torno
de 5 a 6% do valor total do seu Produto Nacional Bruto
(PNB), algo que sofreu uma pequena queda nos anos
1990, subiu novamente e tornou a declinar na segunda
década do século XXI: a parte destinada a gastos militares
no orçamento de 2002, por exemplo, foi de 550 bilhões de
dólares, o que significa cerca de 6% do PNB estimado em
pouco mais de 9 trilhões de dólares; mas em 2019 esses
gastos atingiram a cifra de 740 bilhões de dólares, ou
3,4% do PIB. Também a Rússia e a China gastam
anualmente centenas de bilhões de dólares com
armamentos, mas a percentagem em reação às suas
produções totais (o PIB) é bem menor que no período da
guerra fria.
Contudo, os gastos militares aumentaram
enormemente neste século em países considerados
periféricos ou não plenamente desenvolvidos: Omã gasta
15% do PIB nesse setor, Arábia Saudita 8,9%, Israel 6,1%,
Rússia 4,6% e dezenas de outros (em especial da África,
Oriente Médio e Ásia central) despendem de 3 a 6% do PIB
com gastos militares52. Isso reforça a tese segundo a qual
as guerras mais catastróficas na atualidade não vão mais
ocorrer na Europa, como era regra geral nos últimos
séculos até 1945, e sim principalmente no lesta da Ásia
(envolvendo Índia, Paquistão, Coreia do Norte e
eventualmente China), no Oriente Médio e na África.
O chamado complexo industrial-militar – isto é, as
intrincadas relações e sobreposições entre o militarismo e
a grande indústria, juntamente com uma significativa
parcela da pesquisa tecnológica – parece que não acabou
com o final da guerra fria. Ele foi presevado e até
impulsionado pelas guerras dos anos 1990: Guerra do
Golfo, de 1991; guerras nos Bálcãs durante toda essa
década, em especial na Bósnia e no Kosovo; e pelos
ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 nos
Estados Unidos, que deram origem aos bombardeios sobre
o Afeganistão. Apesar de ter se originado com a Segunda
Guerra Mundial e se expandido com outros conflitos que
envolveram diretamente os Estados Unidos – a Guerra da
Coréia, a Guerra do Vietnã –, esse complexo industrial-
militar parece ter adquirido um ritmo próprio e intenso de
crescimento, independente inclusive da existência ou não
de guerras, conforme um autor que analisou a crise fiscal
do Estado norte-americano:
"Os maiores produtores militares privados criaram o
que parece ser uma torneira permanentemente ligada
ao orçamento federal. (...) A participação industrial
chega ao nível de 50% do orçamento do Pentágono e
a proporção dos pedidos militares recebidos pelos 50
maiores contratantes da área de defesa cresceu de
58% durante a Segunda Guerra, para 66% em 1963-
64. Não é preciso dizer que os empresários do ramo
de armamento e o Pentágono estão de tal forma inter-
relacionados que chegam a constituir, em muitos
aspectos, uma única entidade: o complexo industrial-
militar. Porém, o próprio Pentágono tornou-se
relativamente autônomo. Como todas as grandes
corporações, ele busca expandir-se e alcançar um
controle monopolista. Diversifica seus produtos que
agora incluem não só armas, teorias estratégicas e
conhecimentos militares. Também compreendem
doutrinação ideológica, pesquisas sociais, trabalho
social e técnicas ‘educativas e médicas
avançadas’.”53
E mais recentemente um importante economista
norte-americano comentou da seguinte maneira o
orçamento para o ano 2002 de seu governo:
“Resumindo, a estratégia do governo é evitar críticas ao
debacle fiscal embrulhando seu orçamento na bandeira
americana. E digo isso literalmente: o relatório sobre o
orçamento estava numa capa vermelha, branca e azul
que lembrava a bandeira dos Estados Unidos. Mas, por
que estou sendo tão cínico? A guerra contra o terror não
é um grande negócio? A resposta é que, emocional e
moralmente, sem dúvida é um grande negócio. Mas sob
o ponto de vista fiscal, é quase um erro completo. É
verdade que o governo está usando a ameaça terrorista
para justificar um enorme reforço militar. Mas há
algumas coisas engraçadas a respeito desse reforço.
Primeiro, se nós realmente temos de nos esforçar para
pagar todos esses armamentos, não deveríamos
reconsiderar os futuros cortes de impostos que foram
concebidos num período de abundância? E é
particularmente difícil levar a sério toda aquela história
pavorosa sobre a guerra quando o governo, ao mesmo
tempo, propõe um corte de impostos adicional de US$
600 bilhões. Segundo, o reforço militar parece ter pouco
a ver com a ameaça verdadeira, a menos que você
imagine que o próximo passo da Al-Qaeda seja um
ataque frontal com várias divisões de blindados
pesados. Nós, que não somos especialistas em assuntos
de defesa, ficamos indagando se um ataque feito por
maníacos com poucas armas justifica o gasto de US$ 15
bilhões em peças de artilharia de 70 toneladas ou no
desenvolvimento de três diferentes caças de última
geração (antes de 11 de setembro, mesmo fontes do
governo sugeriam que isso seria demais). Nenhum
político que esperasse ser reeleito ousaria dizer isso,
mas parece que o novo lema do governo é ‘não se
esqueçam de nenhum fornecedor da defesa’.”54
A permanência desse complexo industrial-militar
norte-americano e o seu desmesurado crescimento no
mundo pós-Segunda Guerra Mundial, são fatos que
podem ser entendidos sob duas etapas. Primeiro, no
contexto da guerra fria e do papel dos Estados Unidos
como o guardião do sistema capitalista internacional. E
segundo com o final da bipolaridade e da guerra fria e o
novo papel de xerife do mundo desempenhado nos anos
1990 e na primeira década deste século por esse país. E a
expansão do terroristo e de grupos guerrilheiros e/ou
terroristas, como o Estado islâmico com forte atuação no
Iraque e na Síria especialmente entre 2011 e 2017,
também forneceu pretexto para a continuidade desses
enormes gastos militares. Mas também existe o fato de
que o militarismo é um importante campo de acumulação
de capital, como demanda permanente e segura para
importantes ramos da indústria (e que cresce à medida
que o papel econômico do Estado se amplia).
As novas dimensões e características do
militarismo e da guerra implicaram numa reatualização
da geopolítica e da geoestratégia a nível planetário.
Houve uma geoestratégia do período da guerra fria, que
iremos resumir neste item, e uma outra diferente no
mundo pós-guerra fria, que iremos analisar no próximo
item. O desenvolvimento da aviação e da velocidade
ultra-rápida, dos foguetes teleguiados, o surgimento de
bombas nucleares e termonucleares, do computador e
dos satélites espaciais militares (que podem obter
imagens com detalhes na escala do metro quadrado em
qualquer parte da superfície terrestre), juntamente com
outros fatores, provocaram significativas mudanças na
estratégia e na tática militares, na logística e nas relações
de força e dominação entre as nações. A guerra, já a
partir da Primeira Guerra Mundial, passa a ter um
significado muito mais amplo do que no passado: a partir
de 1914, em qualquer conflito armado entre países,
morrem muito mais civis que soldados, ao contrário do
que ocorria até então; os valores de heroísmo, bravura ou
mesmo os caracteres tradicionais do "bom soldado" – que
era identificados com o gênero masculino – pouco a
pouco deixam de ser relevantes e o decisivo agora é a
tecnologia dos armamentos. O militar, dessa forma,
transforma-se de combatente em técnico e, nessa
passagem, há uma crescente incorporação de mulheres
nas forças armadas e o número de soldados diminui, pois,
tal como na indústria, o importante é a tecnologia, as
máquinas e os armamentos dito inteligentes, havendo a
necessidade de um número cada vez menor de pessoas –
só que cada vez mais qualificadas – para supervisionar e
manipular toda essa maquinaria que inclui tanto bens
tangíveis como serviços intangíveis (especialmente
softwares).
Qualquer guerra local tem ou pode ter uma
influência e um significado a nível planetário, porém, pela
primeira vez na história da humanidade, a partir da
invenção e do aprimoramento das armas atômicas – e
também das armas químicas e principalmente das
biológicas – a guerra (ou talvez até mesmo um radical e
articulado ataque terrorista) pode virtualmente chegar ao
extermínio total da humanidade, ou pelo menos á
desarticulação total desta forma de civilização que
conhecemos hoje. Daí alguns autores – talvez o mais
conhecido deles seja Paul Virílio –, terem afirmado, não
sem um certo exagero, que a guerra deixou de ser “a
política continuada por outros meios” (segundo a célebre
formulação de Clausewitz) para se tornar no inverso
disso: a política é que parece ser uma expressão dos
interesses e dos métodos militares-estratégicos. 55
Superpotências
As visões geopolíticas da ordem bipolar
enfatizavam sempre a existência de duas superpotências
militares, os Estados Unidos e a União Soviética. O
conceito de “grande potência mundial”, tão caro aos
autores clássicos, foi deixado de lado (embora ele tenha
sido recuperado no mundo pós-guerra fria) e no seu lugar
empregou-se esse conceito de superpotência com uma
base tecnológica-militar (armas atômicas no início, e
principalmente a capacidade de agir militarmente, sem
enfrentar grandes obstáculos, em toda a superfície
terrestre). A guerra fria, sem nenhuma dúvida, foi o
elemento mais importante da ordem bipolar ou da
geopolítica planetária do mundo de 1945 até 1991. Ela
implicou num jogo estratégico e numa relação complexa
entre as duas superpotências, na qual havia ao mesmo
tempo uma rivalidade e uma conivência, uma competição
com uma espécie de vínculo ou acordo tácito. Pode-se
comparar essa guerra fria a uma partida de xadrez:
existem dois adversários que obedecem às "regras do
jogo" (mesmo com trapaças ocasionais, mas com cautela
para evitar o confronto final ou total) e simultaneamente
tentam conquistar espaços – ou "tomar peças do outro
campo" – no tabuleiro, ou seja, na superfície terrestre.
Mas ambos os jogadores – as superpotências –
procuravam evitar que outros agentes participassem
ativamente do jogo. Eles almejavam o monopólio das
decisões planetárias, queriam ser os únicos agentes das
mudanças, o que significa que tentavam – mesmo que
nunca tivessem conseguido totalmente (pois, sempre
houve os que aproveitaram certas brechas na rivalidade
para encetar um caminho relativamente autônomo) –
evitar que as "peças", os demais países, tivessem uma
real autonomia. Enfim, sempre procuraram evitar um
terceiro caminho, uma terceira via diferente do
capitalismo americano e do socialismo soviético.
Os Estados Unidos e a União Soviética, nas
palavras de um estudioso, podiam ser considerados como
"inimigos, porém irmãos"64. “Se um deles não existisse, o
outro reinaria só”, afirmou esse autor. (E foi exatamente
isso que ocorreu, pelo menos durante algum tempo,
quando dos Estados Unidos foram denominados
“superpotência soliária”65, após a crise e a implosão da
URSS em 1991).
O conceito de superpotência implicava no fato de que
qualquer uma delas poderia agir militarmente com
eficácia em todo o mundo – o grande problema para cada
uma era a existência da outra. Viviam no chamado
"equilíbrio de terror", que impuseram a si próprias e a
todos os povos do planeta: a ameaça de uma guerra
termonuclear, um confronto global onde não haveria
vencedores nem vencidos, pois praticamente toda a
humanidade – ou pelo menos aquilo que denominamos
civilização – pereceria. Mas esse "equilíbrio de terror" e
essa rivalidade político-militar sempre possuiu uma
inegável funcionalidade para ambas superpotências na
medida em que foi uma maneira de controlar – ou tentar
controlar – todo o resto do mundo e também as suas
próprias populações internas.66
Existiu – ou ainda existe, na visão de alguns – o
que podemos denominar "ideologia da guerra fria", que
consistiu na interpretação das lutas e conflitos na escala
mundial como encerrando apenas duas vertentes ou
opções: o capitalismo ou o socialismo, o lado dos Estados
Unidos – tido por alguns como o campo da "liberdade" ou
da “democracia” e por outros como a vertente do
“capitalismo explorador” e da “sociedade carcomida” – ou
então o lado da ex-União Soviética, visto por alguns como
o totalitarismo ou “comunismo” e por outros como a
“sociedade igualitária". Essa ideologia possuiu uma
evidente eficácia: a de forçar os governos, os partidos
políticos e até as pessoas, a se definirem em termos de
apenas duas opções. Ou esquerda ou direita. Qualquer
outro caminho era visto com suspeitas, como equívoco ou
incompreensão da história, resultando daí um
maniqueísmo simplificador e um estreitamento no leque
de opções. Na área de influência norte-americana,
especialmente nas periferias, qualquer oposição era
normalmente rotulada de "comunista" ou "aliada a
Moscou", ao passo que na área de influência soviética as
oposições eram sempre reprimidas sob o argumento de
serem “anti-revolucionárias” ou defensoras do
capitalismo.
Essa ideologia da guerra fria permitiu tanto um
maior controle social interno – por exemplo, o
macarthismo nos Estados Unidos, ou a repressão sobre os
"dissidentes" na União Soviética – como também um
enquadramento das áreas ou países satelitizados. Foi em
nome da "defesa do mundo livre" que o governo norte-
americano invadiu o Vietnã (de 1962 a 74) e a Guatemala
(1954), além de ter auxiliado ou promovido vários golpes
militares com intensa repressão sobre movimentos
populares (Chile, El Salvador, Granada e outros). E foi em
nome da "defesa do socialismo" que as autoridades
soviéticas invadiram a Hungria (1956), a Tchecoslováquia
(1968) e o Afeganistão (de 1979 até 1989), além de
terem pressionado para que ocorressem golpes militares
antipopulares em casos como o da Polônia (1981) ou da
Etiópia (1977). É lógico que o controle social interno, da
própria população, sempre foi imensamente maior na
URSS do que nos EUA. Mas o controle das áreas
satelitizadas foi intenso e brutal para ambas as
superpotências.
