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Aghoranotícias – Coluna de 29 de novembro

O Espantalho e a Espada de Dâmocles

Em política as vezes devemos fazer as perguntas que incomodam e que aparentemente podem
parecer estranhas. Estes dias um amigo meu perguntou a uma indagação que fazia: “ Por que
indagar das razões de não ter havido um golpe militar ou da derrota do Bolsonaro? O que
importa? O que interessa é que Lula saiu vitorioso nas urnas e a civilização venceu a barbárie!”

Bem, ouso discordar do caro amigo e como cientista político faz parte do meu DNA tentar buscar
respostas para todos os fenômenos políticos e sociais, ainda que nas ciências humanas a busca
por resposta geralmente conduz a teorias conflitantes. Em primeiro lugar, é importante
estabelecer conceitos e relações entre eles a fim de estabelecer hipóteses prováveis para um
fenômeno. Em segundo lugar, contextualizar a atual conjuntura dentro de processos históricos
mais longos (que os cientistas sociais ora denominam de estruturais ora sistêmicos). Vamos lá...

Começemos pelas elites. Depois passemos para as relações estruturais entre política e
economia. Por fim enquadremos duas outras peças nesse já complicado tabuleiro: o sistema
internacional e os militares. Com esta receita, buscarei argumentos para compreender o que
está se passando no atual cenário político conjuntural brasileiro, o qual, por sua vez, engloba o
eleitoral e os contornos possíveis do futuro governo de coalizão vitorioso no último pleito.

O que são elites? Em geral, grupos com capacidade econômica, política e militar de exercer
influência decisiva dentro de um sistema político (cuja centralidade é o Estado) a fim de garantir
de seus objetivos. Quais objetivos? Bem...depende...”Depende do que?” a esta altura estará se
perguntando o caro leitor. Depende de sua posição da estrutura social, ou seja, a posição que
ocupa dentro de uma sociedade capitalista. Neste sentido, podemos falar em elites cuja posição
que ocupam é o topo da pirâmide social, as classes altas, o que sempre existiu em toda a história.
Não obstante, na sociedade capitalista, o controle dos meios e processos produtivos (dentre
eles o dinheiro) está nas mãos de uma classe que é a mais importante e decisiva para a
caracterização de uma sociedade – a burguesia (os capitalistas ou empresários), divididos entre
diversos ramos ou funções: banqueiros, industriais, comerciantes, etc.

Desta maneira, numa sociedade capitalista, o controle dos recursos econômicos está nas mãos
de um grupo importante da elite, que são os capitalistas. Todavia, existem outros grupos sociais
sem os quais, os detentores do capital não podem atingir plenamente os seus objetivos de lucro
e geração de riqueza com a atividade econômica: políticos e militares. Ao longo da história dos
últimos seiscentos anos, a criação do moderno Estado territorial foi estabelecendo estruturas
institucionais internas a fim de garantir a estabilidade política necessária num jogo de forças
entre as elites políticas e econômicas, uma vez que uma necessitava da outra, por serem
dependentes entre si.

Nesse longo processo histórico, se firmaram, de um lado, burguesia, elites militares e elites
representativas de tipo liberal-burguês, todas umbilicalmente ligadas e essenciais para a
reprodução do capital, tanto nas nações desenvolvidas (dentre elas as grandes potências) e as
nações menos desenvolvidas. Na etapa de criação dos mercados nacionais há quase duzentos
anos, se consolidaram também um mercado mundial e a ligação orgânica entre capital
internacional e capital privado. É neste contexto que se situa o Brasil.
Assim, as elites se encontram dentro da estrutura de classes sociais no capitalismo, sendo que
a mais central, decisiva e importante delas é a que se convenciona denominar de elite do capital
ou burguesia. No entanto, ser a mais importante não significa que possa atuar sozinha. Em razão
da necessidade de redução dos custos políticos, econômicos e sociais para atingir seus objetivos
de obtenção de lucros, acesso a mercados dentro e fora do país à um baixo custo para
desenvolver as atividades industrial, comercial e bancária a um baixo custo e com alta
rentabilidade, os detentores do capital necessitam da legitimidade do Estado representativo (via
instituições legislativas democráticas) e de suas estruturas de coerção.

Aos primeiros cabe serem eleitos para governar em nome de seus interesses enquanto que aos
segundos, a garantia de que seus direitos serão exercidos caso lhes sejam opostas resistências
sociais ou políticas de povos e outras nações. Dessa forma, firma-se a existência da classe política
e da burocracia militar. E precisamente nisto que reside a relação entre as dimensões política (e
militar dentro desta) e econômica. Juntos, tais grupos conformam as elites em todas as nações
modernas do sistema capitalista, que tem características globais e que constitui a estrutura
básica do sistema internacional e dos sistemas políticos nacionais que conformam aquele
sistema.

