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A grande estratégia dos Estados Unidos, o conflito na Ucrânia e os desafios estruturais

externos e internos para a inserção internacional brasileira


Márcio Azevedo Guimarães
Mestre em Relações
Internacionais; Doutor em
Ciência Política
martiusorla@gmail.com

Resumo

O atual ciclo de acumulação sistêmico envolve a competição pelo domínio de novas


tecnologias na produção e favorece a concentração de capital, gerando, com isso, uma
crise econômica que impacta na grande estratégia dos Estados Unidos no sistema
internacional. Nesse sentido, a busca por maior eficiência do sistema de armas a um
custo econômico sustentável deve ser contextualizada a partir do processo de
concentração de capital. Portanto, no plano metodológico, um sistema de armas
desenvolvido é variável dependente da lógica econômica da acumulação de capital,
variável independente, no qual incide a variável interveniente dos interesses
geopolíticos do complexo militar e industrial estadunidense. Assim, o necessário
incremento de capacidades militares pode ser entendido como um efeito possível dos
ciclos de acumulação, trazendo como consequência, efeitos condicionadores sobre a
doutrina de política externa de segurança norte-americana em razão do impacto da
hipótese de guerra central sobre o equilíbrio internacional que está se prefigurando a
partir do conflito na Ucrânia contra a Rússia iniciado em 2022 e os efeitos estruturais
externos e internos para o Brasil

Palavras – chave: ciclo sistêmico de acumulação, sistema internacional, grande


estratégia, complexo industrial militar, Estados Unidos, Rússia, Brasil.

Abstract

The present accumulation systemic cycle embrances the competition for the control of
new tecnologies on production which favours the concentration of capital, thus,
engendering a economic crisis that fall upon in the great U.S. strategy. Therefore, the
search of higher efficiency of the system weapons at a sustainable economic rate must
be understood in the contexto of the economic logico capital accumulation. So, in the
methodologic dimension, a weapon system should be considered as a dependent
variable whereas the economic logic of capital accumulation is its indepent variable at
the same time the geopolitical interests of the U.S. industrial-military complex is a
intervene variable. Hence, the necessary update of military capabilities should be
understood as a possible effect of accumulation cycles, bringing as a consequence, the
effects which impact upon the security foreign policy doctrine of the United States due
to the very impact of central war hypothesis on the international balance which has been
shaping from the outbreak of Ucranian war against Russia in 2022 and the structural
effects upon the internal and external dimensions to Brazil.

Key-words: acuumulation systemic cycle, international system, industrial-military


complex, grand strategy, United States, Russia, Brazil.

Introdução

Em 24 de fevereiro iniciou-se a tão falada Operação Especial Z, pela qual a


Federação Russa interviu militarmente no território soberano da Ucrânia e sofreu
severas críticas da comunidade internacional por denúncias de violação do direito
internacional da Carta da ONU, no que tange à soberania do Estado nação ucraniano.
Em reunião extraordinária da Assembleia Geral das Nações Unidas, muitos países
votaram pela condenação da agressão militar russa à Ucrânia e nas semanas seguintes
foram estabelecidas sanções econômicas ao Estado russo, visando dissuadir
militarmente o regime autoritário de Putin por sua ação considerada como violadora dos
objetivos e princípios das relações internacionais. Como pontuado pela ampla cobertura
da mídia digital e televisiva mundial, na reunião extraordinária do Conselho de
Segurança da ONU, não foi possível uma resolução punitiva contra o estado russo, uma
vez que a Rússia possui assento permanente como um dos cinco membros e não houve
consenso por que também a China é igualmente membro do referido órgão e aliada
estratégica da Rússia.
Dessa forma se iniciava a guerra entre a Rússia e a Ucrânia e que já dura quase
ano e 10 meses e tem causado enorme instabilidade nas relações internacionais de uma
forma extremamente grave nos campos econômico e securitário. E a Federação Russa
segue como sendo a acusada pelo Ocidente como a principal responsável por esta
instabilidade. Enquanto o governo russo afirma que a primeira fase – que durou o ano
de 2022 – não se tratava de uma guerra, de fato o que se viu foi uma escalada militar e o
que estamos presenciando desde 2022 é uma guerra!
Mas antes que o leitor julgue esta guerra a partir de aspectos ligados à moral
individual e às emoções induzidas pela grande mídia, algumas observações
extremamente relevantes devem ser debatidas a fim de que os princípios estruturantes
das relações internacionais possam ser corretamente compreendidos para além de
estereótipos fabricados ideologicamente. Além disso, as conexões estruturais da guerra
na Ucrânia com o Brasil devem ser também trazidas ao debate, para que se
compreendam as sérias implicações para a inserção soberana do Brasil no sistema
internacional contemporâneo.
Em primeiro lugar, vamos examinar brevemente o real significado geopolítico
da guerra na Ucrânia desde uma perspectiva histórica de longo prazo em razão dos
condicionamentos sistêmicos estratégicos. Em segundo lugar, o contexto ambíguo e
aparentemente contraditório da posição diplomática brasileira no curso da destes quase
dois anos. Por fim, o exame dos condicionamentos estruturais domésticos e
internacionais que fornecem uma explicação racional para a posição brasileira e os
desafios que o conflito na Europa Oriental traz para a inserção internacional do Brasil.
Antecedentes de longo prazo: o sistema internacional contemporâneo e o
ciclo hegemônico estadunidense
Se como bem afirmava Karl Marx, que gerações de mortos nos governam,
alguns governam mais do que os outros. A começar pelo próprio insigne pensador
alemão e seu amigo e parceiro intelectual Friedrich Engels, mas também um russo e um
inglês... Vladimir Illich Lenin e Halford Mackinder! Não há como compreender o que
está acontecendo entre Rússia e Ucrânia e seus desdobramentos sistêmicos sobre o
sistema no qual se insere a diplomacia brasileira sem antes refletir sobre a importância
do marxismo tanto nas relações políticas internas quanto nas relações internacionais em
termos estruturantes. Da mesma forma, e como num casamento cheio de indas e vindas
complexa e mutuamente ambígua, mas complementar, não se pode prescindir do
pensamento geopolítico tal qual formulado por Mackinder, cujos pressupostos
fundamentais se mantém mais atuais do que nunca.
Primeiramente só um pouquinho de teoria. De acordo com os postulados centrais
do materialismo histórico, a estrutura de poder interna às sociedades políticas desde o
advento da Revolução Industrial e da consolidação do modo de produção capitalista no
século dezenove, está condicionada pela luta de classes e pelo processo de acumulação
de capital que estrutura todo o jogo de poder político e institucional centrada na classe
burguesa detentora dos meios de produção (eixo do poder econômico) e do poder de
legitimação e de coerção política (eixo do poder político burguês). Em outras palavras,
infraestrutura e superestrutura, que operam entre si de forma dialética e complexa.
Nesse contexto, em essência o Estado e suas instituições formais políticas
(executivo, legislativo), administrativas (burocracia) e jurídicas deveriam ser o
instrumento de poder da classe dominante burguesa sobre o conjunto da sociedade,
formada em essência, pela classe trabalhadora e camadas médias (pequena burguesia).
A lógica econômica da acumulação permanente de capital (que exerce forte
condicionamento sobre as instituições políticas, militares e culturais, mas que não
significa de forma alguma um determinismo) traria consigo a precedência dos interesses
do capital sobre o conjunto da formação social a partir de então.
Com a interdependência complexa entre o modo de produção capitalista com a
lógica territorialista do poder de coerção extra-econômico (esfera da racionalidade do
poder político e militar), esta lógica do poder definido no plano interno transbordou
para a esfera das relações internacionais à medida que os países mercantilistas e na
etapa sucessiva, os capitalistas – em essência Estados europeus no início –
necessitassem constantemente de acesso a mercados consumidores e fontes de matéria –
prima para sua economia, na qual o poder de uso da força, via ameaça de guerra ou de
guerra propriamente dita, operasse como meio instrumental da lógica de acumulação de
capital das elites centrais que passaram a controlar os estados centrais do sistema. Nesse
aspecto, o casamento entre lógica econômica e lógica geopolítica e entre elites do poder
e sistema mundial não poderia ser mais perfeita....
As complexas relações entre poder político e econômico e a equação que encaixa
o poder militar (a guerra) se encontram em inúmeros e fascinantes estudos históricos e
sociológicos pelos quais Immanuel Wallerstein e Geovanni Arrighi se debruçaram no
estudo da dinâmica de longo prazo histórica que estão na origem da formação tanto do
Estado territorial europeu mercantilista (e depois capitalista) com sua feição vestfaliana
como no nascedouro das características econômicas globais do sistema internacional.
Ao estabelecerem a relação entre centro e periferia, demonstram a natureza assimétrica
do sistema mundial e o papel que nações como Rússia, China e Brasil deveriam ocupar
de acordo com as regras estabelecidas pelas principais potências do sistema
internacional capitalista: Reino Unido, França e posteriormente Alemanha, Japão e
Estados Unidos. Para uns a periferia, para outros o centro...
Assim, a partir da inspiração marxista da transposição da dinâmica interna da
luta de classes para o espaço das relações interestatais e igualmente da influência do
pensamento braudeliano da história dos longos ciclos temporais, chegamos à natureza
central do que Lenin irá denominar de imperialismo e de sua relação com as grandes
potências capitalistas a partir do final do século dezenove: a relação entre a necessidade
de acumulação de capital e a guerra.
Nesse diapasão, a permanente concentração de capital industrial e comercial na
forma de oligopólios irá consolidar a tendência do capital financeiro como força motriz
da lógica de competição e expansão das grandes potências no sistema, conduzindo aos
conflitos internacionais conhecidos como Primeira e Segunda Guerra Mundiais, cujos
resultados seriam a hegemonia estadunidense a partir de 1945, sob a égide da coalizão
de frações de elites1 nucleadas na complexa e interdependente relação de conflito e
cooperação entre capital e poder militar no que se convencionou denominar de
complexo militar e industrial ou as elites do poder 2. Este é o contexto estrutural,
histórico de longo prazo, tanto do que ficou conhecido como Guerra Fria como do
momento presente.
A Guerra Fria teve um duplo significado. De um lado, possuiu uma dinâmica
própria, caracterizada pela polarização com a extinta União Soviética (1922-1991) em
razão das disputas de caráter ideológico – de um lado o capitalismo e de outro o
socialismo real – e geoestratégico – o equilíbrio militar convencional e nuclear entre as
duas superpotências que emergiram vitoriosas do conflito contra a Alemanha nazista em
1945. Todavia, mesmo essa rivalidade geopolítica e ideológica não pode ser dissociada
de outro significado, na verdade muito mais amplo e profundo, condizente com a
própria natureza do sistema internacional e que inclusive revela que o atual sistema tem
muito mais de continuidade do que com a aparente ruptura que tanto a literatura

1
Nicos Poulantzas, Poder Político e Classe Social....
2
C. Wright Mills, A Elite do Poder....
consagrou nos últimos trinta anos. De fato, este outro significado é a interdependência
estrutural entre o ciclo de acumulação de capital desde pelo menos o seu estágio
financeiro oligopolístico que determinou a Segunda Revolução Industrial e que vem
igualmente definindo as revoluções tecnológicas ulteriores aplicadas na produção
econômica e a realidade geopolítica dos conflitos entre as grandes potências que foi
revelado de forma emblemática por Mackinder no começo do século XX3.
Tanto a criação de um complexo institucional orgânico dentro do aparato estatal
das grandes potências ligando os eixos político, militar e econômico quanto as etapas de
transição hegemônica a partir da decadência do primeiro ciclo realmente global do
capitalismo que foi o britânico (1780 a 1870) que puseram de um lado, as grandes
potências liberais anglo-saxônica e francesa e, de outro, o polo desafiante industrial
autárquico germânico e japonês e que redundaria na vitória do primeiro campo, liderado
pelo capitalismo estadunidense, são indissociáveis. Neste sentido, existe um processo
complexo circular, às vezes contraditório e que se retroalimenta mutua e dinamicamente
entre estrutura interna e internacional, dentro do estado norte-americano e dos demais
países centrais – França, Reino Unido, Alemanha e Japão – e que fornece carga
explicativa minimamente racional para o rearranjo de forças internas entre frações das
chamadas elites do poder em bases consensuais mínimas que definem a grande
estratégia de inserção dos Estados nacionais numa teia de disputas e alianças dentro de
um sistema igualmente competitivo, anárquico onde as dimensões econômica e militar
são complementares.
Dito de outra forma, a consolidação do complexo militar e industrial nos anos
1940 e 50 das administrações Roosevelt, Truman e Eisenhower representaram a um só
tempo o padrão de gestão estratégica de um ator estatal na condição de grande potência
do sistema internacional contemporâneo como também a criação de uma estrutura
voltada para garantir o sucesso e a sobrevivência do sistema capitalista como um todo, a
partir da liderança inconteste do Estado norte-americano, que serve de instrumento para
frações de classe burguesa e não burguesa associadas entre si dentro e fora desse
Estado, dando consistência às noções poulantzianas de Estado ampliado para a esfera
privada e às noções de uma elite transnacional, nucleada pela burguesia em uma espécie
de círculos concêntricos onde no atual estágio do capitalismo a mais poderosa é a do
capital financeiro, mas que numa dinâmica de conflito/cooperação, depende de uma
aliança conjuntural com outras frações nacionais e internacionais do capital burguês em
estreita aliança com o poder militar norte-americano, fiador último da garantia e
segurança do processo de acumulação de capital das frações hegemônicas do capital
estadunidense associadas ao capital britânico e francês. Estas são a elite do poder que
tão bem Mills examinou em relação aos Estados Unidos e que estão personificadas hoje
no Pentágono e que se internacionalizaram em um processo que se iniciou no entre
guerras e que se consolidaria na última metade do século XX.
Para estas elites o que interessa é a segurança e garantia de acumulação
progressiva de lucros a partir da extração da mais valia nacional e mundial das classes
trabalhadoras e a inexistência de obstáculos jurídicos, institucionais e militares a este
objetivo. Para tanto esta lógica do capital necessita de justificativas e de criar ou recriar
“fantasmas” que legitimem o uso da guerra para fins econômicos, mascarados de fins
3
MACKINDER, Halford. ........
políticos legítimos de defesa contra estados maléficos ou antidemocráticos (leia-se anti
democracia liberal...). Nesse contexto, o grande acontecimento histórico, político e
geopolítico que definiu o século XX foi a emergência do primeiro estado socialista da
história desde a Revolução de Outubro de 1917, no bojo do primeiro grande conflito
interimperialista mundial que foi a Primeira Guerra: o surgimento da União Soviética, a
partir da transformação do Império multiétnico e agrário russo num Estado
desenvolvido, industrializado, igualmente multiétnico mas pautado por uma democracia
popular e compromisso social com o combate às desigualdades sociais internas e a
melhoria das condições de vida da população.
Este se tornou o principal projeto político que ameaçava as grandes potências
capitalistas pelo seu exemplo que poderia ser seguido pela periferia do atual Sul Global
geopolítico4, composto por ex colônias, estados subdesenvolvidos e em
desenvolvimento que caracterizam a periferia do sistema capitalista na Ásia, África,
América Latina e também da Europa do leste, nucleado inicialmente pelas potências
coloniais europeias e atualmente pela grande potência neocolonial estadunidense. E
dentro desta lógica que deve ser compreendido o sentido de combate ao socialismo que
virá a se consolidar com o discurso ideológico da Guerra Fria.
Assim, o chamado desafio socialista possuía um claro fator de desafio estrutural
ao capitalismo, uma vez que representava um modo de produção e um sistema político e
social alternativo. Por outro lado, toda uma cultura geopolítica de conflito e dissuasão
que caracterizou os estudos estratégicos militares entre 1945 e 1991 entre Estados
Unidos e União Soviética eram, em essência, o aprofundamento das características de
longo prazo e estruturais do sistema internacional em sua dimensão geopolítica ou
militar. E apesar de ter sua lógica própria e intrínseca – vez que a origem da lógica
territorial e militar é milenar e pré-capitalista como atestam os escritos de Tucídides
sobre a Guerra do Peloponeso – esta se relaciona de forma interdependente e como
instrumento de poder do capital desde pelo menos o advento do ciclo imperialista do
século XIX, conforme Ellen Wood assevera em sua obra Império do Capital. Desta
feita, a própria rivalidade ideológica que pautou a Guerra Fria não pode ser dissociada
da lógica estruturante do sistema capitalista como um todo. E é nesses marcos que
igualmente deve ser percebida a gramática de legitimidade do poder do capital – a
geopolítica!
Neste contexto acima é que deve ser compreendida a lógica da geopolítica como
se formou desde o último quartel do século XIX, em especial a anglo-saxônica. No
contexto da expansão neocolonial das potências europeias pela Ásia e África,
Mackinder defendeu, a partir da história da expansão naval e colonial britânica e de sua
condição insular e das disputas de poder entre as potências europeias continentais desde
a Espanha até a Rússia, que caracterizaram os séculos XVI a XIX, que cumpria às
potências insulares e navais de promover estratégias de contenção e divisão do poder
político, econômico e militar de estados que tinham sua localização geográfica na massa

