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VOCAÇÃO LATINA?

(RE)PENSANDO A PARCERIA
ESTRATÉGICA BRASIL-FRANÇA NA GEOPOLÍTICA
MULTIPOLAR

Gabriel de Souza Oliveira e Silva 1


Pedro Luiz Rodrigues Barreto2

As reflexões do presente trabalho têm por objetivo (re)posicionar a parceria


estratégica entre Brasil e França na esteira das transformações da cena internacional
contemporânea. Buscar-se-á compreender não apenas a raison d’être de tal parceria,
como também destacar as profundas confluências (diplomáticas, militares, econômicas
e culturais) que historicamente permearam as interações franco-brasileiras – quer em
âmbito regional, quer mundial – especialmente ao término da Guerra Fria. Ao colocar
em tela os longevos e amistosos vínculos destas duas nações latinas, unidas tanto pela
cultura, quanto pela geografia – porquanto também compartilham de uma vasta,
embora nem sempre lembrada, fronteira terrestre – buscaremos também elucidar os
principais objetivos estratégicos que norteiam a moderna inserção internacional francesa
e brasileira. Embora perpassada por impasses e tensões, argumenta-se que as relações
entre Brasília e Paris já se provaram particularmente promissoras, tendo suas elites
assentado um consistente entendimento político-estratégico - formalmente expresso no
lançamento da Parceria Estratégica Brasil-França, em 2006. Dessa parceria, deu-se
ensejo a iniciativas especialmente sensíveis aos interesses brasileiros, como o Programa
de Desenvolvimento de Submarinos (Prosub), o Programa de Helicópteros (HX-BR) e o
Programa de Satélite Geoestacionário de Defesa e de Comunicação (SGDC). Assim
sendo, propor-se-á lançar um olhar para o futuro: apontando para o imprescindível papel
que a repactuação entre ambos os Estados latinos tende a assumir em uma ordem
geopolítica cada vez mais multipolar e multicivilizacional; permitindo-lhes incrementar
seu poder e influência no jogo de poder mundial.

1
Mestrando em Direito, pela Faculdade de Direito da UFMG, sob a orientação do Prof. Dr. José Luiz
Borges Horta; e em Planejamento, Desenvolvimento e Território, pelo Departamento de Ciências
Econômicas da UFSJ, sob orientação do Prof. Dr. Claudio Gontijo. Bacharel em Ciências do Estado, pela
UFMG.
2
Mestrando em Direito, pela Faculdade de Direito da UFMG, sob a orientação do Prof. Dr. José Luiz
Borges Horta. Bacharel em Ciências do Estado, pela UFMG.
Palavras Chaves: Geopolítica, França e Brasil.
1. Introdução - duzentos anos de Independência na crise da hegemonia
Não é sem razão que propomos repensar a parceria estratégica entre Brasil e
França aos duzentos anos de independência do Estado brasileiro. Por certo, tem-se na
rememoração coletiva das lutas e dos labores que deram ensejo à nossa emancipação
nacional, construída também a partir de refinada atuação externa, um irresistível
estímulo para fazer novas as perspectivas estratégicas do país e, com isso, alargar seus
horizontes de inserção internacional.

De mesmo modo, a quadra histórica em que parece adentrar o século XXI também
nos impõe a tarefa (irrecusável) de reavaliar os caminhos da Nação no resguardo de sua
autonomia e na defesa de seus interesses. Isso porque coincide o bicentenário da
independência do Brasil com o mais avassalador ponto de virada na geopolítica do
globo desde o fim da Guerra Fria. De fato, testemunha-se hoje no palco do mundo o
desvelar de uma nova era na ordem internacional, que promete reconfigurar
profundamente o jogo de poder entre as nações. Sinais inequívocos de uma tal transição
fazem sentir-se na cada vez mais evidente derrocada da hegemonia norte-americana 3
sobre o globo, bem como na emergência de novos (e competitivos) atores no plano
econômico, militar e político.