Nesse sentido, o Brasil não é diferente, com a ressalva que se encontra preso a laços econômicos
estruturantes de uma relação fundada entre centros do capitalismo mundial, atualmente
representada pelo Estado norte-americano e suas empresas, ocupando o Estado Brasileiro e
suas elites uma condição periférica mas associada. Desde que a erosão do sistema internacional
fundado na unipolaridade dos Estados Unidos começou na última década, caracterizada pelas
tendências `a multipolarização com o reerguimento da Rússia e a ascensão chinesa, as
estratégias de guerras convencionais em razão de seu alto custo provadas pelo fracasso no
Iraque e no Afeganistão, fizeram com que novas formas de interferência nas nações que
desafiassem – ainda que minimamente os interesses econômicos e geopolítico norte-
americanos – devessem se dar a um baixo custo político, econômico e militar para a Casa Branca.
Dai advém a doutrina das Guerras Híbridas e Guerras Não Convencionais de 4ª Geração gestadas
pelos militares norte-americanos e testadas com sucesso no processo de golpe contra o governo
Dilma e com a eleição de Bolsonaro, entre os anos de 2016 e 18.

No bojo desta estratégia estavam não apenas os processos espúrios da Lava Jato, que atacaram
a um só tempo a burguesia produtiva nacional, a Petrobrás, projetos estratégicos militares
nacionais, além da prisão ilegítima de Lula e a pá de cal no desenvolvimentismo brasileiro dos
governos petistas a fim de garantir o aprofundamento do neoliberalismo e do processo de
acumulação capitalista da qual se beneficiaram muito empresas estrangeiras e bancos nacionais.
Para tanto, necessário fazia –se obter o controle ideológico e material sobre as forças armadas
brasileiras. A dependência destas da transferência de tecnologia de sistemas de armas dos
contratos com as firmas do Departamento de Defesa dos EUA e os cursos de formação de oficiais
nas escolas militares daquele país se encarregaram deste processo.

No entanto, na atual conjuntura de 2022 tudo mudou. Em um processo eleitoral no qual as


chances reais de vitória do candidato petista se firmaram cada vez mais reais em função da
popularidade de Lula, de um lado, e da queda da popularidade de Bolsonaro, de outro (ainda
que tenha sido derrotado por pequena margem de 2 milhões e tenha tido um enorme eleitorado
de 59 milhões de eleitores, sua popularidade já tinha sido bem maior em 18) a burguesia ou
parte dela começou a ver a alternativa de uma terceira via. Com a inviabilidade desta,
resolveram embarcar na candidatura de Lula, para o qual concorreram as negociações para a
formação de uma frente ampla e sinalizações por parte da Fiesp, Febraban e a não
compactuação de amplos setores militares para os intentos de golpe do atual presidente.

Ai justamente reside a questão? Por que os militares não apoiaram um golpe em caso de derrota
eleitoral? Por vários motivos. Em primeiro lugar, por que não contavam com o apoio da alta
burguesia do país e dos Estados Unidos. Por que já que Lula representa um governo que irá
reduzir a margem de lucros do conjunto da burguesia? Em parte por que a nata da classe militar
já está legalmente lutando por seus interesses pessoais e corporativos mediante os canais legais
do processo eleitoral nacional, se elegendo para cargos no legislativo e executivo e por que já
possuem diversos cargos dentro da máquina estatal.

Assim, os militares buscam negociar a manutenção dos seus privilégios apostando na negociação
com o futuro governo por vários mecanismos legais já que não contam com o apoio interno nem
externo para uma aventura golpista. Por outro lado, os Estados Unidos, cindido internamente
entre republicanos e democratas, com a derrota dos primeiros nas eleições legislativas por lá e
com a presidência nas mãos dos democratas que vêem Bolsonaro como aliado ao detestado
Donald Trump, não iriam apoiar, através de dinheiro e do apoio logístico do Pentágono
(Departamento de Defesa) os militares brasileiros num golpe contra Lula.

Por fim, quanto à burguesia nacional e internacional, esta vislumbra, de um lado, influenciar
decisivamente, como fez nos governos petistas anteriores, a agenda econômica do futuro
governo que já se comprometeu a não mexer nas estruturas fundamentais do capital e do
modelo neoliberal. Além disso, um eventual governo ditatorial e militar da extrema direita
nacional, ainda que com aprofundamento da precarização social e do trabalho que iria provocar,
poderia, todavia, tomar rumos que tomaram os governos ditatoriais brasileiros no passado em
termos de busca de relativizar sua autonomia estratégica e econômica, com prejuízos políticos
e econômicos para a própria burguesia nacional e estrangeira e para o próprio Estado
americano. Lembremos que o Estado Novo não foi deposto em 45 em nome da democracia nem
a pressão que a burguesia paulista e os Estados Unidos exerceram para a transição para o fim
do regime militar em 1985.

Assim, embora crescendo e se fortalecendo enquanto oposição ao governo Bolsonaro, o PT não


se encontra forte o suficiente para impor sua agenda anti-neoliberal e necessita da frente ampla
com setores da centro-direita contra a extrema direita da mesma forma que os militares e a
extrema direita também não possuem condições suficientes para derrotar nas urnas ou pela via
ilegítima do golpe o futuro governo. E para os Estados Unidos, sob comando democrata, é
melhor lidar com um governo de frente moderada que não será um governo apenas do PT do
que lidar com a imprevisibilidade de um governo ditatorial que pode afetar seus interesse como
houve no passado. Todavia, a oposição da extrema direita seguirá forte e um instrumento qual
espantalho para atormentar o futuro governo, assim como o uso político da hipótese de
impeachment qual espada de Dâmocles caso Lula busque romper com o neoliberalismo e com
os interesses das burguesias nacional e norte-americana.

Márcio Azevedo Guimarães

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