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Editorial

2018: O Brasil diante


de uma encruzilhada
E
m crise há 10 anos, o capitalismo hegemoni- Apesar das adversidades, está ao alcance das mãos
zado pela grande finança busca saídas. Recru- das forças democráticas, populares e patrióticas, sob
desce o neoliberalismo e vai impondo uma a liderança da esquerda, vencer as eleições de 2018.
nova ordem neocolonial contra os países da periferia O governo do impostor Michel Temer é rechaçado
e semiperiferia do centro capitalista. pela ampla maioria do eleitorado, o consórcio golpis-
O governo ilegítimo de Michel Temer, em es- ta enfrenta divisões. Não há como esconder: PSDB,
sência, tem atuado para subordinar o país integral- PMDB, DEM, Patriotas et caterva são os responsáveis
mente a essa lógica imposta pelas grandes potên- pelo atual desastre que o país atravessa.
cias capitalistas. Para ter protagonismo na construção da almejada
Do povo vai sendo retirado o pouco que ele tem, vitória da Nação e da classe trabalhadora nas elei-
sendo-lhes cortados direitos trabalhistas e sociais. A ções presidenciais de 2018 é que o Partido Comunista
sangria do momento é a Reforma da Previdência. A do Brasil lançou no seu 14º Congresso, realizado em
saúde, a educação e a segurança pública já sofrem os novembro de 2017, a pré-candidatura de Manuela
efeitos negativos do torniquete da Emenda do Teto D’Ávila à presidência da República.
do Gasto. Desde então, Manuela – com a bandeira da Frente
A economia brasileira é desnacionalizada. O patri- Ampla nas mãos e com a mensagem de que o Brasil
mônio e a riqueza nacional são alienados através de pode vencer a crise com um novo ciclo de desenvolvi-
concessões absurdas, criminosas ou de privatizações mento soberano e progresso social – tem percorrido o
lesa-pátria como é caso do Pré-sal e da Eletrobrás. país reacendendo a esperança do povo.
A política como um todo foi satanizada. E a es- Mesmo que a esquerda, como é a tendência, te-
querda, alvo de corrosiva campanha difamatória. nha mais de uma candidatura no primeiro turno
Pairam ameaças sérias contra as eleições presi- das eleições, a convicção e a conduta política de que
denciais de 2018. Trama-se o parlamentarismo e um somente a união de amplas forças políticas, sociais,
dito semipresidencialismo. Arbitrariamente, tenta-se econômicas e culturais poderá assegurar a vitória do
excluir o ex-presidente Lula da disputa presidencial. povo devem reger a tática do conjunto das legendas e
O governo golpista alardeia e festeja sinais tê- forças progressistas.
nues de reaquecimento da economia. Mas o fato A batalha será dura, difícil, mas é possível, ple-
é que a Nação e a classe trabalhadora padecem de namente possível, que as forças políticas e sociais da
um dos piores períodos recessivos de nossa história Nação e da classe trabalhadora vençam as eleições
republicana. presidenciais de 2018.
Dez meses separam o país das eleições de 2018.
E novamente o caminho da Nação se bifurca: ou Adalberto Monteiro
o país se reencontra com a trilha da democracia, da Editor
soberania nacional, com o desenvolvimento e o pro-
gresso social; ou seguirá na rota do entreguismo, do ***
autoritarismo e da rotina de, a cada semana, uma pu-
nhalada nas costas do povo e da classe trabalhadora. Esta edição de Princípios tem como tema de capa o
Em síntese, ou o Brasil seguirá na rota que lhe centenário da Revolução Russa de 1917. Tendo como
impôs o golpe, a do ultraliberalismo e do neocolonia- base as apresentações feitas durante o seminário Ou-
lismo, ou retoma o caminho do desenvolvimento so- tros Outubros Virão – ocorrido em São Paulo no dia 11
berano, da democracia e do progresso social. de novembro de 2017 –, os autores apresentam as vá-
As eleições se realizarão sob o signo da imprevi- rias facetas do movimento revolucionário destacando
sibilidade. Há forte desalento na sociedade, mas, ao o legado e os percalços deste acontecimento histórico
mesmo tempo, é grande a vontade do povo de retirar que mudou os rumos da humanidade no século 20.
o país da crise e vê-lo novamente prosperar e distri- Os textos destacam ainda as lições que ajudam a im-
buir renda. pulsionar a luta pelo socialismo no século 21.

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Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017

Editorial

2018: O Brasil diante de uma encruzilhada......... 1

4 Capa

14 Reflexões não muito ortodoxas sobre a Revolução


Russa: legados e lições do centenário
Luis Fernandes ............................................................... 4

O Papel da Educação na Revolução Russa


Nereide Saviani............................................................ 14

A ciência como elemento da construção do


socialismo na União Soviética
Climério Silva Neto..................................................... 19

25 As três vertentes da nova luta pelo socialismo


Renato Rabelo............................................................ 25

Um olhar novo sobre a arte soviética


34
Mazé Leite ..................................................................

42 Máximo Gorki, o escritor da revolução


proletária

45 José Carlos Ruy ........................................................ 42

Universalidade e singularidade histórica da


Revolução de Outubro – Parte I

João Quartim de Moraes ......................................... 45

2
Sumário
Documento

Luciana Santos:
52
O centro dos debates é a luta por
novos rumos para o país ...................................... 52

Manuela D’Ávila:
“Se o partido comunista é a honra do
nosso tempo, como disse o Neruda,
que honra enorme para mim ser a
59
candidata dos comunistas”................................... 59

Economia

Financeirização, coalização de interesses e taxa


66
de juros no Brasil
Luiz Fernando de Paula e Miguel Bruno.................... 66

Internacional

A questão nacional e a nova síntese chinesa


72
72
Diego Pautasso ..........................................................

Resenha

CAMINHOS DA LIBERDADE NO JOVEM MARX 78


Juarez Guimarães ....................... 78

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Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017

Reflexões não muito ortodoxas


sobre a Revolução Russa:
legados e lições do centenário
Luis Fernandes*

Vista de uma perspectiva histórica mais ampla, a


Revolução Soviética se destaca por ter sido a primeira
experiência de estruturação continuada de um sistema
alternativo ao capitalismo no mundo
4
Capa

“Um Estado que carece de meios de mudança Rússia. Na maioria dos países, e destacadamente na
carece dos meios para a sua conservação.”. Europa, os partidos comunistas nasceram de cisões
em partidos socialistas já existentes. No caso brasi-
(Edmund Burke, Reflexões sobre a leiro, o partido surgiu da conversão ao socialismo de
Revolução na França) setores do anarcossindicalismo, que — por princí-
pio — não participavam da vida política nacional.

O
Na época, o Partido Comunista do Brasil foi fundado
título e a citação acima evocam a como a Seção Brasileira da Internacional Comunis-
clássica obra do pensador liberal- ta. Do ponto de vista da evolução política do Bra-
-conservador irlandês, Edmundo sil, trata-se de feito histórico porque, pela primeira
Burke, sobre os (des)caminhos da vez, surgia no seio do recémconstituído movimento
Revolução Francesa de 1789, pro- operário no nosso país uma força com atuação polí-
duzida ainda no calor dos seus trá- tica organizada e continuada. Nos espasmos de vi-
gicos desenvolvimentos e das reações de assombro da legal que desfrutou nos seus primeiros anos de
e horror por eles suscitadas na vetusta aristocracia existência, o Partido participou dos seus primeiros
europeia. Em chave mais alinhada com a tradição do pleitos eleitorais em 1925 e organizou o Bloco Ope-
realismo crítico — tanto filosófico, quanto epistemo- rário e Camponês (BOC) que atuou de 1927 a 1930,
lógico e político —, este texto discute os múltiplos elegendo dois vereadores para a Câmara do Rio de
impactos, legados e lições de uma revolução mais Janeiro, então capital da República. Deste início pio-
“jovem” que igualmente assombrou e transformou neiro em uma realidade marcada pelo capitalismo
o mundo e que completa agora o seu centenário: a ainda incipiente, os trabalhadores e os próprios co-
Revolução de Outubro de 1917 na Rússia. munistas brasileiros tiveram, desde então, participa-
Pensado a partir da realidade brasileira, o primei- ção destacada e marcante nas grandes jornadas da
ro legado da Revolução Soviética que quero destacar vida política nacional.
é o fato de ela ter impulsionado a primeira experiên- Vista de uma perspectiva histórica mais ampla,
cia de participação organizada e continuada dos tra- a Revolução Soviética se destaca por ter sido a pri-
balhadores na vida política nacional com a funda- meira experiência de estruturação continuada de
ção, em 1922, do Partido Comunista do Brasil, por um sistema alternativo ao capitalismo no mundo. É
influência direta da experiência revolucionária na isso o que imprimiu singular importância histórico-

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Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017

-mundial a essa revolução centenária. Nos marcos ção natural dos povos por sua autodeterminação. A
da estruturação e posterior derrocada desse sistema, verdade é que, dado o poder das potências coloniais
a Rússia passou da condição de “sócia tardia menor” dominantes, não haveria processo de descolonização
do núcleo central do capitalismo (no formato impe- tão amplo e tão profundo no mundo caso a luta an-
rial) para a de polo articulador de um sistema mun- ti-imperialista não tivesse sido convertida em pilar
dial antagônico (no formato soviético), até refluir das políticas externas da União Soviética e dos de-
para a de potência recalcitrante constrita à semiperi- mais países do antigo campo socialista. A base para
feria do sistema capitalista (no formato atual). essas políticas de Estado foi a teoria do imperialismo
Para além da clivagem mundial-sistêmica apon- desenvolvida por Lênin, que fincou a luta anti-impe-
tada acima, o grande legado da rialista como uma segunda gran-
Revolução Soviética para a huma- de vertente do movimento revo-
nidade foi ter introduzido a ques- Um terceiro legado lucionário mundial e que, posta
tão social na agenda política glo- em prática pelo campo socialista,
bal. A Revolução Francesa legou que gostaria de conduziu ao desmantelamento
ao mundo a bandeira dos direitos destacar é o fato de de quase todos os antigos impé-
humanos e da cidadania política rios coloniais, deslegitimando as
latu sensu. A Revolução Soviética,
a URSS, num primeiro práticas colonialistas no mundo.
por sua vez, introduziu na agenda momento, e o campo Trata-se de uma realização torna-
política mundial, de forma abran- da possível em função do apoio
socialista como um
gente e profunda, a questão social político, diplomático, militar, eco-
(baseada na promoção de amplos todo, posteriormente, nômico e moral dado pela URSS e
direitos sociais e na redução ace- terem impulsionado demais países socialistas às cau-
lerada da desigualdade). Isso não sas anti-imperialistas e anticolo-
apenas por suas realizações dire- forças políticas que nialistas, e que legou ao mundo o
tas, que transformaram as estru- desempenharam formato atual do sistema interna-
turas sociais do antigo Império cional: a de um sistema de abran-
papel absolutamente gência global estruturado sobre
Russo e promoveram o maior e
mais profundo processo de recon- determinante poderes estatal-nacionais sobe-
figuração social e de desconcen- nos processos de ranos, baseado (pelo menos do
tração de riqueza e de renda da ponto de vista ideal-formal) no
história da humanidade. Houve, descolonização que princípio da autodeterminação —
também, a afirmação “indireta” varreram o mundo na muito embora a própria liderança
da questão social pela experiên- soviética tenha se afastado desse
cia soviética, fruto da “ameaça”
segunda metade do princípio para praticar seu pró-
que o mundo socialista represen- século 20 prio hegemonismo, ao proclamar a
tou para as elites do mundo ca- doutrina da “soberania limitada”
pitalista e que tornou possível a no campo socialista para justifi-
estruturação de Estados de Bem-Estar e a generali- car a invasão da Tchecoslováquia por tropas do Pacto
zação de direitos sociais na Europa, bem como a sua de Varsóvia em 1968.
ampliação nos processos de desenvolvimento dos Outro legado fundamental, embora no âmbito de
países capitalistas dependentes. Isso também cons- uma coalizão mais ampla, foi a derrota do nazi-fas-
titui uma realização históricoconcreta de profundo e cismo e seu desmantelamento como força política
duradouro alcance no mundo moderno. organizada no mundo e a sua deslegitimação como
Um terceiro legado que gostaria de destacar é o alternativa de organização econômica, social e polí-
fato de a URSS, num primeiro momento, e o cam- tica. Sem desmerecer o papel da coalizão de forças
po socialista como um todo, posteriormente, terem democráticas mencionada acima, é notório que a
impulsionado forças políticas que desempenharam força determinante na derrota do nazi-fascismo na
papel absolutamente determinante nos processos Segunda Guerra Mundial foi a União Soviética, que
de descolonização que varreram o mundo na segun- perdeu 1/6 de sua população no conflito. Sua atua-
da metade do século 20. Foi uma conquista civili- ção mudou o curso da Guerra e desarticulou essa
zacional ampla e profunda que, infelizmente, nem forma de autoritarismo extremo dos países capitalis-
sempre é devidamente valorizada, em função de tas, outro legado civilizacional para a humanidade.
uma leitura que encara o processo de descolonização Há que se registrar, ainda, o importante impac-
como resultado automático e não conflitivo da op- to da Revolução Soviética sobre o desenvolvimento

6
Capa

A Revolução Soviética
introduziu na agenda
política mundial, de
forma abrangente e
profunda, a questão
social. Na foto,
primeira -dama dos
Estados Unidos, Eleanor
Roosevelt, segura
exemplar em francês da
Declaração Universal
dos Direitos Humanos

científico e tecnológico mundial. Este legado, uma incluindo a própria internet e as principais tecnolo-
vez mais, foi gerado tanto de forma direta quanto gias incorporadas aos smartphones atuais.
indireta. A URSS sustentou ao longo da sua trajetó-
ria substanciais investimentos em pesquisa básica, A Viabilidade do Socialismo
que a mantiveram como uma das principais potên-
cias científicas mundiais até o seu desmantelamen- O registro dos múltiplos impactos e legados da
to em 1991. A dianteira tecnológica soviética na Revolução Soviética feito acima não é movido por
área aeroespacial alcançada no imediato pós-guer- um pendor à autoemulação ou à autocongratulação.
ra — materializada no lançamento do primeiro sa- São realizações históricoconcretas que não podem
télite artificial (o Sputnik) em 1957 e no primeiro ser ignoradas ou abstraídas por qualquer balanço
voo humano ao espaço (o do cosmonauta Gagarin) que se pretenda objetivo e criterioso dessa experiên-
em 1961 — deflagrou, em reação, gigantesco in- cia agora centenária. No entanto, apesar dessas rea-
cremento de investimentos e reconfigurações ins- lizações, a União Soviética foi desmantelada e o an-
titucionais na área de C&T dos países capitalistas tigo bloco socialista se dissolveu. Isso nos coloca um
centrais, que temiam estar perdendo a “corrida” desafio crítico, porque o socialismo nasceu (pelo me-
com os países socialistas nessa seara. Nos Estados nos na chave fornecida por Marx e por Engels) co-
Unidos, o orçamento da National Science Foundation mo perspectiva emancipatória enraizada nas contra-
(NSF, equivalente grosso modo ao nosso CNPq) foi dições intrínsecas ao modo de produção capitalista:
multiplicado por mais de doze entre 1957 e 1968, no uma alternativa histórica real, que não se limitava
que se convencionou chamar de “Era Dourada” da à crítica romântica dos males do capitalismo. Com
Ciência nesse país (1). Em resposta ao pioneirismo a derrota sofrida, o questionamento sobre a viabi-
aeroespacial da União Soviética, o governo dos EUA lidade da construção de uma sociedade alternativa
criou a National Aeronautics and Space Administration ao capitalismo ganhou força, nos marcos do quadro
“Administração Nacional da Aeronáutica e do Espa- mais geral de defensiva estratégica que passou a ca-
ço” (NASA) em 1958, deflagrando a corrida espacial racterizar a atuação das forças de esquerda no mun-
que resultou na primeira viagem humana à Lua. do após a derrocada do campo socialista.
Na área da Defesa, também em 1958, o Presiden- Hoje, o “ônus da prova”, por assim dizer, da
te Eisenhower fundou uma agência focada no de- viabilidade da alternativa socialista ao capitalismo
senvolvimento de projetos de pesquisa avançada (a recai sobre os defensores dessa alternativa. Não
Defense Advanced Research Projects Agency “Agência de basta criticar as mazelas do capitalismo. É preciso
Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa” – DAR- comprovar que a alternativa socialista é viável. E
PA) que acabou sendo responsável pelas principais para tal, é fundamental compreender por que a pri-
inovações na área de Tecnologias das Informação meira experiência histórica que tentou materializar
e da Comunicação (TIC’s) que constituíram a “so- essa alternativa fracassou. Isso exige a atualização
ciedade do conhecimento” hoje vigente no mundo, e o desenvolvimento da teoria marxista, para dar

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conta desse desafio crítico. Se isso não for feito, a mais precisamente o seu conteúdo dialético, podería-
força de nossas convicções também se esmorece e a mos refrasear a sua formulação como “a superação
viabilidade da construção de uma sociedade alter- da propriedade privada.”. É claro que esta é uma sín-
nativa aos padrões dominantes no mundo passa a tese quase que caricatural do que seria o projeto de
ser limitada. emancipação comunista, mas como toda caricatura,
Há uma saída fácil, porém falsa, para lidar com reúne os seus elementos cruciais e determinantes.
esse desafio: simplesmente atribuir a derrota do Tanto a URSS como as demais experiências socialis-
socialismo ao abandono da “pureza doutrinária” tas passaram por processos de coletivização do gros-
da teoria marxista pelos dirigentes das experiên- so de suas forças produtivas e eliminaram a proprie-
cias revolucionárias do século dade privada como base das suas
20. Muitos intelectuais bem-in- economias e sociedades. Cons-
tencionados enveredam por es- A verdade é que o truíram, dessa forma, o embrião
se caminho e ficam procurando de sociedades socialistas entendi-
olhar para trás e precisar a data sistema socialista das como sociedades de transição
exata em que houve a traição que soviético passou para a eliminação das diferenças
redundou no fracasso. Esta me de classe. Eram projetos que rea-
parece, na verdade, uma forma a enfrentar, na lizavam o desenho fundamental
de fugir da questão, baseada em década de 1970, um do que o próprio Marx colocou
um raciocínio lógico-teórico de como rumo fundamental de uma
fundo dogmático. Inicia-se pela
desafio que não lhe sociedade socialista.
afirmação geral do socialismo co- é particular, mas que No entanto, a realização des-
mo negação do capitalismo, como assumiu contornos se programa de emancipação nas
sociedade que visa à sua negação/ condições históricas concreta-
superação. Em seguida, constrói- particularmente mente enfrentadas pela URSS di-
-se um tipo ideal de sociedade acentuados na feria enormemente das condições
socialista como antípoda às ma- previstas no século 19 por Marx
zelas mais criticadas do capitalis-
URSS por conta das e Engels. A perspectiva de supe-
mo. Na sequência, comparam-se particularidades ração do capitalismo construída
as experiências “socialistas” his- do seu modelo de por eles partia da compreensão de
tóricoconcretas com o tipo ideal. que as primeiras experiências so-
Na medida em que aquelas não se desenvolvimento: o cialistas se originariam nos países
adequam ao formato preconizado desafio da inovação capitalistas mais desenvolvidos.
por este modelo ideal, seus diri- Precisamente por serem mais de-
gentes são acusados de abandono senvolvidos, a produção fabril (e
ou traição da teoria marxista. Esta não estaria em o trabalho coletivo-cooperativo a ele associado) es-
causa, porque nunca teria sido aplicada “de verda- taria mais concentrada nesses países e a contradi-
de” (ou porque deixou de ser aplicada a partir de ção entre o caráter privado da propriedade sobre os
um determinado ponto). A pureza doutrinária, as- meios de produção e o caráter social da produção (is-
sim, estaria preservada. Trata-se, na verdade, de um to é, entre o Capital e o Trabalho) estaria mais inten-
raciocínio simplista de consequências letais para a sificada, gerando, portanto, condições mais maduras
própria teoria marxista, que ficaria, assim, congela- para efetuar a transição socialista.
da em uma espécie de “redoma utópica”, e não se Nas condições históricas concretas geradas pelo
desenvolveria a partir da própria sistematização da advento do imperialismo na passagem do século 19
experiência histórica da URSS e dos demais países para o 20, no entanto, a possibilidade primeira de
do antigo bloco socialista. É nessa direção que en- superação do capitalismo surgiu na semiperiferia e
caminho as reflexões críticas sobre a experiência da não no coração do sistema. Essa era a condição do
Revolução Soviética que desenvolvo a seguir. Império Russo, caracterizado por vários autores da
época, inclusive Lênin, como uma espécie de pon-
O Projeto de Emancipação na te entre o Ocidente e o Oriente porque conjugava,
Semiperiferia nas últimas décadas do século 19, um capitalismo
bastante concentrado e de desenvolvimento tardio
Marx dizia que se pudesse resumir o seu projeto nas cidades, com uma massa de população na área
de emancipação em uma única frase, essa frase se- rural onde predominavam relações pré-capitalis-
ria “a abolição da propriedade privada.”. Para refletir tas. Além disso, havia o agravante de que o Impé-

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Capa

rio Russo era institucionalmente débil, pois nunca espalhada por todo o seu território que pudesse ser
chegou a se consolidar como Estado unificado e convertida em indústria de defesa, o que, em última
centralizado, instância, foi o que assegurou – junto, evidentemen-
Esse era o contexto histórico em que se tomou, te, com o heroísmo dos povos soviéticos – a derrota
pela primeira vez no mundo, o poder de forma dura- da máquina de guerra de Hitler na Segunda Guerra
doura para tentar promover a superação do modo de Mundial.
produção capitalista. Havia, portanto, os elementos O desafio que se apresentou em seguida, no en-
do atraso, da semiperiferia, do Estado pouco con- tanto, era o de que, uma vez superado o desafio de
solidado, do contexto geopolítico adverso – o cerco industrialização e da montagem de uma economia
capitalista –, da ameaça permanente de invasão e da medianamente integrada, aquele desenho – com-
guerra civil. Do ponto de vista econômico, a ausência posto pela estatização integral das forças produtivas,
de experiências socialistas em países mais avança- pela direção centralizada e pela planificação deta-
dos na sequência ao triunfo da Revolução Soviética lhada das metas de produção – começara a perder
impôs à recém-constituída URSS o desafio de com- capacidade de manter a dinâmica de desenvolvi-
binar a construção do socialismo com a superação mento e a contínua elevação da produtividade na
acelerada do atraso herdado da condição semiperi- economia soviética. O principal problema era justa-
férica anterior. mente a impossibilidade de sustentar esse modelo
de direção centralizada da economia, via comando
O Dilema do Desenvolvimento e o e mobilização, em uma sociedade cada vez mais he-
Desafio da Inovação terogênea e complexa. Examinando a mesma ques-
tão por outro ângulo, o problema era a inexistência
Historicamente, esse desafio foi enfrentado, de de um mecanismo econômico que, no contexto do
maneira vitoriosa, pela implantação de uma econo- sistema socialista soviético, induzisse à inovação e
mia altamente centralizada, com estatização quase à contínua elevação da produtividade nas empresas.
completa das forças produtivas. Processou-se, ainda, A lógica que ordenava e regia a atividade econômi-
a fusão entre partido e Estado, com a estrutura hie- ca era o cumprimento das metas do Plano central, o
rárquica do partido tendo uma função de mobiliza- que implicava desincentivo sistêmico à assunção dos
ção centralizada da sociedade, para que fosse pos- riscos associados à incorporação de novos produtos e
sível enfrentar os desafios da industrialização, que processos à atividade empresarial.
eram também desafios de sobrevivência do Estado A verdade é que o sistema socialista soviético
soviético. Aliás, se não tivesse havido o esforço ex- passou a enfrentar, na década de 1970, um desafio
tremamente custoso de industrialização acelerada que não lhe é particular, mas que assumiu contornos
dos anos 1930, não haveria uma base econômica particularmente acentuados na URSS por conta das
particularidades do seu
modelo de desenvol-
vimento: o desafio da
inovação. Assim como
ocorreu com os países
capitalistas em desen-
volvimento no século
20, o sistema de Ciên-
cia e Tecnologia sovié-
tico foi estruturado,
em grande medida, de
forma segmentada e
desconectada das em-
presas. As razões para
isto não decorriam da
“escassez de capital”
endógeno para aten-
der, com tecnologia
própria, ao crescimen-
to e à diversificação
A URSS promoveu um esforço concentrado pela industriualização nos anos 1930 dos padrões de consu-

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mo de uma elite que concentrava parcela importante Unidos). O “modelo” socialista soviético teve gran-
da renda nacional, como no caso latino-americano, de êxito na promoção da acelerada industrialização
mas o resultado foi semelhante: baixa propensão das do seu vasto território baseada na assimilação das
empresas para desenvolver ou incorporar métodos, técnicas mais avançadas empregadas nos países ca-
técnicas, equipamentos e produtos inovadores aos pitalistas, mas foi incapaz de desenvolver e dissemi-
seus processos produtivos, dando preferência à as- nar (sobretudo, disseminar) bases tecnológicas para
similação e à reprodução de pacotes tecnológicos já alavancar e estruturar novos ciclos de crescimento
testados. Ou seja, uma base empresarial/industrial da sua economia. Chamo, precisamente, a este im-
com baixa propensão ao desenvolvimento tecnológi- passe — para o qual a direção da URSS não conse-
co e à inovação. guiu gerar respostas estratégicas
A exceção a este quadro era adequadas — de “encruzilhada
o complexo industrial de defesa, A cristalização do da inovação”.
que mantinha estreita colabora- Para além das fantasias utó-
ção entre institutos de pesquisa, pensamento marxista picas do “tipo ideal” socialista,
ministérios centrais, forças ar- em doutrina oficial de trata-se de um crucial desafio es-
madas e empresas para a rápi- tratégico que se apresentou para
da incorporação das tecnologias
Estado na URSS tolheu todas as experiências socialistas
desenvolvidas aos sistemas de a sua natureza dialética histórico-concretas do século 20.
defesa, no quadro de tensiona- e revolucionária, Por isso, penso que devemos va-
mento geopolítico que marcava a lorizar a capacidade de inovação
Guerra Fria e do esforço concen- tornando-o incapaz de e renovação revelada pelas ex-
trado empreendido pela União teorizar, enfrentar e periências chinesa e vietnamita
Soviética para alcançar paridade nesse terreno. Baseados na pró-
estratégica com os Estados Uni- refletir sobre os novos pria experiência da Nova Política
dos. Mesmo aqui, no entanto, a problemas gerados Econômica (NEP) implantada
exploração do caráter dual das na URSS nos ano 1920 — e ope-
pela experiência
tecnologias desenvolvidas — com rando em condições geopolíticas
sua adaptação e disseminação na da construção do bem distintas das que a União
indústria de bens e serviços civis socialismo Soviética enfrentava nos anos
— permaneceu limitada. 1930 —, esses países enfrenta-
O resultado agregado des- ram o desafio com uma reformu-
te conjunto de características sistêmicas era uma lação profunda das suas estratégias de desenvolvi-
combinação entre elevada capacidade científica e mento, que passaram a conjugar variadas formas
tecnológica, de um lado, e baixo grau de inovação de propriedade e de estruturas econômico-sociais,
empresarial, de outro, resultando em dificuldades mantendo elementos de concorrência entre elas e
para atender às crescentes demandas de consumo ampliando as relações de mercado na economia co-
de uma sociedade marcada por baixa concentração mo um todo, mas mantendo o predomínio de for-
de renda (i.e., desigualdade reduzida) e elevada ho- mas sociais e coletivas de propriedade e o controle e
mogeneidade econômico-social (assentada sobre a direção estatais da atividade econômica. O mínimo
universalização de direitos sociais, incluindo o aces- que se pode dizer é que esse desenho alternativo
so à educação e à cultura). Como se sabe, no contex- conseguiu superar um entrave que foi fatal para
to da fixação centralizada de preços, isto resultava a experiência soviética e para o “modelo único de
em incapacidade crônica para abastecer a socieda- socialismo” que a URSS exportou para os demais
de de bens de consumo duráveis na quantidade e integrantes do seu bloco.
qualidade demandada, levando à generalização de Os resultados da reorientação chinesa, em par-
práticas de racionamento na URSS. Em outras pala- ticular, têm sido impressionantes e marcam a pro-
vras, o sistema soviético de planejamento centrali- funda transição atualmente em curso na ordem
zado integral carecia de um mecanismo econômico internacional. Sua participação relativa no Produto
que operasse como equivalente funcional à “anar- Interno Bruto (PIB) mundial medida por Poder de
quia na produção” das economias capitalistas para Paridade de Compra (PPC) passou de 5% em 1980
promover a difusão do progresso técnico com base para 17,1% em 2014, ultrapassando tanto os Es-
no processo de “destruição criativa” de métodos e tados Unidos quanto o peso combinado da União
técnicas estabelecidos (ainda que com forte promo- Europeia (2). Trata-se de trajetória prolongada e
ção e apoio estatal, como vimos no caso dos Estados sustentada de desenvolvimento sem precedentes na

10
Capa

Cartazes de divulgação dos planos quinquenais: instrumento de planificação econômica implantado na União Soviética

história moderna, superando a dos próprios Estados Estado na URSS: a exportação do modelo soviético,
Unidos na passagem do século 19 para o 20. No âm- gerado para responder a condições históricas mui-
bito desta trajetória, a China estruturou um robusto to específicas, como modelo único de socialismo. A
sistema nacional de inovação para acelerar a dis- sua não aceitação foi muitas vezes encarada como
seminação do progresso técnico na sua economia. traição ou como abandono do socialismo. A imposi-
Os resultados alcançados nesta base pela China na ção de um modelo único de socialismo é fruto des-
área de Ciência, Tecnologia e Inovação também são se embotamento da teoria marxista transformada
marcantes. Sua participação na produção científica em doutrina de Estado. Grosso modo, ocorreu com
mundial passou de 1,1% em 1993 para 16,7% em a teoria de Marx um processo análogo ao que aco-
2013 (segunda no mundo, atrás apenas dos Estados metera, anteriormente, a teoria de Hegel. O próprio
Unidos) (3). Os investimentos em P&D como pro- Marx destacava que, no pensamento hegeliano, o
porção do seu PIB passaram de 0,6% em 1995 para elemento dialético era eminentemente revolucioná-
cerca de 2% em 2012 (4). O mais relevante é que es- rio. No entanto, ao ser fechado como sistema filo-
ta expansão teve impacto significativo na promoção sófico e ao ser transformado em doutrina de Estado
do progresso técnico na economia chinesa. A parti- na Prússia, houve um estrangulamento sistêmico do
cipação de produtos de alta tecnologia na pauta de elemento revolucionário de sua filosofia. A cristali-
exportações da China passou de 4,7% em 1992 para zação do pensamento marxista em doutrina oficial
29% em 2008 (5). de Estado na URSS tolheu a sua natureza dialética
Em suma, a China parece estar conseguindo e revolucionária, tornando-o incapaz de teorizar, en-
encontrar os caminhos para enfrentar e superar o frentar e refletir sobre os novos problemas gerados
“desafio da inovação” no seu desenvolvimento. O pela experiência da construção do socialismo, e de
interessante é que um conjunto de medidas e pro- se renovar para garantir a própria continuidade e so-
posições adotadas inicialmente na URSS no perío- brevivência do projeto socialista.
do da NEP, para lidar com as condições de “atraso” Há, portanto, uma combinação de fatores que
que marcavam sua transição para o socialismo, foi determinaram a derrocada da primeira experiência
redesenhado e reinterpretado pela liderança chinesa socialista no mundo, para as quais chamo a aten-
para encontrar os caminhos para atravessar a “en- ção: o pesado legado das condições históricas que
cruzilhada da inovação” no socialismo. marcaram a gênese dessa experiência na Rússia
mesclado a problemas universais que marcam a
Doutrinação e Congelamento da própria concepção original do projeto de emancipa-
Teoria Marxista ção socialista – visto que o “desafio da inovação”,
apontado acima, tem relevância e repercussões que
O ponto acima evoca outro equívoco oriundo da transcendem as condições históricas específicas da
transformação do marxismo em doutrina oficial de Revolução Soviética.

