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Aghoranotícias, coluna de 15 de novembro

O governo Lula e seus desafios: os condicionamentos estruturais internos e externos e a cultura


e a advertência de Maquiavel.

O governo Lula foi ungido nas urnas de forma legítima e democrática. Representa uma conquista
importante no processo ainda inconcluso de transição democrática plena iniciado nos anos 1980
e o primeiro capítulo de enfrentamento de tendências estruturais históricas, das quais o
neofascismo é apenas uma das suas facetas. O maniqueísmo simplista de palavras de ordem
como bem versus mal, civilização contra barbárie nunca foram o melhor conselheiro do Príncipe,
diria Maquiavel se estivesse presente no turbulento momento político brasileiro. Enfim...o que
o célebre filósofo político florentino diria ao futuro presidente diante de tão complexo e grave
cenário nacional e mundial que sempre estiveram entrelaçados...?

Não temos como saber respostas concretas, mas Maquiavel nos deixa pistas...e muito
importantes. A primeira delas é a necessidade de compreender que a vitória nas urnas é apenas
a vitória de uma batalha e não a consolidação da vitória de uma guerra. Por certo, com sua
experiência, o eminente líder político petista tem a clara noção do que deve ser feito. Por certo
irá cercar-se de novos conselheiros do Príncipe, quais novas encarnações de Maquiavel e que
irão auxiliar o futuro presidente a concretizar, através de meios, os seus objetivos de longo
prazo: uma sociedade mais justa, menos desigual, mais democrática e que, justamente por isso,
necessita de uma repactuação de elites e estratégias de inserção soberana no sistema
internacional.

Isso não é pouca coisa, mas talvez no atual contexto político nacional, somente Lula seja a
pessoa certa no momento certo. Mas vamos lá, é hora de apresentar ao leitor algumas pistas
sobre a raiz dos problemas internos e externos com os quais o próximo governo irá enfrentar.
Primeiramente, o Brasil se tornou um país independente politicamente, mas conectado aos
centros dos sistema econômico capitalista por inequívocos laços de dependência através da
estrutura primário-exportadora que condena o orçamento público, drena as riquezas nacionais
e limita drasticamente as possibilidades financeiras do Estado em suas dimensões federal,
estadual e municipal de atender às políticas sociais (educação, emprego, saúde, previdência) às
quais dependem, em última instância, de recursos econômicos, o velho dindin para torna-las
efetivas para a maioria da população. Sem isso, não há democracia real que possa se sustentar
contra a ofensiva neoliberal que se utiliza do totalitarismo (sempre de direita e de colorações
fascistas).

Em segundo lugar, mas não menos importante, políticas de cunho social – a menina dos olhos
da campanha petista – depende de um projeto de desenvolvimento econômico sustentável na
realidade o que, por sua vez, só é possível por um sistema complexo e hábil de alianças que
deverá ter no Presidente da República o seu natural árbitro, afinal ele foi ungido pela maioria da
população para governar em nome do povo, da totalidade do povo, ainda que somente metade
tenha eleito Lula, já que vivemos uma grave conjuntura de divisão da sociedade. É ai que entram
as lições maquiavelanas de cercar-se de sábios conselheiros – ministros, assessores e amigos de
confiança. Nesse compasso, cumpre não esquecer que as elites dominantes da sociedade
brasileira – aristocracia fundiária associada às classes detentoras do capital nacional –
comerciantes e banqueiros – tem um histórico político e econômico de jogarem um jogo
ambíguo para com governos de natureza popular e democrática. Vargas e Jango que o digam...

Estas elites estão umbilicalmente associadas de forma dependente da estrutura do sistema


capitalista de forma periférica na qual os centros de acumulação de capital das nações
desenvolvidas do eixo euro-atlântico auferem a maior parte da riqueza em uma aliança política
e econômica que concede ganhos importantes (embora limitados) a burguesia nacional e seus
aliados orgânicos e necessários (burocracia de Estado, burocracia militar e classe média). Do
ponto de vista sociológico Florestan Fernandes e Nelson Werneck Sodré como ninguém nos
mostraram como funciona estas relações de produção que estruturam a sociedade brasileira e
seus condicionamentos sobre a política, a cultura, a ideologia que conformaram o sistema
político e jurídico brasileiro nos últimos 150 anos.