São eventos emblemáticos dessa transformação a desastrosa retirada das tropas


estadunidenses do Afeganistão, em agosto de 2021, e a eclosão da Guerra na Ucrânia,
ante a deflagração da Operação Z, pela Federação Russa. Pode-se dizer que o segundo
reforça e amplia as tendências evidenciadas pelo primeiro.

Nesse diapasão, pode-se dizer que as vexatórias cenas protagonizadas pelos


Estados Unidos da América (EUA) em Cabul expuseram de forma latente as
fragilidades do império norte-americano na presente quadra epocal.
Concomitantemente, elas também serviram como nítido marco do fim de um ciclo
histórico: o epílogo da Guerra ao Terror (2001-2021). Isto ocorre não para que haja
mais paz e estabilidade no globo, mas porque, agora, consolida-se um novo consenso
estratégico entre as elites americanas, segundo o qual as maiores ameaças ao seu
império viriam da emergência de China e Rússia (enquanto binômio contra
3
Para o economista Cláudio Gontijo o fim da hegemonia está intimamente ligada ao poder do dólar frente
a realidade da economia política internacional, e em sua obra das mais recentes apresenta seus
argumentos. GONTIJO, Cláudio. A Nova Crise da Hegemonia Americana. Curitiba: Appris, 2019.
hegemônico), potências tidas por tais elites como revisionistas. Em sua última
participação na Conferência de Segurança de Munique, Mark Esper, então secretário de
Defesa do governo de Donald Trump, apontava para uma era marcada pela rivalidade
entre as Grandes Potências.4 Eis o paradigma que parece emergir. Não mais uma
imprecisa, esparsa e “glocal” guerra ao terror - que até então conformou a dinâmica
internacional de nosso século - mas uma época configurada pela aberta disputa entre
macro entidades e seus interesses. No assim chamado retorno da geopolítica,5Estado,
nações e, quiçá, civilizações, parecem retornar ao centro do tabuleiro.

Nesse sentido, o novo capítulo do conflito em Donbass, o qual teve lugar com a
incursão militar russa em território ucraniano, em Fevereiro de 2022, veio a reafirmar
essa tendência. Uma vez deflagrada a Guerra na Ucrânia, revitalizam-se questões de
segurança e autonomia por todo mundo. Em face, por exemplo, da remilitarização da
Alemanha6 e do cada vez mais afinado pacto estratégico sino-russo, 7 tem-se claro que o
mundo atravessa um verdadeiro giro geopolítico, em que as apreensões securitária e a
reanimada rivalidade entre as potências assumem centralidade no futuro próximo.

Com efeito à luz de um tal contexto, julgamos pertinente considerar uma


repactuação dos laços entre Brasil e França, tornando-o elemento integrante de uma
nova grande estratégia que habilite o Estado brasileiro a seguir em seu caminho de
desenvolvimento e reafirmação, principalmente em face dos novos desafios subjacentes
à nova realidade internacional da qual falamos. Para tanto, é necessário situar tais laços
em seu itinerário histórico, identificando, ademais, suas possibilidades e confluências.