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Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017

As Formas Políticas do Estado com as estruturas do Estado e a própria estrutura


Soviético vertical-hierárquica do partido se sobrepondo aos
mecanismos de controle democrático, previstos na
Um último ponto sobre o qual quero refletir re- constituição dos poderes soviéticos.
mete às formas políticas assumidas pelo Estado So- Parte da explicação para essa evolução nos reme-
viético ao longo da sua evolução. A grande referência te, uma vez mais, para as circunstâncias históricas
histórica adotada pelo próprio Marx para pensar as que marcaram a origem da URSS: a debilidade da
formas político-institucionais que o Estado poderia própria consolidação do Estado no antigo Império
assumir em um processo de transição socialista foi Russo, a rapidez do seu colapso e depois a brevís-
a experiência da Comuna de Pa- sima experiência liberal. Mas há
ris, que durou pouco mais de dois reflexões mais amplas a serem
meses no contexto de uma cida- O que as reflexões extraídas dessa evolução – a sa-
de sitiada por tropas invasoras ber, a concepção altamente fecha-
alemãs. Apesar de efêmera, essa
desenvolvidas ao longo da, não subordinada ao controle
experiência serviu de referência deste texto indicam é popular, dirigista e burocratizada
para as reflexões de Marx sobre a que o Estado assumiu – que nos
que havia caminhos remetem a dilemas e tensões do
institucionalidade de um Estado
de base operário-popular, reto- alternativos viáveis próprio projeto socialista.
madas em seguida por Lênin ao que poderiam ter Se recuperarmos a visão que
escrever O Estado e a Revolução. Marx esboçou na Crítica ao Pro-
As lições extraídas por Marx sido trilhados pelos grama de Gotha, do socialismo
da experiência da Comuna de Pa- dirigentes soviéticos como etapa de transição prolon-
ris apontam para a generalização gada, podemos encaixar melhor
de formas de democracia direta e
para evitar a derrocada a noção de variedade de formas
participativa. Como sabemos, não do seu sistema. A de propriedade no âmbito da
foi exatamente o que se consoli- transição prolongada e o próprio
questão que então se
dou como forma dominante de princípio distribuidor da riqueza
Estado na URSS. Mas ao invés de coloca é: Por que não o no socialismo, que é de cada um
ler isso simplesmente pela cha- fizeram? de acordo com suas necessidades
ve da traição, acho fundamental e cada um de acordo com o seu
examinar a questão sob a cha- trabalho. Quer dizer, a medida é
ve dos dilemas históricos da construção do Estado o trabalho, o que pressupõe, ainda, a predominância
soviético. A verdade é que se tentou, inicialmente, de relações de alienação na sociedade de transição,
construir o poder soviético nos moldes destacados já que as pessoas continuam a ser motivadas para o
originalmente por Marx no seu estudo da experiên- trabalho não tanto pela sua contribuição criativa ao
cia da Comuna de Paris. bem-estar da humanidade e sim pela ampliação do
No contexto histórico concreto enfrentado pe- acesso a fundos de consumo. E isso implica o predo-
la Revolução Soviética – em particular guerra civil, mínio de visões particularistas durante um prolon-
cerco, invasão e ameaças geopolíticas continuadas gado período da transição.
–, aqueles mecanismos de democracia direta e par- Portanto, ao generalizar os mecanismos de de-
ticipativa se mostraram incapazes de promover a mocracia direta e participativa (como Marx pensava
mobilização de forças necessária para o triunfo na ser possível com base em sua leitura da experiência
guerra civil e a derrota das tropas invasoras. Mas, da Comuna de Paris), pode-se gerar, na verdade, a
os mecanismos de democracia direta e participativa multiplicação de corporativismos particularistas e a
no poder soviético nunca chegaram a ser dissolvidos. paralisia do projeto de desenvolvimento mais am-
Todos aqueles mecanismos – mandato imperativo, plo da sociedade socialista. Acredito que aqui há um
revogação de mandatos etc. – foram preservados na problema que repõe o imperativo da centralidade da
experiência soviética. Só que, na mobilização con- democracia representativa no socialismo. Ao longo
creta da luta pela sobrevivência do Estado soviético, da transição, creio que será necessário preservar me-
a realidade da luta política levou crescentemente o canismos de democracia representativa como alicer-
partido a assumir a função de mobilização centrali- ces centrais do Estado para construir o interesse co-
zada da luta de resistência. E o que se observou foi, letivo democraticamente. Porque a alternativa a isso,
apesar da preservação de formas comunais no po- historicamente, foi o “partido de vanguarda”, por
der soviético, a crescente fusão do partido bolchevique ser portador da “teoria mais avançada”, ser procla-

12
Capa

mado institucionalmente o dirigente da sociedade e diam a circunstâncias históricas particulares). Os


do Estado. Mas se é assim, onde ficam os controles novos e monumentais desafios do desenvolvimento
democráticos? Até que ponto a estrutura hierárquica do socialismo eram vistos (e respondidos) apenas
do partido não se sobrepõe aos controles democrá- parcial e topicamente. O “modelo” foi incapaz de se
ticos na transição socialista? Até que ponto a forma reinventar, a não ser pelo caminho da autonegação
fusionada do Partido-Estado não se autonomiza e se materializada na patética e humilhante carta de
impõe sobre a sociedade que está destinada a dirigir? demissão do seu último dirigente – Mikhail Gorba-
Até que ponto a teoria que lhe confere esse papel de chev — no Natal de 1991.
vanguarda não se transforma em doutrina raciona- Retornando à reflexão burkeana que abre este
lizadora das estruturas de poder existentes? Até que texto, ao não incorporar meios e mecanismos de mu-
ponto a incapacidade do cidadão comum de influir dança e reconfiguração sistêmica, o poder soviético
nos rumos de desenvolvimento do país não se trans- bloqueou sua própria continuidade e sobrevivência.
forma em crescente apatia, cinismo e questionamen- Conceber esses meios e mecanismos a partir de uma
to dos dirigentes? Até que ponto essa desconfiança ampla e profunda (re)avaliação crítica dos rumos to-
não lança os germes de uma crise de legitimação mados pela Revolução Russa — mas que, ao mesmo
do Estado, apesar de toda a retórica revolucionária tempo, registra e celebra suas gigantescas realiza-
deste (sobretudo quando o desempenho do sistema ções — é imperativo para os que buscam resgatar e
socialista vigente deixa de corroborar a sua alegada reafirmar a viabilidade da construção de alternati-
“superioridade econômica” em relação aos países ca- vas sistêmicas ao capitalismo no século 21. Para tal,
pitalistas)? de nada vale cair em tentação dogmática de sentido
Acredito serem estes problemas de fundo que nos oposto: refugiarmo-nos na exegese escolástica dos
remetem à necessidade de conceber e conformar o textos dos fundadores do socialismo moderno para
Estado socialista, com sua base social operáriopo- formular críticas idealistas e românticas aos “des-
pular, como um Estado Democrático de Direito que caminhos” da Revolução Soviética, desconhecendo
promova a cidadania política e os direitos sociais, e mais de um século de lutas e realizações inspiradas
simultaneamente proteja as liberdades civis e os di- por esses mesmos pensadores e os novos desafios
reitos individuais. Trata-se de uma concepção que se teóricos e estratégicos suscitados por essa experiên-
adequa melhor à compreensão estratégica do socia- cia histórica.
lismo como uma prolongada transição histórica, no
âmbito da qual convivem múltiplas formas de pro- *Luis Fernandes é professor do Instituto de
priedade e estruturas econômico-sociais. Relações Internacionais (IRI) da PUC-Rio e
professor da UFRJ
Crítica da Razão Dogmática
Este texto foi publicado
O que as reflexões desenvolvidas ao longo des- originalmente no livro 1917:
te texto indicam é que havia caminhos alternati- o ano que abalou o mundo,
vos viáveis que poderiam ter sido trilhados pelos uma publicação conjunta do
dirigentes soviéticos para evitar a derrocada do seu Sesc-SP e editora Boitempo,
sistema. A questão que então se coloca é: Por que aos quais agradecemos pela
não o fizeram? Esta é uma temática complexa e autorização de republicação
multifacetada, que deve ser examinada por distin- do texto
tos variados ângulos. O fio condutor das reflexões
aqui desenvolvidas aponta que um problema críti-
co: foi o próprio embotamento da natureza dialéti- Notas
ca e aberta do pensamento marxista por conta de (1) Dados extraídos do texto The National Science Foundation: a
este ter sido transformado em “doutrina oficial de Brief History, de 15 de julho de 1994, localizado no sítio oficial da
Estado” na URSS. O fechamento sistêmico desse Fundação na internet: <http://www.nsf.gov>.
(2) Dados compilados pelo World Economic Outlook Database,
pensamento acabou por cristalizar, na liderança
April 2016, disponíveis no sítio do FMI na internet: <http://www.
soviética, uma concepção dogmática que concebia imf.org>.
o desenvolvimento da sua experiência socialista (3) Baseado em dados compilados pelo Thomson Reuter’s National
como uma evolução linear e continuada de meca- Indicators.
nismos e instituições (tanto políticas, quanto eco- (4) Dados extraídos do Unesco Institute of Statistics.
(5) PING, Ly. China. In: SCERRI, M.; LASTRES, H. The Role of State.
nômicas) gestados no período inicial da construção
Nova Déli: Routledge, 2013. p. 205.
do socialismo na URSS (que, como vimos, respon-

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Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017

O Papel da Educação na
Revolução Russa (1)
Nereide Saviani*

Esforços para forjar o desenvolvimento da base material


da nova sociedade e a elevação do nível de consciência
do proletariado marcaram a atuação do poder
proletário, sob o comando de Lênin

Escola primária de Moscou, 1931

14
Capa

M
arco histórico do século 20, a Re- Desafios da Revolução
volução Russa de 1917 foi uma
rica tentativa de construção so- Para Lênin, a Revolução não se encerra com o ato
cialista. Suas conquistas, seus da tomada do poder pelos bolcheviques. Ao contrá-
êxitos e fracassos merecem aná- rio, é aí que ela começa. Exigia-se o restabelecimento
lise rigorosa, não como modelo a das forças econômicas do país, assentadas em nova
ser/não ser seguido, mas como referência para a dis- base. A instrução seria primordial para a formação
cussão teórica, política e ideológica que tenha por de trabalhadores capazes de entender e operar em
perspectiva a supera- bases técnicas moder-
ção do capitalismo. De nas. Porém, não uma
igual modo, cabe estu- instrução reduzida ao
dar as concepções que ensino profissional, até
serviram de base aos então restrito ao ades-
projetos desenvolvidos tramento, na lógica ca-
nos diversos domínios pitalista.
da edificação da socie- Para tanto, seria
dade, sob o novo regi- necessário: superar os
me. altos índices de anal-
Este artigo trata, fabetismo, a escassez
principalmente, da e a precariedade das
compreensão sobre o escolas; transformar a
papel da Educação na formação e as condi-
Revolução Russa, na ções de trabalho dos
fase inicial, da toma- professores; promover
da do poder pelos bol- o acesso das mulheres
cheviques até meados Lênin insistia que à educação.
dos anos 1920, quando também o ensino não se Foi preciso, ainda, lidar com
foram elaborados os Programas pessoas e organizações que não
desliga da política.
Oficiais da URSS. reconheceram o Poder Soviético:
Nos programas parte do exército, organizações
A Concepção de escolares os objetivos de operários, associações do ma-
Educação gistério, que se mantinham favo-
educacionais, definidos ráveis ao capitalismo; adversários
As raízes da concepção se en- pelo Poder Soviético, do regime, mesmo os que se auto-
contram em Marx e Engels, na denominavam socialistas.
crítica à educação burguesa e na
eram explícitos: O enfrentamento a esses desa-
discussão sobre o papel do Estado, travar a luta contra a fios exigiu do poder soviético vá-
o princípio da união entre escola burguesia; contribuir rias medidas, destacadas a seguir.
e trabalho, a educação integral, a
escola única do trabalho. para a construção do 1. Eliminar o
Lênin denunciou a precária socialismo Analfabetismo
situação da educação dos tra-
balhadores na Rússia, o que lhe Lênin via na Educação um
permitiu o exame dos desafios elemento-chave para alavancar
a enfrentar e medidas a tomar, uma vez realizada as necessárias transformações na base material e na
a Revolução. Vários temas educacionais aparecem superestrutura da sociedade. Assim é que colocou o
com muita frequência em seus discursos e artigos acento na alfabetização, por ele valorizada tanto
(2), dada sua obstinada preocupação com a forma- quanto a eletrificação. A sociedade precisava sair
ção do homem (ser humano) novo, numa sociedade da obscuridade física, ambiental e, também, da obs-
de novo tipo. curidade cultural. Não se poria em prática a eletrifi-
Sua contribuição se sobressai na relação dialética cação com a existência de analfabetos. A alfabetiza-
entre concepção e ação concreta, como líder da Re- ção, para efetivar-se, precisava da eletrificação.
volução, dirigente do Estado Soviético e do Partido Tais polos foram conjuntamente desencadeados:
Bolchevique. cada central elétrica seria, também, base de instru-

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Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017

ção. O plano de eletrificação seria também o


plano das brigadas de alfabetização. Mas, além
de saberem ler, os trabalhadores deveriam
ser “cultos, conscientes, instruídos” – ca-
pazes de trabalhar e valorizar o trabalho como
prática social. (LENINE, 1977, p. 37).
Principais medidas do novo regime:
construir escolas; recrutar e formar pro-
fessores; organizar bibliotecas mais acessí-
veis ao povo; associar a instrução pública
à educação extraescolar; relacionar a or-
ganização do ensino com a organização do
trabalho; reformar o ensino; promover a
organização do poder local (3).

2. Organizar a Instrução
Pública

Constituiu-se o Comissariado do Povo para a Instru- portivas); higiene (orientação para a saúde); estética:
ção Pública e suas seções: a) Escolar; b) Científica; c) (desenho, escultura, pintura, música instrumental,
Artística; e d) Científico-Pedagógica. canto). 3) Educação Politécnica: relação entre o estudo
Ampliou-se o número de escolas elementares e e o trabalho, como prática social: domínio das bases da
secundárias, foram criadas instituições pré-escola- indústria moderna, em seu desenvolvimento histórico;
res (os jardins de infância) e escolas para jovens e uma base sólida de conhecimentos gerais, associada à for-
adultos. mação profissional, que não se confunde com a mera
Ocorreram avanços também no nível superior, instrução para ocupações específicas (4).
antes restrito às elites. Criaram-se universidades
e instituições científicas, ampliou-se o número de 4. Instituir a Educação Extraescolar
pesquisadores. Sublinha-se que, nos colégios, uni-
versidades e instituições científicas, as mulheres Lênin insistia que o ensino não se desliga da polí-
atingiam cerca de 1/3 dos estudantes, professores e tica. Nos programas escolares os objetivos educacio-
pesquisadores. nais, definidos pelo Poder Soviético, eram explícitos:
travar a luta contra a burguesia; contribuir para a
3. Edificar a Escola Única do Trabalho construção do socialismo.
Principal tarefa: instruir as massas trabalhadoras
Marx e Engels defendiam a responsabilidade do sobre o que há de mais avançado na produção hu-
Estado em relação à educação – na construção, manu- mana, ajudando-as a superar os problemas herdados
tenção e desenvolvimento das escolas –, mas sob con- do capitalismo e a construir a nova sociedade. Isso
trole e fiscalização dos trabalhadores, organizados. não é outra coisa senão o vínculo da Educação com a
Nessa perspectiva, o poder proletário dedicou- política revolucionária do proletariado. Desafio: ligar
-se a construir a escola única do trabalho, com a indissoluvelmente cada passo da atividade da escola
seguinte definição: Escola Única – por seu caráter à luta de todos os trabalhadores contra a explora-
unitário, não de uniformidade, mas de unidade na ção. Contradição principal presente na concepção de
diversidade. Não várias escolas, instituições inde- Educação almejada pelo Poder Soviético: lutar con-
pendentes e isoladas, mas uma escola, articulada em tra a burguesia, sem destruir o seu legado. Ou seja,
seus vários níveis, graus, modalidades, instâncias edificar o socialismo com as forças humanas e os
de decisão e de realização. Do trabalho, como ação meios materiais herdados das sociedades anteriores.
humana, mediada por técnicas e instrumentos cada Todavia, nas condições de imenso atraso da maio-
vez mais desenvolvidos; ação coletiva, consciente, ria da população em relação a aspectos mínimos de
disciplinada, organizada, com valores de cooperação. escolaridade, quem detinha os conhecimentos e as
Educação integral: 1) Educação Intelectual: instru- técnicas eram as pessoas formadas nos padrões da
ção científica – aquisição dos conhecimentos (estu- velha escola, privilégio das classes exploradoras. Im-
do metódico da cultura humana). 2) Educação física: possível abrir mão de docentes e especialistas oriun-
formação corporal (ginástica, dança e atividades des- dos dessa formação. Alguns, até simpáticos às novas

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Capa

propostas. Outros, opositores fer-


renhos. Eis aí a política na escola.
Sem garantia de que os princí-
pios da nova concepção fossem
os vencedores. Mas com a opor-
tunidade de apropriação daquilo
que, sempre, fora monopolizado,
numa escola injusta na difusão
do conhecimento (aos burgue-
ses, conhecimento científico; aos
proletários, adestramento). Não
somente assimilação dos conhe-
cimentos, mas sua apropriação,
com espírito crítico – tarefa di-
ficilmente cumprida pela escola,
naquelas condições.
Para difundir às massas a no-
va concepção de educação e de Um dos grandes desafios da revolução foi promover a emancipação das mulheres
sociedade, criou-se a Educação através da educação
Extraescolar – que consistia em
ações das organizações proletá- movendo-se o desenvolvimento
rias: os Sindicatos (de docentes
Avanços se múltiplo (físico, intelectual, emo-
e de outras categorias), a União conseguiram no cional, cultural, ético, estético, téc-
de Mulheres, as organizações in- nico, político) de crianças e jovens
âmbito da propaganda
fantis (Pioneiros) e juvenis (Kon- de ambos os sexos.
sommol). Sempre no espírito do – repercutindo na Grande desafio da revolução: a
coletivismo. Impulsionar a luta mudança de discurso emancipação das mulheres. A
(econômica, política e teórico-i- educação teria de enfrentá-lo por
deológica) das várias categorias (ideias e propostas meio de ações voltadas não so-
seria tarefa prioritária dos sindi- para se romper mente às meninas e moças, mas
catos, articulados entre si e com igualmente aos meninos e rapazes,
as demais organizações.
com a situação de estendendo-se também aos adul-
subalternidade da tos, homens e mulheres – tendo
Colocar a Educação a mulher). Mas, quando por objetivos: a) exercer controle
serviço da Emancipação social sistemático para superar
confrontados com sobrevivências do passado; b) li-
Na perspectiva marxista de a vida cotidiana, quidar o analfabetismo entre as
educação integral, a educação mulheres; c) combinar educação
como formação humana, o objeti-
jovens e adultos social com educação familiar; d)
vo maior é a emancipação da hu- (inclusive mulheres) garantir às mulheres o direito ao
manidade – somente possível na estudo; e) enfrentar de modo novo
eram flagrados com
sociedade sem classes, mas que os problemas milenares – concei-
deve ser forjada no socialismo, argumentos e atitudes tos de matrimônio, maternidade e
como longo período de transição mais condizentes com família; papel e tarefas da mulher;
da forma mais exacerbada de direitos e saúde da mulher; sua
exploração (o capitalismo) para valores machistas... condição na sociedade.
um regime de tipo superior, sem Avanços se conseguiram no
exploradores e explorados (o comunismo). âmbito da propaganda – repercutindo na mudan-
Constante preocupação com a educação revolucio- ça de discurso (ideias e propostas para se romper
nária dos comunistas, a formação do homem novo e com a situação de subalternidade da mulher). Mas,
da mulher nova consiste na luta pela elevação da so- quando confrontados com a vida cotidiana, jovens
ciedade humana à maior altura, desembaraçando-se e adultos (inclusive mulheres) eram flagrados com
da exploração do trabalho. A instrução pública e a argumentos e atitudes mais condizentes com valores
educação extraescolar devem servir a essa luta, pro- machistas...

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Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017

Corroborava-se, assim, a formulação do socialista


NOTAS
utópico Fourier, destacada por Engels (s/d, p. 309),
na crítica das relações entre os sexos e da posição (1) Este artigo consiste em versão resumida de O Legado Educacio-
da mulher na sociedade: “o grau de emancipação da nal da Revolução Russa, capítulo do livro 100 anos da Revolução
mulher numa sociedade é o barômetro natural pelo Russa: legados e lições, organizado por Adalberto Monteiro e Os-
valdo Bertolino e publicado pela Editora Anita Garibaldi, em parce-
qual se mede a emancipação geral.”.
ria com a Fundação Maurício Grabois. São Paulo, 2017, p. 81-104.
(2) O trabalho de “garimpagem” nos 55 volumes das suas Obras
O Legado Completas de Lênin nos é poupado pela consulta a algumas cole-
tâneas (LENINE, 1977; LÊNIN, 1981).
Nossa hipótese é de que o desenvolvimento da (3) Importante medida foi a multiplicação das bibliotecas e livra-
rias, presentes nas cidades e nas áreas rurais, em fábricas, usinas,
concepção de escola única do trabalho e os esforços
fazendas, sindicatos, clubes e quaisquer organizações, chegando a
empreendidos para sua edificação constituem o prin- altíssimos índices de frequência às salas de leitura, empréstimos
cipal legado educacional da Revolução Russa de 1917. de títulos das bibliotecas circulantes e aquisições de obras nas
Para a União Soviética, com certeza. E, por seu livrarias. Além de jornais, distribuídos diariamente aos trabalha-
exemplo, para os demais países que viveram (e vi- dores.
(4) Os programas escolares incluem o conhecimento dos inúmeros
vem) a experiência de construção do socialismo, com
tipos de indústria: condições de seu desenvolvimento; matérias-
todos os problemas peculiares a períodos de transi- -primas e sua produção/aquisição; relação com a natureza; rela-
ção de um regime centrado no capital para uma so- ções técnicas e sociais de produção; características dos métodos
ciedade centrada no trabalho. Neles, a educação tem de produção e perspectivas de seu aprimoramento; contribuições
merecido lugar de destaque, jamais encontrável em da ciência e da tecnologia; o desenvolvimento humano (condições
de trabalho, segurança, seguridade, remuneração, jornada, saúde
países capitalistas.
dos trabalhadores e da população em geral); trabalho infantil e
Nesse legado, destacam-se: a erradicação do trabalho da mulher; relações internacionais de produção; circula-
analfabetismo; a elevação do nível de conhecimento ção e repartição dos bens; profissões/tarefas envolvidas na produ-
das massas; a formação de cientistas e profissionais ção, condições de desempenho e necessidades formativas; orga-
com alta capacidade tecnológica; o alto desenvolvi- nização do trabalho nas fábricas e sua relação com a organização
do trabalho em geral; história e desenvolvimento atual do movi-
mento das forças produtivas.
mento operário e sindical (na URSS e nos países capitalistas), entre
Para além da URSS (e de outros países socialis- outros fatores. (KRUPSKAYA, s/d; LENINE, 1977: LÊNIN, 1981; LU-
tas), o legado está nos ensinamentos para a luta do NATCHARSKI, 1988; PROGRAMAS OFICIAIS, 1935 – vários trechos)
proletariado em todos os países, ontem e hoje: con-
tribuições a outros autores para se pensar e repensar
a Educação ainda nos marcos do capitalismo.
A defesa da Escola Unitária e da Politecnia tem REFERÊNCIAS
alimentado a luta pela educação pública, gratuita,
ENGELS, F. Do Socialismo Utópico ao Socialismo
universal, laica e de qualidade nos movimentos e
Científico. Em: Obras Escolhidas de Marx e Engels. São
fóruns de educadores, estudantes e trabalhadores Paulo, Alfa-Ômega, vol. 2.
de várias categorias, em âmbito internacional e em KRUPSKAIA, N. Acerca de la Educacion Comunista –
diversos países. No Brasil, uma importante expres- Articulos y Discursos. Traducido del ruso por V. Sanchez
são desse legado é a Pedagogia Histórico-Crítica, cujo Esteban. Moscou: Ediciones en Lenguas Extranjeras, s/d.
LENINE, V. I. Sobre a Educação. Lisboa: Seara Nova, 1977.
principal elaborador é o filósofo e educador Derme-
[2 vols.]
val Saviani (2003). LÊNIN, V. I. La Instrucción Pública. Moscou: Editorial
Problemas relacionados à formação integral das Progreso, 1981.
jovens gerações, ao trabalho como princípio educa- LUNATCHARSKI, A. Sobre a Instrução e a Educação.
tivo, à inexorável relação entre educação e política Artigos e Discursos. Tradução de Filipe Guerra. Moscou:
Edições Progresso, 1988.
são frequentemente (re)colocados a cada reforma
MARX, K.; ENGELS, F. Crítica da Educação e do Ensino.
educacional, como assistimos, hoje, no Brasil, no Introdução e notas de Roger Dangeville. Lisboa: Moraes
enfrentamento às propostas e medidas de cunho Editores, 1978.
neoliberal. PROGRAMAS OFICIAIS. A Educação na República dos
São “clássicos” problemas educacionais, que per- Sovietes. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935.
SAVIANI, D. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras
manecem enquanto não são criadas as condições,
aproximações. 8ª ed. revista e ampliada. Campinas (SP):
objetivas e subjetivas, para sua solução. Autores Associados, 2003.
SAVIANI, N. O legado educacional da Revolução Russa.
*Nereide Saviani é doutora em História e Filosofia In: BERTOLINO, O.; MONTEIRO, A. (orgs.). 100 anos da
da Educação pela PUC-SP e diretora de Formação Revolução Russa: legados e lições. São Paulo: Anita
Garibaldi/ Fundação Maurício Grabois, 2017, p. 81-104.
da Fundação Maurício Grabois.

18
Capa

A ciência como elemento da


construção do socialismo na
União Soviética
Climério Silva Neto*

Em apresentação no seminário Outros


Outubros Virão, o professor Climério Silva
Neto aborda os fatores que permitiram à
União Soviética, a despeito de todos os
obstáculos, sair da posição de uma nação
científica e tecnologicamente atrasada para
a de potência científica que se tornou em
meados do século 20
19
Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017

O s grandes feitos da ciência soviéti-


ca, como o Sputnik, os primeiros
animais e os primeiros humanos
a visitarem o espaço, tornaram-se
marcos da história da huma-
nidade. Por um lado, é fato inquestionável
que, na década de 1950, a União Sovié-
tica havia se consolidado como uma
sequente valorização da ciência perante toda a socie-
dade. Em meados de 1930, a União Soviética investia
aproximadamente 0,8% de seu Produto Interno Bruto
(PIB) em ciência, em comparação com 0,1% da Grã-
-Bretanha. A ciência era apresentada então
como parte essencial da revolução, como
necessária para se chegar ao socialismo
e posteriormente ao comunismo.
potência científica mundial, assu- Vejamos como esses dois fato-
mindo a liderança em muitas áreas res influenciaram na formação da
da ciência, o que contribuiu para comunidade científica soviética
fazer dela uma referência impor- a partir da trajetória de jovens
tante nas lutas anticoloniais. Por cientistas que se tornaram líde-
outro, qualquer pessoa que tenha res da ciência soviética. Um caso
o mínimo de interesse em história bem interessante é o do físico Lev
da ciência deve ter lido ou ouvido Davidovich Landau, um dos cien-
bastante sobre perseguições polí- tistas mais famosos da história
ticas sofridas por cientistas sovié- da União Soviética. Nascido em
ticos renomados ou sobre os peri- 1908 em Baku, Azerbaijão, Lan-
gos da intervenção do Estado na dau era jovem demais em 1917
ciência ilustrados pelo banimento para fazer parte da Revolução de
da genética da URSS como uma Outubro, fato que ele lamentava
ciência burguesa. profundamente em sua juven-
Como conciliar esses dois as- Ainda como estudantes tude. Entretanto, Landau teve
pectos da história da ciência so- a oportunidade de participar de
viética? O que permitiu à União
de graduação, uma outra revolução: a quântica,
Soviética, a despeito de todos os Landau e mais três que resultaria na criação da me-
obstáculos, sair da posição de uma companheiros, cânica quântica, uma das teorias
nação científica e tecnologica- mais revolucionárias da física
mente atrasada para a de potência conhecidos como moderna.
científica que se tornou em mea- a banda de jazz, Ainda como estudantes de
dos do século XX? Estas são as graduação, Landau e mais três
questões que serão tratadas aqui.
começaram a estudar companheiros, conhecidos co-
mecânica quântica, mo a banda de jazz, começaram
## em uma época em a estudar mecânica quântica, em
uma época em que seus profes-
Primeiramente, a coisa mais que seus professores sores – que eles viam como espe-
importante foi que, desde o prin- – que eles viam cialistas burgueses e retrógrados
cípio, os Bolcheviques, Lênin em – ainda tinham pouca familiari-
especial, compreendiam que ciên- como especialistas dade com aquela teoria. Em pou-
cia e tecnologia eram essenciais burgueses e co tempo eles não só dominaram
para promover a modernização o arcabouço teórico da mecâni-
necessária para construir o socia-
retrógrados – ainda ca quântica, como também co-
lismo na União Soviética. Isso foi tinham pouca meçaram a publicar artigos em
o que permitiu a primeira aliança familiaridade com revistas científicas alemãs sem
entre bolcheviques e os cientistas autorização dos catedráticos da
formados no Império Russo, que aquela teoria universidade, ignorando regras
em sua maioria se opunham ao que existiam na época.
novo regime. Aquela percepção Landau e seus companheiros
da importância da ciência e tecnologia para alcançar viam na revolução quântica o análogo da revolução
o socialismo se traduziu tanto no apoio direto aos bolchevique e mergulharam de cabeça na construção
cientistas e suas instituições quanto em investimen- dessa nova teoria. Em poucos anos se consagraram
to na formação científica como uma das habilidades como pioneiros da revolução quântica e adquiriram
essenciais para o homem novo soviético, com a con- reputação internacional.

20
Capa

Físicos estrangei- Por sorte, 1938 já


ros que conviveram era o final do terror
com ele o descreveram stalinista e Landau
como um “comunista foi mantido vivo na
fervoroso”, extrema- prisão. Graças à inter-
mente orgulhoso de ferência de Pyotr Ka-
suas raízes revolucio- pitsa, físico que havia
nárias, que se consi- estabelecido uma li-
derava à esquerda do nha de comunicação
Partido Comunista da direta com Stalin,
URSS. Em particular, ele foi solto após um
Landau exaltava “as ano de prisão, para
oportunidades sem trabalhar na explica-
precedentes para o ção da superfluidez
desenvolvimento da do Hélio líquido – um
física em nosso país, Por exemplo, Nikolai problema de física
providas pelo Partido teórica extremamen-
e pelo governo.”. Basov e Zhores te importante para a
O entusiasmo com o qual ele Alferov, ganhadores indústria de baixas temperaturas.
se dedicou à construção da ciên- Pela complexidade do desafio,
do prêmio Nobel por
cia soviética era parte desse fer- de acordo com Kapitsa, Landau
vor pelo comunismo. Aproveitan- seus trabalhos com era um dentre um punhado de
do o período de forte crescimento lasers, relembram pessoas no mundo capazes de
institucional da ciência soviética, resolvê-lo. Em poucos meses ele
no começo da década de 1930, sua fascinação com conseguiu desenvolver a teoria
com seus vinte e pouco anos de o poder da ciência que tornou-se a espinha dorsal de
idade, Landau tornou-se chefe do uma área da física hoje conhecida
departamento de física teórica do
e da tecnologia como física da matéria condensa-
Instituto Físico-técnico Ucrania- para transformar a da – o que lhe rendeu um prêmio
no e em pouco tempo o transfor- sociedade. Segundo Nobel. Mais tarde, Landau deu
mou em um centro de referência também contribuições importan-
internacional em física teórica. O Basov, quando tes para o projeto da bomba atô-
departamento ficou famoso mun- ingressou na carreira, mica soviética e permaneceu en-
dialmente pelo seu grupo de jo- volvido com pesquisas militares
vens teóricos dispostos a encarar seu principal até a morte de Stalin.
os problemas mais complexos da pensamento era Como a maioria dos cientistas
física. de sua geração, Landau abraçou
“dominar a física
Entretanto, no final daquela o projeto de construção do socia-
década, Landau e alguns amigos para desenvolver a lismo e se dedicou com afinco a
mais próximos começaram a de- economia nacional” construir uma nova sociedade.
monstrar publicamente insatisfa- Podemos ver naquela geração que
ção com a excessiva militarização o projeto de formação do novo ho-
do Instituto – que já se preparava para a Segunda mem soviético já rendia alguns frutos. Entretanto, foi
Guerra – e com os expurgos de Stalin. Em 1938 ele justamente a crença em valores comunistas que levou
foi preso com um panfleto que acusava Stalin e seu Landau à crítica do partido. Sua dissidência com re-
círculo de terem traído os ideais da Revolução de lação à linha do partido surgiu da dissonância entre
Outubro para se manterem no poder. O panfleto era os valores que ele tinha aprendido a acreditar durante
assinado por uma organização fictícia chamada Par- sua formação escolar e a sua percepção da realidade. A
tido dos Trabalhadores Antifascistas. Em sua confis- história de Landau corrobora o argumento de alguns
são, escrita no quartel general da KGB, ele escreveu historiadores de que os dissidentes mais enfáticos
que em 1937 chegou à conclusão de que o partido eram os que se consideravam mais fiéis aos valores
havia degenerado e que o governo soviético não agia comunistas. Eles passaram a fazer oposição ao regime
mais pelos interesses dos trabalhadores, mas pelo pela inabilidade do mesmo em atender às expectativas
interesse de uma elite pequena. que lhes tinham implantado durante sua formação.