O que mais importou, nas ações repressivas ou no
auxílio a alguma região, não foi tanto garantir a
“exploração” de alguma nação – tal como diriam os
adeptos da teoria do imperialismo – e sim evitar perder
uma parcela da área de influência, evitar a expansão da
área de influência da outra superpotência, ou ainda, em
certos casos, destruir no nascedouro a possibilidade de
uma "terceira” ou “quarta”via(s), de algum caminho
próprio e independente das duas superpotências. Outra
característica importante dessa geopolítica global das
superpotências da ordem bipolar, desse jogo complexo da
guerra fria, foi a necessidade em alguns casos – isso
devido à posição geoestratégica de certos países, que
podiam servir como "vitrine" ou como "gendarme", ou as
duas coisas ao mesmo tempo – em ajudar ou financiar
constantemente (sem perspectivas de retorno)
determinados Estados ou economias nacionais. Isso
ocorreu com a ex-União Soviética em relação a Cuba, por
exemplo, e com os Estados Unidos em relação a Israel, ao
Japão dos anos 50 e 60 ou à Coréia do Sul de 1954 até os
anos 1970.
A teoria tradicional do imperialismo, em especial na
versão leninista, é incapaz de compreender as imensas
inversões de capitais norte-americanas, que não visavam
lucros, em situações como o Japão pós-guerra, a Coréia
do Sul de 1954 até os anos 1970, Berlim Ocidental e
Israel principalmente a partir de 1967, quando este
recém-criado país do Oriente Médio abandonou
definitivamente o sonho “socialista” (que havia inspirado
os kibutzim) de alguns e se alinhou pragmaticamente ao
campo norte-americano. Os imperativos nesses casos
nunca foram essencialmente econômicos e sim
geopolíticos: Israel era (hoje já nem tanto) uma espécie
de "gendarme" ocidental no Oriente Médio rico em
petróleo, mas instável politicamente. Sob outros
aspectos, Israel é também uma "vitrine" do
desenvolvimento ocidental e capitalista em áreas antes
pobres e desérticas; além disso, não se pode negligenciar
o poderio do lobby israelense nos EUA. Em Berlim
Ocidental (que sempre recebeu muito mais do governo
alemão do que este nela arrecadava) as grandes somas
gastas pelos Estados Unidos, nos anos pós-1945,
destinavam-se a criar o contraste com a parte oriental e
socialista – algo mais ou menos semelhante ao que
ocorreu em relação à Coréia do Sul frente ao seu vizinho
ao norte. Com o Japão (e também, em parte, com a Coréia
do Sul), os objetivos eram criar uma área próspera para
contrabalançar o possível "avanço comunista" no leste da
Ásia.
Também a União Soviética, embora em menor
proporção devido à sua menor e menos eficiente
economia, praticou ações semelhantes. O principal
exemplo foi Cuba, uma espécie de "vitrine do modelo
socialista” na América Latina – região na qual
predominanavam nações pobres e dependentes dos
Estados Unidos. Os soviéticos gastavam com Cuba, até
1991, no mínimo 10 milhões de dólares por dia, pois
compravam açúcar a preços quatro ou cinco vezes
maiores que os vigentes no mercado mundial, vendiam
petróleo a preços bem abaixo dos do mercado
internacional (tanto que Cuba exportava petróleo até o
final dos anos 1980), distribuíam a cada ano dezenas de
milhões de livros didáticos gratuitos e impressos em
Moscou (com conteúdos, especialmente nas disciplinas
história e geografia, sempre rigidamente controlados), etc.
Cabe lembrar que Cuba também desempenhou o papel de
“gendarme” para a URSS, com o envio de tropas para
apoior um dos lados em determinados conflitos que os
soviéticos não podiam intervir diretamente devido às
regras (implícitas) do jogo das superpotências: em Angola
, Etiópia, Guatemala, Congo-Léopoldville e Nicarágua.
Ser uma superpotência na época da guerra fria, em
suma, significou também determinados sacrifícios – isto é,
gastos sem retorno, gastos improdutivos do ponto de vista
da economia nacional. Foi uma realidade muito mais rica e
complexa do que aquela retratada – como centro e
periferia, ou nações imperialistas versus países explorados
– na teoria leninista do imperialismo. Por sinal essa foi
uma das razões das menores taxas médias de crescimento
econômico dos Estados Unidos, em relação ao Japão e à
maioria dos países da Europa Ocidental, como também em
relação a vários países ditos periféricos, na época da
guerra fria, e também foi uma das causas (mas de forma
alguma a principal) da derrocada da economia soviética.
A imensa maioria das guerras e conflitos armados
que ocorreu de 1945 até 1991 na superfície terrestre,
especialmente nos países subdesenvolvidos, foi ou se
tornou, em grande parte, confrontos indiretos entre as
superpotências. Não que eles tenham se originado dessa
forma e sim que foram instrumentalizados como tal.
Mesmo que se tratasse de um conflito tribal ou étnico –
algo muito frequente na África, por exemplo –, e/ou um
conflito territorial, logo uma superpotência se colocava a
favor de um dos lados e a outra passava a apoiar os
adversários deste. Em contrapartida, o lado apoiado pelos
soviéticos começava a usar o discurso de “luta contra o
capitalismo” ou “contra o imperialismo”; e o outro lado
passava a falar numa luta “contra o comunismo”. Isso
fazia com que a origem do conflito fosse minimizada e a
impresa (e também os próprios protagonistas, sempre
ávidos pela ajuda militar e financeira, ou pela assessoria,
de uma das superpotências) passava a escrever sobre
mais uma “disputa entre o capitalismo e o socialismo”.
Por um lado, isso colocou a humanidade à beira de
um confronto direto entre as superpotências, à beira do
chamado apocalipse – algo que era acirrado ainda mais
pela corrida armamentista, o que levou alguns autores a
verem uma certa lógica suicida ou exterminista nesse
jogo geoestratégico da guerra fria.67 Por outro lado,
produziu um mundo aparentemente mais simples, mais
fácil de entender, bem diferente deste mundo pós-guerra
fria no qual não há uma lógica única ou mesmo
predominante para os conflitos. Estes hoje são plurais e
diversificados: ora são étnicos-culturais, ora econômicos,
ora territoriais, ora religiosos, etc. O final da guerra fria,
entre outras coisas, significou também uma redescoberta
da complexidade do mundo.
Uni ou multipolaridade?
Sem dúvida que a nova ordem mundial resultou do
avançar da revolução técnico-científica (ou Terceira
Revolução Industrial, embora atualmente alguns falem
numa Quarta Revolução Industrial pelo avanço da
inteligência artificial e da robótica) e da globalização e,
em especial, da rápida desagregação do “mundo
socialista” com a profunda crise na União Soviética e o
seu final em 1991. Nascida, portanto, a partir da ruína da
bipolaridade – que foi o mundo da guerra fria e da
preponderância das duas superpotências, que existiu de
1945 até 1989-91 – , ela ainda suscita inúmeras
controvérsias e costuma ser definida ora como multipolar
(por alguns), ora como monopolar (por outros) ou até
mesmo como uni-multipolar.
Aqueles que advogam a mono ou unipolaridade
argumentam que existe uma única superpotência militar, os
Estados Unidos, e que a sua hegemonia planetária é
incontestável após o final da União Soviética. E aqueles que
defendem a ideia de uma multipolaridade não enfatizam
tanto o poderio militar e sim o econômico, que consideram
como o mais importante nos dias atuais. Eles sustentam
que a União Europeia já é uma potência econômica quase
tão importante quanto os EUA e que tanto o Japão (que logo
deverá superar a sua crise) quanto principalmente a China
(a economia que mais cresce no mundo desde os anos 1990
e que já se tornou no segundo maior PIB do mundo, apesar
de alguns, inclusive o principal líder chinês em 2020, terem
afirmado que o valor da produção bruta da China é
subestimado pelo baixo valor do yuan e já é maior que o
norte-americano) também são polos econômicos
importantíssimos na escala mundial. Além disso,
raciocinam, a Rússia ainda é uma superpotência militar,
apesar de sua economia fragilizada e dependente
basicamente das exportações de petróleo e gás natural. A
China vem modernizando rapidamente o seu poderio militar
– já é o segundo país no mundo em valor total de gastos
com armamentos. E as forças armadas da Europa, em
especial as da Alemanha, França e Itália, tendem a se
unificar com o desenrolar da integração continental.
Até mesmo os momentos de crise (Guerra do Golfo,
em 1991; conflitos na Bósnia e no Kosovo, em 1993 e 1999;
e a luta contra o terrorismo, em 2001) são vistos sob
diferentes perpectivas por ambos os lados. Os que insistem
na monopolaridade pensam que essas crises exemplificam a
hegemonia absoluta e sem concorrentes dos Estados
Unidos, enquando que os que advogam a multipolaridade
explicam que essa superpotência em todos esses momentos
críticos necessitou do imprescindível apoio da Europa, em
primeiro lugar, e até mesmo da ONU, além de ter feito
inúmeras concessões à Rússia e à China em troca do seu
suporte direto ou indireto, ou a sua omissão, nesses
bombardeios contra o Iraque, contra a Sérvia e contra o
Afeganistão.
Talvez a melhor caracterização da nova ordem
mundial tenha sido a fórmula conciliatória encontrada por
Samuel P. HUNTINGTON73, que a definiu como uni-
multipolar. Ou ainda as considerações de Zaki LAÏDI74, que
assinalou que em alguns aspectos – em especial no poderio
militar – a nova ordem é monopolar; em outros aspectos –
no poderio econômico, por exemplo – ela seria multipolar; e
em outras situações ou aspectos – por exemplo, no sistema
financeiro mundial, no crescimento das organizações
globais, sejam interestatais ou não governamentais, sejam
legais ou clandestinas – essa ordenação mundial seria
apolar.
Pensamos que a nova ordem mundial pode ser
considerada, pelo menos provisoriamente, como uni-
multipolar, porém, a a dimensão multipolar tende a
predominar com o maior crescimento econômico (e também
tecnológicos e até militar) da China e de outros países
(Índia, por exemplo). Mas o importante não é sua definição
e sim sua compreensão. Ela encerra alguns
importantíssimos aspectos novos: o avançar de uma
globalização concomitante com a formação de “blocos” ou
mercados regionais e o (relativo) enfraquecimento das
soberanias estatais, que dividem uma parte do seu poderio
com outros atores globais, outras instituições – desde as
organizações internacionais e a mídia global até as ONG’s,
passando pelas grandes culturas ou civilizações, pelas
máfias, pelas redes terroristas, etc. – que se expandem
continuamente e passam a ter um crescente papel nas
decisões e nas ações ao nível planetário75.
Quanto à ideia de um “império mundial” liderado
pelos Estados Unidos, pensamos que se trata de um clichê
ou uma noção altissonante sem base empírica e que tem
como principal função servir como palavra-de-ordem para
determinados manifestantes anti-globalização. A
comparação da atual supremacia norte-americana com o
império romano, explícita nessa visão, não tem
fundamentação histórica, conforme afirmou
categoricamente um especialista:
“Vejo mais as diferenças [entre essas duas situações].
Os romanos de fato conseguiram fazer uma coisa que
os americanos não alcançaram: eles transformaram os
habitantes de seu império em cidadãos romanos. Há um
acontecimento que considero um dos maiores da
história e do qual se fala pouco, que é o Edito de
Caracala (212 d.C.), que levou a cidadania romana a
todos os habitantes do império. Já no primeiro século da
era cristã, o próprio São Paulo, que era judeu, claro, se
dizia antes de tudo um cidadão romano. (...) Os
americanos estão num mundo em que a
americanização deve forçosamente parar num certo
momento. Com sua potência militar ou econômica, eles
dominam muitos Estados, mas não estão numa situação
que lhes permita fazer das pessoas que dominam
verdadeiros americanos. Isso é ao mesmo tempo bom e
ruim. É bom, porque as pessoas conservam o que se
chama hoje de sua identidade. É ruim, porque isso
impede que essas pessoas se tornem membros inteiros
da democracia americana, que é, apesar de seus
enormes defeitos, uma democracia.”76
Essa proposição, a bem da verdade, pode ter – e
tem efetivamente – duas leituras: ou se entende por império
um domínio absoluto dos Estados Unidos ou se relativiza
isso e apregoa-se um “império sem um centro totalmente
localizável no espaço”, um predomínio da
desterritorialização no nível mundial, um “império sem uma
Roma concreta”. Esta última leitura predomina, misturada
de forma ambígua com a outra, no mencionado livro de
Negri e Hardt. E aquela primeira é muito comum em parte
da mídia e de alguns militantes anti-globalização. Mas
qualquer que seja a leitura de uma “nova Roma” com o seu
império mundial não existe base factual de sustentação. No
primeiro caso – de os EUA (em especial o seu governo
federal e o Pentágono, complementados pelo alcance
extraterritorial de sua economia) serem identificados com o
centro do “império” –, permance a diferença colocada pelo
historiador Le Goff, além do fato de que a noção de império
não pode prescindir de uma dominação política e econômica
direta. E também o crescente poderio de outros centros
mundiais de poder: da China à Europa, da Rússia ao Japão. E
no segundo caso – o de um “império aterritorial” – existe
um hegelianismo exarcebado e temporão, uma doutrina
idealista que dificilmente poderá ser colocado à prova na
análise empírica da realidade.
Globalização e revolução tecnológica
Globalização ou mundialização? Não vamos aqui
abordar a polêmica sobre o melhor termo para se explicar
essa crescente interdependência entre todos os povos e
economias – globalização (que de acordo com uma série de
autores norte-americanos, britânicos e japoneses seria algo
novo, iniciado nos anos 1980) ou mundialização do capital
(que de acordo com uma tradição francesa seria um
processo já antigo, vindo desde os séculos XV e XVI).
Tampouco iremoso dialogar com os autores que afirmam
que a globalização é um mito na medida em que o
coeficiente de abertura externa da maioria das economias
nacionais – e também o montante do comércio
internacional, em termos relativos – no início do século XX
era maior do que na atualidade.77
Acreditamos ser possível conciliar todas essas
perspectivas na medida em que a atual globalização pode
ser vista como um novo patamar do secular processo de
mundialização do capitalismo e, por outro lado, ela não se
resume ao comércio internacional de mercadorias – se fosse
apenas isso de fato ela não teria nada de novo ou de
superior frente ao início do século XX. Muito mais que o
aspecto comercial (as exportações e importações de cada
economia nacional) , o que realmente define a globalização
são as novas tecnologias (em especial as redes de
computadores, a robotização, a engenharia genética e
outras) e o novo e muito mais poderoso sistema financeiro
internacional, além de uma interdependência – não apenas
econômica e tecnológica, mas também ambiental, cultural,
social, etc. – nunca vista anteriormente.
