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Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017
Editorial
4 Capa
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Sumário
Documento
Luciana Santos:
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O centro dos debates é a luta por
novos rumos para o país ...................................... 52
Manuela D’Ávila:
“Se o partido comunista é a honra do
nosso tempo, como disse o Neruda,
que honra enorme para mim ser a
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candidata dos comunistas”................................... 59
Economia
Internacional
Resenha
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Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017
“Um Estado que carece de meios de mudança Rússia. Na maioria dos países, e destacadamente na
carece dos meios para a sua conservação.”. Europa, os partidos comunistas nasceram de cisões
em partidos socialistas já existentes. No caso brasi-
(Edmund Burke, Reflexões sobre a leiro, o partido surgiu da conversão ao socialismo de
Revolução na França) setores do anarcossindicalismo, que — por princí-
pio — não participavam da vida política nacional.
O
Na época, o Partido Comunista do Brasil foi fundado
título e a citação acima evocam a como a Seção Brasileira da Internacional Comunis-
clássica obra do pensador liberal- ta. Do ponto de vista da evolução política do Bra-
-conservador irlandês, Edmundo sil, trata-se de feito histórico porque, pela primeira
Burke, sobre os (des)caminhos da vez, surgia no seio do recémconstituído movimento
Revolução Francesa de 1789, pro- operário no nosso país uma força com atuação polí-
duzida ainda no calor dos seus trá- tica organizada e continuada. Nos espasmos de vi-
gicos desenvolvimentos e das reações de assombro da legal que desfrutou nos seus primeiros anos de
e horror por eles suscitadas na vetusta aristocracia existência, o Partido participou dos seus primeiros
europeia. Em chave mais alinhada com a tradição do pleitos eleitorais em 1925 e organizou o Bloco Ope-
realismo crítico — tanto filosófico, quanto epistemo- rário e Camponês (BOC) que atuou de 1927 a 1930,
lógico e político —, este texto discute os múltiplos elegendo dois vereadores para a Câmara do Rio de
impactos, legados e lições de uma revolução mais Janeiro, então capital da República. Deste início pio-
“jovem” que igualmente assombrou e transformou neiro em uma realidade marcada pelo capitalismo
o mundo e que completa agora o seu centenário: a ainda incipiente, os trabalhadores e os próprios co-
Revolução de Outubro de 1917 na Rússia. munistas brasileiros tiveram, desde então, participa-
Pensado a partir da realidade brasileira, o primei- ção destacada e marcante nas grandes jornadas da
ro legado da Revolução Soviética que quero destacar vida política nacional.
é o fato de ela ter impulsionado a primeira experiên- Vista de uma perspectiva histórica mais ampla,
cia de participação organizada e continuada dos tra- a Revolução Soviética se destaca por ter sido a pri-
balhadores na vida política nacional com a funda- meira experiência de estruturação continuada de
ção, em 1922, do Partido Comunista do Brasil, por um sistema alternativo ao capitalismo no mundo. É
influência direta da experiência revolucionária na isso o que imprimiu singular importância histórico-
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-mundial a essa revolução centenária. Nos marcos ção natural dos povos por sua autodeterminação. A
da estruturação e posterior derrocada desse sistema, verdade é que, dado o poder das potências coloniais
a Rússia passou da condição de “sócia tardia menor” dominantes, não haveria processo de descolonização
do núcleo central do capitalismo (no formato impe- tão amplo e tão profundo no mundo caso a luta an-
rial) para a de polo articulador de um sistema mun- ti-imperialista não tivesse sido convertida em pilar
dial antagônico (no formato soviético), até refluir das políticas externas da União Soviética e dos de-
para a de potência recalcitrante constrita à semiperi- mais países do antigo campo socialista. A base para
feria do sistema capitalista (no formato atual). essas políticas de Estado foi a teoria do imperialismo
Para além da clivagem mundial-sistêmica apon- desenvolvida por Lênin, que fincou a luta anti-impe-
tada acima, o grande legado da rialista como uma segunda gran-
Revolução Soviética para a huma- de vertente do movimento revo-
nidade foi ter introduzido a ques- Um terceiro legado lucionário mundial e que, posta
tão social na agenda política glo- em prática pelo campo socialista,
bal. A Revolução Francesa legou que gostaria de conduziu ao desmantelamento
ao mundo a bandeira dos direitos destacar é o fato de de quase todos os antigos impé-
humanos e da cidadania política rios coloniais, deslegitimando as
latu sensu. A Revolução Soviética,
a URSS, num primeiro práticas colonialistas no mundo.
por sua vez, introduziu na agenda momento, e o campo Trata-se de uma realização torna-
política mundial, de forma abran- da possível em função do apoio
socialista como um
gente e profunda, a questão social político, diplomático, militar, eco-
(baseada na promoção de amplos todo, posteriormente, nômico e moral dado pela URSS e
direitos sociais e na redução ace- terem impulsionado demais países socialistas às cau-
lerada da desigualdade). Isso não sas anti-imperialistas e anticolo-
apenas por suas realizações dire- forças políticas que nialistas, e que legou ao mundo o
tas, que transformaram as estru- desempenharam formato atual do sistema interna-
turas sociais do antigo Império cional: a de um sistema de abran-
papel absolutamente gência global estruturado sobre
Russo e promoveram o maior e
mais profundo processo de recon- determinante poderes estatal-nacionais sobe-
figuração social e de desconcen- nos processos de ranos, baseado (pelo menos do
tração de riqueza e de renda da ponto de vista ideal-formal) no
história da humanidade. Houve, descolonização que princípio da autodeterminação —
também, a afirmação “indireta” varreram o mundo na muito embora a própria liderança
da questão social pela experiên- soviética tenha se afastado desse
cia soviética, fruto da “ameaça”
segunda metade do princípio para praticar seu pró-
que o mundo socialista represen- século 20 prio hegemonismo, ao proclamar a
tou para as elites do mundo ca- doutrina da “soberania limitada”
pitalista e que tornou possível a no campo socialista para justifi-
estruturação de Estados de Bem-Estar e a generali- car a invasão da Tchecoslováquia por tropas do Pacto
zação de direitos sociais na Europa, bem como a sua de Varsóvia em 1968.
ampliação nos processos de desenvolvimento dos Outro legado fundamental, embora no âmbito de
países capitalistas dependentes. Isso também cons- uma coalizão mais ampla, foi a derrota do nazi-fas-
titui uma realização históricoconcreta de profundo e cismo e seu desmantelamento como força política
duradouro alcance no mundo moderno. organizada no mundo e a sua deslegitimação como
Um terceiro legado que gostaria de destacar é o alternativa de organização econômica, social e polí-
fato de a URSS, num primeiro momento, e o cam- tica. Sem desmerecer o papel da coalizão de forças
po socialista como um todo, posteriormente, terem democráticas mencionada acima, é notório que a
impulsionado forças políticas que desempenharam força determinante na derrota do nazi-fascismo na
papel absolutamente determinante nos processos Segunda Guerra Mundial foi a União Soviética, que
de descolonização que varreram o mundo na segun- perdeu 1/6 de sua população no conflito. Sua atua-
da metade do século 20. Foi uma conquista civili- ção mudou o curso da Guerra e desarticulou essa
zacional ampla e profunda que, infelizmente, nem forma de autoritarismo extremo dos países capitalis-
sempre é devidamente valorizada, em função de tas, outro legado civilizacional para a humanidade.
uma leitura que encara o processo de descolonização Há que se registrar, ainda, o importante impac-
como resultado automático e não conflitivo da op- to da Revolução Soviética sobre o desenvolvimento
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Capa
A Revolução Soviética
introduziu na agenda
política mundial, de
forma abrangente e
profunda, a questão
social. Na foto,
primeira -dama dos
Estados Unidos, Eleanor
Roosevelt, segura
exemplar em francês da
Declaração Universal
dos Direitos Humanos
científico e tecnológico mundial. Este legado, uma incluindo a própria internet e as principais tecnolo-
vez mais, foi gerado tanto de forma direta quanto gias incorporadas aos smartphones atuais.
indireta. A URSS sustentou ao longo da sua trajetó-
ria substanciais investimentos em pesquisa básica, A Viabilidade do Socialismo
que a mantiveram como uma das principais potên-
cias científicas mundiais até o seu desmantelamen- O registro dos múltiplos impactos e legados da
to em 1991. A dianteira tecnológica soviética na Revolução Soviética feito acima não é movido por
área aeroespacial alcançada no imediato pós-guer- um pendor à autoemulação ou à autocongratulação.
ra — materializada no lançamento do primeiro sa- São realizações históricoconcretas que não podem
télite artificial (o Sputnik) em 1957 e no primeiro ser ignoradas ou abstraídas por qualquer balanço
voo humano ao espaço (o do cosmonauta Gagarin) que se pretenda objetivo e criterioso dessa experiên-
em 1961 — deflagrou, em reação, gigantesco in- cia agora centenária. No entanto, apesar dessas rea-
cremento de investimentos e reconfigurações ins- lizações, a União Soviética foi desmantelada e o an-
titucionais na área de C&T dos países capitalistas tigo bloco socialista se dissolveu. Isso nos coloca um
centrais, que temiam estar perdendo a “corrida” desafio crítico, porque o socialismo nasceu (pelo me-
com os países socialistas nessa seara. Nos Estados nos na chave fornecida por Marx e por Engels) co-
Unidos, o orçamento da National Science Foundation mo perspectiva emancipatória enraizada nas contra-
(NSF, equivalente grosso modo ao nosso CNPq) foi dições intrínsecas ao modo de produção capitalista:
multiplicado por mais de doze entre 1957 e 1968, no uma alternativa histórica real, que não se limitava
que se convencionou chamar de “Era Dourada” da à crítica romântica dos males do capitalismo. Com
Ciência nesse país (1). Em resposta ao pioneirismo a derrota sofrida, o questionamento sobre a viabi-
aeroespacial da União Soviética, o governo dos EUA lidade da construção de uma sociedade alternativa
criou a National Aeronautics and Space Administration ao capitalismo ganhou força, nos marcos do quadro
“Administração Nacional da Aeronáutica e do Espa- mais geral de defensiva estratégica que passou a ca-
ço” (NASA) em 1958, deflagrando a corrida espacial racterizar a atuação das forças de esquerda no mun-
que resultou na primeira viagem humana à Lua. do após a derrocada do campo socialista.
Na área da Defesa, também em 1958, o Presiden- Hoje, o “ônus da prova”, por assim dizer, da
te Eisenhower fundou uma agência focada no de- viabilidade da alternativa socialista ao capitalismo
senvolvimento de projetos de pesquisa avançada (a recai sobre os defensores dessa alternativa. Não
Defense Advanced Research Projects Agency “Agência de basta criticar as mazelas do capitalismo. É preciso
Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa” – DAR- comprovar que a alternativa socialista é viável. E
PA) que acabou sendo responsável pelas principais para tal, é fundamental compreender por que a pri-
inovações na área de Tecnologias das Informação meira experiência histórica que tentou materializar
e da Comunicação (TIC’s) que constituíram a “so- essa alternativa fracassou. Isso exige a atualização
ciedade do conhecimento” hoje vigente no mundo, e o desenvolvimento da teoria marxista, para dar
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conta desse desafio crítico. Se isso não for feito, a mais precisamente o seu conteúdo dialético, podería-
força de nossas convicções também se esmorece e a mos refrasear a sua formulação como “a superação
viabilidade da construção de uma sociedade alter- da propriedade privada.”. É claro que esta é uma sín-
nativa aos padrões dominantes no mundo passa a tese quase que caricatural do que seria o projeto de
ser limitada. emancipação comunista, mas como toda caricatura,
Há uma saída fácil, porém falsa, para lidar com reúne os seus elementos cruciais e determinantes.
esse desafio: simplesmente atribuir a derrota do Tanto a URSS como as demais experiências socialis-
socialismo ao abandono da “pureza doutrinária” tas passaram por processos de coletivização do gros-
da teoria marxista pelos dirigentes das experiên- so de suas forças produtivas e eliminaram a proprie-
cias revolucionárias do século dade privada como base das suas
20. Muitos intelectuais bem-in- economias e sociedades. Cons-
tencionados enveredam por es- A verdade é que o truíram, dessa forma, o embrião
se caminho e ficam procurando de sociedades socialistas entendi-
olhar para trás e precisar a data sistema socialista das como sociedades de transição
exata em que houve a traição que soviético passou para a eliminação das diferenças
redundou no fracasso. Esta me de classe. Eram projetos que rea-
parece, na verdade, uma forma a enfrentar, na lizavam o desenho fundamental
de fugir da questão, baseada em década de 1970, um do que o próprio Marx colocou
um raciocínio lógico-teórico de como rumo fundamental de uma
fundo dogmático. Inicia-se pela
desafio que não lhe sociedade socialista.
afirmação geral do socialismo co- é particular, mas que No entanto, a realização des-
mo negação do capitalismo, como assumiu contornos se programa de emancipação nas
sociedade que visa à sua negação/ condições históricas concreta-
superação. Em seguida, constrói- particularmente mente enfrentadas pela URSS di-
-se um tipo ideal de sociedade acentuados na feria enormemente das condições
socialista como antípoda às ma- previstas no século 19 por Marx
zelas mais criticadas do capitalis-
URSS por conta das e Engels. A perspectiva de supe-
mo. Na sequência, comparam-se particularidades ração do capitalismo construída
as experiências “socialistas” his- do seu modelo de por eles partia da compreensão de
tóricoconcretas com o tipo ideal. que as primeiras experiências so-
Na medida em que aquelas não se desenvolvimento: o cialistas se originariam nos países
adequam ao formato preconizado desafio da inovação capitalistas mais desenvolvidos.
por este modelo ideal, seus diri- Precisamente por serem mais de-
gentes são acusados de abandono senvolvidos, a produção fabril (e
ou traição da teoria marxista. Esta não estaria em o trabalho coletivo-cooperativo a ele associado) es-
causa, porque nunca teria sido aplicada “de verda- taria mais concentrada nesses países e a contradi-
de” (ou porque deixou de ser aplicada a partir de ção entre o caráter privado da propriedade sobre os
um determinado ponto). A pureza doutrinária, as- meios de produção e o caráter social da produção (is-
sim, estaria preservada. Trata-se, na verdade, de um to é, entre o Capital e o Trabalho) estaria mais inten-
raciocínio simplista de consequências letais para a sificada, gerando, portanto, condições mais maduras
própria teoria marxista, que ficaria, assim, congela- para efetuar a transição socialista.
da em uma espécie de “redoma utópica”, e não se Nas condições históricas concretas geradas pelo
desenvolveria a partir da própria sistematização da advento do imperialismo na passagem do século 19
experiência histórica da URSS e dos demais países para o 20, no entanto, a possibilidade primeira de
do antigo bloco socialista. É nessa direção que en- superação do capitalismo surgiu na semiperiferia e
caminho as reflexões críticas sobre a experiência da não no coração do sistema. Essa era a condição do
Revolução Soviética que desenvolvo a seguir. Império Russo, caracterizado por vários autores da
época, inclusive Lênin, como uma espécie de pon-
O Projeto de Emancipação na te entre o Ocidente e o Oriente porque conjugava,
Semiperiferia nas últimas décadas do século 19, um capitalismo
bastante concentrado e de desenvolvimento tardio
Marx dizia que se pudesse resumir o seu projeto nas cidades, com uma massa de população na área
de emancipação em uma única frase, essa frase se- rural onde predominavam relações pré-capitalis-
ria “a abolição da propriedade privada.”. Para refletir tas. Além disso, havia o agravante de que o Impé-
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rio Russo era institucionalmente débil, pois nunca espalhada por todo o seu território que pudesse ser
chegou a se consolidar como Estado unificado e convertida em indústria de defesa, o que, em última
centralizado, instância, foi o que assegurou – junto, evidentemen-
Esse era o contexto histórico em que se tomou, te, com o heroísmo dos povos soviéticos – a derrota
pela primeira vez no mundo, o poder de forma dura- da máquina de guerra de Hitler na Segunda Guerra
doura para tentar promover a superação do modo de Mundial.
produção capitalista. Havia, portanto, os elementos O desafio que se apresentou em seguida, no en-
do atraso, da semiperiferia, do Estado pouco con- tanto, era o de que, uma vez superado o desafio de
solidado, do contexto geopolítico adverso – o cerco industrialização e da montagem de uma economia
capitalista –, da ameaça permanente de invasão e da medianamente integrada, aquele desenho – com-
guerra civil. Do ponto de vista econômico, a ausência posto pela estatização integral das forças produtivas,
de experiências socialistas em países mais avança- pela direção centralizada e pela planificação deta-
dos na sequência ao triunfo da Revolução Soviética lhada das metas de produção – começara a perder
impôs à recém-constituída URSS o desafio de com- capacidade de manter a dinâmica de desenvolvi-
binar a construção do socialismo com a superação mento e a contínua elevação da produtividade na
acelerada do atraso herdado da condição semiperi- economia soviética. O principal problema era justa-
férica anterior. mente a impossibilidade de sustentar esse modelo
de direção centralizada da economia, via comando
O Dilema do Desenvolvimento e o e mobilização, em uma sociedade cada vez mais he-
Desafio da Inovação terogênea e complexa. Examinando a mesma ques-
tão por outro ângulo, o problema era a inexistência
Historicamente, esse desafio foi enfrentado, de de um mecanismo econômico que, no contexto do
maneira vitoriosa, pela implantação de uma econo- sistema socialista soviético, induzisse à inovação e
mia altamente centralizada, com estatização quase à contínua elevação da produtividade nas empresas.
completa das forças produtivas. Processou-se, ainda, A lógica que ordenava e regia a atividade econômi-
a fusão entre partido e Estado, com a estrutura hie- ca era o cumprimento das metas do Plano central, o
rárquica do partido tendo uma função de mobiliza- que implicava desincentivo sistêmico à assunção dos
ção centralizada da sociedade, para que fosse pos- riscos associados à incorporação de novos produtos e
sível enfrentar os desafios da industrialização, que processos à atividade empresarial.