21
Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017

Landau foi provavel-


mente o primeiro dissi-
dente entre físicos edu-
cados integralmente na
União Soviética. Até o
final da década de 1950,
oposição ao regime entre
cientistas de sua geração
era raro. Apenas naquele
período os primeiros dis-
sidentes começaram a se
pronunciar, por motivos
semelhantes aos de Lan-
dau. Entretanto, a nor-
ma era os cientistas que
abraçaram o projeto de
construção do socialis-
mo permanecerem enga-
jados até o final de suas A partir de meados da década de 1930, o carro-chefe da ciência soviética, o que recebeu mais
carreiras. atenção e fundos governamentais, foi o desenvolvimento de tecnologias bélicas

*** ***

Podemos ver nas gerações seguintes que os efei- Entretanto, a partir de meados da década de
tos do projeto educacional soviético se fazem ainda 1930, o carro-chefe da ciência soviética, o que rece-
mais pronunciados. Muito jovens foram atraídos pa- beu mais atenção e fundos governamentais, não foi
ra a ciência pela imagem excepcional que a socieda- a construção do comunismo, mas o desenvolvimen-
de soviética tinha da ciência e da tecnologia como to de tecnologias bélicas. A ascensão do fascismo e
uma ferramenta de transformação. Na trajetória dos o prospecto de uma guerra iminente na Europa fize-
físicos que estudei em minha tese de doutorado fica ram com que cada vez mais recursos e pesquisas fos-
claro como aquela imagem contribuiu para a decisão sem direcionados para e mobilização em preparação
deles de seguir uma carreira científica e alimentou para a Segunda Guerra Mundial. Durante a guerra,
suas escolhas acadêmicas. pesquisas sem relação com os esforços praticamente
Por exemplo, Nikolai Basov e Zhores Alferov, ga- estagnaram.
nhadores do prêmio Nobel por seus trabalhos com Após a guerra as instituições científicas gradual-
lasers, relembram sua fascinação com o poder da mente retomaram suas pesquisas, mas no contex-
ciência e da tecnologia para transformar a sociedade. to da guerra fria pesquisas com possíveis aplicações
Segundo Basov, quando ingressou na carreira, seu militares permaneceriam prioritárias até o fim da
principal pensamento era “dominar a física para de- União Soviética. De fato, mesmo os feitos conside-
senvolver a economia nacional.”. rados civis da ciência soviética, como o lançamento
Basov, Alferov e muitos outros cientistas de sua do Sputnik, foram na verdade da indústria militar.
geração, nascidos na primeira década após a con- O programa espacial soviético foi um efeito colateral
solidação da Revolução de Outubro, se dedicaram da corrida armamentista, em especial do desenvolvi-
de corpo e alma à construção do comunismo. Para mento de mísseis balísticos intercontinentais (MBI).
eles, a ciência e a tecnologia teriam o papel funda- O Sputnik, que deu partida à corrida espacial,
mental de criar as bases materiais que tornariam mudou os rumos do século XX. Entretanto, inicial-
possível alcançar o comunismo. Até hoje, aos 87 mente não havia planos oficiais de lançar um sa-
anos de idade, Alferov continua fiel aos ideais do télite espacial. O lançamento foi na verdade uma
comunismo. Atualmente ele é um dos principais concessão feita por Nikita Kruschev a um grupo de
nomes no Partido Comunista da Rússia e vem sen- engenheiros liderado por Sergei Korolev que em sua
do reeleito como deputado desde 1995. Ele vê no juventude sonhavam com viagens espaciais e explo-
comunismo o melhor caminho para se resgatar a ração espacial. Satisfeito com o sucesso na constru-
proeminência da Rússia em termos de ciência e ção dos MBI, Nikita Kruschev permitiu que os enge-
tecnologia. nheiros espaciais lançassem um foguete carregando

22
Capa

O satélite Sputnik, que deu partida à corrida espacial, mudou os rumos do século 20. O lançamento foi uma concessão feita por
Nikita Kruschev a um grupo de engenheiros liderado por Sergei Korolev (foto)

um satélite artificial, desde que garantissem que isso permaneceram leais ao regime mesmo depois de sua
não os distrairia de seu trabalho principal. Com um queda, a partir do final da década de 1970 começa-
mecanismo bem simples, uma espera do tamanho ram a demonstrar insatisfação com alguns aspectos
de uma bola de basquete que emitia bipes através da ciência soviética, em particular o foco excessivo
de ondas de rádio, o Sputnik 1 foi lançado em 04 de em tecnologia militar, em detrimento de tecnologias
outubro de 1957. para atender ao mercado civil. E o grau de confiden-
A repercussão internacional e o impacto desse cialidade envolvendo a ciência e tecnologia soviéti-
feito superaram todas as expectativas. Temendo ficar cas é frequentemente mencionado em documentos
para trás em ciência e tecnologia, os Estados Unidos da época.
investiram pesadamente em pesquisas civis, na for- Para se ter uma ideia do custo com defesa na-
mação de cientistas e na reformulação do ensino de cional na URSS, as estimativas da porcentagem do
ciência para torná-la mais atrativa para os jovens. PIB destinadas a gastos militares entre as décadas de
Muitos dos projetos frutos dessa reformulação fo- 1960 e 1980 ficaram entre 12% e 25%, enquanto os
ram importados para outros países, inclusive para o investimentos em pesquisa básica ficaram entre 3%
Brasil, estimulando uma reformulação do ensino de e 4%. A título de comparação, os investimentos com
ciências em nível global. Além disso, os Estados Uni- defesa pelos Estados Unidos, no mesmo período, va-
dos deram início a um programa de atração de cien- riaram entre 8,8% e 4,6% do PIB, enquanto os in-
tistas estrangeiros que provocou a chamada evasão vestimentos em pesquisa básica ficaram entre 2,6%
de cérebros em muitos países em desenvolvimento e 3%. Esses números são ainda mais significativos
e transformou a demografia da ciência norte-ame- se levarmos em conta que todos os serviços e todos
ricana. Anos mais tarde, muitos desses cientistas os investimentos com pesquisa e desenvolvimento
retornaram a seus países e se tornaram líderes em na União Soviética entravam no orçamento estatal.
suas áreas (referência à dissertação de mestrado e Sem contar que as melhores mentes da ciência so-
ao artigo na RBEF). Em síntese, o Sputnik não só viética estavam envolvidas com pesquisas militares.
deu a largada para a corrida espacial, como também (MEASURES, 1998).
transformou a ciência e a comunidade científica em Em análises sobre a tecnologia soviética do iní-
nível mundial. cio da década de 1980, é perceptível o desconforto
Entretanto, mesmo que o desenvolvimento de de líderes da ciência soviética com o descompasso
tecnologia militar tenha permitido à União Soviética entre tecnologia civil e tecnologia militar. As tecno-
deixar esse legado para o mundo, o modelo de de- logias militares desenvolvidas na União Soviética
senvolvimento tecnológico soviético gradualmente são suficientes para fazer da Rússia ainda hoje uma
começou a apresentar suas limitações. Até mesmo das nações mais avançadas em tecnologia militar do
cientistas como Zhorés Alferov e Nikolai Basov, que mundo. Entretanto, frequentemente vemos alusão à

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Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017

inabilidade da indústria soviética para desenvolver quanto potência científica mundial, mas a decadên-
uma lavadora de roupas decente. cia da ciência russa após a perestroica foi meteórica,
Em síntese, por um lado, o apoio à ciência e tec- principalmente através da evasão de cérebros para
nologia dado pelo regime soviético ao longo de toda a Europa e a América do Norte. Se não tomarmos
a história da União Soviética e o cuidado é isso que pode aconte-
valor simbólico que a ciência e cer com o Brasil.
seus representantes tinham dian- Os defensores do Os defensores do neolibera-
te da sociedade foram cruciais pa- lismo aqui no Brasil parecem
ra a formação do império científi- neoliberalismo aqui ignorar que o próprio complexo
co da União Soviética. Por outro, no Brasil parecem científico e tecnológico dos Esta-
o excessivo direcionamento dos dos Unidos foi criado com inves-
recursos e talentos para a área de
ignorar que o próprio timentos governamentais pesa-
defesa prejudicou o desenvolvi- complexo científico dos, feitos sobretudo no período
mento social da União Soviética, e tecnológico dos da Guerra Fria, em especial após
uma vez que a privou de usufruir o lançamento do Sputnik. Sem
dos benefícios que aquele império Estados Unidos esse pesado investimento de di-
científico poderia lhe oferecer. foi criado com nheiro público, sobretudo através
Naturalmente, os problemas de agências militares vinculadas
com a inovação na União Soviética
investimentos ao Departamento de Defesa, não
vão além da parcela do orçamento governamentais haveria o Vale do Silício e prova-
dedicado à defesa, envolvendo tam- pesados, feitos velmente não teríamos boa parte
bém os fatores sistêmicos que são da tecnologia que conhecemos
bem descritos em A Revolução Bipo- sobretudo no período hoje. A ideia de que ciência e tec-
lar, de Luis Fernandes. Entretanto, da Guerra Fria nologia se desenvolvem natural-
essa era uma análise inacessível pa- mente, propelidas pela lógica de
ra a população da União Soviética. mercado, não resiste a uma análi-
Para ela, os gastos com defesa eram o principal fardo, se histórica. Em resumo, a ciência não se desenvolve
que atravancava o desenvolvimento da indústria de sem apoio governamental, tanto financeiro quanto
bens de consumo, como pode ser constatado pelas repe- simbólico, nem sem a consciência, por parte da po-
tidas promessas, não cumpridas, dos líderes soviéticos pulação, de sua importância para o desenvolvimento
de reduzir os investimentos em defesa. Para os jovens em suas diversas dimensões.
que foram atraídos para a ciência pelo seu potencial pa-
ra construir uma sociedade melhor, tal percepção con- *Climério Silva Neto é professor de filosofia e
tribuía para a sua alienação do projeto de construção do história da Universidade Federal do Oeste da
comunismo. Os mesmos valores que os atraíram para a Bahia. Este texto é composto dos principais
ciência contribuíram também para aliená-los do projeto trechos da apresentação sobre a ciência soviética
soviético por conta do conflito entre esses valores e os feita pelo autor no seminário Outros Outubros
rumos que a União Soviética havia de fato tomado. Virão (São Paulo, 11/11/2017)
Quando olhamos para a situação da ciência no
Brasil atual, à luz desse fenômeno histórico, fica cla-
ro que estamos em um momento crítico. O apoio REFERÊNCIAS
governamental e o prestígio público foram essen-
MEASURES. Analyzing Soviet Defense Program, 1951-
ciais para a ciência soviética prosperar. No Brasil de
1990 (Analisando o Programa Soviético de Defesa,
hoje, não temos nem um, nem outro. Ao contrário, 1951-1990). Studies in Intelligence (Classified or
o governo golpista de Michel Temer vem sistemati- Unclassified Articles from the CIA’s Internal Journal)
camente promovendo o sucateamento da ciência e “Estudos em Inteligência (Artigos Catalogados ou
tecnologia brasileira. Tal política não pode ter ou- Não Catalogados do Jornal Interno da CIA”, 42(3),
1998. Disponível em: <http://www.gwu.edu/nsarchiv/
tra consequência senão fazer o Brasil regredir em
NSAEBB/NSAEBB431/docs/intell_ebb_009.PDF}>.
diversos aspectos. Depois de mais de uma década
de avanços e conquistas importantes para a ciên- VELIKHOV, E. Dostizheniia fiziko-tekhnicheskikh nauk i
zadachi nauchno-tekhnicheskogo progressa v narodnom
cia brasileira, estamos vivenciando um processo de
khoziaystve (Conquistas nas ciências físicas e técnicas
retrocessos que, se não for revertido, terá conse- e nas tarefas de progresso científico e tecnológico na
quências terríveis para a ciência brasileira. A União economia nacional). Vestnik RAN, 5, 1984, p. 7-13.
Soviética precisou de décadas para se consolidar en-

24
Capa

As três vertentes da nova luta


pelo socialismo
Renato Rabelo

Conferência de Renato Rabelo, editada por Cezar Xavier e Adalberto Monteiro

Abrindo o Seminário Outros Outubros Virão, ocorrido em São


Paulo, no dia 11 de novembro, o presidente da Fundação Maurício
Grabois, Renato Rabelo, se propôs analisar as experiências
revolucionárias do século 20, apontando para os rumos do
socialismo no século 21 impulsionado por três vertentes de luta:
a dos países da periferia e semiperiferia por um projeto nacional
de desenvolvimento; a luta nos países centrais que é recuperar
o que se perdeu: o desmantelamento do Estado de Bem-Estar
Social; e a luta de vanguarda que os países que mantêm a
perspectiva socialista vão criando, com a China à frente
25
Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017

U
ma questão que consideramos es- de do capitalismo de responder – e resolver – às suas
sencial para o Partido Comunista do crises. Em verdade, ele só tem agravado a situação,
Brasil é a nova luta pelo socialismo. surgindo grandes impasses, produtos de contradi-
A grande questão do mundo, hoje, é ções básicas do próprio sistema capitalista que im-
esta: Qual a perspectiva? Indagação pede o avanço civilizacional.
crucial que se apresenta no contexto O capitalismo é cada vez mais excludente. As de-
de uma luta ideológica e política de grande enverga- sigualdades aumentam cada vez mais, a concentra-
dura. As classes dominantes, por intermédio de seu ção do capital e da riqueza é sem precedentes, sobre-
poderoso complexo midiático e cultural, dissemi- tudo depois da crise de 2008. É crescente o número
nam que o socialismo “morreu”. Nestas circunstân- de deserdados, de famintos. E a lei objetiva do de-
cias, qual a perspectiva do Partido Comunista e dos senvolvimento desigual do capitalismo atua gerando
revolucionários, hoje? uma globalização de desiguais.
A denominada quarta revolução industrial se
Século 20, como síntese dá nos marcos do capitalismo. Mas o capitalismo é
incapaz de dispor toda essa tecnologia gigantesca
Questão que considero chave é que o socialis- da produção a serviço de toda a humanidade. Pelo
mo nasce no século 20. Isso tem contrário, exclui ainda mais o tra-
uma importância fundamental balhador dos benefícios da ino-
na nossa narrativa, já que a luta Erro grave deste vação. Então, esse sistema social,
ideológica é feita de narrativas esse modo de produção e suas re-
representativas. Primeiro: o so- primeiro ciclo lações de produção estão supera-
cialismo não é resultante uni- do socialismo dos historicamente. Mas persiste
lateral da vontade subjetiva das no curso da história por imposi-
pessoas. O socialismo é uma exi- foi transformar a ções ideológicas, políticas e de po-
gência objetiva da história, ao dar Revolução Russa em der, das quais ainda dispõe forte-
os primeiros passos no século 20. mente. É por isso que não se pode
um exemplo universal,
As experiências históricas de suplantar um modo de produção
estruturação continuada de um único para o mundo absoluto anterior simplesmente
sistema socialista, alternativo ao inteiro. Uma revolução no “bafo”, ou num breve período
capitalismo, começam somente no histórico, mesmo através de uma
século 20. A Comuna de Paris de extremamente singular revolução de grande alcance co-
1871 foi apenas um primeiro en- e particular, num mo a Revolução de Outubro.
saio revolucionário do proletariado Temos essa visão de que o so-
nascente. Na celebre conclusão de
período excepcional, cialismo nasceu no século passa-
Marx, “Um assalto aos Céus”. não poderia ser do, e continua. Ele não morreu.
A primeira experiência, por- modelo único para o Em verdade, estamos diante de
tanto, a Revolução Soviética, du- uma nova luta pelo socialismo
rou pouco mais de 70 anos. É um mundo todo desde o final do século passado,
tempo exíguo para prevalecer uma sobretudo agora no início do sé-
nova formação política, econômica culo 21.
e social na cena da história. Para prevalecer sobre o
feudalismo, o capitalismo levou cerca de 300 anos. Condições históricas para revoluções
Os modos de produção e os seus desdobramentos
não superam seus precedentes na base de um salto Nós partimos da análise das experiências revolu-
direto. Isso não existe! Na evolução histórica da hu- cionárias e do começo da construção do socialismo
manidade as novas formações políticas, econômicas no século 20 – cheio que foi de revoluções, como a
e sociais exigem um tempo extenso para prevalecer. Revolução Russa e a Revolução Chinesa. Aliás, uma
A experiência soviética teve uma duração curta surgiu como desdobramento da Primeira Guer-
do ponto de vista histórico. Por outro lado, não é ra Mundial, e a segunda como desdobramento da
iminente a queda do capitalismo. Muitos prognós- Segunda Guerra Mundial – o que evidencia que as
ticos que apontavam o seu fim não se cumpriram, grandes transformações não dependem só do pro-
se revelaram apenas produto de uma vontade. Mas cesso e do desenvolvimento da luta nacional. Isso
o que quero dizer é que, embora não seja iminente está imbricado também em um contexto do sistema
essa queda, objetivamente é crescente a incapacida- internacional.

26
Capa

Experiências
socialistas
contemporâneas

Desse conceito de “no-


va luta pelo socialismo”
buscamos interpretar o
conteúdo e o curso das ex-
periências socialistas con-
temporâneas. E também
inúmeras lutas que eclo-
dem nos países centrais do
capitalismo e na sua peri-
feria e semiperiferia, que
contestam e se conflitam
com esse sistema e sua ex-
pressão de domínio inter-
nacional, o imperialismo.
Vai ganhando corpo, cada vez mais, um processo de luta anticapitalista Vai ganhando corpo, cada
vez mais, um processo de
A revolução proletária no século 20 teve que se luta anticapitalista. Às vezes ainda pouco definido,
desenvolver e se consolidar em circunstâncias his- ainda pouco expresso, mas é isso o que acontece.
tóricas concretas excepcionais. Tanto da Revolução Há, portanto, um conjunto de lutas que alimen-
Russa, quanto da Chinesa resultaram dilemas estru- tam as jornadas do socialismo contemporâneo nos
turais, porque havia um pioneirismo. Tais revoluções países centrais, afinal houve uma grande débâcle,
tiveram de desbravar caminhos e criar soluções ino- com perda de direitos importantes – além da luta
vadoras. Se olhassem para trás, o que encontrariam? na chamada periferia ou semiperiferia, tendo como
Não havia quase nada. O ensaio da Comuna, que era exemplo a Ásia e seu desenvolvimentismo especí-
muito pouco; a Revolução Chinesa; o exemplo russo. fico.
Mas com a capacidade que teve o Partido Comunista A experiência contemporânea do socialismo são
da China de não simplesmente copiar a Revolução processos revolucionários que nasceram do século
Russa. Aliás, esse foi o grande êxito chinês: dominar passado. Os dilemas decisivos para os projetos de
as peculiaridades desse grande país asiático. sociedades socialistas atuais podem ser analisados a
Erro grave deste primeiro ciclo do socialismo foi partir da experiência chinesa (“Reforma e Abertu-
transformar a Revolução Russa em um exemplo uni- ra”), desde 1978, que abre caminho para esse mo-
versal, único para o mundo inteiro. Uma revolução delo recente empreendido pela China, o vietnamita
extremamente singular e particular, num período (“Renovação”), desde 1986; e mais recentemente a
excepcional, não poderia ser modelo único para o cubana (“Atualização do Socialismo”), desde 2011.
mundo todo. A China compreendeu isso em tempo, Trata-se da busca de alternativas próprias, singula-
e na construção da nova sociedade passou por fases res de cada país, que vem conseguindo superar os
de experimentos. impasses estruturais e dar materialidade ao socialis-
A evolução da história mundial do século passado mo na atual quadra histórica. Nas visitas que fiz ao
tem sido caracterizada pela implantação da revolução Vietnã constatei a afirmativa feita por seus dirigen-
socialista na União Soviética, e o desmoronamento tes de que o “modelo soviético” estava “superado”
desta primeira experiência revolucionária – conforme em face do contexto específico do país e das condi-
assinalou o destacado historiador Eric Hobsbawm. ções internacionais.
A nova luta pelo socialismo, por sua vez, trans- Dou um depoimento. Eu estive em Cuba, há cer-
corre no século 21 em um contexto mundial de pro- ca de dez anos atrás, quando a liderança cubana
fundos desequilíbrios e tensões. Transição de novos estava definindo os “lineamientos” (diretrizes) do
polos de poder, desigualdades econômicas e sociais que seria o seu projeto de atualização e renovação –
que se agigantam, nova onda do progresso tecno- levando em conta a experiência chinesa, e mesmo
-científico. De tal realidade emerge a exigência ob- a vietnamita. Hoje, a situação de Cuba é diferente.
jetiva e subjetiva de uma nova luta que suplante o O governo e o Partido procuram fazer certas flexões
capitalismo hegemônico. estratégicas em função daquele caminho que se-

27
Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017

guiam antes, que tinha


muita influência sovié-
tica, para definir novos
passos rumo a novos
estágios de desenvolvi-
mento, sobretudo eco-
nômico.

O papel do
Estado

Como construir o
socialismo nas condi-
ções do mundo – neste
início do século 21 –,
e na realidade de seus
países? Essas experiên-
cias revolucionárias,
portanto, se distan- A Revolução Chinesa teve o mérito de não querer copiar o modelo soviético
ciaram do modelo so-
viético de um período
excepcional. O início delas teve como premissa a lo contrário, no Vietnã há um Estado poderoso. A
construção de um Estado de caráter nacional, de- China, hoje uma potência mundial, tem um Estado
mocrático e popular. Foi o que aconteceu na China, poderosíssimo.
no Vietnã e em Cuba. O Estado com esse caráter é O Estado nacional soberano e democrático tem
hegemonizado pelas forças interessadas na transi- um papel fundamental. Isso é decisivo para os pro-
ção a uma nova sociedade, como jetos socialistas, assim como para
trabalhadores, camadas médias os projetos nacionais anteriores
e até setores da classe domi- Ponto candente desse ao socialismo. Hoje, portanto, o
nante. Na China, Mao Tsé-tung exemplo mais destacado é a Chi-
sempre levou em conta inclusive
debate, sobretudo
na – uma estrutura de forte Es-
a chamada burguesia nacional aqui no Brasil, é a tado nacional soberano, que se
chinesa, na construção econômi- questão nacional, torna uma grande potência mun-
ca, ou setores dominantes “sen- dial, já sendo a maior economia
satos”. O Vietnã fez uma Frente independência e do mundo, medido o Produto
ampla naquela sociedade, levan- soberania. A questão Interno Bruto (PIB) pelo critério
do muito em conta uma visão da paridade do poder de compra
nacional própria deles. Portanto, nacional é primordial, (PPC).
eram Estados já dirigidos pelas tanto para a conquista
forças revolucionárias vitoriosas.
do poder, quanto Traços tradicionais da
Ponto candente desse deba- nova sociedade
te, sobretudo aqui no Brasil, é a para a construção do
questão nacional, independência próprio socialismo Há duas questões que enri-
e soberania. A questão nacional quecem o debate sobre o socialis-
é primordial, tanto para a con- através da formação mo contemporâneo. Marx na Crí-
quista do poder, quanto para a de um Estado nacional, tica ao Programa de Gotha delineia
construção do próprio socialismo que o socialismo é um extenso
através da formação de um Es-
democrático-popular
período histórico da transição en-
tado nacional, democrático-po- tre o capitalismo e o comunismo.
pular. Não vejo como avançar na Muitas vezes perde-se de vista es-
experiência socialista sem esse Estado soberano, de- sa questão. Ele definiu nessa transição socialista um
mocrático, popular e poderoso. É evidente que esses princípio distribuidor da riqueza, que faz parte do
Estados surgiram como produto da revolução, que direito burguês: “De cada um, segundo suas capaci-
têm uma forte base social, e não voltaram atrás. Pe- dades, a cada um, segundo seu trabalho.”

28
Capa

talistas desenvolvidas.
É preciso compre-
ender, portanto, que a
construção do socia-
lismo no curso histó-
rico contemporâneo
– tanto nas experiên-
cias atuais, quanto
nas passadas – reside
no fato de o socialis-
mo existir e operar
dentro dos marcos de
uma economia globa-
lizada, hegemonizada
pelo capitalismo e seus
monopólios produti-
vos e financeiros. Ou
seja, as experiências
Cubanos erguem fotos de Che Guevara nas homenagens pelos 50 anos de sua morte, em 2017 já nascem cercadas de
capitalismo por todo
lado. Não foi, e não se
Nessa longa transição, vão existir variadas for- deu, aquilo que Marx previa: que o socialismo sur-
mas de propriedade. Na chamada economia mista giria nos países capitalistas mais desenvolvidos com
persiste o mercado, resultante da sociedade capita- a base material suficiente para se ir adiante numa
lista, sendo agora conduzido pelo Estado socialista, sociedade superior ao capitalismo.
tendo o trabalho como medida da distribuição da Foi acontecer nas sociedades capitalistas mais
renda e da riqueza, porque “é de cada um, segundo a atrasadas. No interior da China havia um pré-capi-
quantidade e a qualidade desse trabalho.”. talismo. No Vietnã, também. Mesmo na Rússia, o
É também de Marx a visão de que a nova socieda- capitalismo foi um processo tardio. Isso porque as
de nasce das entranhas da velha sociedade. Indago: etapas iniciais do socialismo estão envoltas em con-
Após a implantação de um novo poder de Estado, dições objetivas e subjetivas do capitalismo. E acon-
acaba aquela velha sociedade, seus valores e institui- teceu em sociedades cujas base material e riqueza
ções, e a partir daí começa tudo novinho? Isso imagi- social eram ainda escassas. Portanto, essa conclusão
nado dentro de uma visão muito primária do proces- me parece importante para compreendermos, hoje,
so transformador. Pela compreensão real, o processo as formulações do socialismo contemporâneo.
e os saltos desse desenvolvimento social saem das
entranhas da sociedade anterior. Tentativa e erro
Mesmo mudanças na infraestrutura econômica e
social não refletem em mudanças automáticas na su- A construção da sociedade pós-capitalista é um
perestrutura, e menos ainda na consciência social. Es- gigantesco processo de aprendizagem. Trata-se de
sa consciência social, com muitos valores enraizados construir uma sociedade inteiramente nova num
na sociedade anterior, persiste durante longo tempo. curso inédito que, inevitavelmente, implica tentati-
A segunda questão é o contexto histórico. O socia- vas e erros. E as condições objetivas históricas na-
lismo em todas as experiências, até agora, sobretudo cional e internacional, quando se realiza o processo
as que irrompem no século 20, ocorre em sociedades revolucionário, podem levar a diferentes alternativas
capitalistas relativamente atrasadas ou pré-capitalis- de como viabilizar o empreendimento da construção
tas, impondo às forças dirigentes da revolução a tare- da nova sociedade.
fa primária de se criar ou desenvolver a riqueza ma- Por exemplo, a Rússia soviética, nos primeiros
terial. É impossível socializar uma riqueza que não 20 anos, passou por três experimentos, três modelos
existe. Por isso, sobretudo nas sociedades atrasadas, postos em prática: o comunismo de guerra; a Nova
a importância da centralidade do desenvolvimento Política Econômica (NEP), o novo plano econômico;
das forças produtivas. Sem isto é impossível criar e e o terceiro, que acabou prevalecendo: a estatização e
prosperar um regime superior ao capitalismo, cuja a coletivização acelerada. Foram necessárias, portan-
base material é mais atrasada que as sociedades capi- to, duas décadas para que a Rússia viesse a adentrar

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Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017

ao processo que a tor-


nou uma das maiores
potências do mundo.
Um processo que desa-
bou apesar dos grandes
e extraordinários avan-
ços que conseguiu.
A China é que deu
os primeiros passos
para a configuração: a
transição ao socialismo
na época atual. Duran-
te 30 anos, desde 1949,
conforme eles mesmos
dizem, os chineses des-
creveram um “zigue-
zague” em busca de
um caminho que con-
duzisse o país ao de- Chineses caminham diante de painel com foto de Deng Xiaoping, o líder comunista que
senvolvimento. Só em liderou a abertura de novos caminhos para o desenvolvimento do socialismo na China
1978 conseguem abrir
esse caminho, com o modelo encontrado por Deng na. Quem proclama isto são especialistas e institui-
Xiaoping, com o qual, de uma certa forma, podemos ções de alta reputação que pesquisam a China.
fazer uma analogia com a NEP de Lênin, de 1921 – O fenômeno chinês marca a profunda transição
guardadas as diferenças geopolíticas e históricas da atualmente em curso na própria ordem mundial.
época. O sistema internacional vive uma transição com
A China, portanto, encontrou a saída, em 1978, novos polos de poder que começam a se impor. A
com a linha da reforma e abertura compreendida nas China emerge de potência regional para potência
quatro modernizações de Deng Xiaoping, após quase mundial. Esse caminho seguido por ela vem es-
uma década de instabilidade, resultante da revolução truturando um amplo e sólido sistema nacional de
cultural proletária. Nesse período, eu vivi seis meses desenvolvimento tecnológico e de inovação, supe-
na China. Presenciei de perto os grandes conflitos en- rando o monopólio ocidental. Ela consegue acelerar
tre camponeses e trabalhadores da cidade. a disseminação do progresso técnico na sua econo-
Dois estudiosos do socialismo, Domenico Losur- mia, e nos mostra que realiza o que a União Soviéti-
do e Luis Fernandes, traçam paralelos entre o pro- ca não conseguiu alcançar. Aliás, foi um dos fatores
jeto de Deng Xiaoping e a NEP de Lênin, guardadas da débâcle, um dilema estrutural não resolvido pela
todas as diferenças históricas. Elias Jabbour, outro URSS. Afinal, um novo sistema econômico e social
pesquisador, acrescenta que 1978 foi uma fusão en- que surja precisa suplantar a produtividade econô-
tre dois Estados: o Estado revolucionário de Mao mica do anterior, senão ele retrocede. Assertiva já
Tsé-tung, vitorioso em 1949, com o desenvolvimento enunciada por Lênin.
de tipo asiático a partir de 1978. Mostra que o tipo
de capitalismo de Hong Kong, Taiwan e Japão, que A teoria e a prática da transição na
suplantava a China, formou um contexto histórico e contemporaneidade
econômico que levou o gigante comunista a tomar
o rumo atual de seu desenvolvimento na busca da O aprofundamento dos dados empíricos, análi-
construção da nova sociedade, nas condições pecu- ses multilaterais e o desenvolvimento teórico dão
liares da China. elementos para o debate acerca da compreensão do
O socialismo é riqueza social, segundo Marx. socialismo contemporâneo e sua perspectiva, seja da
Sem isso o que se pode conseguir então é distribuir China, do Vietnã, seja de Cuba.
miséria – um ultraigualitarismo sem futuro. O resul- A experiência chinesa – dimensão, êxito e, tam-
tado, portanto, dessas reformas iniciadas em 1978 bém, dilemas –, como não poderia deixar de ser, sus-
tem sido impressionante. Trata-se de trajetória pro- cita reflexões teóricas e busca uma sistematização
longada e sustentada de desenvolvimento, há quase da realidade que surge da transição lá ocorrida. Os
quatro décadas, sem precedente na história moder- chineses afirmam que o país atravessa fases da etapa