A Globalização é indissociável da Terceira Revolução
Industrial, ou revolução técnico-científica, iniciada em
meados da década de 1970 (e não a partir de 1945, como
apregoam alguns autores). Ela não existiria sem o
microcomputador, inventado em 1975, sem as fibras óticas,
produzidas em escala industrial pela primeira vez nos anos
1970, sem as redes de computadores enfim78, que
permitiram o advento das “empresas em rede” e do novo
sistema financeiro internacional, no qual as principais bolsas
de valores de todo o mundo funcionam ininterruptamente
de forma interligada. E como assinalou com propriedade
uma autora, os três instrumentos mais importantes da
chamada “revolução das telecomunicações” – o telefone, o
cumputador e a televisão – só se expandiram em todo o
mundo a partir do final dos anos 197079.
Dessa forma, foi a eclosão da revolução técnico-
científica com as suas novas tecnologias – em especial a
informática e as telecomunicações –, juntamente com o
abandono por parte dos países desenvolvidos (a começar
pelos Estados Unidos), no início dos anos 1970, do que
ainda restava do padrão ouro, seguido pela liberalização
geral dos controles cambiais80, que deu origem a este
processo de globalização descoberto ou tematizado como
tal nos anos 1980.
A globalização e a Terceira Revolução Industrial são
processos interligados e interdependentes, que se
influenciam mutuamente, pois por um lado não haveria a
integração planetária sem as novas tecnologias, e por outro
lado uma série de traços essenciais dessa nova revolução
industrial – tais como a maior importância do mercado
global frente aos nacionais, a concorrência e os preços
sendo cada vez mais definidos na escala internacional, a
produção interdependente (uma peça é fabricada num país
e outra numa economia nacional diferente), as empresas
em rede, etc. – não seriam possíveis sem o avançar da
globalização. Revolução técnico-científica e globalização,
portanto, são aspectos essenciais da nova ordem mundial,
apesar de terem surgido antes de 1989-91, antes da crise
terminal do socialismo real – crise essa, por sinal, que
contribuíram para deflagrar81.
A nova ordem mindial, por um lado, se consolida ou se
inicia de fato com o final do “mundo socialista” (e a
consequente incorporação definitiva, no sentido de
completa e não de eterna, de um terço da humanidade no
mercado capitalista global). Entretanto, não há dúvida que
essa nova ordenação geopolítica já vinha se esboçando
desde os anos 1970 com o avançar da revolução técnico-
científica (e da complementar globalização) e com o
desenvolvimento internacional desigual, que, juntamente
com o processo de unificação europeia, estava engendrando
novos polos ou “potências” na economia mundial: o Japão e
o Mercado Comum Europeu, atual União Européia. E um
pouco mais tarde a China, atual candidata a emular com os
Estados Unidos em toda a superfície terrestre, algo que já
começa a ocorrer com a expansão econômica e geopolítica
chinesa no Pacífico Norte, no Índico e sul da Ásia, na Ásia
Central e na África. Isso sem contar que a China já é o
principal parceiro comercial de maioria dos países sul-
americanos (desbancando os Estados Unidos) e também de
inúmeros países na África, na Ásia e na Oceania.
Uma nova ordem mundial, nesse sentido, é sempre
uma decorrência ou uma certa continuação da anterior, na
qual determinados acontecimentos ou processos – que não
são “necessários” no sentido de algum determinismo, pois
em muitos casos resultam de ações ou decisões que têm
muito de contingente – modificam de forma substancial a
correlação internacional de forças. O aspecto mais visível ou
mais espetacular de uma ordem mundial é a hegemonia
político-militar: a enorme influência que a Inglaterra exercia
sobre todos os recantos do globo do final do século XVIII até
o final do XIX – época de uma ordem mundial monopolar –
deve-se em grande parte aos seus navios de guerra (a
marinha britânica era imbatível) e às suas estratégias
(diplomáticas, geopolíticas) para dominar os povos
subjugados pelo império britânico. Mas é evidente que não
existe um poderio militar sem uma sólida base econômica82
(e, nos dias de hoje, tecnológica), que lhe serve de
sustentáculo. Não foi apenas a força militar que construiu e
manteve o poderoso império britânico, mas também – ou
principalmente – os capitais, a pujança industrial, a
economia mais desenvolvida do mundo na época, pelo
menos até o final do século XIX (quando foi ultrapassada
pela alemã e principalmente pela norte-americana), que
precisava de mercados externos, de fontes de matérias
primas e de consumidores.
Também a ordem bipolar da segunda metade do século
XX foi uma decorrência não apenas do maior poderio militar
norte-americano e soviético, em comparação com os
demais países. Mas também do fato de que, no mundo pós-
1945, a ex-União Soviética era indiscutivelmente a maior
economia do chamado Segundo Mundo: o seu PIB, em 1950,
era maior do que os de todas as outras economias nacionais
planificadas somadas. E os Estados Unidos tinham a
economia mais poderosa no chamado mundo capitalista: o
seu PIB, em 1950, era superior aos da Europa Ocidental, da
África, da América Latina e do Japão em conjunto.
Já nos anos 1980, quando o PIB do Japão já havia
ultrapassado o da URSS (e representava não mais 9% do
norte-americano, como nos anos 1950, e sim mais de 30%
deste), quando o PIB dos países da Europa Ocidental em
conjunto já era superior ao dos EUA, um importante alicerce
da bipolaridade estava apodrecido e abalava todo o edifício
dessa ordenação geopolítica. É por esse mesmo motivo que
a atual unipolaridade militar não deverá se sustentar por
muito tempo – a não ser por, no máximo, umas duas ou três
décadas83. Exceto se algo imprevisível e significativo ocorra,
tal como crises profundas na Europa e na China, uma guerra
nuclear entre China e Índia, um extremamente acelerado,
embora improvável, crescimento da economia norte-
americana junto com uma estagnação chinesa, etc. Pois a
economia norte-americana, que já representou cerca 45%
da produção econômica total do mundo – em 1950 –, hoje
em dia representa 24,4% desse total84 (algo ainda
impressionante para uma única economia nacional) e dentro
de algumas décadas, provavelmente, deverá representar
menos de 20% da economia mundial. A China, em
contrapartida, mesmo desconsiderando o baixo valor de
câmbio da sua moeda, representa 16,3% da economia
mundial (em 2019, segundo o Bando Mundial) e, se mantido
o seu atual ritmo acelerado de crescimento, já deverá
abocanhar 23,8% do PIB mundial em 2030, enquanto que os
Estados Unidos nesse mesmo ano, mais uma vez mantendo
suas atuais taxas anuais médias de crescimento econômico
(de 2010 a 2019), representarão também 23,8% desse
total.
Ou seja, será exatamente nesse ano, em 2030, que a
produção econômica chinesa estará superando a
estadunidense pelas estatísticas das organizações
internacionais (ONU, Banco Mundial e FMI), embora seja
mesmo provável que isso já tenha ocorrido por vários
motivos. Primeiro, o valor do PIB chinês é calculado em
yuans e depois transformado em dólar para efeitos
comparativos, o que, levando-se em conta o baixo valor de
câmbio da moeda chinesa (mantida propositadamente
dessa forma para favorecer as exportações), sem dúvida
que é subvalorizado. Segundo, as evidências mostram que
uma economia que já se tornou na maior exportadora
mundial e maior parceira comercial para centenas de países
ao redor do mundo (muito mais do que os Estados Unidos),
inclusive em regiões tidas como áreas de influência daquela
grande potência americana (como a América Latina em
geral, salvo algumas exceções, Austrália e Nova Zelândia,
grande parte das economias africanas, etc.), não é possível
que represente hoje, segundo dados de 2019, apenas 68,8%
da economia norte-americana85.
Pressupostos do imperialismo
Alguns pressupostos da teoria do imperialismo – que existem, parcial ou
totalmente, em praticamente todas as interpretações “radicais” sobre o
subdesenvolvimento – não mais se sustentam. Vamos fazer uma pequena lista
deles e depois mostrar o porquê cada um não tem mais – se é que alguma vez
teve – qualquer fundamentação científica. Um deles afirma que o sistema
global, o sistema capitalista mundial, tem uma lógica única que explica todas
as desigualdades internacionais. É como se cada parte não tivesse real
autonomia e fosse apenas uma engrenagem da máquina unitária. Outro é que
não há desenvolvimento sem o seu par, o seu outro lado necessário: o
subdesenvolvimento. Isso significa que as áreas ricas vivem às custas das
pobres e não há desenvolvimento sem a retirada de riquezas em áreas que,
por esse motivo, ficam na situação oposta, isto é, no não-desenvolvimento. E
outro pressuposto afirma que o “verdadeiro” desenvolvimento não é
capitalista e sim socialista, que somente numa sociedade mundial igualitária e
sem economias de mercado, sem a propriedade privada e a busca de lucros, é
que todos os povos poderiam ser plenamente desenvolvidos. O capitalismo,
assim, é entendido como um sistema que necessariamente gera
subdesenvolvimento e desigualdades (sociais e regionais), e somente a sua
radical substituição por um novo sistema socioeconômico permitiria a tão
almejada igualdade e o desenvolvimento de todos os povos.
A ideia de uma lógica única comandando todas as desigualdades
planetárias tem por base dois princípios fundamentais. Primeiro, que o todo,
ou a totalidade, é algo superior e que se impõe a cada uma das suas partes.
Segundo, que essa totalidade – o sistema capitalista mundial – já se propagou
para toda a superfície terrestre, já se tornou hegemônica em todos os
recantos do globo. O autor da atualidade que expressa com maior clareza e de
forma mais radical essa ideia é Imannuel WALLERSTEIN91, que numa
entrevista jornalística reiterou com veemência esse seu ponto de vista:
“Tanto os economistas neoliberais quanto os desenvolvimentistas tradicionais
sempre acreditaram que o ‘desenvolvimento’ fosse um processo nacional e,
portanto, fundamentalmente dependente das ações realizadas dentro do
próprio país, seja no que se refere a políticas públicas, seja em tudo o que
gira em torno dos valores culturais ou da estrutura social. [Todavia] O
sistema-mundo é estruturado de tal forma que há um eixo centro-
periferia, no qual algumas zonas geográficas produzem bens de alto valor
agregado (de modo quase monopólico) enquanto outras regiões produzem
bens de baixo valor agregado para mercados altamente competitivos. É
impossível, dentro desse sistema, que todos os países tenham o
mesmo padrão de vida, que todos aqueles que hoje são pobres
possam ‘desenvolver-se’ e tornar-se tão ricos quanto aqueles que já
são ricos agora. Alguns Estados podem mudar de posição e subir ou descer
na hierarquia, mas a hierarquia é constante. Os EUA têm sido, ao menos
desde 1945, o poder hegemônico no sistema-mundo. Hegemonias, como
monopólios, nunca duram. Elas se autodestroem. A hegemonia dos EUA tem
apresentado sinais de declínio desde a década de 1970. (...) O sistema-
mundo moderno é a economia-mundo capitalista. Ele teve início no século 16
num segmento específico do planeta: na Europa ocidental e em partes das
Américas. Ele se expandiu geograficamente e inclui todo o planeta desde o
século 19. Vivemos nos últimos 400 anos num único sistema histórico, a
economia-mundo capitalista. Estamos num caminho comum bastante
particular. Esse sistema tem suas regras, suas contradições, seu modo de
desenvolvimento. A economia-mundo capitalista tem sido um sistema
histórico incrivelmente bem-sucedido no que se refere ao que quer fazer, que
é a interminável acumulação do capital. Ela atingiu, em 400 anos, uma
enorme expansão da produção mundial e um incrível avanço tecnológico.
Logicamente, ela também criou uma enorme quantidade de destruição
e de empobrecimento de amplos segmentos das populações
mundial. Um dos princípios básicos da economia-mundo capitalista é
a distribuição desigual da mais-valia. Com o tempo, isso leva a uma
constante polarização – econômica, social e demográfica – do sistema-
mundo.”92
Como se percebe nessa longa citação, não seriam os Estados – nem
qualquer outro fator interno às sociedades: política macroeconômica, iniciativa
empresarial, sistema jurídico-político, traços culturais ou geográficos, etc. – que
influenciariam a sua situação de desenvolvido ou subdesenvolvido, mas sim a
lógica do sistema global. A economia-mundo capitalista se imporia sobre cada
um das suas partes – as economias nacionais, as regiões do globo – e ela
necessitaria engendrar um centro e uma(s) periferia(s), sendo que esta(s)
enviaria(m) ao centro uma parte da mais-valia nela(s) produzida.
Estamos aqui no velho terreno da polêmica sobre o maior peso dos fatores
“externos” ou “internos” para os processos históricos de cada sociedade93 e essa
interpretação minimiza completamente os elementos “internos” e enxerga uma
entidade “externa” onipotente – o sistema-mundo –, que no final das contas seria
a grande (ou melhor, a única) responsável pela situação de maior ou menor
desenvolvimento econômico e social de cada um dos Estados-nações.
É um tipo de percepção que desvaloriza completamente a história
concreta – isto é, as lutas sociais, as estratégias e os projetos deste ou daquele
agente ou protagonista – em prol de uma lógica econômica fantasmagórica e
inexorável, de uma “história” escatológica e sem sujeitos. Além disso ela
também compartilha do pressuposto – ou crença – de que o desenvolvimento de
algumas áreas é um resultado da transferência internacional de riquezas – isto é,
de mais-valia – e que, dessa forma, existiria uma “exploração” das economias
periféricas pelas centrais. Apesar da orientação marxista, essa visão contraria
frontalmente os escritos de Marx, que afinal foi o forjador da ideia de exploração
social fundamentada no trabalho vivo não pago, isto é, na mais valia. Só existe
exploração ou tranferência de mais valia entre pessoas, entre o trabalho e o
capital, afirmou com veemência Marx, e nunca entre regiões ou entre países. Em
sua principal obra, ele enfatizou que: “Já vimos que a taxa da mais valia
depende, em primeiro lugar, do grau de exploração da força de trabalho. (...)