4
ESPER, Mark. As Prepared Remarks by Secretary of Defense Mark T. Esper at the Munich
Security Conference [ 15 de Fevereiro, 2020] U.S. Department of Defense. Disponível em:
https://www.defense.gov/News/Speeches/Speech/Article/2085577/as-prepared-remarks-by-secretary-of-
defense-mark-t-esper-at-the-munich-security/. Acesso em 27 de Julho, 2022.
5
MEAD, Walter Russell. The return of geopolitics. Foreign Affairs, Maio/Junho, 2014. Disponível
em: https://www.foreignaffairs.com/articles/china/2014-04-17/return-geopolitics. Acesso em: 22 de
Julho, 2022.
6
Alemanha elevará orçamento de defesa em 100 bilhões de euros. DW Brasil. Disponível em:
https://www.dw.com/pt-br/alemanha-elevar%C3%A1-or%C3%A7amento-de-defesa-em-100-bilh
%C3%B5es-de-euros/a-61976540. Acesso em: 27 de Julho, 2022.
7
China e Rússia se aliam contra o que chamam de interferência externa. G1. Disponível em:
https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2022/02/04/china-e-russia-se-aliam-contra-o-que-chamam-
de-interferencia-externa.ghtml. Acesso em: 22 de Julho, 2022.
2. Desenvolvimento – O devir e o porvir
Partindo do pressuposto de que fraturas e rupturas na geopolítica global estão em
seu apogeu de realização, desde a queda do muro de Berlim (1989), e a então
proclamada finalização da guerra fria8, entendemos que a identificação de alguns fatores
se faz necessária para que a realidade seja compreendida. Apressadamente, ou ainda,
como já prenunciado no resumo e na introdução, têm-se que a identificação de onde
estamos e para onde queremos ir é a função de textos que se pretendem propositivos;
portanto, faz-se necessária uma determinação minuciosa dos elementos corretos.

2.1 Para um devir


É cognoscível à audiência especializada – que a temática exige -, o fato de que o
conflito que abarca não somente o território da República ucraniana não é somente
sobre as divergências entre as duas nações eslavas que ali compões não apenas estes
dois países, bem como, diz sobre um período que notoriamente não se deu por prescrito
na História recente. É provável que aqui resida o nosso onde estamos. A magnitude já
alcançada em apenas cinco meses de conflito nos permite aduzir que todo o tabuleiro
das relações de forças mundiais está sendo colocado à prova.

Aparentemente estamos partindo de uma realidade hegemônica por parte dos


Estados Unidos da América a uma tentativa contra hegemônica por parte da Federação
Russa. Nessa disposição dos atores temos China enquanto um aliado mais assíduo e
interessado nos ideais russos por uma série de fatores; hoje a China já desponta como
maior potência econômica - na maioria dos prismas de avaliação possíveis para que se
chegue nessa conclusão9; o enfraquecimento da realidade hegemônica estadunidense
beneficia de forma direta a expressão político e econômica da República Popular
Chinesa, portanto, por mais que a China não se envolva, no primeiro momento,

8
Existem autores que vão trabalhar com a ideia de que a guerra fria não acabou de fato, por um plexo
considerável de motivos, dentre eles: o golpe perpetrado na URSS e o fato de a economia estadunidense
nunca ter se estabelecido de fato como um fim da história. Entretanto, para as mídias de massas, que
trabalham com o marco temporal do muro de Berlim (1989) estamos presenciando uma reedição do que
foi finalizado com a existência do muro.
9
Dados esparsos apontam que entre 2027 e 2028 o PIB chines deve ultrapassar o PIB americano,
entretanto, como demonstrado por Gontijo em seu A nova Crise da Hegemonia americana alguns
elementos mais importantes e mais sensíveis da economia chinesa já apresentam índices melhores do que
os índices estadunidenses, como o poder de paridade de compra per capita e a taxa de crescimento média
anual. A República Popular Chinesa pode até não sustentar os vertiginoso crescimento acima dos dez
pontos percentuais que impressionaram o mundo durante décadas, mas ainda sim, é uma potência que
apesar de toda a crise de 2008 - que abalou algumas potencias e a mais recente crise gerada pelo covid-19
- consegue sustentar seu crescimento econômico, coisa que os EUA não têm sido capaz.
diretamente no conflito ela consegue angariar benefícios oriundos do embate. Outras
nações colhem frutos difusos também ocasionados pela realização do conflito, como é o
caso da já sancionada internacionalmente Venezuela. Vejamos bem, o estreitamento de
relações, não antes distantes, entre nações que agora se vem fora das principais mesas
decisórias da política e da economia internacional chega a ser uma questão de
sobrevivência. Uma sanção política e ou econômica nos tempos presentes possui
desdobramentos tão avassaladores quanto um arcaico ataque bélico, como os que o
território ucraniano vem sofrendo. É nesse local de entendimento que nossas ideias
tentam se inserir.