30
Capa

primária do socialismo, cujo fundamento básico é o esses ciclos de desenvolvimento têm resultado de
“socialismo de mercado”. um planejamento de médio e longo prazos, como foi
A China, portanto, desde 1978 passa por mu- demostrado por Xi Jinping, no recente XIX Congres-
danças de vulto. Como defende o pesquisador Elias so do Partido Comunista da China. Ou seja, isso não
Jabbour, já existem indícios teóricos e empíricos surge de agora.
suficientes para dizer que o socialismo de mercado A imprensa burguesa faz parecer que o presiden-
se constitui como uma “formação econômica e social te Xi Jinping – ao reafirmar o plano que já estava
distinta” do curso clássico dos modos de produção. estabelecido desde antes, numa primeira etapa indo
A crise de 2008 e as novas configurações do Estado até 2035, e numa segunda etapa até meados do sé-
chinês teriam acelerado esse diagnóstico. Trata-se culo – demonstra querer ficar longo tempo no poder.
de uma afirmação teórica ousada, que enriquece o Essa mídia procura distorcer a ordem política instau-
debate. rada na China e dar a sua versão
O que o referido pesquisa- preconceituosa. Lá, as gerações
dor quer dizer com isso? Há uma O socialismo é no poder central, institucional-
compreensão básica de que o mente estabelecidas, têm uma
mundo passou pelo comunismo
riqueza social, carência de dez anos, quando são
primitivo, escravismo, feudalis- segundo Marx. Sem substituídas pela nova geração. A
mo e o capitalismo, basicamente. isso o que se pode cada dez anos, sai toda a cúpula
Jabbour quer introduzir, entre o dirigente. A continuidade é dada
capitalismo e o socialismo pleno, conseguir então é por um líder que vem da geração
um estágio de desenvolvimento distribuir miséria – anterior, que assume a função
que ele denomina de “socialismo maior no Partido Comunista da
de mercado”. Isso teria surgido da um ultraigualitarismo China, e na República o posto
tentativa de construir uma nova sem futuro mais elevado, como o presidente
sociedade em países capitalistas desta. E este completa o seu papel
relativamente atrasados. Se tives- durante uma década.
se surgido, como Marx previa, nos países capitalistas É a forma política encontrada para a construção
mais desenvolvidos, a situação talvez fosse outra. da nova sociedade chinesa na época atual. Sabia-
Não estou concordando ipsis litteris com essa tese. mente, os chineses não se sentem obrigados a copiar
Mas, entra uma nova categoria importante no de- o liberalismo político do Ocidente capitalista. As for-
bate. O que quero dizer com isso é que na China a mas políticas, jurídicas e institucionais de uma so-
evolução dos acontecimentos demonstra que as re- ciedade pioneira, na formação que suplante o regime
formas econômicas e institucionais, a partir de 1978, capitalista, levam muito tempo para se aperfeiçoa-
levam a um gigantesco crescimento econômico, e a rem e se consolidarem em um Estado socialista de
transformações profundas na sociedade. O investi- direito. O capitalismo levou uns 200 anos para isso.
mento gigantesco da China ainda está na ordem de É preciso relembrar uma questão importante: a
mais de 40% de seu PIB. Em torno de 600 milhões de revolução popular na China desalojou a burguesia e
chineses saíram, em curto espaço de tempo, de áreas os senhores de grandes propriedades rurais do poder
rurais para urbanas, e as camadas pobres reduziram- do Estado. A burguesia teve um papel importante na
-se significativamente. China, ajudando no desenvolvimento, mas deixou
Imaginem, no Brasil: aqueles que saíram da zona de ter o poder de Estado. Na União Soviética a força
rural, também em tempo curto, incharam as cida- revolucionária, o proletariado, aquele que conquis-
des, gerando enormes problemas estruturais e so- tou o poder por meio da revolução, foi sendo desti-
ciais, em grande medida perdurando até hoje, devi- tuído do poder, culminando com o fim da URSS em
do à falta de planejamento urbano. Ao contrário na 1991. Uma situação é depor a burguesia do poder
China, a crescente urbanização, sob planejamento de Estado. Outra é desapropriá-la, porquanto ainda
central, conseguiu um deslocamento gigantesco da pode ter função importante no plano do desenvolvi-
população para zonas urbanas existentes, e sobretu- mento econômico. Posição defendida por Mao Tsé-
do com a formação de novas áreas urbanas grandes, -tung no processo da Revolução Chinesa.
médias e pequenas, evitando um grande caos. Então, quem tem o poder é a força revolucionária,
Essa situação alcançada faz parte, desde o início, tanto na China, quanto no Vietnã ou em Cuba. Agora,
do ciclo de reforma e abertura, no qual o Estado pla- comentando o XIX Congresso do PC da China, Scott
neja as etapas do desenvolvimento e da instauração Kennedy, vice-diretor do Centro de Estudos Estraté-
de inovações institucionais correspondentes. Aliás, gicos Internacionais de Washington, simplesmente

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Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017

reforçou “que a China não


caminha para uma con-
vergência com o capitalis-
mo ocidental.”. E, ao con-
trário dos que dizem que
há uma restauração do ca-
pitalismo na China, afir-
ma ele: “é um sistema hí-
brido” – isto é textual –, “é
conduzido por uma lógica
socialista estatal diferente
e perdurará enquanto o
Partido Comunista da
China estiver no poder.”.
Portanto, não bastam as
aparências ou os sintomas A questão nacional é um elemento fundamental para a luta dos trabalhadores no Brasil
para se distinguir a essên-
cia das formações políticas e eco- ideológica imposta pelas grandes
nômico-sociais, como no oceano O pós-golpe de Estado potências capitalistas tenta mol-
em que as correntezas maiores dar um senso comum baseado
não aparecem na superfície. no Brasil, no qual o na sua prédica neoliberal de que
consórcio da classe na China não há “democracia”,
Política estratégica na dominante tomou o
prevalecendo um “regime autori-
prática tário”, e na economia há um arre-
poder nacional, em medo de capitalismo. Conseguem
A decorrência da evolução 2016, por um atalho, paralisar ou colocar na defensiva
dos acontecimentos na China várias correntes e vários setores
revela que o Estado planeja os gesta a instauração da esquerda diante dessa narra-
ciclos do desenvolvimento e das de uma ordem que tiva, cuja essência é a defesa de
inovações institucionais ligados eternidade do capitalismo e da
à política do poder e à econo-
desmonta as bases sua ideologia liberal.
mia. Outro fator que confirma iniciais de um projeto Resumidamente, hoje, na
este aspecto do regime chinês é época contemporânea, podemos
de desenvolvimento definir três grandes lutas que, de
a formação dos grandes conglo-
merados empresariais estatais nacional em certo modo e forma, estão na li-
nos setores estratégicos da eco- consonância com a nha de uma nova luta pelo socia-
nomia, que executam as grandes lismo. O filósofo italiano Domeni-
políticas de Estado. integração regional co Losurdo fala em duas grandes
Esses grandes conglomera- lutas, mas eu considero três.
dos exercem na prática a política Uma luta se dá em meio ao
essencial do governo central. Esses conglomerados movimento dos trabalhadores e forças avançadas
entram em todos os setores sensíveis ou modais da nos países capitalistas mais desenvolvidos, contra o
economia: o sistema energético, o petróleo, o siste- desmantelamento do Estado de Bem-Estar Social e
ma de comunicação, as áreas estratégicas da tecno- na busca de um caminho que possa descortinar hori-
logia de ponta e da defesa nacional. São mais de 160 zontes para superação do sistema capitalista. Essa é
conglomerados, além do controle estatal da área fi- uma luta fundamental hoje na Europa e nos Estados
nanceira e do comercio exterior. Unidos, onde a desigualdade social retrocede a pata-
mares anteriores à Segunda Guerra Mundial.
As três principais vertentes das Os direitos alcançados, por exemplo, pelo po-
grandes lutas contemporâneas vo francês depois da Segunda Guerra Mundial são
muitos significativos. Eles estão perdendo quase
A conformação desse socialismo contemporâneo tudo. Novamente, recorro a um depoimento pró-
na sua etapa atual é que está no centro dessa nova prio para exemplificar. Vivi quatro anos na França,
luta pelo socialismo que poucos percebem. A luta como exilado, em meados da década de 1970. De

32
Capa

uma casa que nós alugamos nos arredores de Pa- pós-golpe de Estado no Brasil, no qual o consórcio
ris, o governo ajudava até a contratar um aluguel da classe dominante tomou o poder nacional, em
de três quartos, porque tínhamos um filho e uma 2016, por um atalho, gesta a instauração de uma or-
filha, e cada um tinha que ter o próprio quarto. E o dem que desmonta as bases iniciais de um projeto
carteiro ia entregar no meu apartamento, mensal- de desenvolvimento nacional em consonância com a
mente, parte do valor do aluguel em dinheiro vivo. integração regional.
Faço este registro, porque não imaginava direitos O país, sob a condução de um governo impos-
como esse. Então, a luta para a reconquista dos di- tor, passa a se submeter à imposição neoliberal e
reitos perdidos na Europa é fundamental. A crise imperialista e ao realinhamento geopolítico deter-
da globalização neoliberal tem provocado crescente minado pelos Estados Unidos e União Europeia,
mal-estar no seio dos trabalha- contrário à tendência à multipo-
dores e das camadas populares. larização no sistema internacio-
Essa perda de proteção social se O sistema capitalista nal. Assim, a luta pela retomada
refletiu nas eleições na França, se torna cada vez de um novo projeto nacional de
nos Estados Unidos, tanto quan- desenvolvimento mais ainda se
to o Brexit no Reino Unido. mais defasado para impõe.
A outra grande luta que al- enfrentar os grandes E, por fim, a terceira grande
cança crescente avanço é relacio- luta, ainda incompreendida por
problemas da nossa
nada ao modo de projeto nacio- correntes e setores da esquerda.
nal de desenvolvimento, muitos época, tornando-se um A luta no âmbito mundial, cuja
deles vinculados ao desenvolvi- motor de retração das vanguarda são os países que se
mento regional, nos países da se- empenham na construção da
miperiferia e da periferia do sis- transformações sociais, perspectiva socialista contempo-
tema capitalista. Caminho cuja um imenso paredão rânea, capazes de reduzir a des-
condução cabe às forças conse- vantagem e o atraso em relação
quentes populares e nacionais.
que barra o avanço aos países capitalistas mais de-
A bandeira da defesa nacional e civilizacional senvolvidos, sendo a China a ex-
de um projeto nacional com ba- periência mais avançada. Reali-
se popular pertence à esquerda. dade e frente de luta expostas em
Exemplos importantes do avanço desses projetos diversas facetas nas descrições acima.
nacionais, com Estados nacionais soberanos e for- Estas três grandes lutas estão de diferentes mo-
tes, na sua condução, livrando-se do rentismo, es- dos e formas no âmbito das formações que possam
tão na Ásia. suplantar o domínio da hegemonia e vigência do
Os países dependentes do centro capitalista na capitalismo. E as experiências socialistas contem-
divisão internacional do trabalho estão sujeitos ao porâneas estão no curso de abrir caminho para a
domínio estrutural neoliberal e imperialista das retomada de um sistema social que suplante o mo-
grandes potências capitalistas. Esse domínio impõe do de produção e as relações de produção capita-
grandes obstáculos ao desenvolvimento autônomo, lista. O sistema capitalista se torna cada vez mais
à democracia e ao progresso social desses países de- defasado para enfrentar os grandes problemas da
pendentes. nossa época, tornando-se um motor de retração
Por isso, a questão nacional ocupa uma centra- das transformações sociais, um imenso paredão
lidade, na qual a salvaguarda da sua independên- que barra o avanço civilizacional. Do ponto de vista
cia, a autodeterminação política e econômica são histórico, o capitalismo já era para ter ido embora,
essências na aplicação de um projeto de desenvolvi- mas persiste ainda na cena da história pelo peso do
mento autônomo e próprio. Pressuposto, inclusive, seu poder, dominância política e ideológica e por
para o progresso social e respaldo para avanço da valores arraigados em séculos, próprios de uma so-
causa democrática. Tais condições podem permitir ciedade velha, alquebrada, que se mantém de pé.
a formação de um bloco politico condutor, nas con- Portanto, uma nova sociedade, socialista, ainda
dições históricas atuais, numa aliança nacional-po- precisa se impor no limiar da sua existência, abrin-
pular-produtivista e de avanço democrático. do uma nova época.
No programa do PCdoB, desde 2009, já indicá-
vamos a centralidade de novo projeto nacional de * Renato Rabelo é presidente da Fundação
desenvolvimento, como o caminho estratégico para Maurício Grabois. Foi presidente do Partido
alcançarmos a transição ao socialismo no Brasil. O Comunista do Brasil – PCdoB entre 2001 e 2015

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Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017

Um olhar novo sobre a arte


soviética
Mazé Leite*

Mãe, Alexandr Deineka, 1932, óleo sobre tela, 120x159 cm, Galeria Tretyakov de Moscou.

Há ainda hoje um profundo desconhecimento sobre a arte


russa do século 20 a partir de 1930, eivado de observações
com viés ideológico de forte caráter emocional. Desde a
Guerra Fria, tudo o que diz respeito à arte da URSS tem
sido estereotipado, rejeitado, subestimado… Estas são
observações do crítico e pesquisador inglês Matthew
Bown, autor do livro Realism Socialist Painting
34
Capa

H
á anos esta Pomar florido,
questão me in- Alexandr
trigava: por que Gerasimov,
se diz – inclu- 1935, óleo
sive entre a es- sobre tela,
querda – que era tão ruim a arte 124x133
russa do Realismo Socialista? cm, Coleção
“Porque foi imposta... arte dou- privada.
trinária... dirigismo” são críticas
bem comuns de se ouvir.
Mas... isso não é uma novi-
dade no mundo da arte! A arte
bizantina foi uma estética im-
posta; boa parte da arte do Re-
nascimento foi dirigida pela Igreja, que contratara nada marxista… O livro, além de um texto denso,
os melhores artistas para produzirem arte de pro- possui 544 ilustrações. Matthew Cullerne Bown tem
paganda religiosa; a arte acadêmica francesa era tão se dedicado à pesquisa sobre a arte russa, sendo con-
imposta que Gustave Courbet e depois os pintores siderado uma autoridade atual no assunto. É autor
Impressionistas tiveram que enfrentar seus teóricos também de: Contemporary Russian Art e Art under Sta-
e militantes para ter liberdade de pintar outros temas lin (A arte sob Stalin).
e de outra maneira; o maior dirigismo artístico recen- Em Realism Socialist Painting, logo nos primeiros
te ocorreu nos EUA que impôs a arte abstrata como parágrafos, dei com os olhos na seguinte afirmação
estética desde o final da década de 1940; o sistema da do autor: “a história do Realismo Socialista é a história de
chamada “arte contemporânea” impõe a arte que in- um extraordinário movimento de arte do século XX.”.
teressa ao mercado, que lucra bilhões de dólares com Ele propõe uma visão sobre a arte soviética que
ela, escolhendo aqueles artistas que se enquadram vá além da arena político-ideológica, criticando o fa-
em seu sistema e se curvam à sua estética… to de que todos os que se debruçaram sobre o tema
Em 2008, 2010 e 2017 pude ver de perto – em via- sempre foram muito mais guiados pelo viés político.
gens a Berlim, Varsóvia e Londres – exposições sobre A começar pela publicação, já em plena Guerra Fria,
arte soviética. E o que vi vai muito além do conceito de um livro de autoria de Konstantin Umanski, a
de “arte de propaganda”, reforçando minha convic- partir do qual foram se criando narrativas homogê-
ção de que até mesmo a esquerda se deixa influenciar neas “a fim de dar a impressão de que a arte da Vanguarda
pela propaganda ideológica iniciada na Guerra Fria... tinha sido a única contribuição russa para a arte do século
Nesse meio tempo, tive acesso ao livro Realism XX” (BOWN). Esta posição foi reforçada pelo livro
Socialist Painting publicado em 1998 por um profes- da inglesa Camilla Gray, Experimento. Arte russa publi-
sor da Yale University de Londres, nada comunista, cado em 1962, que gerou grande quantidade de pu-

Moça de bicicleta em uma fazenda coletiva, Alexandr Deineka, 1935, óleo sobre tela, 120x220cm, Museu Estatal SP

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Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017

Nova Moscou, Yuri Pimenov, 1937, óleo sobre tela, 140x170 cm, Galeria Tretyakov de O vale de Ararat, Martiros Saryan, 1945, óleo sobre
Moscou. de Artes dos Povos do Leste, Moscou.

blicações, onde se admirava a Van- defesa de uma arte plenamente


guarda Russa como baluarte da arte
No mundo das histórias identificada com o proletariado
do século XX. Ela analisa detalha- em quadrinhos surge em processo revolucionário.
damente a opinião de vários desses nos EUA, em 1930, a Mas até o final da Segunda
autores, discordando de todos. Guerra havia um certo flerte
Diz Matthew: “É correto e razoável figura do Superman, dos EUA em relação à URSS,
ligar a vanguarda russa com a ociden- que compartilha incluindo o Realismo Socialista.
tal. Mas a exclusão da arte soviética de Clement Greenberg, influente
depois de 1922 por um número enorme
com as imagens do crítico de arte que depois se tor-
de ‘histórias da arte’ do século XX, equi- Realismo Socialista as naria agente da CIA, no começo
vale a uma significativa deformação da ideias sobre o “Novo dos anos 1930 nutria simpatias
nossa história da arte.”. pelo Socialismo. Também como
Mas Bown cita também a tese homem”, o Super- ecos do coletivismo pregado na
do filósofo Boris Grois, segundo o homem, másculo, ativo, URSS que dava apoio estatal
qual a arte russa, sob Stalin, “foi, em para os artistas, o governo dos
última análise, responsabilidade dos ar- que apontava para EUA criou o “Federal Art Project”,
tistas da vanguarda” que tinham um o alto e para além, o que passou a dar apoio financei-
discurso artístico-político dentro ro a milhares de artistas norte-a-
do qual cada decisão concernente
defensor dos fracos…  e mericanos. Diego Rivera, artista
à construção estética do trabalho que possui uma capa… mexicano e comunista declara-
artístico era avaliada como uma vermelha! do, recebeu apoio nos EUA para
decisão política e vice-versa. Grois criar uma série de murais onde
afirmara que “a estetização da política, apareciam Lenin e outros líde-
no que diz respeito às lideranças do Par- res marxistas. “Apesar disso ser tão
tido, era apenas uma reação à politização surpreendente…”, observa Bown.
da estética.”. Os futuristas soviéticos, No mundo das histórias em
assim como os outros artistas de quadrinhos surge nos EUA, em
vanguarda, se inspiravam nas ideias 1930, a figura do Superman, que
de revolucionários como Anatole compartilha com as imagens
Lunacharsky. “Não o contrário”, diz do Realismo Socialista as ideias
Bown. Lembre-se de que as ideias sobre o “Novo homem”, o Su-
de Lunacharsky sobre arte incluía a per-homem, másculo, ativo,

36
Capa

tela, 96x128 cm, Museu Estatal Dia de sol, Mai Dantsing, 1965, óleo sobre tela, 188x208 cm, Coleção privada.

que apontava para o alto e para além, o defensor dos ao Realismo Socialista desde então.”. O consenso criado
fracos…  e que possui uma capa… vermelha! entre os críticos de arte era o de que a arte contem-
O embaixador dos EUA em Moscou, na década porânea “importante” é aquela cujas características
de 1930, Joseph Davies, se tornou – segundo Bown estão intimamente associadas ao Modernismo, que
– o maior colecionador individual de pinturas do possuiria, este sim, uma visão “original”. Esse con-
Realismo Socialista. Através dele e de outros, como senso incluiu artistas e intelectuais de esquerda.
o artista ex-futurista David Burlyuk, a arte soviética Em 1990, Igor Golomstock, um russo emigra-
se tornou conhecida nos salões de Nova Iorque, on- do, publicou o livro Arte totalitária que inaugurou a
de convidados apresentavam essa arte para amplas moda de ligar a arte russa e a imagem de Stalin ao
audiências norte-americanas. totalitarismo, informa Matthew Bown. “Mas”, diz
Mas Greenberg publicou um ensaio em 1939 in- ele, “dispenso o modelo totalitário, porque é pouco útil
titulado Vanguarda e kitsch, no qual define a cultura para desvendar a arte soviética.”. Falar de “totalitaris-
dominante na URSS – o Realismo Socialista – como mo” em relação à arte soviética, segundo ele, reduz
kitsch (algo como “brega”), assim como o cinema de a pesquisa e restringe a investigação, simplificando
Hollywood da época. Mas Greenberg, diz Bown, “pa- “demais os debates sobre a forma artística que permaneceu
rece ter reconhecido que tal arte foi capaz de alcançar um em atividade durante todo o período soviético”, de 1930 até
alto grau técnico”, uma arte que falava às massas, com o final de 1980.
quem tinha “empatia”. O professor Bown se diz contrário a avaliar o
É preciso lembrar que até o começo da Guerra Realismo Socialista como um monolito imutável. A
Fria, os artistas norte-americanos tinham liberda- arte pictórica produzida na URSS não estava restri-
de de expressão. Após a Segunda Guerra, em solo ta àquela que depois ficou conhecida no Ocidente:
norte-americano “arte realista era arte comunista”; punhos erguidos para o alto, retratos de Stalin. Ele
e eram perseguidos, no período do macarthismo, os afirma que o controle maior sobre a arte, por parte
artistas que se identificassem com isto. Acrescenta do Estado soviético, estava mais restrito às grandes
Matthew Bown: “Na América e Europa Ocidental predo- cidades como Moscou e São Petersburgo. No país
mina a Abstração, promovida pelos críticos (e pela CIA, pelo inteiro artistas produziam fertilmente. “A pintura do
Conselho Britânico e por outros órgãos governamentais) co- Realismo Socialista, amplamente definida, compreende um
mo metáfora de liberdade e de predomínio da individualida- excelente movimento do nosso século na pintura realista”,
de. Enquanto na URSS, o Realismo Socialista reivindicava diz Bown, que segue: “Ela envolve o patrocínio da pin-
o predomínio da coletividade e da responsabilidade social.”. tura realista numa escala incomparável em qualquer lugar
A campanha antissoviética se espalhou no final do mundo e engaja, por décadas, o talento de milhares de
dos anos 1940 e “moldou as atitudes ocidentais em relação artistas através de um vasto e multirracial império.”.

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Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017

Como surgiu
o Realismo
Socialista

A Rússia do começo
da década de 1930 era
um país em reconstru-
ção. Havia passado por
anos de guerra civil, por
períodos de fome gene-
ralizada. Stalin defendia
a necessidade urgente da
industrialização do país e
Campos em paz, Andrei Mylnikov, 1950, óleo sobre tela, 200x400 cm, Museu Estatal Russo de
da construção de instru-
São Petersburgo.
mentos sólidos de defesa
militar contra os ataques
que viriam. A produção industrial e agrícola aumentou da de 1930 havia mais artistas deixados de fora dele
ao longo do período. O racionamento de alimentos bá- do que aceitos, tal era o nível artístico dos artistas.
sicos foi revogado em 1935. Em discurso ao I Congresso Em 1933, esta entidade já contava com cerca de 600
de Todos os Sindicatos Stakhanovitas em novembro, Sta- membros. Em 1937, as uniões municipais chegavam
lin estabeleceu o tom oficial da década, pronunciando a a abrigar cerca de 2.500 artistas.
notória frase: “A vida melhorou, camaradas, a vida ficou Quinzenalmente realizavam-se em Moscou as-
mais alegre.”. sembleias de artistas em que seus trabalhos eram
O termo “Realismo Socialista” apareceu pela pri- avaliados. Eram um evento significativo na vida ar-
meira vez em maio de 1932 na revista Novo Mundo, tística da capital que reunia pintores e críticos bem
principal fórum de discussão teórica. Em 26 de outu- conhecidos. As pinturas eram exibidas e ficavam su-
bro, em um encontro entre escritores e Stalin reali- jeitas às críticas da assembleia. Vladimir Kostin, um
zado na casa de Maximo Gorki, os princípios do Rea- dos artistas, descreveu o evento como extremamente
lismo Socialista foram expostos com algum detalhe. popular e respeitado, verdadeiras aulas de pintura.
Bown diz que entre 1932 e 1934 foram publicados 64 A reorganização da educação artística nacional
artigos sobre o tema, o que mostra o amadurecimen- começou em meados de 1932. Em um discurso para
to do debate sobre o assunto. Em 1933, o próprio os diretores de escolas de arte no verão daquele ano,
Gorki publicou o ensaio Sobre o Realismo Socialista. Arkadev, chefe do departamento de arte da União,
Em 1934, no I Congresso dos Escritores Soviéti- pediu um retorno aos métodos tradicionais de edu-
cos, realizado em Moscou, Andrei Zdanov, Gorki e cação artística e disse: “Nós não precisamos de artis-
Igor Grabar apresentaram o Realismo Socialista a tas que não conseguem desenhar.”.
uma audiência internacional. A composição dos de- Em outubro do mesmo ano, foi reorganizada a
legados a este Congresso, segundo Bown, era: 27% Academia de Artes, que incluía: um Instituto de His-
de operários; 43% de camponeses; 13% de intelec- tória da Arte, um Museu, uma Biblioteca e diversos la-
tuais; outros grupos sociais e convidados estrangei- boratórios. Um decreto de abril de 1933 definiu a nova
ros, completavam os outros 17%. Academia como “uma instituição de pesquisa cientí-
Mas enquanto isso ocorria, a vida artística fervi- fica e científico-consultiva no campo das artes visuais
lhava. e espaciais, e também uma instituição para a prepa-
Em abril de 1932, um Decreto do CC do PCUS ração de quadros artísticos com maior qualificação.”.
havia fundado a União Nacional dos Artistas Sovié- Os métodos soviéticos de ensino de arte foram
ticos. Também foram criados comitês municipais de moldados para produzir pintores com alta formação
artistas em Moscou e Leningrado inicialmente e, técnica, o que deveria também “elevar a criação da
nos anos seguintes, em outras regiões do país. Nesse mais brilhante escola de pintura realista do século
novo contexto, encerrava-se o antagonismo entre os XX”, completa Matthew Bown.
diversos grupos e se criava uma força dominante no
mundo da arte. O comitê municipal dos artistas de Realismo Socialista?
Moscou, o mais importante, reunia artistas de vá-
rias categorias, não só pintores. Era um verdadeiro O próprio termo é contraditório. Segundo seus
“corpo de elite” – observa Bown – e durante a déca- teóricos, seria uma arte “realista em forma e socialis-

38
Capa

ta em conteúdo.”. Realista signi- verdade flutua, a verdade é desen-


fica fidelidade à verdade, ao real. Os métodos soviéticos volvimento, a verdade é conflito, a
Socialista significava com “con- de ensino de arte verdade é luta, a verdade é ama-
teúdo de classe” e em convergên- nhã e assim deve ser vista. Quem
cia com as ideias do Partido. O foram moldados para não vê isso assim é um realista
objetivo era influenciar o pensa- produzir pintores com burguês.”...
mento, o sentimento e o compor- O romantismo revolucionário
tamento das massas, reeducando
alta formação técnica, – que tinha como base ideias do
o povo no espírito do Socialismo. o que deveria também século 19 – se tornou um compo-
As palavras pravda – verdade – e “elevar a criação da nente natural: a arte deveria in-
pravdivost – verdadeiro – se tor- culcar amor pela vida e inspirar o
naram temas de amplos debates. mais brilhante escola sentimento da espera apaixonada
Muitos deles referindo-se aos de pintura realista do pelo futuro. E resgatava o papel
princípios do grupo “Os Itineran- do artista, como um ser diferente,
tes” do século 19, e pintores rea- século 20” que era capaz de enxergar além.
listas, entre eles Ilya Repin. “Embora fosse, é claro, um
Mas o conceito em si era pleno de idealismo! meio de justificar e fortalecer a propaganda partidá-
Logo se viu que havia uma contradição no termo ria, o poder desse Utopismo – tanto seu poder sobre
“realismo socialista”, pois a orientação era mostrar o os artistas quanto seu poder sobre o público – de-
futuro brilhante que o Socialismo traria. Mantinha correu do fato de que também era um reflexo dos
a visão utópica, eivada de “romantismo revolucio- sonhos e dos esforços das pessoas que sofreram e
nário” e de um otimismo obrigatório. Gorki, Jdanov, aguentariam enormes privações na esperança de um
Brodsky e Lunacharsky faziam esforços conceituais amanhã melhor”, explica Matthew Bown.
para dar coerência ao termo. Defendiam que Realis-
mo, no caso, era ter uma visão “dinâmica” do mun- Desenvolvimento da arte soviética
do. Não era a busca da documentação da realidade
como ela era, mas pintar a verdade sobre um país em Em 1932, a retomada do funcionamento da Aca-
mudança, ou seja, uma “verdade em movimento”. demia de Artes de Leningrado (São Petersburgo) e
Dinamov, em seu discurso para artistas de Moscou do Instituto de Pintura, Escultura e Arquitetura de
em 1932, disse: “Precisamos de realismo, mas não Moscou serviu, por si só, para dar um tremendo fô-
na compreensão pedante da palavra. Queremos que lego à formação artística de jovens russos. Duas ou-
o artista retrate não só o que é, mas o que será.”. Na tras grandes cidades também criaram suas próprias
tentativa de resolver essa contradição, Gorki defen- escolas de arte, como Kiev e Tbilisi. Estes estudantes
dia a necessidade de olhar para a vida atual “desde o tornaram-se objeto de especial atenção no mundo da
auge dos grandes objetivos do futuro.”. E Jdanov: a arte, inclusive fora do país. Havia exposições públi-
realidade “em seu desenvolvimento revolucionário.”. cas anuais de suas obras, em museus, fábricas, gale-
E Lunacharsky: “Uma pessoa que não entende o de- rias, lojas. O Museu Pushkin e a Galeria Tretyakov
senvolvimento nunca verá a verdade, porque a ver- receberam essas mostras; em uma delas participa-
dade não se parece a si mesma, ela não fica quieta; a ram cerca de 500 artistas.

Marusia – uma
mulher dos
anos 1920, Geli
Korzhev, 1983,
óleo sobre
tela, 97x226
cm, Coleção
privada.