Outro fator importante para a acumulação é o grau de produtividade do trabalho
social. [Assim] um fiandeiro inglês e um chinês podem trabalhar o mesmo
número de horas com a mesma intensidade. (...) Apesar dessa igualdade, há uma
enorme diferença entre o valor do produto semanal do inglês, que trabalhou com
uma poderosa máquina automática, e o do chinês que trabalha com uma roda de
fiar. No mesmo espaço de tempo em que um chinês fia uma libra-peso de
algodão, o inglês consegue fiar várias centenas de libra-peso.”94
Fica implícito nessa citação que a Inglaterra era mais desenvolvida do que a
China não devido a uma transferência de riquezas desta para aquela, mas sim
porque tinha uma tecnologia mais avançada e uma maior produtividade do
trabalho. Isso, para Marx, significava maior quantidade de mais valia relativa e
portanto uma maior exploração do trabalhador inglês em comparação com o
chinês. Para Marx, enfatizando, a Inglaterra era mais rica porque produzia
internamente mais riquezas ou mais valia – e isso mesmo com os operários
ingleses trabalhando a mesma quantidade de horas por semana que os chineses,
ou até mesmo com estes últimos trabalhando bem mais – só que produzindo
menos devido à menor produtividade do trabalho, fruto do menor
desenvolvimento tecnológico.
Aliás, é exatamente por esse motivo que a “revolução social”, para esse
clássico, deveria necessariamente ocorrer primeiro nas regiões mais
desenvolvidas, ou seja, com maior acumulação de capital e portanto com maior
exploração do trabalhoEm todo o caso não é esta a nossa objeção fundamental.
Não será nos escritos de Marx – e sim no confronto com a realidade – que
iremos evidenciar as insuficiências desse tipo de explicação.
Motivos do atraso
Se as economias subdesenvolvidas estivessem nessa situação devido à
transferência internacional de mais valia, então uma conseqüência lógica desse
fato é que as áreas ou nações mais “atrasadas” seriam as mais “exploradas”.
Ora, não é isso o que acontece na realidade. As economias mais
subdesenvolvidas do mundo – tais como Serra Leoa, Níger, República
Democrática do Congo, Zimbábue, Chade, Sudão do Sul, Burundi, República Sul-
Africana, Mali, Eritreia, Serra Leoa, Moçambique, Etiópia, Guiné-Bissau, Sudão,
Etiópia e outras –, ao contrário do que pensam alguns, são áreas pouco atrativas
para os capitais dos países desenvolvidos. Possuem baixo volume de comércio
exterior (exportações e importações, tanto de bens como de serviços) e poucas
empresas estrangeiras, às vezes nenhuma. O grande problema delas não é o de
serem “exploradas e sim relativamente “esquecidas”. Isto é, são economias que
não receberam nem recebem grandes inversões de capitais, que não têm
grandes atrativos para as empresas estrangeiras, embora atualmente seja a
China quem mais investe nesses países com vistas a produzir, a baixo custo,
matérias primas para suas indústrias ou alimentos para o gado e para sua
população.
São portanto economias nas quais ainda não há tanta exploração de
riquezas naturais (minérios, petróleo) ou mesmo de riquezas agícolas que visem
abastecer os mercados internacionais. Quando essas economias começam a ser
mais “exploradas”, com investimentos estrangeiros visando extrair petróleo ou
minérios, ou produzir gêneros agrícolas para exportação, na verdade a pobreza
começa a diminuir e não a aumentar. Assim, quando há essa exploração dos
recursos naturais (petróleo, minérios, solos para agropecuária), normalmente são
países com rendas per capita e padrões de vida (expectativa de vida,
mortalidade infantil, índices de escolaridade, etc.) maiores que esses
mencionados, que estão na lista dos mais baixos IDHs do mundo. Estes são
países extremamente pobres que exportam muito pouco para o exterior – o que
eles mais “exportam”, pelo menos nas últimas duas décadas, é emigrantes ou
refugiados. Ah!, exultariam alguns: aí está a “exploração” internacional dos
países ricos, que necessitariam dessa força de trabalho barata para o seu
elevado padrão de vida. Nada disso. Na realidade em grande parte esses
migrantes entram clandestinamente na Europa ou os Estados Unidos, que não
necessitam deles, pois vão contribuir para aumentar as taxas de desemprego.
Em geral, nos dias atuais – desde pelo menos a revolução técnico-científica, com
o avanço na mecanização e na robotização – esses migrantes quase que não
possuem serventia nessas economias avançadas, que têm necessidade muito
mais de força de trabalho qualificada do que de mão de obra barata. Esta última,
aliás, nem é muito possível nesses países devido aos salários mínimos
relativamente elevados e à intensa fiscalização para o cumprimento das
legislações trabalhistas avançadas quando comparadas aos países mais pobres.
Mas e as dívidas externas? Não seriam elas a principal causa do
subdesenvolvimento desses países, como alegam alguns? Também não. Em boa
parte, essas economias mais pobres sequer pagam as parcelas de suas dívidas
externas – quando elas existem – e esses minguados recursos não são de
maneira alguma importantes para o elevado padrão de vida das sociedades
desenvolvidas. A bem da verdade, esses países mais pobres, os de menores
índices de desenvolvimento humano, via de regra mais recebem recursos
financeiros ou produtos – equipamentos, medicamentos, alimentos – de fora,
especialmente a título de ajuda de instituições internacionais, de alguns países
ricos e de algumas ONG’s, do que os enviam para o exterior. O grande empecilho
que existe para seu desenvolvimento não é a (pretensa) lógica do sistema
capitalista e sim suas questões nacionais específicas: guerras civis ou de
guerrilhas; grande diversidade étnica e até de idiomas e culturas, com disputas
pelo controle do poder público ou de certas regiões no país; governos em geral
extremamente autoritários, ineficientes e corruptos; ausência de
empreendedorismo ou mesmo de condições sociais, jurídicas e econômicas que o
possibilitem; etc.
Daí então uma grande parte dos pensadores “de esquerda” nos últimos
anos ter deixado de lado essa ideia de “nações exploradas” – ou mesmo de
classes exploradas para os casos dos desempregados, dos sem teto, dos sem
terra, etc. –, pois para haver exploração (social) é necessário haver trabalho não
pago, ou seja, geração de mais valia. Ninguém é explorado porquê não tem
emprego, terra ou capital. Por isso a noção de “excluídos” – para indivíduos,
grupos sociais, regiões ou povos – é mais adequada para essas situações de
pobreza ou de carência. A categoria “exploração” pressupõe trabalho, atividade
produtiva, extração de riquezas em benefício de outros, ao passo que a noção de
“exclusão” significa apenas não estar incluído, estar à margem de alguma coisa –
seja do trabalho (isto é, da “exploração”), do acesso à escola ou à saúde
gratuítas, do acesso à moradia ou à terra, do acesso à internet (a chamada
exclusão digital), etc.95
Mas se chegarmos até esse ponto – o de falar em “excluídos” e não mais em
“explorados” – então não tem mais sentido afirmar que o desenvolvimento dos
países ricos se faz às custas do subdesenvolvimento das áreas pobres. Pois para
que isso ocorra – isto é o desenvolvimento e o subdesenvolvimento serem faces
opostas e complementares do mesmo processo de acumulação mundial – teria
que haver necessariamente uma efetiva inclusão dessas regiões mais
subdesenvolvidas no sistema global, com enorme produção e exportação a
baixos preços de riquezas, algo que não existe - ou existe numa quantidade
ínfima – nessas economias mais pobres do mundo. O contrário é que é
verdadeiro: os países que mais exportam riquezas (seja petróleo, minérios,
produtos agrícolas ou bens industriais mais simples), são exatamente os que, em
geral, possuem as maiores taxas de crescimento da economia (algo que
possibilita, embora não necessariamente, um desenvolvimento humano ou
social), tais como a China (depois que se abriu para o capitalismo), ou a Índia
(depois que deixou de ser uma economia fechada e realizou reformas no sentido
de desburocratização, diminuição de impostos para produção e exportação,
privatização de empresas estatais ineficientes, incentivos ao empreendedorismo,
etc.), entre vários outros.
China e Índia
Pode-se argumentar que nem todos os países periféricos constituem esses
países mais pobres, com os menores IDHs do mundo. Alguns países tidos como
“periféricos” (um termo, por sinal, bastante questionável) exportam grandes
quantidades de minérios, de petróleo, de produtos agrícolas ou até de bens
manufaturados produzidos – pelo menos em alguns casos – com o uso de uma
mão-de-obra extremamente barata. A China, por coincidência – justamente esse
Estado com um governo (mas não uma economia) que ainda se proclama
“comunista” – é desde os anos 1990 a mais importante dessas economias antes
vistas como periféricas e que vêm inundando o mercado mundial com produtos
industrializados variados, produzidos com o uso de uma força de trabalho
“disciplinada” (ou seja, reprimida) e cujos salários são baixíssimos em termos
internacionais.
Tanto o salário mínimo quanto o salário industrial médio na China, apesar de
terem aumentado nos últimos anos, ainda são inferiores até mesmo aos do
Brasil. Mas isso possibilitou à China se tornar no país mais industrializado do
mundo desde 2010, quando superou os Estados Unidos no valor da produção
industrial, e também gerou uma notável melhoria nas condições de vida da
imensa maioria da população: as taxas de mortalidade infantil, a pobreza e a
fome caíram enormemente, o IDH chinês, como já mencionamos, subiu bastante
(era baixo até inícios dos anos 1980, depois se tornou médio e desde 2015 já é
considerado alto). E isso tudo com salários baixos em comparação com os países
desenvolvidos e até mesmo em comparação com países como o Brasil, a
Argentina ou o México. Mas esses empregos industriais, com esses salários
baixos pelos padrões internacionais, são intensamente disputados, pois não
podemos esquecer que até os anos 1980 havia mais de 800 milhões de pessoas
que viviam abaixo da linha internacional da pobreza na China – hoje são menos
de 100 milhões.
Esse mesmo exemplo pode ser, mutatis mutandis, aplicado à Índia. Apesar
de um crescimento econômico (e social) mais recente que a China (ela só
acordou para a necessidade de reformas liberalizantes quando percebeu que seu
vizinho e tradicional adversário estava despontando como uma das maiores
economias do mundo). Apesar dos salários médios extremamente baixos em
termos internacionais, vem com esse crescimento econômico diminuíndo,
embora bem menos que a China, a pobreza e a fome que há décadas (ou
séculos) existem nesse país tão diversificado. E vários outros casos podem ser
mencionados – Indonésia, Turquia, Vietnã, Chile e outros – de países que vêm
tendo um bom ritmo de crescimento econômico nas últimas décadas exatamente
porque se abriram mais (e não porque romperam, como recomendam as teorias
do imperialismo e da dependência) para o capitalismo, para investimentos
estrangeiros e para o comércio externo.
Alguns outros casos, especialmente os “tigres asiáticos”, também
exemplificam essa constatação. Singapura, Coreia do Sul e Taiwan tinham
economias consideradas, no início dos anos 1970, bem menos desenvolvidas que
a brasileira – e com salários médios e rendas per capita mais ou menos
semelhantes ou até menores que os do Brasil. Hoje são países considerados pela
maioria dos especialistas como praticamente desenvolvidos, com salários médios
bem maiores que os do Brasil, com rendas per-capita elevadas (de 65 mil, 32 mil
e 27 mil dólares em 2019, segundo o Banco Mundial, sendo a que do Brasil era
de 9 mil dólares), e com outros invejáveis índices econômico-sociais: elevadas
taxas de escolaridade e inexistência de analfabetismo para a população com
mais de 7 anos de idade, alta expectativa de vida, baixíssimas taxas de
mortalidade infantil, amplo acesso da população em geral à educação, à saúde, à
telefonia, à água tratada, à rede de esgotos, etc. E essa melhoria não foi
conseguida ficando à margem da globalização ou do sistema capitalista
internacional e sim se integrando mais, produzindo e exportando bem mais do
que no passado. E também graças ao combate à burocracia e à corrupção
(especialmente em Singapura, que era considerado até os anos 1970 um dos
países onde mais havia corrupção em todo o mundo). Além da diminuição de
impostos, dos incentivos a investimentos estrangeiros, à produção e à
exportação, o estabelecimento de normais legais que garantem os contratos e
criam um clima de estabilidade, etc.
Ao contrário das explicações alicerçadas no imperialismo ou no capitalismo
como responsável pelo subdesenvolvimento – nas quais uma maior integração da
periferia no sistema global significa uma maior “exploração” e, portanto, maior
pobreza –, esses casos demonstram que a maior integração ao sistema mundial
pode e costuma ser benéfica e inclusive trazer um efetivo desenvolvimento não
apenas econômico, mas também humano ou social. E a bem da verdade não
existe nenhum caso de desenvolvimento, desde que esse processo se iniciou
com a Revolução Industrial, que não tenha ocorrido com forte ligações com o
sistema produtivo mundial, com aumento no comércio externo.
Na realidade só passou a existir desenvolvimento no sentido que
entendemos hoje – com também seu contrário, o atraso ou subdesenvolvimento
– a partir da Revolução Industrial iniciada em meados do século XVIII. Até então
predominavam economias de base agrária e com pequenas desigualdades
internacionais. Comparado com nossa realidade atual, todas as sociedades eram
pobres.96 Havia, evidentemente, pessoas extremamente ricas em comparação
com seus compatriotas (reis, nobreza, grandes comerciantes e proprietários
rurais), embora com baixíssima expectativa de vida frente à imensa maioria da
população mundial da atualidade. Mas não existia de fato nenhuma economia
desenvolvida ou rica. A industrialização, com as máquinas ampliando a
produtividade do trabalho, é que gerou economias que deslancharam, que se
destacaram frente às demais por uma maior produção e diversificação de
riquezas (bens e serviços) por habitante. A pobreza, dessa forma, precede o
desenvolvimento e não é uma decorrência ou um efeito deste.
