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A PSEUDODEMOCRACIA REPRESENTATIVA E AS PROMESSAS DO

PSEUDOLIBERALISMO CAPITALISTA

Cristiano de Paiva Barroso1

Quando repensamos a situação política hodierna brasileira temos a impressão de


que nos situamos em um poço de areia movediça, e que todo esforço para corrigir os
rumos da democracia acabaria por aniquilá-la de vez. Isso ocorre, porque é quase
impossível corrigir um trajeto traçado desde o início com um destino que não é o
mesmo que o divulgado, com promessas que nunca irão se cumprir, pois foram feitas
tendo como base apenas a persuasão da maioria para impedir a sua resistência. Estamos
falando de um projeto político liberal surgido desde os primórdios do capitalismo, que
vendeu a ideia de uma democracia representativa, mas, que tinha e tem por base uma
determinada classe, sendo, portanto, na verdade uma oligarquia. Ao longo do tempo, o
capitalismo sobrepôs à democracia e o econômico se sobrepôs ao político. É o que
demonstra Ellen Meiksins Wood, em seu livro: “Democracia contra o capitalismo: a
renovação do materialismo histórico”:
(...) o mercado capitalista é um espaço político, assim como econômico, um
terreno não apenas de liberdade e escolha, mas também de dominação e
coação. Quero agora sugerir que a democracia precisa ser repensada não
apenas como categoria política, mas também como categoria econômica
(WOOD, 2003, p. 248)

Contudo, o oligopólio econômico precisa do apoio da política e faz uma


organização baseada em poderes econômicos e políticos. Não precisamos traçar um
mapa histórico de todo esse processo, basta atentarmos para alguns momentos de nossa
história para perceber o quanto somos influenciados pelo capitalismo mundial e de
como ele acaba sendo o responsável pelos rumos de nossa pseudodemocracia
representativa.

Destaquemos, de maneira sucinta, três momentos de nossa história que


corroboram com essas afirmações: o Pacto de Campos Sales, o Golpe de 64, e as
privatizações no governo de Fernando Henrique Cardoso.

Campos Sales, enquanto Presidente da República proclamada nove anos antes,


iniciou um enfrentamento da crise econômica herdada do governo anterior e começou
com a renegociação da dívida externa do país com os credores ingleses, os quais
fizeram diversas exigências intervencionistas no país já na época de Prudente de

1
Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais
Morais. Campos Sales tentou renegociar as dívidas com o maior credor do Estado
Brasileiro, a Casa Rothschild e, dessas negociações, acordou-se um empréstimo de
consolidação para o país de dez milhões de libras que ficou conhecido como funding
loan que impôs diversas intervenções, entre elas, a redução das despesas do governo e o
aumento da receita com a sugestão de aumento de impostos e as rendas das alfândegas
do Rio de Janeiro para garantir o pagamento da dívida. Para isso, o governo cortou os
investimentos no setor industrial, suspendeu as obras públicas, e incentivou o setor
agrário. Isso agradou às potências industriais por poderem vender produtos
manufaturados ao Brasil e agradou à oligarquia agrária brasileira, que ainda foi
favorecida pela “Política dos Governadores” que oficializava o coronelismo,
evidentemente desfavorecendo os trabalhadores e a população mais pobre, que perdeu
sua liberdade em atuar democraticamente. Ana Luiza Backes na sua tese “Fundamentos
da ordem republicana: repensando o Pacto de Campos Sales” (2006), reforça a ideia de
que o jogo era claramente das elites, contudo elas estavam divididas. O pacto de Sales,
promovido pelos interesses de bancos ingleses com quem o Brasil mantinha dívidas
vultosas, acabou dando uma sustentação ao governo que vivia num intenso embate
polarizado entre os “concentrados”, grupo parlamentar que atraiu os florianistas, sob o
comando de Francisco Glicério que congregou a maior parte dos parlamentares que
defenderam posições nacionalistas; e de outro, os republicanos “legalistas”, incluindo a
maior parte dos históricos paulistas aliados a deodoristas e a velhos políticos do
Império. Se o problema inicialmente era puramente político, inevitavelmente o fator
econômico foi o decisivo, pois a oligarquia agrária manteve, a partir de então, o
monopólio do sistema político não admitindo qualquer oposição. Esse é um exemplo
claro de como o fator econômico, não só influenciou a política, como também foi
responsável pela consolidação dos interesses de uma determinada classe.