4
Aqui o sentido é sublinhar que mesmo estando acima da linha do Equador, a maioria dos estados da
Eurásia (considerando principalmente na Europa as formações sociais da Europa oriental) tiveram um
passado histórico distinto do Ocidente europeu e norte atlântico e foram tratadas como colônias diretas
ou indiretas a partir do processo de expansão do mercantilismo e depois do capitalismo europeu
ocidental e norte-americano que conformou o mundo atual.
continental eurasiana – Europa e o gigantesco continente asiático da qual a primeira
pode ser considerada como península.
Esta estratégia que se iniciara contra estados poderosos como Sacro Império,
França e Espanha atinge o seu ápice no século dezenove contra o Império continental
napoleônico e mais tarde na série de alianças da Inglaterra com França e Turquia contra
a expansão russa da qual a Guerra da Criméia em meados daquele século será
emblemática. Para a estratégia do capital – e isto é importante para entender a guerra
atual contra a Rússia (hoje capitalista) movida pelo Ocidente – importa evitar que
surjam não apenas estados rivais capitalistas (sejam imperialistas ou não) como também
estados que possuam suficiente poder militar, econômico e demográfico que não
estejam submetidos à lógica e à ação das grandes empresas que financiam seus Estados
rumo à extração da mais valia global.
Se a necessidade de garantir a sobrevivência do Estado insular a partir da
potência naval (e a partir do século vinte, aeronaval) via estratégia de contenção
combinada com divisão usando as táticas diplomáticas de balanço de poder com
militares como dissuasão estratégica foram a essência do que ocorreu na Segunda
Guerra Mundial e na Guerra Fria, isso também serviu (e serve) como justificativa de
retórica legitimadora de estruturas estatais a serviço do capital da mesma forma que a
teoria do realismo político e estrutural e os estudos de segurança internacional também
operam como sofisticados sistemas teóricos de ciências sociais a serviço do poder.
Tanto mais isto é verdadeiro quanto independentemente de modo de produção, tanto o
realismo quanto a geopolítica também tem uma lógica própria que se justifica ao longo
da história humana e também serviu para o interesse nacional e a sobrevivência da
Rússia soviética e da China maoísta ao longo do século vinte.
Assim se independentemente do capitalismo existir enquanto um sistema
hegemônico em si, tanto a escola geopolítica quanto as teorias do realismo em todas
suas vertentes podem ser aplicadas razoavelmente ao longo de sucessivos modos de
produção históricos e sistemas internacionais regionais prévios ao sistema vestfaliano,
não menos verdadeiro que tais teorias importantes são extremamente válidas e eficazes
instrumentos de legitimidade dos Estados capitalistas hegemônicos, cujo centro
decisório de poder se encontra na reação complexa de suas elites do poder (burguesia,
militares, diplomatas e políticos).
Portanto, se o desafio soviético foi o mais agudo e difícil obstáculo ao
capitalismo, não menos é a existência de estruturas políticas poderosas suficiente para
impedir o livre fluxo de capital, mão-de obra e extração de recursos minerais e
estratégicos para os centros do sistema econômico mundial. Tal sistema se formou com
os contornos atuais a partir do livre cambismo britânico e atingiu seu apogeu a partir do
século vinte com o imperialismo informal estadunidense e, nesse sentido, tanto a Guerra
Fria, com sua lógica específica (mas estruturalmente ligada ao imperialismo) como o
momento do Pós-Guerra Fria de 1991 para cá são parte de uma mesma lógica.
Assim deve ser compreendida a atual ofensiva da verdadeira guerra que se trava
e que não é da Rússia contra a Ucrânia, mas do Ocidente capitalista contra a Rússia, na
Ucrânia e que também atinge a China e o Sul Global e mesmo os mais importantes
estados capitalistas imperialistas como a Alemanha.
As elites do poder e a grande estratégia do Estado norte-americano: o realismo e os
ciclos sistêmicos
A construção de toda e qualquer unidade política na história foi o resultado, por
um lado, de um processo de luta pelo poder alternado pela negociação em bases
mínimas e necessárias de consenso entre determinados grupos com capacidade de
maximizar seus interesses sobre o conjunto de sua sociedade e, por outro, da imposição
destes interesses de forma homogênea no plano além-fronteiras em relação às demais
sociedades políticas.
Em que pese a fraca institucionalidade e a ausência de um sistema econômico de
mercado, forjado pela união entre elites políticas, burocráticas e empresariais, a
negociação inter-elites surgiu desde as primeiras formações políticas na Antiguidade e
perpassou boa parte do período medieval. Não obstante, foi nos últimos séculos deste
período, no ocidente europeu, que as condições para a complexificação do fenômeno
estatal e de suas relações com as elites e os ciclos sistêmicos de acumulação de capital
irão se desenvolver.5
Dessa forma, emerge, na transição da Idade Média para a Idade Moderna, no
seio da Revolução Comercial e do advento do mercantilismo, o processo de
centralização do poder político em um estado territorial, associado ao poder do capital
financeiro e comercial de uma burguesia associada e, por fim, a institucionalização de
uma burocracia civil diplomática e militar, nos níveis políticos do processo decisório
junto ao chefe de Estado.
Portanto, com a formação e o desenvolvimento do moderno Estado territorial,
emergem novos atores a ele associados e que irão estabelecer o que podemos denominar
de tríade na relação complexa entre atores políticos-burocráticos-econômicos. Sua
relação, ora de cooperação, ora de conflito, tem elementos de subordinação hierárquica
com subordinação política com econômica.
Esta relação envolve interesses setoriais em si mesmos relevantes para a
sobrevivência do conjunto do Estado, mas também que encontram a competição e
disputa de outros interesses igualmente relevantes para a garantia da sobrevivência da
unidade estatal.

5
ARRIGHI, Giovanni. O Longo Século XX: dinheiro, poder e as origens do nosso
tempo. São Paulo: Unesp, 199 ; TILLY, C. Coercion, capital, and European states, A.D. 990-1990. Oxford,
UK: B. Blackwell, 1990.
Essa contradição entre a necessidade de cooperação em torno de negociar
consensos mínimos para a garantia da sobrevivência de cada grupo de poder e que
concorre para a sobrevivência do todo (leia-se: soberania do Estado) e a existência de
disputas em razão de busca setorial pela maior influência sobre o todo em razão da
necessidade política, econômica ou estratégico-militar de maximizar estes interesses faz
parte da natureza humana, essência final de toda e qualquer formação política
institucionalizada, suprema criação humana.
Enfim, na dimensão da natureza do indivíduo, do ser humano, do ser político 6,
burgueses, estadistas, diplomatas e militares perfazem o núcleo fundamental do
moderno Estado territorial e a negociação dos seus interesses setoriais está na gênese da
edificação dos interesses geoestratégicos que estão associados de forma interdependente
aos interesses estratégico-econômicos.
São eles que definem o que se entende por interesse nacional em toda e qualquer
época. Não obstante, é no nível seguinte, o estatal, em se tratando da superpotência em
sua relação com os demais atores estatais que se definem a partir da capacidade de atuar
como grandes potências, que surge a interação complexa e de variada intensidade, a
depender de condições materiais (capacidade) e espirituais (crenças, valores, vontade
política), que estão na gênese dos grandes interesses nacionais e estratégicos.
Uma vez criados, como se tivessem vida própria, estes interesses estratégicos
definem os princípios e regras universais da dimensão seguinte, a do sistema interestatal
ou internacional, escapando o seu controle do nível de tomada de decisão individual.
Assim, este sistema, este terceiro nível, a partir do avanço da Terceira Revolução
Industrial, centrada na hegemonia norte-americana e caracterizada pela disputa
estratégica dos pólos desafiante russo e chinês, ganha um nível de autonomia em relação
aos outros níveis que, sem descartar a relevância e a interação orgânica entre eles, faz
com que as características do sistema internacional, cada vez mais institucionalizado,
possua formidáveis linhas de condicionamento sobre os níveis estatal e individual.
Dito de outra forma, o chefe de Estado, seu staff diplomático e militar ao
formularem e implementarem sua concepção de política exterior não podem agir de
forma totalmente independente uns dos outros já que sob todos imperam condições
estruturais do sistema estatal fortemente institucionalizado desde as revoluções
industriais e institucionais dos dois últimos séculos e que necessitam representar em