No lado “atacado”, ou para entendermos quem são os irmãos de armas da


República Ucraniana, temos uma espécie de conjunto de satélites que orbitam a nação
hegemônica estadunidense. Os custos que os Estados Unidos da América têm arcado
para manter a sua hegemonia não são baixos, mais alto ainda são os custos que nações
satélites se predispõem a arcar; e aqui reside o cheque perpetrado por Vladimir Putin à
hegemonia estadunidense. Em resumo temos que, geoestrategista e presidente russo,
planejou minuciosamente e por alguns anos, o que faria, como faria (não tinha de ser
diferente visto sua formação e preparação), o movimento que ele faz no tabuleiro
produz sanções. Ainda, após cinco meses de embate podemos dizer que surtem menos
eficiência do que o esperado. O coronel da KGB consegue resistir e manter o ponto que
toda a escola de pensamento russófila vem sustentando nas últimas décadas; o da
possibilidade de contra hegemonia.

2.2 Para um porvir


Pois bem, para além da leitura rasa e do juízo de valor que momentos delicados
levantam, é de se suplantar a importância do planejamento e da execução correta do que
se pensa, do que se acredita e do que se tem enquanto vislumbre de futuro. Talvez aqui
já tenhamos uma ideia do nosso onde estamos, entretanto, “E agora josé?”10, qual o
nosso para onde queremos ir? Ainda temos que situar o onde estamos da não esquecida
vocação latina.

Ainda para pensarmos sobre a realidade da dicotomia proposta Brasil – França


têm-se um elemento fundamental que é como faremos o embasamento teórico das
10
Poema de Carlos Drummond de Andrade original de 1942 e musicado por Paulo Diniz ainda na guerra
fria, ano de 1972.
proposições e elocubrações aqui dispostas. Talvez transição das ideias, a sua evolução
se faça mais aprazível se fundamentada em consolidados pensadores brasileiros como
Horta e Góes11. Estes pensadores do cognominado geodireito possuem ampla e vasta
pesquisa para um fundamento em sede de jusfilosofia e deles nos valemos:

Com efeito, para realizar sua função de distribuir justiça e


garantir direitos fundamentais Com efeito, para realizar sua função de
distribuir justiça e garantir direitos fundamentais, a Constituição de
1988 não pode ficar ao largo da geopolítica, da mesma forma que a
geopolítica, na sua tarefa de promover o desenvolvimento nacional,
não pode ficar alheia ao texto constitucional, devendo seguir fielmente
as normas do Estado Democrático de Direito e da Ordem Jurídica
Internacional das Nações Civilizadas. Infelizmente, há que reconhecer
que esta linhagem epistemológica ainda é incipiente no Brasil. No
entanto, não se pode negar que, em tempos de globalização da
economia, é dever do estrategista brasileiro ganhar visão prospectiva
de longo prazo para saber “jogar o jogo estratégico do geopoder
mundial” dentro dos limites impostos pela Constituição e pelo Direito
Internacional Público, da mesma forma, que é dever do jurista pátrio
saber “interpretar estrategicamente a Constituição à luz dos impactos
advindos das disputas geopolíticas do cenário internacional”. (Góes,
2020. p. 107).
Ainda na problemática da globalização neoliberal, Góes também nos alerta:

É nesse diapasão que desponta a relevância do estudo da


judicialização da geopolítica, fenômeno no qual as grandes decisões
geopolíticas do Estado brasileiro serão levadas para julgamento do
Poder Judiciário, notadamente, do Supremo Tribunal Federal (STF). É
por isso que o presente trabalho sustenta a tese de que a razão pela
qual juízes e tribunais devem conhecer a geopolítica mundial é muito
simples, qual seja: eles vão decidir o futuro geopolítico do País a
partir da judicialização de questões geopolíticas fragmentadas do jogo
de poder mundial. (Idem, p. 109).
Também em uma perspectiva tomando pelo paradigma mackinderiano-
spykmaniano, como posta pelo autor, faz-se necessário a identificação do papel jogo
político do Brasil dentro da reconfiguração da ordem mundial pós-moderna, que ainda
se encontra em construção. enquanto o mundo versa pelas opções do conceito
estratégico de America first da era eurocêntrica, a outra opção está nas mãos da
geopolítica chinesa e agora com o protagonismo forçado da geopolítica russa. Para o
autor parece claro o foco que precisamos suscitar: “Portanto, conceber uma grande
estratégia de desenvolvimento nacional a partir da manutenção e expansão do seu
núcleo estratégico, parece ser o grande desafio da sociedade brasileira, aí incluídos

11
Guilherme Sandoval Góes perpassa assuntos delicados em seu texto como a judicialização da
geopolítica e a relação norma e lugar tratada por (Irti 2005), a respeito dos princípios do geodireito, o
ponto central desta discussão versa sobre as desregulamentações da economia e da tecnologia que o
direito sofre na periferia do sistema mundial.
juristas e estrategistas” (Idem, p. 110). A construção do autor é muito consonante com a
de Cláudio Gontijo de que o fim do dólar como referência do sistema financeiro global
indica o fim do mundo americano - ambos explicam a criação e a derrocada desse
sistema, identificando na declaração unilateral de 1971 um ponto central desse
descenso. Para citarmos fatos que alicerçam os pensamentos destes autores.

Bretton Woods (1944), perpassando pelo Plano Marshall (1947), Clubes de Paris
(1956) e Roma (1968), declaração unilateral de desvinculação do dólar ao ouro (1971),
Comissão Trilateral (1973), criação do G7 (1975) e desalinhamentos cambiais do
Acordo de Plaza (1985), até, finalmente, chegar-se à queda do muro de Berlim, em
1989. Até 1971 podemos identificar a ascensão do dólar, após o seu primeiro baque foi
inevitável que os Estados Unidos da América fizessem concessões para resguardar a sua
moeda e consequentemente a sua hegemonia; e a partir do acordo de Plaza ocorre uma
valorização das moedas das nações satélites supracitadas; esse tipo de concessão não faz
parte de uma benevolência estadunidense, mas sim de uma sinalização para seus
parceiros de que sua moeda ainda é confiável12.

Imperioso destacar que a pax Americana conquistada, ainda que fictamente, em


1989 com Berlim e reforçada erroneamente por Francis Fukuyama no discurso de fim
da história; em um erro interpretativo da filosofia hegeliana, produz uma série de
problemas pós modernos, trabalhados por Luiz Alberto Moniz Bandeira que vai dizer da
necessidade que a ciência política tenha de estudar a ontogênese do Estado e o processo
de opressiva acumulação de capital, tendo em vista as suas dimensões ontológica e o
fato de que devemos olhar sob vários ângulos este objeto de estudo; para entendermos a
sua complexidade. Outro autor nacional também faz coro às críticas à pós-modernidade.
(Barroso 2003) esterça em direção a hiper perplexidade, a velocidade que esse período
pós-moderno produz, gerando incertezas com rótulos genéricos, alicerçados em
descrença no poder absoluto da razão e a colocação do desprestígio no Estado. Ora, a
quem essa gama densa de inócuos discursos tende a referendar, já que estamos falando
de um período aparentemente hegemônico, a quem interessa esvazias tudo que pretende
se levantar contra a hegemonia vigente?

12
“O Acordo de Plaza, imposto pelos Estados Unidos, em setembro de 1985, forçou a valorização do iene
japonês e do marco alemão, com o objetivo de baixar a cotação do dólar norte-americano, propiciando
assim aos EUA a redução do seu déficit comercial, bem como recuperando sua competitividade
internacional em relação à Alemanha e ao Japão.” (Góes, 2020. p. 113).
Mais uma vez, onde está a vocação Latina? Entre se posicionar enquanto o satélite
na lógica hegemônica estadunidense, ou um ator com um pouco mais de voz na já sólida
convergência do cinturão econômico da rota da seda, que agora conta com uma
insinuante potência bélica e econômica timoneada por um, até aqui eficiente,
geoestrategista?