eram também desafios de sobrevivência do Estado A verdade é que o sistema socialista soviético
soviético. Aliás, se não tivesse havido o esforço ex- passou a enfrentar, na década de 1970, um desafio
tremamente custoso de industrialização acelerada que não lhe é particular, mas que assumiu contornos
dos anos 1930, não haveria uma base econômica particularmente acentuados na URSS por conta das
particularidades do seu
modelo de desenvol-
vimento: o desafio da
inovação. Assim como
ocorreu com os países
capitalistas em desen-
volvimento no século
20, o sistema de Ciên-
cia e Tecnologia sovié-
tico foi estruturado,
em grande medida, de
forma segmentada e
desconectada das em-
presas. As razões para
isto não decorriam da
“escassez de capital”
endógeno para aten-
der, com tecnologia
própria, ao crescimen-
to e à diversificação
A URSS promoveu um esforço concentrado pela industriualização nos anos 1930 dos padrões de consu-
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mo de uma elite que concentrava parcela importante Unidos). O “modelo” socialista soviético teve gran-
da renda nacional, como no caso latino-americano, de êxito na promoção da acelerada industrialização
mas o resultado foi semelhante: baixa propensão das do seu vasto território baseada na assimilação das
empresas para desenvolver ou incorporar métodos, técnicas mais avançadas empregadas nos países ca-
técnicas, equipamentos e produtos inovadores aos pitalistas, mas foi incapaz de desenvolver e dissemi-
seus processos produtivos, dando preferência à as- nar (sobretudo, disseminar) bases tecnológicas para
similação e à reprodução de pacotes tecnológicos já alavancar e estruturar novos ciclos de crescimento
testados. Ou seja, uma base empresarial/industrial da sua economia. Chamo, precisamente, a este im-
com baixa propensão ao desenvolvimento tecnológi- passe — para o qual a direção da URSS não conse-
co e à inovação. guiu gerar respostas estratégicas
A exceção a este quadro era adequadas — de “encruzilhada
o complexo industrial de defesa, A cristalização do da inovação”.
que mantinha estreita colabora- Para além das fantasias utó-
ção entre institutos de pesquisa, pensamento marxista picas do “tipo ideal” socialista,
ministérios centrais, forças ar- em doutrina oficial de trata-se de um crucial desafio es-
madas e empresas para a rápi- tratégico que se apresentou para
da incorporação das tecnologias
Estado na URSS tolheu todas as experiências socialistas
desenvolvidas aos sistemas de a sua natureza dialética histórico-concretas do século 20.
defesa, no quadro de tensiona- e revolucionária, Por isso, penso que devemos va-
mento geopolítico que marcava a lorizar a capacidade de inovação
Guerra Fria e do esforço concen- tornando-o incapaz de e renovação revelada pelas ex-
trado empreendido pela União teorizar, enfrentar e periências chinesa e vietnamita
Soviética para alcançar paridade nesse terreno. Baseados na pró-
estratégica com os Estados Uni- refletir sobre os novos pria experiência da Nova Política
dos. Mesmo aqui, no entanto, a problemas gerados Econômica (NEP) implantada
exploração do caráter dual das na URSS nos ano 1920 — e ope-
pela experiência
tecnologias desenvolvidas — com rando em condições geopolíticas
sua adaptação e disseminação na da construção do bem distintas das que a União
indústria de bens e serviços civis socialismo Soviética enfrentava nos anos
— permaneceu limitada. 1930 —, esses países enfrenta-
O resultado agregado des- ram o desafio com uma reformu-
te conjunto de características sistêmicas era uma lação profunda das suas estratégias de desenvolvi-
combinação entre elevada capacidade científica e mento, que passaram a conjugar variadas formas
tecnológica, de um lado, e baixo grau de inovação de propriedade e de estruturas econômico-sociais,
empresarial, de outro, resultando em dificuldades mantendo elementos de concorrência entre elas e
para atender às crescentes demandas de consumo ampliando as relações de mercado na economia co-
de uma sociedade marcada por baixa concentração mo um todo, mas mantendo o predomínio de for-
de renda (i.e., desigualdade reduzida) e elevada ho- mas sociais e coletivas de propriedade e o controle e
mogeneidade econômico-social (assentada sobre a direção estatais da atividade econômica. O mínimo
universalização de direitos sociais, incluindo o aces- que se pode dizer é que esse desenho alternativo
so à educação e à cultura). Como se sabe, no contex- conseguiu superar um entrave que foi fatal para
to da fixação centralizada de preços, isto resultava a experiência soviética e para o “modelo único de
em incapacidade crônica para abastecer a socieda- socialismo” que a URSS exportou para os demais
de de bens de consumo duráveis na quantidade e integrantes do seu bloco.
qualidade demandada, levando à generalização de Os resultados da reorientação chinesa, em par-
práticas de racionamento na URSS. Em outras pala- ticular, têm sido impressionantes e marcam a pro-
vras, o sistema soviético de planejamento centrali- funda transição atualmente em curso na ordem
zado integral carecia de um mecanismo econômico internacional. Sua participação relativa no Produto
que operasse como equivalente funcional à “anar- Interno Bruto (PIB) mundial medida por Poder de
quia na produção” das economias capitalistas para Paridade de Compra (PPC) passou de 5% em 1980
promover a difusão do progresso técnico com base para 17,1% em 2014, ultrapassando tanto os Es-
no processo de “destruição criativa” de métodos e tados Unidos quanto o peso combinado da União
técnicas estabelecidos (ainda que com forte promo- Europeia (2). Trata-se de trajetória prolongada e
ção e apoio estatal, como vimos no caso dos Estados sustentada de desenvolvimento sem precedentes na
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Cartazes de divulgação dos planos quinquenais: instrumento de planificação econômica implantado na União Soviética
história moderna, superando a dos próprios Estados Estado na URSS: a exportação do modelo soviético,
Unidos na passagem do século 19 para o 20. No âm- gerado para responder a condições históricas mui-
bito desta trajetória, a China estruturou um robusto to específicas, como modelo único de socialismo. A
sistema nacional de inovação para acelerar a dis- sua não aceitação foi muitas vezes encarada como
seminação do progresso técnico na sua economia. traição ou como abandono do socialismo. A imposi-
Os resultados alcançados nesta base pela China na ção de um modelo único de socialismo é fruto des-
área de Ciência, Tecnologia e Inovação também são se embotamento da teoria marxista transformada
marcantes. Sua participação na produção científica em doutrina de Estado. Grosso modo, ocorreu com
mundial passou de 1,1% em 1993 para 16,7% em a teoria de Marx um processo análogo ao que aco-
2013 (segunda no mundo, atrás apenas dos Estados metera, anteriormente, a teoria de Hegel. O próprio
Unidos) (3). Os investimentos em P&D como pro- Marx destacava que, no pensamento hegeliano, o
porção do seu PIB passaram de 0,6% em 1995 para elemento dialético era eminentemente revolucioná-
cerca de 2% em 2012 (4). O mais relevante é que es- rio. No entanto, ao ser fechado como sistema filo-
ta expansão teve impacto significativo na promoção sófico e ao ser transformado em doutrina de Estado
do progresso técnico na economia chinesa. A parti- na Prússia, houve um estrangulamento sistêmico do
cipação de produtos de alta tecnologia na pauta de elemento revolucionário de sua filosofia. A cristali-
exportações da China passou de 4,7% em 1992 para zação do pensamento marxista em doutrina oficial
29% em 2008 (5). de Estado na URSS tolheu a sua natureza dialética
Em suma, a China parece estar conseguindo e revolucionária, tornando-o incapaz de teorizar, en-
encontrar os caminhos para enfrentar e superar o frentar e refletir sobre os novos problemas gerados
“desafio da inovação” no seu desenvolvimento. O pela experiência da construção do socialismo, e de
interessante é que um conjunto de medidas e pro- se renovar para garantir a própria continuidade e so-
posições adotadas inicialmente na URSS no perío- brevivência do projeto socialista.
do da NEP, para lidar com as condições de “atraso” Há, portanto, uma combinação de fatores que
que marcavam sua transição para o socialismo, foi determinaram a derrocada da primeira experiência
redesenhado e reinterpretado pela liderança chinesa socialista no mundo, para as quais chamo a aten-
para encontrar os caminhos para atravessar a “en- ção: o pesado legado das condições históricas que
cruzilhada da inovação” no socialismo. marcaram a gênese dessa experiência na Rússia
mesclado a problemas universais que marcam a
Doutrinação e Congelamento da própria concepção original do projeto de emancipa-
Teoria Marxista ção socialista – visto que o “desafio da inovação”,
apontado acima, tem relevância e repercussões que
O ponto acima evoca outro equívoco oriundo da transcendem as condições históricas específicas da
transformação do marxismo em doutrina oficial de Revolução Soviética.
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O Papel da Educação na
Revolução Russa (1)
Nereide Saviani*
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M
arco histórico do século 20, a Re- Desafios da Revolução
volução Russa de 1917 foi uma
rica tentativa de construção so- Para Lênin, a Revolução não se encerra com o ato
cialista. Suas conquistas, seus da tomada do poder pelos bolcheviques. Ao contrá-
êxitos e fracassos merecem aná- rio, é aí que ela começa. Exigia-se o restabelecimento
lise rigorosa, não como modelo a das forças econômicas do país, assentadas em nova
ser/não ser seguido, mas como referência para a dis- base. A instrução seria primordial para a formação
cussão teórica, política e ideológica que tenha por de trabalhadores capazes de entender e operar em
perspectiva a supera- bases técnicas moder-
ção do capitalismo. De nas. Porém, não uma
igual modo, cabe estu- instrução reduzida ao
dar as concepções que ensino profissional, até
serviram de base aos então restrito ao ades-
projetos desenvolvidos tramento, na lógica ca-
nos diversos domínios pitalista.
da edificação da socie- Para tanto, seria
dade, sob o novo regi- necessário: superar os
me. altos índices de anal-
Este artigo trata, fabetismo, a escassez
principalmente, da e a precariedade das
compreensão sobre o escolas; transformar a
papel da Educação na formação e as condi-
Revolução Russa, na ções de trabalho dos
fase inicial, da toma- professores; promover
da do poder pelos bol- o acesso das mulheres
cheviques até meados Lênin insistia que à educação.
dos anos 1920, quando também o ensino não se Foi preciso, ainda, lidar com
foram elaborados os Programas pessoas e organizações que não
desliga da política.
Oficiais da URSS. reconheceram o Poder Soviético:
Nos programas parte do exército, organizações
A Concepção de escolares os objetivos de operários, associações do ma-
Educação gistério, que se mantinham favo-
educacionais, definidos ráveis ao capitalismo; adversários
As raízes da concepção se en- pelo Poder Soviético, do regime, mesmo os que se auto-
contram em Marx e Engels, na denominavam socialistas.
crítica à educação burguesa e na
eram explícitos: O enfrentamento a esses desa-
discussão sobre o papel do Estado, travar a luta contra a fios exigiu do poder soviético vá-
o princípio da união entre escola burguesia; contribuir rias medidas, destacadas a seguir.
e trabalho, a educação integral, a
escola única do trabalho. para a construção do 1. Eliminar o
Lênin denunciou a precária socialismo Analfabetismo
situação da educação dos tra-
balhadores na Rússia, o que lhe Lênin via na Educação um
permitiu o exame dos desafios elemento-chave para alavancar
a enfrentar e medidas a tomar, uma vez realizada as necessárias transformações na base material e na
a Revolução. Vários temas educacionais aparecem superestrutura da sociedade. Assim é que colocou o
com muita frequência em seus discursos e artigos acento na alfabetização, por ele valorizada tanto
(2), dada sua obstinada preocupação com a forma- quanto a eletrificação. A sociedade precisava sair
ção do homem (ser humano) novo, numa sociedade da obscuridade física, ambiental e, também, da obs-
de novo tipo. curidade cultural. Não se poria em prática a eletrifi-
Sua contribuição se sobressai na relação dialética cação com a existência de analfabetos. A alfabetiza-
entre concepção e ação concreta, como líder da Re- ção, para efetivar-se, precisava da eletrificação.
volução, dirigente do Estado Soviético e do Partido Tais polos foram conjuntamente desencadeados:
Bolchevique. cada central elétrica seria, também, base de instru-
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2. Organizar a Instrução
Pública
Constituiu-se o Comissariado do Povo para a Instru- portivas); higiene (orientação para a saúde); estética:
ção Pública e suas seções: a) Escolar; b) Científica; c) (desenho, escultura, pintura, música instrumental,
Artística; e d) Científico-Pedagógica. canto). 3) Educação Politécnica: relação entre o estudo
Ampliou-se o número de escolas elementares e e o trabalho, como prática social: domínio das bases da
secundárias, foram criadas instituições pré-escola- indústria moderna, em seu desenvolvimento histórico;
res (os jardins de infância) e escolas para jovens e uma base sólida de conhecimentos gerais, associada à for-
adultos. mação profissional, que não se confunde com a mera
Ocorreram avanços também no nível superior, instrução para ocupações específicas (4).
antes restrito às elites. Criaram-se universidades
e instituições científicas, ampliou-se o número de 4. Instituir a Educação Extraescolar
pesquisadores. Sublinha-se que, nos colégios, uni-
versidades e instituições científicas, as mulheres Lênin insistia que o ensino não se desliga da polí-
atingiam cerca de 1/3 dos estudantes, professores e tica. Nos programas escolares os objetivos educacio-
pesquisadores. nais, definidos pelo Poder Soviético, eram explícitos:
travar a luta contra a burguesia; contribuir para a
3. Edificar a Escola Única do Trabalho construção do socialismo.
Principal tarefa: instruir as massas trabalhadoras
Marx e Engels defendiam a responsabilidade do sobre o que há de mais avançado na produção hu-
Estado em relação à educação – na construção, manu- mana, ajudando-as a superar os problemas herdados
tenção e desenvolvimento das escolas –, mas sob con- do capitalismo e a construir a nova sociedade. Isso
trole e fiscalização dos trabalhadores, organizados. não é outra coisa senão o vínculo da Educação com a
Nessa perspectiva, o poder proletário dedicou- política revolucionária do proletariado. Desafio: ligar
-se a construir a escola única do trabalho, com a indissoluvelmente cada passo da atividade da escola
seguinte definição: Escola Única – por seu caráter à luta de todos os trabalhadores contra a explora-
unitário, não de uniformidade, mas de unidade na ção. Contradição principal presente na concepção de
diversidade. Não várias escolas, instituições inde- Educação almejada pelo Poder Soviético: lutar con-
pendentes e isoladas, mas uma escola, articulada em tra a burguesia, sem destruir o seu legado. Ou seja,
seus vários níveis, graus, modalidades, instâncias edificar o socialismo com as forças humanas e os
de decisão e de realização. Do trabalho, como ação meios materiais herdados das sociedades anteriores.
humana, mediada por técnicas e instrumentos cada Todavia, nas condições de imenso atraso da maio-
vez mais desenvolvidos; ação coletiva, consciente, ria da população em relação a aspectos mínimos de
disciplinada, organizada, com valores de cooperação. escolaridade, quem detinha os conhecimentos e as
Educação integral: 1) Educação Intelectual: instru- técnicas eram as pessoas formadas nos padrões da
ção científica – aquisição dos conhecimentos (estu- velha escola, privilégio das classes exploradoras. Im-
do metódico da cultura humana). 2) Educação física: possível abrir mão de docentes e especialistas oriun-
formação corporal (ginástica, dança e atividades des- dos dessa formação. Alguns, até simpáticos às novas
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Podemos ver nas gerações seguintes que os efei- Entretanto, a partir de meados da década de
tos do projeto educacional soviético se fazem ainda 1930, o carro-chefe da ciência soviética, o que rece-
mais pronunciados. Muito jovens foram atraídos pa- beu mais atenção e fundos governamentais, não foi
ra a ciência pela imagem excepcional que a socieda- a construção do comunismo, mas o desenvolvimen-
de soviética tinha da ciência e da tecnologia como to de tecnologias bélicas. A ascensão do fascismo e
uma ferramenta de transformação. Na trajetória dos o prospecto de uma guerra iminente na Europa fize-
físicos que estudei em minha tese de doutorado fica ram com que cada vez mais recursos e pesquisas fos-
claro como aquela imagem contribuiu para a decisão sem direcionados para e mobilização em preparação
deles de seguir uma carreira científica e alimentou para a Segunda Guerra Mundial. Durante a guerra,
suas escolhas acadêmicas. pesquisas sem relação com os esforços praticamente
Por exemplo, Nikolai Basov e Zhores Alferov, ga- estagnaram.
nhadores do prêmio Nobel por seus trabalhos com Após a guerra as instituições científicas gradual-
lasers, relembram sua fascinação com o poder da mente retomaram suas pesquisas, mas no contex-
ciência e da tecnologia para transformar a sociedade. to da guerra fria pesquisas com possíveis aplicações
Segundo Basov, quando ingressou na carreira, seu militares permaneceriam prioritárias até o fim da
principal pensamento era “dominar a física para de- União Soviética. De fato, mesmo os feitos conside-
senvolver a economia nacional.”. rados civis da ciência soviética, como o lançamento
Basov, Alferov e muitos outros cientistas de sua do Sputnik, foram na verdade da indústria militar.
geração, nascidos na primeira década após a con- O programa espacial soviético foi um efeito colateral
solidação da Revolução de Outubro, se dedicaram da corrida armamentista, em especial do desenvolvi-
de corpo e alma à construção do comunismo. Para mento de mísseis balísticos intercontinentais (MBI).
eles, a ciência e a tecnologia teriam o papel funda- O Sputnik, que deu partida à corrida espacial,
mental de criar as bases materiais que tornariam mudou os rumos do século XX. Entretanto, inicial-
possível alcançar o comunismo. Até hoje, aos 87 mente não havia planos oficiais de lançar um sa-
anos de idade, Alferov continua fiel aos ideais do télite espacial. O lançamento foi na verdade uma
comunismo. Atualmente ele é um dos principais concessão feita por Nikita Kruschev a um grupo de
nomes no Partido Comunista da Rússia e vem sen- engenheiros liderado por Sergei Korolev que em sua
do reeleito como deputado desde 1995. Ele vê no juventude sonhavam com viagens espaciais e explo-
comunismo o melhor caminho para se resgatar a ração espacial. Satisfeito com o sucesso na constru-
proeminência da Rússia em termos de ciência e ção dos MBI, Nikita Kruschev permitiu que os enge-
tecnologia. nheiros espaciais lançassem um foguete carregando
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O satélite Sputnik, que deu partida à corrida espacial, mudou os rumos do século 20. O lançamento foi uma concessão feita por
Nikita Kruschev a um grupo de engenheiros liderado por Sergei Korolev (foto)
um satélite artificial, desde que garantissem que isso permaneceram leais ao regime mesmo depois de sua
não os distrairia de seu trabalho principal. Com um queda, a partir do final da década de 1970 começa-
mecanismo bem simples, uma espera do tamanho ram a demonstrar insatisfação com alguns aspectos
de uma bola de basquete que emitia bipes através da ciência soviética, em particular o foco excessivo
de ondas de rádio, o Sputnik 1 foi lançado em 04 de em tecnologia militar, em detrimento de tecnologias
outubro de 1957. para atender ao mercado civil. E o grau de confiden-
A repercussão internacional e o impacto desse cialidade envolvendo a ciência e tecnologia soviéti-
feito superaram todas as expectativas. Temendo ficar cas é frequentemente mencionado em documentos
para trás em ciência e tecnologia, os Estados Unidos da época.
