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A direita a serviço da esquerda

Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 09 de abril de 2007
Dentre as muitas coisas verdadeiras ditas pelo sr. Fernando Henrique Cardoso entre uma mentira e
outra, esta merece a maior atenção:
“Não existe direita no Brasil, no sentido clássico do conceito… O pensamento conservador filia-se
a uma tradição ocidental que estabelece como pilares da ordem a família, a propriedade, os
costumes. O nosso conservadorismo não é nada disso. Tem a ver com clientelismo, patrimonialismo,
uso indevido dos recursos do Estado. Ele não é composto de um ideário, e sim de aproveitadores.
Por que a ‘direita’, no Brasil, apóia todos os governos, não importa qual? Na história recente, ela
apoiou os militares, apoiou o Sarney, apoiou o Collor, apoiou a mim, apóia o Lula. Porque seus
integrantes não são de direita. Essa gente toda só quer estar perto do Estado, tirar vantagens dele.”
Só faltou ele acrescentar – e por isso acrescento eu – que esse é o mais grave problema do Brasil.
Desde logo, só a economia capitalista pode gerar prosperidade, mas o sucesso dessa economia
depende diretamente da conduta da classe capitalista. Ora, é precisamente a essa classe que o ex-
presidente se refere. Se ela própria insiste em se tornar dependente do Estado, por interesses
imediatistas e pela relutância covarde em se expor plenamente aos riscos da livre concorrência, ela
condena o capitalismo brasileiro à atrofia perpétua. Não tem sentido um sujeito prosternar-se ante a
autoridade governamental e depois reclamar que ela o oprime com sobrecarga de impostos e de
exigências burocráticas. Se você quer independência, tem de agir com independência. No Brasil os
ricos gritam “Enxuguem o Estado!”, mas querem continuar nadando na piscina das verbas oficiais.
Assim não dá.
Mas os efeitos da subserviência capitalista ao Estado vão muito além da esfera econômica. O
exemplo da classe rica se propaga por toda a população e a corrompe, fazendo de cada cidadão um
virtual pedinte de dinheiro público. O brasileiro não sonha em enriquecer com trabalho, poupança e
investimento, mas em chegar o mais rápido possível à aposentadoria. E ele não pensa assim por ser
preguiçoso, mas porque sua poupança é comida pelos impostos e a única forma de investimento que
resta ao seu alcance são as contribuições previdenciárias. O Brasil não é uma potência capitalista
porque preferiu ser antes um imenso Instituto de Previdência. Os efeitos psicológicos dessa situação
são devastadores: se o objetivo da vida é a aposentadoria, o trabalho não é o caminho da
prosperidade e da auto-realização, mas uma incomodidade temporária que deve ser removida o mais
rápido possível. Então o desleixo e a incompetência tornam-se não apenas direitos, mas até deveres:
como o trabalho não tem nenhuma outra finalidade senão ser abolido o quanto antes, o trabalhador
esforçado é visto como um vaidoso pedante ou como um puxa-saco do patrão.
Estragando a população em geral pelo mau exemplo, a acomodação capitalista no seio da burocracia
corrompe ainda mais os políticos. Corrompe-os por três lados ao mesmo tempo:
1. Os que são seus amigos tornam-se ipso facto agentes de negócios, captadores de recursos estatais
para financiar – ou salvar – empresas privadas.
