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21/04/2020 Choque de titãs no coração da Terra

Choque de titãs no coração da Terra


por Pepe Escobar [*]

Os loucos anos vinte começaram com o estrondo do


assassínio do general iraniano Qasem Soleimani.

No entanto, um estrondo maior nos aguarda ao longo da


década: os vários desdobramentos do Novo Grande Jogo na
Eurásia mercê do afrontamento dos Estados Unidos contra a
Rússia, a China e o Irão, os três principais pilares da
integração na região.

Qualquer acto de mudança neste jogo em termos de


geopolítica e geoeconomia terá de ser analisado em conexão
com esse choque de grande envergadura.

O Estado Profundo (Deep State) norte-americano e os


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sectores determinantes da classe dominante dos Estados


Unidos da América vivem absolutamente aterrorizados com o
facto de a China estar a ultrapassar economicamente a
"nação indispensável" e de a Rússia a ter superado
militarmente . O Pentágono designa oficialmente os três
pilares da Eurásia como "ameaças".

As técnicas de guerra híbrida – acompanhadas pela


demonização sorrateira incessante – irão proliferar com o
objectivo de conter a "ameaça" da China, a "agressão" russa
e o "patrocínio do terrorismo" do Irão. O mito do "mercado
livre" continuará a sentir-se de maneira asfixiante através da
imposição de uma enxurrada de sanções ilegais,
eufemisticamente apresentadas como novas "regras"
comerciais.

No entanto, tais práticas dificilmente serão suficientes para


inviabilizar a parceria estratégica sino-russa. Para desvendar
o significado mais profundo dessa parceria é importante
compreender que Pequim a define como o rumo para "uma
nova era". Isso significa um planeamento estratégico a longo
prazo – na perspectiva da data-chave de 2049, o centenário
da Nova China.

O horizonte para os múltiplos projectos da Iniciativa Cintura e


Estrada (ICE), também conhecida como Nova Rota da Seda,
é, de facto, a década de 2040, altura em que Pequim calcula
ter tecido completamente um novo paradigma multipolar de
nações/parceiros soberanos na Eurásia e além dela, todos
associados por um labirinto interligado de cinturas e estradas.

Quanto ao projecto russo – a Grande Eurásia – reflecte de


alguma maneira a Cintura e Estrada e estará integrado nesse
processo. A Iniciativa Cintura e Estrada, a União Económica
da Eurásia, a Organização de Cooperação de Xangai e o
Banco de Investimento em Infraestruturas da Ásia convergem
na mesma perspectiva.
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Realpolitik

Esta "nova era" definida pela parte chinesa depende


fortemente de uma estreita coordenação entre Pequim e
Moscovo em cada sector. O projecto "Made in China 2025"
engloba uma série de avanços técnico-científicos. Ao mesmo
tempo, a Rússia afirma-se com recursos tecnológicos sem
paralelo em armas e sistemas, em níveis que a China ainda
não consegue atingir.

Na última cimeira dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e


África do Sul) realizada em Brasília, o presidente Xi Jinping
disse a Vladimir Putin que "a actual situação internacional,
com crescentes instabilidade e incerteza, instou a China e a
Rússia a estabelecer uma coordenação estratégica mais
estreita". A que Putin respondeu: "Na situação actual, os dois
lados devem continuar a manter uma estreita comunicação
estratégica".

A Rússia está a mostrar à China como o Ocidente respeita o


poder da Realpolitik de qualquer forma; e Pequim está
finalmente começando a usá-lo. O resultado é que, após
cinco séculos de dominação ocidental – que, aliás, levaram
ao declínio das antigas rotas da seda – o Heartland [1] está
de volta com estrondo, afirmando a sua influência.

A minha observação pessoal, as viagens que realizei nos


últimos dois anos na Ásia Ocidental e Central e as minhas
conversas nos últimos dois meses com analistas em Nur-
Sultan (Casaquistão), Moscovo e Itália permitiram-me
mergulhar na complexidade do que algumas mentes afiadas
definem como Double Helix (dupla hélice). Estamos cientes
dos imensos desafios que há pela frente – ao mesmo tempo
que é difícil acompanhar o impressionante ressurgimento do
Heartland em tempo real.

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Em termos de soft power, o papel de destaque da diplomacia


russa tornar-se-á ainda mais importante – sustentado por um
Ministério da Defesa liderado por Serguei Shoigu, um tuvano
da Sibéria e um braço de inteligência capaz de dialogar
construtivamente com todos: Índia/Paquistão, Coreia do
Norte/Sul, Irão/Arábia Saudita, Afeganistão.