investiram pesadamente em pesquisas civis, na for- Para se ter uma ideia do custo com defesa na-
mação de cientistas e na reformulação do ensino de cional na URSS, as estimativas da porcentagem do
ciência para torná-la mais atrativa para os jovens. PIB destinadas a gastos militares entre as décadas de
Muitos dos projetos frutos dessa reformulação fo- 1960 e 1980 ficaram entre 12% e 25%, enquanto os
ram importados para outros países, inclusive para o investimentos em pesquisa básica ficaram entre 3%
Brasil, estimulando uma reformulação do ensino de e 4%. A título de comparação, os investimentos com
ciências em nível global. Além disso, os Estados Uni- defesa pelos Estados Unidos, no mesmo período, va-
dos deram início a um programa de atração de cien- riaram entre 8,8% e 4,6% do PIB, enquanto os in-
tistas estrangeiros que provocou a chamada evasão vestimentos em pesquisa básica ficaram entre 2,6%
de cérebros em muitos países em desenvolvimento e 3%. Esses números são ainda mais significativos
e transformou a demografia da ciência norte-ame- se levarmos em conta que todos os serviços e todos
ricana. Anos mais tarde, muitos desses cientistas os investimentos com pesquisa e desenvolvimento
retornaram a seus países e se tornaram líderes em na União Soviética entravam no orçamento estatal.
suas áreas (referência à dissertação de mestrado e Sem contar que as melhores mentes da ciência so-
ao artigo na RBEF). Em síntese, o Sputnik não só viética estavam envolvidas com pesquisas militares.
deu a largada para a corrida espacial, como também (MEASURES, 1998).
transformou a ciência e a comunidade científica em Em análises sobre a tecnologia soviética do iní-
nível mundial. cio da década de 1980, é perceptível o desconforto
Entretanto, mesmo que o desenvolvimento de de líderes da ciência soviética com o descompasso
tecnologia militar tenha permitido à União Soviética entre tecnologia civil e tecnologia militar. As tecno-
deixar esse legado para o mundo, o modelo de de- logias militares desenvolvidas na União Soviética
senvolvimento tecnológico soviético gradualmente são suficientes para fazer da Rússia ainda hoje uma
começou a apresentar suas limitações. Até mesmo das nações mais avançadas em tecnologia militar do
cientistas como Zhorés Alferov e Nikolai Basov, que mundo. Entretanto, frequentemente vemos alusão à
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inabilidade da indústria soviética para desenvolver quanto potência científica mundial, mas a decadên-
uma lavadora de roupas decente. cia da ciência russa após a perestroica foi meteórica,
Em síntese, por um lado, o apoio à ciência e tec- principalmente através da evasão de cérebros para
nologia dado pelo regime soviético ao longo de toda a Europa e a América do Norte. Se não tomarmos
a história da União Soviética e o cuidado é isso que pode aconte-
valor simbólico que a ciência e cer com o Brasil.
seus representantes tinham dian- Os defensores do Os defensores do neolibera-
te da sociedade foram cruciais pa- lismo aqui no Brasil parecem
ra a formação do império científi- neoliberalismo aqui ignorar que o próprio complexo
co da União Soviética. Por outro, no Brasil parecem científico e tecnológico dos Esta-
o excessivo direcionamento dos dos Unidos foi criado com inves-
recursos e talentos para a área de
ignorar que o próprio timentos governamentais pesa-
defesa prejudicou o desenvolvi- complexo científico dos, feitos sobretudo no período
mento social da União Soviética, e tecnológico dos da Guerra Fria, em especial após
uma vez que a privou de usufruir o lançamento do Sputnik. Sem
dos benefícios que aquele império Estados Unidos esse pesado investimento de di-
científico poderia lhe oferecer. foi criado com nheiro público, sobretudo através
Naturalmente, os problemas de agências militares vinculadas
com a inovação na União Soviética
investimentos ao Departamento de Defesa, não
vão além da parcela do orçamento governamentais haveria o Vale do Silício e prova-
dedicado à defesa, envolvendo tam- pesados, feitos velmente não teríamos boa parte
bém os fatores sistêmicos que são da tecnologia que conhecemos
bem descritos em A Revolução Bipo- sobretudo no período hoje. A ideia de que ciência e tec-
lar, de Luis Fernandes. Entretanto, da Guerra Fria nologia se desenvolvem natural-
essa era uma análise inacessível pa- mente, propelidas pela lógica de
ra a população da União Soviética. mercado, não resiste a uma análi-
Para ela, os gastos com defesa eram o principal fardo, se histórica. Em resumo, a ciência não se desenvolve
que atravancava o desenvolvimento da indústria de sem apoio governamental, tanto financeiro quanto
bens de consumo, como pode ser constatado pelas repe- simbólico, nem sem a consciência, por parte da po-
tidas promessas, não cumpridas, dos líderes soviéticos pulação, de sua importância para o desenvolvimento
de reduzir os investimentos em defesa. Para os jovens em suas diversas dimensões.
que foram atraídos para a ciência pelo seu potencial pa-
ra construir uma sociedade melhor, tal percepção con- *Climério Silva Neto é professor de filosofia e
tribuía para a sua alienação do projeto de construção do história da Universidade Federal do Oeste da
comunismo. Os mesmos valores que os atraíram para a Bahia. Este texto é composto dos principais
ciência contribuíram também para aliená-los do projeto trechos da apresentação sobre a ciência soviética
soviético por conta do conflito entre esses valores e os feita pelo autor no seminário Outros Outubros
rumos que a União Soviética havia de fato tomado. Virão (São Paulo, 11/11/2017)
Quando olhamos para a situação da ciência no
Brasil atual, à luz desse fenômeno histórico, fica cla-
ro que estamos em um momento crítico. O apoio REFERÊNCIAS
governamental e o prestígio público foram essen-
MEASURES. Analyzing Soviet Defense Program, 1951-
ciais para a ciência soviética prosperar. No Brasil de
1990 (Analisando o Programa Soviético de Defesa,
hoje, não temos nem um, nem outro. Ao contrário, 1951-1990). Studies in Intelligence (Classified or
o governo golpista de Michel Temer vem sistemati- Unclassified Articles from the CIA’s Internal Journal)
camente promovendo o sucateamento da ciência e “Estudos em Inteligência (Artigos Catalogados ou
tecnologia brasileira. Tal política não pode ter ou- Não Catalogados do Jornal Interno da CIA”, 42(3),
1998. Disponível em: <http://www.gwu.edu/nsarchiv/
tra consequência senão fazer o Brasil regredir em
NSAEBB/NSAEBB431/docs/intell_ebb_009.PDF}>.
diversos aspectos. Depois de mais de uma década
de avanços e conquistas importantes para a ciên- VELIKHOV, E. Dostizheniia fiziko-tekhnicheskikh nauk i
zadachi nauchno-tekhnicheskogo progressa v narodnom
cia brasileira, estamos vivenciando um processo de
khoziaystve (Conquistas nas ciências físicas e técnicas
retrocessos que, se não for revertido, terá conse- e nas tarefas de progresso científico e tecnológico na
quências terríveis para a ciência brasileira. A União economia nacional). Vestnik RAN, 5, 1984, p. 7-13.
Soviética precisou de décadas para se consolidar en-
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ma questão que consideramos es- de do capitalismo de responder – e resolver – às suas
sencial para o Partido Comunista do crises. Em verdade, ele só tem agravado a situação,
Brasil é a nova luta pelo socialismo. surgindo grandes impasses, produtos de contradi-
A grande questão do mundo, hoje, é ções básicas do próprio sistema capitalista que im-
esta: Qual a perspectiva? Indagação pede o avanço civilizacional.
crucial que se apresenta no contexto O capitalismo é cada vez mais excludente. As de-
de uma luta ideológica e política de grande enverga- sigualdades aumentam cada vez mais, a concentra-
dura. As classes dominantes, por intermédio de seu ção do capital e da riqueza é sem precedentes, sobre-
poderoso complexo midiático e cultural, dissemi- tudo depois da crise de 2008. É crescente o número
nam que o socialismo “morreu”. Nestas circunstân- de deserdados, de famintos. E a lei objetiva do de-
cias, qual a perspectiva do Partido Comunista e dos senvolvimento desigual do capitalismo atua gerando
revolucionários, hoje? uma globalização de desiguais.
A denominada quarta revolução industrial se
Século 20, como síntese dá nos marcos do capitalismo. Mas o capitalismo é
incapaz de dispor toda essa tecnologia gigantesca
Questão que considero chave é que o socialis- da produção a serviço de toda a humanidade. Pelo
mo nasce no século 20. Isso tem contrário, exclui ainda mais o tra-
uma importância fundamental balhador dos benefícios da ino-
na nossa narrativa, já que a luta Erro grave deste vação. Então, esse sistema social,
ideológica é feita de narrativas esse modo de produção e suas re-
representativas. Primeiro: o so- primeiro ciclo lações de produção estão supera-
cialismo não é resultante uni- do socialismo dos historicamente. Mas persiste
lateral da vontade subjetiva das no curso da história por imposi-
pessoas. O socialismo é uma exi- foi transformar a ções ideológicas, políticas e de po-
gência objetiva da história, ao dar Revolução Russa em der, das quais ainda dispõe forte-
os primeiros passos no século 20. mente. É por isso que não se pode
um exemplo universal,
As experiências históricas de suplantar um modo de produção
estruturação continuada de um único para o mundo absoluto anterior simplesmente
sistema socialista, alternativo ao inteiro. Uma revolução no “bafo”, ou num breve período
capitalismo, começam somente no histórico, mesmo através de uma
século 20. A Comuna de Paris de extremamente singular revolução de grande alcance co-
1871 foi apenas um primeiro en- e particular, num mo a Revolução de Outubro.
saio revolucionário do proletariado Temos essa visão de que o so-
nascente. Na celebre conclusão de
período excepcional, cialismo nasceu no século passa-
Marx, “Um assalto aos Céus”. não poderia ser do, e continua. Ele não morreu.
A primeira experiência, por- modelo único para o Em verdade, estamos diante de
tanto, a Revolução Soviética, du- uma nova luta pelo socialismo
rou pouco mais de 70 anos. É um mundo todo desde o final do século passado,
tempo exíguo para prevalecer uma sobretudo agora no início do sé-
nova formação política, econômica culo 21.
e social na cena da história. Para prevalecer sobre o
feudalismo, o capitalismo levou cerca de 300 anos. Condições históricas para revoluções
Os modos de produção e os seus desdobramentos
não superam seus precedentes na base de um salto Nós partimos da análise das experiências revolu-
direto. Isso não existe! Na evolução histórica da hu- cionárias e do começo da construção do socialismo
manidade as novas formações políticas, econômicas no século 20 – cheio que foi de revoluções, como a
e sociais exigem um tempo extenso para prevalecer. Revolução Russa e a Revolução Chinesa. Aliás, uma
A experiência soviética teve uma duração curta surgiu como desdobramento da Primeira Guer-
do ponto de vista histórico. Por outro lado, não é ra Mundial, e a segunda como desdobramento da
iminente a queda do capitalismo. Muitos prognós- Segunda Guerra Mundial – o que evidencia que as
ticos que apontavam o seu fim não se cumpriram, grandes transformações não dependem só do pro-
se revelaram apenas produto de uma vontade. Mas cesso e do desenvolvimento da luta nacional. Isso
o que quero dizer é que, embora não seja iminente está imbricado também em um contexto do sistema
essa queda, objetivamente é crescente a incapacida- internacional.
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Experiências
socialistas
contemporâneas
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O papel do
Estado
Como construir o
socialismo nas condi-
ções do mundo – neste
início do século 21 –,
e na realidade de seus
países? Essas experiên-
cias revolucionárias,
portanto, se distan- A Revolução Chinesa teve o mérito de não querer copiar o modelo soviético
ciaram do modelo so-
viético de um período
excepcional. O início delas teve como premissa a lo contrário, no Vietnã há um Estado poderoso. A
construção de um Estado de caráter nacional, de- China, hoje uma potência mundial, tem um Estado
mocrático e popular. Foi o que aconteceu na China, poderosíssimo.
no Vietnã e em Cuba. O Estado com esse caráter é O Estado nacional soberano e democrático tem
hegemonizado pelas forças interessadas na transi- um papel fundamental. Isso é decisivo para os pro-
ção a uma nova sociedade, como jetos socialistas, assim como para
trabalhadores, camadas médias os projetos nacionais anteriores
e até setores da classe domi- Ponto candente desse ao socialismo. Hoje, portanto, o
nante. Na China, Mao Tsé-tung exemplo mais destacado é a Chi-
sempre levou em conta inclusive
debate, sobretudo
na – uma estrutura de forte Es-
a chamada burguesia nacional aqui no Brasil, é a tado nacional soberano, que se
chinesa, na construção econômi- questão nacional, torna uma grande potência mun-
ca, ou setores dominantes “sen- dial, já sendo a maior economia
satos”. O Vietnã fez uma Frente independência e do mundo, medido o Produto
ampla naquela sociedade, levan- soberania. A questão Interno Bruto (PIB) pelo critério
do muito em conta uma visão da paridade do poder de compra
nacional própria deles. Portanto, nacional é primordial, (PPC).
eram Estados já dirigidos pelas tanto para a conquista
forças revolucionárias vitoriosas.
do poder, quanto Traços tradicionais da
Ponto candente desse deba- nova sociedade
te, sobretudo aqui no Brasil, é a para a construção do
questão nacional, independência próprio socialismo Há duas questões que enri-
e soberania. A questão nacional quecem o debate sobre o socialis-
é primordial, tanto para a con- através da formação mo contemporâneo. Marx na Crí-
quista do poder, quanto para a de um Estado nacional, tica ao Programa de Gotha delineia
construção do próprio socialismo que o socialismo é um extenso
através da formação de um Es-
democrático-popular
período histórico da transição en-
tado nacional, democrático-po- tre o capitalismo e o comunismo.
pular. Não vejo como avançar na Muitas vezes perde-se de vista es-
experiência socialista sem esse Estado soberano, de- sa questão. Ele definiu nessa transição socialista um
mocrático, popular e poderoso. É evidente que esses princípio distribuidor da riqueza, que faz parte do
Estados surgiram como produto da revolução, que direito burguês: “De cada um, segundo suas capaci-
têm uma forte base social, e não voltaram atrás. Pe- dades, a cada um, segundo seu trabalho.”
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talistas desenvolvidas.
É preciso compre-
ender, portanto, que a
construção do socia-
lismo no curso histó-
rico contemporâneo
– tanto nas experiên-
cias atuais, quanto
nas passadas – reside
no fato de o socialis-
mo existir e operar
dentro dos marcos de
uma economia globa-
lizada, hegemonizada
pelo capitalismo e seus
monopólios produti-
vos e financeiros. Ou
seja, as experiências
Cubanos erguem fotos de Che Guevara nas homenagens pelos 50 anos de sua morte, em 2017 já nascem cercadas de
capitalismo por todo
lado. Não foi, e não se
Nessa longa transição, vão existir variadas for- deu, aquilo que Marx previa: que o socialismo sur-
mas de propriedade. Na chamada economia mista giria nos países capitalistas mais desenvolvidos com
persiste o mercado, resultante da sociedade capita- a base material suficiente para se ir adiante numa
lista, sendo agora conduzido pelo Estado socialista, sociedade superior ao capitalismo.
tendo o trabalho como medida da distribuição da Foi acontecer nas sociedades capitalistas mais
renda e da riqueza, porque “é de cada um, segundo a atrasadas. No interior da China havia um pré-capi-
quantidade e a qualidade desse trabalho.”. talismo. No Vietnã, também. Mesmo na Rússia, o
É também de Marx a visão de que a nova socieda- capitalismo foi um processo tardio. Isso porque as
de nasce das entranhas da velha sociedade. Indago: etapas iniciais do socialismo estão envoltas em con-
Após a implantação de um novo poder de Estado, dições objetivas e subjetivas do capitalismo. E acon-
acaba aquela velha sociedade, seus valores e institui- teceu em sociedades cujas base material e riqueza
ções, e a partir daí começa tudo novinho? Isso imagi- social eram ainda escassas. Portanto, essa conclusão
nado dentro de uma visão muito primária do proces- me parece importante para compreendermos, hoje,
so transformador. Pela compreensão real, o processo as formulações do socialismo contemporâneo.
e os saltos desse desenvolvimento social saem das
entranhas da sociedade anterior. Tentativa e erro
Mesmo mudanças na infraestrutura econômica e
social não refletem em mudanças automáticas na su- A construção da sociedade pós-capitalista é um
perestrutura, e menos ainda na consciência social. Es- gigantesco processo de aprendizagem. Trata-se de
sa consciência social, com muitos valores enraizados construir uma sociedade inteiramente nova num
na sociedade anterior, persiste durante longo tempo. curso inédito que, inevitavelmente, implica tentati-
A segunda questão é o contexto histórico. O socia- vas e erros. E as condições objetivas históricas na-
lismo em todas as experiências, até agora, sobretudo cional e internacional, quando se realiza o processo
as que irrompem no século 20, ocorre em sociedades revolucionário, podem levar a diferentes alternativas
capitalistas relativamente atrasadas ou pré-capitalis- de como viabilizar o empreendimento da construção
tas, impondo às forças dirigentes da revolução a tare- da nova sociedade.
fa primária de se criar ou desenvolver a riqueza ma- Por exemplo, a Rússia soviética, nos primeiros
terial. É impossível socializar uma riqueza que não 20 anos, passou por três experimentos, três modelos
existe. Por isso, sobretudo nas sociedades atrasadas, postos em prática: o comunismo de guerra; a Nova
a importância da centralidade do desenvolvimento Política Econômica (NEP), o novo plano econômico;
das forças produtivas. Sem isto é impossível criar e e o terceiro, que acabou prevalecendo: a estatização e
prosperar um regime superior ao capitalismo, cuja a coletivização acelerada. Foram necessárias, portan-
base material é mais atrasada que as sociedades capi- to, duas décadas para que a Rússia viesse a adentrar
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primária do socialismo, cujo fundamento básico é o esses ciclos de desenvolvimento têm resultado de
“socialismo de mercado”. um planejamento de médio e longo prazos, como foi
A China, portanto, desde 1978 passa por mu- demostrado por Xi Jinping, no recente XIX Congres-
danças de vulto. Como defende o pesquisador Elias so do Partido Comunista da China. Ou seja, isso não
Jabbour, já existem indícios teóricos e empíricos surge de agora.
suficientes para dizer que o socialismo de mercado A imprensa burguesa faz parecer que o presiden-
se constitui como uma “formação econômica e social te Xi Jinping – ao reafirmar o plano que já estava
distinta” do curso clássico dos modos de produção. estabelecido desde antes, numa primeira etapa indo
A crise de 2008 e as novas configurações do Estado até 2035, e numa segunda etapa até meados do sé-
chinês teriam acelerado esse diagnóstico. Trata-se culo – demonstra querer ficar longo tempo no poder.