2. Os inimigos, temporariamente excluídos da mamata, sentem-se investidos do direito de
multiplicá-la em proveito próprio tão logo cheguem ao poder e imaginam-se, por essa mesma razão,
as pessoas mais honestas do mundo. Quando, na CPI dos Anões do Orçamento em 1993, os petistas
vociferavam contra “o Estado dentro do Estado”, referindo-se hiperbolicamente a vulgares
negociatas entre empreiteiros e parlamentares, ao mesmo tempo que já iam preparando o futuro
Mensalão – este sim um verdadeiro Estado dentro do Estado –, não tenho a menor dúvida de que ao
menos inconscientemente identificavam a justiça social com a distribuição igualitária do direito de
roubar. Por isso mesmo não sentem hoje a menor dor na consciência por tudo aquilo que têm feito
desde que se tornaram os novos donos do poder. Vigarice por vigarice, acham mais lícita aquela que
não favorece só as velhas elites mas reparte o botim entre os pobres e oprimidos – isto é, eles
próprios. Caso contrário não teria razão de ser a afetação de coitadice com que um Lula ou uma
Benedita, alçados à mais alta hierarquia do Estado, continuam se vendo como membros da classe
desamparada.
3. Uns e outros, amigos e inimigos, acabam tendo seus interesses vitais diretamente ligados à
burocracia estatal — e tudo farão para que ela continue crescendo, a despeito até de suas convicções
pessoais.
Do ponto de vista ideológico, então, os efeitos da simbiose entre Estado e elite empresarial raiam o
monstruoso.
Primeiro: por falta de advogados, a defesa dos “pilares da ordem, a família, a propriedade, os
costumes” , como os resumiu Fernando Henrique, é excluída do linguajar político decente e jogada
para o limbo da “extrema direita”. Como, por outro lado, ela expressa os ideais majoritários da
população brasileira, o resultado é que o Brasil se torna uma nação de excluídos políticos, onde a
maioria não tem representantes nem porta-vozes. Privado dos canais normais de atuação, o
conservadorismo brasileiro recua para o inconsciente coletivo e tem de se expressar por vias
simbólicas, indiretas, analógicas. Muitos dos eleitores de Lula votaram nele pelo simples fato de que
ele parecia um tipo mais antigo, mais arraigado nas tradições populares, do que seus concorrentes
moderninhos, com ares de tecnocratas. O motivo da escolha não foi político nem ideológico: foi
puramente estético. Não encontrando quem falasse em seu nome, o povo votou em quem se parecia
com ele fisicamente, sem ter a menor idéia de que elegia o candidato do aborto, do desarmamento
civil, do casamento gay – de tudo o que podia haver de mais artificial e antipopular. Aí a política
eleitoral se torna pura fantasia alucinatória.
Segundo: dentre os defensores da economia privada, muitos têm menos horror ao esquerdismo do
que à perspectiva de ser tomados por “extremistas de direita”. Então apressam-se em isolar
economia e cultura, articulando a apologia do capitalismo com a do programa cultural
revolucionário, incluindo abortismo, eutanásia, liberação das drogas e anticristianismo professo ou
implícito. Tornam-se assim forças auxiliares da revolução gramsciana, e toda a sua gritaria em favor
da liberdade de mercado já não faz a menor diferença, pois ninguém na esquerda está lutando pela
socialização dos meios de produção; todas as tropas foram concentradas no campo de batalha
cultural.
Terceiro: se uma parte da direita não tem ideologia nenhuma e a outra tem uma ideologia que
favorece a revolução cultural, o resultado é que a esquerda fica com o monopólio da propaganda
ideológica. Até os que a odeiam são obrigados a falar na linguagem dela, o que significa que tudo o
que dizem funciona no fim das contas como propaganda esquerdista.
Quarto: não é possível que a própria “direita” que criou essa situação permaneça psicologicamente
imune a seus efeitos por muito tempo. Ela própria acaba introjetando a cosmovisão e os valores da
esquerda, e no fim das contas já não tem nada a alegar em favor do capitalismo senão o fato de que
ele é do seu interesse. E é exatamente assim que estamos hoje em dia: entre os opinadores de
plantão, não há mais quem não veja a política como a luta entre “interesses” privados e “valores”
coletivos. Em suma: no Brasil, entre as classes falantes, todo mundo é de esquerda – uns porque
gostam, outros porque não sabem ser outra coisa.