6
Aqui reside a visão greco-romana e aristotélica do homem, do indivíduo, essência da vida política em
comunidade.
algum nível relevante interesses econômicos e financeiros de grupos sub –estatais que
são privados e que são imprescindíveis para a obtenção de recursos estratégicos de
poder.
E por fim, sob o nível estatal, a ação de política exterior, fruto deste consenso
negociado entre as elites nacionais, envolve a interação ora conflitiva, ora cooperativa
na busca pela implementação do interesse nacional em disputa com as demais unidades
que compõe o sistema internacional. Nesse último caso, a depender da capacidade
material de cada ator dependerá uma melhor ou pior inserção internacional.
Assim, as grandes potências, por sua capacidade política, econômica,
tecnológica e militar, tem maior capacidade de influir e modificar o sistema
internacional a partir de interesses nacionais negociados internamente pelos atores
políticos, burocráticos e privados que participam do processo de formulação e de
implementação de politica externa à qual, a despeito de ser uma unidade de análise
teórica autônoma no plano da ciência social, não pode ser dissociada, no mundo real,
das condições sistêmicas.
Assim, o sistema foi criado pelos Estados na medida em que estes foram
concebidos pelos grupos ou elites internos. Nesta relação, contudo os três níveis estão
de forma dinâmica, mas em intensidades variáveis, sofrendo os efeitos uns dos outros.
No mundo atual, um chefe de Estado, seja de uma grande potência ou de um
Estado débil, sofre os efeitos de causas e regras politicas e econômicas já definidas
pelos níveis estatal e internacional. A interação é muito complexa, na medida em que
estes níveis gozam de autonomia e que o Presidente dos EUA, por exemplo, tem menos
espaço de manobra para agir na formulação de sua política exterior do que um líder de
uma nação pobre e fracamente institucionalizada.
No entanto, no nível da imagem do Estado, os Estados Unidos tem maior espaço
de manobra para agir em prol de seus interesses no sistema internacional, o qual é
fortemente condicionado por este país.
Pode-se dizer que no nível da superpotência, a relação de intensidade de causa e
efeito com o sistema internacional é horizontal, ao passo que a das grandes potências
com o sistema é inclinada, onde convivem grandes espaços de autonomia com certa
subordinação em relação ao sistema (casos alemão, japonês, francês e britânico, chinês
e russo, por exemplo) ou fortemente inclinado, ainda que não de
verticalidade/subordinação total, mas relativa. E em relação às potências menores,
incluídas ai as médias e pequenas, a relação com o sistema é francamente vertical.
Adotando uma abordagem teórica que possa integrar algumas perspectivas
teóricas podemos compreender o fenômeno Estado, as corporações e o papel do poder
militar na definição da competição pela hegemonia no quadro do sistema de acumulação
de capital que caracteriza o sistema internacional.
Assim, deve-se centrar a análise das características e tendências centrais do
sistema interestatal. Esquemáticamente tem-se o seguinte:
1- Ascensão do capital financeiro – financia a produção e o poder político – desde os
séculos XIV e XV - condiciona, com a necessidade de garantir o processo de
acumulação de capital, a formação de unidades políticas com grande extensão territorial
ou cada vez maiores, a fim de prover segurança para finanças, indústria e comércio.
2- Relações entre poder politico e econômico – uso do poder militar (guerra) para
garantir a segurança política (elites governamentais) e econômica (elites empresariais) =
noções de ordem, soberania, segurança, sobrevivência, independência,
autodeterminação.
3- Necessidade de formação de complexos industriais que integram as lógicas, política e
econômica, fazendo com que as noções de segurança e defesa sejam instrumentais para
a garantia do processo de acumulação e, em razão disso, da proteção do Estado
capitalista.
4-Interação das forças políticas (unidades estatais) e econômicas (progressiva
internacionalização das corporações financeiras, industriais e comerciais dos Estados
com maior capacidade de poder – hegêmona e demais grandes potências).
O resultado desta dinâmica é que variáveis como a guerra, a diplomacia
tradicional, a diplomacia secreta, a profissionalização e industrialização das forças
militares, a economia transnacionalizada, as táticas das grandes potências em termos de
uso do balanceamento de poder em busca do equilíbrio multipolar e a tentativa de
hegemonizar o sistema interestatal são intercambiáveis e que fazem parte do processo
de tomada de decisão que envolve políticos profissionais e burocracias especializadas
no núcleo de poder do Estado contemporâneo.
Existe a possibilidade real de que na origem das estruturas atuas de poder do SI,
a necessária interação entre fatores domésticos e externos, os quais irão definir os
contornos gerais da estrutura do sistema, assim como estabelecer limites nos quais se
enquadram fatores conjunturais.
No entanto, a própria conjuntura da interação das unidades afeta a própria
estrutura do SI quando as dinâmicas interdependentes e complementares do processo de
acumulação e da maximização de poder se tornarem maduras o suficiente para de
maneira integrada lograrem uma nova etapa de acumulação e, com isso, afetarem a
estrutura do SI.
Os ciclos hegemônicos de Arrighi associado com as análises do realismo
estrutural de Waltz (1979) e ofensivo de Mearsheimmer (2001), complementados pelas
análises de Robert Gilpin (1981) e sua hipótese sobre a transição hegemônica e, por fim,
sobre o impacto sistêmico sobre o processo de tomada de decisão de políticos e
diplomatas.
Vale ressaltar que, dentro de uma perspectiva realista mais tradicional, o
realismo clássico, Hans Morghenthau (2003) já antecipava algumas destas discussões
mediante seu estudo sobre o papel dos recursos de poder.
Para Morgenthau (2003) se poder econômico, financeiro e tecnológico se
traduzem em recursos de poder instrumentais para o poder militar e político que
caracteriza uma grande potência.
Isto é crucial para a relação entre o estudo do sistema econômico e sua
instrumentalidade para o poder político de um Estado. Nesse sentido, o complexo
militar industrial é o eixo de conexão!
Nesse sentido, o cerne da combinação de teorias a serem empregadas=
interdependência complexa entre as grandes potências em razão das relações
comerciais, financeiras e que envolvem fornecimento de tecnologia de defesa para o
complexo militar industrial.
As capacidades militares, econômicas e tecnológicas em Waltz (1979) define a
grande potência e, pelos seus objetivos de maximização de poder global ou de disputar a
hegemonia, se essa capacidade prorporcionar projeção de poder militar e econômico
além fronteiras, define o status de potência regional, grande potência ou superpotência,
associado ao grau de capacidade militar (sistema de armas) e econômica em face do
PIB, em Mearsheimer (2001).
As características do realismo político são a incerteza da intenção dos outros
atores - sugere padrão de conflito e competição; a anarquia (ausência de poder político
acima dos Estados); a distribuição das capacidades; a sobrevivência como objetivo
(intensidade é que define a maximização de poder enquanto ação militar ofensiva ou o
uso de poder suficiente para a defesa da sobrevivência); a natureza da ação do estado,
que é racional e as táticas de sobrevivência envolvem o uso de meios como o balanço de
poder e suas variações (balanceamento dos demais atores rivais e formação de coalizões
e alianças).
Para o realismo ofensivo (Mearsheimer, 2001) a melhor forma de garantir a
sobrevivência é ser o estado mais poderoso do sistema. A condição dos EUA como
potência regional significa que eles irão prevenir que surjam outras potências regionais
em outras regiões do mundo.
A condição de hegêmona regional possibilita um ator estatal se tornar uma
grande potência com capacidade de projeção de poder global e assim prevenir o
surgimento de rivais com poder similar, o que pode ser atingido pelo uso da guerra
como forma de maximização de poder.
Os realistas defensivos (Kenneth Waltz, 79), a fim de manter sua capacidade de
projeção bem acima dos demais competidores deve utilizar as estratégias de balanço de
poder através da dissuasão (ameaça do uso da força), o que implica no uso do poder
defensivo a fim de evitar o surgimento de outras potências regionais, pois isto
significaria uma capacidade de projeção de poder que desafiaria a sua projeção de poder
sobre as demais regiões, afetando, com isso, seus interesses estratégicos.
Para estes realistas defensivos, o uso excessivo do poder militar mediante a
maximização de poder por estratégias ofensivas pode ser contraproducente e conduzir a
custos e prejuízos para a estratégia de segurança do Estado. Assim, além do balanço de
poder e da dissuasão, defendem com maior ênfase a construção de alianças e sistemas
multilaterais no campo da segurança, como os regimes internacionais de controle de
armas.
Evidências sobre o comportamento recente das administrações norte-americanas
republicana e democrata - que serão examinadas em capítulo próprio na presente obra -
levam ao raciocínio de que os diferentes governos americanos reagem de forma
específica em contextos políticos e econômicos que são condicionados pela natureza do
ciclo de acumulação de capital e seus efeitos sobre as capacidades da potência
hegemônica no sistema sugerem que ambas as duas formas de realismo – ofensivo e
defensivo – são parcialmente utilizadas em graus diferenciados de acordo com a
conjuntura internacional e o tipo de crise enfrentada pelos Estados Unidos.
E a atuação do país que pode ser caracterizada como realista ofensiva ou
defensiva, conforme a natureza da crise e a capacidade e os meios de enfrentá-la, tem
como referência cultural no campo dos valores a legitimação daquelas duas formas de
estratégias realistas a partir das linhas mestras que definiram os princípios e todas as
doutrinas estratégicas do país: o Destino Manifesto e a Doutrina Monroe.
Não obstante, a atuação de uma administração ser diferenciada em relação a
outra, não afasta a hipótese de que ambas utilizam fundamentalmente estratégias
realistas de manutenção do poder hegemônico do país e que independente da
intensidade do uso do poder ser qualificado como ofensivo ou defensivo, em ambos os
casos a preocupação fundamental da elite americana é com a manutenção de seus
grandes interesses estratégicos, cuja intensidade pode variar a partir do impacto
econômico dos ciclos de acumulação sistêmicos de capital.
È aqui que o realismo e a visão marxista do sistema – mundo se encontram para
explicar a atuação do Estado nas relações internacionais.
Assim, as condições para a manutenção das capacidades que caracterizam uma
potência regional que pode ser considerada uma grande potência no sistema
internacional, de acordo com os postulados teóricos do realismo ofensivo dependem de
que estas capacidades políticas, econômicas, tecnológicas e militares sejam garantidas
pela liderança econômica e política do ciclo sistêmico de acumulação de capital que
atualmente é hegemonizado pelos Estados Unidos, por meio da existência de um
complexo militar industrial desde o fim da Segunda Guerra.
Nesse sentido, essas variáveis que integram as capacidades são interdependentes,
em razão de que o Estado no qual se constituem é o núcleo do sistema internacional que
é caracterizado pela interdependência entre as dimensões econômica e política do
sistema internacional, caracterizado, em Arrighi, pela luta pela transição hegemônica
desse sistema, a partir da condição indissociável entre capital privado enquanto recurso
de poder para o Estado, razão do processo de acumulação de capital ser importante para
o Estado.
A isto se agrega, em condições variáveis dadas aquelas capacidades dos Estados,
do grau de interdependência em termos econômicos e potências e superpotência e que
em razão disso definem as possibilidades de cada ator relevante em termos de disputa
pela transição hegemônica do sistema internacional.
Nesse sentido, a abordagem adotada segue a tendência da análise da estrutura
econômica e política para a compreensão da natureza do sistema internacional e de seus
condicionantes sobre a política externa e de segurança de uma grande potência.
Em razão disso, o fio condutor de análise está centrado nas obras de Arrighi e o
papel do sistema de acumulação de capital para a hegemonia na construção do Estado
capitalista e a contextualização do desenvolvimento e da erosão do ciclo de acumulação
de capital presidido pela hegemonia dos Estados Unidos, o papel cíclico das crises
econômico-financeira, a financeirização da economia mundial, o papel crítico da relação
de interdependência entre o ator estatal e o agente econômico.
Os ciclos de acumulação alternariam períodos de restrição da liquidez de capital
privado disponível no mercado financeiro com o objetivo de ser aplicado em
investimento em pesquisa de descoberta e utilização de novas tecnologias, bem como
reforço de grandes instituições financeiras privadas e de alguns setores estratégicos da
estrutura estatal a fim de preparar-se para o domínio e aplicação na produção daquela
inovação tecnológica, num quadro de competição intercapitalista entre associações de
interesses entre o Estado e o capital privado. Esta etapa prepara a seguinte, caracterizada
pelo ciclo de expansão da produção e da liquidez no mercado de consumo.
Nesse caminho é que emergem as crises pela via dos capitais especulativos
recorrentes e se busca compreender a importância do complexo militar industrial para
este processo de acumulação de capital.
Assim, parte-se do pressuposto e da hipótese de que o complexo – militar
industrial seria instrumental para gerar demanda efetiva na alternância do ciclo de
consumo/demanda ou para gerar um processo de concentração de capital na mão dos
agentes econômicos e especialmente do próprio ator político central o Estado, o qual
deve deter o controle político em última instância de um processo complexo mas
controlado pela dimensão política.
Nesse sentido, o presente ciclo de concentração de capital tem condicionado a
crise econômica que vem caracterizando a globalização desde os anos 1990 e é
favorecido pela doutrina de segurança nacional dos Estados Unidos que enfatiza a
agenda de segurança sobre a agenda econômica.
Isto ocorre com o uso da ameaça do terror para justificar as hipóteses de guerras
locais e limitadas a fim de reverter em favor da retomada da hegemonia norte-americana
nos campos militar, econômico e político, em um sistema caracterizado pela tendência à
multipolaridade e transição hegemônica.
Assim, a partir da competição entre as grandes potências e o atual papel do
complexo militar industrial, que associa interesses corporativos privados e institucionais
do Departamento de Defesa emergem as condições do caos sistêmico e que exerce
grande poder de pressão sobre a formulação e a implementação da política exterior
estadunidense.
Como se da o interrelacionamento entre a política, a economia e a guerra e o
eventual impacto que as duas primeiras podem ou não ter sobre esta última é a grande
questão de que se ocupam os estudos estratégicos. Martins (2013) 7 propõe denominar
essa relação de sociometabolismo entre os níveis da política (instituições e diplomacia),
da economia ( mercadoria e dinheiro) e da guerra (competição militar) e utiliza a
abordagem teórica de Karl Deutsch, adotando o conceito da cibernética8.
Para o autor, a hipótese de ocorrência de uma guerra (limitada, local, regional ou
central) depende da administração do sistema internacional propriamente dito do que da
diplomacia profissional em si mesma ou do impacto da economia internacional ou
interna sobre as crises internacionais e mesmo a quantidade de pólos ou número de
grandes potências que definem os contornos estruturais fundamentais de um sistema
internacional.
Isto implica que as dimensões da política, da economia e da guerra tem seus
próprios canais de entrada por onde processam influências e impactos de cada dimensão
uma sobre a outra. Por esta lógica, cada dimensão pode ser encarada como um
subsistema do sistema internacional.
Nesse sentido, cada subsistema tem uma condução autônoma dos fatos de ordem
doméstica ou internacionais que lhes venham impactar. Nesse ínterim, há uma
reelaboração desses fatos a partir da natureza do subsistema e sua retroalimentação que
signifca um efeito sobre os demais subsistemas. Nisto podemos compreender essa
interdependência entre as respectivas dimensões9.
Os ciclos econômicos de acumulação de capital que moldaram o sistema
internacional foram analisados pelo eminente cientista político italiano Geovanni
Arrighi, em sua seminal obra “ O Longo Século Vinte”.
Desde a Idade Média, com os ciclos de acumulação das cidades mercantis
italianas, passando pela formação do Estado Mercantilista dos séculos dezesseis e
dezessete e, finalmente, encontrando a maturidade a partir das etapas inglêsa e norte-
americana da Revolução Industrial, emerge um sistema econômico-financeiro que será