Mesmo se admitirmos a erradicação em grande medida do coronelismo2, ainda


hoje, nessa ilusão da democracia, o povo é continuamente influenciado em suas
decisões por empresários que financiam as campanhas e, os políticos que deveriam
representar o bem comum, votam a favor dessa classe que os favoreceu com a
manipulação midiática. Chomsky destacou a importância dos meios de comunicação
como “Quarto Poder” que faz a cabeça da população e anestesia a revolta popular. Essa

2
Há uma sofisticação do coronelismo, principalmente nos lugares mais remotos do Brasil, cujos
poderosos se revezam no governo a fim de manterem seus privilégios.
"Democracia de Expectadores", do faz-de-conta, funciona por causa da lavagem
cerebral continuada admitida pelos teóricos da democracia liberal como Walter
Lippmann, para quem seria necessário: "obter a concordância do povo a respeito de
assuntos sobre os quais ele não estava de acordo por meio das novas técnicas de
propaganda política" (CHOMSKY, 2013, p. 8). Lippmann considerou a maioria da
população como um "rebanho desorientado" cuja função na democracia seria apenas de
expectador, não de agente, que, esporadicamente, transfere seu apoio a uma "classe
especializada", e logo em seguida sai de cena.
O princípio moral imperativo é que a maioria da população é simplesmente
estúpida demais para conseguir compreender as coisas. Se tentar participar na
administração de seus próprios interesses, só vai causar transtorno. Por essa
razão, seria imoral e impróprio permitir que faça isso. Temos de domesticar o
rebanho desorientado, impedir que ele arrase, pisoteie e destrua as coisas.
(CHOMSKY, 2013, p. 9)

Segundo Chomsky, "esta pode parecer uma concepção estranha de democracia,


mas é importante entender que ela é a concepção predominante" (CHOMSKY, 2013,
p.9). A democracia se tornou um sistema em que a "classe especializada" é treinada
para trabalhar a serviço dos senhores, os donos da sociedade, e o resto da população
deve ser privado de qualquer forma de organização, absorvendo através da mídia
"valores apropriados". É quase impossível não se identificar isso ao analisarmos as
famílias brasileiras cujos componentes, depois de um longo e exaustivo dia de trabalho,
sentam-se à frente da TV e absorvem como que por osmose todo conteúdo repassado
através das novelas com seus valores, telejornais guiados por interesses às vezes
camuflados e à vezes não, e propagandas que motivam um consumo fútil numa corrida
sem fim para felicidade. É o que testemunhou como jornalista, Paulo Henrique Amorim,
autor do livro “O quarto poder: uma outra história” (2015). Segundo ele, a imprensa
brasileira assumiu o comando do processo político em vários episódios da história
brasileira, por exemplo, ele cita uma entrevista que fez com um amigo de Roberto
Marinho:
"PHA - Pode-se dizer que o Roberto Marinho cogovernou o Brasil no
governo Sarney?
Senhor Y - Cogovernou, não! Ele governou o Brasil! E ele tinha consciência
absoluta desse poder.
PHA - Ele não procurava dissimular, não se sentia encabulado?
Senhor Y - Ele reagia a isso com a maior naturalidade. Era o que tinha que
ser. Era assim porque era. Ele tinha a TV Globo, O Globo e eles mandavam
no Brasil! E o Sarney sabia disso. (AMORIM, 2015, p.317)

