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Aghoranotícias, coluna de 08 de novembro

As contradições de classe, os limites do modo de produção capitalista dependente e periférico


como determinantes estruturais do futuro governo de coalizão brasileiro de centro-esquerda

A eleição de Lula mais uma vez foi um feito histórico. Não foram as alianças da coalizão que
garantiram a vitória eleitoral contra o protofascismo tupiniquim, mas o carisma do futuro
presidente e sua popularidade junto às massas que se mobilizaram nas ruas na mais polarizada
e apertada eleição das ruas. Uma vitória da democracia, dos direitos humanos, das pautas
ancestrais da esquerda, em especial da classe trabalhadora que deve ser comemorada. Não
obstante, ainda é cedo para celebrar a derrota da extrema direita.

O que ocorreu foi uma derrota eleitoral que, não fosse pelos méritos de dois atores sociais –
Lula e as massas populares – não teria ocorrido. Bolsonaro vai para a oposição mais forte ainda
do que em 2018, contando com a adesão ou o apoio de amplos setores dos aparatos de
segurança privada, pública e militar (estadual e federal) brasileiros. Além disso, obteve – ainda
que em parte pelo ilegal uso da máquina pública dos programas sociais como Auxílio-Brasil em
ano eleitoral- conta com algo em torno de 30 milhões de brasileiros fanatizados e fiéis, além de
ter quase dobrado o contingente de votantes. O país continua dividido no seio da sociedade.

Institucionalmente, além de setores das polícias, as instituições judiciárias estaduais e federais


(nelas incluídas as carreiras do Ministério Público) continuam a ter bolsões bolsonaristas. O
Congresso, por seu turno, passa a ter maioria de direita e extrema direita pela primeira vez
contanto com aproximadamente dois terços das duas casas, que elegeram Mourão (atual vice)
e Moro (um verdadeiro traidor da causa nacional, que num país sério deveria ser julgado por
crime político contra a segurança nacional e severamente punido) como senadores.

Os militares seguem na sua obediência ideológica e quase institucional ao seu verdadeiro


comandante em chefe, o Exército norte-americano. A décima força armada mais relevante do
mundo adotou, desde o final da Segunda Guerra, quase que o papel de ser um quinto exército
norte-americano em terras brasilienses, na prática. Além disso, ou talvez, reforçado por isso, são
virulantemente anticomunistas e anti qualquer ideologia de esquerda. Como se ser de esquerda
ou socialista fosse um anátema, um crime. A sociedade brasileira como um todo persiste ainda
na crença de que a opção alternativa do socialismo é uma ameaça aos interesses nacionais.

Além disso, existe o tradicional legado histórico de uma sociedade escravocrata em que amplos
setores da classe média e das classes altas nutrem um ódio antes velado pelos pobres, que com
o avanço da extrema direita se tornou explícito. Some-se a isso as velhas questões estruturais
que somente uma análise tipicamente marxista pode desnudar. O avanço de 70 anos de
industrialização e urbanização, com o desenvolvimento de ampla classe média naquilo que
Florestan Fernandes denominou de a revolução brasileira, parece ter tornado opaco a
agudização das contradições entre as duas classes fundamentais do modo de produção
capitalista: a burguesia e a classe trabalhadora.

Além disso, a tradição política nacional desde Vargas até Lula – os dois maiores líderes políticos
de nossa história – sempre foram caracterizadas pela busca de alianças e de políticas de
conciliação de classe. A natureza da dependência geoestratégica do Brasil frente aos Estados
Unidos no campo militar, nossa formação cultural-civilizatória de matriz ocidental, nossa
dependência estrutural em relação aos centros de acumulação de capital (hoje atrelado ao
capital financeiro norte-americano, em crise em razão da concorrência do capitalismo de Estado
chinês, nosso maior parceiro comercial), somadas à personalidade conciliatória do Presidente
Lula concorrem para que uma ruptura política com o capitalismo e com os Estados Unidos não
seja uma opção nem de governo, nem de Estado.