7
Op. cit.
8
Emprego da teoria da comunicação para a análise do Sistema Internacional.
9
“ Esta incerteza deriva, entre outros fatores, do dinamismo característico do sociometabolismo da
política, da economia e da guerra. Estes três aspectos podem ser considerados como subsistemas
com seus próprios inputs, processamento autônomo e retroalimentação independentes. Assim, o
Sistema Internacional sofre oscilações tanto em virtude das revoluções de 1848 ou da Primavera
Árabe – para efeitos do subsistema político – das variações demográficas, mudanças climáticas, da
oferta de matérias-primas ou commodities – no que tange ao subsistema econômico – ou ainda, das
transições tecnológicas, no caso da guerra”. (MARTINS, 2013)
responsável pelo estabelecimento de uma estrutura na qual será criada o moderno
sistema internacional de Estados, a partir do clico de hegemonias de uma das grandes
potências estatais sobre as demais.
Sob esta perspectiva, é correto afirmar que a estrutura do sistema internacional
compõe-se de duas grandes forças motrizes, que não podem ser separadas, nem
tampouco corretamente compreendidas em seu todo sem que sejam encaradas em
termos de uma simbiose, eis que indissociáveis para a explicação do fenômeno da ação
estatal dentro desse sistema.
Partindo da hipótese de Geovane Arrighi e agregando as teses centrais do
realismo estrutural, chega-se à hipótese que demonstra a importância dos efeitos da
estrutura sistêmica centrada no balanço de poder e seus condicionamentos sobre o
processo de tomada de decisão dos governos que, ao buscarem definir suas ações,
negociam preferências ou demandas com as burocracias de estado (diplomatas e
militares), agentes internos nesse processo, e com agentes externos (grandes
corporações de defesa).
Assim, a estrutura internacional, formada pelo balanço de poder entre as
principais potências, em razão da anarquia do sistema, é fomentada pela lógica do
processo de acumulação de capital privado do qual participa de forma decisiva na
condição de gestor o Estado. Esta estrutura sistêmica, por outro lado, também necessita
da manutenção de capacidades militares de nível estratégico desde, pelo menos, a
ascensão do poder naval britânico.
Nesse contexto, o poder naval americano e seu papel para a manutenção das
capacidades dissuasórias que irão garantir um sistema de balanço de poder em que os
Estados Unidos permaneçam como o principal polo do sistema internacional depende,
em última instância, das condições estruturais que garantam a continuidade do processo
de acumulação de capital e o eixo desta lógica reside na criação do complexo militar
industrial, aqui visto dentro deste contexto maior do sistema de acumulação e do
balanço de poder.
Enfim, estes são os condicionamentos sistêmicos que, em um processo circular,
definem as prioridades estratégicas dos governos posteriores à era Bush, voltados a lidar
com uma crise de liquidez que gerou uma crise econômica para a qual a superextensão
dos gastos militares com a estratégia de intervenção no Oriente Médio contribuiu de
forma decisiva.
A partir disso surgiu a necessidade de revisar prioridades políticas e militares no
financiamento do complexo militar industrial para custear programas de aquisição de
sistemas de armas estratégicos vitais para a manutenção das capacidades militares em
um baixo custo político e econômico para lidar com o cenário restritivo no plano
financeiro, o que acabou condicionando toda a ação de política externa de segurança dos
governos Barack Obama rumo a uma política menos agressiva e mais cautelosa, pois o
verdadeiro jogo diplomático e estratégico poderá ter um desfecho em um longo prazo e
na Ásia Pacífico.
Ou seja, após o exame do impacto das características sistêmicas sobre as
segundas e primeiras imagens de relações internacionais e examinados as características
gerais do complexo militar industrial, descrevem-se as tendências gerais da política
externa de segurança de Obama centradas na doutrina estratégica de revisão de gastos
militares e prioridades estratégicas de 2012, para descobrir a institucionalização
presente no Departamento de Defesa com respeito à necessidade de concentração dos
esforços políticos de manutenção do balanço de poder na Ásia-Pacífico e na Eurásia, em
relação aos grandes competidores estratégicos dos Estados Unidos, a China e a Rússia.
Do ponto de vista do método aplicado, o estudo tem por finalidade uma análise a
partir da descrição dos fatos históricos e acontecimentos políticos entremeados da busca
de interpretação (explicação), usando como fundamento duas ferramentas: a teoria
realista a partir da assunção da validade das premissas fundamentais do realismo
estrutural waltsoniano, mas centrado na perspectiva do realismo ofensivo e de seus
impactos sobre o processo de tomada de decisão no campo da política de segurança de
Estado e de elaboração de doutrinas estratégicas de longo prazo.
Está na obra de Kenneth Waltz 10 a análise de que embora relevante para a a
compreensão e formação de uma política exterior, a dimensão estatal (relação entre
instituições do Estado) e individual (relação entre atores) não mudam a essência da
estrutura das relações internacionais cujo sistema é baseado no equilíbrio de poder em
função da forma como as capacidades político-militares, tecnológicas e econômicas
estão distribuídas no sistema.
A esta lógica pode ser harmonizada com a visão sistêmica da estrutura
econômico-política do sistema baseada na competição interestatal por recursos e
maximização de capital mediante o uso da guerra e, assim, fundada na relação entre
elites centrais para a formação do sistema com base no Estado capitalista: nucleado por
políticos/diplomatas, capital privado e militares. Nesse sentido, o surgimento do
complexo militar industrial nos Estados Unidos fornece justificativas para o estudo com
base nas teorias sistêmicas do realismo e de Arrighi (96)11.
Dessa forma, a busca pela maximização de poder e manutenção da liderança da
grande potência off shore em face do desafio eurasiano (chinês) a partir da perspectiva
dos ciclos sistêmicos de Arrighi, analisando-se o comportamento dos Estados Unidos a
partir de seus condicionamentos estruturais.
Os Estados Unidos passaram a diminuir a intensidade de seu engajamento direto
em intervenções militares no sistema internacional após as guerras locais no Iraque e no
Afeganistão que, apesar de não caracterizarem guerras centrais, foram de grande
10
São as obras fundamentais do realismo estrutural do cientista político norte-americano Kenneth Waltz
que definem a relação entre o núcleo do processo decisório, onde se encontram as principais instâncias
decisórias e os atore individuais, dos níveis institucionais político e burocrático internos ao Estado e os
efeitos dinâmicos entre este nível interno e o externo, o da interação entre as grandes potências do
sistema internacional. No primeiro caso, temos a obra Man, State and War, de 1959 e no segundo,
Theory of International Politics, de 1979.
11
Geovanni Arrighi, em sua obra o Longo Século Vinte (1996), foi um cientista político norte-americano
que, a partir da inspiração da teoria do sistema –mundo do sociólogo norte-americano Immanuel
Wallerstein, desenvolveu a tese dos ciclos de acumulação de capital e o seu impacto sobre a estratégia
das grandes potências nos planos econômico, militar e diplomático no contexto da hegemonia sobre
cada momento histórico de desenvolvimento do capitalismo mundial.
intensidade em razão do custo financeiro e da longa duração e pela intensidade do
emprego de força militar (caso iraquiano).
Estava em jogo a necessidade de utilizar o poder militar para garantir o controle
e acesso a insumos estratégicos (energéticos, no caso iraquiano) e garantir o balanço de
poder regional ( tanto no caso iraquiano como no afegão) para que potências médias e
regionais tenham inviabilizadas formas de contrabalançar a presença global norte-
americana na Eurásia por meio de fortalecimento de alianças econômicas e estratégicas
como forma de contrabalançar o papel dos Estados Unidos como balanceador externo.
Ocorre que a estratégia de segurança americana da era Bush comprometeu
economicamente a continuidade da agenda de segurança pautada pelos neocoservadores
que ficou caracterizada como de superextenção de natureza imperial e começava a
inviabilizar, no plano político estratégico, a grande estratégia de liderança norte-
americana estabelecida a partir da Segunda Guerra Mundial e consolidada ao longo do
sistema bipolar conhecido como Guerra Fria.
Tal estratégia inspirou-se no pensamento estratégico de Theodore Roosevelt, o
qual inseriu os Estados Unidos no sistema internacional de balanço de poder enquanto
grande potência e estava baseada no papel estratégico das organizações privadas do
capital articulado com a indústria armamentista e o núcleo de poder decisório político-
militar do Estado americano.
A consolidação institucional desta liderança dos Estados Unidos no sistema
internacional e o progressivo condicionamento que o país passou a exerger sobre a
agenda de segurança mundial a partir da segunda metade do século vinte em diante,
baseou-se em três variáveis indissociáveis: 1- a continuidade do processo de
acumulação de capital, relacionado com o controle de insumos estratégicos e aplicação
de novas tecnologias e gestão da produção (conhecido como Terceira Revolução
Industrial); 2- na sua aplicação sobre os sistemas de armas estratégicos convencionais e
não convencionais relacionados com a projeção de poder a fim de garantir a contenção
dos polos rivais eurasianos, o que justifica a ênfase nas capacidades nucleares (sistemas
de mísseis de longo alcançe) e convencionais a partir da sua marinha e força aéreas para
a garantia do equilíbrio de poder com as grandes potências chinesa e russa; 3- por fim, a
condição de sustentação dessa liderança, que foi a constituição do complexo militar-
industrial, como eixo orgânico entre as dimensões econômica e militar estratégicas que
informam os objetivos estratégicos permanentes da política externa de segurança dos
Estados Unidos.
A crise econômica de 2007-08 e a ofensiva iraquiana de 2003, todavia,
representaram uma ruptura com esta concepção estratégica e a continuidade da agenda
de segurança da era Bush, em que pese buscar a supremacia estratégica a nível global,
excederia as capacidades econômicas e suas vantagens, comprometendo, no longo
prazo, a capacidade militar de exercer o papel de árbitro do balanço de poder na Eurásia
e especialmente, na região da Ásia-Pacífico, caracterizada pela ascensão do poder
econômico e militar chinês, no que pode se configurar num desafio de novo ciclo de
acumulação e, com isso, o verdadeiro desafio estratégico estrutural para o atual ciclo
norte-americano de acumulação que justifica a posição estratégica de liderança da
grande potência americana.
Nesse sentido, o governo Barack Obama representou um retorno à concepção
estratégica fundamental do país em um cenário de crise econômica estrutural, que é em
boa medida resultado da crise do modelo de acumulação americano, crescentemente
financeirizado em sua economia e que compromete, cada vez mais, os investimentos
disponíveis para o orçamento de defesa do país, o que tem implicações, no longo prazo,
para a manutenção de suas capacidades estratégicas de sustentar sua posição de
liderança do sistema.
Estas são as principais implicações e constatações que se percebem pela
interpretação dos documentos de nível estratégico produzidos pelo Departamento de
Defesa e pela US Navy e pela US Air Force, relacionados com os objetivos da
reorientação doutrinária de 2012 e seu impacto na composição dos investimentos nas
capacidades militares do país.
Contudo mais do que uma nova estratégia de doutrina de projeção e manutenção
de poder, este conjunto de documentos de alto nível representa o esforço das elites
política, diplomática, militar e empresarial em manter o consenso estabelecido desde a
era Truman12 para com a manutenção da posição hegemônica do país no sistema
internacional e que foi seriamente atingida pelos desvios de rumo ocorridos ao longo
dos dois mandatos de George W. Bush13, com sua estratégia de superextensão imperial
do poder militar e estratégico americano que nos faz lembrar o arquétipo ocidental de
império e seus limites: Roma.
Nesse sentido, a partir do governo Obama, emerge um consenso para com a
necessidade de retorno à busca pela liderança pelo consenso interno e legitimidade
internacional, que perpassa tanto setores importantes dos democratas quanto dos
republicanos, associados ao núcleo duro desta estratégia, que são a comunidade de
segurança representada pelos altos comandos e alto oficialato de suas forças armadas,
dos diplomatas do Departamento de Estado e da comunidade acadêmica de ciência
política.
Não obstante, o propósito do texto não é o de analisar o processo decisório nem
o de estudar as elites que definem o processo externa no plano estratégico, mas antes
apenas o de indicar de que forma sobre elas incidem a estrutura dos ciclos de
acumulação de capital e da anarquia do sistema internacional de balança de poder entre
os principais polos do sistema.
Os Estados Unidos são a segunda grande potência hegemônica a liderar um
sistema efetivamente internacional desde seu surgimento com a hegemonia britânica há
dois séculos e necessitam novamente emular não Roma, mas Atenas para lograr a
manutenção de um segundo século americano, por meio de uma liderança consentida e