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Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017

Além disso, nas maiores cida- Grandes exposições de arte


des também surgiam escolas de O movimento de arte ocorreram entre 1932 e 1939, in-
arte destinadas a crianças maio- pictórica realizado na cluindo duas internacionais: em
res de 12 anos, preparatórias pa- Paris (1937) e Nova Iorque (1939).
ra entrar nos grandes institutos URSS até 1989 é um A grande exposição da década, in-
de Moscou e Leningrado. “Igor evento a ser resgatado titulada A indústria do Socialismo,
Grabar observou em um artigo de inaugurada em Moscou em 1939,
1940 que estudantes destas esco-
por historiadores de atraiu dezenas de milhares de pes-
las já estavam realizando compo- arte, pesquisadores soas. Foi um enorme evento de ar-
sições profissionais aos 14 anos te, onde os artistas apresentaram
e artistas. Inclusive também imensos painéis e mu-
de idade”, observa Bown.
Emissários eram enviados pa- para rever o que foi a rais, além de centenas de pinturas
ra descobrir talentos jovens em verdadeira campanha de todos os formatos. Em 1942
todo o país. Um dos exemplos havia sido marcada uma exposi-
mais notáveis ​​foi o do jovem Ste- internacional de ção organizada por todos os sin-
pan Dudnik, um órfão que, na degradação da arte do dicatos intitulada Nossa terra nativa
década de 1930, estava fazendo destinada a marcar o 25º aniversá-
trabalho pesado na construção
Realismo Socialista rio da Revolução. Nela, os artistas
do Canal do Mar Branco. Sua ap- tinham livre escolha dos temas.
tidão para o desenho foi notada e, com a ajuda de Mas a Segunda Guerra impediu sua realização.
Gorki, ele foi enviado para fazer o curso de pintura Matthew Bown, nesse livro, faz um profundo es-
no Instituto de Moscou. tudo sobre a arte soviética que alcança até o final
Matthew Bown destaca que a origem social des- dos anos 1980. Mas nos focamos em sua pesquisa
ses artistas estudantes era de 80% a 90% feita de sobre os anos 1930, com o intuito de informar que,
operários e camponeses. A presença camponesa ain- muito além da imposição de uma estética para as
da era preponderante e, por causa disso – aponta o artes, as políticas culturais do governo soviético na-
professor – nota-se a grande quantidade de pinturas quele período causariam inveja a qualquer artista de
de paisagens ou cenas da vida no campo. país capitalista!
Sob direção do pintor Isaac Brodsky, em 1934, a O movimento de arte pictórica realizado na URSS
Academia de Leningrado mantinha o método de ins- até 1989 é um evento a ser resgatado por historiado-
trução acadêmica bastante rigoroso, com particular res de arte, pesquisadores e artistas. Inclusive para
ênfase no desenho. O sistema de ensino era basea- rever o que foi a verdadeira campanha internacional
do na observação da natureza e também nos estudos de degradação da arte do Realismo Socialista que
com modelo-vivo, considerado elemento central no atingiu até mesmo os comunistas. Não é possível
processo educacional. A mesma diferença de aborda- incluir no mesmo caldo, de forma monolítica, toda
gem na formação entre a Academia de Leningrado e a arte produzida naqueles país durante 70 anos! En-
o Instituto de Pintura de Moscou, que se iniciara no terrar o empreendimento criativo de artistas indivi-
século anterior, permaneceu: a Academia enfatizava a duais e rebaixá-los dentro do mesmo edifício crítico
disciplina do desenho acima de tudo, enquanto Mos- e curatorial desta visão reducionista é, no mínimo,
cou enfatizava as qualidades pictóricas, com ênfase leviandade acadêmica.
na pintura tonal e na prática da “pincelada ampla”.
Em dezembro de 1939, por ocasião do 60º aniver- * Mazé Leite é artista plástica, pesquisadora de
sário de Stalin, foi criado o Prêmio Stalin, que pagava história da arte, professora de desenho e pintura
até 100 mil rublos por trabalhos destacados nas ciên- no Ateliê Contraponto de Arte de São Paulo.
cias e nas artes. Isso era um incentivo excepcional
para os artistas, que também já recebiam inúmeros
pequenos outros prêmios e até mesmo Bolsas de es-
REFERÊNCIAS
tudo para sua formação nas grandes escolas de arte.
Com tanto incentivo, alguns artistas mais premia- BOWN, Matthew Cullerne. Realist Socialist Painting.
dos montaram seus estúdios, muitos com aquecimen- Londres: Yale University Press. New Haven & London.
to central e acessíveis por elevador, nos prédios da rua 1998.
Maslovka, que era uma verdadeira colônia de artistas GRAY, Camilla. O Grande Experimento. Arte Russa 1863-
em Moscou. Claro que havia escassez de material de 1922. São Paulo: Worldwhitewall, 2004.
arte, coisa que mereceu um artigo no jornal Pravda...

40
Capa

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Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017

Máximo Gorki, o escritor da


revolução proletária
José Carlos Ruy*

“A história do trabalho e da ação humana é bem


mais interessante e significativa do que a história
do homem como individualidade.”. Com esta frase o
escritor Máximo Gorki inicia seu texto Como aprendi a
escrever. Ela define o princípio básico de sua literatura
42
Capa

P
ara Gorki “não existem ideias fo- O “realismo socialista” tornou-se referência ofi-
ra do homem”, que é o “criador de cial – à revelia de Gorki – no I Congresso de Escrito-
todas as coisas, o criador de mila- res Soviéticos (1934), sob a batuta de Alexei Zdanov,
gres e o futuro senhor de todas as que se tornou desde então num verdadeiro autocrata
forças da natureza. As mais belas da cultura soviética. Naquele congresso, Zdanov fez
coisas deste mundo são as criadas um discurso, baseado num esrito de Gorki, e usado
pelo trabalho, por hábeis mãos, e todos os nossos amplamente como base para a edificação da doutri-
pensamentos e nossas ideias nascem do processo do na estética oficial do realismo socialista.
trabalho.”. Para Gorki, a luta titânica de seu povo e sua cons-
Filho de uma serva e de um rebocador de barcos cientização no conflito contra o czarismo, pela paz e
no rio Volga, Gorki nasceu em 16 de março de 1868 contra o capitalismo, é o tema permanente. Ele está
e foi batizado como Aleksei Maksimovitch Pechkov. presente, por exemplo, em um de seus livros mais
Desde os 10 anos teve que trabalhar para viver: foi importantes, A Mãe (1906), cuja ação se passa na re-
descarregador no porto, jardineiro, corista de teatro, volução malograda de 1905. E, por isso mesmo, se
ajudante de sapateiro, pintor de ícones, vendedor de destinava a não deixar esmorecer o ímpeto popular.
frutas, ferroviário e, sobretudo, padeiro. “Esse livro vem precisamente a tempo”, comentou
Sem frequentar escolas, tudo o que aprendeu lhe Lênin, o líder da Revolução Russa.
foi ensinado pelo que chamou ironicamente de “mi- A confiança na revolução, dirigida pelo partido
nhas universidades”: a vida. dos operários, não transparece apenas na literatura
Pechkov adotou o pseudônimo de Gorki (signi- de Gorki. Foi uma característica essencial de sua per-
fica “amargo”) em Tifilis, ao publicar sua primeira sonalidade, que cedo o levou aos grupos revolucio-
novela, em 1892. Considerado o maior escritor so- nários e ao marxismo. Na juventude, conheceu de-
viético, Gorki vai além do realismo tradicional e, portados e degredados políticos e soube que existia
escritor eminentemente proletário, abriu uma nova gente que lutava para transformar aquele mundo de
fase na literatura, dando continuidade ao grande miséria, pobreza, opressão e imensa exploração. Ele
realismo burguês do século 19, de Balzac, Stendhal próprio foi vítima de prisões e perseguições.
e Flaubert. Ele inaugurou um realismo de tipo novo, Sua atividade literária ligou-se intimamente à lu-
que alguns chamaram de “socialista”. O povo pobre ta política e revolucionária. Um verso de O anuncia-
e marginalizado é o personagem central de sua obra. dor da tempestade (Cantemos a loucura dos bravos) virou

O “realismo socialista” tornou-


se referência oficial – à revelia de
Gorki – no I Congresso de Escritores
Soviéticos (1934), sob a batuta de Alexei
Zdanov, que se tornou desde então um
verdadeiro autocrata da cultura soviética

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Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017

Gorki e
diferentes
capas de edições
do livro A Mãe,
sua obra mais
conhecida

verdadeiro apelo revolucionário a iluminar sua obra. tar, lê manuscritos, prefacia, corrige, explica, discute
Em 1903, já era um escritor de renome, se aproxi- linha por linha e, não conseguindo responder a cada
mou dos bolcheviques, aprofundando sua diferença um, escreve cartas coletivas dirigidas a grupos” de
em relação aos intelectuais liberais. escritores operários, registrou Nina Gourfinkel no
Em 1905, publicou, no diário bolchevique A Vida livro Gorki.
Nova, suas “notas sobre o espírito pequeno burguês”, Gorki dedicou-se à defesa e edificação de uma vi-
onde denunciou a vacilação e ridicularizou o como- da nova fazendo aquilo em que era mestre, escreven-
dismo e subjetivismo dessa camada social. Sua ativi- do e ensinando a escrever. Numa longa carta para
dade contra o governo czarista o levou ao exílio, que escritores estrangeiros, em 1932, ele falou da força
só terminou com a Revolução Russa de 1917. Bus- operária na criação de novas formas de vida e fez
cou animar a vida intelectual, principalmente com uma pergunta que completa aquela sua profissão de
a atividade cultural dos operários e do povo. Após fé no homem citada no início deste artigo: “De que
a Revolução, em 1918, tornou-se Comissário do Po- lado estão vocês, os mestres da cultura? Com a força
vo para a Melhoria das Condições de Existência dos operária da cultura, pela criação de formas novas de
Cientistas. vida, ou contra essa força, pela conservação da cas-
Em 1921 adoeceu e, por insistência de Lênin, foi ta de espoliadores irresponsáveis, da casta podre da
tratar-se no exterior, voltando à URSS em 1928, sen- cabeça aos pés, que continua agindo em virtude da
do então muito homenageado. O contato com a obra lei da inércia?”.
do regime socialista, que lançava as bases de uma vi- Gorki havia conquistado o direito de colocar esta
da nova para o povo russo, fez Gorki lançar-se ainda questão central da cultura de nosso tempo de ma-
com mais vigor na defesa dos interesses do proleta- neira tão inequívoca. Sua vida e sua obra o autori-
riado revolucionário. zavam a isso.
O romancista passou a compor obras autobiográ-
ficas e de reminiscências, que muitos consideram *José Carlos Ruy é jornalista, integra a equipe
aquilo que de melhor ele escreveu. Dedicou-se tam- editorial do Portal Vermelho. Texto baseado, com
bém a animar os jovens autores soviéticos, “atira-se modificações, em artigo publicado originalmente
para essa corrente literária que não cessa de aumen- em Tribuna da Luta Operária, 16 de junho de 1986

44
Capa

Universalidade e
singularidade histórica da
Revolução de Outubro
Parte I*
João Quartim de Moraes**

Paris 1871: o primeiro poder operário espectro. Como não considerá-la a confirmação de


que a tomada do poder político estava inscrita nas
forçoso constatar que não se verifi- linhas de força do movimento operário europeu?
caram as expectativas anunciadas no No entanto, longe de qualquer peroração retó-
Manifesto Comunista de que a classe rica, Marx e Engels manifestaram, tanto publica-
operária tomaria o poder nas socie- mente quanto em sua correspondência, muita in-
dades onde mais se desenvolvera o quietação diante das “circunstâncias extremamente
modo de produção capitalista. Entretanto, quando difíceis em que se encontrava colocada a classe ope-
formuladas por Marx e Engels em 1847-1848, essas rária francesa”, sobretudo perante a perspectiva de
expectativas configuravam uma forte possibilidade que a bancarrota política e militar do imperador Na-
objetiva. Não era fanfarronice a primeira frase do poleão, o pequeno, “estimulasse a ‘loucura desespe-
texto: “um espectro perambula pela Europa: o es- rada’ de tentar ‘derrubar o novo governo (1) quando
pectro do comunismo.”. Menos de um quarto de sé- o inimigo golpeia quase nas portas de Paris.’. [...].
culo depois, a Comuna de Paris veio incarnar este Os operários franceses devem cumprir seu dever de

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cidadãos; mas eles não devem, porém, se deixar ar- chances infalivelmente favoráveis. De outro
rastar pelos souvenires nacionais de 1792.” (2). Estas lado, esta história seria de natureza muito
ponderações se encontram no segundo Pronuncia- mística se os ‘acasos’ não desempenhassem
mento da Internacional sobre a guerra franco-alemã, nela nenhum papel. Estes casos fortuitos en-
datada de 9 de setembro de 1870. No dia 6, em carta tram naturalmente na marcha geral da evo-
a Engels, Marx tinha frisado que a presença deste lução e ficam compensados, por sua vez, por
era indispensável num momento em que toda a se- outros acasos. Mas a aceleração ou a desacele-
ção francesa (da Internacional) se pôs a caminho ração dependem muito de ‘acasos’ semelhan-
de Paris para ir lá fazer besteiras em nome da Inter- tes, entre os quais figura o ‘acaso’ do caráter
nacional. “Eles querem derrubar o governo provisó- dos chefes [...]” (8).
rio, estabelecer a Comuna de Paris, nomear Pyat (3)
embaixador da França em Londres etc. (nós grifa- Dez anos mais tarde, em carta que enviou em 22
mos) (4). Entrementes, as seções parisienses da In- de fevereiro de 1881 à militante socialdemocrata ho-
ternacional haviam lançado um landesa, F. Domela-Nieuwenhuls,
manifesto cujo “tom patrioteiro ele comentou a experiência revo-
(chauvin) mostra quanto os tra- lucionária de 1871 em termos crí-
Ao esmagamento
balhadores franceses ainda esta- ticos:
vam sob o domínio da fraseologia da Comuna de
vazia e confirma todas as apreen- Paris, os proletários “[...] abstração feita de que se
sões de Marx e de Engels.” (5). tratava de uma simples subleva-
Entretanto, a partir da jornada alemães tinham ção de uma cidade em condições
revolucionária de 18 de março de respondido pela excepcionais, a maioria da Comu-
1871, quando o proletariado pa- na não era socialista e nem podia
risiense tomou o poder na capital
resistência pacífica sê-lo. Com um mínimo de bom
e desencadeou-se a guerra civil e pelo combate senso, ela poderia, entretanto, ter
entre, de um lado, a Guarda Na- eleitoral. “Mostrando obtido de Versalhes um acordo
cional e os operários de Paris e, de útil a toda a massa do povo, úni-
outro, as tropas remanescentes do a seus camaradas de ca coisa que era possível atingir
exército imperial, que obedeciam todos os países como naquele momento. Se tivesse se
às ordens da alta burguesia ins- apropriado do Banco da França,
talada em Versalhes, Marx e En- servir-se do sufrágio ela teria logrado assustar os fa-
gels fizeram a solidariedade com universal, eles lhes lastrões de Versalhes.” (9).
a Comuna para passar adiante de
tinham fornecido uma
qualquer outra consideração, co- Não somente pelo heroísmo
mo mostram os textos que escre- nova arma das mais de sua luta, mas também por ter
veram durante a febril agitação do afiadas” esboçado um tipo novo de Esta-
grande combate histórico (6). Têm do, a Comuna incorporou-se à
especial interesse as ponderações memória das lutas proletárias.
de Marx em sua correspondência com Ludwig Kugel- Vinte anos depois, em 1891, Engels extraiu a mais
mann, o qual, em carta de 15 de abril de 1871, lhe importante lição histórica da epopeia dos “commu-
expressara sua angústia perante as previsíveis conse- nards”: “Ultimamente o filisteu socialdemocrata foi
quências de uma provável derrota: tomado de um terror sagrado ao ouvir pronunciar a
“A derrota privará novamente o movimento ope- expressão ditadura do proletariado. E bem, senho-
rário de seus chefes, por tempo bastante longo. Não res, querem saber com o que se parece essa ditadu-
subestime esta desgraça! Em minha opinião o pro- ra? Olhem para a Comuna de Paris. Era a ditadura
letariado tem no momento muito mais necessidade do proletariado.” (10).
de educação do que da luta com armas na mão. Im- Engels voltou a se referir à Comuna em 1895, ano
putar o insucesso a um acaso qualquer não é recair de sua morte, na Introdução a As lutas de classe na Fran-
no erro que o 18 de Brumário censura de maneira tão ça 1848-1850, coletânea de artigos de Marx que até
convincente nos pequeno-burgueses?” (7). então não tinham sido reunidos em forma de livro.
Marx replicou em 17 de abril: Com um olho posto nos franceses e outro nos ale-
mães, ele discute a tática do movimento operário à
“Seria evidentemente muito cômodo fazer a luz de meio século de combates, de Paris em 1848 e
história se só devêssemos travar a luta com 1871 a Berlim em 1895:

46
Capa

a melhor barricada.” (12).


O novo urbanismo dos
grandes boulevards tinha
também contribuído para
tornar bem mais difíceis
os combates de rua. “Seria
insensato o revolucionário
que escolhesse os novos
distritos operários do nor-
te e do este de Berlim para
um combate de barrica-
das.” (13).
Entrementes, o avanço
eleitoral do Partido Socia-
lista Alemão, que se servia
melhor do que os franceses
do sufrágio universal, ins-
tituído por Bismarck em
1866, parecia ter afastado
essas perspectivas catastró-
Pintura de Horace Vernet Barricadas na rua Soufflot retratando a Comuna de Paris ficas. Ao esmagamento da
Comuna de Paris, os pro-
“Com a Comuna de Paris, acharam que o pro- letários alemães tinham respondido pela resistên-
letariado combativo estava definitivamente cia pacífica e pelo combate eleitoral. “Mostrando a
enterrado. Mas, ao contrário, é da Comuna e seus camaradas de todos os países como servir-se do
da guerra franco-alemã que data seu mais for- sufrágio universal, eles lhes tinham fornecido uma
midável desenvolvimento. A completa trans- nova arma das mais afiadas.” (14). Com efeito, após
formação de todas as condições da guerra pelo resistir vitoriosamente aos doze anos de ilegalidade
recrutamento de toda a população apta a em- (1878-1890) a que os tinha condenado a lei de exce-
punhar as armas em exércitos cujos efetivos ção de 1878, os socialdemocratas tinham se tornado
se contam por milhões, as armas de fogo, os um grande partido de massa. Já em 1890, obtive-
obuses e os explosivos de efeito desconhecido ram a maior porcentagem dos votos para o Reichstag
até então [...] puseram bruscamente fim ao (19,8%); em 1893, atingiram 23,4%.
período das guerras bonapartistas e assegu- O curso da revolução proletária previsto no Ma-
raram o desenvolvimento industrial pacífico, nifesto parecia, pois, se confirmar novamente. A pos-
tornando impossível qualquer guerra que não sibilidade de levar adiante o combate pelo socialis-
seja uma guerra mundial de inédita crueldade mo pela via da luta de massas e da disputa do voto
e cujo desfecho seria absolutamente incalcu- pouparia à população as inevitáveis atrocidades da
lável.” (11). guerra. Como não saudar essa perspectiva? Por is-
so, analisando a situação concreta, considerou tática
A conexão guerra/revolução já aparecera na car- correta, para a Alemanha de então, a participação
ta de Marx a Domela-Nieuwenhuls como um fator nas eleições. Mas o otimismo não o fez perder de
antes negativo do que positivo. No horizonte his- vista a possibilidade de conjunturas históricas mais
tórico da Europa de 1895, parecia razoável supor sombrias. Sabia muito bem que, no plano dos princí-
que o poder destrutivo das novas armas exerceria pios, as alternativas insurreição ou voto, luta arma-
efeito dissuasivo sobre o militarismo das potências da ou luta pacífica, são táticas, posto que concernem
europeias, exorcizando o horrível espectro do triun- aos meios (forma de luta e de organização) e não
fo universal da morte e tornando plausível a hipó- aos fins (o programa comunista), mas também que
tese de um “desenvolvimento industrial pacífico”. meios e fins se interpenetram dialeticamente na ló-
As novas armas dissuadiriam também o recurso à gica da ação, tornando fugidia e imprecisa a linha
insurreição por parte das massas proletárias. “Ou- divisória entre decisão tática e objetivo programá-
trora, havia as relativamente pouco eficazes balas tico. Só a situação concreta pode indicar a melhor
e obuses da artilharia; atualmente há os obuses de tática a seguir. Por isso mesmo, Engels evita fórmu-
percussão dos quais basta um só para estraçalhar las peremptórias e generalizações apressadas, criti-

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Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017

cando os que apresentavam as eleições e a eventual passando a pregar, em nome do patriotismo, o resig-
conquista da maioria parlamentar como via decisiva, nado caminho do matadouro. Com honrosas e co-
senão única, para o socialismo. rajosas exceções, os deputados da socialdemocracia
renegaram os solenes compromissos assumidos pe-
Perante a catástrofe de 1914 rante a Internacional, votando em seus respectivos
parlamentos a favor dos créditos bélicos e apoiando
Confirmando o otimismo de Engels ao comemo- os governos de seus países na transformação da for-
rar na Introdução de 1895 o avanço político do prole- ça de trabalho em carne de canhão. A socialdemo-
tariado alemão, em 1912 a socialdemocracia obteve cracia alemã saiu na frente, aprovando no Reichstag
notável vitória eleitoral, tornando-se, com 34,8% dos o orçamento de guerra do Kaiser. Na França, o com-
votos e 397 deputados, o maior partido do Reichs- portamento mais lamentável foi o de Jules Guesde,
tag. Paralelamente, porém, contra- ao lado de Jaurès, o maior no-
riando sua expectativa sobre a paz, me do socialismo francês. Ele
a grande indústria gerou trustes e Como bem notou Luigi não somente aderiu à “Union
cartéis monopolistas, empenhados, sacrée” (bloco bélico de todos
com apoio da máquina bélica de Cortesi, até 1914, “a os partidos para enfrentar a
seus Estados respectivos, em tenaz lógica da transição Alemanha), mas foi ministro
disputa pelos territórios coloniais e do governo de guerra de 1914
pelo controle do mercado mundial.
para o socialismo a 1916 (15). Apesar de carregar
Essa disputa pela supremacia pla- estava incluída na o epíteto de renegado, Kautsky
netária exacerbava as contradições própria lógica do não foi tão longe na trilha do
entre as grandes potências imperia- social-patriotismo.
listas, fazendo pairar no horizonte desenvolvimento As exaltantes esperanças
o espectro de uma guerra de gran- capitalista, que expressas no Manifesto, de que a
des proporções. As correntes mais classe operária europeia iria se
avançadas do movimento operário em certo sentido a libertar do capital e, libertan-
compreenderam a gravidade da garantia, e a revolução do-se, emanciparia a humani-
ameaça e mobilizaram-se contra a dade, encontraram seu ponto
socialista eclodiria
escalada belicista. Em 24 e 25 de de inflexão no dilúvio de fogo,
novembro de 1912, reunidos num da plenitude daquele chumbo, aço, explosivos e gases
congresso extraordinário em Basi- desenvolvimento” tóxicos que em julho/agosto de
leia, os partidos da II Internacional 1914 mudou brusca e catastro-
adotaram, num clima carregado de ficamente o curso da história
entusiasmo, mas também de apreensão, um mani- mundial. Como bem notou Luigi Cortesi, até 1914,
festo em que assumiam o compromisso solene de “a lógica da transição para o socialismo estava in-
lutar contra a guerra. Nesse manifesto foi incluída cluída na própria lógica do desenvolvimento capita-
uma resolução que Lênin apresentara em 1907 ao lista, que em certo sentido a garantia, e a revolução
Congresso anterior da Internacional em Stuttgart, socialista eclodiria da plenitude daquele desenvolvi-
de que caso a guerra fosse desencadeada, os partidos mento”; porém, com o desencadeamento da guerra,
socialistas deveriam fazer da situação caótica que ela Lênin, que até então também partilhava deste oti-
criaria o fermento da revolução socialista. mismo, compreendeu que aquela lógica tinha sido
Alguns dirigentes da II Internacional honraram rompida “porque a plenitude do desenvolvimento
este compromisso. O francês Jean Jaurès, orador capitalista coincidia com uma crise que estava amea-
principal no Congresso de Basileia, junto com a ale- çando a essência mesma da civilização humana mo-
mã Clara Zetkin, pôs-se à frente da luta para barrar derna.” (16). Esta explicação final nos parece menos
o avanço do belicismo, que em nome da defesa da feliz. Que entender, com efeito, por “essência mes-
pátria exacerbava o ódio entre os povos. Ele foi as- ma da civilização moderna”? Melhor será considerar
sassinado por um extremista de direita na tarde de dialeticamente que civilização e barbárie são os con-
31 de julho de 1914, quando a guerra explodia. Na trários de uma mesma unidade, o próprio capitalis-
Alemanha, além de Zetkin, destacaram-se nesta luta mo em sua etapa imperialista.
Rosa Luxemburgo, Karl Liebknecht e Wilhelm Pieck. Desmentia-se assim, na lava e no magma ensan-
Majoritariamente, porém, deflagrada a guerra, os guentado dos campos de batalha europeus, a expecta-
dirigentes da maioria oportunista da socialdemo- tiva otimista de que chefes de Estado, parlamentares,
cracia desarmaram politicamente a classe operária, generais e círculos dirigentes da burguesia, anteven-

48
Capa

do as tenebrosas perspectivas de um con-


fronto bélico generalizado, se abstives-
sem de recorrer aos métodos armados de
solução dos conflitos internacionais. Na
base deste erro de avaliação estava a ideia
de que o desenvolvimento industrial seria
pacífico.
A cisão entre a maioria social-patrio-
ta e a minoria socialista revolucionária
introduziu no movimento operário euro-
peu uma amarga e duradoura ruptura.
Mas a capitulação dos dirigentes da ala
majoritária não explica tudo. O fato de
que a massa dos trabalhadores, subme-
tida a um rígido enquadramento mili-
tar, tenha se deixado empurrar para as
enormes carnificinas do front mostra
antes de mais nada o brutal poderio da
máquina do Estado. As deserções eram
punidas com penas severíssimas, fre-
quentemente com fuzilamento (17). A
hecatombe foi pavorosa: morreram na grande guerra transformações capta a dialética de seu desenvolvi-
de 1914-1918, segundo os dados oficiais, 9.720.453 mento histórico, notadamente a transformação do
combatentes e 8.871.248 civis. A ilusão de que a quantitativo (acumulação do capital) em qualitativo
guerra seria rápida contribuiu, ao lado dos ódios na- (capitalismo de monopólios) e a unidade (imperia-
cionais, para reduzir a resistência à lógica perversa lismo) dos processos que o constituem (19).
do belicismo (18). Entre agosto de 1916 e março de 1917, Lênin ti-
A estatura de Lênin assumiu toda sua grandeza rou as conclusões políticas da teoria que ele vinha de
quando, não se contentando em denunciar o fato formular, discutindo aprofundada e pormenorizada-
consumado da traição socialdemocrata, ele empe- mente os diferentes aspectos da luta de classes con-
nhou-se em analisar os fatores objetivos que expli- tra a guerra imperialista. A mais importante e ino-
cavam a deflagração do confronto bélico generaliza- vadora destas conclusões consistiu na compreensão
do, cuja possibilidade Engels havia discernido, mas de que na época do imperialismo a revolta dos povos
considerado improvável. coloniais tendia a se juntar ao combate revolucioná-
A exposição sintética destes fatores está numa de rio do proletariado:
suas obras merecidamente célebres, Imperialismo, es-
tágio superior do capitalismo, escrita na Suíça em 1916. “cometeríamos um erro grave se esquecêsse-
O caráter inovador da obra está já expresso no título: mos de que toda guerra não é senão a conti-
seu conceito fundamental, imperialismo, não figura nuação da política por outros meios; a guerra
nos textos dos fundadores. Lênin não o inventou; imperialista é a continuação da política impe-
apropriou-se dele criticamente, a partir da leitura rialista de dois grupos de grandes potências
do liberal inglês John Hobson e do marxista alemão e esta política é gerada e alimentada pelo
Hilferding (mais tarde assassinado pelos nazistas). conjunto das relações existentes na época do
As teses centrais que ele defende, baseado em vasta imperialismo. Mas esta mesma época deve
e sólida documentação, selecionada com objetivida- também, necessariamente, gerar e alimentar
de, definem a etapa imperialista do modo capitalis- a política de luta contra a opressão nacional
ta de produção por cinco transformações principais: e a política de luta do proletariado contra a
(1) concentração do processo produtivo, gerando os burguesia: por conseguinte, ela deve tornar
monopólios; (2) predomínio do capital bancário so- possíveis e inevitáveis, em primeiro lugar, as
bre o industrial, formando a oligarquia financeira; insurreições e as guerras nacionais revolucio-
(3) predomínio da exportação de capitais sobre a de nárias; em segundo lugar as guerras e os le-
mercadorias; (4) divisão econômica do mundo entre vantes do proletariado contra a burguesia; em
os trustes; e (5) conclusão da divisão territorial do terceiro lugar uma fusão destas duas formas
planeta entre as grandes potências. A análise dessas de guerras revolucionárias etc.” (20).

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Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017

Não é preciso insistir em que estão aí delineadas


(10) ENGELS, F. Introdução de 1891 a La guerre civile en France,
as linhas de força da história mundial no século 20. ibidem, p. 301-302.
Tenha ele sido curto ou não, não se pode entendê-lo (11) ENGELS, F. Introdução de 1895 a Les luttes de classe en France.
sem a teoria do imperialismo formulada por Lênin Paris: Éditions Sociales, 1974, p. 22-23.
em 1916. (12) IBIDEM, p.29.
(13) IBIDEM, p.30.
(14) IBIDEM, p. 24.
*Esta é a primeira de três partes deste texto a (15) Contrastamos as trajetórias de Jaurès e de Guesde em Crítica
serem publicadas por Princípios. As próximas Marxista, n° 24 (2007), na Apresentação (p. 139-141) de O socia-
duas partes serão publicadas nas edições lismo francês em 1900: o grande debate entre Jean Jaurès e Jules
152 e 153. Guesde (p. 142-172), na qual notamos, a propósito de Guesde,
que após se opor a qualquer colaboração com governos burgue-
ses, em nome da pureza revolucionária, aceitou participar, junto
com outros “social-patriotas”, do governo dito de “União Sagrada”
que dirigiu a França beligerante durante a horrível carnificina de
**João Quartim de Moraes, filósofo marxista, é 1914-1918.
professor titular (aposentado) de Filosofia da (16) CORTESI, Luigi. Lenin e il problema dello Stato (Lênin e o
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É problema do Estado). In: LOSURDO, Domenico; GIACOMINI, Rug-
autor, entre outros, dos livros A Esquerda Militar gero (orgs.). Lenin e il Novecento (Lênin e o século 20). Napoli: La
no Brasil e História do Marxismo no Brasil Città del Sole, 1997, p. 244. O livro é resultado de um colóquio
transcorrido em janeiro de 1994 em Urbino, Itália. Comentamos
os principais estudos dessa obra coletiva em Crítica Marxista, n°
10 (2000), p.133-144.
(17) Um dos episódios mais horríveis dessa barbárie em escala
NOTAS continental foi a “batalha imunda” do Chemin des Dames, iniciada
em 16 de abril de 1917 (a expressão é de Gilles Lapouge, corres-
(1) Um “governo de defesa nacional”, controlado por políticos da pondente na França do jornal O Estado de S. Paulo): “O Chemin des
burguesia, tendo à frente o ignóbil Thiers, tinha substituído Napo- Dames foi duas vezes infame. Em primeiro lugar, por causa da de-
leão, o pequeno. mência vaidosa do general Nivelle, que lançou ondas de soldados
(2) MARX, K. La guerre civile en France. Paris: Éditions Sociales, contra as implacáveis posições alemãs, provocando em 15 dias
1968, p. 289. A alusão de Marx aos souvenires (em itálico no origi- de 60 mil a 70 mil mortes. Inutilmente. Esses soldados, esgota-
nal) de 1792 remete à palavra de ordem “a pátria está em perigo”, dos por três anos de guerra, doentes, vivendo como ratos na lama
com a qual o povo se mobilizou e repeliu os exércitos da reação das trincheiras, feridos, desprezados por seus chefes, revoltaram-
absolutista que atacavam a França, salvando a República. Marx -se [...]. Segunda ignomínia: [...] O general Pétain pôs então ordem
alerta contra a transposição automática desta palavra de ordem nas fileiras do Exército e acabou com os motins. Como? Mandando
à situação de 1870. fuzilar 49 soldados” (Jospin arrasa hipocrisia francesa de 80 anos,
OESP, 8-11-1998, p. A29). Vale lembrar que, em 1940, o mesmo
(3) Félix Pyat era um desses radicais falastrões, sincero em suas
Pétain capitulou diante da Alemanha e se tornou chefe de um go-
convicções, mas confuso, briguento e trapalhão.
verno fantoche a serviço do III Reich hitleriano.
(4) Citado na introdução de La guerre civile en France, Paris: Édi-
(18) Domenico Losurdo assinalou outra infame perversidade da
tions Sociales, 1968, op. cit., p. 10.
barbárie bélica: o uso não somente de seus próprios povos, mas
(5) IBIDEM, p. 10-11. também das populações coloniais africanas e asiáticas como carne
(6) Entre os escritos que Marx consagrou à Comuna estão (ou esta- para canhão. Infâmia na infâmia, em vez de manifestar gratidão a
vam, posto que quase todas foram perdidas) as cartas diretamente esses homens arrancados de suas terras natais para serem alvos
enviadas a dirigentes do proletariado revolucionário, três cartas da metralha, da artilharia e dos gases tóxicos numa guerra com a
preservadas para correspondentes alemães, dois “ensaios de re- qual não tinham estritamente nada que ver, o filósofo liberal Be-
dação” de A guerra civil na França e o Pronunciamento (Adresse) nedetto Croce lamentou que a França tivesse festejado “selvagens
do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores bárbaros, senegaleses e gurkas indianos que pisavam sua doce
(AIT, mais conhecida por I Internacional), o primeiro, redigido pro- terra.” (18). Ver LOSURDO, D. Losurdo. O liberalismo entre civiliza-
vavelmente em abril e início de maio de 1871, e o segundo antes ção e barbárie. São Paulo: Anita Garibaldi, 2006, p. 33, que remete
do massacre desencadeado em 21 de maio, já que Marx nele se a CROCE, B. Frammenti di etica (1922). In: Etica e politica (1930),
refere ao previsivelmente trágico desfecho como ainda não tendo reedição: Bari, Laterza, 1967, p.143.
ocorrido (diz “se eles vencerem” referindo-se a Thiers e sócios) e, (19) LÊNIN, V. I. Impérialisme, stade suprême du capitalisme. In:
enfim, o Pronunciamento, escrito entre 21 e 30 de maio, durante e Oeuvres, tome 22, Paris-Moscou: Éditions Sociales/du Progrès,
logo após a “semana sangrenta”. 1960, p. 287. A exposição das cinco principais características da
(7) Texto citado na introdução de La guerre civile en France, ibidem, transformação imperialista do capitalismo ocupa boa parte do li-
p. 15. vro.
(8) MARX, K.; ENGELS, F. Correspondance. Moscou: Éditions du Pro- (20) LÊNIN, V. I. Le programme militaire de la révolution proléta-
grès, 1971, p. 268. rienne. In : Oeuvres, tome 23, Paris-Moscou: Éditions Sociales/du
(9) IBIDEM, p. 348. Progrès, 1959, p.87-88.