Entendendo que a geopolítica é a relação entre poder e espaço:

Aqui é importante entender que tal princípio traz ínsito o novo


conceito de lebensraum (espaço vital) da estatalidade pós-moderna,
qual seja a conquista de mercados e mentes. Tal cosmovisão permite
interpretar, sem zotismo acadêmico, o que é verdadeiramente a
globalização neoliberal, seus benefícios e malefícios, circunscritos a
uma complexa dinâmica de domínio geopolítico do planeta, que se
materializa pela liderança global, seja ela estadunidense ou chinesa.
(Góes, 2020. p. 120).
Também, como aventado pelo autor, Norberto Bobbio mostra a refração que essas
influências reverberam na “periferia do mundo civilizado”, e é justamente isso o que
não se quer. “Países pobres da periferia do sistema Internacional já não atuam mais
como poder autônomo, mas, sim, como mera Câmara de ressonância de decisões
estrangeiras, notadamente das nações líderes da globalização neoliberal da economia”
(Idem). Fala-se também de forma maestral do Mercado de Constituições 13, e é,
novamente, tudo isso que devemos nos opor. Legislações e realidades jurídicas que se
oponha aos interesses dos países ricos são facilmente dissolvidas em estruturas de soft
power e interferências “coloridas” nesses países de menor pujança econômica. “Isto
significa dizer que o desenvolvimento nacional não é mera questão estratégica deixada a
cargo do estrategista pátrio, mas, sim, norma de dignidade constitucional, que deve ser
ponderada em face dos demais princípios da Constituição.” (Góes, 2020. p. 122).

Portanto qual é o diapasão que urge construir um arquétipo geopolítico autóctone?


Ou ainda, uma correlação de forças favorável à aptidão ao desenvolvimento nacional

13
“A ideia de mercado de Constituições deriva diretamente da atuação das forças de (des) limitação de
Natalino Irti (mercado de ordenamentos jurídicos) significando o poder que as empresas multinacionais –
amparadas por seus respectivos Estados nacionais – têm para escolher aquela Constituição que lhes for
mais vantajosa e conveniente dentro de um amplo mercado de Constituições, que lhes oferecem os países
subdesenvolvidos do Sul Global (Irti 2007, 6). E mais grave ainda é perceber que esta ideia-força de um
mercado de Constituições, que a periferia do sistema internacional oferece para as empresas
multinacionais, não surge do nada, mas, é, sim, fruto de uma decisão política fundamental do Estado
tomada pelo seu Poder Legislativo, fazendo valer mais do que nunca aquela visão de Bobbio de mera
câmara de ressonância de decisões tomadas em outro lugar.” (Góes, 2020. p. 121).
sem violar princípios do estado democrático de direito garantindo assim vida digna para
os brasileiros?

Isto significa dizer que o desenvolvimento nacional não é mera


questão estratégica deixada a cargo do estrategista pátrio, mas, sim,
norma de dignidade constitucional, que deve ser ponderada em face
dos demais princípios da Constituição.
Nesse sentido, não basta reaproximar o direito e a ética, como
o faz brilhantemente o paradigma neoconstitucionalista do direito; é
preciso transpor limites dogmáticos para alcançar a plena sintonia
entre geopolítica e direito, de modo a criar as bases teóricas da
hermenêutica do desenvolvimento nacional, na qual a questão
estratégica será levada em consideração no processo de ponderação de
valores constitucionais em colisão. Um país sem estratégia de
desenvolvimento nacional é um país à deriva que, sem rumo, não sabe
aonde quer chegar. (Góes, 2020. p. 122-123).14