12
Harry S. Truman, presidente dos Estados Unidos por dois mandatos, de 1945 a 1953, sob cujo governo
se estruturou o complexo militar e industrial, o departamento de defesa e a força aérea dos Estados
Unidos
13
Presidente dos Estados Unidos de 2001 a 2009. Sob seu governo emergiram os atentados de 11 de
Setembro de 2001 às Torres Gêmeas, a formulação de uma expansão global sustentada
ideologicamente pela guerra ao terror e as invasões militares ao Afeganistão (2001) e Iraque (2003) num
entrelaçamento de interesses geoeconômicos (petróleo) e balanço de poder na Ásia Central visando
afetar a aproximação estratégica entre Rússia e China.
com o compartilhamento de custos financeiros e políticos (prestígio e legitimidade) em
um sistema multilateral pautado por grandes potências.
Como sua antecessora - a Grã-Bretanha - sua liderança não pode dissociar-se de
um ciclo de acumulação de capital que passa a caracterizar o sistema internacional
desde então e baseia-se na manutenção de um sistema de balança de poder. Todavia,
como num processo de natureza circular, este sistema, que foi estruturado para prover
segurança para os interesses do capital privado norte-americanos associados aos
interesses das elites burocráticas do próprio Estado, em última instância, para manter-se,
depende de que a economia americana consiga reverter seu enfraquecimento relativo,
mas contínuo na capacidade produtiva e comercial em face dos novos polos econômicos
mundiais.
Desta maneira, é imprescindível pensar o controle necessário sobre o acesso às
fontes de suprimentos de minerais e insumos estratégicos e energéticos, como o
petróleo, mas principalmente o silício, as terras raras e o alumínio, fundamentais para
assegurar a dianteira competitiva dos Estados Unidos na liderança da economia da
Terceira Revolução Industrial e, assegurar, com isso, o suprimento estratégico para a
indústria aeroespacial e de defesa do país, condições fundamentais para a manutenção
das capacidades militares estratégicas convencionais e não convencionais, que são o
sustentáculo do poder norte-americano.
Estes recursos e insumos estão em disputa no mercado internacional por parte
dos Estados Unidos e da China, que pela necessidade de retomada do crescimento da
primeira e pelo dinamismo da segunda, necessitam para a manutenção do crescimento
econômico e da manutenção da lucratividade do capital de suas empresas investidos em
setores econômicos estratégicos, de garantia de acessos a novas fontes produtoras dessas
matérias primas, localizadas nos países da periferia do sistema e em geral da imensa
região eurasiana, em cujas áreas geográficas se encontram os interesses geopolíticos e
econômicos da Rússia e da China, enquanto potências regionais e dos Estados Unidos,
enquanto potência global.
Adicione-se a isso a fato de que em face do potencial russo em seu território, o
que faz com que a Rússia tenha os recursos disponíveis para manter-se como grande
potência e caso haja uma retomada do seu crescimento econômico, o que se prefigura
indispensável para a manutenção de suas capacidades estratégicas, a disputa por
recursos naturais e energéticos estratégicos dar-se-á entre as três principais grandes
potências do sistema, ou ao menos, a aliança estratégica das duas grandes potências
eurasianas em disputa com a grande potência marítima, em que interesses econômicos e
de segurança se entrelaçam por serem interdependentes .
A característica desse sistema internacional, assim, é dada pela natureza desse
ciclo sistêmico de acumulação e que implica no uso de novas tecnologias a partir das
etapas de Revolução Industrial que redundam na necessidade de concentração de capital
a partir da associação estratégica entre o Estado e suas corporações transnacionais
produtivas e financeiras. É precisamente a garantia da continuidade deste ciclo que
envolve a necessidade de criação de um poder militar que respalde a estratégia de
manutenção e competição estatal pela hegemonia entre as grandes potências.
A transição entre a hegemonia britânica e a norte-americana, a primeira transição
global sistêmica, foi um alerta sobre a competição entre as grandes potências que se
processou pela primeira vez em escala mundial.
Isso assim ocorreu em razão da difusão da tecnologia, da organização
empresarial e de seu impacto na produção industrial e sua aplicação no sistema de armas
industrializando as formas de combate.
Os Estados Unidos, aprofundando e redimensionando a grande estratégia
desenvolvida pioneiramente pela Grã-Bretanha, construiu, pela primeira vez na história,
uma presença econômica, política, cultural e militar em escala global nunca antes vista
em um cenário completamente novo, em que todos os povos se organizam na forma de
Estados soberanos.
Seu poder militar é, desde o final da Segunda Guerra, em 1945, incontrastável
no plano estratégico convencional e não-convencional e no campo naval, o único capaz
de garantir a projeção de poder e provimento de segurança para os interesses
econômicos e políticos do Estado e de suas companhias desde o início do ciclo
sistêmico mundial com as grandes navegações e a formação do Estado westfaliano.
Mesmo assim, sua hegemonia não caracteriza a consolidação um império
informal em razão da insuficiência de recursos financeiros que sustentem a pesquisa
científica e tecnológica para dotar seu sistema de armas indefinidamente superior em
relação aos seus principais competidores estratégicos, as outras duas grandes potências
do sistema- a Federação Russa e a República Popular da China.
Este fenômeno se dá em razão do impacto da difusão da tecnologia de armas
convencionais e não convencionais estratégicas que a Terceira Revolução Industrial
favorece com a sua etapa de digitalização e seu impacto na horizontalização das
capacidades militares ofensivas de projeção de poder, favorecendo, com isso à
tendência à multipolaridade do sistema internacional.
Assim, o atual ciclo de acumulação sistêmica envolve a competição pelo
domínio de novas tecnologias na produção e favorece a concentração de capital,
gerando, com isso, uma crise econômica que impacta na grande estratégia dos Estados
Unidos de engajamento militar.
Nesse sentido, a busca por maior eficiência do sistema de armas a um custo
econômico sustentável, favorece tanto o processo de concentração de capital como
condiciona, de forma cíclica, a ocorrência de hipóteses de guerra central assimétrica, na
lógica do sistema de balanço de poder entre as grandes potências.
Dessa forma, o complexo militar-industrial norte-americano pode ser o nexo
entre o entrelaçamento de interesses do capital privado e da estratégia de poder do
Estado, usando o desenvolvimento científico e tecnológico na produção e
competitividade da economia, que interessam tanto às grandes transnacionais dos
Estados Unidos quanto à própria economia do país.
Com isso, sistemas de armas sofisticados comissionados às forças militares dos
Estados Unidos são capazes de respaldar os interesses estratégicos de manutenção do
status quo de liderança da grande potência no sistema internacional.
Assim, a singularidade do sistema internacional atual e as especificidades da
estrutura de poder que condiciona o sistema político interno norte-americano definem
em grande medida as linhas mestras da ação diplomática exterior da superpotência que
permanece como o centro hegemônico do sistema internacional.
Nesse sentido, são os condicionantes sistêmicos e institucionais que afetam em
termos de limitar ou definir os contornos pelos quais o processo decisório em política
exterior, nucleado pelo chefe de Estado e seus assessores mais próximos - qualquer que
seja sua origem ideológica, sua classe social e o contexto de sua ascensão política – e do
qual participam a cúpula com poder de decisão das burocracias civil e militar, às quais
sofrem as influências do ambiente externo ao Estado pela ação de atores subnacionais
relevantes como os grupos de pressão que representam o capital privado associado ao
complexo industrial militar.
Isto não significa dizer que o contexto não importe. Pelo contrário, o contexto é
fundamental e interage dinamicamente sobre a estrutura do sistema internacional, em
especial da atual potência hegemônica do sistema.
Destarte os elementos centrais dos interesses estratégicos de um Estado definem
os contornos estruturais que limitam ou condicionam a ação política e econômica
interna num processo interdependente e mútuo de causa e efeito.
No entanto, em face da crescente interconexão complexa e até mesmo
contraditória entre interesses financeiros, comerciais de Estados e suas corporações
públicas e privadas, tanto norte-americanas, como de outros países desenvolvidos
(grandes potências) e em desenvolvimento (potências regionais ou potências médias,
situadas na periferia) conduz à necessária reflexão sobre a relação profunda entre
corporações e Estado (burocracia civil e militar e atores políticos) na definição das
características e tendências do sistema internacional e da competição internacional dela
decorrente condicionada pelas grandes potências e pela superpotência.
Assim, a hipótese desta obra supõe uma relação de causa e efeito que tem sua
origem no ciclo sistêmico de acumulação de capital e que pode afetar a distribuição de
poder no sistema internacional que é sustentado pela capacidade militar, econômica e
política das grandes potências ou polos.
Dessa forma, o sistema internacional, cuja característica intrínseca são a
distribuição das capacidades que definem o poder em termos de polaridades, sofre a
interferência da natureza do ciclo de acumulação de capital, o qual se caracteriza como
a variável interveniente que contém dois fenômenos – o primeiro é a transição
tecnológica que tende a horizontalizar as capacidades militares e econômicas e que
necessita da concentração de capital para investir em novas tecnologias, o que reduz a
liquidez na economia disponível para investimento massivo e permanente em
capacidades militares.
Esta relação de causa e efeito no segundo fenômeno gerado pelos ciclos de
acumulação uma vez que redunda na necessária diminuição dos gastos militares e traz
implicações para a revisão da doutrina estratégica em relação à política externa de
segurança dos Estados Unidos, o que afeta decisivamente o processo decisório à nível
individual, trazendo implicações para a segurança internacional.
Em que medida esta característica dos ciclos sistêmicos tem o condão de alterar
a polaridade do sistema internacional que tende a uma tripolaridade no horizonte
predizível de eventos para o século vinte e um entre as três maiores potências militares,
econômicas e com recursos tecnológicos formidáveis do sistema de Estados – Estados
Unidos, China e Rússia – ainda é prematuro afirmar.
Nesse sentido, a obra procura desvendar o papel que o tão falado complexo
militar industrial desempenha neste processo em que a estrutura do sistema
internacional estabelece os fundamentos pelos quais se move o nível das instituições e
dos indivíduos em matéria de política externa.
Longe de ser um estudo que despreze a relevância das abordagens voltadas para
a análise da crença e dos valores na formação das preferências do indivíduo/estadista e
das instituições públicas, a análise aqui procura demonstrar que existe uma regra
histórica dada pelo surgimento do sistema de estados.
A regra de que se os indivíduos criaram as instituições e tanto a nível individual
como institucional (estatal) é que se processa a tomada de decisão, as tendências que se
cristalizaram ao longo dos séculos em princípios e regras internacionais não escritas
como a balança de poder em razão das capacidades construídas no contexto da
internacionalização do modo de produção e reprodução do capital fizeram com que se
tornassem autônomas em relação ao governante e sua burocracia e, num sentido inverso,
criam regras que não podem ser impunemente ignoradas, sob pena de conduzir a uma
punição não escrita, qual seja, a do relativo enfraquecimento do ator estatal ou mesmo
sua destruição por uma guerra.
Dessa forma, as abordagens que para Waltz seriam relacionadas com a primeira
e segunda imagens – indivíduos e instituições, não devem ser ignoradas. O modo de
funcionamento de tomadas de decisão é real e se processa em uma interação complexa
entre indivíduos e suas instituições, não podendo negar também as influências do
ambiente externo.
Todavia, o propósito do presente estudo é buscar demonstrar que estas análises
estão enquadradas dentro de uma lógica estrutural que demonstra que meios
(capacidades militares estratégicas) são fundamentais para que se atinjam objetivos
(interesses estratégicos do Estado capitalista contemporâneo) dentro da lógica em que o
fenômeno dos ciclos sistêmicos de capital é a condição de existência do sistema
anárquico centrado no Estado territorial capitalista.
Esta formação sócio-política singular, por sua vez, convive com a lógica da
reprodução do capital como fundamento de sua existência, associado à necessidade de
manter a lógica territorialista de poder em termos de capacidades militares a um nível
instrumental que lhe permita liderar como balanceador e líder hegemônico de um
sistema de poder em que as lógicas da competição econômica necessitam do respaldo
do poder militar dentro de sua lógica desde a emergência do Estado capitalista moderno.
Sob tais circunstâncias, a existência de um complexo industrial militar, que
associa demandas setoriais das instituições militares da grande potência atual, os
Estados Unidos, aos interesses do capital produtivo que vê utilidade estratégica para a
segurança e reprodução de seus lucros e negócios na parceria com o Departamento de
Defesa americano, instituição que faz a gestão política e estratégica das demandas
militares em face dos interesses do capital privado, pode ser um dos elos que interligam
a estrutura anárquica baseada na balança de poder e o nível da interação das instituições
e dos indivíduos no que diz respeito ao processo de tomada de decisão a nível
conjuntural, mas sempre dentro dos limites das capacidades econômicas que definem as
possibilidades de incremento e eficácia das capacidades militares estratégicas.
É exatamente dentro desta linha de análise que é possível demonstrar o impacto
da estrutura sobre a conjuntura da decisão complexa que faz com que as relações civil-
militar, envolvendo Presidência, assessores de Segurança Nacional, Departamento de
Estado e Departamento de Defesa, além do Conselho de Segurança Nacional-
contemplando, portanto, políticos, diplomatas e militares, indivíduos e instituições,
formulem a política externa de segurança em termos de edição de doutrinas que irão
pautar iniciativas de engajamento militar como os casos iraquiano e afegão, não apenas
pensando as demandas setoriais em si mesmas.
Sem perder de vista que as demandas de estadistas, diplomatas e militares são
todas justificáveis dentro da lógica institucional de cada uma, em termos da
interpretação que a Presidência, do Departamento de Defesa e do Departamento de
Estado dão para os interesses nacionais estratégicos em jogo dos Estados Unidos para o
século 21, o propósito do estudo é traçar os limites do exercício e realização destas
demandas.
Isto se dá a partir das condições fundamentais e inescapáveis que os agentes
centrais do processo decisório em política externa de segurança não podem ignorar: a
natureza estrutural do balanço de poder em termos de capacidades militares dada e
condicionada pela lógica recorrente da competição interinstatal entre grandes potências
que faz parte da estrutura de acumulação, reprodução e concentração de capital em um
espaço político seguro aos seus interesses – a sociedade política, o Estado desde a
emergência do sistema internacional.
É nesse sentido que a demonstração dos efeitos da guerra do Iraque durante o
governo Bush condicionou fortemente a crise financeira a partir do erro estratégico de
superdimensionar custos militares em um cenário que iria prefigurar uma etapa de
restrição de capitais na produção como resultado da etapa de acumulação de capital no
sistema financeiro. Assim, a tendência geral do sistema levaria a uma necessidade de
revisão de prioridades em termos de limites para o comissionamento de armas
estratégicas convencionais e não convencionais capazes de manter a liderança
hegemônica dos Estados Unidos no sistema de balança de poder internacional.
Com o excessivo comprometimento econômico do país na guerra iraquiana, esse
potencial de restrição de capitais disponíveis seriam aprofundados e condicionariam a
doutrina e a política de segurança de seu sucessor, Barack Obama, demonstrando que a
atual tendência de redução de custos com capacidades militares foi um constrangimento
estrutural dado pela lógica do Estado capitalista nas relações com o sistema.
Não obstante, cumpre sublinhar que esta redução não implica num fim do
recurso aos gastos militares, nem obedece à lógica de um pacifismo ingênuo, não
importa a retórica empregada pelos decisores em política externa.
Os gastos militares irão continuar por que obedecem a uma lógica econômica
associada à necessidade de manutenção do equilíbrio militar dissuasório entre as
grandes potências. Contudo, tais gastos devem se manter num patamar satisfatório para
que ambos os interesses de lucratividade, competitividade econômicas e segurança
estratégica sejam mantidos, respaldando a posição hegemônica dos Estados Unidos no
sistema.
Na medida em que a estratégia do governo Bush tornou-se disfuncional a esta
lógica gestada desde a ascensão hegemônica dos Estados Unidos como líder e fiador do
sistema internacional, as capacidades, por assim dizer, econômicas tornaram-se
restritivas para sustentar um aumento significativo de gastos militares que pudessem
desequilibrar em favor de Washington o poder dentro do sistema.
Assim, os principais desafios estratégicos postos demonstram a ação de fatores
estruturais sobre a tomada de decisão e que são muito mais profundos e graves do que a
as abordagens críticas para com o realismo poderia supor.
Nesse sentido, a discussão sobre as doutrinas estratégicas das eras Bush e
Obama, em face das capacidades militares disponíveis em razão do orçamento de
defesa, demonstram a viabilidade da aplicação da teoria sistêmica arrighiana que vem
agregar à visão do realismo estrutural respaldando as análises centrais acerca da
importância da dissuasão, do equilíbrio, da ameaça e da maximização de poder
associados à lógica econômica de reprodução de capital, a que nenhuma teoria que não
seja de matiz estrutural tenha conseguido respostas plausíveis para compreender as
principais linhas de força do comportamento das políticas de Estado no campo
diplomático e de segurança, que não podem se limitar às análises de processo decisório
de forma isolada, mas que condicionam, de maneira decisiva, os atores envolvidos no
processo decisório.
Esta perspectiva teórica é que norteia o presente esforço analítico. Nesse sentido,
o estudo dos ciclos de longa duração braudelianos associado a visão sistêmica marxista
empregada para o estudo do sistema internacional a partir de Immanuel Wallerstein
empregada pelo genial Geovanni Arrighi e o sistema interestatal sob as perspectivas do
realismo estrutural de Kenneth Waltz e John Mearsheimmer são plenamente
compatíveis enquanto teorias de ciência política cujas categorias de compreensão do
fenômeno da política internacional permitem traçar as linhas fundamentais que
explicam o comportamento do Estado racional e de que forma a estrutura condiciona o
processo decisório em política exterior.
Isto ocorre fundamentalmente por que a essência do sistema internacional é a
anarquia e o auto interesse em um ambiente de incerteza, no qual a segurança do Estado
de prover sua sobrevivência pelos próprios meios é a única garantia que possui de
simplesmente existir como uma sociedade política.
E a essência do sistema é a existência de uma busca pelo equilíbrio de poder
entre entidades soberanas (sejam elas formações estatais territoriais ou não) , o que faz
com que mesmo as principais grandes potências não disponham de suficientes recursos
de poder e, logo, de capacidade de tomar decisões impunemente sem desconsiderar em
seus cálculos racionais, o impacto da grande estratégia em termos de interesses
nacionais dos demais polos do sistema, em especial, de outras grandes potências e
potências regionais.
Este fenômeno, criado a partir de um pacto político entre o capital privado e as
autoridades políticas desde o século XIV, se internacionalizou nos últimos duzentos
anos e foi impactado pela aplicação das novas tecnologias na produção industrial e,
logo, no sistema de defesa/armas.
Assim, esta associação de fatores internos a cada unidade estatal, no campo das
elites dirigentes e influentes sobre o Estado, dentro e fora dele, somados à quantidade de
grandes potências (possivelmente cinco, no curto prazo) e potências regionais ( mais ou
menos o mesmo número), faz com que o aumento da incerteza e da instabilidade
potencializados pela competitividade inter-capitalista inerente à maioria destas
formações estatais gere as regras não escritas de balanço de poder e de crises financeiras
geradas pela acumulação de capital em cada país.
Assim, cria-se a estrutura político-econômica global da qual nenhum estadista ou
instituição de estado pode ignorar no processo decisório, independente de estilo pessoal
e ideologia partidária ou forma e sistema de governo.
É isto que quer dizer Parag Kannah (KANNAH, 2008), quando afirma que
existe um fenômeno mundial pautado pela interação entre as dimensões político-
estratégicas, de um lado, e econômicas, de outro, quando, a partir das relexões do
eminente historiador britânico Arnold Toynbee declara que