Mas o desenvolvimento, mesmo impulsionado pela tecnologia e elevação
da produtividade do trabalho, sempre se expande com o intercâmbio com
outras economias. E contrário também é verdadeiro. Ou seja, via de regra os
países mais pobres do mundo são relativamente fechados, com poucos
investimentos estrangeiros e pouco comércio externo. Sem dúvida que
também existiram e existem determinadas injunções internacionais que
atravancam o desenvolvimento de certas sociedades: o colonialismo (que já
não mais existe), o pagamento das dívidas externas (mas que em geral, salvo
exceções, foram recursos desperdiçados e em parte desviados para contas
particulares), as dificuldades que os países desenvolvidos criam para
transferir tecnologia avançada para os países subdesenvolvidos, os capitais
especulativos que desestabilizam algumas moedas nacionais, etc. Mas essas
injunções não são inquebrantáveis; elas apenas dificultam bastante, mas não
impossibilitam, o desenvolvimento das economias menos desenvolvidas.
Afinal, elas também existiram para os “tigres asiáticos”, que bem ou mal,
souberam como superá-las. A dívida externa da Coreia do Sul, por exemplo, já
foi maior que a do Brasil, e esse país asiático também enfrentou enormes
dificuldades para colocar no mercado internacional os produtos que hoje
exporta em grande quantidade: micro-computadores, especialmente chips (é
um dos maiores exportadores mundiais), produtos eletrônicos em geral,
automóveis, aço, navios, etc.
Alguns fatores são extremamente importantes para o desenvolvimento
econômico e social. Primeiro, um Estado eficiente, que tenha uma consistente
e contínua política econômica, que não seja hipertrofiado (isto é, que não seja
um peso ou um parasita para a sociedade) e que se ocupe primordialmente de
algumas atividades básicas (educação, saúde, previdência, lei e ordem,
fiscalização). Segundo, um ótimo sistema educacional acessível à população
em geral, desde o nível básico até as universidades e institutos de pesquisas
científicas e tecnológicas. Complementarmente, uma força de trabalho
qualificada, com elevada escolaridade média. E um sistema legal que garanta
os contratos e o clima de estabilidade, fundamental para o empreendedorismo
e os investimentos. Como também um razoável mercado consumidor (que
pode ser ampliado através da integração em algum mercado regional), o que
significa uma população com elevado nível médio de poder aquisitivo.
Não há mais nenhuma dúvida que o elemento tido hoje como o mais
importante para o desenvolvimento é o chamado “capital social”, isto é, a
população: sua escolaridade, sua cultura, suas condições de saúde e higiene,
seu nível de rendimento e poder aquisitivo. E também o “capital natural” – ou
seja, a conservação e a preservação dos recursos naturais, a preocupação
com a as gerações vindouras – é importantíssimo, principalmente quando se
pensa num desenvolvimento sustentável. E o contrário também é verdadeiro:
os maiores obstáculos ao desenvolvimento econômico e social sustentável
não são tanto os “externos” (dívidas, barreiras às exportações, empresas
estrangeiras) e sim a ineficiência, a hipertrofia, a burocratização e a corrupção
do Estado – e também na sociedade em geral, algo que desperdiça preciosos
recursos. E o descaso para com a educação e a saúde, a negligência frente ao
uso racional dos recursos naturais e a presença de preconceitos e
discriminações (contra as mulheres ou contra determinadas etnias e/ou
grupos sociais ou de orientação sexual), o que implica numa subutilização dos
recursos humanos ao deixar de lado uma enorme parcela da população, ao
impedir ou dificultar seu acesso à educação, ao trabalho ou às decisões
importantes.
Os limites ambientais
A questão dos limites ambientais para o desenvolvimento surgiu a partir
de um estudo de 1972, patrocinado pelo Clube de Roma, que foi uma
associação de cientistas, patrocinada por empresários, que surgiu na capital
da Itália em 1968. Essa associação publicou, em 1972, o relatório The limits of
grown [os limites do crescimento], que em síntese afirma que os recursos
naturais do nosso planeta não aguentariam o intenso crescimento
populacional e das atividades humanas, que num meio ambiente finito não
seria possível um crescimento (econômico e demográfico) infinito. Esse
constatação foi violentamente combatida por setores da esquerda que a viam
como uma forma (imperialista) de evitar o desenvolvimento do então
chamado de Terceiro Mundo. Mas no fundo não se pode negar a
impossibilidade de que os 9,6 bilhões de seres humanos projetados para
2050 tenham todos os mesmos níveis de consumo (de água potável, de
eletrodomésticos, veículos, etc.) de um norte-americano médio de 1972 – ou
de hoje, o que seria pior ainda. Não haveria recursos naturais para tanto e as
consequencias ambientais (desmatamentos, perda de biodiversidade,
mudanças climáticas, poluição atmosférica e das águas, etc.) seriam
insustentáveis.
De fato, não é possível um crescimento infinito num meio ambiente finito.
O mencionado estudo patrocinado pelo Clube de Roma, que foi a origem
dessa questão, infelizmente, preocupava-se mais com o crescimento
demográfico numa visão neomalthusiana, e não tanto com o tipo específico de
desenvolvimento, se sustentável ou não. Foi considerada como uma
preocupação “de direita” ou conservadora, embora autores como Celso
FURTADO e Cornelius CASTORIADIS97, dentre outros, se apropriaram dessa
temática dando a ela um colorido “de esquerda” ao deixarem de lado a ênfase
na demografia (afinal, uma criança norte-americana consome em média 35
vezes mais que uma criança indiana e quase 300 vezes mais que uma
africana!) e colocando em pauta a problemática econômico-social (Furtado) e
a questão filosófica do absurdo contido na ideia ocidental e capitalista de
crescimento infinito (Castoriadis). Mas em todos esses estudos existe a
mesma falha básica que comprometeu a tese de Malthus: o não
reconhecimento da inovação tecnológica ou pelo menos uma ausência de
percepção que o sentido da tecnologia sofre mudanças.
Sim, é verdade que seria virtualmente impossível continuar a produzir
mais e mais automóveis, cidades e edifícios, campos de cultivo, estradas, etc.,
numa progressão infinita, pois não haveria espaço físico para isso na
superfície terrestre, a enorme poluição (do ar, das águas, do acúmulo do lixo)
nos sufocaria. E sequer existiriam recursos naturais suficientes: minérios,
petróleo, água potável, solos agriculturáveis. Só que a tecnologia vem
mudando, inclusive em parte graças a esse pioneiro estudo de 1972
patrocinado pelo Clube de Roma, a partir da introdução do conceito de
sustentabilidade. Esse conceito, que se tornou imprescindível para se
repensar o desenvolvimento, surgiu no rasto desse estudo do Clube de Roma,
graças ao chamado Relatório Brundtland98, produzido em 1987 pela Comissão
Mundial Sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, da ONU, chefiado pela
então primeira-ministra da Noruega, Gro Harlem Brundtland, advindo daí o
nome do relatório.
Na época do estudo The limits of grown só se imaginava automóveis
movidos a derivados de petróleo (extremamente poluidores), sendo que hoje
já existem veículos automotivos movidos a eletricidade, como também (em
menor proporção) a hidrogênio, que não ocasionam nenhuma poluição
atmosférica. Naquela época existiam os imensos “cemitérios de automóveis”,
pois não havia o reaproveitamento de materiais que hoje começa a se tornar
regra geral. Naquela época praticamente não existia a coleta seletiva e a
reciclagem do lixo. Nem mesmo se conhecia a “produção intangível”, que hoje
é essencial: os softwares que controlam a temperatura da geladeira, do ar
condicionado ou da água numa máquina de lavar roupas, por exemplo, ou que
controlam a programação num aparelho moderno de televisão. Já em 2000, ao
contrário de 30 anos atrás, cerca de 70% do custo de um automóvel era
formado pela produção intangível; e o PIB norte-americano nesse mesmo ano,
medido em toneladas, era o mesmo que um século atrás, porém, quando
medido em dólares – principalmente devido à produção intangível – era 20
vezes maior99. Isso em 2000; e hoje, em 2020, mais ainda.
Ou seja: todos esses autores – desde os cientistas do Clube de Roma
até Furtado e Castoriadis – não levaram em conta as mudanças tecnológicas,
com a criação e a progressiva implementação de uma tecnologia verde ou
“limpa”100, e muito menos a produção cada vez mais intangível. Eles só
raciocinaram em termos de produção material (por tonelada) e daquela
tecnologia predominante no início dos anos 1970.
Todavia, a implementação da sustentabilidade, ou de desenvolvimento
sustentável, permite um desenvolvimento de todos os Estados nacionais
desde que com base em novos padrões de consumo e de tecnologia “limpa”
ou verde. Como ênfase no transporte coletivo e veículos não mais movidos a
derivados do petróleo, geração limpa de energia (apenas energia solar, eólica,
das marés, geotérmica, hidráulica, etc., com a eliminando as usinas
termoelétricas), completa reciclagem do lixo, eliminação dos plásticos exceto
os que são biodegradáveis, etc. Esse conceito de sustentabilidade,
inicialmente econômico-ambiental, depois se expandiu para abarcar outras
dimensões: social e cultural. Seria um desenvolvimento ecologicamente
correto, economicamente viável e socialmente justo, como também
preocupado em preservar culturas tradicionais ameaçadas pelo avanço da
modernidade. É uma nova concepção de desenvolvimento que não mais tem
como referência o modo de vida dos norte-americanos da segunda metade do
século XX.
Sem dúvida que existem os limites ambientais para o crescimento
econômico. É evidente que se pensarmos em mais e mais toneladas ou
quantidade – de automóveis, de máquinas de lavar, de computadores, de
prédios, de estradas, etc. – então teremos que concluir que essa noção de um
crescimento infinito é um absurdo ambiental e inclusive lógico. Mas a ideia
atual de desenvolvimento não é a de crescimento material – o “mais e mais”
quantitativo a que se refere Castoriadis. E sim de aprimoramento: veículos
automotivos mais seguros, que não poluam a atmosfera e que sejam feitos
com materiais recicláveis e/ou reciclados. Residências mais confortáveis e
“ecológicas”, com o uso de materiais mais adequados e o seu
reaproveitamento, maior uso de vegetação, controle racional via computador,
com menor desperdício de energia ou de água, etc. Menos consumismo e
reciclagem completa do lixo, infovias que, em parte, substituem as estradas
(os produtos que podem ser distribuídos on-line crescem mais que os
tradicionais, que necessitam de uma distribuição física), uso conservacionista
dos recursos naturais, etc.
Mesmo o crescimento populacional, que de fato ainda exerce uma grande
pressão sobre os recursos e também impede que alguns países – os campeões
mundiais de natalidade, hoje em dia localizados mais na África subsaariana e
em partes do mundo muçulmano – tenham uma real melhoria nas suas rendas
per capita e em seus IDHs, tende a se estabilizar e ficar relativamente
estagnado (taxa mundial de nascimentos equivalente à de óbitos) por volta de
2040 ou 2050.
Nesse sentido – isto é, se pensarmos que a ideia de desenvolvimento
não é fixa e imutável e sim constantemente redefinida (inclusive em função
de cada realidade específica: seja civilizacional ou nacional) – não existe um
claro limite ambiental para que todos os povos possam, cada um conservando
os seus valores, serem “desenvolvidos”. Desenvolvidos não no sentido de
todos se tornarem iguais aos norte-americanos pelo seu atual padrão de
consumo ou consumismo, algo absurdo inclusive sob o aspecto da diversidade
cultural. E sim no sentido de poderem alcançar elevados indicadores sócio-
econômicos para a população em geral: elevadas expectativas de vida, baixas
taxas de mortalidade geral e infantil, altos índices de escolaridade, amplo
acesso à água tratada, à rede de esgotos, à eletricidade e à tecnologia
moderna (do computador ao telefone, da internet aos mais avançados
tratamentos médicos e odontológicos), etc.
Seria isso algo impossível, apenas um mito como afirmaram alguns, um
privilégio reservado somente a uma minoria da humanidade? Não há
comprovação disso e a crescente melhoria do padrão de vida médio da
população no mundo – medido pelo crescimento dos índices de IDH de quase
todos os países nas últimas décadas, mostra que isso é possível. Juntamente
com os avanços da tecnologia “limpa” – expansão da geração de eletricidade
com fontes solar e eólica, de veículos automotivos movidos a eletricidade, da
reciclagem do lixo, da proibição do uso de embalagens com plásticos não
biodegradáveis, etc. Não que seja inevitável – basta ver os retrocessos
ocasionados por medidas desastrosas (sempre atendendo a escusos
interesses de empresas petrolíferas, de fabricantes de armamentos, de
madeireiras, de firmas que objetivam lucros imediatos desconsiderando a
sustentabilidade, etc.), implementadas por governos como Trump nos Estados
Unidos, ou Bolsonaro no Brasil, entre outros. E sim que é possível.
É lógico que sempre existiram e provavelmente sempre existirão
defasagens ou diferenças – e até mesmo desigualdades, embora não
necessariamente extremas – entre pessoas, entre regiões e entre povos ou
nações. Mas isso não quer dizer que uma parte do mundo está condenada,
dentro do sistema capitalista mundial, a viver sempre na miséria e no
subdesenvolvimento. Em contrapartida, acreditar que outro sistema dito
“revolucionário” vá produzir uma homogeneização do social (seja no nível
nacional ou – maior absurdo ainda – no plano mundial), é professar o mais
extremo idealismo. É no fundo imaginar outra humanidade, outro ser humano
diferente do que sempre existiu – quem sabe algo semelhante a alguns livros
de ficção científica, nos quais se fabrica, via clonagem, pessoas exatamente
iguais, ou então se realiza uma lobotomia radical em todos os recém-nascidos.
Essa crença é uma das decorrências do Iluminismo com a sua ilusão de
clarear ou espalhar luz para todos os cantos da experiência humana, todas as
as escuridões e injustiças, como se fosse possível uma sociedade humana
transparente de ponta a ponta. Como disse com propriedade Habermas: “Não
duvido de modo algum da influência saudável do pós-modernismo sobre os
debates atuais. A crítica a uma razão que submete o todo da história a uma
teleologia é tão convincente como a crítica à pretensão risível de preparar um
fim para todas as alienações sociais.”101
As desigualdades internacionais
Frequentemente veicula-se, seja em livros ou artigos acadêmicos, em
jornais, na internet, ou na televisão, a tese ou julgamento que as
desigualdades internacionais e as sociais estão se aprofundando. Acreditamos
que existe certo mal-entendido neste tema, pois muitas vezes se confunde
desigualdades internacionais com desigualdades sociais. Vamos tentar
destrinçar este quiproquó começando pelas desigualdades internacionais.