Assim, temos presentemente a dependência da trajetória histórica de graves condicionamentos


estruturais internos e externos que impedem a democratização da sociedade, a qual só pode
ser retomada a partir de profundas mudanças não em termos de reformas pontuais e parciais,
mas de natureza revolucionária, mas pacífica e negociada, como forma de garantir a estabilidade
e consolidação das necessárias mudanças nas estruturas produtivas, culturais, institucionais e
políticas de nossa sociedade. Só assim o Brasil realmente será o país do futuro tão sonhado por
muitos... Dessa forma, o governo deverá não ser tão somente um governo de coalizão que
venceu nas urnas, mas um governo para toda a população – lulistas e bolsonaristas – para todas
as classes sociais, atrair as classes médias para o projeto nacional, retomar um projeto para a
classe trabalhadora – a maioria do povo e dialogar com oposição política e com os militares.

Teremos uma Congresso Nacional em que a oposição será muito mais forte do que antes,
associadas a forças armadas completamente subordinadas ideológica, cultural e organicamente
aos desígnios das forças armadas norte-americanas, uma burguesia mercantil, agromercantil e
financeira integradas ao processo de acumulação de capital financeiro hegemonizado por Wall
Street e pelo Bil OIl, dos quais a Casa Branca e seus líderes republicanos ou democratas são
apenas seus advogados...Assim Lula irá precisar mais do que nunca da sua genial habilidade
negociadora para fazer mudanças profundas na sociedade brasileira sem traumas que
aprofundem a atual divisão da sociedade. Substituir a deletéria ideologia que divide por uma
que agregue, superando a atual dicotomia entre extrema direita e esquerda (neo)liberal e
identitária.

Uma nação no mundo atual para ser integrada em bases soberanas no sistema internacional
necessita ser forte econômica e militarmente. Somente as duas coisas podem conferir
legitimidade à liderança política para pleitear um lugar de destaque entre as nações. Para tanto,
todavia, no mundo atual em transformação, tal posição privilegiada necessita contar com o
apoio expressivo da população. E isto, sim, precisa ser caracterizado a partir de uma civilização
verdadeiramente democrática e inclusiva, que considere a heterogeneidade cultural, sexual, de
gênero, religiosa, étnica mas fundamentalmente fundada no reconhecimento da base
econômica em que as classes sociais se assentam. Somente reconhecendo as diferenças e
contradições é que se poderá criar um projeto de nação de longo prazo que perpasse governos
e ideologias e que congregue todos os brasileiros.

Num mundo conflitivo em transição de hegemonia, o Brasil só poderá se tornar uma sociedade
justa e democrática se resolver sua grave situação de dependência em relação aos centros
capitalistas hegemônicos de poder. Isto pode ser feito de forma pacífica e desejada através da
negociação onde todos ganhem ou de forma violenta e indesejada por revoluções armadas, algo
que somente o enfrentamento das crises econômicas e sociais pode evitar no médio e longo
prazos. As estratégias de guerra híbrida impostas pelos principais poderes do Ocidente tem
criado crises econômicas, desinformação, caos cognitivo e derrubado de forma ilegítima
governos democraticamente eleitos justamente por que estes não lograram romper com a
estrutura desigual do sistema capitalista de corte neoliberal nem fortalecer sua estrutura
econômica e político-militar de forma a sustentar a luta cultural, econômica e política que a
China e a Rússia podem fazer mas que o Brasil e outras nações acabaram sucumbindo em
passado recente. Portanto, há duas formas: a capitalista e a socialista. A primeira só é possível
via reformas profundas, reestruturando uma nova burguesia industrial e nacional e com políticas
de intervenção estatal e reestatização das forças produtivas cruciais para a economia
(siderurgia, petróleo, eletricidade). A segunda, pode vir também por via pacífica, através de
reformas profundas ou como a evolução histórica das contradições necessárias da primeira.

Atualmente, as condições para um movimento político no sentido do socialismo ainda não estão
dadas na atual conjuntura brasileira. Portanto, temos de lidar com a necessidade de reformar o
capitalismo brasileiro para que este atenda às necessidades da população. Maquiavel
aconselhava o Príncipe que este devia ser amado pelo povo e temido pelos inimigos. Como
ensinava estes últimos podem ser derrotados sem o uso da violência física, mas por meio de
ações políticas profundas que garantam a democracia, o governo da maioria. Para bom
entendedor, isso já basta. Reformas do Estado e na economia de identidade de centro-esquerda
devem ser os objetivos do futuro governo para que a democracia e a inserção soberana do Brasil
possam ser as duas faces reais da mesma moeda. Nunca o realismo político caro a Maquiavel
necessitou de tanto idealismo político quanto nessa quadra histórica, pois que o realismo vulgar
(não maquiavelano) dos interesses individuais de curto prazo só deixaram a transição política e
econômica brasileira inconclusa desde os anos 1980. Que Lula possa ser o Príncipe brasileiro
tão bem descrito pelo célebre florentino....

Márcio A. Guimarães

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