Aos poucos, a história do Brasil é testemunha e vítima desse processo que se iniciou na
Inglaterra, e foi aprimorado pelos EUA. A democracia foi transformada numa
encenação política na qual o povo pensa que está governando, mas quem governa por
trás dos panos é o poder econômico com suas ferramentas, incluindo o “Quarto Poder",
a mídia. Nesse sentido a democracia é falsa, o sistema representativo é falso, a eleição é
manipulada e quando esse sistema percebe que vai perder o controle do teatro, atua com
o golpe. Apaga as resistências. Foi o que aconteceu com João Goulart o qual não pôde
resistir ao golpe de 64, porque não existiam condições de resistência contra um golpe
que estava devidamente arquitetado. João Vicente Goulart, filho de Jango, relata o fato no
livro “Jango e eu: Memórias de um exílio sem volta”, mostrando que o golpe foi um
planejamento muito bem elaborado pela embaixada americana e financiado pelos EUA;
ele relatou em entrevista sobre o livro3, inclusive, que o embaixador americano Lincoln
Gordon confirmou que foram financiados cinco milhões de dólares para derrubar o
presidente, financiaram parlamentares que eram contra a posição do presidente na
eleição de 62 e havia evidentemente uma orquestração de forças militares políticas e
econômicas que desestabilizaram o governo João Goulart de forma tal que, com o
grande apoio dos Estados Unidos, se houvesse uma resistência naquele momento seria
uma resistência de consequências imprevisíveis.4
Os comandos militares praticamente já haviam aderido ao golpe. O Terceiro
Exército também, pois, ao chegar a Porto Alegre, o presidente quis que a
reunião fosse realizada dentro do comando, porém foi informado de que lá
seria preso. Prevendo resistência, a quarta frota americana estava posicionada
na costa brasileira com fuzileiros navais, petroleiros, submarinos e porta-
aviões de última geração carregando a bordo armas atômicas. O plano era
criar um segundo Vietnã. Àquelas horas, o golpe estava praticamente
consolidado. Lyndon Johnson comunicava ao seu embaixador, Lincoln
Gordon, que horas depois já iria reconhecer o novo governo. O apoio externo
era total. Jango sabia disso e não jogaria seu povo numa resistência fratricida
em nome do poder. Sua atitude preservou a paz da nação brasileira, e,
principalmente, nosso território. (GOULART, 2016, p.27)

O político representa o poder econômico sedimentado nas instituições


financeiras. Desde o início de nossa história, é exatamente esse poder econômico que
tem incentivado processos ilusoriamente democráticos. Por isso, o liberalismo prevê
cada vez mais uma política de extinção do Estado, com seu discurso de intervenção

3
Entrevista do jornalista Paulo Henrique Amorim a João Vicente Goulart, filho do ex-presidente João
Goulart, deposto no golpe militar de 1964. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dj-
THPJsLMw, acesso em 15/06/2018
4
Posteriormente foram descobertos e divulgados Documentos confidenciais da CIA (agência central de
inteligência americana) revelam que o governo americano monitorava os desdobramentos da política
brasileira e buscava uma brecha para derrubar o então presidente João Goulart antes do golpe de 1964.
Conforme noticiado na mídia: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/eua-buscaram-brecha-para-
derrubar-jango-antes-de-1964-6587.html acesso em 15/06/2018 às 14:12h
mínima, deixando agir a mão invisível do mercado, como teorizado por Adam Smith5.
O pior é que além do Estado não intervir na economia, a economia passou
gradativamente a intervir diretamente no Estado. Nesse sentido, que, para encerrar esse
quadro de pinceladas históricas, remetemo-nos a um fato recente. Segundo Paulo
Henrique Amorim na obra já citada, "O quarto poder", quando Fernando Henrique
Cardoso, então Ministro da Fazenda de Itamar Franco, aspirante à Presidência da
República, foi à Washington em 25/09/1993 vender ao FMI a “hipótese” do Plano Real
e, "para sair do Ministério com o apoio do FMI e dos bancos credores - especialmente
dos americanos liderados pelo Citibank - e se tornar candidato viável" (AMORIM,
2015, p. 413) precisava dar uma "paulada" no déficit público e criar uma âncora cambial
amarrando a moeda nacional ao dólar. Segundo Amorim, para conseguir o apoio do
FMI, Fernando Henrique, em reunião com o diretor-gerente do Fundo, Michel
Camdessus e o líder do comitê dos bancos credores Bill Rhodes, do Citibank, prometeu
"um ajuste fiscal com privatização forte" (AMORIM, 2015, p.417), a privatização da
Telebrás, da Vale do Rio Doce e da Petrobrás, só não conseguindo, quando eleito,
cumprir inteiramente o acordo em relação a essa última. Enfim, mais uma página infeliz
de nossa história que mostra como o Brasil, por estar ainda ligado ao FMI, ainda não se
tornou independente, mas, ao contrário, tem toda a sua política influenciada pelo fator
econômico.