de uma afirmação teórica ousada, que enriquece o Essa mídia procura distorcer a ordem política instau-
debate. rada na China e dar a sua versão
O que o referido pesquisa- preconceituosa. Lá, as gerações
dor quer dizer com isso? Há uma O socialismo é no poder central, institucional-
compreensão básica de que o mente estabelecidas, têm uma
mundo passou pelo comunismo
riqueza social, carência de dez anos, quando são
primitivo, escravismo, feudalis- segundo Marx. Sem substituídas pela nova geração. A
mo e o capitalismo, basicamente. isso o que se pode cada dez anos, sai toda a cúpula
Jabbour quer introduzir, entre o dirigente. A continuidade é dada
capitalismo e o socialismo pleno, conseguir então é por um líder que vem da geração
um estágio de desenvolvimento distribuir miséria – anterior, que assume a função
que ele denomina de “socialismo maior no Partido Comunista da
de mercado”. Isso teria surgido da um ultraigualitarismo China, e na República o posto
tentativa de construir uma nova sem futuro mais elevado, como o presidente
sociedade em países capitalistas desta. E este completa o seu papel
relativamente atrasados. Se tives- durante uma década.
se surgido, como Marx previa, nos países capitalistas É a forma política encontrada para a construção
mais desenvolvidos, a situação talvez fosse outra. da nova sociedade chinesa na época atual. Sabia-
Não estou concordando ipsis litteris com essa tese. mente, os chineses não se sentem obrigados a copiar
Mas, entra uma nova categoria importante no de- o liberalismo político do Ocidente capitalista. As for-
bate. O que quero dizer com isso é que na China a mas políticas, jurídicas e institucionais de uma so-
evolução dos acontecimentos demonstra que as re- ciedade pioneira, na formação que suplante o regime
formas econômicas e institucionais, a partir de 1978, capitalista, levam muito tempo para se aperfeiçoa-
levam a um gigantesco crescimento econômico, e a rem e se consolidarem em um Estado socialista de
transformações profundas na sociedade. O investi- direito. O capitalismo levou uns 200 anos para isso.
mento gigantesco da China ainda está na ordem de É preciso relembrar uma questão importante: a
mais de 40% de seu PIB. Em torno de 600 milhões de revolução popular na China desalojou a burguesia e
chineses saíram, em curto espaço de tempo, de áreas os senhores de grandes propriedades rurais do poder
rurais para urbanas, e as camadas pobres reduziram- do Estado. A burguesia teve um papel importante na
-se significativamente. China, ajudando no desenvolvimento, mas deixou
Imaginem, no Brasil: aqueles que saíram da zona de ter o poder de Estado. Na União Soviética a força
rural, também em tempo curto, incharam as cida- revolucionária, o proletariado, aquele que conquis-
des, gerando enormes problemas estruturais e so- tou o poder por meio da revolução, foi sendo desti-
ciais, em grande medida perdurando até hoje, devi- tuído do poder, culminando com o fim da URSS em
do à falta de planejamento urbano. Ao contrário na 1991. Uma situação é depor a burguesia do poder
China, a crescente urbanização, sob planejamento de Estado. Outra é desapropriá-la, porquanto ainda
central, conseguiu um deslocamento gigantesco da pode ter função importante no plano do desenvolvi-
população para zonas urbanas existentes, e sobretu- mento econômico. Posição defendida por Mao Tsé-
do com a formação de novas áreas urbanas grandes, -tung no processo da Revolução Chinesa.
médias e pequenas, evitando um grande caos. Então, quem tem o poder é a força revolucionária,
Essa situação alcançada faz parte, desde o início, tanto na China, quanto no Vietnã ou em Cuba. Agora,
do ciclo de reforma e abertura, no qual o Estado pla- comentando o XIX Congresso do PC da China, Scott
neja as etapas do desenvolvimento e da instauração Kennedy, vice-diretor do Centro de Estudos Estraté-
de inovações institucionais correspondentes. Aliás, gicos Internacionais de Washington, simplesmente
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uma casa que nós alugamos nos arredores de Pa- pós-golpe de Estado no Brasil, no qual o consórcio
ris, o governo ajudava até a contratar um aluguel da classe dominante tomou o poder nacional, em
de três quartos, porque tínhamos um filho e uma 2016, por um atalho, gesta a instauração de uma or-
filha, e cada um tinha que ter o próprio quarto. E o dem que desmonta as bases iniciais de um projeto
carteiro ia entregar no meu apartamento, mensal- de desenvolvimento nacional em consonância com a
mente, parte do valor do aluguel em dinheiro vivo. integração regional.
Faço este registro, porque não imaginava direitos O país, sob a condução de um governo impos-
como esse. Então, a luta para a reconquista dos di- tor, passa a se submeter à imposição neoliberal e
reitos perdidos na Europa é fundamental. A crise imperialista e ao realinhamento geopolítico deter-
da globalização neoliberal tem provocado crescente minado pelos Estados Unidos e União Europeia,
mal-estar no seio dos trabalha- contrário à tendência à multipo-
dores e das camadas populares. larização no sistema internacio-
Essa perda de proteção social se O sistema capitalista nal. Assim, a luta pela retomada
refletiu nas eleições na França, se torna cada vez de um novo projeto nacional de
nos Estados Unidos, tanto quan- desenvolvimento mais ainda se
to o Brexit no Reino Unido. mais defasado para impõe.
A outra grande luta que al- enfrentar os grandes E, por fim, a terceira grande
cança crescente avanço é relacio- luta, ainda incompreendida por
problemas da nossa
nada ao modo de projeto nacio- correntes e setores da esquerda.
nal de desenvolvimento, muitos época, tornando-se um A luta no âmbito mundial, cuja
deles vinculados ao desenvolvi- motor de retração das vanguarda são os países que se
mento regional, nos países da se- empenham na construção da
miperiferia e da periferia do sis- transformações sociais, perspectiva socialista contempo-
tema capitalista. Caminho cuja um imenso paredão rânea, capazes de reduzir a des-
condução cabe às forças conse- vantagem e o atraso em relação
quentes populares e nacionais.
que barra o avanço aos países capitalistas mais de-
A bandeira da defesa nacional e civilizacional senvolvidos, sendo a China a ex-
de um projeto nacional com ba- periência mais avançada. Reali-
se popular pertence à esquerda. dade e frente de luta expostas em
Exemplos importantes do avanço desses projetos diversas facetas nas descrições acima.
nacionais, com Estados nacionais soberanos e for- Estas três grandes lutas estão de diferentes mo-
tes, na sua condução, livrando-se do rentismo, es- dos e formas no âmbito das formações que possam
tão na Ásia. suplantar o domínio da hegemonia e vigência do
Os países dependentes do centro capitalista na capitalismo. E as experiências socialistas contem-
divisão internacional do trabalho estão sujeitos ao porâneas estão no curso de abrir caminho para a
domínio estrutural neoliberal e imperialista das retomada de um sistema social que suplante o mo-
grandes potências capitalistas. Esse domínio impõe do de produção e as relações de produção capita-
grandes obstáculos ao desenvolvimento autônomo, lista. O sistema capitalista se torna cada vez mais
à democracia e ao progresso social desses países de- defasado para enfrentar os grandes problemas da
pendentes. nossa época, tornando-se um motor de retração
Por isso, a questão nacional ocupa uma centra- das transformações sociais, um imenso paredão
lidade, na qual a salvaguarda da sua independên- que barra o avanço civilizacional. Do ponto de vista
cia, a autodeterminação política e econômica são histórico, o capitalismo já era para ter ido embora,
essências na aplicação de um projeto de desenvolvi- mas persiste ainda na cena da história pelo peso do
mento autônomo e próprio. Pressuposto, inclusive, seu poder, dominância política e ideológica e por
para o progresso social e respaldo para avanço da valores arraigados em séculos, próprios de uma so-
causa democrática. Tais condições podem permitir ciedade velha, alquebrada, que se mantém de pé.
a formação de um bloco politico condutor, nas con- Portanto, uma nova sociedade, socialista, ainda
dições históricas atuais, numa aliança nacional-po- precisa se impor no limiar da sua existência, abrin-
pular-produtivista e de avanço democrático. do uma nova época.
No programa do PCdoB, desde 2009, já indicá-
vamos a centralidade de novo projeto nacional de * Renato Rabelo é presidente da Fundação
desenvolvimento, como o caminho estratégico para Maurício Grabois. Foi presidente do Partido
alcançarmos a transição ao socialismo no Brasil. O Comunista do Brasil – PCdoB entre 2001 e 2015
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Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017
Mãe, Alexandr Deineka, 1932, óleo sobre tela, 120x159 cm, Galeria Tretyakov de Moscou.
H
á anos esta Pomar florido,
questão me in- Alexandr
trigava: por que Gerasimov,
se diz – inclu- 1935, óleo
sive entre a es- sobre tela,
querda – que era tão ruim a arte 124x133
russa do Realismo Socialista? cm, Coleção
“Porque foi imposta... arte dou- privada.
trinária... dirigismo” são críticas
bem comuns de se ouvir.
Mas... isso não é uma novi-
dade no mundo da arte! A arte
bizantina foi uma estética im-
posta; boa parte da arte do Re-
nascimento foi dirigida pela Igreja, que contratara nada marxista… O livro, além de um texto denso,
os melhores artistas para produzirem arte de pro- possui 544 ilustrações. Matthew Cullerne Bown tem
paganda religiosa; a arte acadêmica francesa era tão se dedicado à pesquisa sobre a arte russa, sendo con-
imposta que Gustave Courbet e depois os pintores siderado uma autoridade atual no assunto. É autor
Impressionistas tiveram que enfrentar seus teóricos também de: Contemporary Russian Art e Art under Sta-
e militantes para ter liberdade de pintar outros temas lin (A arte sob Stalin).
e de outra maneira; o maior dirigismo artístico recen- Em Realism Socialist Painting, logo nos primeiros
te ocorreu nos EUA que impôs a arte abstrata como parágrafos, dei com os olhos na seguinte afirmação
estética desde o final da década de 1940; o sistema da do autor: “a história do Realismo Socialista é a história de
chamada “arte contemporânea” impõe a arte que in- um extraordinário movimento de arte do século XX.”.
teressa ao mercado, que lucra bilhões de dólares com Ele propõe uma visão sobre a arte soviética que
ela, escolhendo aqueles artistas que se enquadram vá além da arena político-ideológica, criticando o fa-
em seu sistema e se curvam à sua estética… to de que todos os que se debruçaram sobre o tema
Em 2008, 2010 e 2017 pude ver de perto – em via- sempre foram muito mais guiados pelo viés político.
gens a Berlim, Varsóvia e Londres – exposições sobre A começar pela publicação, já em plena Guerra Fria,
arte soviética. E o que vi vai muito além do conceito de um livro de autoria de Konstantin Umanski, a
de “arte de propaganda”, reforçando minha convic- partir do qual foram se criando narrativas homogê-
ção de que até mesmo a esquerda se deixa influenciar neas “a fim de dar a impressão de que a arte da Vanguarda
pela propaganda ideológica iniciada na Guerra Fria... tinha sido a única contribuição russa para a arte do século
Nesse meio tempo, tive acesso ao livro Realism XX” (BOWN). Esta posição foi reforçada pelo livro
Socialist Painting publicado em 1998 por um profes- da inglesa Camilla Gray, Experimento. Arte russa publi-
sor da Yale University de Londres, nada comunista, cado em 1962, que gerou grande quantidade de pu-
Moça de bicicleta em uma fazenda coletiva, Alexandr Deineka, 1935, óleo sobre tela, 120x220cm, Museu Estatal SP
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Nova Moscou, Yuri Pimenov, 1937, óleo sobre tela, 140x170 cm, Galeria Tretyakov de O vale de Ararat, Martiros Saryan, 1945, óleo sobre
Moscou. de Artes dos Povos do Leste, Moscou.
36
Capa
tela, 96x128 cm, Museu Estatal Dia de sol, Mai Dantsing, 1965, óleo sobre tela, 188x208 cm, Coleção privada.
que apontava para o alto e para além, o defensor dos ao Realismo Socialista desde então.”. O consenso criado
fracos… e que possui uma capa… vermelha! entre os críticos de arte era o de que a arte contem-
O embaixador dos EUA em Moscou, na década porânea “importante” é aquela cujas características
de 1930, Joseph Davies, se tornou – segundo Bown estão intimamente associadas ao Modernismo, que
– o maior colecionador individual de pinturas do possuiria, este sim, uma visão “original”. Esse con-
Realismo Socialista. Através dele e de outros, como senso incluiu artistas e intelectuais de esquerda.
o artista ex-futurista David Burlyuk, a arte soviética Em 1990, Igor Golomstock, um russo emigra-
se tornou conhecida nos salões de Nova Iorque, on- do, publicou o livro Arte totalitária que inaugurou a
de convidados apresentavam essa arte para amplas moda de ligar a arte russa e a imagem de Stalin ao
audiências norte-americanas. totalitarismo, informa Matthew Bown. “Mas”, diz
Mas Greenberg publicou um ensaio em 1939 in- ele, “dispenso o modelo totalitário, porque é pouco útil
titulado Vanguarda e kitsch, no qual define a cultura para desvendar a arte soviética.”. Falar de “totalitaris-
dominante na URSS – o Realismo Socialista – como mo” em relação à arte soviética, segundo ele, reduz
kitsch (algo como “brega”), assim como o cinema de a pesquisa e restringe a investigação, simplificando
Hollywood da época. Mas Greenberg, diz Bown, “pa- “demais os debates sobre a forma artística que permaneceu
rece ter reconhecido que tal arte foi capaz de alcançar um em atividade durante todo o período soviético”, de 1930 até
alto grau técnico”, uma arte que falava às massas, com o final de 1980.
quem tinha “empatia”. O professor Bown se diz contrário a avaliar o
É preciso lembrar que até o começo da Guerra Realismo Socialista como um monolito imutável. A
Fria, os artistas norte-americanos tinham liberda- arte pictórica produzida na URSS não estava restri-
de de expressão. Após a Segunda Guerra, em solo ta àquela que depois ficou conhecida no Ocidente:
norte-americano “arte realista era arte comunista”; punhos erguidos para o alto, retratos de Stalin. Ele
e eram perseguidos, no período do macarthismo, os afirma que o controle maior sobre a arte, por parte
artistas que se identificassem com isto. Acrescenta do Estado soviético, estava mais restrito às grandes
Matthew Bown: “Na América e Europa Ocidental predo- cidades como Moscou e São Petersburgo. No país
mina a Abstração, promovida pelos críticos (e pela CIA, pelo inteiro artistas produziam fertilmente. “A pintura do
Conselho Britânico e por outros órgãos governamentais) co- Realismo Socialista, amplamente definida, compreende um
mo metáfora de liberdade e de predomínio da individualida- excelente movimento do nosso século na pintura realista”,
de. Enquanto na URSS, o Realismo Socialista reivindicava diz Bown, que segue: “Ela envolve o patrocínio da pin-
o predomínio da coletividade e da responsabilidade social.”. tura realista numa escala incomparável em qualquer lugar
A campanha antissoviética se espalhou no final do mundo e engaja, por décadas, o talento de milhares de
dos anos 1940 e “moldou as atitudes ocidentais em relação artistas através de um vasto e multirracial império.”.
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Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017
Como surgiu
o Realismo
Socialista
A Rússia do começo
da década de 1930 era
um país em reconstru-
ção. Havia passado por
anos de guerra civil, por
períodos de fome gene-
ralizada. Stalin defendia
a necessidade urgente da
industrialização do país e
Campos em paz, Andrei Mylnikov, 1950, óleo sobre tela, 200x400 cm, Museu Estatal Russo de
da construção de instru-
São Petersburgo.
mentos sólidos de defesa
militar contra os ataques
que viriam. A produção industrial e agrícola aumentou da de 1930 havia mais artistas deixados de fora dele
ao longo do período. O racionamento de alimentos bá- do que aceitos, tal era o nível artístico dos artistas.
sicos foi revogado em 1935. Em discurso ao I Congresso Em 1933, esta entidade já contava com cerca de 600
de Todos os Sindicatos Stakhanovitas em novembro, Sta- membros. Em 1937, as uniões municipais chegavam
lin estabeleceu o tom oficial da década, pronunciando a a abrigar cerca de 2.500 artistas.
notória frase: “A vida melhorou, camaradas, a vida ficou Quinzenalmente realizavam-se em Moscou as-
mais alegre.”. sembleias de artistas em que seus trabalhos eram
O termo “Realismo Socialista” apareceu pela pri- avaliados. Eram um evento significativo na vida ar-
meira vez em maio de 1932 na revista Novo Mundo, tística da capital que reunia pintores e críticos bem
principal fórum de discussão teórica. Em 26 de outu- conhecidos. As pinturas eram exibidas e ficavam su-
bro, em um encontro entre escritores e Stalin reali- jeitas às críticas da assembleia. Vladimir Kostin, um
zado na casa de Maximo Gorki, os princípios do Rea- dos artistas, descreveu o evento como extremamente
lismo Socialista foram expostos com algum detalhe. popular e respeitado, verdadeiras aulas de pintura.
Bown diz que entre 1932 e 1934 foram publicados 64 A reorganização da educação artística nacional
artigos sobre o tema, o que mostra o amadurecimen- começou em meados de 1932. Em um discurso para
to do debate sobre o assunto. Em 1933, o próprio os diretores de escolas de arte no verão daquele ano,
Gorki publicou o ensaio Sobre o Realismo Socialista. Arkadev, chefe do departamento de arte da União,
Em 1934, no I Congresso dos Escritores Soviéti- pediu um retorno aos métodos tradicionais de edu-
cos, realizado em Moscou, Andrei Zdanov, Gorki e cação artística e disse: “Nós não precisamos de artis-
Igor Grabar apresentaram o Realismo Socialista a tas que não conseguem desenhar.”.
uma audiência internacional. A composição dos de- Em outubro do mesmo ano, foi reorganizada a
legados a este Congresso, segundo Bown, era: 27% Academia de Artes, que incluía: um Instituto de His-
de operários; 43% de camponeses; 13% de intelec- tória da Arte, um Museu, uma Biblioteca e diversos la-
tuais; outros grupos sociais e convidados estrangei- boratórios. Um decreto de abril de 1933 definiu a nova
ros, completavam os outros 17%. Academia como “uma instituição de pesquisa cientí-
Mas enquanto isso ocorria, a vida artística fervi- fica e científico-consultiva no campo das artes visuais
lhava. e espaciais, e também uma instituição para a prepa-
Em abril de 1932, um Decreto do CC do PCUS ração de quadros artísticos com maior qualificação.”.
havia fundado a União Nacional dos Artistas Sovié- Os métodos soviéticos de ensino de arte foram
ticos. Também foram criados comitês municipais de moldados para produzir pintores com alta formação
artistas em Moscou e Leningrado inicialmente e, técnica, o que deveria também “elevar a criação da
nos anos seguintes, em outras regiões do país. Nesse mais brilhante escola de pintura realista do século
novo contexto, encerrava-se o antagonismo entre os XX”, completa Matthew Bown.
diversos grupos e se criava uma força dominante no
mundo da arte. O comitê municipal dos artistas de Realismo Socialista?