Não conheço, por exemplo, entre os “direitistas” brasileiros, um só que não enxergue a economia,
em última instância, exatamente nos termos em que a descreveu Karl Marx. Por menos que gostem
disso, seu cérebro está programado para enxergar o capitalismo como luta de classes e exploração da
mais-valia. Quanto mais dizem tomar o partido da sua própria classe, mais se tornam prisioneiros da
jaula marxista.
Também não conheço um só capitalista que não acredite na lenda esquerdista de que Karl Marx foi
“um grande pensador”. Podem proclamar até que “o marxismo está superado”, mais quanto mais o
depreciam da boca para fora, mais lhe rendem homenagem em pensamento.
Ora, Karl Marx não foi nenhum gênio, nenhum grande pensador, nenhum cientista social notável.
Foi uma besta quadrada, incapaz de dominar os problemas filosóficos mais elementares e de se
orientar no meio da mixórdia verbal que ele próprio criou. Seu único talento foi o do vigarista
intelectual capaz de angariar prestígio por meio do blefe, do boicote e da intimidação. Estudem a
atuação dele na I Internacional e verão do que estou falando.
Mas, antes disso, examinemos um ponto essencial. Embora a tradição marxista condene com
veemência o “abstratismo burguês” que supostamente raciocina a partir de meros conceitos sem ter
em vista a praxis histórica, toda a análise que Marx faz da economia capitalista é abstratismo da
espécie mais primária. Ele define o capitalismo como exploração da mais-valia e sai tirando
conclusões dessa definição sem prestar a mais mínima atenção às condições histórico-sociais que já
na sua época possibilitavam a existência do capitalismo. Na sua definição, este se resume a uma
determinada relação entre capitalistas e operários, exploradores e explorados. Nesse esquema, não há
nenhum lugar para a massa dos consumidores, a vasta classe média da qual depende a existência de
capitalistas e operários. Uma máquina econômica constituída apenas de exploradores e explorados
não poderia durar um só dia. Afinal, quem paga a brincadeira? Partindo da sua definição de
capitalismo, Marx acreditava que o número de consumidores iria diminuir cada vez mais, até que a
máquina de exploração já não tivesse condições de funcionar. Mas o único argumento que ele
oferece em favor dessa previsão é que ela é uma decorrência lógica da sua definição de capitalismo –
uma definição que, a priori , já omitia a existência dos consumidores. Na verdade, estes é que
deveriam ser o centro da definição: o capitalismo pode até incluir exploradores e explorados, mas ele
não consiste nem em explorar nem em ser explorado — ele consiste em comprar e vender. Até
mesmo a relação entre patrão e empregado é apenas um caso especial de compra e venda – algo que
qualquer principiante habilitado a distinguir gênero e espécie tem a obrigação de perceber. Em vez
de definir o capitalismo pelo perfil real da sua existência histórica, Karl Marx preferiu reduzi-lo a
uma “essência” abstrata que pudesse ser descrita mediante uma só relação simples, a relação entre
salário e “valor”. Depois, vendo que a existência real do capitalismo não confirmava a essência,
concluiu que esta acabaria por predominar sobre a existência. Maior “abstratismo burguês” não
poderia haver: uma essência abstrata que pode mais do que a realidade histórica é uma espécie de
platonismo radical, o primado absoluto das idéias (com o agravante de que as idéias platônicas eram
pensadas por Deus, e a definição marxista de capitalismo é pensada apenas por Karl Marx). Na
realidade objetiva, a existência e a prosperidade do capitalismo dependem inteiramente do mercado,
isto é, dos consumidores, e isto é assim já na base, na “essência” mesma do processo. Se o
capitalismo foi economicamente viável por um só dia, nesse dia já ele aumentou o número de
consumidores, pois alguém então comprou o que não havia comprado antes. Dessa condição real, o
que seria preciso deduzir é que o capitalismo consiste na ampliação do mercado, na multiplicação do
número de consumidores. Se cabe descrever os processos históricos como “essências”, essa é a
essência do capitalismo – e o que se deveria deduzir dela é que, se essa essência viesse a existir
historicamente, o resultado seria a ampliação progressiva da classe média até à dissolução do
“proletariado” como classe identificável. Isto foi exatamente o que aconteceu, e é exatamente o
contrário do que Marx previa. Para fazer a previsão certa, ele precisaria ser um filósofo de verdade,
isto é, saber pelo menos aquilo que todo discípulo de Sócrates já havia aprendido dois milênios
antes: distinguir entre o que o cérebro inventa e o que a experiência ensina. A experiência pode ser
confusa e o pensamento introduz nela alguma ordem e clareza. O que não vale é, em prol da clareza,
substituir a experiência por meros pensamentos. Mas Karl Marx foi um pouco além: ele acreditou
piamente que seus pensamentos acabariam por demonstrar a irrealidade da experiência.