2.3 Sobre o remonte civilizacional


Embora componha o clube das potências industriais tradicionais, tendo também
constituído um vasto império colonial ao longo do século XIX, e compondo os
membros da OTAN, a França é o país europeu que tradicionalmente mais demonstra
inconformidade com hegemonia norte-americana sobre o Ocidente. Isso porque nunca
aceitou completamente o status ao que fora rebaixada desde o início da Guerra Fria, vez
que se recusou intransigentemente a se submeter ao papel de mero coadjuvante das
novas superpotências (EUA e URSS); caminho pelo qual o Reino Unido claramente
enveredou em sua relação com Washington.

O ímpeto francês por reversão de sua tendência declinante foi encarnado com toda
vitalidade pela presidência de Charles de Gaulle (1959-1969). O general de Gaulle
empreendeu uma ampla política de revitalização da base industrial francesa,
especialmente na do setor de defesa. Foi em sua passagem pela chefia de Estado que os
franceses alcançaram pleno domínio da tecnologia nuclear. Na atuação externa,

14
em uma perspectiva mais jurídica e em total acordo com as ideias de José Luiz Borges Horta, Goiás
postula: “Contemporaneamente, o Poder Judiciário - na qualidade de componente das forças políticas do
Estado - se vê cada vez mais envolvido nos complexos problemas constitucionais que são levados para os
tribunais, valendo destacar, desde logo, as questões de ordem geopolítica, tais como, a demarcação das
terras indígenas, as questões do meio ambiente versus construção de hidrelétricas na Amazônia, o plano
de desinvestimento da Petrobras e seu processo de desverticalização pela privatização de subsidiárias
(Refinarias, BR Distribuidora e outras), a privatização do Sistema Eletrobras, o marco regulatório do pré-
sal: regime de partilha ou regime de concessões? e muitas outras questões geopoliticamente quejandas.
São questões que tais que perfazem o assim chamado constitucionalismo estratégico, vale definir, o ramo
do direito constitucional, cuja linhagem epistêmica se concentra no estudo inter, trans e multidisciplinar
envolvendo a geopolítica mundial e o direito constitucional interno (Góes 2019)” (Góes, 2020. p. 122).
encaminhou uma política de maior autonomia em face do quadro da bipolaridade, 15
retirando, por exemplo, a França do comando da OTAN, reconhecendo a República
Popular da China. Ao lado do então chanceler federal Konrad Adenauer, buscou
construir uma sólida aproximação com a República Federal Alemã, que se cristalizou na
assinatura do Tratado de Eliseu (1963), marco do inegável estreitamento das relações
franco-alemão. Sua viagem à América Latina, um ano mais tarde, foi um simbólico
gesto de suas intenções em aumentar a presença francesa em zona de influência norte-
americana.

Nesse sentido, De Gaulle conferiu a França uma preocupação permanente com o


resguardo de sua autonomia estratégica- linha de ação que foi, em graus variados,
seguida por seus sucessores.

A República Francesa, assim, apresenta-se na cena internacional como potência


de inegável relevo. Detentora de arsenal nuclear, bem como de um assento permanente
no Conselho de Segurança das Nações Unidas, possui uma rede de bases ao redor do
mundo e de uma tecnologia e indústria aeroespacial independente. 16 Após o fim da
Guerra Fria, embora tendo reduzido os contingentes de suas forças armadas, a França
fez a opção de manter amplas capacidades de defesa nos variados espectros de conflito.
De forma evidente, o Estado francês vê a si mesmo como uma potência média de
alcance global, e, com isso, nutre o desígnio estratégico de conseguir intervir no mundo
a qualquer momento.17

Todavia, as pretensões desse primoroso ator internacional deparam-se com


inegáveis dificuldades. Para além de atravessar uma pendurada crise de identidade