Mas como pensar o exercício da democracia, onde a dominação através do poder


econômico é que parece ditar as regras do jogo? Mesmo diante dessa constatação,
parece necessário entender o que faz com que a maioria da população ainda permaneça
“deitada em berço esplêndido” enquanto é explorada e ainda por cima ajuda a sustentar
tal situação? Sabemos que tal estrutura econômica e social anteriormente descrita é
piramidal e tende a aumentar a base da pirâmide com o intuito de sustentar a oligarquia.
É possível fazer uma analogia direta com o que analisou La Boétie, no “Discurso da
Servidão Voluntária”, de quatro séculos atrás, no que se referia à servidão ao tirano. La
Boétie se perguntava como um único tirano poderia manter sob o seu julgo milhares de
homens e dezenas de cidades, sendo que os súditos não precisariam combater os tiranos
e nem mesmo defender-se diante dele, bastaria que se recusassem a servi-lo, para que

5 Evidentemente quando teorizou sobre isso no século XVIII, eles estavam vivenciando a concentração
do poder nas mãos da monarquia a qual era sinônimo do Estado. Ou seja, intervenção mínima significaria
maior liberdade.
ele fosse naturalmente vencido. Ou, em termos hegelianos, o Senhor não existe sem o
Escravo. Como resposta, ele propõe algumas causas prováveis: o costume tradicional, a
degradação programada da vida coletiva, a mistificação do poder, e o interesse.

Trazendo para os nossos dias, podemos aplicá-los igualmente, guardadas as


devidas peculiaridades. O costume tradicional, por exemplo, pode ser vislumbrado em
uma sociedade na qual as pessoas deixam de se questionar pelas causas e passam a agir
como “se as coisas sempre fossem assim”. A mídia aqui tem um papel altamente
relevante repassando valores e sedimentando costumes, contudo, tradição aqui não seria
mais uma conservação de valores e costumes antigos, mas a impossibilidade de analisar
a sua origem, portanto, recebendo passivamente um produto pronto tal como uma
mercadoria.

Este mesmo sistema, também estaria presente na segunda causa: a degradação


programada da vida coletiva. Como sabemos, a cultura de massa e as próprias
alternativas de entretenimento atuais têm um poder altamente manipulador. A “Política
do Pão e Circo” romana aparece sob novas modelagens pelos Realities Shows, novelas,
jogos de futebol, carnaval etc. O problema não estaria necessariamente nesses
entretenimentos, mas no seu uso como mecanismo de alienação. Diga-se de passagem,
que um Reality Show qualquer possui muito mais audiência do que um debate político
que pode definir os rumos da nação, as eleições ocorrem em época de Copa do Mundo e
esta última ganha grande ênfase em detrimento das primeiras, as novelas disseminam o
ideal a ser perseguido e difundido como possível a qualquer um apenas baseado em seu
próprio mérito e o carnaval é o momento em que vários brasileiros esquecem todas as
dificuldades do cotidiano mergulhando suas angústias na folia.