Não é compreensível que alguém tenha sequer algum respeito por um idiota capaz de embarcar num
erro tão básico. A fama de Karl Marx deve-se apenas ao fato de que a idiotice é contagiosa e o
número dos contaminados acaba valendo como uma espécie de autoridade intelectual. Ao contrário
do que pensava Descartes, é a idiotice e não a sensatez que é distribuída por igual entre todas as
classes: a proporção de idiotas não é maior entre aqueles a quem o marxismo promete um paraíso do
que entre aqueles que ele ameaça jogar na lata de lixo da História. Os primeiros são idiotizados pela
ambição, os segundos por aquele medo extremo que acaba se tornando fascínio e subserviência.
Não adianta nada você gostar do capitalismo se acredita que ele é baseado na exploração da mais-
valia e que sua única chance de sobrevivência reside em fazer concessões cada vez maiores à
militância socialista detentora do monopólio dos valores morais e das esperanças de futuro.
Ou você acredita que o capitalismo encarna valores morais inegociáveis e que ele é a única
esperança de dias melhores para a humanidade, ou é mais lógico você desistir logo dele e arrumar
uma carteirinha do PSTU.
***
P. S. — Se você é católico, não se sinta obrigado a dizer amém à declaração do Papa de que Karl
Marx “forneceu uma imagem clara do homem vitimado por bandidos”. Não é uma sentença
doutrinal ex cathedra , é apenas uma opinião individual que todo católico tem o direito e até o dever
de contestar. Não adianta nada o meu caro Reinaldo Azevedo tentar atenuar o sentido da frase,
dizendo que ela não é propriamente um elogio a Karl Marx. A declaração não impressiona pelo que
insinua a favor de Karl Marx, mas pelo que diz claramente contra os capitalistas: são bandidos.
Assim os descreveu Karl Marx, e o Papa considera essa descrição uma “imagem clara”. E o mais
bonito é que a ela o ex-cardeal Ratzinger não tem a objetar senão que Karl Marx, limitando-se à
esfera material, não foi ao fundo espiritual do problema. Portanto, na perspectiva papal, não basta
denunciar o mal econômico da exploração da mais valia: é preciso sondar as dimensões espirituais
dessa abominação. Que eu saiba, esse é o programa da Teologia da Libertação: adornar a estupidez
marxista com pretextos espirituais colhidos da religião cristã. Cabe recordar que, no trato disciplinar
com os Boffs e Gutierres, Ratzinger sempre se limitou às reprimendas paternais sem o mínimo efeito
prático, ao mesmo tempo que, para os católicos tradicionais, reservava a mais grave das punições: a
excomunhão. Não espanta que um Pedro Casaldáliga não lhe tenha respeito nenhum e lhe passe pitos
em público. A ninguém os comunistas desprezam mais do que a seus colaboradores discretos no seio
da “direita”. Nossos direitistas deveriam aprender com o exemplo: quanto mais você se faz de
bonzinho, mais a esquerda lhe cospe em cima.

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