Esse processo amortece (complexas) questões geopolíticas


de uma maneira que ainda ilude Pequim.

Paralelamente, praticamente toda a região Ásia/Pacífico tem


agora em consideração a Rússia e a China como forças
opostas à superioridade financeira e naval dos Estados
Unidos.

Apostas no Sudoeste asiático

O assassínio direccionado do general Soleimani, por todas


as suas consequências a longo prazo, é apenas um
movimento no tabuleiro do Sudoeste da Ásia. Em última
análise, o que está em jogo é um prémio macro-
geoeconómico: uma ponte terrestre do Golfo Pérsico ao
Mediterrâneo Oriental.

No Verão passado uma reunião trilateral Irão-Iraque-Síria


estabeleceu que "o objectivo das negociações é activar o
corredor de carga e transportes" entre os três países "como
parte de um plano mais vasto que é o da reactivação da Rota
da Seda".

Não poderia haver um corredor de ligação mais estratégico,


capaz de se interligar simultaneamente com o Corredor
Internacional de Transporte Norte-Sul; com a conexão Irão-
Ásia Central-China até ao Pacífico; e com Latakia (Síria) em
direcção ao Mediterrâneo e ao Atlântico.

O que está no horizonte é, de facto, uma sub-secção da


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Iniciativa Cintura e Estrada no Sudoeste da Ásia. O Irão é um


nó central da ICE. A China está fortemente envolvida na
reconstrução da Síria; e Pequim e Bagdade assinaram vários
acordos e criaram um Fundo de Reconstrução Iraquiano-
Chinês (receitas de 300 mil barris de petróleo por dia em
troca de crédito chinês para as empresas chinesa que
reconstroem as infraestruturas iraquianas).

Uma rápida olhadela aos mapas revela o "segredo" da


atitude dos Estados Unidos de se recusarem a fazer as
malas e a deixar o Iraque, conforme lhes foi exigido pelo
Parlamento e pelo primeiro-ministro iraquianos: impedir o
ressurgimento desse corredor através de todos os meios
necessários. Especialmente quando sabemos que todas as
estradas em construção pela China na Ásia Central – passei
por muitas delas em Novembro e Dezembro – acabam
ligando a China ao Irão.

O objectivo final: unir Xangai ao Mediterrâneo Oriental por


terra, através do Heartland.

Por mais que o porto de Gwadar no Mar da Arábia (no


Baluchistão paquistanês) seja um nó essencial do Corredor
Económico China-Paquistão, e parte da multifacetada
estratégia da China para "escapar ao Estreito de Malaca"
(controlado pelos Estados Unidos), a Índia também cortejou o
Irão para replicar Gwadar com o porto de Chabahar, no Golfo
de Omã.

Enquanto a China pretende ligar o Mar da Arábia ao Xinjiang


através do corredor económico, a Índia deseja conectar-se
ao Afeganistão e à Ásia Central via Irão.

No entanto, os investimentos da Índia em Chabahar podem


dar em nada, uma vez que Nova Deli ainda está a ponderar
se deve tomar parte activa na estratégia "Indo-Pacífico" dos
Estados Unidos; nesse caso, o Irão retirar-se-ia desse
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processo.

O exercício militar conjunto Rússia-China-Irão em finais de


Dezembro, iniciado exactamente em Chabahar, foi um sinal
inequívoco dado a Nova Deli. A Índia não pode simplesmente
ignorar o Irão ou acaba por perder o seu principal nó de
ligação, Chabahar.

Há um facto imutável: todas as partes interessadas têm


necessidade de ligações com o Irão. Por razões óbvias,
desde o Império Persa, trata-se de um centro privilegiado de
todas as rotas comerciais da Ásia Central.

Mais importante ainda é o facto de, para a China, o Irão ser


uma questão de segurança nacional. A China investe
fortemente no sector energético do Irão. Todo o comércio
bilateral é processado na moeda chinesa ou numa cesta de
moedas que ignora o dólar norte-americano.

Enquanto isso, os neocons (neoconservadores) dos Estados


Unidos sonham ainda com o objectivo de Cheney na década
passada: mudança de regime no Irão que permita aos
Estados Unidos dominarem o Mar Cáspio como trampolim
para a Ásia Central, apenas a um passo de distância de
Xinjiang e do incentivo aos procedimentos anti-chineses. Isto
poderia ser encarado como uma Nova Rota da Seda ao
contrário, para afundar o projecto da China.