Sobre estas, não existe qualquer sustentação nas estatísticas internacionais –
sobre evolução dos PIBs, das rendas per capita ou dos IDHs da quase
totalidade dos países – que estariam se agravando, isto é, que os países ricos
estão ficando cada vez mais ricos em comparação com as nações pobres. O
contrário é que é verdadeiro. Ou seja, vem ocorrendo nas últimas décadas
uma diminuição nas desigualdades internacionais, como iremos demonstrar.
Praticamente todos os países do mundo – ou quase todos, pelo menos
a imensa maioria – conheceram nas últimas décadas uma elevação da
expectativa de vida, uma diminuição das taxas de mortalidade
(principalmente a infantil, que é a mais significativa), um maior acesso –
embora extremamente desigual em termos regionais e sociais – à eletricidade,
à água encanada e tratada, à telefonia, ao saneamento básico, etc. Veja a
tabela seguinte para evidenciar esse fato.
*Os IDHs só se iniciaram nesse ano de 1990, portanto não existem para 1980. O IDH do Chade só
começou a ser calculado em 2000 (devido a conflitos internos e guerra civil) e foi estimado nesse ano
em 0,298
Indicadores sócio-econômicos de alguns países selecionados (II)
Tabelas elaboradas a partir de várias fontes:: Banco Mundial. Relatório sobre o Desenvolvimento
Mundial – 1992; e World Development Indicators – 2020; UNDP. Human Development Report – 1993 e
2020.
As desigualdades sociais
Examinemos agora outro fator importantíssimo no desenvolvimento
social: as desigualdades sociais, ou seja, desigualdades na distribuição da
renda no interior de cada sociedade nacional. Conforme podemos perceber
pelo quadro “Desigualdades sociais em alguns países”, em vários casos –
Estados Unidos, China, Índia, Indonésia e Tanzânia – essas desigualdades se
ampliaram de 1980 até 2018. Mas em outros casos – França, México, Coreia
do Sul, Brasil e Angola – elas até diminuíram no decorrer dessas quase quatro
décadas. Portanto, não se pode afirmar taxativamente que a globalização vem
acentuando as desigualdades sociais (exceto no caso da população mundial
como um todo, que mencionaremos mais adiante), pois estas variam muito
conforme cada sociedade específica e os fatos que explicam essa relativa
concentração ou desconcentração são normalmente internos a cada país.
*O índice de Gini é a medida de desigualdade social mais aceita pelas organizações internacionais e
consiste em valores de 0 a 100, no qual o 0 seria uma sociedade onde todos têm exatamente os
mesmos rendimentos e 100 o oposto, uma sociedade onde uma só pessoa concentra toda a renda
nacional. Em resumo, quando maior esse índice, maiores as desigualdades sociais, e vice-versa.
Elaborado a partir de várias fontes: World Bank – World Development Report – 1983 e 2020; e páginas
do World Bank sobre “income share by…”, disponíveis in: https://data.worldbank.org/indicator. Acesso
em 11 dez. 2020.
A modernidade é ocidental?
Seria a modernidade – e, portanto, também a noção de desenvolvimento –
uma ideologia ou um projeto de dominação ocidental? Alguns autores vão nessa
direção, afirmando que “a ideologia do desenvolvimento”, vista como uma nova
roupagem da modernidade e da secular ideia de progresso, não passa de uma
forma de dominação ocidental e capitalista sobre os demais povos do planeta. O
subdesenvolvimento, nas palavras de um importante arauto dessa visão, seria
basicamente “Esse olhar, essa palavra do Ocidente, esse julgamento sobre o
Outro, decretado miserável antes de o ser, e assim se tornando porque foi
irrevogavelmente julgado. O subdesenvolvimento é uma denominação
ocidental.”120.
Esse autor ainda complementa que: “A industrialização, filha da
ocidentalização, vê seu destino fortemente ligado ao da sua mãe. O fracasso da
industrialização provoca o fracasso da ocidentalização, já que a participação
concreta na ‘cultura ocidental’ supõe um direito de ingresso de 10 mil dólares
per capita. O fracasso se traduz pela inserção apenas das elites na modernidade
do Ocidente, enquanto as massas são marginalizadas. A modernidade como
projeto societal está em crise.”121
Essa interpretação tem um fundo de verdade. Não há dúvida que a
modernidade nasceu no Ocidente, na Europa ocidental, e depois se
espalhou pelo resto do mundo, embora com diferenças e/ou adaptações,
enfrentando resistências e inclusive se redefinindo em função destas.
Também é fato que a noção de desenvolvimento, que se popularizou após a
Segunda Guerra Mundial, representa uma nova versão da modernidade e
da ideia de progresso, que surgiu apenas no século XVIII. Só que isso não
significa que não sejam valores universais, inclusive porque até as
populações mais pobres e carentes almejam um maior padrão de vida,
almejam as condições materiais propiciadas pelo desenvolvimento. Um
conhecido historiador resumiu isso muito bem: “O progresso é uma ideia
tardia na história mundial. Ela não existia antes do século 18. O século 19
foi o da dominação da ideia de progresso, em particular tecnológico,
industrial e político. Depois, veio o terrível século 20, duas guerras
mundiais, o Holocausto, os gulags, o que se passa na África, e deixamos de
acreditar no progresso. Mas eu penso que o progresso é ao mesmo tempo
um fato e uma necessidade fundamental do espírito humano.” 122
Existem sem dúvida um enorme exagero no entendimento da
modernidade e do desenvolvimento como como ideais exclusivos da
civilização ocidental. Originários sim, mas nunca exclusivos, pois hoje são
ideais reproduzidos ou às vezes reelaborados em praticamente todo o
mundo. Apesar disso, há ainda em afirme que a democracia e os valores a
ela associados representariam tão somente um “cavalo de Tróia” que o
Ocidente usa para dominar outras culturas. 123 Esquece-se que sempre
ocorreram trocas culturais na história da humanidade, influências
recíprocas entre civilizações, e que o próprio Ocidente capitalista
incorporou inúmeros conhecimentos e conquistas de outras culturas: do
direito romano à matemática indiana através dos árabes, da filosofia e da
lógica gregas à bússola e à pólvora chinesas. Como assinalou Claude Lévi-
Strauss, o “progresso” da humanidade sempre consistiu num jogo em
comum, numa coligação entre diferentes culturas 124 . Só que isso implica
numa aparente contradição, pois por um lado esse jogo em comum ou essa
troca poderia resultar numa homogeneização, mas, por outro lado, a
diversidade cultural é uma pré-condição para o progresso 125 .
É por esse motivo que as instituições internacionais, a começar
pela ONU e pela UNESCO, dentre outras, costumam ter um duplo objetivo:
o de preservar a diversidade e ao mesmo tempo expandir determinados
valores ou atitudes – como a democracia e os direitos humanos, a
preservação de patrimônios históricos e ecológicos, e o acesso à ciência e
à tecnologia moderna – que são ou estão se tornando universais. As
inúmeras culturas ou civilizações são diferentes e esse fato é enriquecedor
para a humanidade. Mas não é verdade que o desenvolvimento social ou
que a democracia – processos relativamente distintos mas que no final das
contas são inseparáveis – sejam atributos exclusivos do Ocidente. Somente
se os concebermos de uma forma demasiado restrita é que eles poderiam
ser vistos dessa forma: a democracia tão somente como o sistema liberal
anglo-saxônico e o desenvolvimento apenas como a reprodução do estilo
de vida norte-americano. Mas esse entendimento estreito deixa de lado o
avançar do desenvolvimento (e da democracia) em países como o Japão,
Cingapura, Coréia do Sul, Costa Rica, Índia e outros. E também não enxerga
que o progresso material e determinadas liberdades democráticas são
realidades ou aspirações antigas e possíveis de serem achadas, guardadas
as devidas diferenças e proporções, em diversas civilizações e em vários
momentos da história.
E hoje em dia o desejo de dispor de mais liberdades individuais
(mesmo não esquecendo o coletivo), o ideal de igualdade social
(especialmente de oportunidades), a criatividade e a invenção de novos
objetos e técnicas, a vontade de debelar inúmeras doenças e viver mais, a
possibilidade de dispor de um conhecimento cada vez mais amplo sobre o
mundo, o esforço no sentido de produzir mais alimentos, de dispor de
melhores meios de comunicações, etc., são valores encontráveis em várias
culturas. Talvez não em todas, e tampouco da mesma forma ou com a
mesma expressão. Mas sem dúvida que esses valores existem hoje em
praticamente todas as “grandes culturas” da atualidade: a ocidental, a
islâmica, a japonesa, a oriental-confucionista, etc.
[←1]
Veja-se, por exemplo, o badalado livro de NEGRI, A. e HARDT, M.
Império. Rio de Janeiro, Record, 2000, talvez o mais representativo do
conjunto de obras que propaga essas ideias mesmo que utilizando a
categoria “império” no lugar de “imperialismo”. No final do capítulo 2
faremos um exame mais detalhado das proposições destes autores.
[←2]
Cf. FOUCAULT, M. Microfísica do Poder, Rio de Janeiro, Graal, 1979,
pp.209-227.
[←3]
Sobre essa nova concepção de tempo com a modernidade, cf. THOMPSON,
E. P. Tempo, disciplina de trabalho e capitalismo industrial. In: Costumes
em comum. SP, Cia das Letras, 2005.
[←4]
FOUCAULT, M. - Microfisica do Poder, Rio de Janeiro, Graal, 1979.
[←5]
Cf. MARTINS, J. de S. O Cativeiro da Terra. 9ª. edição revista e ampliada. SP,
Editora Contexto, 2010.
[←6]
LEFEBVRE, Henri. Espacio y Política. Barcelona, Peninsula, 1976, pp.139-
140.
[←7]
CLASTRES, Pierre. Arqueologia da Violência, São Paulo, Brasiliense, 1992,
pp. 58-60.
[←8]
Para evitar mal-entendidos, cabe esclarecer que disciplinamento, no
entendimento foucaultiano que adotamos, é um exercício do poder não
apenas e nem principalmente repressivo. Por exemplo: a escolarização é
disciplinadora (em termos de preparar direta ou indiretamente força de
trabalho, de inculcar nacionalismo e outros valores culturais, inclusive a
concepção de espaço e tempo mercantilizados), mas isso não impede que
seja extremamente progressista ao promover difusão do conhecimento e
ao contribuir para desenvolver competências e habilidades que vão
ampliar a qualidade de vida das pessoas.
[←9]
Apud BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar. Cia das Letras,
1986.
[←10]
WALLERSTEIN, I. - O Capitalismo Histórico, São Paulo, Brasiliense,
1985, p. 39.
[←11]
LUXEMBURGO, R. - A acumulação do Capital. Rio de Janeiro, Zahar,
1976, pp. 399-410.
[←12]
SALAMA, P. e MATHIAS, G. - O Estado Superdesenvolvido, São Paulo,
Brasiliense, 1983, pp. 38-43.
[←13]
Essa ideia de relações não capitalistas sendo toleradas ou até reproduzidas
pela acumulação capitalista são de Rosa Luxemburgo. Elas foram aplicadas
e até retrabalhadas no Brasil rural por José de Souza Martins em vários
estudos.
[←14]
Cf. GALLISSOT, R. - "Nação e Nacionalidade dos Debates do Movimento
Operário", in HOBSBAWN, E. (org.) - História do Marxismo, Rio de Janeiro,
Paz e Terra, 1984, Vol. IV, pp. 173-250.
[←15]
A bem da verdade essa opção social-democrata com a valorização das
conquistas democráticas dentro do capitalismo já havia sido iniciada por
Engels nos últimos anos de vida. Ele considerava Kautsky como seu
discípulo predileto e herdeiro, mas os marxistas do século XX omitiram
completamente esse fato e taxaram apenas Kautsky como “renegado”.
[←16]
Cf. HIRSCHMAN, Albert O. "Sobre Hegel, imperialismo e estagnação
cultural", in Almanaque, SP, Brasiliense, 1979, n.° 9, pp. 68-72; e
também CHATELET, F, e PISIER-KOUCHNER, E. As Concepções Politicas
do Século XX, RJ, Zahar, 1983, pp.293-327.
[←17]
GALISSOT, R. – op. cit., pg.190.
[←18]
HAUPT, U. e LOWY, M. - Los Marxistas y la Cuestion Nacional,
Barcelona, editorial Fontamara, 1980, pp. 20-21.
[←19]
Engels, in MARX, K. e ENGELS, F. Sobre o Colonialismo, Lisboa, ed.
Estampa, 1978, vol. 1, pp. 103-104.
[←20]
MARX - "O Dorninio Britânico na Índia", in MARX, K. e ENGELS, F. Sobre o
Colonialismo, op. cit., pp. 47-48. Os grifos são nossos.
[←21]
HILFERDING, R. - O Capital Financeiro, S. Paulo, Abril Cultural, 1985, col.
Os Economistas, pp. 217-20.
[←22]
HILFERDING, R. op.cit., pp. 314-315.
[←23]
Idem, pp.296-306, passim.
[←24]
Idem, pp. 342-344.
[←25]
LUXEMBURGO, Rosa. Acumulação do Capital, op. cit., p.392 e p.411.
[←26]
Em suas últimas obras – Anti-Dühring e Dialética da Natureza, esta
inacabada –, Engels procurou mostrar como, segundo as “leis da dialética”,
o quantitativo pode se transformar em qualitativo, ou como reformas
graduais, inclusive na natureza, podem resultar em metamorfoses ou
mudanças radicais, o que pode ser lido como uma legitimação para que a
revolução social, a mudança do capitalismo em socialismo, pudesse
também ocorrer gradativamente. Veja-se sobre isso nossa análise in:
Geografia, Natureza e Sociedade, editora Contexto, 1997.