“(...) implica na interação entre duas forças históricas mundiais


que ele (Arnold Toynbee) percebeu intuitivamente, sem chegar
a lhes dar o nome: a geopolítica e a globalização. Geopolítica é
a relação entre poder e espaço. Globalização remete à
amplicação e ao aprofundamento das ligações entre os povos
do mundo por meio de todas as formas de troca. Toynbee fora
o primeiro a fazer a crônica da ascensão e queda, da expansão
e da contração dos impérios e civilizações da história, tendo
sido contemporâneo das grandes ondas de integração global
que tiveram início pouco antes da Primeira Guerra Mundial e
viriam a explodir com a ascensão das corporações
multinacionais na década de 1970. Desde sua época, a
geopolítica e a globalização se intensificaram de tal maneira
que se transformaram nos dois lados da mesma moeda.”
(KANNAH, 2008, pp. 09-10)

Sob este aspecto é que emerge o fenômeno da transição hegemônica, observável


desde o século XIV, no processo de formação do sistema capitalista e do Estado
moderno e, por fim, do sistema de relações internacionais. Por isso seu caráter
estrutural, perene, permanente e que enquadra o sistema de relações interestatais.
Assim, a luta pelo poder político entre os principais atores do sistema condiciona
a ação diplomática, instrumentaliza o papel das espécies de guerras, fomenta o
desenvolvimento científico e tecnológico e determina o avanço do processo de
acumulação de seus verdadeiros parceiros estratégicos neste processo, a moderna
corporação capitalista. Eis aqui a essência do sistema internacional.
Não obstante, dado a grande capacidade política e econômica das grandes
potências, em especial Washington e seus principais aliados de em razão de seus
interesses geoestratégicos vitais de influir no plano doméstico do conjunto dos atores
estatais do sistema mundial e inclusive do seu próprio sistema político interno, o cenário
político e econômico internacional não são acontecimentos fortuitos.
Ainda que se diga que numa espécie de movimento circular de causa e efeito,
ações políticas e econômicas domésticas também influenciem a política externa de um
país, em razão de interesses nacionais internamente definidos por suas elites, o processo
de globalização atual cada vez mais define as regras do jogo de cada nação, sendo que
se as grandes potências ao menos tem a capacidade de definir as regras políticas desse
jogo, aos demais membros do sistema internacional, potências regionais, médias e
pequenos Estados, só resta sofrer seus impactos político-econômicos de curto, médio e
longo prazos definidos pelos Estados Unidos.
Em razão disso, a globalização, atualmente definido pelas estratégias das
corporações transnacionais com origem, sede e controle acionário majoritário de
diretores e presidentes norte-americanos, e cujos contratos na casa dos trilhões de
dólares, estão ramificados sobre diversas áreas estratégicas da economia dos EUA e
influenciam decisiva e estrategicamente a política econômica e de defesa daquele país.
Esta globalização do capital decorre do processo de acumulação sistêmico e
encontra seu porto seguro na proteção do Estado americano, que se caracteriza por uma
relação de interdependência mútua das suas elites empresariais e financeiras e a melhor
síntese desse processo é a existência do poderoso complexo militar – industrial norte-
americano a explicar as linhas de força estrutural e a conjuntura da política externa e de
defesa da superpotência hegemônica.
Portanto, depreende-se que o atual ciclo de acumulação sistêmico sofre um
padrão recorrente histórico estabelecido há mais de quinhentos anos desde a formação
do sistema interestatal.
Este ciclo envolve a competição interestatal pelo domínio de novas tecnologias
na produção e favorece a concentração de capital, gerando, com isso, uma crise
econômica que impacta na grande estratégia da grande potência que preside o ciclo
atual em sua fase financeira - os Estados Unidos -os quais necessitam reduzir os custos
de seu engajamento militar, lógica de poder política fundamental para a sustentação de
uma hegemonia mas que, se utilizada de maneira desproporcional à capacidade
econômica do Estado, pode acelerar a erosão das condições de competitividade
econômica com as demais grandes potências polos do sistema.
Nesse sentido, a busca por maior eficiência do sistema de armas a um custo
econômico sustentável, favorece tanto o processo de concentração de capital como
condiciona, de forma cíclica, a ocorrência de hipóteses de guerra central assimétrica.
Assim, a obra envolve as seguintes ideias de força centrais para desenvolver suas
análises sobre a política externa norte-americana: ciclo sistêmico de acumulação,
sistema internacional, complexo industrial militar, gastos militares, doutrina estratégica,
doutrina militar, política externa e processo decisório.
Sob este aspecto cada ideia condiciona a seguinte: o ciclo sistêmico de
acumulação (lógica econômica do capital somada à lógica do poder político territorial)
caracteriza a natureza assimétrica, anárquica, competitiva, mas também cooperativa do
sistema internacional. Este, por sua vez, caracteriza-se pelo desenvolvimento dos
interesses nacionais estratégicos em termos de poder dentro da lógica ambígua mas
interdependente do Estado Capitalista hegemônico moderno, do qual a formação de um
pacto de elites empresariais, políticas e institucional-burocrática civil (diplomatas) e
militares encontra no complexo militar industrial norte-americano sua forma
institucional contemporânea.
São estes os três fatores que irão criar o que se compreende por estrutura
sistêmica no qual os fenômenos e processos políticos conjunturais se enquadram.
Na medida em que se formam regras e princípios jurídicos e políticos
interestatais a partir da emergência de um conjunto de estados nação territoriais
pautados por uma lógica dúplice – lucro e poder – com relativa força econômica,
política e militar equivalentes irá ocorrer o enraizamento e a expansão para além dos
limites do Estado de tendências que a partir dos interesses negociados entre as elites irão
condicionar suas opções de ação exterior justamente pelo equilíbrio multipolar e
anárquico que irá caracterizar este sistema.
Assim emergirão as condições estruturais que irão impactar sobre as conjunturas
e sobre o processo decisório em que a ocorrência da competição entre atores estatais
obedecerá a uma lógica que agrega a busca por lucro com a segurança estratégica,
condicionando o uso recorrente da diplomacia e do uso dos meios militares (ameaça e
uso da guerra) como opção necessária que se imporá sobre os tomadores de decisão e
seus implementadores (políticos, diplomatas e militares).
Dessa forma, a partir de um pacto de elites original desde a criação do primeiro
ciclo hegemônico, formadas pelo capital privado e governantes que são a classe política
que comandam o Estado, este processo irá se repetir a cada nova renovação, mas de
forma ampliada e tendente à complexidade devido a alguns fatores, eis que não se trata
nem da simples lógica do poder em termos de prestígio político de líderes, militares e
diplomatas ambiciosos nem tampouco da visão estereotipada do Estado como simples
joguete dos interesses econômicos.
Nesse sentido, o uso da teoria de Geovani Arrighi fornece as respostas para
desvendar os interesses políticos e econômicos que se entrelaçam na composição
daquilo que, em cada unidade estatal e em cada ciclo a partir de então, será tornado o
“interesse nacional” em termos geopolíticos e estratégicos. Sua teoria fornece um
padrão que demonstra a recorrência de fenômenos que se repetem e impactam
profundamente sobre a ação externa dos Estados desde o advento do sistema
internacional.
Este sistema é o sistema interestatal criado a partir da lógica do Estado
Capitalista, cujo centro decisório são alianças que se renovam a cada ciclo de
acumulação entre capital privado de uma burguesia ascendente com aquilo que
caracterizara antes do modo de produção capitalista, como os elementos de uma
sociedade estamental – aristocracias militarizadas com sua lógica de poder clássica em
termos de prestígio e valores guerreiros– que irão presidir o nascimento do Estado
moderno institucionalizado.
Na medida em que emergem diversos estados com essas características, surgem
inúmeros polos competidores que irão buscar nas mudanças organizacionais a resposta
para superar a competição econômico -estratégia tanto na dimensão privada quanto na
pública.
Assim, gradualmente, à medida em que se renovam hegemonias dentro de um
novo padrão organizacional das empresas privadas é que a gestão do Estado e da guerra
também são instados a se renovarem.
O resultado, de 1400 até os dias atuais irão definir um padrão que se
universalizou: um Estado que necessitará de instituições permanentes e cada vez mais
complexas em termos da aplicação de métodos científicos na estrutura administrativa, o
que implica a racionalização crescente da organização institucional das burocracias
militar e diplomática que passa a adquirir uma lógica particular devido a fatores como
aquilo que Weber denominou de ‘insulamento burocrático’.
Este padrão irá tornar crescentemente autônomo em relação à capacidade de
decisão dos líderes políticos, o que outro fenômeno relacionado irá contribuir.
Este fenômeno diz respeito às necessidades de emergência da liberdade cada vez
maior da atividade econômica, graças à competitividade dos Estados territoriais pelo
financiamento de suas empreitadas políticas irá tornar crescentemente autônoma a ação
do capital privado, fazendo com que o Estado se torne mais dependente da lógica
econômica e com isso, busque nas estruturas jurídico-constitucionais liberais a
descentralização do poder político e a institucionalização legal dos interesses
financeiros, do qual o lobby da indústria armamentista é o nexo de causalidade entre
interesses corporativos privados com os públicos.
Esta é a justificativa para a escolha do estudo do complexo industrial militar
dentro da lógica dos ciclos sistêmicos como o elo organizacional que integra a base
estratégica de consenso entre interesses do capital associados ao Estado na cadeia de
causa e efeito entre as condições dadas pelo sistema e seu impacto sobre o processo de
tomada de decisão em política externa de segurança da grande potência que é o polo
hegemônico do sistema internacional atual.
Cabe ainda afirmar que não se pense que nem o Estado, nem suas instituições
públicas relacionadas com a agenda de segurança (diplomatas e militares) e muito
menos o estadista político são meros coadjuvantes neste processo. Isso é demonstrado
pela opção por tratar da análise de política externa no presente esforço de reflexão sobre
a política internacional dos Estados Unidos.
Os agentes públicos, dentro do Estado, importam e presidem a gestão da
diplomacia e da guerra de forma autônoma, ainda que interdependente para com os
agentes capitalistas os quais, por sua vez, necessitaram constituir uma rede de poder
nucleados pela capacidade tributária, fiscal, macroeconômica e militar que somente a
sociedade política estatal poderia conferir.
Enquanto que a cidade-estado italiana era por demais restrita em termos de
mercado e economia de escala e quantitativamente fraca militarmente e o Estado
imperial territorial era a antítese do ideal capitalista por ser demasiadamente poderoso e
unificado. Por isso, somente uma estrutura intermediária, com suficiente base territorial
e mercado unificado, caracterizada pelo provimento da segurança fiscal, economia de
escala e segurança política (coerção militar) poderia realizar a gestão da acumulação de
capital de forma eficaz e segura a partir da competitividade interestatal e do equilíbrio
de poder.
Nesse sentido é que emerge de forma mais ou menos controlada pela lógica da
cooperação entre elites de cada Estado, na forma de coalizões e alianças, das
possibilidades de gerir o processo de competição e rivalidades pela alternância e
combinação variável entre a necessidade de uso da guerra dentro de determinadas
condições em que os custos sejam justificados pelas vantagens políticas e econômicas
da lógica associada entre poder e lucro, quando as condições de acumulação pela gestão
negociada e pacífica (dados pela diplomacia institucional) se tornar insuficiente.
Assim, a lógica arrighiana se coaduna com a teoria do realismo político para a
compreensão do sistema internacional e sua relação de causa e efeito sobre os processos
de tomada de decisão que os estadistas e suas instituições estatais tem de lidar em dadas
situações conjunturais, a partir das suas capacidades políticas, econômicas e militares
dada pela distribuição e polaridade do sistema interestatal.
Da mesma forma, toda a vez que a opção pela guerra se tornar disfuncional para
as elites que presidem os polos dirigentes do sistema tiver seus custos excedentes às
suas vantagens estratégicas, procede-se às negociações e resolução diplomática destes
conflitos a fim de proceder à acumulação de capital no ciclo de escassez de recursos de
capital circulante.
Nessa lógica, a gestão da diplomacia e da guerra realizada pelo Estado é do
interesse do governante com a maximização de poder em termos diplomáticos e da
segurança a este poder em termos militares, dentro da lógica do poder, poderia ser
também útil para os interesses do grande capital que precisava de uma base nacional
segura para se reproduzir. Eis ai a essência da aliança estratégica entre público e privado
personificada no complexo militar e industrial norte-americano.