Moscou, o mais importante, reunia artistas de vá-
rias categorias, não só pintores. Era um verdadeiro O próprio termo é contraditório. Segundo seus
“corpo de elite” – observa Bown – e durante a déca- teóricos, seria uma arte “realista em forma e socialis-
38
Capa
Marusia – uma
mulher dos
anos 1920, Geli
Korzhev, 1983,
óleo sobre
tela, 97x226
cm, Coleção
privada.
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40
Capa
41
Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017
P
ara Gorki “não existem ideias fo- O “realismo socialista” tornou-se referência ofi-
ra do homem”, que é o “criador de cial – à revelia de Gorki – no I Congresso de Escrito-
todas as coisas, o criador de mila- res Soviéticos (1934), sob a batuta de Alexei Zdanov,
gres e o futuro senhor de todas as que se tornou desde então num verdadeiro autocrata
forças da natureza. As mais belas da cultura soviética. Naquele congresso, Zdanov fez
coisas deste mundo são as criadas um discurso, baseado num esrito de Gorki, e usado
pelo trabalho, por hábeis mãos, e todos os nossos amplamente como base para a edificação da doutri-
pensamentos e nossas ideias nascem do processo do na estética oficial do realismo socialista.
trabalho.”. Para Gorki, a luta titânica de seu povo e sua cons-
Filho de uma serva e de um rebocador de barcos cientização no conflito contra o czarismo, pela paz e
no rio Volga, Gorki nasceu em 16 de março de 1868 contra o capitalismo, é o tema permanente. Ele está
e foi batizado como Aleksei Maksimovitch Pechkov. presente, por exemplo, em um de seus livros mais
Desde os 10 anos teve que trabalhar para viver: foi importantes, A Mãe (1906), cuja ação se passa na re-
descarregador no porto, jardineiro, corista de teatro, volução malograda de 1905. E, por isso mesmo, se
ajudante de sapateiro, pintor de ícones, vendedor de destinava a não deixar esmorecer o ímpeto popular.
frutas, ferroviário e, sobretudo, padeiro. “Esse livro vem precisamente a tempo”, comentou
Sem frequentar escolas, tudo o que aprendeu lhe Lênin, o líder da Revolução Russa.
foi ensinado pelo que chamou ironicamente de “mi- A confiança na revolução, dirigida pelo partido
nhas universidades”: a vida. dos operários, não transparece apenas na literatura
Pechkov adotou o pseudônimo de Gorki (signi- de Gorki. Foi uma característica essencial de sua per-
fica “amargo”) em Tifilis, ao publicar sua primeira sonalidade, que cedo o levou aos grupos revolucio-
novela, em 1892. Considerado o maior escritor so- nários e ao marxismo. Na juventude, conheceu de-
viético, Gorki vai além do realismo tradicional e, portados e degredados políticos e soube que existia
escritor eminentemente proletário, abriu uma nova gente que lutava para transformar aquele mundo de
fase na literatura, dando continuidade ao grande miséria, pobreza, opressão e imensa exploração. Ele
realismo burguês do século 19, de Balzac, Stendhal próprio foi vítima de prisões e perseguições.
e Flaubert. Ele inaugurou um realismo de tipo novo, Sua atividade literária ligou-se intimamente à lu-
que alguns chamaram de “socialista”. O povo pobre ta política e revolucionária. Um verso de O anuncia-
e marginalizado é o personagem central de sua obra. dor da tempestade (Cantemos a loucura dos bravos) virou
43
Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017
Gorki e
diferentes
capas de edições
do livro A Mãe,
sua obra mais
conhecida
verdadeiro apelo revolucionário a iluminar sua obra. tar, lê manuscritos, prefacia, corrige, explica, discute
Em 1903, já era um escritor de renome, se aproxi- linha por linha e, não conseguindo responder a cada
mou dos bolcheviques, aprofundando sua diferença um, escreve cartas coletivas dirigidas a grupos” de
em relação aos intelectuais liberais. escritores operários, registrou Nina Gourfinkel no
Em 1905, publicou, no diário bolchevique A Vida livro Gorki.
Nova, suas “notas sobre o espírito pequeno burguês”, Gorki dedicou-se à defesa e edificação de uma vi-
onde denunciou a vacilação e ridicularizou o como- da nova fazendo aquilo em que era mestre, escreven-
dismo e subjetivismo dessa camada social. Sua ativi- do e ensinando a escrever. Numa longa carta para
dade contra o governo czarista o levou ao exílio, que escritores estrangeiros, em 1932, ele falou da força
só terminou com a Revolução Russa de 1917. Bus- operária na criação de novas formas de vida e fez
cou animar a vida intelectual, principalmente com uma pergunta que completa aquela sua profissão de
a atividade cultural dos operários e do povo. Após fé no homem citada no início deste artigo: “De que
a Revolução, em 1918, tornou-se Comissário do Po- lado estão vocês, os mestres da cultura? Com a força
vo para a Melhoria das Condições de Existência dos operária da cultura, pela criação de formas novas de
Cientistas. vida, ou contra essa força, pela conservação da cas-
Em 1921 adoeceu e, por insistência de Lênin, foi ta de espoliadores irresponsáveis, da casta podre da
tratar-se no exterior, voltando à URSS em 1928, sen- cabeça aos pés, que continua agindo em virtude da
do então muito homenageado. O contato com a obra lei da inércia?”.
do regime socialista, que lançava as bases de uma vi- Gorki havia conquistado o direito de colocar esta
da nova para o povo russo, fez Gorki lançar-se ainda questão central da cultura de nosso tempo de ma-
com mais vigor na defesa dos interesses do proleta- neira tão inequívoca. Sua vida e sua obra o autori-
riado revolucionário. zavam a isso.
O romancista passou a compor obras autobiográ-
ficas e de reminiscências, que muitos consideram *José Carlos Ruy é jornalista, integra a equipe
aquilo que de melhor ele escreveu. Dedicou-se tam- editorial do Portal Vermelho. Texto baseado, com
bém a animar os jovens autores soviéticos, “atira-se modificações, em artigo publicado originalmente
para essa corrente literária que não cessa de aumen- em Tribuna da Luta Operária, 16 de junho de 1986
44
Capa
Universalidade e
singularidade histórica da
Revolução de Outubro
Parte I*
João Quartim de Moraes**
Paris 1871: o primeiro poder operário espectro. Como não considerá-la a confirmação de
É
que a tomada do poder político estava inscrita nas
forçoso constatar que não se verifi- linhas de força do movimento operário europeu?
caram as expectativas anunciadas no No entanto, longe de qualquer peroração retó-
Manifesto Comunista de que a classe rica, Marx e Engels manifestaram, tanto publica-
operária tomaria o poder nas socie- mente quanto em sua correspondência, muita in-
dades onde mais se desenvolvera o quietação diante das “circunstâncias extremamente
modo de produção capitalista. Entretanto, quando difíceis em que se encontrava colocada a classe ope-
formuladas por Marx e Engels em 1847-1848, essas rária francesa”, sobretudo perante a perspectiva de
expectativas configuravam uma forte possibilidade que a bancarrota política e militar do imperador Na-
objetiva. Não era fanfarronice a primeira frase do poleão, o pequeno, “estimulasse a ‘loucura desespe-
texto: “um espectro perambula pela Europa: o es- rada’ de tentar ‘derrubar o novo governo (1) quando
pectro do comunismo.”. Menos de um quarto de sé- o inimigo golpeia quase nas portas de Paris.’. [...].
culo depois, a Comuna de Paris veio incarnar este Os operários franceses devem cumprir seu dever de
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Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017
cidadãos; mas eles não devem, porém, se deixar ar- chances infalivelmente favoráveis. De outro
rastar pelos souvenires nacionais de 1792.” (2). Estas lado, esta história seria de natureza muito
ponderações se encontram no segundo Pronuncia- mística se os ‘acasos’ não desempenhassem
mento da Internacional sobre a guerra franco-alemã, nela nenhum papel. Estes casos fortuitos en-
datada de 9 de setembro de 1870. No dia 6, em carta tram naturalmente na marcha geral da evo-
a Engels, Marx tinha frisado que a presença deste lução e ficam compensados, por sua vez, por
era indispensável num momento em que toda a se- outros acasos. Mas a aceleração ou a desacele-
ção francesa (da Internacional) se pôs a caminho ração dependem muito de ‘acasos’ semelhan-
de Paris para ir lá fazer besteiras em nome da Inter- tes, entre os quais figura o ‘acaso’ do caráter
nacional. “Eles querem derrubar o governo provisó- dos chefes [...]” (8).
rio, estabelecer a Comuna de Paris, nomear Pyat (3)
embaixador da França em Londres etc. (nós grifa- Dez anos mais tarde, em carta que enviou em 22
mos) (4). Entrementes, as seções parisienses da In- de fevereiro de 1881 à militante socialdemocrata ho-
ternacional haviam lançado um landesa, F. Domela-Nieuwenhuls,
manifesto cujo “tom patrioteiro ele comentou a experiência revo-
(chauvin) mostra quanto os tra- lucionária de 1871 em termos crí-
Ao esmagamento
balhadores franceses ainda esta- ticos:
vam sob o domínio da fraseologia da Comuna de
vazia e confirma todas as apreen- Paris, os proletários “[...] abstração feita de que se
sões de Marx e de Engels.” (5). tratava de uma simples subleva-
Entretanto, a partir da jornada alemães tinham ção de uma cidade em condições
revolucionária de 18 de março de respondido pela excepcionais, a maioria da Comu-
1871, quando o proletariado pa- na não era socialista e nem podia
risiense tomou o poder na capital
resistência pacífica sê-lo. Com um mínimo de bom
e desencadeou-se a guerra civil e pelo combate senso, ela poderia, entretanto, ter
entre, de um lado, a Guarda Na- eleitoral. “Mostrando obtido de Versalhes um acordo
cional e os operários de Paris e, de útil a toda a massa do povo, úni-
outro, as tropas remanescentes do a seus camaradas de ca coisa que era possível atingir
exército imperial, que obedeciam todos os países como naquele momento. Se tivesse se
às ordens da alta burguesia ins- apropriado do Banco da França,
talada em Versalhes, Marx e En- servir-se do sufrágio ela teria logrado assustar os fa-
gels fizeram a solidariedade com universal, eles lhes lastrões de Versalhes.” (9).
a Comuna para passar adiante de
tinham fornecido uma
qualquer outra consideração, co- Não somente pelo heroísmo
mo mostram os textos que escre- nova arma das mais de sua luta, mas também por ter
veram durante a febril agitação do afiadas” esboçado um tipo novo de Esta-
grande combate histórico (6). Têm do, a Comuna incorporou-se à
especial interesse as ponderações memória das lutas proletárias.
de Marx em sua correspondência com Ludwig Kugel- Vinte anos depois, em 1891, Engels extraiu a mais
mann, o qual, em carta de 15 de abril de 1871, lhe importante lição histórica da epopeia dos “commu-
expressara sua angústia perante as previsíveis conse- nards”: “Ultimamente o filisteu socialdemocrata foi
quências de uma provável derrota: tomado de um terror sagrado ao ouvir pronunciar a
“A derrota privará novamente o movimento ope- expressão ditadura do proletariado. E bem, senho-
rário de seus chefes, por tempo bastante longo. Não res, querem saber com o que se parece essa ditadu-
subestime esta desgraça! Em minha opinião o pro- ra? Olhem para a Comuna de Paris. Era a ditadura
letariado tem no momento muito mais necessidade do proletariado.” (10).
de educação do que da luta com armas na mão. Im- Engels voltou a se referir à Comuna em 1895, ano
putar o insucesso a um acaso qualquer não é recair de sua morte, na Introdução a As lutas de classe na Fran-
no erro que o 18 de Brumário censura de maneira tão ça 1848-1850, coletânea de artigos de Marx que até
convincente nos pequeno-burgueses?” (7). então não tinham sido reunidos em forma de livro.
Marx replicou em 17 de abril: Com um olho posto nos franceses e outro nos ale-
mães, ele discute a tática do movimento operário à
“Seria evidentemente muito cômodo fazer a luz de meio século de combates, de Paris em 1848 e
história se só devêssemos travar a luta com 1871 a Berlim em 1895:
46
Capa
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Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017
cando os que apresentavam as eleições e a eventual passando a pregar, em nome do patriotismo, o resig-
conquista da maioria parlamentar como via decisiva, nado caminho do matadouro. Com honrosas e co-
senão única, para o socialismo. rajosas exceções, os deputados da socialdemocracia
renegaram os solenes compromissos assumidos pe-
Perante a catástrofe de 1914 rante a Internacional, votando em seus respectivos
parlamentos a favor dos créditos bélicos e apoiando
Confirmando o otimismo de Engels ao comemo- os governos de seus países na transformação da for-
rar na Introdução de 1895 o avanço político do prole- ça de trabalho em carne de canhão. A socialdemo-
tariado alemão, em 1912 a socialdemocracia obteve cracia alemã saiu na frente, aprovando no Reichstag
notável vitória eleitoral, tornando-se, com 34,8% dos o orçamento de guerra do Kaiser. Na França, o com-
votos e 397 deputados, o maior partido do Reichs- portamento mais lamentável foi o de Jules Guesde,
tag. Paralelamente, porém, contra- ao lado de Jaurès, o maior no-
riando sua expectativa sobre a paz, me do socialismo francês. Ele
a grande indústria gerou trustes e Como bem notou Luigi não somente aderiu à “Union
cartéis monopolistas, empenhados, sacrée” (bloco bélico de todos
com apoio da máquina bélica de Cortesi, até 1914, “a os partidos para enfrentar a
seus Estados respectivos, em tenaz lógica da transição Alemanha), mas foi ministro
disputa pelos territórios coloniais e do governo de guerra de 1914
pelo controle do mercado mundial.
para o socialismo a 1916 (15). Apesar de carregar
Essa disputa pela supremacia pla- estava incluída na o epíteto de renegado, Kautsky
netária exacerbava as contradições própria lógica do não foi tão longe na trilha do
entre as grandes potências imperia- social-patriotismo.
listas, fazendo pairar no horizonte desenvolvimento As exaltantes esperanças
o espectro de uma guerra de gran- capitalista, que expressas no Manifesto, de que a
des proporções. As correntes mais classe operária europeia iria se
avançadas do movimento operário em certo sentido a libertar do capital e, libertan-
compreenderam a gravidade da garantia, e a revolução do-se, emanciparia a humani-
ameaça e mobilizaram-se contra a dade, encontraram seu ponto
socialista eclodiria
escalada belicista. Em 24 e 25 de de inflexão no dilúvio de fogo,
novembro de 1912, reunidos num da plenitude daquele chumbo, aço, explosivos e gases
congresso extraordinário em Basi- desenvolvimento” tóxicos que em julho/agosto de
leia, os partidos da II Internacional 1914 mudou brusca e catastro-
adotaram, num clima carregado de ficamente o curso da história
entusiasmo, mas também de apreensão, um mani- mundial. Como bem notou Luigi Cortesi, até 1914,
festo em que assumiam o compromisso solene de “a lógica da transição para o socialismo estava in-
lutar contra a guerra. Nesse manifesto foi incluída cluída na própria lógica do desenvolvimento capita-
uma resolução que Lênin apresentara em 1907 ao lista, que em certo sentido a garantia, e a revolução
Congresso anterior da Internacional em Stuttgart, socialista eclodiria da plenitude daquele desenvolvi-
de que caso a guerra fosse desencadeada, os partidos mento”; porém, com o desencadeamento da guerra,
socialistas deveriam fazer da situação caótica que ela Lênin, que até então também partilhava deste oti-
criaria o fermento da revolução socialista. mismo, compreendeu que aquela lógica tinha sido
Alguns dirigentes da II Internacional honraram rompida “porque a plenitude do desenvolvimento
este compromisso. O francês Jean Jaurès, orador capitalista coincidia com uma crise que estava amea-
principal no Congresso de Basileia, junto com a ale- çando a essência mesma da civilização humana mo-
mã Clara Zetkin, pôs-se à frente da luta para barrar derna.” (16). Esta explicação final nos parece menos
o avanço do belicismo, que em nome da defesa da feliz. Que entender, com efeito, por “essência mes-
pátria exacerbava o ódio entre os povos. Ele foi as- ma da civilização moderna”? Melhor será considerar
sassinado por um extremista de direita na tarde de dialeticamente que civilização e barbárie são os con-
31 de julho de 1914, quando a guerra explodia. Na trários de uma mesma unidade, o próprio capitalis-
Alemanha, além de Zetkin, destacaram-se nesta luta mo em sua etapa imperialista.
Rosa Luxemburgo, Karl Liebknecht e Wilhelm Pieck. Desmentia-se assim, na lava e no magma ensan-
Majoritariamente, porém, deflagrada a guerra, os guentado dos campos de batalha europeus, a expecta-
dirigentes da maioria oportunista da socialdemo- tiva otimista de que chefes de Estado, parlamentares,
cracia desarmaram politicamente a classe operária, generais e círculos dirigentes da burguesia, anteven-
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Brasil
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Luciana Santos:
O centro dos debates é a luta
por novos rumos para o país
Foto: Richard Silva
O
objetivo central do 14º Congresso construir um amplo movimento, político, econômi-
do PCdoB é dar resposta ao prin- co, social, cultural, uma Frente Ampla envolvendo
cipal anseio da Nação e da classe as forças democráticas, populares, de esquerda e pa-
trabalhadora na atualidade: reti- trióticas. Para o PCdoB, esse projeto nacional, essa
rar o país da crise e encaminhá-lo nova agenda para o país, deve ter os seguintes fun-
a novos rumos, do desenvolvimento e do progresso damentos: a defesa do Brasil, de sua soberania, de
social. O projeto de resolução fundamenta, aponta suas riquezas; a recomposição, o fortalecimento e a
uma nova tática. É fundamental, no curso da luta, democratização do Estado nacional; a restauração
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da democracia e do Estado de Direito; a retomada do superpotência estadunidense e a emergência de no-
desenvolvimento; a valorização do trabalho e o res- vos polos de poder econômico, político, diplomático e
gate dos diretos da classe trabalhadora, dos direitos militar, no mundo. O fenômeno mais representativo
sociais do povo. da tendência mundial é o protagonismo. Nações em
Nossa tática está em plena sintonia com o Pro- desenvolvimento atuando em parceria estratégica,
grama Socialista do PCdoB, que concebe a luta por em espaços como o BRICS (acrônimo de Brasil, Rús-
um Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento co- sia, Índia, China e África do Sul). São países onde o
mo o caminho brasileiro para o Estado tem tido um papel central
socialismo. Em meio ao denso na estratégia de desenvolvimento,
nevoeiro que paira sobre o Brasil, controlando setores estratégicos
nosso desafio é abrir clarão, aju- A resultante como grandes empresas e bancos
dar a dar perspectivas. Não nos de fomento, fazendo uso da polí-
intimidamos com as adversida-
destes fatores é tica externa como instrumento do
des. É por isso que “faz escuro, o fortalecimento desenvolvimento.
mas eu canto!”. das tendências à A resultante destes fatores é
o fortalecimento das tendências
Balanço na condução do multipolaridade e a à multipolaridade e a desconcen-
Partido desconcentração do tração do poder hegemônico dos
EUA que, sob Trump, adotam uma
O Congresso também debate poder hegemônico dos retórica belicista e atitude hostil
o balanço do trabalho do Partido EUA que, sob Trump, às demais nações contribuindo
no último período. Devemos ex- para a perda cada vez maior de
trair lições desse espaço de tem-
adotam uma retórica influência.
po vivido de forma crítica e au- belicista e atitude Neste cenário, a China So-
tocrítica, tendo em vista planejar hostil às demais cialista se destaca como um dos
as ações para o período seguinte. polos dinâmicos desse reordena-
Por ser essencialmente político, nações contribuindo mento do Globo e demonstra que
deve levar em consideração o para a perda cada vez a alternativa socialista é viável,
contexto em que se desenvolve- factível, e responde aos anseios da
ram a atividade política e as três
maior de influência humanidade por paz, desenvolvi-
esferas da vida partidária. Trata- mento e progresso social.