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Brasil

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Luciana Santos:
O centro dos debates é a luta
por novos rumos para o país
Foto: Richard Silva

Princípios publica a seguir trechos do informe apresentado pela


presidenta do Partido Comunista do Brasil, deputada Luciana
Santos, durante o 14º Congresso do PCdoB (Brasília, 17-11-2017)

O
objetivo central do 14º Congresso construir um amplo movimento, político, econômi-
do PCdoB é dar resposta ao prin- co, social, cultural, uma Frente Ampla envolvendo
cipal anseio da Nação e da classe as forças democráticas, populares, de esquerda e pa-
trabalhadora na atualidade: reti- trióticas. Para o PCdoB, esse projeto nacional, essa
rar o país da crise e encaminhá-lo nova agenda para o país, deve ter os seguintes fun-
a novos rumos, do desenvolvimento e do progresso damentos: a defesa do Brasil, de sua soberania, de
social. O projeto de resolução fundamenta, aponta suas riquezas; a recomposição, o fortalecimento e a
uma nova tática. É fundamental, no curso da luta, democratização do Estado nacional; a restauração

52
Documento
da democracia e do Estado de Direito; a retomada do superpotência estadunidense e a emergência de no-
desenvolvimento; a valorização do trabalho e o res- vos polos de poder econômico, político, diplomático e
gate dos diretos da classe trabalhadora, dos direitos militar, no mundo. O fenômeno mais representativo
sociais do povo. da tendência mundial é o protagonismo. Nações em
Nossa tática está em plena sintonia com o Pro- desenvolvimento atuando em parceria estratégica,
grama Socialista do PCdoB, que concebe a luta por em espaços como o BRICS (acrônimo de Brasil, Rús-
um Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento co- sia, Índia, China e África do Sul). São países onde o
mo o caminho brasileiro para o Estado tem tido um papel central
socialismo. Em meio ao denso na estratégia de desenvolvimento,
nevoeiro que paira sobre o Brasil, controlando setores estratégicos
nosso desafio é abrir clarão, aju- A resultante como grandes empresas e bancos
dar a dar perspectivas. Não nos de fomento, fazendo uso da polí-
intimidamos com as adversida-
destes fatores é tica externa como instrumento do
des. É por isso que “faz escuro, o fortalecimento desenvolvimento.
mas eu canto!”. das tendências à A resultante destes fatores é
o fortalecimento das tendências
Balanço na condução do multipolaridade e a à multipolaridade e a desconcen-
Partido desconcentração do tração do poder hegemônico dos
EUA que, sob Trump, adotam uma
O Congresso também debate poder hegemônico dos retórica belicista e atitude hostil
o balanço do trabalho do Partido EUA que, sob Trump, às demais nações contribuindo
no último período. Devemos ex- para a perda cada vez maior de
trair lições desse espaço de tem-
adotam uma retórica influência.
po vivido de forma crítica e au- belicista e atitude Neste cenário, a China So-
tocrítica, tendo em vista planejar hostil às demais cialista se destaca como um dos
as ações para o período seguinte. polos dinâmicos desse reordena-
Por ser essencialmente político, nações contribuindo mento do Globo e demonstra que
deve levar em consideração o para a perda cada vez a alternativa socialista é viável,
contexto em que se desenvolve- factível, e responde aos anseios da
ram a atividade política e as três
maior de influência humanidade por paz, desenvolvi-
esferas da vida partidária. Trata- mento e progresso social.
-se de um período de grandes re-
viravoltas e instabilidade políticas, no qual o PCdoB Reações do imperialismo ameaçam a
soube, de um modo geral, se posicionar buscando paz e a luta dos povos
sempre apresentar saídas.
É no bojo deste cenário complexo que se dá a Vivemos uma mudança de época que abre pers-
transição na presidência do PCdoB, iniciada a par- pectivas para os países com projetos nacionais. No
tir da 10ª Conferência Nacional, em maio de 2015. entanto, isso não ocorre de modo pacífico. As potên-
Existe uma curva natural de aprendizagem, a qual cias imperialistas reagem com virulência, com vistas
esperamos estar enfrentando da melhor maneira a conter a emergência e a consolidação de uma nova
possível, e buscando responder às expectativas do ordem. Ao mesmo tempo, os EUA empregam o uso
coletivo partidário. Tem sido um processo de aqui- de novas técnicas para produzirem conflitos de bai-
sição de novas experiências, de superação de di- xa intensidade. Os conflitos de quarta geração são
ficuldades, sejam elas de nível pessoal ou no pla- assimétricos e diversificados. Eles utilizam ataques
no político. O desafio principal para enfrentarmos cibernéticos, notícias falsas, guerras comerciais, de-
esta quadra é a busca permanente da unidade e sestabilização de governos com as revoluções colori-
confiança, e a afirmação do método da inteligência das, até a difusão por meios acadêmicos de ideias e
coletiva. ideologias que buscam fragmentar os grandes Esta-
dos da periferia.
Conflitos e tensões no mundo, No entanto, os povos estão em luta, e não se
ofensiva imperialista e luta dos povos dobram ante as ameaças e as agressões das forças
imperialistas. Aproveitamos a oportunidade para
A principal característica da conturbada transi- reafirmar o caráter internacionalista do PCdoB e seu
ção em curso é o declínio relativo da hegemonia da compromisso com a solidariedade aos povos em luta

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Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017

e destacar centralidade da luta anti-imperialista e a Extrair lições do ciclo progressista


bandeira da paz. para impulsionar um novo rumo de
desenvolvimento
A crise sistêmica e estrutural do
capitalismo, os trabalhadores e as Pela primeira vez uma coalizão de forças lidera-
transformações no processo produtivo das pela esquerda ganhou consecutivamente qua-
tro eleições no Brasil. Buscamos em nossa análise
Outro fator estruturante do cenário internacio- uma visão multilateral, que compreende os impor-
nal é a crise pela qual passa o capitalismo, que tem tantes avanços obtidos nas distintas esferas, e os
na atualidade a financeirização e erros e limitações, associados à
o rentismo como características intensa luta de classes vivida ao
centrais. Passados dez anos des- longo do período, em particular
de o seu início, a crise aguçou as Desde a 10ª no governo da presidenta Dilma.
contradições sociais no interior Apesar dos muitos acertos, erros
das nações, bem como os confli-
Conferência do
e limitações também se fizeram
tos internacionais. nosso Partido, em presentes. Algumas próprias de
Outro aspecto de grande rele- maio de 2015, uma experiência nova, outras
vância é a rápida transformação resultantes de incompreensões
no processo produtivo indus- vínhamos afirmando de fundo da força que liderava
trial, que irá – em curto espaço que se gestava um a condução do processo político
de tempo – realizar profundas governamental.
mudanças no modo de produ- consórcio golpista A nosso modo de ver, o princi-
ção, e transformações no mundo que buscava apear as pal erro foi haver subestimado a
do trabalho. A chamada quarta questão nacional e não haver al-
forças democráticas e
revolução industrial produzirá terado a superestrutura do Esta-
impactos de longo alcance sobre progressistas do poder. do, com a realização de reformas
a produtividade, repercutindo na Buscamos, ao longo estruturais, aspecto que impôs li-
divisão mundial do trabalho e no mites ao próprio projeto. Não foi
comércio internacional, no perfil deste período, não só realizada uma reforma política
do emprego. alertar, mas também democrática, não se realizou uma
sugerir caminhos e reforma nos meios de comunica-
No limiar do século 21 o ção, reforma tributária. E, embo-
socialismo vive e inspira meios para evitar o ra com muitas inflexões políticas
a humanidade golpe. O golpe era no tripé macroeconômico, ousa-
mos pouco na política cambial –
A grande questão de nosso evitável. Fica uma o que não ajudou a retomada da
tempo é a alternativa. Nesta qua- lição com respeito ao atividade industrial.
dra da história, onde o cenário A falta de compreensão em
internacional passa por processos exercício do poder: torno do poder político corro-
de transformação, a luta ideológi- ele existe para ser borou para a não compreen-
ca que travamos é de grande en- são de que havia um golpe em
utilizado, exercido em
vergadura: Existe ou não alterna- curso. Desde a 10ª Conferência
tiva ao capitalismo? plenitude; do contrário, do nosso Partido, em maio de
O socialismo nasce no sécu- se é expelido dele 2015, vínhamos afirmando que
lo 20, com a gloriosa Revolução se gestava um consórcio golpis-
Russa – que neste mês celebra ta que buscava apear as forças
seu centenário –, e se desenvolve democráticas e progressistas do
no século 21 como a grande alternativa para os di- poder. Buscamos, ao longo deste período, não só
lemas da humanidade. A nova luta pelo socialismo alertar, mas também sugerir caminhos e meios pa-
se ergue da brava resistência dos trabalhadores e das ra evitar o golpe. O golpe era evitável. Fica uma
trabalhadoras e das nações contra as iniquidades do lição com respeito ao exercício do poder: ele existe
sistema dominante. Alimenta-se do poder criador para ser utilizado, exercido em plenitude; do con-
do marxismo, que se mostra capaz de interpretar os trário, se é expelido dele.
grandes dilemas e problemas da atualidade.

54
Documento
Foto: Richard Silva

Fortalecer o PCdoB e
elevar seu papel na
luta política

Na atual quadra da luta po-


lítica, na cada vez mais com-
plexa sociedade brasileira, a
exigência de uma força como
o Partido Comunista do Brasil
se faz necessária. Um partido
forte, com solidez ideológica,
flexibilidade e amplitude táti-
ca, que compreenda a nature-
za e os anseios do nosso povo,
uma força organizada, com
ampla militância em distin-
tas esferas da sociedade e com
unidade política e de ação.
O PCdoB tem tido clare-
za ao se posicionar no curso
desta crise. Desde o primei-
ro momento, travou a lu-
ta de ideias denunciando a
existência de uma ameaça
golpista; se posicionou nas
ruas e no parlamento na defesa da democracia e mos nos espelhar. É tarefa de todo o Partido pôr foco
do mandato da presidenta Dilma Rousseff; buscou no esforço de atingirmos as metas de arrecadação.
criar saídas, como a proposta da realização de um
plebiscito sobre a antecipação das eleições presi- O Brasil vive uma acirrada luta
denciais; e tem realizado determinada oposição ao política em um quadro singular
governo Temer.
O desafio do PCdoB é ser uma organização gran- Desde que as forças de direita sofreram sua
de, com militância diversificada, forte presença entre quarta derrota consecutiva nas disputas eleitorais
os trabalhadores, com quadros comprometidos com presidenciais, o país tem vivido uma tensão em es-
nosso programa. Precisamos falar largamente com piral. A quebra da normalidade democrática, com a
a sociedade, apresentar nossas proposições, buscar realização de um impeachment sem base legal, fragi-
maior visibilidade, se diferenciar política e eleitoral- lizou as instituições e o equilíbrio entre os poderes.
mente entre as forças políticas. Vamos aproveitar a O combustível da dinâmica política bebe na insta-
nossa pré-candidatura e realizar filiações, e apresen- bilidade e na imprevisibilidade que se retroalimen-
tar o PCdoB e seu programa. tam velozmente, não existindo uma única semana
Não podemos descuidar do Partido. Dar atenção sem um fato grave no cenário político nacional.
ao trabalho nas três esferas de acumulação – luta Este quadro é conformado por uma sequência de
de massas, luta de ideias e luta institucional. É da crises múltiplas e simultâneas, que modelam o am-
simbiose delas que emergem nossa força e nosso di- biente atual.
ferencial enquanto partido. Para os próximos anos,
tendo em mira o centenário de nossa legenda em Um governo ilegítimo contra o Brasil e
2022, exige-se um Partido com ação planejada, mais o povo
unido, mobilizado, estruturado e autossustentado,
principalmente nas capitais e nos munícipios estra- O golpe em curto espaço de tempo tem produ-
tégicos. zido sequelas graves ao Brasil e sua gente. Desde
Atenção especial deve ser dada à contribuição sua realização, temos vividos imersos em uma ra-
militante, dimensão estratégica do trabalho de cons- dical agenda de desmonte do Estado e de quebra
trução partidária. Existem inúmeros exemplos de de direitos. Promove-se uma célere desconstrução
exitosas campanhas de arrecadação, nas quais deve- do texto constitucional de 1988. As consequências

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Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017

destes fatos para o Brasil são profundas e colocam ral. No entanto, o anseio de uma mudança da atual
em risco em nosso país o comum projeto político situação e a ânsia por esperança da grande maioria
independente e autônomo. Por isso deve ser dado da população tendem a pautar a disputa política. No
um basta imediatamente ao governo ilegítimo que debate de projetos, a bandeira da esperança está em
tomou de assalto o Congresso Nacional! nossas mãos.
No entanto, o governo Temer, com toda sua fragi-
lidade e vulnerabilidade, tem o apoio do grande ca- Partido da Lava Jato
pital, de parcelas do poder Judiciário e dos meios de também se prepara para a disputa
comunicação. Ao longo dos 18 meses que se encon- de 2018
tra ocupando ilegitimamente a cadeira presidencial,
aprovou o que quis no congresso – utilizando os mé- O PCdoB se pauta pelo zelo e defesa do patri-
todos mais reprováveis. Derrotou mônio público e defende eficaz
a ofensiva que contou com apoio combate à corrupção. Entretan-
da Globo, arquivando dois pe- to, tem uma leitura crítica da
didos de investigação contra ele O grande partido de Operação Lava Jato. O grande
feitos pela Procuradoria-Geral da oposição aos governos partido de oposição aos governos
República (PGR). Lula e Dilma era a grande mídia.
Lula e Dilma era a No entanto, se formou uma nova
Centro da luta política grande mídia. No coalizão, informal, indireta que
se volta para as eleições entanto, se formou reúne expoentes do Ministério
de 2018 Público Federal, do poder Ju-
uma nova coalizão, diciário e da polícia federal, so-
Ressaltamos a disputa presi- informal, indireta que mados à parte dos meios de co-
dencial de 2018 como a principal municação, em particular a Rede
arena da luta de classes, no pre-
reúne expoentes do Globo. A esta coalizão temos de-
sente período. O PCdoB buscará Ministério Público nominado de Partido da Lava Ja-
protagonismo nesta disputa. Irá Federal, do poder to, o principal fator de desestabi-
contribuir para abrir veredas e lização do país. O protagonismo
novos rumos para o Brasil. Judiciário e da polícia político dos expoentes da Lava
Teremos uma eleição presi- federal, somados à Jato é indevido, fere a democra-
dencial atípica pelas particulari- cia e o sistema de contrapesos
dades de ser realizada após uma parte dos meios de entre os poderes.
fratura democrática; e épica, pois comunicação, em A população começa a se dar
o país uma vez mais se depara conta de que a Lava Jato tem
com uma encruzilhada histórica
particular a Rede motivações políticas, que não
entre dois projetos antagônicos. Globo. A esta coalizão atinge o presidente ilegítimo e a
Ou o Brasil seguirá sob as rédeas temos denominado de seus amigos com malas e aparta-
do campo político conservador mentos lotados de dinheiro. Pre-
em transição a uma ordem libe- Partido da Lava Jato, vendo o desgaste, a Lava Jato se
ral, neocolonialista e autoritária; o principal fator organiza para participar da dis-
ou o nosso país, sob a direção de puta das eleições de 2018, com
uma Frente Ampla, de caráter de-
de desestabilização dois focos. O primeiro é consti-
mocrático, popular e patriótico, do país tuir uma bancada comprometida
reverterá as medidas regressivas com os pilares da operação: dela-
do governo ilegítimo e se prepa- ção premiada, prisão em segun-
rará para a retomada de um novo projeto nacional da instância, condução coercitiva e restrição do Fo-
de desenvolvimento. ro Privilegiado. O segundo é a caçada sem tréguas,
Outros fatores tendem a incidir sobre o proces- e sem lei, ao ex-presidente Lula contra seu legíti-
so da disputa política de 2018. No quadro das crises mo direito de concorrer às eleições presidenciais de
simultâneas que vivemos, fatores como as ações de- 2018. Seria este ato a consumação do golpe. Reafir-
sestabilizadoras do Partido da Lava Jato, os impactos mamos, neste momento, uma vez mais o legítimo
e desdobramentos da situação econômica, propostas direito de Lula concorrer às eleições. Sua exclusão
como semipresidencialismo e o fenômeno da antipo- do processo irá ampliar a instabilidade e a crise ins-
lítica podem incidir sobre o curso da disputa eleito- titucional que estamos vivendo.

56
Documento
Foto: Richard Silva

Campo conservador busca um


candidato para levar adiante a agenda
do golpe

O campo das forças conservadoras possui um


objetivo estratégico: encontrar um candidato que
consiga fazer a disputa política e ganhar no voto a
continuidade da agenda de desmonte e ataques aos
direitos que tem implementado no país. Disputam
entre si o espólio do golpe, e a possibilidade de lide-
rar uma coalizão que conduza a um novo ciclo políti-
co no país com uma agenda neocolonial e neoliberal
como norte.
Embora em posição de vantagem, por estar no
comando do país, por contar com apoio da mídia e
de parcelas do Judiciário, o campo conservador en-
contra dificuldades em materializar seu objetivo. As
últimas pesquisas indicam que nenhum dos nomes
do PSDB, principal partido do campo conservador,
ultrapassava 1% nas intenções de voto espontâneas, essenciais da luta pela retomada do projeto nacional
e não passava de 7% nas intenções de voto estimu- de desenvolvimento.
lado. Somos e estamos no mesmo campo. Os nomes
que surgem para a disputa eleitoral possuem a legiti-
O Espectro do espectro de centro midade e a força de suas ideias. O ex-presidente Lula
continua fluido e em disputa será o centro das eleições sendo ou não candidato,
sua participação ou não no pleito irá determinar os
O campo político de centro é fluido e disperso. Ele rumos do jogo político. Tem estado em plena ativida-
é impactado pela desmoralização da política e pelo de política, realizando caravanas e buscando fortale-
cansaço da campanha messiânica contra a corrup- cer seu partido, o PT, e do mesmo modo Ciro Gomes
ção. Parcela destes setores se sentiu ludibriada com o em seus debates públicos país afora.
impeachment e percebeu que, depois que a presidenta Estamos credenciados a disputar as eleições pre-
Dilma foi afastada, suas vidas pioraram, a corrupção sidenciais, como bem demonstra o grande êxito do
generalizou-se, seus direitos estão ameaçados. É um governo Flávio Dino no Maranhão, e de Edvaldo
setor silencioso, que em muitos casos vestiu a cami- Nogueira em Aracaju. No Maranhão são 500 obras
sa da antipolítica, mas que, no entanto, tende a par- entregues em mil dias, que têm mudado a vida das
ticipar do debate e votar na eleição presidencial, que pessoas, elevando a autoestima do povo. A gestão
no Brasil tem uma força mobilizadora única. Parte exitosa anda em conjunto com o trabalho de cons-
das legendas e parlamentares de centro se articula trução partidária, o Partido avança no Maranhão,
no chamado Centrão, apoiando Temer, enquanto ou- sua delegação é a maior do nosso Congresso. Ambos
tra banda quer tomar distância do governo ilegítimo. governos são a prova de que os comunistas são ca-
pazes de administrar, de governar bem, devem servir
As forças de esquerda apresentam de vitrine na disputa eleitoral que se avizinha.
nomes e debatem projetos
Saídas para o Brasil – Um novo projeto
As forças de esquerda e democráticas se posicio- nacional de desenvolvimento
nam na disputa eleitoral. Reconhecendo o papel e a
liderança do ex-presidente Lula e seu direito a dis- No centro do debate de 2018 está o projeto de
putar o pleito, os distintos campos políticos apresen- país. Para o PCdoB, não basta um conjunto isolado
tam nomes e começam a realizar um rico e intenso de iniciativas, de medidas, por mais valiosas que ve-
debate de projetos e programas. Como temos afir- nham a ser. O país requer um projeto que dê norte,
mado, não nos basta produzir um discurso saudo- que seja o vértice destas ações, que oriente aonde se
sista, pois, embora o povo tenha boas lembranças do deseja chegar, que trace um caminho de como ma-
passado, ele hoje deseja mais. Cabe-nos, a partir das terializar as enormes potencialidades do Brasil e de
experiências vividas, colocar no centro os aspectos sua gente. A batalha de 2018 tem como objetivo cen-

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Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017

Foto: Richard Silva


Buscar um novo
lugar no novo ciclo
político que se abre.
Uma pré-candidatura
que desmascare
a antipolítica, que
defenda a participação
e valorize a política
como forma de
mediação dos conflitos
e consensos na
sociedade. Trata-se
de um instrumento do
centro da nossa ação
tática, que é construir
uma Frente Ampla

tral derrotar a agenda neoliberal e neocolonial que se te Ampla. O PCdoB não será obstáculo para a unida-
articula para apresentar um candidato que expresse de, buscará construir, a partir do debate programático
sua agenda em 2018. O mercado centrará suas forças e de ideias sobre os desafios do Brasil, como sair da
no nome que possa vencer e dar continuidade a essa crise e enfrentar seus problemas estruturais.
agenda que está em curso no Brasil.
Sinuosos como os rios amazônicos
Nossa pré-candidatura presidencial são os caminhos da luta em defesa da
Nação e pelo socialismo
Conforme expresso em nosso projeto de resolu-
ção ao Congresso, temos debatido ao longo do últi- Apesar das adversidades, das imensas dificulda-
mo ano a conveniência de apresentarmos uma pré- des, a Nação e a classe trabalhadora poderão superar
-candidatura, que fortalecesse nosso projeto eleitoral essa grave crise que o país atravessa. Estamos con-
e nossa força política. Levamos em consideração o victos de que se conseguirmos dar passos na cons-
ambiente e o diálogo com nosso campo político, co- tituição da Frente Ampla, o campo democrático,
mo também o próprio debate interno. popular, patriótico poderá vencer as eleições presi-
A unidade política e de ação que paira sobre o denciais de 2018. Como bem disse nossa pré-candi-
PCdoB nos possibilitou em nossa última reunião do data Manuela, o Brasil é maior que o medo e o ódio.
Comitê Central aprovar por unanimidade o nome de O PCdoB sairá deste 14º Congresso determinado a
Manuela D´Ávila como pré-candidata presidencial reacender a esperança do povo brasileiro. O Brasil
do PCdoB. pode vencer, o Brasil vencerá!
A pré-candidatura de Manuela é meio para pro- O curso da luta pela construção de uma nova so-
pagar a identidade partidária, e suas ideias progra- ciedade no Brasil é sinuoso como os rios amazônicos,
máticas, na forma de uma agenda de saídas para a é acidentado como as ladeiras de Olinda, mas o brasi-
crise que o país atravessa – esperança para o povo e leiro é um valente, igual ao sertanejo, tem coragem. E
a nação. Buscar um novo lugar no novo ciclo político o nosso horizonte é tão vasto como é a chapada.
que se abre. Uma pré-candidatura que desmascare a
antipolítica, que defenda a participação e valorize a A íntegra deste informe pode ser lida no
política como forma de mediação dos conflitos e con- endereço: http://pcdob.org.br/congressos/
sensos na sociedade. Trata-se de um instrumento do presidenta-do-pcdob-anuncia-propostas-
centro da nossa ação tática, que é construir uma Fren- -para-superar-a-crise/

58
Documento

Manuela D’Ávila: Foto: Richard Silva

“Se o partido comunista é a honra do


nosso tempo, como disse o Neruda,
que honra enorme para mim ser a
candidata dos comunistas”

A
jovem deputada estadual pelo No discurso que fez no Congresso, Manuela des-
PCdoB do Rio Grande do Sul, Ma- tacou que o lançamento de sua pré-candidatura é um
nuela D’Ávila, foi aclamada pela fato histórico para os comunistas do Brasil, pois, em
militância do Partido Comunista do quase um século de trajetória do partido, esta é ape-
Brasil como pré-candidata à Presi- nas a terceira vez que a legenda participa da disputa
dência da República durante a aber- presidencial com candidatura própria.
tura do 14º Congresso da legenda, “Hoje, certamente, vivo o momento mais bonito
realizado em Brasília, entre os dias 17 e 19 de no- dessa trajetória, ao ser lançada pré-candidata à Pre-
vembro último. sidência da República por nosso partido. Se o partido

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Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017

comunista é a honra do nosso tempo, como disse o Perfil


Neruda, que honra enorme para mim ser a candida-
ta dos comunistas à presidência do Brasil”, declarou A formalização da pré-candidatura de Manuela
Manuela. D’Ávila pelo 14º Congresso do PCdoB, ocorrido entre
A pré-candidata também enfatizou a defesa da os dias 17 e 19 de novembro, contribuiu para repercu-
política como caminho de superação da crise. “Nossa tir ainda mais a trajetória progressista da deputada.
pré-candidatura não se soma àquelas que descons- Manuela d’Ávila é jornalista, tem 36 anos e é de-
troem a política e, portanto, agravam a crise brasilei- putada estadual desde 2014, a mais votada naquele
ra. Sabemos que a crise no Brasil tem origem política pleito. Cumpriu dois mandatos como deputada fede-
e, portanto, a saída da crise também é política. Não ral, tendo sido, nas duas ocasiões, a mais votada do
existem candidaturas de outsiders. Nada mais a cara Rio do Grande do Sul. Em 2010, teve mais de 400 mil
do sistema do que buscar soluções que pareçam es- votos, o que representou 8,06% dos sufrágios. Foi lí-
tar fora dele”, defendeu. der do PCdoB na Câmara dos Deputados, indicada
Muito aplaudida e ao som de palavras de ordem três vezes pelo DIAP como uma das 100 “Cabeças”
como “Brasil independente, Manuela presidente!”, do Congresso e cinco vezes ao Prêmio Congresso em
a pré-candidata afirmou que a proposta do PCdoB é Foco, que premia os melhores parlamentares do Bra-
promover o debate de um projeto nacional de desen- sil. Na Câmara Federal, Manuela foi autora da Lei do
volvimento com a formação de uma Frente Ampla. Estágio e relatora do Vale-Cultura e do Estatuto da
Segundo ela, sua pré-candidatura tem como linhas Juventude, presidiu a Comissão de Direitos Huma-
programáticas mais gerais a retomada do crescimento nos e foi coordenadora da bancada gaúcha.
econômico e da industrialização; a defesa e ampliação
dos direitos do povo, atacados pelo atual governo; e
a reforma do Estado, de forma a torná-lo mais de-
mocrático e capaz de induzir o desenvolvimento com
distribuição de renda e valorização do trabalho. 
Durante entrevista coletiva, quando questiona-
da por jornalistas sobre quais seriam os pontos que
poderiam unificar os partidos numa Frente Ampla,
ela apontou: “Acredito que são os partidos que têm
compromisso com a justiça social, com investimen-
tos em políticas públicas que diminuam as desi-
gualdades e que o Estado seja o motor do desen-
volvimento.”.