A batalha das eras

Um novo livro, The Impact of the Belt and Road Iniciative (O


Impacto da Iniciativa Cintura e Estrada) da China, de Jeremy
Garlick, da Universidade de Economia de Praga, tem o mérito
de admitir que o facto de a ICE "fazer sentido" é
"extremamente difícil".

Trata-se de uma tentativa extremamente séria de teorizar


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sobre a imensa complexidade da Iniciativa Cintura e Estrada,


especialmente considerando a abordagem flexível e
sincrética da China para elaboração de políticas, bastante
desconcertante para os ocidentais. Para atingir o seu
objectivo, Garlick entra no paradigma da evolução social do
professor Shiping Tang , mergulha na "hegemonia neo-
gramsciana" e disseca o conceito de "mercantilismo ofensivo"
– tudo como parte de um esforço no sentido do "ecletismo
complexo".

O contraste com a vulgar narrativa de demonização da ICE


terrestre que emana dos "analistas" norte-americanos é
flagrante. O livro aborda em pormenor a natureza
multifacetada do transregionalismo da ICE como um
processo orgânico em evolução.

Os criadores de políticas imperiais não se preocupam em


compreender como e porquê a ICE tem vindo a estabelecer
um novo paradigma global. A recente cimeira da NATO em
Londres proporcionou algumas dicas. A NATO adoptou
acriticamente três prioridades dos Estados Unidos: política
ainda mais agressiva em relação à Rússia; contenção da
China (incluindo vigilância militar); e militarização do espaço
– uma recuperação da doutrina do domínio do espectro total
(Full Spectrum Dominance) de 2002.

Deste modo, a NATO será atraída para a estratégia "Indo-


Pacífico", o que significa contenção da China. E como a
NATO é o braço armado da União Europeia, isso implica que
os Estados Unidos venham a interferir, a todos os níveis, na
maneira como a Europa negoceia com a China.

O coronel na reserva do Exército dos Estados Unidos


Lawrence Wilkerson, chefe de gabinete de Colin Powell de
2001 a 2005, vai directo ao ponto:

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"Hoje a América existe para fazer a guerra De que


outra maneira poderemos interpretar 19 anos
seguidos de guerra e sem fim à vista? Faz parte de
quem somos. Faz parte do que é o Império
Americano. Vamos mentir, trapacear e roubar, como
Pompeo está a fazer, como Trump está a fazer, como
Esper está a fazer… e vários outros membros do meu
partido político, os republicanos, estão a fazer. Vamos
mentir, trapacear e roubar de maneira a fazer o que
for preciso para manter esse complexo de guerra.
Esta é a verdade de tudo isto. E essa é a agonia".

Moscovo, Pequim e Teerão têm plena consciência das


apostas. Diplomatas e analistas estão a trabalhar na
tendência do trio para desenvolver um esforço conjunto de
modo a protegerem-se entre si de todas as formas de guerra
híbrida – incluindo sanções – lançadas contra cada um deles.

Para os Estados Unidos, esta é realmente uma batalha


existencial – contra todos os processos de integração da
Eurásia, as Novas Rotas da Seda, a parceria estratégica
Rússia-China, as armas hipersónicas russas com uma
diplomacia flexível, as profundas oposição e revolta contra as
políticas norte-americanas através de todo o Sul global, o
quase inevitável colapso do dólar norte-americano. Mas é
certo que o Império não se irá desvanecer silenciosamente
durante a noite. Todos devemos estar preparados para a
batalha das eras.
(1) Heartland, "coração da terra" é uma teoria geoestratégica exposta em 1904 pelo
geógrafo britânico Halford John Mackinder assente na importância da Eurásia como
"Grande Ilha" e cujo desenvolvimento, em termos de interligações terrestres, demonstraria
que as grandes potências marítimas estavam confrontadas com os seus limites. Berlim-
Moscovo seria o eixo do Heartland, substituído hoje por Moscovo-Pequim mas mantendo-se
Rússia, Alemanha e China como "Estados-pivot". O Heartland deve ser entendido hoje, em
termos de desenvolvimento, como "deslocado" para Leste, isto é, menos europeu e mais
asiático.

[*] Jornalista, brasileiro, colaborador do Asia Times e de


várias publicações internacionais
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O original encontra-se em thesaker.is/battle-of-the-ages-


to-stop-eurasian-integration/
e a tradução em www.oladooculto.com/noticias.php?
id=627

Este artigo encontra-se em https://resistir.info/ .


24/Jan/20

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