-se de um período de grandes re-
viravoltas e instabilidade políticas, no qual o PCdoB Reações do imperialismo ameaçam a
soube, de um modo geral, se posicionar buscando paz e a luta dos povos
sempre apresentar saídas.
É no bojo deste cenário complexo que se dá a Vivemos uma mudança de época que abre pers-
transição na presidência do PCdoB, iniciada a par- pectivas para os países com projetos nacionais. No
tir da 10ª Conferência Nacional, em maio de 2015. entanto, isso não ocorre de modo pacífico. As potên-
Existe uma curva natural de aprendizagem, a qual cias imperialistas reagem com virulência, com vistas
esperamos estar enfrentando da melhor maneira a conter a emergência e a consolidação de uma nova
possível, e buscando responder às expectativas do ordem. Ao mesmo tempo, os EUA empregam o uso
coletivo partidário. Tem sido um processo de aqui- de novas técnicas para produzirem conflitos de bai-
sição de novas experiências, de superação de di- xa intensidade. Os conflitos de quarta geração são
ficuldades, sejam elas de nível pessoal ou no pla- assimétricos e diversificados. Eles utilizam ataques
no político. O desafio principal para enfrentarmos cibernéticos, notícias falsas, guerras comerciais, de-
esta quadra é a busca permanente da unidade e sestabilização de governos com as revoluções colori-
confiança, e a afirmação do método da inteligência das, até a difusão por meios acadêmicos de ideias e
coletiva. ideologias que buscam fragmentar os grandes Esta-
dos da periferia.
Conflitos e tensões no mundo, No entanto, os povos estão em luta, e não se
ofensiva imperialista e luta dos povos dobram ante as ameaças e as agressões das forças
imperialistas. Aproveitamos a oportunidade para
A principal característica da conturbada transi- reafirmar o caráter internacionalista do PCdoB e seu
ção em curso é o declínio relativo da hegemonia da compromisso com a solidariedade aos povos em luta
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Fortalecer o PCdoB e
elevar seu papel na
luta política
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destes fatos para o Brasil são profundas e colocam ral. No entanto, o anseio de uma mudança da atual
em risco em nosso país o comum projeto político situação e a ânsia por esperança da grande maioria
independente e autônomo. Por isso deve ser dado da população tendem a pautar a disputa política. No
um basta imediatamente ao governo ilegítimo que debate de projetos, a bandeira da esperança está em
tomou de assalto o Congresso Nacional! nossas mãos.
No entanto, o governo Temer, com toda sua fragi-
lidade e vulnerabilidade, tem o apoio do grande ca- Partido da Lava Jato
pital, de parcelas do poder Judiciário e dos meios de também se prepara para a disputa
comunicação. Ao longo dos 18 meses que se encon- de 2018
tra ocupando ilegitimamente a cadeira presidencial,
aprovou o que quis no congresso – utilizando os mé- O PCdoB se pauta pelo zelo e defesa do patri-
todos mais reprováveis. Derrotou mônio público e defende eficaz
a ofensiva que contou com apoio combate à corrupção. Entretan-
da Globo, arquivando dois pe- to, tem uma leitura crítica da
didos de investigação contra ele O grande partido de Operação Lava Jato. O grande
feitos pela Procuradoria-Geral da oposição aos governos partido de oposição aos governos
República (PGR). Lula e Dilma era a grande mídia.
Lula e Dilma era a No entanto, se formou uma nova
Centro da luta política grande mídia. No coalizão, informal, indireta que
se volta para as eleições entanto, se formou reúne expoentes do Ministério
de 2018 Público Federal, do poder Ju-
uma nova coalizão, diciário e da polícia federal, so-
Ressaltamos a disputa presi- informal, indireta que mados à parte dos meios de co-
dencial de 2018 como a principal municação, em particular a Rede
arena da luta de classes, no pre-
reúne expoentes do Globo. A esta coalizão temos de-
sente período. O PCdoB buscará Ministério Público nominado de Partido da Lava Ja-
protagonismo nesta disputa. Irá Federal, do poder to, o principal fator de desestabi-
contribuir para abrir veredas e lização do país. O protagonismo
novos rumos para o Brasil. Judiciário e da polícia político dos expoentes da Lava
Teremos uma eleição presi- federal, somados à Jato é indevido, fere a democra-
dencial atípica pelas particulari- cia e o sistema de contrapesos
dades de ser realizada após uma parte dos meios de entre os poderes.
fratura democrática; e épica, pois comunicação, em A população começa a se dar
o país uma vez mais se depara conta de que a Lava Jato tem
com uma encruzilhada histórica
particular a Rede motivações políticas, que não
entre dois projetos antagônicos. Globo. A esta coalizão atinge o presidente ilegítimo e a
Ou o Brasil seguirá sob as rédeas temos denominado de seus amigos com malas e aparta-
do campo político conservador mentos lotados de dinheiro. Pre-
em transição a uma ordem libe- Partido da Lava Jato, vendo o desgaste, a Lava Jato se
ral, neocolonialista e autoritária; o principal fator organiza para participar da dis-
ou o nosso país, sob a direção de puta das eleições de 2018, com
uma Frente Ampla, de caráter de-
de desestabilização dois focos. O primeiro é consti-
mocrático, popular e patriótico, do país tuir uma bancada comprometida
reverterá as medidas regressivas com os pilares da operação: dela-
do governo ilegítimo e se prepa- ção premiada, prisão em segun-
rará para a retomada de um novo projeto nacional da instância, condução coercitiva e restrição do Fo-
de desenvolvimento. ro Privilegiado. O segundo é a caçada sem tréguas,
Outros fatores tendem a incidir sobre o proces- e sem lei, ao ex-presidente Lula contra seu legíti-
so da disputa política de 2018. No quadro das crises mo direito de concorrer às eleições presidenciais de
simultâneas que vivemos, fatores como as ações de- 2018. Seria este ato a consumação do golpe. Reafir-
sestabilizadoras do Partido da Lava Jato, os impactos mamos, neste momento, uma vez mais o legítimo
e desdobramentos da situação econômica, propostas direito de Lula concorrer às eleições. Sua exclusão
como semipresidencialismo e o fenômeno da antipo- do processo irá ampliar a instabilidade e a crise ins-
lítica podem incidir sobre o curso da disputa eleito- titucional que estamos vivendo.
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tral derrotar a agenda neoliberal e neocolonial que se te Ampla. O PCdoB não será obstáculo para a unida-
articula para apresentar um candidato que expresse de, buscará construir, a partir do debate programático
sua agenda em 2018. O mercado centrará suas forças e de ideias sobre os desafios do Brasil, como sair da
no nome que possa vencer e dar continuidade a essa crise e enfrentar seus problemas estruturais.
agenda que está em curso no Brasil.
Sinuosos como os rios amazônicos
Nossa pré-candidatura presidencial são os caminhos da luta em defesa da
Nação e pelo socialismo
Conforme expresso em nosso projeto de resolu-
ção ao Congresso, temos debatido ao longo do últi- Apesar das adversidades, das imensas dificulda-
mo ano a conveniência de apresentarmos uma pré- des, a Nação e a classe trabalhadora poderão superar
-candidatura, que fortalecesse nosso projeto eleitoral essa grave crise que o país atravessa. Estamos con-
e nossa força política. Levamos em consideração o victos de que se conseguirmos dar passos na cons-
ambiente e o diálogo com nosso campo político, co- tituição da Frente Ampla, o campo democrático,
mo também o próprio debate interno. popular, patriótico poderá vencer as eleições presi-
A unidade política e de ação que paira sobre o denciais de 2018. Como bem disse nossa pré-candi-
PCdoB nos possibilitou em nossa última reunião do data Manuela, o Brasil é maior que o medo e o ódio.
Comitê Central aprovar por unanimidade o nome de O PCdoB sairá deste 14º Congresso determinado a
Manuela D´Ávila como pré-candidata presidencial reacender a esperança do povo brasileiro. O Brasil
do PCdoB. pode vencer, o Brasil vencerá!
A pré-candidatura de Manuela é meio para pro- O curso da luta pela construção de uma nova so-
pagar a identidade partidária, e suas ideias progra- ciedade no Brasil é sinuoso como os rios amazônicos,
máticas, na forma de uma agenda de saídas para a é acidentado como as ladeiras de Olinda, mas o brasi-
crise que o país atravessa – esperança para o povo e leiro é um valente, igual ao sertanejo, tem coragem. E
a nação. Buscar um novo lugar no novo ciclo político o nosso horizonte é tão vasto como é a chapada.
que se abre. Uma pré-candidatura que desmascare a
antipolítica, que defenda a participação e valorize a A íntegra deste informe pode ser lida no
política como forma de mediação dos conflitos e con- endereço: http://pcdob.org.br/congressos/
sensos na sociedade. Trata-se de um instrumento do presidenta-do-pcdob-anuncia-propostas-
centro da nossa ação tática, que é construir uma Fren- -para-superar-a-crise/
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A
jovem deputada estadual pelo No discurso que fez no Congresso, Manuela des-
PCdoB do Rio Grande do Sul, Ma- tacou que o lançamento de sua pré-candidatura é um
nuela D’Ávila, foi aclamada pela fato histórico para os comunistas do Brasil, pois, em
militância do Partido Comunista do quase um século de trajetória do partido, esta é ape-
Brasil como pré-candidata à Presi- nas a terceira vez que a legenda participa da disputa
dência da República durante a aber- presidencial com candidatura própria.
tura do 14º Congresso da legenda, “Hoje, certamente, vivo o momento mais bonito
realizado em Brasília, entre os dias 17 e 19 de no- dessa trajetória, ao ser lançada pré-candidata à Pre-
vembro último. sidência da República por nosso partido. Se o partido
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da Constituinte de 1946, responsá-
vel, por exemplo, pela emenda que
garantiu ao Brasil liberdade reli-
giosa. Mas eu gostaria de lembrar
da primeira vez que um comunis-
ta foi candidato a presidente. Isso
aconteceu em 1930, quando lança-
mos o vereador do Rio de Janeiro,
Minervino de Oliveira. A primeira
vez que os comunistas se lançaram
à presidência foi com ele: operário
e negro, um trabalhador da indús-
tria do mármore no Rio de Janeiro.
Estamos, portanto, aos noventa
e cinco anos, vivendo esse momento
pela terceira vez e eu quero agra-
decer, sinceramente emocionada,
pela oportunidade de representar
o nosso Partido nessa caminhada.
Esse sonho jamais passou pela ca-
beça daquela jovem que se filiou à
UJS em 1999 e aprendeu a amar o
Brasil e a lutar pelo socialismo ou-
vindo as sábias palavras de Renato,
Haroldo e Aldo Arantes. Sou a pri- Manuela: “Nós precisamos fazer com o que o nosso povo sonhe novamente”
meira mulher a concorrer à presi-
dência pelo Partido Comunista do Brasil, presidido por sua tam medo do futuro. Nós precisamos fazer com que o nosso
primeira mulher. Um Partido com tantas Heleniras, Pagus, povo sonhe novamente e que compreenda que, como diz o
Elzas, Gilces, Loretas. Um partido que em sua história fez nosso hino o “Brasil é um sonho intenso”. É isso que eu es-
valer a máxima que lugar de mulher é onde ela quiser. Que tou falando, o Brasil é um sonho porque o Brasil é uma bela
honra, camaradas. Que honra. Muito obrigada. realidade, mas o Brasil ainda é também um projeto. E nós
Primeiro, camaradas, gostaria de falar, mesmo que Lu- queremos discutir esse projeto, esse sonho em 2018. Quere-
ciana já o tenha feito em seu informe político sobre as razões mos discutir um Projeto Nacional de Desenvolvimento.
que nos fizeram lançar uma candidatura. Nosso Partido Concretamente queremos discutir se o Brasil vai se rea-
construiu nos últimos anos mudanças importantes no Bra- lizar plenamente como nação, ou seja, desenvolver todas as
sil apoiando e participando dos governos Lula e Dilma. Lu- suas potencialidades como país, se teremos as condições para
tamos lado a lado com milhares de brasileiras e brasileiros nosso povo viver em paz, com segurança, educação, saúde,
contra o golpe de 2016. Resistimos ao desmonte do Estado,à com alimentação decente, cuidados à primeira infância e
retirada de direitos sociais e individuais promovidos por Te- proteção para a velhice, condições de vida dignas para as
mer. Somos as mulheres, os gays e negros que gritam contra mulheres, para os negros... queremos discutir se poderemos
a reforma trabalhista, a Emenda Constitucional 95. De- ter um regime democrático de verdade, na medida em que
nunciamos a chamada neocolonização do Brasil. Mas, ca- a desigualdade não vai mais levar o Brasil a uma situação
maradas, acreditamos que o golpe encerra um ciclo político de anomia social.
e é por isso, que, para nós, 2018 não pode ser momento A chave para um Brasil com futuro é realizar esse sonho
de mero debate sobre o passado. Nós não queremos fazer intenso, é unir o máximo possível de brasileiras e brasileiros
da eleição um momento de acirramento da crise econômica em torno de um projeto de nação, de um sonho de futuro
e política. Nós queremos fazer da eleição um momento de para o Brasil. Ou seja, o que pode viabilizar o projeto de
construção de saídas. Dois mil e dezoito é momento de de- desenvolvimento do país é a Frente Ampla. É a consciência
bate sobre o futuro. Que brasil viveremos em 2, 4, 10 anos? das pessoas comuns, são os movimentos sociais, é a uni-
Queremos que o Brasil retome o crescimento econô- dade de nosso campo político. Gosto da ideia de que uma
mico, preservando direitos sociais e individuais. Precisamos candidatura dos comunistas é uma candidatura das pes-
traduzir nosso projeto para as pessoas que vivem a crise em soas comuns e para as pessoas comuns. Um governo para
seus cotidianos. A crise faz com que as pessoas percam as transformar a vida da maior parte das pessoas, os comuns,
certezas sobre o futuro. A crise faz com que as pessoas sin- o povo brasileiro.
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Isso deve começar por mudanças radicais na economia. Falando da química final, não é razoável que a maior
Hoje o Brasil é vítima de um tripé macroeconômico que tem parte dos remédios que consumimos seja feita com insumos
como objetivo remunerar o rentismo, retirar as riquezas do estrangeiros.
trabalho para transferi-las para o mercado financeiro. Não é razoável também que exportemos Petróleo cru.
É preciso mudar essa realidade. Não é razoável que sendo o maior produtor de agrícola do
Juros, câmbio e inflação: a gestão desses três preços ma- mundo não tenhamos mais uma fábrica de fertilizantes!
croeconômicos tem que que ser feita, mas tendo como lógica Mesmo no vestuário, camaradas, uma indústria simples,
o desenvolvimento do país e não os interesses do rentismo. importamos uma série de produtos estrangeiros para fa-
Esse foi o caminho trilhado pela China, país que tem um bricar roupas como as pessoas estão usando neste plenário.
projeto de nação e que colocou esse projeto como o meio de É necessário, portanto, um grande investimento em ciência,
resolver os seus problemas sociais. Um câmbio para tornar tecnologia e, especialmente, inovação. Um investimento que
a nossas exportações competitivas; juros baixos que incenti- também esteja conectado com esse projeto de reindustria-
vem o investimento produtivo e tornem o crédito barato e o lização, ou seja, algo que atenda prioritariamente as de-
“fim do medo-pânico” paralisante do crescimento da infla- mandas dessa nova indústria, de forma concentrada e com
ção são a base para que voltemos a crescer. grande volume de recursos.
Ao lado disso, o Brasil precisa de uma nova política in- Preciso salientar que enquanto nossas mulheres perma-
dustrial. Uma das tragédias do último período é a destrui- necerem alijadas da produção de conhecimento tecnológico
ção da indústria brasileira, conquistada com tanto esforço. esse sonho é ainda mais distante. De cada 1000 jovens na
Hoje, quando olho pra esse plenário, vejo vários produtos graduação apenas 22 escolhem carreiras vinculadas a cha-
que poderiam ser fabricados pelo nosso país, mas são feitos mada indústria de inovação. Destes, apenas uma é mulher.
por indústrias estrangeiras. Quando eu falo de indústrias, Ou seja, é preciso fazer com que nossas meninas tenham
não estou falando somente daquelas indústrias mais sim- espaço nesse sonho de Brasil desenvolvido, como há anos nos
ples, essas nós até mantemos. Falo das indústrias de ponta, dizem as mulheres da UBM.
aquelas mais capazes de agregar valor. Uma outra questão nodal, camaradas, é o investimento
Isso faz com que os empregos de qualidade, aqueles que público. Não há possibilidade de retomar o desenvolvimento
podem remunerar melhor, fiquem lá fora e não aqui. Faz sem um poderoso incremento do investimento público. Se
também com que fiquemos para trás na inovação, na me- for preciso, devemos cortar gastos em outras áreas para ga-
dida em que um país sem indústrias é um país sem criati- rantir essa massa de investimentos.
vidade. Em última instância faz com que nossos jovens que Devemos pensar em um grande Plano de Obras Públi-
se dedicam às áreas vinculadas à produção de tecnologia cas. Grandes obras feitas com capital privado e público. E
saiam do Brasil. nisso, penso que devemos ter concentração em dois setores:
Para falar das indústrias, queria lembrar um conterrâ- Infraestrutura e moradia. Infraestrutura porque esse é um
neo meu. Quando a Revolução de 1930 foi vitoriosa, no seu dos mais graves entraves ao desenvolvimento e moradia por-
primeiro discurso, Getúlio Vargas afirmou: “nós precisamos que essa é uma demanda enorme no país.
montar a chamada indústria pesada: aço, eletricidade, a quí- Um grande plano de obras públicas voltado para gran-
mica de ponta”. Notem, camaradas, Getúlio, mal tinha der- des obras de infraestrutura e uma verdadeira revolução na
rotado as oligarquias atrasadas, estava obcecado com o que política de moradias populares!!! Diante da crise torna-se
havia de mais importante no seu tempo, estava nas grandes ainda mais relevante o debate sobre moradia, regularização
aquisições da chamada segunda revolução industrial. fundiária e equipamentos públicos.