Em primeiro lugar, não existe força política nem militar que apoiasse uma guinada à esquerda
de corte marxista-leninista. Além de isto significar uma possibilidade de mudança violenta,
precipitaria, ai sim, um tradicional golpe de Estado militar, já que por muito menos, o fantasma
do golpe clássico pode espreitar quaisquer futuros governos que ainda que de natureza
capitalista, flertem com o desenvolvimentismo das forças produtivas nacionais, o que significaria
a verdadeira soberania, como já ocorreu no passado contra Vargas, Jango e contra Dilma.

Todavia, subordinados à lógica do capitalismo dependente, a contradição de classe avança, a


pauperização de amplos setores de classe média igualmente avança, assim como a brutal
acumulação de capital das transnacionais não produtivas, associada ao desastre representado
pelo agronegócio e pelos grandes bancos privados nacionais, que drenam recursos do
orçamento que deveriam ser destinados para políticas sociais, de saúde, infraestrutura,
investimento em produção industrial, geração de trabalho e emprego para os mais pobres, para
a educação e para a defesa militar (eis que forças armadas são o esteio da soberania nacional e
devem ser realmente valorizadas como instituição profissional).

Até quando o sistema político brasileiro irá resistir a este modelo capitalista de conciliação sob
o viés neoliberal (superestrutura do atual estágio de financeirização do modo de acumulação
capitalista) não o sabemos. O atual modo de produção capitalista periférico associado e
dependente do modo de produção norte-americano e europeu ocidental sofre os efeitos da
recessão mundial. Inflação, desemprego, enfraquecimento dos sindicatos e da classe
trabalhadora na produção (indústria), no comércio e nos serviços. A busca pelo lucro sem
criação de riqueza faz com que os grandes oligopólios transnacionais e dos seus agentes
institucionais – os Estados ocidentais – estraiam de forma perene e brutal a mais valia absoluta
e relativa das massas empobrecidas das sociedades ocidentais (tanto brasileira quanto europeia
e norte-americana). No restante da América do Sul – salvo Venezuela e Cuba – é o mesmo
cenário. Da nossa perspectiva ocidental, estreita, apenas China e Rússia se salvam. E com razão,
mas isto é outra história para outra coluna.

Desta feita, o que resta fazer? Não há ambiente no Brasil para rupturas. Os traumas sofridos
pelas sociedade e pelas instituições (no caso militares) pelas experiências de levantes
comunistas de um lado e de sucessivos golpes de Estado militares, de outro ( 1945, 1954, 1964),
para não falar na transição precária e tutelada pela burguesia em associação com os militares e
os Estados Unidos nos anos 1980 fazem com que somente a personalidade de Lula e o tradicional
viés histórico pela conciliação de classes seja a única saída política de longo prazo para o
conjunto da sociedade. Entretanto, em persistir no modelo capitalista de produção, o Brasil
deverá ao menos trilhar o caminho do desenvolvimentismo com políticas de corte keynesiano e
abandonar de vez privatizações, tetos de gastos, políticas de incentivo ao capital espoliativo
financeiro e passar a investir na produção, na classe trabalhadora, nas políticas de geração de
emprego que são o esteio do mercado de consumo e do crescimento econômico.

Para isso, porém, será necessário recriar uma burguesia nacional industrial e um complexo de
empresas estatais para que o capitalismo brasileiro possa voltar a ter novamente um rosto
social. Somente a vitória do PT e do seu maior líder no momento podem trazer esperança da
retomada do crescimento nacional com justiça social. Todavia, alianças perigosas realizadas
durante a campanha eleitoral, com verdadeiros cavalos de troia dentro do futuro governo são a
maior ameaça a um projeto de nação que precisa mais do que nunca, abandonar a ideologia e
as políticas neoliberais. A opção a isso será ou a total fragmentação progressiva e silenciosa de
uma sociedade já muito cindida pela polarização ou a alternativa ao caminho da radicalização
que, independente de paixões políticas, acabará tendo, no futuro de médio e longo prazo, no
socialismo, por via não pacífica, a única saída política caso o futuro governo não rompa desde
logo com os falsos amigos oportunistas e com o neoliberalismo econômico.

Márcio A. Guimarães

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