O verdadeiro significado geopolítico da “guerra da Ucrânia”


A chamada guerra da Ucrânia é uma etapa de um conflito muito mais antigo
que ficou visível com o golpe de estado contra um governo legitimamente eleito e que
era aliado de Moscou, em 2014. O objetivo central deste golpe e atualmente da guerra
movida pelos Estados Unidos através da aliança militar da OTAN que vem se
expandindo para o antigo entorno estratégico russo e soviético, é uma combinação de
contenção e fragmentação da civilização russa. A lógica antiga do império britânico
contra o Império russo no século dezenove com o grande jogo na Ásia Central, onde a
voracidade do capitalismo britânico por recursos naturais e estratégicos buscou a
contenção e o enfraquecimento da Rússia czarista não difere da estratégia atual dos
Estados Unidos. Apenas ganha uma nova retórica com o discurso dos direitos humanos
e do direito internacional moldado em 45 pelos anglo-americanos.
Cumpre salientar aqui que não é o caso de fazer a defesa do regime de
Vladimir Putin, que está no poder desde 1999. A política não pode ser vista de forma
ingênua como algo que opõe vilões a bandidos. Nem um antiamericanismo ingênuo e
tampouco uma demonização da Rússia e de seus líderes ajuda na elucidação dos jogos
de poder entre as nações. Nesse sentido as mentes mais lúcidas de experientes estadistas
e estudiosos das relações internacionais como Kissinger ou Mearsheimer buscam
compreender as razões de estado da ação russa, que pode ser legitimamente
compreendida como uma ação de defesa preventiva contra uma ação indireta do
Ocidente (leia-se, do setor do complexo militar dos EUA) através da OTAN e do
governo neonazista da Ucrânia contra os interesses vitais de existência da Federação
Russa.
Em razão disso, qualquer governante minimamente racional e nacionalista
jamais agiria diferente da decisão de 24 de fevereiro de intervir militarmente em defesa
das auto proclamadas independentes províncias de Donestk e Luthansk, de maioria
étnica russa e que estavam sendo agredidas militarmente pelo exército ucraniano desde
14 em descumprimento dos acordos internacionais de Minsk (capital da Bielorússia) no
qual Rússia e Ucrânia acordaram diplomaticamente pelo reconhecimento da
autogoverno das províncias ainda que fizessem parte naquele momento do estado
ucraniano.
Além disso, do lado ocidental, o desejo pela guerra configura o objetivo de uma
guerra permanente que possa garantir pelo fim dos acordos comerciais de gás e petróleo
da União Europeia com a Rússia, os seguintes objetivos que não são excludentes: a-
enfraquecimento econômico e maior dependência alemã dos fornecedores dos EUA;
enfraquecimento dos laços comerciais e diplomáticos entre Alemanha com Rússia e a
China, obstaculizando os acordos de expansão do projeto da Rota da Seda para toda a
Europa; c- enfraquecimento econômico russo através da suspensão do comércio com os
alemães e demais europeus, além das sanções do Ocidente à economia russa e d-
aumento dos lucros da indústria bélica dos Estados Unidos com um conflito que quanto
mais durar, mas aumentara a acumulação de capital das indústrias fornecedoras do
Pentágono e dos grandes bancos anglo-americanos e franceses que são acionistas
importantes, assim como da própria indústria de gás e petróleo anglo-americanas.
Dessa forma, capitalismo e geopolítica caminharam sempre de mãos dadas desde
o advento da fase do imperialismo, etapa superior do sistema capitalista como bem
profetizou Lênin. É neste sentido que tanto a União Soviética quanto a Rússia pós-
soviética foram e são consideradas como obstáculo ao ciclo estadunidense de capital.
Apensar das características intrínsecas da Guerra Fria, muito de continuidade ainda
persiste no chamado Pós-Guerra Fria por que em essência o sistema internacional é o
mesmo, com o mesmo hegêmona, embora hoje seu poder esteja sendo novamente
desafiado, mas com a diferença que no estágio de declínio de seu ciclo econômico.
Agora não mais desafiado por uma superpotência militar socialista, mas por duas
grandes potências capitalistas, uma hoje a segunda maior potência militar e a outra, a
ascendente economia chinesa, que está se tornando a principal e mais dinâmica
economia do mundo a partir de um sistema complexo e híbrido entre um capitalismo
desenvolvimentista controlado pelo Partido Comunista Chinês. Portanto, a guerra na
Ucrânia se configura como um dos eixos de uma guerra para evitar o processo de
transição hegemônica que o polo russo –chinês parece mover como força contra-
hegemônica ao sistema nucleado pelos Estados Unidos.
Além das questões de ordem externa, cumpre salientar que no plano político
interno aos casos russo e ucraniano não se pode arbitrariamente estabelecer um corte
temporal a partir de 1991, quando surgem os modernos estados russo e ucranianos como
decorrência do fim da União Soviética. É preciso destacar aspectos fundamentais desse
processo relativo à nacionalidade e à percepção de identidades em face do real motivo
do fim da União Soviética: a segunda guerra fria que lhe foi movida nos anos 1980 e a
construção da identidade ucraniana somente a partir dos anos noventa do século
passado, algo muito próximo à noção da invenção das tradições de Hobsbawn para
justificar e legitimar no seio da sociedade ucraniana um sentimento que justificasse um
estado separado que servisse aos interesses de uma oligarquia predatória, de cunho
fascista e pós soviético, sem reais compromissos com a democracia e o bem estar do
povo ucraniano.
É bem debatido hoje na literatura de ciência política e história contemporânea
que desvios de política econômica e gestão administrativa dentro da institucionalidade
soviética a partir dos anos Kruschov em diante, somadas à ofensiva da corrida
armamentista dos anos 80 por parte do governo Reagan, associada a renovação da
competitividade econômica estadunidense através da desregulamentação econômica que
soterrou o modo de produção fordista-keynesiano que vigorou até o começo dos anos
70, foram responsáveis pelo enfraquecimento econômico e militar soviético em meados
dos anos 80. Todavia, o fator decisivo central foram os erros de rumos das políticas
econômica e administrativas da Perestroika e da Glasnost pelo último líder soviético,
Mikhail Gorbachev, associadas a trajetória histórica de imobilismo gerencial e
econômico dos anos Breschnev.
Somadas a isso, ações de operações de inteligência da CIA junto às elites
soviéticas ligadas à nomenklatura reforçaram o abandono de um projeto de reforma
necessária dentro do socialismo para renová-lo pela busca fácil e perigosa de buscar no
capitalismo de corte neoliberal a saída para a crise do sistema político e econômico
soviético, que desde os anos 1960 vinha progressivamente se afastando dos princípios
políticos marxista-leninista. Além disso, no plano internacional, o regime
gorbacheviano abriu mão de toda uma estratégia de política externa de alianças
estratégicas e de realismo político que ao menos caracterizaram uma razoável e
consistente política externa acertada nos anos 50, 60 70 e até 1985. Com isso, o fim do
socialismo e da política externa soviética realista e de interesse nacional de um Estado
socialista, mas também multiétnico e que representava o coração do heartland eurasiano
precipitou, a um só tempo, a partir do fim do estado soviético, uma crise social,
econômica e geopolítica sem precedentes para a sociedade russa.
De fato, como bem salientou o atual dirigente russo, Vladimir Putin, o fim da era
soviética foi uma tragédia geopolítica que até hoje impactou o sistema internacional e a
civilização russa. Todavia, em termos estruturais o sistema internacional é o mesmo:
anárquico, tendente ao conflito, nucleado pelo Estado nação, mas também pautado pela
lógica do capital e das elites burguesas associadas a um complexo industrial e militar. A
relação deste fenômeno com a criação do estado ucraniano está em que não é de todo
estranho pensar a atual guerra entre russos e ucranianos – uma face da guerra por
procuração movida pelo Ocidente – como uma etapa da guerra civil soviética ou russa
iniciada com as guerras civis locais que eclodiram como conflitos étnicos logo após a
dissolução da União Soviética.
Tomadas em questão os fatos de que em plebiscito pouco antes da dissolução
formal da URSS de que os povos das repúblicas votaram a favor da continuidade do
regime socialista e da união das repúblicas, sumamente ignoradas pelos dirigentes
políticos das autoridades federadas e central, associadas às denúncias de corrupção que
as elites dirigentes pelo poder econômico ocidental, pode se estabelecer uma relação
causal de vício de origem para os acordos formais de natureza jurídica que criaram as
novas repúblicas assim como pelo reconhecimento casuístico e oportunista por parte das
Nações Unidas, que obedeciam à claros cálculos geoeconômicos.
Afinal quem criou a ordem internacional? Quem define o que é ou não é
violação de direitos dentro da ótica da ordem internacional capitalista? Além disso, a
própria definição da nacionalidade ucraniana como algo díspar e singular em relação à
nacionalidade russa deve ser bastante relativizada. Em primeiro lugar, por causa da
criação de um ente artificialmente construído na mente de intelectuais no começo do
século XX no bojo da crise do estado multiétnico russo e que pouca legitimidade social
possuía assim como no começo dos anos 1990.
Em segundo lugar, as características da civilização russa, tanto em sua etapa
czarista como soviética e agora pós-soviética sempre se caracterizaram por uma
concepção de pan eslavismo e multietnicidade. E nestes casos as diversas
nacionalidades das ex repúblicas soviéticas não tiveram respeitadas seu desejo de
permanecerem unidas politicamente. Sua autodeterminação, inclusive direito de
secessão tal qual previstas como direito constitucional desde a criação da URSS, não
foram respeitadas perante o direito constitucional interno soviético e perante o direito
internacional. Isto por si só já põe em xeque o qual relativo é afirmar no campo do
direito e da política internacional o que é certo ou errado, tendo em conta como foi
construída a ordem internacional.
Dentro desse escopo de longo prazo, acusar a Federação russa de violações e
arbítrios sem considerar o histórico de agressões cometidas pelo Ocidente contra o
Estado russo lato sensu (considerados principalmente o período soviético e o atual
período da Rússia desde a ascensão de Putin) é no mínimo consentir com o neonazismo,
o genocídio e a ilegitimidade do regime ucraniano desde pelo menos 2014, com o apoio
do Ocidente cujos desígnios, conforme a estratégia do ex-assessor de segurança
nacional de Carter, Zigbnew Bzerzinski, é o da fragmentação do estado russo (seja ele
socialista ou capitalista) e principal estrategista da segunda guerra fria contra Moscou
nos anos 70 e 80.
Sob esta linha de raciocínio, ainda que o regime político russo atual carecesse de
legitimidade e violasse formalmente o direito internacional (cuja hipótese pode ser
discutida como acima mencionado) não se pode deixar de perceber que existe uma
estratégia de longo prazo de combinar estratégias de contenção com fragmentação do
espaço geopolítico russo em razão da disputa pela sobrevivência do ciclo hegemônico
de acumulação norte-americano em face da ascensão do ciclo chinês, que no campo
geopolítico estreitou laços com a Rússia na configuração de um polo contra-
hegemônico euroasiático.
Além do mais se houve violação de direito internacional, houve por parte dos
Estados Unidos, do governo ilegítimo da Ucrânia (Zelenski sucedeu a um regime
golpista e sua eleição portanto, se origina de vício de origem) e da OTAN que não
respeitaram acordos internacionais como o de Minsk além do fato de que as promessas
diplomáticas correntes feitas por autoridades de alto escalão diplomático como James
Baker, ex Secretário de Estado ao então líder soviético Gorbachev serem, ainda que não
escritas, atos que podem ser considerados como de vinculação jurídica, eis que no plano
do direito internacional, acordos e promessas ainda que verbais também tem valor
jurídico, uma vez que são formadoras do costume e dos princípios do direito das gentes,
os quais possuem a mesma hierarquia dos acordos escritos.
Por derradeiro, a autonomia das provícias do Donbass não foram respeitadas
pelo Estado ucraniano, o qual passou a promover atos de genocídio e crimes em
violação das Convenções de Genebra contra as populações russo-ucranianas.
Finalmente, dentro dos princípios da doutrina de guerra preventiva, o governo russo
tinha informações da inteligência militar de que a OTAN estava por instalar centros de
guerra bacteriológica e mísseis de longo alcance com possibilidade portarem ogivas
termonucleares que poderiam atingir a capital e grandes cidades russas.
Além disso, por acordo assinado com as autoproclamadas Repúblicas do
Donbass em fevereiro de 2022 e ratificadas pelo legislativo destas repúblicas e pelo
parlamento russo (Duma), o governo russo, em nome do princípio da autodeterminação
dos povos em direito internacional, tinha respaldo e legitimidade para agir, num
contexto em que do ponto de vista geopolítico, não lhe restava alternativa a não ser agir
militarmente. Mesmo que se alegue que houve violação de direito internacional, o que
pode ser discutido, por que além disso este conflito já era uma guerra permanente
movida pelo Ocidente desde 2014, haveria casuísmo eis que existem inúmeros
exemplos de violações de direito internacional cometidas pelas potências ocidentais, a
começar pela invasão do Iraque em 2003 e pelas agressões a Líbia e à Síria no começo
da segunda década do milênio.
Portanto, assiste-se a uma etapa inicial e gravíssima de guerra de transição
hegemônica que está em sua fase de proxy war e que visa os principais polos contra-
hegemônicos que são Rússia e China, grandes potências que por enquanto não
demonstram agir dentro da lógica imperialista mas apenas pela sobrevivência em uma
sociedade anárquica.
A tentativa de criar um conflito com a China em torno de Taiwan se inscreve
dentro da mesma lógica que hoje ocorre contra a Rússia. Somente tendo em conta o
longo período histórico desde a União Soviética e vendo a Rússia como a sucessora
geopolítica (embora não socialista) da primeira, é que se compreende o que está em
jogo nas planícies da Ucrânia. Está em jogo a viabilidade ou não do mundo multipolar.
E isto tem efeito direto e decisivo para a inserção de grandes estados periféricos do Sul
Global. E por isto guarda uma relação de causalidade direta com a inserção autônoma
do estado brasileiro no sistema internacional.
O ambíguo papel diplomático brasileiro
O papel diplomático do Brasil frente à guerra na Ucrânia, por seu turno, revela
não apenas atitudes distintas e aparentemente contraditórias, devido a mudança de
governo entre os anos de 22 e 23 como também à crise política e às movimentações das
frações das classes dominantes nos últimos anos. De um lado o então governo de Jair
M. Bolsonaro, uma coalizão entre a elite militar, segmentos de extrema direita e da
direita moderada neoliberal, todas de alguma forma vinculadas à economia e ao aparato
institucional jurídico e militar estadunidense, dentro da lógica das relações centro-
periferia, foram responsáveis por sinais ambíguos por parte da diplomacia presidencial e
da ação do Itamaraty ao longo do ano de 22.
Em primeiro lugar, a dependência do agronegócio, um dos principais atores
econômicos da então base política de sustentação do governo Bolsonaro no Congresso,
depende economicamente de insumos produzidos pela Rússia como os fertilizantes. A
par disso, o conservadorismo nos costumes aproximou dois governos de direita – os
governos Bolsonaro e Putin. A despeito disso, cumpre destacar que existe no plano real
enorme diferença qualitativa destes dois tipos de nacionalismo, o primeiro neoliberal e
que não atende aos reais interesses estratégicos nacionais, ao passo que o segundo é um
nacionalismo de corte industrial e desenvolvimentista, de defesa do interesse nacional,
tendo Putin sido eleito em processos legítimos (ao contrário do viciado processo
eleitoral brasileiro que elegeu Bolsonaro) para além do fato de que a coalizão entre
forçar armadas, burocracia de segurança e empresários nacionais terem possibilitado a
Putin recuperar a Rússia dos anos sombrios e caóticos do neoliberalismo e recessão dos
anos Ieltsin.
Em segundo lugar, em razão dos princípios constitucionais formais da Carta de
88, um princípio norteador da política externa brasileira é a solução pacífica dos
conflitos internacionais e os princípios formais da soberania e da autodeterminação dos
povos. Como do ponto de vista prático, a moribunda União Soviética não teve força
nem desejo de impedir a independência da Federação russa em sua origem assim como
da Ucrânia e da Bielorrússia em 1991, nos últimos trinta anos pode ser dito em defesa
da soberania ucraniana que uma espécie de prescrição temporal ocorreu sem que de fato
a Rússia tivesse força e desejo de retomar o controle do território ucraniano. De fato, o
governo russo alega que não possui o desejo de retomar o controle territorial do estado
ucraniano, o que para além da região do Donbass configuraria realmente uma invasão e
violação do direito internacional. Além disso, o governo brasileiro mantém relações de
amizade e parceria estratégica não apenas com a Rússia, mas com a Ucrânia e todos os
demais países europeus que ora, através da OTAN, estão em conflito com a Rússia.
Além destas considerações jurídico-diplomáticas, o Brasil também mantém
sólidas relações diplomáticas e econômicas com os Estados Unidos – o principal
adversário estratégico da Rússia. Como se não bastasse isso, não apenas por
considerações morais, de ética e de direito internacional, nossa assimetria econômica e
militar em face dos poder hegemônico estadunidense e de nossa posição geopolítica
central para a Doutrina Monroe e nossa dependência estrutural econômica e militar dos
Estados Unidos tornariam impensável qualquer postura de alinhamento com a Rússia
em um momento de extrema fragilidade estrutural do Estado brasileiro nos planos
interno e internacional e igualmente em razão da frágil coalizão muito fragmentada e
díspar que levou a vitória apertada e contestada politicamente de Lula a seu terceiro
mandato em meio a agudização da guerra hegemônica que é o verdadeiro sentido da
guerra na Ucrânia.
Desafios estruturais internos do sistema político brasileiro
A dimensão estrutural das relações políticas internas do estado brasileiro são
fundamentais para explicar o comportamento diplomático que informa os princípios da
carta constitucional e não o contrário, como parece ser à primeira vista. Como um país
que não desejou criar um projeto de desenvolvimento nacional autônomo que rompesse
com as relações econômicas e geopolíticas de centro-periferia tanto pela via do
socialismo quanto pela via do capitalismo desenvolvimentista – projetos derrotados
desde o golpe civil-militar de 1964 e reforçado pela conjuntura da transição democrática
formal dos anos 1980, aprofundada pela adoção do neoliberalismo desde os anos 1990,
o Estado brasileiro vive sucessivas crises políticas e econômicas pautadas pela tutela
militar de um lado e pelas disputas intra elites econômicas de outro. Tal circunstância é
estrutural na medida em que suas origens remontam a manutenção da dependência
econômica dos centros do capitalismo desde o seu nascimento enquanto Estado nação e
que se reforçaram na República Velha e no pós-1964, com a derrota do projeto nacional
–desenvolvimentista.
A despeito dos méritos pessoais de carisma e estadista do Presidente Luiz Inácio
Lula da Silva e do seu chanceler e experiente diplomata Celso Amorim, que atualmente
exerce o cargo de assessor de relações internacionais e do protagonismo inédito e
importante da diplomacia presidencial de Lula e da estratégica articulação geopolítica e
econômica de Amorim ao longo dos dois primeiros mandatos, o fato é que no plano
interno, a coalizão de frações de elites relativas ao presidencialismo de coalizão herdado
da transição negociada com a ditadura, faz com que o rompimento com a política
estruturante neoliberal seja muito difícil.
Isto ocorre em razão do governo não contar com apoios sólidos no plano
internacional assim como não conta com o apoio da burocracia militar (hoje convertida
ao neoliberalismo e desde 45 fiel aos valores geopolíticos estadunidenses), e hoje
permanece carente de uma burguesia nacional industrial sólida, sendo que o Estado
nacional teve nos governos de centro direita e extrema direita feito a privatização de
setores estatais estratégicos sem que os governos de centro esquerda (mas neoliberais )
petistas sequer contestassem de fato a política econômica liberal. Por fim, carece de
uma política econômica que possa realmente modificar a estrutura desigual e o
desemprego estrutural que assola as camadas trabalhadora e empobrecida da maioria da
população e da classe média, além de não ter política educacional e no campo cultural e
midiático que faça frente à lógica do individualismo e consumismo das grandes mídias
comerciais ligadas direta ou indiretamente às transnacionais do comércio e das mídias
culturais ocidentais.
Some-se a isso a falta de uma política de defesa nacional a partir das prioridades
da sociedade e do desenvolvimento nacional com autonomia dissuasória e tecnológica e
a ambiguidade e contradição se expressa em uma diplomacia presidencial e institucional
que busca dentro de um cenário internacional e nacional muito mais difícil que nos
primeiros dois mandatos, atuar com certa neutralidade frente ao aprofundamento das
disputas entre o polo ocidental e o polo eurasiano enquanto que no plano da defesa,
assiste-se a consolidação do controle da pauta de defesa por parte do estamento militar e
uma diplomacia militar claramente unilateral e pró- Ocidente, o que vulnerabiliza a
própria busca do interesse nacional.
Como o Estado nacional contemporâneo é uma estrutura complexa,
caracterizada pela heterogeneidade e pela luta de classes, que também ocorre entre
setores internos ao capital (crescentemente internacionalizado) e também dentro das
burocracias de Estado (polícias, área tributária e econômica, estamento militar,
judiciário, ministério público), para não falar do modelo federativo, a ação individual e
de profissionalismo de estadistas e instituições de altíssima qualidade no campo
diplomático por mais meritórias que sejam – e de fato o são nos casos do Presidente
Lula e do chanceler Amorim – elas se mostram-se insuficientes para a mudança
estrutural da política externa, a qual é interdependente da coalisão de forçar políticas e
sócio-econômicas internas e das relações estruturais de centro-periferia ao qual o Brasil
está submetido no plano das relações internacionais.
Desafios estruturais externos ao estado brasileiro
Os desafios estruturais externos são o outro lado da moeda, uma vez que a
dependência econômica e militar externa encontram raízes no interesse das diversas
frações de elite econômica, política e militar em manter os laços de dependência
histórica dos centros dinâmicos do capitalismo, os quais não por mera coincidência são
as principais grandes potências no campo militar e geopolítico. E são aquelas frações de
elites internas as mesmas que vêem no polo eurasiano, na ascensão chinesa e dos
BRICS, no reerguimento da Rússia sob Putin e no projeto sul-americano de autonomia
da política de integração e da política externa altiva e ativa de Lula e Amorim uma
ameaça aos interesses geoeconômicos da grande potência hegemônica ora em relativo
declínio.
Concorrem para a permanência desta equação a alta lucratividade que setores
primários e comerciais ligados à exportação e ao capital rentista auferem com a
manutenção da matriz macroeconômica, que afeta diretamente a percepção das elites
econômicas que em razão disso não possuem vantagens mas prejuízos imediatos caso a
política externa brasileira estivesse sustentada por um projeto de desenvolvimento
industrial, o que sem um Estado forte e interventor e sem alianças alternativas no campo
internacional, representaria enorme dificuldade em reverter a matriz econômica interna,
sem a qual nenhuma política externa soberana apta a romper os laços de dependência do
centro capitalista é possível.
Como em toda a formação política, seja antiga seja moderna, seja em que
espécie de regime político for, a garantia mínima de governabilidade e de estabilidade
assentam-se em dois pilares fundamentais estudadas por Nicolau Maquiavel– poder da
coerção e legitimidade social – o apoio político das Forçar Armadas e da maioria da
população a um projeto de política externa só é sustentável na medida em que este
mesmo projeto tiver profundas repercussões em termos de vantagens materiais legítimas
para estes dois grupos, na forma de rendimentos econômicos quanto da própria
sobrevivência institucional ou de classe social. Uma ação de política exterior sem que
tenha mínima base política e social interna, não se sustenta no médio e longo prazo.
Dentro da lógica do capitalismo industrial e financeiro desde pelo menos o final
do século dezenove, as relações entre desenvolvimento econômico industrial, geração
de empregos e inserção social das massas trabalhadoras não pode vir dissociada de
mercado de consumo e do papel do Estado e das indústrias estatais e privadas na
produção em escalas de tecnologia sofisticada com valor agregado, o que também
impacta positivamente o comércio internacional e as relações econômicas
internacionais. Todavia, tais circunstâncias passam a depender e ser mais eficazes
dentro da lógica da constituição de um complexo militar e industrial autônomo que visa
não apenas garantir a defesa e a soberania mas também é a principal viabilidade de
sustentabilidade econômica para nações que chegaram atrasadas à industrialização e
necessitam contar com o rápido crescimento e desenvolvimento para diminuir as
vulnerabilidades internas e internacionais.
Ocorre que as forças militares brasileiras já se encontram estruturalmente
entrelaçadas com os interesses ideológicos e geoeconômicos da potência hegemônica
desde que o aprofundamento das políticas neoliberais alienou as mesmas dos governos
de centro- esquerda, por estes carecerem de projeto de nação de longo prazo. Da mesma
forma, as mesmas políticas econômicas que estruturalmente beneficiam apenas as
cúpulas da burocracia civil e militar, alienando as bases de qualquer benefício social que
advenha de políticas públicas dos governos de esquerda, associada aos limites
estruturais de incorporar na produção da imensa massa de pobres excluídos pelas
mudanças no processo produtivo nas últimas décadas e que avança igualmente sobre as
diversas faixas da chamada classe média/pequena burguesia, acabam igualmente
alienando o apoio político aos governos democráticos de centro-esquerda de quaisquer
políticas externas que por mais acertadas que sejam, não encontram eco e conexão real
com a economia uma vez que os valores do liberalismo econômico persistem.
Por fim, a manutenção da política externa em bases não confrontacionistas com as
regras centrais do sistema internacional acaba sendo o corolário de uma base social que
da sustentação justamente a este perfil mais ligado à retórica diplomática acertadamente
autonomista mas sem condições políticas e materiais de alçar vôos mais altos rumo a
uma soberania de fato e de construção de um entorno estratégico integracionista sul-
americano e desenvolvido, pois que acaba não repercutindo no plano interno por falta de
recursos que advém da manutenção dos acordos políticos com os interesses internos de
frações hegemônicas das elites comprometidas com a manutenção das relações
econômicas estruturais que prendem o país a sua condição histórica periférica ao
sistema internacional.
Com a grande probabilidade de vitória militar russa na guerra contra a Otan e o
gradual e futuro refluxo estadunidense da Eurásia, ainda que isto possa demorar alguns
anos, a tendência estrutural do sistema internacional em suas dimensões
interdependentes geoeconômica e geopolítica terão implicações de longo prazo sobre as
condições estruturantes no qual se enquadram toda a América do Sul.