Nós queremos sonhar o sonho de Getúlio: um país in- Falei do público, mas temos que pensar no investimento
dustrializado, voltado para a indústria do seu tempo. A in- privado também. Não podemos nos conformar com a ideia
dústria do nosso tempo é a chamada indústria 4.0. Parti- de que não há tradição no Brasil de investimento privado,
mos de uma situação difícil, dada a destruição da indústria como se isso fosse uma coisa que está escrita nas estrelas e
que assistimos nos últimos anos. Mas, por outro lado, há não pode mudar.
uma oportunidade importante. A indústria 4.0, por suas Precisamos falar sobre geração de empregos, camaradas.
características, permite que pulemos fases, que nos adiante- Se não pensarmos em indústria do futuro, não geraremos
mos. Desde que tenhamos decisão nesse sentido. E mais im- empregos de qualidade pro nosso povo. Parece uma loucura
portante do que isso: desde que tenhamos um poder político que no momento em que o vivemos o ápice do desenvolvi-
que esteja a serviço do desenvolvimento nacional. mento tecnológico a sociedade viva a maior crise do capita-
Nosso país, com um governo comprometido com o de- lismo. A tecnologia tem que estar a serviço de nosso povo,
senvolvimento, pode escolher alguns setores industriais para não o contrário. Por isso defendemos um referendo revoga-
realizar uma política consciente de substituição de importa- tório da reforma trabalhista.
ções. Setores como o de Petróleo e Gás, Química Fina, Defesa Queremos investir em empregos de qualidade para que
e mesmo o agronegócio, são exemplos concretos disso. as trabalhadoras e os trabalhadores tenham redução de jor-
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nada, por exemplo, tenham mais tem-
po para viver a vida. Como diz Mujica,
a vida é a única coisa que o capitalis-
mo não vende. Queremos que nosso
povo viva a vida.
Camaradas, não existe nenhuma
contradição entre as nossas lutas en-
quanto mulheres e as lutas dos negros,
por exemplo, com nosso projeto de de-
senvolvimento. Como seria possível de-
senvolver o país sem mais de 70% da
população? Sem enfrentar a diferença
salarial entre mulheres e homens, entre
negras e brancas, negros e brancos? En-
tão nosso projeto é o do povo brasileiro.
E o povo brasileiro é negro e é mulher!
Camaradas, como sabem sou da
terra de Getúlio mas sou também da Manuela ladeada pelas presidentas do PT, Gleisi Hoffmann, e do PCdoB, Luciana Santos
terra de Brizola. Cresci ouvindo dele
a ideia de que um grande Brasil só aconteceria com um emancipação. Numa sociedade ainda machista como a nos-
grande investimento em educação. Hoje tenho certeza disso. sa, a ausência do Estado é uma punição às mulheres.
Como pensar em indústria sem pensar na manutenção e Flávio comprova que a experiência dos comunistas ga-
ampliação de nossos Institutos federais? Como fazer dessas rante boa gestão, ou seja, eficiência do Estado comprometi-
escolas técnicas escolas nossas parceiras da indústria 4.0? da com a existência do Estado para os que precisam.
Como pensar em crescimento da economia sem pensarmos Camaradas, um partido como o nosso não trabalha com
em nossos jovens nas universidades públicas e privadas e a ideia de retomada do crescimento econômico com centra-
na retomada da ampliação do investimentos em pesquisa? lidade por acaso. Nossa razão de ser é buscar que as pessoas
Aliás, os estudos de Tomas Piketty sobre o capitalismo e vivam com mais dignidade, com mais oportunidades. É por
desigualdade social evidenciam que não há outra ferramen- isso que nossa candidatura quer responder às principais an-
ta de diminuição de desigualdades senão o forte investimen- gústias da população.
to público em educação. O que pode angustiar mais alguém do que não ter acesso
Sempre que começo a falar em educação me lembro ca- à saúde para si ou para um filho? A diferença entre a vida
rinhosamente de nosso maior exemplo, o governador Flávio e a morte não pode ser o dinheiro. Os princípios do SUS, a
Dino. Senhoras e senhores! Que revolução! Se eu pudesse universalidade, a integralidade, a gratuidade, a regionali-
resumir em poucas palavras seria compromisso com o fu- zação, a valorização dos trabalhadores da saúde são inego-
turo e eficiência. Toda vez que vejo uma obra de escola no ciáveis. Além disso, é possível pensar em como o segmento
Maranhão me lembro de Laura, minha filha, e a história da saúde pode ser estruturante da retomada da indústria
dos três porquinhos. Quando Laura quer falar que algo é nacional. Fármacos, equipamentos, por exemplo. O Brasil
duradouro, ela fala que é tijolo. Flavio já fez mais de cem pode diminuir o déficit da balança comercial se investir na
escolas de tijolo em contraposição às escolas de taipa e palha, indústria da saúde.
metade da folha do funcionalismo é destinada aos educado- É possível dialogar com o povo brasileiro sem debater o
res. Flavio criou a escola de tempo integral no Maranhão! tema da segurança pública e das múltiplas violências que
Toda vez que vejo um político, quase sempre homem, de- sofremos? Candidaturas se forjam apenas organizando e
fender a diminuição do Estado penso em nossas mulheres agudizando o medo que as pessoas sentem em função da
que são mães. Que diminuição é essa que não leva em conta violência nos grandes centros urbanos. Nós achamos que é
que nós não temos escola em tempo integral para nossos fi- papel do Estado enfrentar esse tema. Até porque, camara-
lhos? Como isso dificulta nosso retorno ao mercado? Quem das, foi-se o tempo em que podíamos afirmar apenas que a
cuida de nossas crianças quando não estão na escola? Ou desigualdade social gera violência urbana. Hoje a violência
seja debater tamanho do Estado não é algo abstrato. É algo faz parte do sistema de produção e perpetuação da miséria,
real, que interessa a nós mulheres. A escola de tempo integral afinal, quem passa pelo sistema carcerário é marcado para
de Brizola e agora de Flávio, a escola que garante tranqui- ser para sempre pobre.
lidade à mãe trabalhadora. Nós mulheres e mães sabemos, Queremos andar com nossos filhos nas ruas, quere-
desde a centenária Revolução Russa e os registros feitos por mos parar de enterrar nossos jovens. Percebam que esta-
Kollontai, que o Estado tem relação direta com nossas vidas e mos falando de 60 mil mortes por ano em homicídios, 40
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mil jovens executados. São mais mortos do que em todas nosso sistema escolar. Pouco se fala nisso, mas quem sai da
as guerras de nosso tempo. Estamos falando da juventude escola entre o 5º e 6º anos, um ano depois aumenta em 50%
negra exterminada. Queremos rede de proteção para nossas de chance de praticar violência.
mulheres vítimas de violência, queremos rede de proteção Construir uma política de combate à violência é garan-
para as vítimas de homofobia. tir um Brasil de oportunidades iguais para todos.
Creio que fazer o povo brasileiro viver em paz é um dos Camaradas, nossa pré-candidatura não se soma àque-
maiores desafios de nosso tempo. las que desconstroem a política e, portanto, agravam a crise
Portanto, falar em segurança é falar em política públi- brasileira. Sabemos que a crise no Brasil tem origem po-
ca, em criação de ministério, em investimento federal, em lítica e, portanto, a saída da crise também é política. Não
modernização e inteligência, em fiscalização das polícias, existem candidaturas de outsiders. Nada mais a cara do
em valorização dos polícias. Falar em combate à violência e sistema do que buscar soluções que pareçam estar fora dele.
falar em viver em paz é o esforço para a garantia do respei- Mas se é verdade que a saída é política – e por isso de-
to a quem nós somos, às nossas individualidades enquanto fendemos uma Frente Ampla, popular, de diálogos com os
mulheres, negros, gays, jovens. cidadãos e cidadãs – também é verdade que defendemos que
Os jargões da internet, os discursos de ódio, a propagação a política precisa ser reformada, renovada, representando os
do medo não salvam vidas, não resolvem nossos problemas interesses da população, das pessoas comuns.
e medos reais. Nossa candidatura é a candidatura dos que compreen-
Mas falar em viver em paz também é falar sobre edu- dem a necessidade de lutar para o Brasil dar certo para o
cação e voltamos a esse assunto. Uma política séria de di- povo brasileiro!
minuição da violência deve devolver aos professores as con- Parafraseando Thiago de Mello que com seu poema deu
dições de dar aula. Enquanto alguns falam em escola com nome a nosso congresso
mordaça, nós falamos em escola modernizada, segura, que Faz escuro mas nós cantamos,
garante oportunidade para todos. Porque o amanhã vai chegar
Nossa candidatura defende um pacto pela paz, com Vamos juntos, pessoal
prioridade absoluta nos investimentos para que nossas Trabalhar pela alegria
crianças e jovens de 0 a 18 anos, para que todos estejam na
escola. É preciso buscar, ativamente, aqueles que evadem de Um beijo e boa luta!
64
CONAPE:
Retomada do projeto democrático de educação
Diante dos ataques sistemáticos à educação, do des- formado no Comitê Nacional de Luta em Defesa da Edu-
manche das políticas públicas e da submissão do gover- cação Pública.
no ilegítimo de Michel Temer aos interesses privatistas,
Hoje, frente à dissolução arbitrária, pelo MEC, do Fó-
faz-se não só necessário, mas urgente, que o debate
rum Nacional de Educação como conquista da sociedade
educacional seja priorizado, pois apenas com o acesso
civil e à inviabilização de uma Conae com real participa-
à educação pública, gratuita, inclusiva e socialmente re-
ção popular, a Conape torna-se um instrumento coletivo
ferenciada, bem como com a regulamentação do setor
de luta, enfrentamento e resistência: resistência e en-
privado, iremos defender a soberania do país.
frentamento contra o congelamento dos investimentos
em políticas públicas pelos próximos 20 anos; por uma
Nesse sentido, a Conferência Nacional Popular de
escola sem mordaça; contra uma reforma do ensino mé-
Educação (Conape), que será realizada em abril de 2018,
dio excludente; pelo cumprimento do Plano Nacional de
em Belo Horizonte, apresenta-se como um espaço im-
Educação como plano de Estado, resgatando o projeto
prescindível. Sua semente começou a ser cultivada em
democrático do país.
junho de 2016, a partir de uma convocação da Contee
para a realização da II Plenária Nacional de Educação, Madalena Guasco Peixoto é coordenadora da Secretaria-
na qual se organizou, com a participação de diversas Geral da Confederação Nacional dos Trabalhadores em
entidades do campo educacional, o Comitê Nacional de Estabelecimentos de Ensino — Contee
Educação Contra o Golpe, em Defesa da Democracia, Adércia Bezerra Hostin dos Santos é coordenadora da
Fora Temer, Nenhum Direito a Menos! — depois trans- Secretaria de Assuntos Educacionais da Contee
Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017
Financeirização, coalização
de interesses e taxa de juros
no Brasil
Luiz Fernando de Paula* e Miguel Bruno**
66
Economia
A
pesar de estarem com tendência de tendo sido pioneiramente sustentada há tempos por
queda, em meio à forte e prolongada Bresser-Pereira e Nakano (2002, p. 169): “depois da
recessão, as taxas de juros reais no persistente manutenção da taxa de juros em nível
Brasil são extre- muito elevado é natural que sur-
mamente eleva- ja o medo de redução, e que esse
das em termos de nível se torne uma convenção” (1);
comparação internacional. A Ta- Levantamos aqui a e Bresser-Pereira (2007, p.200)
bela 1 mostra que países com ris- hipótese de que a acrescenta: “a Selic é alta no Brasil
co-país em níveis semelhantes ao porque, com o argumento de que
do Brasil, como Bulgária, Peru e
prevalência de altas é necessária uma taxa de juros
Panamá, têm taxas de juros reais taxas de juros reais muito alta ‘para combater a infla-
bem menores. Seria de se esperar, no Brasil por décadas ção’, [ela] é estabelecida em nível
pela teoria da paridade – segundo artificial, de forma a remunerar
a qual a taxa de juros doméstica é levou à formação os rentistas e o setor financei-
igual à taxa de juros internacio- de uma coalização ro.”. Recentemente Lara Resende
nal mais o prêmio de risco-país e (2017, p.126-127) sustenta que a
o risco cambial –, que tivéssemos de interesses dos manutenção de taxa de juros ele-
taxas de juros bem mais baixas, rentista-financistas na vadas no Brasil acaba por se reve-
mas sabemos que esta não é a lar ineficaz para baixar a inflação,
manutenção de taxas
evidência brasileira. Relaciona-se e levanta a hipótese de que taxas
a isso a questão: Por que o Banco de juros elevadas, já de juros altas podem levar a taxas
Central tem que elevar tanto a ta- que estas favorecem de inflação maiores: “Suponha o
xa de juros para reduzir a taxa de caso de um paciente com doença
inflação no Brasil? Ou ainda: Por a valorização da sua crônica para a qual se ministra um
que a inflação é tão resiliente em riqueza financeira remédio há décadas. Há unanimi-
nosso país? dade médica de que, no caso des-
se paciente, a doença é resistente.
Tabela 1: Risco-país e taxa de juros Doses maciças vêm sendo receitadas sem resultado.
(média de 2010-2014) Os efeitos secundários negativos são graves, debili-
Pais Risco-país Taxa real de juros tam e impedem a recuperação do paciente, que agora
Africa do Sul 215 -0,03 se encontra na UTI. Novos estudos, ainda que preli-
Brasil 916 4,25 minares, questionam a eficácia do remédio. Pergunta:
Bulgária 881 -1,73
deve-se continuar a ministrar as doses maciças do re-
Colômbia 766 1,19
Filipinas 399 0,16 médio ou reduzir rapidamente a dosagem?”.
México 532 0,10 A coalização de interesses rentistas foi formada no
Panamá 1029 0,88 Brasil em função do desenvolvimentismo de um capi-
Perú 923 0,16 talismo determinado pelas finanças com especificida-
Russia 659 0,67 des nacionais, cuja característica central é a prevalên-
Turquia 416 -3,55
Fonte: Datamarket (EMBI+) e IMF; (*) Governo Central
cia de um processo conhecido como “financeirização”
– entendida como “o aumento do papel dos motivos
financeiros, mercados financeiros, atores financeiros
Levantamos aqui a hipótese de que a prevalência e instituições financeiras nas operações de economias
de altas taxas de juros reais no Brasil por décadas nacionais e internacionais” (EPSTEIN, 2005, p.3), ou
levou à formação de uma coalização de interesses ainda “um padrão de acumulação no qual a realiza-
dos rentista-financistas na manutenção de taxas de ção de lucros ocorre crescentemente através de canais
juros elevadas, já que estas favorecem a valorização financeiros ao invés do comércio e produção de mer-
da sua riqueza financeira, a qual depende de parte cadorias.” (KRIPPNER, 2005, p. 174). De forma mais
importante de seus rendimentos. Esta coalização, ampla, o trabalho pioneiro de Braga (1985) define
acrescente-se, não é benéfica somente para os ren- a financeirização como norma sistêmica de riqueza,
tistas, mas também para o próprio Banco Central do uma vez que produz uma dinâmica estrutural articu-
Brasil (BCB), que tira proveito da reputação de ser lada de acordo com os princípios da lógica financeira.
um banco central conservador (ERBER, 2011). O “finance-led capitalism” (capitalismo liderado pelas
A convenção pró-conservadorismo na condução finanças) tem se disseminado no mundo em função
da política monetária não é uma hipótese nova, já da adoção de políticas neoliberais, que inclui um con-
67
Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017
junto de políticas como liberalização financeira, fle- cesso no Brasil. Por um lado, a financeirização eleva a
xibilização do mercado de trabalho, esvaziamento do um paroxismo a preferência pela liquidez dos deten-
Estado social e desenvolvimentista etc. Seu resultado tores de capital (inclusive o empresário industrial que
frequentemente é a busca de ganhos financeiros de se torna rentista), reduzindo a formação bruta de ca-
curto prazo por parte dos agentes (inclusive através pital fixo em função das possibilidades de aplicações
do “shareholder value”, valor para o acionista), expan- financeiras de curto prazo que competem com apli-
são precoce do setor de serviços, desindustrialização e cações em ativos de capital, ao aumentar o prêmio de
precarização do trabalho. liquidez (ver Gráfico 1). Por outro lado, ela tem claros
No Brasil, desde 1994, a financeirização ocorre efeitos concentradores nos segmentos de alta renda,
pelos ganhos com juros substituindo o regime mo- considerando que os rendimentos financeiros, lucros
netário anterior caracterizado pela “financeirização dividendos e heranças e doações representam quase
pelos ganhos inflacionários.”. Ambos processos fo- 40% da renda do país. Segundo Morgan (2017), em
ram estimulados desde o início dos anos 1990 pela 2001-2015, a renda média dos 1% mais ricos cresceu
crescente liberalização da conta capital, dada a na- 31,4%; a dos 50% mais pobres (favorecidos pela po-
tureza especulativa dos fluxos de capitais tanto por lítica de crescimento real do salário-mínimo) 28,7%;
residentes quanto por não residentes. No regime de enquanto a da classe média (40% que ganham entre
“financeirização pelos ganhos com juros” o gover- R$ 1,4 mil e R$ 5,0 mil) apenas 11,5%.
no buscou, até 2015, conciliar os interesses da acu- A tendência a uma financeirização crescente da
mulação rentista-patrimonial com políticas sociais economia brasileira, e, em particular, a existência
redistributivas, favorecendo os segmentos cujos de um grande volume de aplicações financeiras com
rendimentos derivam das rendas de juros e demais remuneração denominadas a taxa de juros (lastrea-
ganhos financeiros (derivados do endividamento das nas Letras Financeiras do Tesouro (LFTs) e com-
público e privado). Assim, financeirização foi esti- promissadas) – uma “jabuticaba brasileira” –, fazem
mulada por dois fatores inter-relacionados: taxa de com que a política monetária seja pouco eficiente no
juros reais elevadas e permanência de um circuito de Brasil, sendo uma das razões para termos uma taxa
“overnight” na economia brasileira, herdada do pe- de juros elevada, pois requer juros maiores para se
ríodo de alta inflação, mas mantida no pós-real, para ter o mesmo efeito sobre a demanda agregada. Como
onde são canalizadas as aplicações de alta liquidez parte das aplicações dos agentes é vinculada à taxa
dos agentes econômicos. (Gráfico 1) de juros, e uma elevação nesta ocasiona um aumen-
Cabe destacar alguns efeitos perversos deste pro- to na riqueza financeira, neutralizando parcialmente
25,0%
20,0%
15,0%
10,0%
5,0%
0%
1970
1971
1972
1973
1974
1975
1976
1977
1978
1979
1980
1981
1982
1983
1984
1985
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1990
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2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
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2012
2013
2014
2015
68
Economia
69
Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017
e uma estrutura de dívida pouco dexados pela taxa fixada pelo BCB
saudável (prazos ainda curtos e A financeirização nas operações de política mone-
parte indexada ao Sistema Es- reduz, tária, o que torna títulos públicos
pecial de Liquidação e Custódia, e reservas bancárias substitutos
Selic), o mercado consegue colo- significativamente, perfeitos, e faz com que a taxa do
car pressão no Tesouro para ven- a autonomia dos mercado interbancário incorpore
der os títulos em condições favo- o prêmio de risco da dívida públi-
ráveis a ele, inclusive no que se Estados nacionais ca brasileira. Barbosa et al (2016),
refere à remuneração dos títulos. seja para formularem por sua vez, sugerem a existência
Por último, os rentista-financis- de um “componente jabuticaba”
tas, em função de o Brasil operar
as políticas fiscal incorporado ao prêmio de risco
com uma conta de capital aberta, e monetária, seja dos títulos públicos. Conforme a
podem exercer seu poder sobre no que concerne a análise acima, a coalização de in-
o BCB em momentos de maior teresses rentistas pode pressionar
instabilidade macroeconômica uma estratégia de a taxa de juros no Brasil nos dois
“colocando o pé na porta”, isto é, desenvolvimento de mercados (supondo também a
comandando a saída de capitais existência de um efeito-contágio
externos que resulta numa des-
longo prazo invertido, do mercado interban-
valorização abrupta da taxa de cário para o mercado de títulos),
câmbio – o que pode obrigar o BCB a manter taxas isto é, de títulos públicos e de reservas bancárias,
de juros elevadas para refrear eventuais saídas de ocasionando um viés altista na taxa de juros.
capitais. (Gráfico 2) Essa constatação encontra amplo apoio nos es-
Barbosa (2006) desenvolveu a ideia de uma con- tudos internacionais, pois os resultados encontrados
taminação da política monetária pela dívida pública são unânimes quanto ao fato de que a financeiriza-
em decorrência da existência de títulos públicos in- ção reduz, significativamente, a autonomia dos Es-
R$ 3.000.000,00 8,00
7,00
R$ 2.500.000,00
6,00
R$ 2.000.000,00
5,00
R$ 1.500.000,00
4,00
R$ 1.000.000,00
3,00
R$ 500.000,00
2,00
R$ 0,00
1,00
1992.05
1993.01
1993.09
1994.05
1995.01
1995.09
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2000.05
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2012.05
2013.01
2013.09
2014.05
2015.01
2015.09
2016.05
Fonte: Cálculos próprios com base nos dados do Banco Central do Brasil.