Leia a íntegra do discurso de Manuela D’Ávila no 14o Congresso do PCdoB:

Boa tarde, camaradas do Araguaia e da Lapa na força, coragem e combatividade


de nossos jovens da UJS, Carina, Mariana e Camila. Que
Olho para esse plenário de nosso 14º Congresso e vejo transformadora a força das jovens mulheres! 
rostos conhecidos. Vejo Luciana, nossa presidenta, negra, Milito em nosso partido há 19 anos, desde meus 17
mulher, nordestina, com sua doçura e firmeza revolucio- anos. Vivi muitos momentos de alegria contribuindo com a
nárias. Uma mulher com a cara das mulheres deste Brasil: construção partidária e com nosso sonho de transformação
forte e doce, incansável. Uma Maria, marias. Uma Maria do Brasil. Hoje, certamente, vivo o momento mais bonito
como Vanessa Grazziotin, como Alice Portugal, como Jan- dessa trajetória, ao ser lançada pré-candidata à presidência
dira, como Jô Moraes, como Marcivânia, como Ângela Albi- da República por nosso partido. Se o partido comunista é
no, como Perpétua Almeida, como Ana Júlia.  Olho Renato, a honra do nosso tempo, como disse o Neruda, que honra
com sua busca incessante pela renovação de nosso Partido enorme para mim ser a candidata dos comunistas à presi-
e atualização de nossas bandeiras. Posso ver Haroldo Lima dência do Brasil. 
com seu discurso firme e Aldo Arantes com sua persistên- É a terceira vez que o nosso Partido faz isso. Em 1945
cia. Vejo a atualidade dos sonhos de Amazonas, de João, lançamos Yedo Fiúza, prefeito de Petrópolis, que teve uma
em tantos Joãos por aqui. Os Joãos com a cara do Assis, grande votação, ao lado de Prestes, Jorge Amado, Maurício
Orlando, do Davison, Daniel, Wadson, Inácio, Chico Lopes, Grabois, João Amazonas, dentre outros camaradas que fo-
Rubens, Marcio. E vejo Amazonas e todos nossos mártires ram candidatos. Foi nessa eleição que elegemos a bancada

60
Documento
da Constituinte de 1946, responsá-
vel, por exemplo, pela emenda que
garantiu ao Brasil liberdade reli-
giosa. Mas eu gostaria de lembrar
da primeira vez que um comunis-
ta foi candidato a presidente. Isso
aconteceu em 1930, quando lança-
mos o vereador do Rio de Janeiro,
Minervino de Oliveira. A primeira
vez que os comunistas se lançaram
à presidência foi com ele: operário
e negro, um trabalhador da indús-
tria do mármore no Rio de Janeiro. 
Estamos, portanto, aos noventa
e cinco anos, vivendo esse momento
pela terceira vez e eu quero agra-
decer, sinceramente emocionada,
pela oportunidade de representar
o nosso Partido nessa caminhada.
Esse sonho jamais passou pela ca-
beça daquela jovem que se filiou à
UJS em 1999 e aprendeu a amar o
Brasil e a lutar pelo socialismo ou-
vindo as sábias palavras de Renato,
Haroldo e Aldo Arantes.  Sou a pri- Manuela: “Nós precisamos fazer com o que o nosso povo sonhe novamente”
meira mulher a concorrer à presi-
dência pelo Partido Comunista do Brasil, presidido por sua tam medo do futuro. Nós precisamos fazer com que o nosso
primeira mulher. Um Partido com tantas Heleniras, Pagus, povo sonhe novamente e que compreenda que, como diz o
Elzas, Gilces, Loretas. Um partido que em sua história fez nosso hino o “Brasil é um sonho intenso”. É isso que eu es-
valer a máxima que lugar de mulher é onde ela quiser. Que tou falando, o Brasil é um sonho porque o Brasil é uma bela
honra, camaradas. Que honra. Muito obrigada. realidade, mas o Brasil ainda é também um projeto. E nós
Primeiro, camaradas, gostaria de falar, mesmo que Lu- queremos discutir esse projeto, esse sonho em 2018. Quere-
ciana já o tenha feito em seu informe político sobre as razões mos discutir um Projeto Nacional de Desenvolvimento. 
que nos fizeram lançar uma candidatura. Nosso Partido Concretamente queremos discutir se o Brasil vai se rea-
construiu nos últimos anos mudanças importantes no Bra- lizar plenamente como nação, ou seja, desenvolver todas as
sil apoiando e participando dos governos Lula e Dilma. Lu- suas potencialidades como país, se teremos as condições para
tamos lado a lado com milhares de brasileiras e brasileiros nosso povo viver em paz, com segurança, educação, saúde,
contra o golpe de 2016. Resistimos ao desmonte do Estado,à com alimentação decente, cuidados à primeira infância e
retirada de direitos sociais e individuais promovidos por Te- proteção para a velhice, condições de vida dignas para as
mer. Somos as mulheres, os gays e negros que gritam contra mulheres, para os negros... queremos discutir se poderemos
a reforma trabalhista, a Emenda Constitucional 95.  De- ter um regime democrático de verdade, na medida em que
nunciamos a chamada neocolonização do Brasil. Mas, ca- a desigualdade não vai mais levar o Brasil a uma situação
maradas, acreditamos que o golpe encerra um ciclo político de anomia social.
e é por isso, que, para nós, 2018 não pode ser momento A chave para um Brasil com futuro é realizar esse sonho
de mero debate sobre o passado. Nós não queremos fazer intenso, é unir o máximo possível de brasileiras e brasileiros
da eleição um momento de acirramento da crise econômica em torno de um projeto de nação, de um sonho de futuro
e política. Nós queremos fazer da eleição um momento de para o Brasil. Ou seja, o que pode viabilizar o projeto de
construção de saídas. Dois mil e dezoito é momento de de- desenvolvimento do país é a Frente Ampla. É a consciência
bate sobre o futuro. Que brasil viveremos em 2, 4, 10 anos? das pessoas comuns, são os movimentos sociais, é a uni-
Queremos que o Brasil retome o crescimento econô- dade de nosso campo político. Gosto da ideia de que uma
mico, preservando direitos sociais e individuais. Precisamos candidatura dos comunistas é uma candidatura das pes-
traduzir nosso projeto para as pessoas que vivem a crise em soas comuns e para as pessoas comuns. Um governo para
seus cotidianos. A crise faz com que as pessoas percam as transformar a vida da maior parte das pessoas, os comuns,
certezas sobre o futuro. A crise faz com que as pessoas sin- o povo brasileiro. 

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Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017

Isso deve começar por mudanças radicais na economia. Falando da química final, não é razoável que a maior
Hoje o Brasil é vítima de um tripé macroeconômico que tem parte dos remédios que consumimos seja feita com insumos
como objetivo remunerar o rentismo, retirar as riquezas do estrangeiros. 
trabalho para transferi-las para o mercado financeiro. Não é razoável também que exportemos Petróleo cru.
É preciso mudar essa realidade. Não é razoável que sendo o maior produtor de agrícola do
Juros, câmbio e inflação: a gestão desses três preços ma- mundo não tenhamos mais uma fábrica de fertilizantes!
croeconômicos tem que que ser feita, mas tendo como lógica Mesmo no vestuário, camaradas, uma indústria simples,
o desenvolvimento do país e não os interesses do rentismo. importamos uma série de produtos estrangeiros para fa-
Esse foi o caminho trilhado pela China, país que tem um bricar roupas como as pessoas estão usando neste plenário.
projeto de nação e que colocou esse projeto como o meio de É necessário, portanto, um grande investimento em ciência,
resolver os seus problemas sociais. Um câmbio para tornar tecnologia e, especialmente, inovação. Um investimento que
a nossas exportações competitivas; juros baixos que incenti- também esteja conectado com esse projeto de reindustria-
vem o investimento produtivo e tornem o crédito barato e o lização, ou seja, algo que atenda prioritariamente as de-
“fim do medo-pânico” paralisante do crescimento da infla- mandas dessa nova indústria, de forma concentrada e com
ção são a base para que voltemos a crescer.  grande volume de recursos. 
Ao lado disso, o Brasil precisa de uma nova política in- Preciso salientar que enquanto nossas mulheres perma-
dustrial. Uma das tragédias do último período é a destrui- necerem alijadas da produção de conhecimento tecnológico
ção da indústria brasileira, conquistada com tanto esforço. esse sonho é ainda mais distante. De cada 1000 jovens na
Hoje, quando olho pra esse plenário, vejo vários produtos graduação apenas 22 escolhem carreiras vinculadas a cha-
que poderiam ser fabricados pelo nosso país, mas são feitos mada indústria de inovação. Destes, apenas uma é mulher.
por indústrias estrangeiras. Quando eu falo de indústrias, Ou seja, é preciso fazer com que nossas meninas tenham
não estou falando somente daquelas indústrias mais sim- espaço nesse sonho de Brasil desenvolvido, como há anos nos
ples, essas nós até mantemos. Falo das indústrias de ponta, dizem as mulheres da UBM.
aquelas mais capazes de agregar valor. Uma outra questão nodal, camaradas, é o investimento
Isso faz com que os empregos de qualidade, aqueles que público. Não há possibilidade de retomar o desenvolvimento
podem remunerar melhor, fiquem lá fora e não aqui. Faz sem um poderoso incremento do investimento público. Se
também com que fiquemos para trás na inovação, na me- for preciso, devemos cortar gastos em outras áreas para ga-
dida em que um país sem indústrias é um país sem criati- rantir essa massa de investimentos. 
vidade. Em última instância faz com que nossos jovens que Devemos pensar em um grande Plano de Obras Públi-
se dedicam às áreas vinculadas à produção de tecnologia cas. Grandes obras feitas com capital privado e público. E
saiam do Brasil.  nisso, penso que devemos ter concentração em dois setores:
Para falar das indústrias, queria lembrar um conterrâ- Infraestrutura e moradia. Infraestrutura porque esse é um
neo meu. Quando a Revolução de 1930 foi vitoriosa, no seu dos mais graves entraves ao desenvolvimento e moradia por-
primeiro discurso, Getúlio Vargas afirmou: “nós precisamos que essa é uma demanda enorme no país.
montar a chamada indústria pesada: aço, eletricidade, a quí- Um grande plano de obras públicas voltado para gran-
mica de ponta”. Notem, camaradas, Getúlio, mal tinha der- des obras de infraestrutura e uma verdadeira revolução na
rotado as oligarquias atrasadas, estava obcecado com o que política de moradias populares!!! Diante da crise torna-se
havia de mais importante no seu tempo, estava nas grandes ainda mais relevante o debate sobre moradia, regularização
aquisições da chamada segunda revolução industrial.  fundiária e equipamentos públicos.
Nós queremos sonhar o sonho de Getúlio: um país in- Falei do público, mas temos que pensar no investimento
dustrializado, voltado para a indústria do seu tempo. A in- privado também. Não podemos nos conformar com a ideia
dústria do nosso tempo é a chamada indústria 4.0. Parti- de que não há tradição no Brasil de investimento privado,
mos de uma situação difícil, dada a destruição da indústria como se isso fosse uma coisa que está escrita nas estrelas e
que assistimos nos últimos anos. Mas, por outro lado, há não pode mudar.  
uma oportunidade importante. A indústria 4.0, por suas Precisamos falar sobre geração de empregos, camaradas.
características, permite que pulemos fases, que nos adiante- Se não pensarmos em indústria do futuro, não geraremos
mos. Desde que tenhamos decisão nesse sentido. E mais im- empregos de qualidade pro nosso povo. Parece uma loucura
portante do que isso: desde que tenhamos um poder político que no momento em que o vivemos o ápice do desenvolvi-
que esteja a serviço do desenvolvimento nacional. mento tecnológico a sociedade viva a maior crise do capita-
Nosso país, com um governo comprometido com o de- lismo. A tecnologia tem que estar a serviço de nosso povo,
senvolvimento, pode escolher alguns setores industriais para não o contrário. Por isso defendemos um referendo revoga-
realizar uma política consciente de substituição de importa- tório da reforma trabalhista. 
ções. Setores como o de Petróleo e Gás, Química Fina, Defesa Queremos investir em empregos de qualidade para que
e mesmo o agronegócio, são exemplos concretos disso. as trabalhadoras e os trabalhadores tenham redução de jor-

62
Documento
nada, por exemplo, tenham mais tem-
po para viver a vida. Como diz Mujica,
a vida é a única coisa que o capitalis-
mo não vende. Queremos que nosso
povo viva a vida. 
Camaradas, não existe nenhuma
contradição entre as nossas lutas en-
quanto mulheres e as lutas dos negros,
por exemplo, com nosso projeto de de-
senvolvimento. Como seria possível de-
senvolver o país sem mais de 70% da
população? Sem enfrentar a diferença
salarial entre mulheres e homens, entre
negras e brancas, negros e brancos? En-
tão nosso projeto é o do povo brasileiro.
E o povo brasileiro é negro e é mulher!
Camaradas, como sabem sou da
terra de Getúlio mas sou também da Manuela ladeada pelas presidentas do PT, Gleisi Hoffmann, e do PCdoB, Luciana Santos
terra de Brizola. Cresci ouvindo dele
a ideia de que um grande Brasil só aconteceria com um emancipação. Numa sociedade ainda machista como a nos-
grande investimento em educação. Hoje tenho certeza disso. sa, a ausência do Estado é uma punição às mulheres. 
Como pensar em indústria sem pensar na manutenção e Flávio comprova que a experiência dos comunistas ga-
ampliação de nossos Institutos federais? Como fazer dessas rante boa gestão, ou seja, eficiência do Estado comprometi-
escolas técnicas escolas nossas parceiras da indústria 4.0? da com a existência do Estado para os que precisam.  
Como pensar em crescimento da economia sem pensarmos Camaradas, um partido como o nosso não trabalha com
em nossos jovens nas universidades públicas e privadas e a ideia de retomada do crescimento econômico com centra-
na retomada da ampliação do investimentos em pesquisa?   lidade por acaso. Nossa razão de ser é buscar que as pessoas
Aliás, os estudos de Tomas Piketty sobre o capitalismo e vivam com mais dignidade, com mais oportunidades. É por
desigualdade social evidenciam que não há outra ferramen- isso que nossa candidatura quer responder às principais an-
ta de diminuição de desigualdades senão o forte investimen- gústias da população.
to público em educação. O que pode angustiar mais alguém do que não ter acesso
Sempre que começo a falar em educação me lembro ca- à saúde para si ou para um filho? A diferença entre a vida
rinhosamente de nosso maior exemplo, o governador Flávio e a morte não pode ser o dinheiro.  Os princípios do SUS, a
Dino. Senhoras e senhores! Que revolução! Se eu pudesse universalidade, a integralidade, a gratuidade, a regionali-
resumir em poucas palavras seria compromisso com o fu- zação, a valorização dos trabalhadores da saúde são inego-
turo e eficiência. Toda vez que vejo uma obra de escola no ciáveis. Além disso, é possível pensar em como o segmento
Maranhão me lembro de Laura, minha filha, e a história da saúde pode ser estruturante da retomada da indústria
dos três porquinhos. Quando Laura quer falar que algo é nacional. Fármacos, equipamentos, por exemplo. O Brasil
duradouro, ela fala que é tijolo. Flavio já fez mais de cem pode diminuir o déficit da balança comercial se investir na
escolas de tijolo em contraposição às escolas de taipa e palha, indústria da saúde.
metade da folha do funcionalismo é destinada aos educado- É possível dialogar com o povo brasileiro sem debater o
res. Flavio criou a escola de tempo integral no Maranhão! tema da segurança pública e das múltiplas violências que
Toda vez que vejo um político, quase sempre homem, de- sofremos? Candidaturas se forjam apenas organizando e
fender a diminuição do Estado penso em nossas mulheres agudizando o medo que as pessoas sentem em função da
que são mães. Que diminuição é essa que não leva em conta violência nos grandes centros urbanos. Nós achamos que é
que nós não temos escola em tempo integral para nossos fi- papel do Estado enfrentar esse tema. Até porque, camara-
lhos? Como isso dificulta nosso retorno ao mercado? Quem das, foi-se o tempo em que podíamos afirmar apenas que a
cuida de nossas crianças quando não estão na escola? Ou desigualdade social gera violência urbana. Hoje a violência
seja debater tamanho do Estado não é algo abstrato. É algo faz parte do sistema de produção e perpetuação da miséria,
real, que interessa a nós mulheres. A escola de tempo integral afinal, quem passa pelo sistema carcerário é marcado para
de Brizola e agora de Flávio, a escola que garante tranqui- ser para sempre pobre.
lidade à mãe trabalhadora. Nós mulheres e mães sabemos, Queremos andar com nossos filhos nas ruas, quere-
desde a centenária Revolução Russa e os registros feitos por mos parar de enterrar nossos jovens. Percebam que esta-
Kollontai, que o Estado tem relação direta com nossas vidas e mos falando de 60 mil mortes por ano em homicídios, 40

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Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017

Lançamento da pré-candidatura de Manuela D´Ávila no 14º Congresso do PCdoB

mil jovens executados. São mais mortos do que em todas nosso sistema escolar. Pouco se fala nisso, mas quem sai da
as guerras de nosso tempo. Estamos falando da juventude escola entre o 5º e 6º anos, um ano depois aumenta em 50%
negra exterminada. Queremos rede de proteção para nossas de chance de praticar violência. 
mulheres vítimas de violência, queremos rede de proteção Construir uma política de combate à violência é garan-
para as vítimas de homofobia. tir um Brasil de oportunidades iguais para todos.
Creio que fazer o povo brasileiro viver em paz é um dos Camaradas, nossa pré-candidatura não se soma àque-
maiores desafios de nosso tempo.  las que desconstroem a política e, portanto, agravam a crise
Portanto, falar em segurança é falar em política públi- brasileira. Sabemos que a crise no Brasil tem origem po-
ca, em criação de ministério, em investimento federal, em lítica e, portanto, a saída da crise também é política. Não
modernização e inteligência, em fiscalização das polícias, existem candidaturas de outsiders. Nada mais a cara do
em valorização dos polícias. Falar em combate à violência e sistema do que buscar soluções que pareçam estar fora dele.
falar em viver em paz é o esforço para a garantia do respei- Mas se é verdade que a saída é política – e por isso de-
to a quem nós somos, às nossas individualidades enquanto fendemos uma Frente Ampla, popular, de diálogos com os
mulheres, negros, gays, jovens.  cidadãos e cidadãs – também é verdade que  defendemos que
Os jargões da internet, os discursos de ódio, a propagação a política precisa ser reformada, renovada, representando os
do medo não salvam vidas, não resolvem nossos problemas interesses da população, das pessoas comuns.
e medos reais.  Nossa candidatura é a candidatura dos que compreen-
Mas falar em viver em paz também é falar sobre edu- dem a necessidade de lutar para o Brasil dar certo para o
cação e voltamos a esse assunto. Uma política séria de di- povo brasileiro!
minuição da violência deve devolver aos professores as con- Parafraseando Thiago de Mello que com seu poema deu
dições de dar aula. Enquanto alguns falam em escola com nome a nosso congresso
mordaça, nós falamos em escola modernizada, segura, que Faz escuro mas nós cantamos, 
garante oportunidade para todos. Porque o amanhã vai chegar
Nossa candidatura defende um pacto pela paz, com Vamos juntos, pessoal
prioridade absoluta nos investimentos para que nossas Trabalhar pela alegria 
crianças e jovens de 0 a 18 anos, para que todos estejam na
escola. É preciso buscar, ativamente, aqueles que evadem de Um beijo e boa luta!

64
CONAPE:
Retomada do projeto democrático de educação
Diante dos ataques sistemáticos à educação, do des- formado no Comitê Nacional de Luta em Defesa da Edu-
manche das políticas públicas e da submissão do gover- cação Pública.
no ilegítimo de Michel Temer aos interesses privatistas,
Hoje, frente à dissolução arbitrária, pelo MEC, do Fó-
faz-se não só necessário, mas urgente, que o debate
rum Nacional de Educação como conquista da sociedade
educacional seja priorizado, pois apenas com o acesso
civil e à inviabilização de uma Conae com real participa-
à educação pública, gratuita, inclusiva e socialmente re-
ção popular, a Conape torna-se um instrumento coletivo
ferenciada, bem como com a regulamentação do setor
de luta, enfrentamento e resistência: resistência e en-
privado, iremos defender a soberania do país.
frentamento contra o congelamento dos investimentos
em políticas públicas pelos próximos 20 anos; por uma
Nesse sentido, a Conferência Nacional Popular de
escola sem mordaça; contra uma reforma do ensino mé-
Educação (Conape), que será realizada em abril de 2018,
dio excludente; pelo cumprimento do Plano Nacional de
em Belo Horizonte, apresenta-se como um espaço im-
Educação como plano de Estado, resgatando o projeto
prescindível. Sua semente começou a ser cultivada em
democrático do país.
junho de 2016, a partir de uma convocação da Contee
para a realização da II Plenária Nacional de Educação, Madalena Guasco Peixoto é coordenadora da Secretaria-
na qual se organizou, com a participação de diversas Geral da Confederação Nacional dos Trabalhadores em
entidades do campo educacional, o Comitê Nacional de Estabelecimentos de Ensino — Contee
Educação Contra o Golpe, em Defesa da Democracia, Adércia Bezerra Hostin dos Santos é coordenadora da
Fora Temer, Nenhum Direito a Menos! — depois trans- Secretaria de Assuntos Educacionais da Contee
Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017

Financeirização, coalização
de interesses e taxa de juros
no Brasil
Luiz Fernando de Paula* e Miguel Bruno**

No Brasil, desde 1994, a financeirização ocorre pelos


ganhos com juros substituindo o regime monetário
anterior caracterizado pela “financeirização pelos
ganhos inflacionários.”. Ambos processos foram
estimulados desde o início dos anos 1990 pela
crescente liberalização da conta capital, dada a
natureza especulativa dos fluxos de capitais tanto por
residentes quanto por não residentes

66
Economia

A
pesar de estarem com tendência de tendo sido pioneiramente sustentada há tempos por
queda, em meio à forte e prolongada Bresser-Pereira e Nakano (2002, p. 169): “depois da
recessão, as taxas de juros reais no persistente manutenção da taxa de juros em nível
Brasil são extre- muito elevado é natural que sur-
mamente eleva- ja o medo de redução, e que esse
das em termos de nível se torne uma convenção” (1);
comparação internacional. A Ta- Levantamos aqui a e Bresser-Pereira (2007, p.200)
bela 1 mostra que países com ris- hipótese de que a acrescenta: “a Selic é alta no Brasil
co-país em níveis semelhantes ao porque, com o argumento de que
do Brasil, como Bulgária, Peru e
prevalência de altas é necessária uma taxa de juros
Panamá, têm taxas de juros reais taxas de juros reais muito alta ‘para combater a infla-
bem menores. Seria de se esperar, no Brasil por décadas ção’, [ela] é estabelecida em nível
pela teoria da paridade – segundo artificial, de forma a remunerar
a qual a taxa de juros doméstica é levou à formação os rentistas e o setor financei-
igual à taxa de juros internacio- de uma coalização ro.”. Recentemente Lara Resende
nal mais o prêmio de risco-país e (2017, p.126-127) sustenta que a
o risco cambial –, que tivéssemos de interesses dos manutenção de taxa de juros ele-
taxas de juros bem mais baixas, rentista-financistas na vadas no Brasil acaba por se reve-
mas sabemos que esta não é a lar ineficaz para baixar a inflação,
manutenção de taxas
evidência brasileira. Relaciona-se e levanta a hipótese de que taxas
a isso a questão: Por que o Banco de juros elevadas, já de juros altas podem levar a taxas
Central tem que elevar tanto a ta- que estas favorecem de inflação maiores: “Suponha o
xa de juros para reduzir a taxa de caso de um paciente com doença
inflação no Brasil? Ou ainda: Por a valorização da sua crônica para a qual se ministra um
que a inflação é tão resiliente em riqueza financeira remédio há décadas. Há unanimi-
nosso país? dade médica de que, no caso des-
se paciente, a doença é resistente.
Tabela 1: Risco-país e taxa de juros Doses maciças vêm sendo receitadas sem resultado.
(média de 2010-2014) Os efeitos secundários negativos são graves, debili-
Pais Risco-país Taxa real de juros tam e impedem a recuperação do paciente, que agora
Africa do Sul 215 -0,03 se encontra na UTI. Novos estudos, ainda que preli-
Brasil 916 4,25 minares, questionam a eficácia do remédio. Pergunta:
Bulgária 881 -1,73
deve-se continuar a ministrar as doses maciças do re-
Colômbia 766 1,19
Filipinas 399 0,16 médio ou reduzir rapidamente a dosagem?”.
México 532 0,10 A coalização de interesses rentistas foi formada no
Panamá 1029 0,88 Brasil em função do desenvolvimentismo de um capi-
Perú 923 0,16 talismo determinado pelas finanças com especificida-
Russia 659 0,67 des nacionais, cuja característica central é a prevalên-
Turquia 416 -3,55
Fonte: Datamarket (EMBI+) e IMF; (*) Governo Central
cia de um processo conhecido como “financeirização”
– entendida como “o aumento do papel dos motivos
financeiros, mercados financeiros, atores financeiros
Levantamos aqui a hipótese de que a prevalência e instituições financeiras nas operações de economias
de altas taxas de juros reais no Brasil por décadas nacionais e internacionais” (EPSTEIN, 2005, p.3), ou
levou à formação de uma coalização de interesses ainda “um padrão de acumulação no qual a realiza-
dos rentista-financistas na manutenção de taxas de ção de lucros ocorre crescentemente através de canais
juros elevadas, já que estas favorecem a valorização financeiros ao invés do comércio e produção de mer-
da sua riqueza financeira, a qual depende de parte cadorias.” (KRIPPNER, 2005, p. 174). De forma mais
importante de seus rendimentos. Esta coalização, ampla, o trabalho pioneiro de Braga (1985) define
acrescente-se, não é benéfica somente para os ren- a financeirização como norma sistêmica de riqueza,
tistas, mas também para o próprio Banco Central do uma vez que produz uma dinâmica estrutural articu-
Brasil (BCB), que tira proveito da reputação de ser lada de acordo com os princípios da lógica financeira.
um banco central conservador (ERBER, 2011). O “finance-led capitalism” (capitalismo liderado pelas
A convenção pró-conservadorismo na condução finanças) tem se disseminado no mundo em função
da política monetária não é uma hipótese nova, já da adoção de políticas neoliberais, que inclui um con-

67
Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017

junto de políticas como liberalização financeira, fle- cesso no Brasil. Por um lado, a financeirização eleva a
xibilização do mercado de trabalho, esvaziamento do um paroxismo a preferência pela liquidez dos deten-
Estado social e desenvolvimentista etc. Seu resultado tores de capital (inclusive o empresário industrial que
frequentemente é a busca de ganhos financeiros de se torna rentista), reduzindo a formação bruta de ca-
curto prazo por parte dos agentes (inclusive através pital fixo em função das possibilidades de aplicações
do “shareholder value”, valor para o acionista), expan- financeiras de curto prazo que competem com apli-
são precoce do setor de serviços, desindustrialização e cações em ativos de capital, ao aumentar o prêmio de
precarização do trabalho. liquidez (ver Gráfico 1). Por outro lado, ela tem claros
No Brasil, desde 1994, a financeirização ocorre efeitos concentradores nos segmentos de alta renda,
pelos ganhos com juros substituindo o regime mo- considerando que os rendimentos financeiros, lucros
netário anterior caracterizado pela “financeirização dividendos e heranças e doações representam quase
pelos ganhos inflacionários.”. Ambos processos fo- 40% da renda do país. Segundo Morgan (2017), em
ram estimulados desde o início dos anos 1990 pela 2001-2015, a renda média dos 1% mais ricos cresceu
crescente liberalização da conta capital, dada a na- 31,4%; a dos 50% mais pobres (favorecidos pela po-
tureza especulativa dos fluxos de capitais tanto por lítica de crescimento real do salário-mínimo) 28,7%;
residentes quanto por não residentes. No regime de enquanto a da classe média (40% que ganham entre
“financeirização pelos ganhos com juros” o gover- R$ 1,4 mil e R$ 5,0 mil) apenas 11,5%.
no buscou, até 2015, conciliar os interesses da acu- A tendência a uma financeirização crescente da
mulação rentista-patrimonial com políticas sociais economia brasileira, e, em particular, a existência
redistributivas, favorecendo os segmentos cujos de um grande volume de aplicações financeiras com
rendimentos derivam das rendas de juros e demais remuneração denominadas a taxa de juros (lastrea-
ganhos financeiros (derivados do endividamento das nas Letras Financeiras do Tesouro (LFTs) e com-
público e privado). Assim, financeirização foi esti- promissadas) – uma “jabuticaba brasileira” –, fazem
mulada por dois fatores inter-relacionados: taxa de com que a política monetária seja pouco eficiente no
juros reais elevadas e permanência de um circuito de Brasil, sendo uma das razões para termos uma taxa
“overnight” na economia brasileira, herdada do pe- de juros elevada, pois requer juros maiores para se
ríodo de alta inflação, mas mantida no pós-real, para ter o mesmo efeito sobre a demanda agregada. Como
onde são canalizadas as aplicações de alta liquidez parte das aplicações dos agentes é vinculada à taxa
dos agentes econômicos. (Gráfico 1) de juros, e uma elevação nesta ocasiona um aumen-
Cabe destacar alguns efeitos perversos deste pro- to na riqueza financeira, neutralizando parcialmente

Gráfico 1: A acumulação rentista-financeira versus acumulação de capital fixo


(1970-2015)
Taxa de acumulação de capital fixo produtivo
Taxa de financeirização = estoque total de ativos financeiros/estoque de capital fixo produtivo
30,0%

25,0%

20,0%

15,0%

10,0%

5,0%

0%
1970
1971
1972
1973
1974
1975
1976
1977
1978
1979
1980
1981
1982
1983
1984
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015

Fonte: Atualização de Bruno e Caffé (2015).

68
Economia

os seus efeitos sobre os gastos agregados dos agen-


tes. Acrescente-se que a estrutura a termo da taxa de Figura 1: Financeirização e taxa de juros
juros, através da qual a taxa de juros de curto prazo
afeta as taxas mais longas, fica deformada no Brasil
– com pouca diferenciação na remuneração a taxas
curtas e longas, além de ser descontinuada, uma vez
que se inviabiliza a emissão de títulos com maturi-
dades mais longas (teriam que pagar um prêmio de
risco elevadíssimo).
Um estudo recente (MODENESI et al, 2017) in-
vestigou a assimetria do repasse cambial sobre IPCA
(Índice de Preços ao Consumidor Amplo), através da de juros no Brasil (Figura 1). O primeiro está rela-
decomposição da série da taxa de câmbio em apre- cionado ao Relatório Focus do BCB, através do qual
ciação e depreciação cambial em 1999-2016 com um este apura as previsões do mercado financeiro sobre
modelo SVAR (vetor estrutural autorregressivo), e diversos indicadores econômicos, incluindo a taxa
estimou um “pass-through” de 16% no caso de de- de inflação e a taxa de juros. Neste particular, há
preciações e 5,8% no caso de apreciações cambiais. uma tendência do mercado de puxar para cima a
Deste modo, o efeito inflacionário da depreciação é taxa de juros e a taxa de inflação, de modo a pressio-
compensado apenas parcialmente pelo efeito defla- nar o BCB a sancionar suas expectativas. O segun-
cionário de uma apreciação na mesma magnitude do refere-se à relação entre o mercado financeiro e
no Brasil, no que resulta na existência de um viés o Tesouro Nacional no processo de negociação dos
inflacionário decorrente da volatilidade da taxa de títulos públicos, onde o mercado faz valer o seu po-
câmbio no Brasil, contribuindo para um comporta- der de pressão sobre o Tesouro. O Gráfico 2 mostra
mento a la “fear of floating” na condução da política que os juros reais acumulados em 1992-2016 foram
monetária. (Figura1) acompanhados pelo crescimento da dívida pública,
Identificamos três canais através dos quais a o que sugere que boa parte do aumento desta se de-
coalização de interesses rentistas pode afetar a taxa ve aos próprios juros. Com dívida pública elevada

69
Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017

e uma estrutura de dívida pouco dexados pela taxa fixada pelo BCB
saudável (prazos ainda curtos e A financeirização nas operações de política mone-
parte indexada ao Sistema Es- reduz, tária, o que torna títulos públicos
pecial de Liquidação e Custódia, e reservas bancárias substitutos
Selic), o mercado consegue colo- significativamente, perfeitos, e faz com que a taxa do
car pressão no Tesouro para ven- a autonomia dos mercado interbancário incorpore
der os títulos em condições favo- o prêmio de risco da dívida públi-
ráveis a ele, inclusive no que se Estados nacionais ca brasileira. Barbosa et al (2016),
refere à remuneração dos títulos. seja para formularem por sua vez, sugerem a existência
Por último, os rentista-financis- de um “componente jabuticaba”
tas, em função de o Brasil operar
as políticas fiscal incorporado ao prêmio de risco
com uma conta de capital aberta, e monetária, seja dos títulos públicos. Conforme a
podem exercer seu poder sobre no que concerne a análise acima, a coalização de in-
o BCB em momentos de maior teresses rentistas pode pressionar
instabilidade macroeconômica uma estratégia de a taxa de juros no Brasil nos dois
“colocando o pé na porta”, isto é, desenvolvimento de mercados (supondo também a
comandando a saída de capitais existência de um efeito-contágio
externos que resulta numa des-
longo prazo invertido, do mercado interban-
valorização abrupta da taxa de cário para o mercado de títulos),
câmbio – o que pode obrigar o BCB a manter taxas isto é, de títulos públicos e de reservas bancárias,
de juros elevadas para refrear eventuais saídas de ocasionando um viés altista na taxa de juros.
capitais. (Gráfico 2) Essa constatação encontra amplo apoio nos es-
Barbosa (2006) desenvolveu a ideia de uma con- tudos internacionais, pois os resultados encontrados
taminação da política monetária pela dívida pública são unânimes quanto ao fato de que a financeiriza-
em decorrência da existência de títulos públicos in- ção reduz, significativamente, a autonomia dos Es-

Gráfico 2: A taxa Selic real capitalizada expande


endogenamente a dívida pública interna
(1990-2016)
Divida interna - gov. federal e Banco Central - líquida - R$ (milhões) de set/2015 - Eixo esquerdo
Selic real (fator acumulado) - Eixo direito
R$ 3.500.000,00 9,00

R$ 3.000.000,00 8,00

7,00
R$ 2.500.000,00

6,00
R$ 2.000.000,00

5,00

R$ 1.500.000,00

4,00

R$ 1.000.000,00
3,00

R$ 500.000,00
2,00

R$ 0,00
1,00
1992.05
1993.01
1993.09
1994.05
1995.01
1995.09
1996.05
1997.01
1997.09
1998.05
1999.01
1999.09
2000.05
2001.01
2001.09
2002.05
2003.01
2003.09
2004.05
2005.01
2005.09
2006.05
2007.01
2007.09
2008.05
2009.01
2009.09
2010.05
2011.01
2011.09
2012.05
2013.01
2013.09
2014.05
2015.01
2015.09
2016.05

-R$ 500.000,00 0,00

Fonte: Cálculos próprios com base nos dados do Banco Central do Brasil.