Conclusão

Na medida em que as mudanças institucionais internas ao Estado provocam o


surgimento das demandas setoriais de suas instituições, somados aquela aliança entre
capital privado e autoridade pública (o político estadista), na lógica do Estado liberal
constitucional pautado pela divisão de poderes, em sociedades representativas, emerge o
problema da complexidade do processo de tomada de decisão que impõe as lógicas dos
indivíduos em face das instituições e do papel do sistema internacional.
Portanto, identifica-se um nexo existente entre as dimensões econômica, política
e estratégica no processo de estabelecimento dos princípios norteadores do interesse
estratégico da superpotência, fundamento da sua política externa de segurança.
Destarte, a contextualização do nascimento, desenvolvimento e crise da
hegemonia norte-americana iniciada no começo dos anos 1970, nos marcos da Guerra
do Vietnã e na desestruturação do sistema financeiro mundial de Bretton Woods, criado
em 1944, deve ser comprendido a partir do processo estrutural e, portanto, sistêmico, do
processo de acumulação de capital. Essa hegemonia se construiu a partir do aumento
das capacidades militares e econômicas e do desenvolvimento tecnológico. Em razão
disso, o núcleo central de análise centra-se no estudo do complexo militar-industrial.
Aqui encontra –se o cerne da análise empírica que busca demonstrar a
ocorrência da hipótese de que a redução dos gastos militares nos principais sistemas de
armas que garantem a segurança dos interesses estratégicos da grande potência
hegemônica em razão da crise financeira subproduto cíclico da atual fase do ciclo de
acumulação de capital.
Nesse sentido é que se analisam e interpretam a revisão doutrinária dos
documentos Strategic Guidance de 2012 e 2015, bem como a relação dos gastos
militares com os principais sistemas de armas para os anos ficais compreendidos entre
2012 e 2016 como forma de comprovar o impacto sistêmico sobre as capacidades
militares e a restrição cíclica da ocorrência de guerras travadas pela grande potência
polo do sistema.
Em seguida, parte-se para a descrição da institucionalidade política e militar
encarregada de canalizar, da estrutura econômico-político sistêmica, para o nível estatal,
as principais linhas de força que definem os interesses estratégicos políticos, militares e
econômicos do Estado norte-americano.
Assim, é imprescindível compreender como atuam e quais são os objetivos
setoriais das instituições políticas e militares encarregadas do processo de formulação e
implementação da política exterior estadunidense, base para a implementação de uma
política de estado que permeia os governos de diversas matizes partidárias e
características de personalidades dos seus grupos dirigentes e, a partir dessa abordagem,
abrir um diálogo tanto a nível teórico com teorias de natureza sistêmica dentro da teoria
de relações internacionais quanto multidisciplinar com outras ciências sociais como
economia, sociologia, antropologia, psicologia e história.
É dentro deste contexto da definição da grande estratégia da potência
hegemônica declinante que se definem as medidas de cunho político, econômico e
militar de resistência à afirmação do mundo multipolar representado pelo polo russo-
chinês e pelo protagonismo do Sul Global e, como um dos seus mais relevantes atores, o
Brasil e a América do Sul. A multiporlaridade só será possível na medida em que a
Eurásia e o Sul Global desenvolverem estratégias de concertação multidimensional no
campo da política externa, cobrindo as agendas securitária, econômica, ambiental,
geopolítica e humanitária. Mas além disso, devem agir a partir da premissa de que o
sistema ainda é definido em suas estruturas fundantes, pelas regras e pela lógica do
capital, que condiciona o ambiente geoestratégico rumo à instabilidade e aos conflitos
militares como meios de assegurar a continuidade do ciclo estadunidense.
Somente a partir de uma estratégia que reconheça a persistência do sistema
internacional fundado na tendência à anarquia, ao conflito, às crises econômicas
recorrentes e à busca pela maximização de poder é que os estados e organizações
internacionais contra-hegemônicas poderão alterar a estrutura do sistema rumo a uma
ordem mais justa, pacífica e igualitária.

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