70
Economia
71
Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017
72
Internacional
A primeira geração de dirigentes liderada por Mao Tsé-tung tornou o país independente e retomou a integração territorial
A
Ao mesmo tempo, a revolução deu continuidade
revolução de 1949 está entrelaçada à aos desafios de construir um Estado moderno a par-
questão nacional chinesa, ao seu im- tir da herança de um império sofisticado, mas em
perativo de libertação e (re)constru- franca desagregação. Como a proclamação da Repú-
ção nacionais. Como destaca Visentini blica (1911) havia sido um processo inconcluso, cou-
(2017), a questão nacional transcende be ao governo revolucionário a tarefa de reconfigurar
a definição do que é nação (etnia, língua e cultura), os elementos centrais da sociedade chinesa. E isso
pois se relaciona com o Estado nacional, em suas di- num quadro de desordem, ameaça militar e chanta-
ferentes formas no tempo e no espaço, e no quadro gem nuclear a partir da presença norte-americana na
de forças do sistema internacional. Só construções península coreana. A prioridade era, pois, garantir a
políticas nacionais podem dar conta da redução das unidade chinesa a partir do novo Conselho Central
desigualdades sociais e das assimetrias internacio- do Governo Popular, interligado com o Partido Co-
nais. E deve-se destacar que não há soberania senão munista e o Exército de Libertação Popular (SPEN-
com fortalecimento dos meios técnicos e políticos CE, p. 493-497) e da constituição de 1954 (inspirada
estatais; não há políticas públicas de redistribuição na soviética de 1936) para garantir estabilidade da
e reconhecimento senão numa economia nova estrutura de Estado e governo – logo sobrepu-
nacional desenvolvida; não há democratização e jada pelos percalços do Grande Salto Adiante e da
empoderamento dos segmentos populares à margem Revolução Cultural.
das instituições nacionais de Estado. Assim, o multifacetado e sinuoso processo de (re)
É por isso que o objetivo primordial do país orien- construção nacional da China deve ser compreendi-
tal tem sido a superação daquilo que os chineses cha- do em seu sentido histórico. A primeira geração de
mam oportunamente de “século de humilhações” dirigentes liderada por Mao Tsé-tung tornou o país
(1839-1949), cujo legado é uma história de mais de independente, retomou a integração territorial, lan-
500 tratados de subtração da soberania e pilhagem çou os alicerces da indústria de base e da infraes-
(GUO, 2013, p. 61), violência, revoltas e fome, fruto trutura física (transportes, comunicação e energia).
da mais completa desorganização política e econô- A segunda geração, tendo à frente Deng Xiaoping,
mica do antigo Império do Meio. Assim, a revolução lançou a política de Reforma e Abertura em meados
liderada por Mao Tsé-tung representou a ruptura com dos anos 1970, retomando o processo acelerado de
73
Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017
74
Internacional
O 19º Congresso do Partido Comunista da China (PCCh) realizado em outubro de 2017 afirma o caminho do socialismo de mercado
rísticas chinesas” de David Harvey (2008, p. 133; aprendizados decorrentes da expansão ocidental e
160), a China está a buscar sua própria experiência de suas revoluções Industrial e Francesa, incluindo
de desenvolvimento. Para Losurdo (2004), trata-se as novas suas tecnologias e seus experimentos ins-
de uma gigantesca Nova Política Econômica (NEP); titucionais modernos; iii) e os valores oriundos da
para o governo chinês, a fase primária de construção revolução de 1949 e dos movimentos socialistas que
do socialismo. De todo modo, não é novidade, aliás, a inspiraram, notadamente a busca combinada de
segmentos da esquerda capitular em quando as ad- redistribuição e reconhecimento.
versidades das circunstâncias entram em contradi- A maneira como o passado tem sido atualiza-
ção com o socialismo imaginado, numa autofagia do pelos dirigentes chineses pode ser percebida de
permanente. diversas formas. Cabe destacar o fortalecimento e
Para os líderes chineses, a emancipação nacional qualificação da burocracia à maneira do pioneiris-
não é possível sem um exitoso processo de desenvol- mo dos mandarins; a recuperação do Estado como
vimento. Só assim é possível evitar as vulnerabili- realizador de grandes obras de infraestrutura; a im-
dades e os riscos de anexações política e econômica. portância da simbiose planejamento e mercado no
Em perspectiva histórica, é possível afirmar que a desenvolvimento; a noção de um “mandato do céu”
experiência da China tem diminuído “duas grandes dado ao PCCh com mescla de legitimidade e desem-
divergências”: aquela oriunda da divisão internacio- penho; o papel do confucionismo no ordenamento
nal do trabalho entre países ricos e pobres e a outra social, resgatando elementos importantes da heran-
decorrente da polarização da riqueza interna a cada ça cultural; o relançamento de uma Nova Rota da
país. A diminuição da distância de seu desenvolvi- Seda como forma de integração com outros povos; a
mento diante dos países ricos e a mobilidade social promoção de uma integração asiática que atualiza o
interna confrontam a tendência de concentração de antigo sinocentrismo; etc. Ou seja, a questão nacio-
riqueza no mundo atual. E não existe alternativa a nal na China é um experimento complexo que vai
este projeto de emancipação desvinculado do merca- ganhando forma.
do mundial, com os riscos de “dançar com os lobos”
(LOSURDO, 2015, p. 321-340). 3. A questão nacional e o projeto
Diante de desafios de toda ordem, sugerimos que chinês de globalização
a experiência chinesa tem sido uma Nova Síntese. E
esta não pode desconsiderar i) a herança de uma Mas se a experiência de desenvolvimento da Chi-
civilização milenar, assentada numa longa tradi- na está à procura de sua forma, sua atuação interna-
ção histórica de avanços técnicos e culturais; ii) os cional também. Como destaca Zhao (2013), a diplo-
75
Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017
macia chinesa ficou mais assertiva, deixando de lado do como o rejuvenescimento do país, a revitalização
a política externa de baixo perfil de Deng, sobretudo e a renovação da sua civilização, para promover a
em temas crucias do seu interesse nacional, como transformação da civilização humana, e materializar
bem ilustra a presença na África e o envolvimento o desenvolvimento. O sonho chinês está entrelaçado
securitário no Mar do Sul da Chi- à “agenda dos dois centenários”
na. A China tem criado condições (criação do PCCh em 2021 e da
objetivas e subjetivas para de- proclamação da República Popu-
senvolver uma diplomacia mul- Já em 2004, um lar da China em 2049) que deter-
tilateral ativa, deixando de ser britânico, Joshua Ramo, minam os horizontes da constru-
um simples participante para ser ção de construir um país e uma
protagonista e assumir grandes
passou a falar no sociedade modestamente confor-
responsabilidades (TIANQUAN, Consenso de Pequim. tável (XINPING, 2015).
2012, p. 182). Aliás, o maior en- Com ele, a China Se num primeiro momento
volvimento na arena internacio- a ênfase foi dada ao desenvolvi-
nal demanda inexoravelmente tem apresentado um mento nacional, num segundo
compromissos e responsabilida- caminho alternativo momento, o entrelaçamento da
des ampliados. China com o mercado e a polí-
Nesse sentido, cabe perceber baseado tanto no tica internacionais aprofundou
como os discursos acerca da in- reconhecimento das seu engajamento e assertividade
serção internacional da China globais. O envolvimento chinês,
são moldados. Primeiro, surgiu
necessidades locais por óbvio, tem foco central no
o conceito de Ascensão Pacífica, do desenvolvimento entorno regional, na (re)consti-
cunhado por um proeminente de cada país, quanto tuição do sistema sinocêntrico
membro do Partido Comunis- (1). Além da prioridade securi-
ta da China, Zheng Bijian, em no reconhecimento tária, a diplomacia chinesa busca
2002 – inclusive como resposta do multilateralismo e liderar os processos de integração
aos recorrentes argumentos de regionais, notadamente a Organi-
“ameaça chinesa” ou “colapso da
da cooperação como zação para a Cooperação de Xan-
China”. O conceito foi rejeitado, forma de construir uma gai, criada em 2001 com China,
entre outras razões, porque pro- nova ordem mundial Rússia, Cazaquistão, Quirguistão,
vocava desconfiança nos países Tadjiquistão e Uzbequistão, com
vizinhos em razão da noção de a incorporação de Índia e Paquis-
“ascensão”. De acordo com Tian- tão em 2017; a Parceria Econômi-
quan (2012, p. 188), o Relatório do 17° Congresso do ca Regional Ampla (Regional Comprehensive Economic
Partido Comunista Chinês em 2007 adotou a ideia Partnership ou ASEAN + 6 em 2011); e a Nova Rota
de Desenvolvimento Pacífico e Mundo Harmonioso. da Seda (YIWEI , 2016) (2), lançada em 2013 e já
Já em 2004, um britânico, Joshua Ramo, passou impulsionada com o Fórum promovido em maio de
a falar no Consenso de Pequim. Com ele, a China 2017.
tem apresentado um caminho alternativo baseado Por um lado, a China está reconstituindo um sis-
tanto no reconhecimento das necessidades locais do tema sinocêntrico a partir desses processos de inte-
desenvolvimento de cada país, quanto no reconhe- gração como núcleo do próprio projeto chinês de glo-
cimento do multilateralismo e da cooperação como balização. Ressalte-se que outro importante vetor de
forma de construir uma nova ordem mundial (AR- atuação da China tem sido a conformação de outra
RIGHI, 2008, p. 383). Embora não tenha sido conce- arquitetura financeira global (3), baseado em novos
bido pela elite chinesa, o fato é que o modelo chinês, mecanismos de financiamento e na transformação
com forte atuação do Estado no desenvolvimento e do Yuan em moeda conversível. Por outro, as linhas
baseado nos históricos Cinco Princípios de Coexis- de tensão com a superpotência (EUA) ficam cada vez
tência Pacífica (1955), é percebido como diferente mais claras, como bem ilustra sua política de conten-
– e até divergente – da supremacia neoliberal con- ção e cerco à China. Trata-se de um arco de contenção:
sagrada no Consenso de Washington e do interven- a leste, inicia-se na Península Coreana, mantendo
cionismo dos EUA. Aliás, pode-se dizer que converge o regime de Pyongyang na defensiva, militarizando
com o proclamado o chinese dream, buscando com- a região e visando a legitimar o sistema antimíssil
partilhar as perspectivas de prosperidade e estabili- THAAD na Coreia do Sul; continua ao alimentar
dade com toda a região (ZHA, 2015). Este é concebi- aspirações independentistas de Taiwan e prossegue
76
Internacional
77
Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017
Um Marx político em
sua plenitude
Juarez Guimarães*
O
livro Caminhos da liberdade no jovem Marx, de
Júlia Lemos Vieira, deve ser saudado como
um dos mais importantes livros já publica-
dos sobre a obra de Marx no Brasil. Através de um
didático trabalho de pesquisa e documentação, de
releitura e interpretação, o que temos com esta bela
obra é um Marx livre para o século 21, mais do que
nunca clássico e, ao mesmo tempo, contemporâneo.
Há pelo menos três conquistas centrais nesta tese
de doutorado amadurecida e editada.
A primeira delas é ser capaz de construir uma
narrativa convincente que supera a conhecida polê-
mica das leituras que operam com uma ruptura en-
tre o “velho Marx” e o “jovem Marx”, entre os seus
primeiros escritos humanistas e a sua obra tardia,
centralizada na redação de O Capital, entre o jovem
hegelianismo idealista de sua primeira consciência e
o materialismo científico da maturidade. Muitas ve-
zes, aqueles que discordavam desta leitura o faziam
ainda no próprio campo da polêmica, enfatizando as
CAMINHOS DA LIBERDADE NO JOVEM MARX dimensões humanistas onipresentes em todos os es-
critos marxistas, da juventude ao inacabamento de
Autor: Júlia Lemos Vieira O Capital.
Páginas: 400 A vantagem da obra de Júlia Lemos é que ela
nos propõe pensar as mudanças – o enriquecimen-
Editora: Anita Garibaldi to, o amplo trabalho de pesquisa e elaboração, até
ISBN: 978-85-7277-185-6 mesmo a formação de uma identidade própria do
marxismo – como um só itinerário formado em
Ano de publicação: 2017 – 1ª edição torno da ideia de liberdade. Propõe-se, neste senti-
Formato: 16 x 23 cm do, a unidade transformativa da obra de Marx no
processo vivo da história em que ela se fez. O que
Preço: R$49,00 é decisivo: o caminho da cisão histórica da cultu-
Disponível* em: www.anitagaribaldi.com.br. ra do marxismo esteve desde o início vinculado a
operações de cisão na obra do próprio Marx. Reen-
contrar a unidade em Marx é um caminho para se
pensar a unidade, no pluralismo, da própria cultu-
ra do marxismo.
A segunda conquista central é valorizar a desco-
berta do conceito de práxis por Marx como modo de
superar os velhos antagonismos, herdados da Ilus-
tração e de seu desenvolvimento na filosofia alemã
do século 19, entre materialismo e idealismo. Esta
centralidade conferida à práxis, tal como Gramsci,
permite a Júlia Lemos se afastar do economicismo,
das visões deterministas ou semideterministas, que
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RESENHA
terminam por tornar incompatível o marxismo com conhecimento contextual muito mais erudito sobre
a própria noção de história aberta e de liberdade. as culturas políticas e filosóficas do século 19 na Ale-
O Marx que surge daí é, então, um Marx políti- manha, em seu estreito desenvolvimento com a Fran-
co em sua plenitude, o jovem editor em luta contra o ça da revolução francesa. Ora, estes novos trabalhos
Estado prussiano, o crítico da alienação do trabalho, recentes, trabalhando mais profundamente texto e
o opositor das seitas que aspiram à “emancipação pe- contexto, têm apontado a mesma linha da reflexão
lo alto”, o revolucionário de 1848, o internacionalista inteligentíssima de Júlia Lemos. O seu livro tem, por-
defensor da Comuna de Paris, o Marx crítico do Es- tanto, este mérito de estar em linha com as melhores
tado liberal moderno e militante da revolução anti- reflexões que hoje se fazem sobre a obra de Marx.
capitalista. Neste século 21, em que avultam as dinâmicas
A terceira conquista de Júlia Lemos, solidária regressivas da tradição predominante do libera-
às duas primeiras, é propor o entendimento de que lismo nas últimas décadas, o neoliberalismo, este
“seu projeto de revolução social radical descende da Marx livre – liberto da acusação histórica dos li-
recusa da imposição de uma razão pública não deter- berais de haver uma contradição insolúvel entre
minada efetivamente pelo povo, da recusa da máxi- Marx e a ideia de liberdade, mas também livre das
ma de que o povo não sabe o que quer e, neste senti- tradições que o cultivaram dogmaticamente – é
do, da recusa de que se faria necessária a imposição fundamental. Se o neoliberalismo é liberticida, se
de uma razão desenvolvida conceitualmente, cindi- as formas contemporâneas do capitalismo finan-
da da determinação do povo, em nome da liberdade ceiro e globalizado atentam cada vez mais contra o
desse povo.”. Após afirmar que o “projeto de cunho princípio da soberania popular e da autonomia do
rousseauniano não é propriamente abandonado, mas trabalhador, se cada vez mais só é possível defen-
muda de caráter”, Júlia Lemos afirma que “entre o der a liberdade de forma coerente sendo também
jovem Marx republicano e o jovem Marx comunista anticapitalista, então, estes caminhos da liberdade
há, assim, um mesmo horizonte de dissolução das do jovem Marx são também, promissoramente, as
cadeias dos homens entendidas como alienações: a alamedas da renovação da luta pelo socialismo no
autonomia como princípio do humanismo.”. século 21.
Há hoje na literatura marxista internacional, em
seus centros mais avançados de reflexão, um conhe- * Juarez Guimarães é professor associado de
cimento muito mais textual da obra de Marx, permi- Ciência Política da UFMG e autor de Democracia e
tida pela edição em curso de sua obra completa, e um marxismo: Crítica à razão liberal (Xamã, 1998).
Marx e Engels na imprensa da NRZ em Colônia no momento da revolução de 1848-1849. Pintura de E. Capiro
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Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017
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pensa a realidade brasileira. Madalena Guasco, Nereide Saviani, Nguyen Viet Thao, Olival
Freire Jr., Olívia Rangel, Pedro de Oliveira, Raul Carrion, Sílvio
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