[←27]
Cf. SALVATORI, M.L. - "Kautsky entre a Ortodoxia e o Revisionismo", in
HOBSBAWN, E. (org.) - História do Marxismo, op. cit., vol. 11, pp. 299-339.
[←28]
Sobre esse episódio da história russa, cf. ARENDT, H. Sobre a Revolução,
SP, Cia das Letras, 2011; FERRO, Marc. A Revolução Russa de 1917. SP,
Perspectiva, 1988, 2ª edição; e
MCMEEKIN, Sean. The Russian Revolution: A New History, New York, Basic
Books, 2017.
Também o importante texto de CASTORIADIS, C. “O papel da ideologia
bolchevique no nascimento da burocracia”, in: A experiência do
movimento operário, SP, Brasiliense, 1985, pp.226-46, demonstra como
antes mesmo de 1917, Trotsky, Lênin e os bolcheviques – e também boa
parte dos socialistas da época – compartilhavam uma ideologia burocrática
e autoritária.
[←29]
LÊNIN. "Prefácio", in BUKHARIN, A Economia Mundial e o Imperialismo, S.
Paulo, Abril Cultural, col. Os Economistas, 1984, pp. 12-13.
[←30]
GALVÃO, Luiz Alfredo. "Marxismo, Imperialismo e Nacionalismo", in
Debate e Crítica, S. Paulo, Hucitec, 1975, n.° 6, pp. 44-45.
[←31]
LÊNIN. El Imperialismo, Etapa Superior del Capitalismo, Buenos
Aires, ed. Anteo, 1971, pp. 108-109. Grifos nossos.
[←32]
Cf. LÊNIN - op. cit., pp. 109-110 e p. 95.
[←33]
LÊNIN - op. cit., p. 153. Observe-se aí o uso da categoria exploração
para as relações entre nações, algo, como já vimos, impensável para
Marx.
[←34]
OWEN, R. - "Introducción", in OWEN e SUTCLIFFE (org.) - Estudios sobre
la Teoria del Imperialismo, México, ed. Era, 1978, p. 16.
[←35]
ARRIGHI, G. - La Geometria del Imperialismo, México, 5iglo Veintiuno,
1979, p. 171.
[←36]
A respeito das conexões lógicas entre problema ontológico e visões de
mundo, consulte-se o importante texto de QUINE, W.V. - From a Logical
Point of View, Cambridge, Harvard University Press, 1953, pp. 1-19.
[←37]
FOLKE, S. - "Primeiras Reflexões sobre a Geografia do Imperialismo",
in Seleção de Textos, AGB, S. Paulo, 1978, n.° 5, pp. 25-36.
(Traduzido de Antipode: a Radical Journal of Geography, vol.5, n.° 3,
dez. 1973).
[←38]
MAGDOFF, Harry. A Era do Imperialismo, Porto, Ed. Portucalense,
1972, pp.14-27, passim. Os grifos são nossos.
[←39]
PETRAS, J. Imperialismo e Classes Sociais no Terceiro Mundo, Rio de
Janeiro, Zahar, 1980, pp. 224-257. Por final este autor, James Petras, é
mais um dos que a partir dos anos 1990 começa a investir contra a
“globalização neoliberal” fazendo uso dos velhos argumentos leninistas
que são apenas adaptados a este novo cenário internacional.
[←40]
Mantivemos esse parágrafo nesta nova edição do livro para evidenciar que
no mínimo desde 1986, quando redigimos sua primeira edição, já
enfatizávamos expansão do capitalismo até esse antigo Segundo Mundo,
algo que se ampliou consideravelmente após 1989-91.
[←41]
EMMANUEL, A. - "El Intercambio Desigual", in BETTELHEIM e Outros -
Imperialismo y Comercio Internacional, Córdoba, Pasado y Presente,
1971, pp, 8-17, passim. Os grifos são do autor.
[←42]
Cf. KURZ, R. O colapso da modernização. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992.
[←43]
Cf. SHUMPETER, J. A. Capitalismo, socialismo e democracia. RJ, Fundo de
Cultura, 1961. O autor analisa a teoria do valor de Marx – que pouco difere
da de Ricardo, a não ser na retórica marxiana de simplificar e vilipendiar
este último autor – e demonstra como ela é insustentável frente às
evidências empíricas.
[←44]
EMMANUEL, A. - op. cit., pp. 163-167.
[←45]
Idem, ibidem
[←46]
Cf. TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América, São Paulo,
Itatiaia/Edusp, 1977 (original de 1834, em francês). Esse autor francês
visitou os Estados Unidos durante dois anos – 1831 e 1832 – e ficou
espantado pelo que denominou "revolução democrática" (o federalismo, o
espírito individualista e de iniciativa privada, as associações voluntárias e
comunitárias, etc.), além de ter assinalado a menor hierarquia – em
relação á Europa (e com a América Latina mais ainda) – dos salários e da
relação patrão-empregado. É fato que nessa época havia ainda a
escravidão nos EUA, especialmente no sul do país, mas o número de
homens livres pobres (e até proletários) era enorme e possuía um grau de
participação na expansão econômica bem superior ao dos homens livres
pobres do Brasil, por exemplo.
[←47]
NEGRI, A. e HARDT, M. Império. Rio de Janeiro, Recorde, 2001, p.434.
[←48]
Idem, pp.253-4. Os grifos são dos autores. É impressionante como os
autores afirmam isso com a maior tranqüilidade, ignorando completamente
as ácidas críticas de Lênin a Kautsky, cujas ideias de um
“superimperialismo” estão muito mais próximas da noção de um “império
[capitalista] mundial”.
[←49]
Idem, p.333. O uso de Povo com maiúscula e de estado com minúscula é
dos autores.
[←50]
ENGELS, F. - El anti-Düring, Buenos Aires, Claridad ,1970, p. 291. (Os grifos
são nossos)
[←51]
Apud MANDEL, E. - O Capitalismo Tardio, op. cit., p. 194. Dados do FMI,
referentes a 2011, mostram que as despesas públicas nos Estados Unidos
atingiram 41,4% do PIB, na Alemanha 45,3%, na França 56% e no Brasil
37,3%. Esses dados estão disponíveis in:
https://www.imf.org/external/datamapper/exp@FPP/USA/JPN/GBR/SWE/ITA/
ZAF/IND/CHL/FRA/GRC/NLD/ESP/RUS. Acesso em 08 dez. 2020.
[←52]
Esses dados mencionados são de 2019 e obtidos no site do International
Institute for Strategic Studies: https://www.sipri.org/sites/default/files/2020-
04/fs_2020_04_milex_0_0.pdf. Acesso em 08 dez. 2020.
[←53]
O’CONNOR, J. USA: a crise do Estado capitalista. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1977, pp.63-72.
[←54]
KRUGMAN, Paul. “A defesa e o terrorismo”. In: O Estado de S.Paulo,
06/02/2002.
[←55]
Cf. VIRILIO, P. Guerra Pura. A militarização do cotidiano. Entrevistas a
Sylvere Lotringer. São Paulo, Brasiliense, 1984.
[←56]
CLAUSEWITZ, Karl Von. Da Guerra. Lisboa, Martins Fontes, 1979, pp.733-
743.
[←57]
CLAUSEWITZ, op.cit., pp.764-768.
[←58]
CLAUSEWITZ, op.cit., pp.737-743.
[←59]
Nessa ocasião escrevemos um texto, a pedido de um organizador de
antologia de artigos sobre geopolítica - CARVALHO, L. A. Geopolítica &
Relações internacionais. Curitiba, Juruá, 2002, pp.275-93 –, mostrando a
falácia desses argumentos, e acreditamos que a evolução posterior do
conflito mostrou a justeza do nosso ponto de vista.
[←60]
Segundo Mackinder, heartland ou “coração da Terra” seria uma vasta
região que se estenderia, no sentido norte-sul, das costas geladas do
oceano Ártico aos desertos da Ásia Central, e no sentido leste-oeste, dos
confins da Sibéria às terras situadas entre os mares Branco e Negro. Seria
uma espécie de lugar nevrálgico para as guerras e conquistas na Eurásia
(a “ilha-mundo”) e por tabela o resto do mundo. Mackinder resumiu sua
teoria assim: “Quem governar a Europa oriental comanda a
heartland;quem governar a heartland comanda a ilha-mundo; e quem
governar a ilha-mundo comanda o mundo.”
[←61]
Doutrina geopolítica norte-americana do século XIX justificadora do
genocídio dos indígenas e do expansionismo territorial para o oeste e para
o sul.
[←62]
Cf. VESENTINI, J.W. Novas geopolíticas. São Paulo, Contexto, 2000.
[←63]
Cf. VIRILIO, P. Vitesse et Politique. Paris, Galilée, 1977.
[←64]
ARON, Raymond. Paz e Guerra Entre as Nações, Brasília, UNB, 1986, pp.
657-695.
[←65]
HUNTINGTON, Samuel P. A superpotência solitária. In: DUPAS, G., LAFER,
C.; SILVA, C. E. (Org.). A nova configuração mundial do poder. São Paulo:
Paz e Terra, 2008, p. 135 – 152.
[←66]
Cf. CHOMSKY, N. - Armas Estratégicas, Guerra Fria e Terceiro Mundo, in
THOMPSON e Outros. Exterminismo e Guerra Fria,S.Paulo, Brasiliense,
1987, pp. 188-205.
[←67]
THOMPSON, Edward. Exterminismo e guerra fria. S.Paulo, Brasiliense,
19085. E também CASTORIADIS, C. Diante da guerra. S.Paulo, Brasiliense,
1982.
[←68]
Cf. LAÏDI, Zaki. “Sens et puissance dans le système internacional.” In:
L’Ordre mondial relâché. Paris, Presses de la Fondation Nationale des
Sciences Politiques, 1992, pp.13-44.
[←69]
Cf. KISSINGER, H. Ordem Mundial. SP, Objetiva, 2014, especialmente na
Introdução – a questão da ordem mundial.
[←70]
BULL, H. A sociedade anárquica. Brasília, Editora da UNB, 2002, p. 236.
[←71]
PISTONE, S. Relações Internacionais, in: BOBBIO, N. (Org.). Dicionário de
Política, editora da UNB, 1986, pp.1089-1098.
[←72]
Hedley BULL (op.cit.) não admite a existência de uma única grande
potência mundial e, portanto, de uma monopolaridade, que para ele seria
um império e não uma ordem mundial, que necessariamente deve ter um
equilíbrio de poder entre as grandes potências. Mas a imensa maioria dos
demais autores que estudam esse tema não compartilham essa visão e se
referem a uma (eventual) ordem monopolar.
[←73]
O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial. Rio de
Janeiro, Objetiva, 1977.
[←74]
“Sens et puissance dans le système internacional.” In: L’Ordre mondial
relâché, op.cit.
[←75]
Um autor que analisou com perspicácia o relativo enfraquecimento da
soberania estatal (ou melhor, do crescente compartilhamento dessa
soberania com outros atores) foi David HELD – La democracia y el orden
global. Barcelona, Paidós, 1997.
[←76]
LE GOFF, Jacques. O início da História. Entrevista publicada in Folha de S.
Paulo, Caderno Mais!, 14 de abril de 2002.
[←77]
Cf. THOMPSON, G. e HIRST, P. Globalização em questão. Petrópolis, Vozes,
1998.
[←78]
Cf. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. A era da informação:
economia, sociedade e cultura. Volume I, São Paulo, Paz e Terra, 1999, pp.
64-80.
[←79]
CAINCROSS, Frances. O fim das distâncias. São Paulo, Nobel/Exame, 2000,
pp.19-38.
[←80]
Cf. KENNEDY, Paul. Preparando para o século XXI. Rio de Janeiro, Campus,
1993, p.48.
[←81]
Cf. VESENTINI, J.W. A nova ordem mundial, op.cit. Nessa obra mostramos
com detalhes a influência da Terceira Revolução Industrial no esgotamento
das economias planificadas, que nunca conseguiram acompanhar a
modernização tecnológica dessa nova fase da industrialização devido à
falta de concorrência entre as empresas, à excessiva burocratização e
centralização das decisões, etc., que são incompatíveis com a produção
flexível.
[←82]
Essa verdade elementar foi tematizada, dentre outros, por Marx e Engels
no século XIX. Mais recentemente Paul KENNEDY (Ascensão e queda das
grandes potências. Rio de Janeiro, Campus, 1989, especialmente pp.1-10)
demonstrou, com uma excelente análise histórica, que em geral o poderio
econômico vem antes do militar e este último não se sustenta – embora
possa sobreviver durante algumas décadas, dependendo do contexto
internacional – depois que o poderio econômico é enfraquecido ou deixa de
existir.
[←83]
Cf. BRZEZINSKI, Zgbigniew. The grand chessboard. American primacy and
its geoestrategic imperatives. New York, Basic Books, 1997. Esse
importante estrategista norte-americano (foi assessor para política externa
no governo Clinton) argumenta que a atual supremacia planetária dos EUA
é algo “sem dúvida provisório” e que poderá se prolongar por mais tempo
– por mais algumas décadas – desde que o governo dessa superpotência
utilize uma “geoestratégia adequada, em especial para a Eurásia”, que é
exatamente o que esse livro procura esquematizar.
[←84]
Informação referente a 2019 e calculada pelas estatísticas do Banco
Mundial, disponível in:
https://databank.worldbank.org/data/download/GDP.pdf. Acesso em 08 dez.
2020.
[←85]
Todos esses dados citados no parágrafo foram extraídos ou calculados a
partir da referida página do Banco Mundial mencionada na nota anterior.