15
”La nueva definición de la inserción internacional de Francia implicaba un posicionamiento distinto en
el orden bipolar. Significaba distancia de los Estados Unidos, aunque no equidistancia respecto de los
polos. Francia había apoyado a la potencia americana en el conflicto de los misiles es en Cuba, pero la
relación bilateral se tensó especialmente a partir de allí. La cuestión hizo visibles las dificultades del
sistema de defensa atlántico, particularmente el accionar de Estados Unidos, ya que el ultimátum
planteado a la Unión Soviética no había sido consultado con ninguno de los países aliados. En esa
oportunidad, también se puso sobre el tapete la discusión latente respecto del desarrollo nuclear en
Europa. Contra la voluntad de los Estados Unidos el gobierno de De Gaulle fue avanzando en el
desarrollo nuclear autónomo para su país”. MIGUEZ, Maria Cecília. 1964: De Gaulle en América Latina.
Estados Unidos, Europa y un continente convulsionado. Revista electrónica de estudios
latinoamericanos. Buenos Aires: v. 13, nº 52, julio-septiembre, 2015, p. 20.
16
VISENTINI, Paulo. Eixos do poder mundial no século XXI; uma proposta analítica. Austral; Revista
Brasileira de Estratégia e Relações Internacionais. Porto Alegre, v.8, n.15, Jan./Jun., 2019, p.13.
17
PEZARD, Stephanie. SHURKIN, Miachael. OCHMANEK, David. A Strong Ally Stretched Thin; An
Overview of France's Defense Capabilities from a Burdensharing Perspective. Santa Mônica: Rand
Corporation, 2021, p.5.
estratégica, a França tem também encontrado significativas limitações para suas
ambições de projeção mundial. De modo específico, dois eventos recentes trouxeram à
baila as dificuldades francesas no cenário contemporâneo: a retirada de suas tropas do
Mali, depois de uma desgastante campanha militar contra o terrorismo, que em muito
lembrou a saída americana do Afeganistão;18 e a chamada crise dos submarinos, na qual
teve sua indústria de defesa preterida pelo governo australiano, em razão e um novo
arranjo securitário anglo-saxão no Pacífico, a chamada AUKUS19.

3. Conclusão
Para uma inferência, é preciso assinalar que as aproximação entre esses dois
países não se dará de forma automática, ou por espontaneidade. Embora sejam claros (e
expressivos) os ganhos mútuos que a parceria estratégica Brasil-França implica para
ambas as partes, é preciso que ambos os atores se reconheçam como esses sócios
privilegiados, e se empenhem por assentar a relação bilateral nestes interesses
primordiais. Se, porém, a condução de tal interação dê demasiado enfoque a
divergências marginais, a impasses secundários, ou a retóricas pouco afeitas ao respeito
estrito à soberania de ambos os Estados, o esgarçamento dos laços pode ser de tal modo
inevitável que comprometa o futuro da parceria em tela.

18
Le retrait français du Mali, un échec pour Paris et pour Bamako. Le Monde, fevereiro 2022.
Disponível em: https://www.lemonde.fr/idees/article/2022/02/17/le-retrait-francais-du-mali-un-echec-
pour-paris-et-pour-bamako_6114067_3232.html. Acesso em: 27 de Julho, 2022.
19
O reordenamento das forças, não apenas no indico-pacífico, permite que a tese de Huntington seja cada
dia mais atual, no contexto de entender que toda a geopolítica global se dará na ideia do clash of
civilizations.
Bibliografia Preliminar:

ABDENUR, Adriana Erthal; SOUZA, Danilo Marcondes de. O Brasil e a


cooperação em defesa: a construção de uma identidade regional no Atlântico Sul.
Revista Brasileira de Política Internacional, v. 57, p. 05-21, 2014.

BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. A desordem mundial: O espectro da


dominação: guerras por procuração, terror, caos e catástrofes humanitárias. Editora
José Olympio, 2016.

CABRAL FILHO, Severino Bezerra. Brasil megaestado: nova ordem mundial


multipolar. Contraponto, 2004.

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