70
Economia

tados nacionais seja para formularem as políticas REFERÊNCIAS:


fiscal e monetária, seja no que concerne a uma es-
tratégia de desenvolvimento de longo prazo, consis- BARBOSA, F. H. The contagion effect of public debt on
tente com as condições de produção e os interesses monetary policy: the Brazilian experience (O efeito
dos setores não financeiros (2). contágio da dívida pública sobre a política monetária:
Concluímos que a redução sustentável da taxa de a experiência brasileira). Brazilian Journal of Political
juros reais no Brasil requer um conjunto amplo de Economy 26(2):231-238, 2006.
políticas, que deve incluir a eliminação da indexa- BARBOSA, F. H.; CAMÊLO, F. D.; JOÃO, I. C. A taxa de juros
ção financeira no Brasil, através da substituição das natural e a regra de Taylor no Brasil: 2003-2015. Revista
operações compromissadas do BCB por depósitos Brasileira de Economia 70(4), 2016: 399-417.
voluntários remunerados e do fim das LFTs, implan- BECKER, J.; JAGER, J.; LEUBOLT, B.; WEISSENBACHER,
tação de uma política factível de consolidação fiscal R. Pheripheral financialization and vulnerability to
crisis: A regulationist perspective (Financiamento
de longo prazo (sem as amarras de um teto de gas-
periférico e vulnerabilidade à crise: uma perspectiva
tos fictício), criação de mecanismos que reduzam a regulacionista). Competition and Change 14(3-4), 2010:
volatilidade da taxa de câmbio (dada a ligação câm- 225-247.
bio-juros), revisão da institucionalidade do regime
BOYER, R.; SAILLARD, Y. (org.). Théorie de la Régulation:
de metas de inflação (com a mudança do horizonte l’état des savoirs (Teoria da Regulação: o estado do
da meta para um prazo mais longo que o ano ca- conhecimento). Paris: La découverter, 2002.
lendário), e, não menos importante, a implantação
BRAG, J. C. Temporalidade da Riqueza: Teoria da
de uma gestão menos conservadora na condução da Dinâmica e Financeirização do Capitalismo. Tese de
política monetária pelo BCB. Doutorado. Campinas (SP): Instituto de Economia da
Essa nova agenda, contudo, envolve não apenas UNICAMP, 1985.
reconsiderar-se os interesses de detentores de capital BRESSER-PEREIRA, L. C. Macroeconomia da Estagnação:
pelas comodidades da revalorização financeira em Crítica da Ortodoxia Convencional no Brasil pós-1994.
ativos de curto prazo (combinando rentabilidade, São Paulo: Editora 34, 2007.
liquidez e baixo risco), obtidos fora das imobiliza- BRESSER-PEREIRA, L. C.; NAKANO, Y. Uma estratégia de
ções mais arriscadas em atividades diretamente pro- desenvolvimento com estabilidade. Revista de Economia
dutivas, mas também resgatar os papéis do Estado Política, 21(2), 2002:146-177.
nacional no processo de desenvolvimento brasileiro, BRUNO, M.; CAFFÉ, R. Indicadores macroeconômicos
eclipsados e politicamente esvaziados, pela natureza de financeirização. In: BRUNO, M. (org.). População,
e lógica da acumulação rentista-patrimonial que a Espaço e Sustentabilidade: contribuições para o
financeirização reproduz no plano estrutural e ma- desenvolvimento do Brasil. Rio de Janeiro: ENCE-IBGE,
2015.
croeconômico. Enfim, redução da taxa de juros no
Brasil é um assunto de economia política! EPSTEIN, G. (ed.). Financialization and the World
Economy (Financiarização e a Economia Mundial).
Cheltenham: Edward Elgar, 2005.
* Luiz Fernando de Paula é professor titular da
FCE/UERJ e IESP/UERJ ERBER, F. As convenções de desenvolvimento no Brasil:
um ensaio de economia política. Revista de Economia
Política, 31(1), 2011:31-55.
**Miguel Bruno é professor da ENCE-IBGE, FCE-
UERJ e Mackenzie-Rio KRIPPNER, G. The financialization of the American
economy (A financiarização da economia americana).
Socio-Economic Review, 3(2), 2005:173-208.
LARA-RESENDE, A. Juros, Moeda e Ortodoxia. São Paulo:
Portfolio-Pinguim, 2017.
NOTA
MODENESI, A.; LUPORINI, V.; PIMENTEL, D. Asymmetric
(1) A definição de convenção que utilizamos refere-se a um acor-
exchange rate pass-through: Evidence, inflation
do entre participantes que decidem em prol de uma estratégia
dynamics and policy implications for Brazil (1999-
comum que os beneficia em conjunto. Conforme Boyer e Saillard
2016) [Taxa de câmbio assimétrica pass-through:
(2002), assim definida, a convenção “é dotada de força normativa
Evidência, dinâmica da inflação e implicações políticas
obrigatória, sendo apreendida como resultado de ações individu-
para o Brasil (1999-2016)]. Trabalho selecionado para o
ais e como um quadro constrangendo os sujeitos envolvidos.”. Ou
45º Encontro Nacional de Economia, 2017.
seja, seguir a convenção passa a ser não apenas obrigatório, mas MORGAN, M. Extreme and persistent inequality
sobretudo porque é lucrativo, rentável segui-la e perpetuá-la. (Desigualdade extrema e persistente). WID. World
(2) Ver, entre outros, Becker et al (2010).
Working Papers Series 2017/12.

71
Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017

A questão nacional e a nova


síntese chinesa
Diego Pautasso*

A trajetória atual da China tem sido um gigantesco experimento


de desenvolvimento. Não é preciso discorrer sobre o acelerado
crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), da notável
modernização tecnológica e da incrível mobilidade social para
constatar suas transformações. O inegável êxito do processo está
repleto de desafios, erros e contradições, intrínseco à construção
de qualquer projeto alternativo – ainda mais naquelas condições
geográficas e populacionais. Sendo assim, o presente artigo visa a
discutir como a questão nacional é a chave explicativa da Revolução
Chinesa, do seu desenvolvimento e reconstrução nacionais e de sua
crescente assertividade no sistema internacional

72
Internacional

A primeira geração de dirigentes liderada por Mao Tsé-tung tornou o país independente e retomou a integração territorial

1. A Revolução de 1949 e a questão um ciclo de subordinação internacional e o ingresso


nacional chinesa do país no sistema internacional em outras condições.

A
Ao mesmo tempo, a revolução deu continuidade
revolução de 1949 está entrelaçada à aos desafios de construir um Estado moderno a par-
questão nacional chinesa, ao seu im- tir da herança de um império sofisticado, mas em
perativo de libertação e (re)constru- franca desagregação. Como a proclamação da Repú-
ção nacionais. Como destaca Visentini blica (1911) havia sido um processo inconcluso, cou-
(2017), a questão nacional transcende be ao governo revolucionário a tarefa de reconfigurar
a definição do que é nação (etnia, língua e cultura), os elementos centrais da sociedade chinesa. E isso
pois se relaciona com o Estado nacional, em suas di- num quadro de desordem, ameaça militar e chanta-
ferentes formas no tempo e no espaço, e no quadro gem nuclear a partir da presença norte-americana na
de forças do sistema internacional. Só construções península coreana. A prioridade era, pois, garantir a
políticas nacionais podem dar conta da redução das unidade chinesa a partir do novo Conselho Central
desigualdades sociais e das assimetrias internacio- do Governo Popular, interligado com o Partido Co-
nais. E deve-se destacar que não há soberania senão munista e o Exército de Libertação Popular (SPEN-
com fortalecimento dos meios técnicos e políticos CE, p. 493-497) e da constituição de 1954 (inspirada
estatais; não há políticas públicas de redistribuição na soviética de 1936) para garantir estabilidade da
e reconhecimento senão numa economia nova estrutura de Estado e governo – logo sobrepu-
nacional desenvolvida; não há democratização e jada pelos percalços do Grande Salto Adiante e da
empoderamento dos segmentos populares à margem Revolução Cultural.
das instituições nacionais de Estado. Assim, o multifacetado e sinuoso processo de (re)
É por isso que o objetivo primordial do país orien- construção nacional da China deve ser compreendi-
tal tem sido a superação daquilo que os chineses cha- do em seu sentido histórico. A primeira geração de
mam oportunamente de “século de humilhações” dirigentes liderada por Mao Tsé-tung tornou o país
(1839-1949), cujo legado é uma história de mais de independente, retomou a integração territorial, lan-
500 tratados de subtração da soberania e pilhagem çou os alicerces da indústria de base e da infraes-
(GUO, 2013, p. 61), violência, revoltas e fome, fruto trutura física (transportes, comunicação e energia).
da mais completa desorganização política e econô- A segunda geração, tendo à frente Deng Xiaoping,
mica do antigo Império do Meio. Assim, a revolução lançou a política de Reforma e Abertura em meados
liderada por Mao Tsé-tung representou a ruptura com dos anos 1970, retomando o processo acelerado de

73
Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017

desenvolvimento, internalizando campo socialista, como também


tecnologia, diminuindo o atraso desencadear um dos mais notá-
em relação aos países desenvol- veis ciclos de desenvolvimento (e
vidos e criando novos padrões mobilidade social) da história da
institucionais para o país. A ter- humanidade. Ressalte-se que isso
ceira geração, sob a coordenação tem ocorrido num quadro de gra-
de Jiang Zemin (1993-2003), teve ve ofensiva neoconservadora, de
o desafio de resistir à conjuntura supremacia da agenda neoliberal
decorrente do colapso do campo e de escalada intervencionista sob
soviético e ainda dar continuida- égide dos EUA e seus aliados.
de e aprofundar tais políticas ini-
ciadas por Deng. A partir do sécu- 2. A Nova Síntese
lo 19, com a quarta geração de Hu como aprendizado
Jintao (2003-13) e a quinta de Xi e aclimatação do
Jinping (2013-...), a inserção in- marxismo
ternacional chinesa ganhou no-
vos contornos. O 19º Congresso Diante de suas transforma-
do Partido Comunista da China Foi justamente ções aceleradas, tem sido tão
(PCCh) realizado em outubro de desafiador quanto importante
2017 afirma o caminho do socia- dos percalços da compreender a atual experiên-
lismo de mercado e a crescente Revolução Cultural que cia de desenvolvimento China.
liderança chinesa na política in- De certa forma, reflete o próprio
ternacional. se forjou a correção aprendizado de suas lideranças,
Como destaca Visentini (2011, de rumos com a tanto com os percalços do Gran-
p. 131), se a consolidação da Nova de Salto e da Revolução Cultural,
China representou a recuperação
política de Reforma quanto com aqueles decorrentes
de sua soberania e o lançamento de Abertura liderada do colapso do campo soviético.
das bases do desenvolvimento por Deng Xiaoping, Trata-se do grande desafio de
nacional, a Novíssima China pós- desmessianização da revolução
-Reformas começa a transformar cujo resultado foi não e do projeto comunista, um pro-
o próprio sistema mundial. Os somente fazer o país cesso de aprendizagem não sem
desafios da China são complexos, contradições (LOSURDO, p. 118-
pois, de um lado, o país busca dar
resistir ao colapso 121). O aprendizado e adaptação
forma ao seu desenvolvimento e do campo socialista, somente tem sido possível devido
liderar a integração euroasiática como também à capacidade das lideranças chi-
e, de outro, enfrenta as contradi- nesas de aclimatar a revolução
ções de um sistema internacional desencadear um dos socialista, aquilo que chamam
Pós-Guerra Fria cujo envelheci- mais notáveis ciclos de de sinização do marxismo – cuja
mento do seu centro histórico é primeira menção teria ocorrido
notável. desenvolvimento ainda no 7° Congresso Nacional
Em suma, a experiência revo- do PCCh em 1945 (JUNRU, 2011,
lucionária chinesa tem resistido a p. 41).
diversos óbices. Uma tortuosa guerra civil entrelaça- Assim, o desafio atual da China é construir o inti-
da por agressões estrangeiras e uma cruenta ocupa- tulado “socialismo de mercado”, respondendo a de-
ção japonesa. Os desafios da revolução e dos erros, safios complexos que sequer poderiam ser buscados
sobretudo aqueles ligados ao idealismo da práxis, isto nos “clássicos do marxismo” (WARE, 2013). Tam-
é, ao ímpeto revolucionário baseado na suposição pouco nas diversas experiências socialistas, das au-
do desaparecimento não problemático do merca- togestionárias (Iugoslávia) à cogestão (Alemanha),
do, da nação, da religião e do Estado (LOSURDO, passando pelas mais centralizadas (URSS); ou seja,
2015, p. 257). Mas, paradoxalmente, foi justamen- não há alternativa senão o aprendizado progressivo
te dos percalços da Revolução Cultural que se forjou (AMIN, 2010, p. 63-64). De tal maneira, diferente do
a correção de rumos com a política de Reforma de que supõem certos marxistas, com definições como
Abertura liderada por Deng Xiaoping, cujo resultado de “restauração capitalista” de Slavoj Žižek (2012,
foi não somente fazer o país resistir ao colapso do p. 84-86; 330) ou de “neoliberalismo com caracte-

74
Internacional

O 19º Congresso do Partido Comunista da China (PCCh) realizado em outubro de 2017 afirma o caminho do socialismo de mercado

rísticas chinesas” de David Harvey (2008, p. 133; aprendizados decorrentes da expansão ocidental e
160), a China está a buscar sua própria experiência de suas revoluções Industrial e Francesa, incluindo
de desenvolvimento. Para Losurdo (2004), trata-se as novas suas tecnologias e seus experimentos ins-
de uma gigantesca Nova Política Econômica (NEP); titucionais modernos; iii) e os valores oriundos da
para o governo chinês, a fase primária de construção revolução de 1949 e dos movimentos socialistas que
do socialismo. De todo modo, não é novidade, aliás, a inspiraram, notadamente a busca combinada de
segmentos da esquerda capitular em quando as ad- redistribuição e reconhecimento.
versidades das circunstâncias entram em contradi- A maneira como o passado tem sido atualiza-
ção com o socialismo imaginado, numa autofagia do pelos dirigentes chineses pode ser percebida de
permanente. diversas formas. Cabe destacar o fortalecimento e
Para os líderes chineses, a emancipação nacional qualificação da burocracia à maneira do pioneiris-
não é possível sem um exitoso processo de desenvol- mo dos mandarins; a recuperação do Estado como
vimento. Só assim é possível evitar as vulnerabili- realizador de grandes obras de infraestrutura; a im-
dades e os riscos de anexações política e econômica. portância da simbiose planejamento e mercado no
Em perspectiva histórica, é possível afirmar que a desenvolvimento; a noção de um “mandato do céu”
experiência da China tem diminuído “duas grandes dado ao PCCh com mescla de legitimidade e desem-
divergências”: aquela oriunda da divisão internacio- penho; o papel do confucionismo no ordenamento
nal do trabalho entre países ricos e pobres e a outra social, resgatando elementos importantes da heran-
decorrente da polarização da riqueza interna a cada ça cultural; o relançamento de uma Nova Rota da
país. A diminuição da distância de seu desenvolvi- Seda como forma de integração com outros povos; a
mento diante dos países ricos e a mobilidade social promoção de uma integração asiática que atualiza o
interna confrontam a tendência de concentração de antigo sinocentrismo; etc. Ou seja, a questão nacio-
riqueza no mundo atual. E não existe alternativa a nal na China é um experimento complexo que vai
este projeto de emancipação desvinculado do merca- ganhando forma.
do mundial, com os riscos de “dançar com os lobos”
(LOSURDO, 2015, p. 321-340). 3. A questão nacional e o projeto
Diante de desafios de toda ordem, sugerimos que chinês de globalização
a experiência chinesa tem sido uma Nova Síntese. E
esta não pode desconsiderar i) a herança de uma Mas se a experiência de desenvolvimento da Chi-
civilização milenar, assentada numa longa tradi- na está à procura de sua forma, sua atuação interna-
ção histórica de avanços técnicos e culturais; ii) os cional também. Como destaca Zhao (2013), a diplo-

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Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017

macia chinesa ficou mais assertiva, deixando de lado do como o rejuvenescimento do país, a revitalização
a política externa de baixo perfil de Deng, sobretudo e a renovação da sua civilização, para promover a
em temas crucias do seu interesse nacional, como transformação da civilização humana, e materializar
bem ilustra a presença na África e o envolvimento o desenvolvimento. O sonho chinês está entrelaçado
securitário no Mar do Sul da Chi- à “agenda dos dois centenários”
na. A China tem criado condições (criação do PCCh em 2021 e da
objetivas e subjetivas para de- proclamação da República Popu-
senvolver uma diplomacia mul- Já em 2004, um lar da China em 2049) que deter-
tilateral ativa, deixando de ser britânico, Joshua Ramo, minam os horizontes da constru-
um simples participante para ser ção de construir um país e uma
protagonista e assumir grandes
passou a falar no sociedade modestamente confor-
responsabilidades (TIANQUAN, Consenso de Pequim. tável (XINPING, 2015).
2012, p. 182). Aliás, o maior en- Com ele, a China Se num primeiro momento
volvimento na arena internacio- a ênfase foi dada ao desenvolvi-
nal demanda inexoravelmente tem apresentado um mento nacional, num segundo
compromissos e responsabilida- caminho alternativo momento, o entrelaçamento da
des ampliados. China com o mercado e a polí-
Nesse sentido, cabe perceber baseado tanto no tica internacionais aprofundou
como os discursos acerca da in- reconhecimento das seu engajamento e assertividade
serção internacional da China globais. O envolvimento chinês,
são moldados. Primeiro, surgiu
necessidades locais por óbvio, tem foco central no
o conceito de Ascensão Pacífica, do desenvolvimento entorno regional, na (re)consti-
cunhado por um proeminente de cada país, quanto tuição do sistema sinocêntrico
membro do Partido Comunis- (1). Além da prioridade securi-
ta da China, Zheng Bijian, em no reconhecimento tária, a diplomacia chinesa busca
2002 – inclusive como resposta do multilateralismo e liderar os processos de integração
aos recorrentes argumentos de regionais, notadamente a Organi-
“ameaça chinesa” ou “colapso da
da cooperação como zação para a Cooperação de Xan-
China”. O conceito foi rejeitado, forma de construir uma gai, criada em 2001 com China,
entre outras razões, porque pro- nova ordem mundial Rússia, Cazaquistão, Quirguistão,
vocava desconfiança nos países Tadjiquistão e Uzbequistão, com
vizinhos em razão da noção de a incorporação de Índia e Paquis-
“ascensão”. De acordo com Tian- tão em 2017; a Parceria Econômi-
quan (2012, p. 188), o Relatório do 17° Congresso do ca Regional Ampla (Regional Comprehensive Economic
Partido Comunista Chinês em 2007 adotou a ideia Partnership ou ASEAN + 6 em 2011); e a Nova Rota
de Desenvolvimento Pacífico e Mundo Harmonioso. da Seda (YIWEI , 2016) (2), lançada em 2013 e já
Já em 2004, um britânico, Joshua Ramo, passou impulsionada com o Fórum promovido em maio de
a falar no Consenso de Pequim. Com ele, a China 2017.
tem apresentado um caminho alternativo baseado Por um lado, a China está reconstituindo um sis-
tanto no reconhecimento das necessidades locais do tema sinocêntrico a partir desses processos de inte-
desenvolvimento de cada país, quanto no reconhe- gração como núcleo do próprio projeto chinês de glo-
cimento do multilateralismo e da cooperação como balização. Ressalte-se que outro importante vetor de
forma de construir uma nova ordem mundial (AR- atuação da China tem sido a conformação de outra
RIGHI, 2008, p. 383). Embora não tenha sido conce- arquitetura financeira global (3), baseado em novos
bido pela elite chinesa, o fato é que o modelo chinês, mecanismos de financiamento e na transformação
com forte atuação do Estado no desenvolvimento e do Yuan em moeda conversível. Por outro, as linhas
baseado nos históricos Cinco Princípios de Coexis- de tensão com a superpotência (EUA) ficam cada vez
tência Pacífica (1955), é percebido como diferente mais claras, como bem ilustra sua política de conten-
– e até divergente – da supremacia neoliberal con- ção e cerco à China. Trata-se de um arco de contenção:
sagrada no Consenso de Washington e do interven- a leste, inicia-se na Península Coreana, mantendo
cionismo dos EUA. Aliás, pode-se dizer que converge o regime de Pyongyang na defensiva, militarizando
com o proclamado o chinese dream, buscando com- a região e visando a legitimar o sistema antimíssil
partilhar as perspectivas de prosperidade e estabili- THAAD na Coreia do Sul; continua ao alimentar
dade com toda a região (ZHA, 2015). Este é concebi- aspirações independentistas de Taiwan e prossegue

76
Internacional

com a tentativa de fomentar a escalada de violência


e o sentimento antichinês no Mar do Sul da China REFERÊNCIAS
(4); contorna o sul com as disputas por Mianmar e
as ações voltadas a apoiar a nuclearização da Índia AMIN, Samir. A via de desenvolvimento de orientação
socialista. São Paulo: Anita Garibaldi, 2010.
(5); e culmina a sudoeste e oeste, no Paquistão, Afe-
GUO, Sujian. Chinese politics and government (Política
ganistão e nos movimentos separatistas na China e governo chineses). New York: Routledge, 2013.
(Xinjiang e Tibet) e de regime change na Ásia central. HARVEY, David. O neoliberalismo: história e
implicações. São Paulo: Loyola, 2008.
Considerações finais JINPING, Xi. Governança Global. Pequim: Editora De
Línguas Estrangeiras, 2016.
A Nova Síntese que a China está a construir será JUNRU, Li. What do you know about the Communist
um processo de longa duração; sua questão nacional Party of China? (O que você sabe sobre o Partido
tende a ser tanto referência para outros países como Comunista da China?). Pequim: Foreign Language
Press, 2011.
um teste também para o futuro do marxismo. Pelas
LOSURDO, Domenico. Fuga da história? Rio de Janeiro:
dimensões do experimento, legará não apenas lições
Revan, 2004.
à China e às demais lutas nacionais, como transfor-
PAUTASSO, Diego. A China na nova arquitetura
mações para a ordem internacional. Ou seja, a China geoeconômica global e o caso do Banco Asiático de
se transforma no epicentro da produção mundial e, Investimento em Infraestrutura. In: Meridiano 47, vol.
através de sua política de investimento em infraes- 16, 2015, p. 12-19.
trutura, alarga as bases da produção e do consumo _____. China, Rússia e a integração asiática: o sistema
em âmbito mundial. Obviamente, essa rota de de- sinocêntrico como parte da transição sistêmica. In:
senvolvimento entra em contradição com aquela li- Conjuntura Austral, vol. 1, 2011, p. 1-16.
derada pelos EUA, assentada no capitalismo rentista _____.; DORIA, Gaio. A China e as disputas no Mar do
Sul: o entrelaçamento entre dimensões regional e
e em escaladas militares em diversos quadrantes do global. In: Revista de Estudos Internacionais. Vol. 8, nº
Globo. Em outras palavras, a Nova Rota da Seda é o 2, 2017a, p. 18-32.
embrião do projeto chinês de globalização, enquanto _____; UNGARETTI, Carlos. A Nova Rota da Seda
os EUA levam adiante a Guerra Global ao Terror e as e a recriação do sistema sinocêntrico. In: Estudos
políticas do Consenso de Washington. Em suma, o Internacionais. Vol. 4, 2017b, p. 25-44.
enigma do século 21 reside na confrontação de pro- _____; SCHOLZ, Fernando. A Índia na estratégia de
jetos e soluções para lidar com os avanços da atual poder dos Estados Unidos para a Ásia. In: Conjuntura
Austral. Vol. 4, 2013, p. 35-54.
revolução tecnológica, da crescente polarização so-
TIANQUAN, Cheng. The Road of China (A rota da
cial e dos limites ambientais.
China). Pequim: China Renmin University Press, 2012.
VISENTINI, Paulo. A dimensão estratégica da questão
* Diego Pautasso é mestre e doutor em Ciência nacional. In: Revista Princípios. São Paulo, nº 149,
Política e graduado em Geografia pela UFRGS. 2017, p. 13-17.
Atualmente é pós-doutorando em Estudos _____. A Novíssima China e o sistema internacional.
Estratégicos Internacionais (UFRGS) e professor In: Revista de Sociologia Política. Curitiba, vol. 19,
de Geografia do CMPA. Autor do livro China e suplementar, nov./2011, p. 131-141.
Rússia no Pós-Guerra Fria (editora Juruá, 2011). WARE, Robert. Reflections on Chinese Marxism
(Reflexões sobre o marxismo chinês). In: Socialism and
E-mail: dgpautasso@gmail.com
Democracy. Vol. 27, nº 1, 2013, p. 136-160.
YIWEI, Wang. The Belt and Road Initiative (A Iniciativa
Belt and Road). Pequim: New World Press, 2016.
NOTAS
ZHA, Daojiong. China’s Economic Diplomacy: Focusing
on the Asia-Pacific Region (Diplomacia Econômica
(1) Trabalhamos a (re)constituição do sistema sinocêntrico origi- da China: Focando a região Ásia-Pacífico). In: China
nalmente em outro artigo. Ver PAUTASSO (2011). Quarterly of International Strategic Studies. Vol. 01, nº
(2) Discutimos de maneira mais aprofundada o papel da Nova Rota 01, 2015, p. 85-104.
da Seda em outro trabalho. Ver PAUTASSO (2017b).
ZHAO, Suisheng. Chinese Foreign Policy as a Rising
(3) Tratamos da liderança chinesa na construção de novos arranjos
Power to find its Rightful Place (Política Externa
financeiros globais em outro estudo. Ver PAUTASSO (2015).
Chinesa como um Poder Crescente para encontrar o
(4) Abordamos os conflitos no Mar do Sul da China em outra pes-
seu Lugar Legítimo). In: Perceptions. Spring 2013, vol.
quisa. Ver PAUTASSO e DORIA (2017a).
XVIII, nº 1, p. 101-128.
(5) Abordamos em outro artigo a política dos EUA voltada a apoiar
a nuclearização da Índia, com evidentes intenções antichinesas. ŽIŽEK, Slavoj. Vivendo no fim dos tempos. São Paulo:
Ver PAUTASSO e SCHOLZ (2013). Boitempo, 2012.

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Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017

Um Marx político em
sua plenitude
Juarez Guimarães*

O
livro Caminhos da liberdade no jovem Marx, de
Júlia Lemos Vieira, deve ser saudado como
um dos mais importantes livros já publica-
dos sobre a obra de Marx no Brasil. Através de um
didático trabalho de pesquisa e documentação, de
releitura e interpretação, o que temos com esta bela
obra é um Marx livre para o século 21, mais do que
nunca clássico e, ao mesmo tempo, contemporâneo.
Há pelo menos três conquistas centrais nesta tese
de doutorado amadurecida e editada.
A primeira delas é ser capaz de construir uma
narrativa convincente que supera a conhecida polê-
mica das leituras que operam com uma ruptura en-
tre o “velho Marx” e o “jovem Marx”, entre os seus
primeiros escritos humanistas e a sua obra tardia,
centralizada na redação de O Capital, entre o jovem
hegelianismo idealista de sua primeira consciência e
o materialismo científico da maturidade. Muitas ve-
zes, aqueles que discordavam desta leitura o faziam
ainda no próprio campo da polêmica, enfatizando as
CAMINHOS DA LIBERDADE NO JOVEM MARX dimensões humanistas onipresentes em todos os es-
critos marxistas, da juventude ao inacabamento de
Autor: Júlia Lemos Vieira O Capital.
Páginas: 400 A vantagem da obra de Júlia Lemos é que ela
nos propõe pensar as mudanças – o enriquecimen-
Editora: Anita Garibaldi to, o amplo trabalho de pesquisa e elaboração, até
ISBN: 978-85-7277-185-6 mesmo a formação de uma identidade própria do
marxismo – como um só itinerário formado em
Ano de publicação: 2017 – 1ª edição torno da ideia de liberdade. Propõe-se, neste senti-
Formato: 16 x 23 cm do, a unidade transformativa da obra de Marx no
processo vivo da história em que ela se fez. O que
Preço: R$49,00 é decisivo: o caminho da cisão histórica da cultu-
Disponível* em: www.anitagaribaldi.com.br. ra do marxismo esteve desde o início vinculado a
operações de cisão na obra do próprio Marx. Reen-
contrar a unidade em Marx é um caminho para se
pensar a unidade, no pluralismo, da própria cultu-
ra do marxismo.
A segunda conquista central é valorizar a desco-
berta do conceito de práxis por Marx como modo de
superar os velhos antagonismos, herdados da Ilus-
tração e de seu desenvolvimento na filosofia alemã
do século 19, entre materialismo e idealismo. Esta
centralidade conferida à práxis, tal como Gramsci,
permite a Júlia Lemos se afastar do economicismo,
das visões deterministas ou semideterministas, que

78
RESENHA

terminam por tornar incompatível o marxismo com conhecimento contextual muito mais erudito sobre
a própria noção de história aberta e de liberdade. as culturas políticas e filosóficas do século 19 na Ale-
O Marx que surge daí é, então, um Marx políti- manha, em seu estreito desenvolvimento com a Fran-
co em sua plenitude, o jovem editor em luta contra o ça da revolução francesa. Ora, estes novos trabalhos
Estado prussiano, o crítico da alienação do trabalho, recentes, trabalhando mais profundamente texto e
o opositor das seitas que aspiram à “emancipação pe- contexto, têm apontado a mesma linha da reflexão
lo alto”, o revolucionário de 1848, o internacionalista inteligentíssima de Júlia Lemos. O seu livro tem, por-
defensor da Comuna de Paris, o Marx crítico do Es- tanto, este mérito de estar em linha com as melhores
tado liberal moderno e militante da revolução anti- reflexões que hoje se fazem sobre a obra de Marx.
capitalista. Neste século 21, em que avultam as dinâmicas
A terceira conquista de Júlia Lemos, solidária regressivas da tradição predominante do libera-
às duas primeiras, é propor o entendimento de que lismo nas últimas décadas, o neoliberalismo, este
“seu projeto de revolução social radical descende da Marx livre – liberto da acusação histórica dos li-
recusa da imposição de uma razão pública não deter- berais de haver uma contradição insolúvel entre
minada efetivamente pelo povo, da recusa da máxi- Marx e a ideia de liberdade, mas também livre das
ma de que o povo não sabe o que quer e, neste senti- tradições que o cultivaram dogmaticamente – é
do, da recusa de que se faria necessária a imposição fundamental. Se o neoliberalismo é liberticida, se
de uma razão desenvolvida conceitualmente, cindi- as formas contemporâneas do capitalismo finan-
da da determinação do povo, em nome da liberdade ceiro e globalizado atentam cada vez mais contra o
desse povo.”. Após afirmar que o “projeto de cunho princípio da soberania popular e da autonomia do
rousseauniano não é propriamente abandonado, mas trabalhador, se cada vez mais só é possível defen-
muda de caráter”, Júlia Lemos afirma que “entre o der a liberdade de forma coerente sendo também
jovem Marx republicano e o jovem Marx comunista anticapitalista, então, estes caminhos da liberdade
há, assim, um mesmo horizonte de dissolução das do jovem Marx são também, promissoramente, as
cadeias dos homens entendidas como alienações: a alamedas da renovação da luta pelo socialismo no
autonomia como princípio do humanismo.”. século 21.
Há hoje na literatura marxista internacional, em
seus centros mais avançados de reflexão, um conhe- * Juarez Guimarães é professor associado de
cimento muito mais textual da obra de Marx, permi- Ciência Política da UFMG e autor de Democracia e
tida pela edição em curso de sua obra completa, e um marxismo: Crítica à razão liberal (Xamã, 1998).

Marx e Engels na imprensa da NRZ em Colônia no momento da revolução de 1848-1849. Pintura de E. Capiro

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Ed. 151 – Novembro/Dezembro 2017

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