[←86]
Segundo informações do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD), em 2015 o IDH (Índice de Desenvolvimento
Humano) da China já atingiu o patamar considerado alto, mas não ainda
“muito alto”, que seria característico dos países considerados
desenvolvidos por essa organização. Como o IDH chinês – com todos os
dados que o constituem (econômicos, educacionais e de saúde) – está
avançando de forma acelerada a cada ano, até no máximo 2030 esse
índice provavelmente já estará no patamar tido como muito alto. Todavia,
essa conceituação de desenvolvido como IDH muito alto é problemática
por dois motivos principais. Primeiro, porque não leva em conta a
sustentabilidade: entre os países com elevadíssimos IDHs, por exemplo,
existem alguns (como Kwuai ou Arábia Saudita) que dependem
basicamente de exportações de petróleo e nos quais grande parte da força
de trabalho é constituída por estrangeiros que não desfrutam dos mesmos
direitos trabalhistas que os nacionais. Segundo, porque não leva em conta
a democracia, que é constitutiva do desenvolvimento: todo país
efetivamente desenvolvido – desde os EUA até a Noruega, Nova Zelândia,
Suíça, Países Baixos, etc. – possui uma democracia consolidada, com a
efetivação dos direitos civis, políticos e sociais, com o avançar dos direitos
de nova geração (ambientiais, de orientação sexual e outros). A China sem
dúvida logo terá um IDH muito alto, mas o extremo autoritarismo de seu
regime político constitui uma dúvida para que ela possa ser considerada
como plenamente desenvolvida.
[←87]
Cf. SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Rio de Janeiro, Record,
2000.
[←88]
Uma redefinição nessa importante organização internacional, a nosso ver,
é condição indispensável para sua sobrevivência neste século, ou para não
se tornar completamente irrelevante. Ela precisa de adequar às mudanças,
especialmente na questão ambiental (aquecimento global e mudanças
climáticas, enorme perda de biodiversidade com os desmatamentos e a
poluição nos mares e oceanos), nas alterações no equilíbrio de poder na
escala mundial: países ou regiões subrepresentadas na ONU vão se tornar
cada vez mais relevantes, tais como, por exemplo, a Índia, que deverá se
tornar na segunda maior economia do mundo já em meados do século; ou
no caso da África, que na virada para o século XXII deverá superar a Ásia e
ser o continente mais populoso, etc.
[←89]
CASTELLS, M. Fim de milênio. A era da informação: economia, sociedade e
cultura. Volume 3. São Paulo, Paz e Terra, 1999, pp.424-5.
[←90]
Cf. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. São Paulo, Contraponto,
1997.
[←91]
Especialmente na obra The Capitalist World-Economy (Cambridge
University Press, 1979).
[←92]
WALLERSTEIN, I. “Wallerstein desfaz a ilusão do progresso”. Entrevista ao
jornal Folha de S. Paulo, 10/02/2002. (Os destaques são de nossa autoria).
[←93]
Essa é uma tradicional e em grande parte estéril discussão teórica, embora
constantemente reproduzida: vide o famoso escrito de Mao Tse-Tung:
Sobre la Contradiccion, B.Aires, La Rosa, 1969. Em primeiro lugar, no
mundo moderno existem interpenetrações e influências recíprocas entre
fatores “endógenos” e “exógenos”, que em alguns casos são inseparáveis.
Em segundo lugar – e o que é mais importante –, a maior ou menor
influência deste ou daquele fator ou processo sempre depende de cada
realidade específica, é algo que varia muito de acordo com ao lugar e o
momento, não sendo possível nenhuma generalização que dê conta de
todas as situações possíveis numa única fórmula. Em todo caso, como até
Mao Tse-Tung assinalou, nas questões referentes aos Estados territoriais
modernos via de regra os fatores internos são os mais relevantes, mesmo
que por vezes influenciados por circunstâncias externas.
[←94]
MARX, K. O Capital. Livro 1, volume 2. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
1975, pp.696-704, passim.
[←95]
Existem entendimentos variados sobre exclusão, inclusive polêmicas sobre
a sua pertinência na medida em que, vivendo numa sociedade, ninguém é
excluído do ponto de vista sociológico. Mas a exclusão não remete ao todo
social e sim à carência de bens ou serviços específicos. Um importante
autor que questionou essa noção escreveu que: “a exclusão deixa de ser
concebida como expressão de contradição no desenvolvimento da
sociedade capitalista para ser vista como um estado, uma coisa fixa
(...) a sociedade capitalista desenraiza, exclui, para incluir de outro modo,
com as suas próprias regras, segundo a sua própria lógica” (MARTINS, José
de S. Exclusão social e a nova desigualdade, SP, Paulus, 1997, Martins,
p.17 e p.32). Seria, em suas palavras, “uma ‘exclusão includente’
produzida pelo capitalismo”. Malgrado a perspicácia dessa percepção, no
velho e bom estilo Rosa Luxemburgo (o que só engrandece o autor), há o
problema que seu ponto de partido é uma totalidade imaginada, o
“sistema capitalista”, que é entendido como se fosse um agente histórico –
e ademais onipresente. E passa desapercebido que exclusão é uma noção
ética – no sentido dado por Richard RORTY (Pragmatismo e política, SP,
Martins, 2005, p.101-22) –, que implica em ação afirmativa, em demanda
por novos direitos.
[←96]
Cf. SACHS, J. O fim da pobreza. SP, Cia das Letras, 2005.
[←97]
FURTADO, C. O mito do desenvolvimento econômico, RJ, Paz e Terra, 2005;
CASTORIADIS, C. “Reflexões sobre o desenvolvimento e a racionalidade”.
In: As encruzilhadas do labirinto/2. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987,
pp.135-158.
[←98]
Esse estudo foi publicado no Brasil com o título de Nosso Futuro Comum
(editora FGV, 1988).
[←99]
CAIRNCROSS, F. O fim das distâncias, op..cit., p.250.
[←100]
Um bom estudo sobre as mudanças tecnológicas no sentido de uma
tecnologia “limpa”, que permita o desenvolvimento econômico sustentável
(a produção de veículos automotores a hidrogênio ou a eletricidade, de
prédios e residências “ecológicos”, de como reaproveitar a água ou
dessalinizar de forma econômica e sustentável a água do mar, de como
obter com menores espaços e custos novos alimentos, etc.), é o livro de
HAWKEN, P., LOVINS, A. e LOVINS, L. H. Capitalismo natural. SP, Editora
Cultrix/Amaná-Key, 1999.
[←101]
HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-nacional. São Paulo, Littera Mundi,
2001, p.186.
[←102]
População abaixo da linha internacional da pobreza definida como 1,9 dólar
ao dia ou menos por pessoa. Essas informações são do Banco Mundial e
disponíveis in: https://data.worldbank.org/indicator/SI.POV.DDAY?
view=chart. Acesso em 11 dez 2020.
[←103]
FAO - World hunger falls to under 800 million, eradication is next goal, in:
http://www.fao.org/news/story/en/item/288229/icode/. Acesso em 11 dez.
2020. A FAO define fome como prevalência de desnutrição, entendida
como consumo alimentar habitual nsuficiente para fornecer os níveis de
energia dietética necessários para manter uma vida normal ativa e
saudável.
[←104]
Sobre as razões da pobreza no mundo e propostas para eliminar esse
problema, cf. SACHS, Jeffrey. O fim da pobreza. SP, Cia das Letras, 2005.
[←105]
Cf. CHOSSUDOVSKY, M. A globalização da pobreza, SP, Moderna, 1999; e
SANTOS, M. Por uma outra globalização, SP, Record, 2005.
[←106]
Informações coletadas em várias fontes: sites da AAE (Association of
American Educators), de Our World in Data e do OECD -
https://data.oecd.org/eduresource/teachers-salaries.htm). Acessos em 13
dez. 2020.
[←107]
Veja-se esta notícia da BBC, reproduzida na época em quase todos os
portais de notícias ao redor do mundo:
https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160118_riqueza_estudo
_oxfam_fn. Acesso em 11 dez. 2020.
[←108]
Todos esses dados foram extraídos do World Inequality Database,
disponíveis in:
https://wid.world/world/#sptinc_p90p100_z/US;FR;DE;CN;ZA;GB;WO/last/eu
/k/p/yearly/s/false/24.339999999999996/80/curve/false/country. Acesso em
12 dez. 2020.
[←109]
Cf. The Independent, in:
https://www.independent.co.uk/news/business/comment/oxfam-right-
highlight-global-economic-inequality-despite-brickbats-thrown-its-critics-
a8171926.html. Acesso em 12 dez. 2020.
[←110]
Veja-se, por exemplo, o jornal Financial Times: Three reasons to question
Oxfam’s inequality figures. In: https://www.ft.com/content/bc09a15d-d04d-
3f15-9b61-8bad80392947. Acesso em 12 dez. 2020.
[←111]
PIKETTY, T. O Capital no século XXI. SP, Garamond, 2014. Publicada em
francês em 2013, esta obra foi traduzida para dezenas de idiomas e
recebeu rasgados elogios, embora também algumas críticas. Ela vendeu
milhões de exemplares, tornando-se um best seller internacional (durante
algum tempo foi o livro mais vendido pela Amazon), além de ampla
cobertura na mídia, o que provavelmente tenha inspirado a Oxfam a
escrever e divulgar seus “estudos” todos os anos com dados cada vez mais
sensacionalistas e que repercutem enormemente nos meios de
comunicações.
[←112]
PIKETTY, T. op. cit., p.27. Interessante que, apesar da declarada inspiração
em Marx, após analisar as oscilações para baixo ou para cima na
concentração da distribuição de renda nesses 20 países (e os motivos
disso), o autor teve que admitir que essa dinâmica não se deve a uma
lógica inexorável do capitalismo, como Marx imaginava, e sim a decisões
políticas.
[←113]
Idem, p.32-3.
[←114]
Além das estatisticas no livro de quase 700 páginas, sempre com dados
oficiais ou de pesquisadores e organizações internacionais fidedignos, ele
disponibilizou na internet centenas de tabelas e gráficos sobre o assunto,
além de explicações sobre de onde e como foram obtidos ou retrabalhados
esses dados. No caso da edição brasileira, esse anexo técnico pode ser
encontrado in: https://www.intrinseca.com.br/ocapital/.
[←115]
Cf. dados do Banco Mundial in:
https://data.worldbank.org/indicator/SI.POV.GINI?locations=US. Os Estados
Unidos até 1970 tinham um índice de Gini abaixo de 33, mas em 2019 já
era de 41,1 – considerado elevado e maior até que vários países não
desenvolvidos tais como Albânia, Armênia, Azerbaijão, Egito, República da
Guiné, Índia, Libéria e outros. Portanto as relações entre democracia e
desigualdades medidas pelo índice de Gini são complexas: praticamente
todos países democráticos, com a recente exceção dos Estados Unidos,
possuem baixos índices, mas também alguns países pobres (embora não a
maioria) possuem esse índice abaixo de 33.
[←116]
SEN, A. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo, Cia das Letras, 2000;
e Desigualdade reexaminada. Rio de Janeiro, Record, 2001.
[←117]
Cf. DELLORS, J. (Org). Educação – um tesouro a descobrir, Brasília,
Unesco/Mec, 1998. Esta obra coletiva mostra que a família é a instituição
que mais influencia a educação dos jovens por sua maior ou menor
valorização da escolarização e do conhecimento, da meritocracia, do gosto
pela cultura, literatura, artes, etc. É por isso que certos grupos étnicos
costumam ter, em média, um melhor desempenho escolar do que outros
em sociedades multiétnicas – por exemplo, no Brasil ou nos Estados
Unidos, os descendentes de japoneses, chineses, judeus, alemãos e outros.
É porque seus valores familiares valorizam imensamente a educação e a
cultura em geral, e os mais velhos (pais, avós, tios) costumam acompanhar
e estimular vida escolar das crianças e dos adolescentes.
[←118]
Cf. COMTE-SPONVILLE, A. O capitalismo é moral? SP, Martins Fontes, 2005.
[←119]
FRANKFURT, H. G. Sobre a desigualdade. SP, Gravida, 2015, p.13-5.
[←120]
LATOUCHE, Serge. A ocidentalização do mundo. Petrópolis, Vozes, 1994,
pp.68-9.
[←121]
Idem, pp.92-3.
[←122]
LE GOFF, Jacques. Op.cit.
[←123]
Cf. HUNTINGTON, S. O choque de civilizações e a recomposição da ordem
mundial, Editora Objetiva, 1966. Nessa mesma linha, alguns autores latino-
americanos argumentam que os reclames de países desenvolvidos – ou de
ONGs neles sediadas – contra os desmatamentos e o trabalho infantil ou o
escravo, sugerindo sansões comerciais frente aos produtos oriundos
dessas áreas, estariam apenas “tentando impedir exportações dos países
periféricos”.
[←124]
LÉVI-STRAUSS, C. Raça e História. Lisboa, Editorial Presença, 1975, pp.91-
99. Este autor assinalou ainda que todas as culturas que se fecharam às
influências estrangeiras acabaram estagnadas.
[←125]
Idem, pp.92-3.
[←126]
OHMAE, Kenechi. O fim do Estado-nação. A ascensão das economias
regionais. Rio de Janeiro, Campus, 1996, pp.73-5.
[←127]
Cf. BAIROCH, Paul. Revolución industrial y subdesarrollo. México, Siglo
Veintiuno, 1967.
[←128]
Cf. http://www.ggdc.net/maddison/oriindex.htm. Acesso em 18 dez. 2020.
[←129]
Cujas interpretações, a bem da verdade, são antes de tudo desejos ou até
projetos. Eles não analisam ou auscultam a realidade, mas pretendem
contribuir para a sua mudança nos termos em que julgam mais adequados.
[←130]
Em contrapartida, nesse mesmo período os Estados Unidos cresceram em
média 2,6%, a Alemanha 2,0% e o Japão apenas 1,9%. Esses dados podem
ser obtidos no site do Banco Mundial in:
https://data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.MKTP.KD.ZG?view=chart.
Acesso em 17 dez. 2020.
[←131]
Essas informações podem ser pesquisadas in:
https://data.worldbank.org/indicator/SI.POV.GINI?view=chart&locations=JP-
MY. Acesso em 17 dez. 2020.
[←132]
ARENDT, H. Sobre a a Revolução, op. cit.
[←133]
FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Op.cit., p.215. O Panapticon foi um tipo
de arquitetura de presídios, idealizada por Jeremy Bentham no século XVIII,
que visava o controle, a vigilancia constante sobre os presos. Estes
deveriam saber que estavam sendo observados e assim interiorizar essa
mecanismo de poder. Esse modelo foi posteriormente aplicado a outras
instituições como escolas, hospitais, sanatorios, asilos, etc.
[←134]
LEFEBVRE, H. A Reprodução das Relações de Produção, Porto, Publicações
Escorpião, 1973, pp. 89-90.