A mistificação do poder pode ser representada pelo discurso de muitos políticos


que persuadem aos eleitores de que estão buscando em primeira instância o bem
comum, e não apenas os interesses de uma determinada classe. Além disso, também
poderíamos pensar numa mistificação aos moldes do capitalismo que difunde o
consumismo e um modo de vida ideal. Como se o indivíduo só se tornasse realizado se,
ao esgotar todas as suas forças num trabalho exaustivo, pudesse comprar “com seu
mérito” um equipamento tecnológico da última geração, vestisse determinada roupa,
morasse em determinado lugar, frequentasse determinados ambientes etc. Assim como
havia uma mistificação da figura do soberano, aqui o soberano é o “indivíduo ideal” a
ser emulado, que pode ser apenas abstrato ou figurar em um jogador de futebol, um
artista, um empreendedor famoso etc.

E por fim, o interesse. Este é o mais evidente na divulgação dos ideais do


liberalismo. La Boétie descreve a forma piramidal do poder mostrando que um pequeno
número de subordinados obtém a confiança do tirano e dele se aproxima,
compartilhando de seus desmandos e recebendo seus favores e, por conseguinte, dispõe
de seus próprios súditos, que também compartilham de seus desmandos e recebem seus
favores, que também, por sua vez mantêm uma série de subordinados, os quais, por sua
vez, possuem também seus próprios subordinados e, assim por diante. Da mesma
maneira, as pessoas aderem ao capitalismo, subordinam-se aos seus propósitos, pois
acreditam nas suas promessas. Quantos não são os discursos meritocráticos que ocultam
a concentração de riquezas e a exploração por parte dos donos do meio de produção? É
importante ressaltar que a meritocracia não seria um problema se a corrida já não se
iniciasse de maneira desigual com condições desiguais (o fato de haver exceções de
pessoas que em situações não propícias alcançaram algum sucesso nesse intuito, isso só
fortalece a regra). E assim, os indivíduos iniciam uma corrida na ilusão de que por seu
único mérito alcançarão as promessas do liberalismo, muitas vezes tentando utilizar a
outros como escada. Parafraseando La Boétie: querem fazer com que os bens sejam
deles e não se lembram que são eles que lhe dão força para tirar tudo de todos e não
deixar nada de que se possa dizer que seja de alguém. Poderíamos dizer que a
dominação é retroalimentada pelo próprio dominado.

Três séculos depois, já com um avanço do capitalismo, uma análise semelhante


fez Max Weber, ao retomar o conceito de dominação e perceber que existiria um certo
tipo de legitimidade que garantiria a sua duração e a sua obediência. “A dominação, ou
seja, a probabilidade de encontrar obediência a um determinado mandato pode fundar-se
em diversos motivos de submissão (...) e o abalo dessa crença na legitimidade costuma
acarretar consequências de longo alcance” (WEBER, 1999, p.128). Ele descreve três
formas de dominação legítima: a tradicional, a carismática, e a legal. Analogamente a
La Boetie, a dominação tradicional se baseia na crença do “sempre foi assim” e o não
questionamento pela origem, por exemplo, da desigualdade social. A dominação
carismática, como mistificação anteriormente descrita em La Boétie, também se funda
em origens místicas; ciente dessa possibilidade, os donos do poder lançam “gurus” que
expandem conceitos que vão de acordo com o interesse de uma determinada classe, e o
que é pior, não há nenhum pressuposto para envolver as massas, dessa maneira um
mero jogador de futebol ou artista pode influenciar tanto quanto ou até mais que um
especialista em determinada área. E, por fim, a dominação de base legal, ancorada na
racionalidade, para a qual convergem as outras formas legitimas de dominação,
corresponde ao desenvolvimento do capitalismo e a exigência da necessidade constante
de racionalização dos processos para otimização da produção e do lucro, só esse tipo de
dominação permite a organização de uma empresa com base em uma burocracia
apropriada para subordinar e ao mesmo tempo motivar ao subordinado pela promessa de
conseguir usar o sistema a seu favor. Em outras palavras, o subordinado acaba aceitando
as regras do jogo para tentar sair vencedor dele, assim como a submissão pelo interesse
explicitado em La Boétie.

Todas as formas de dominação são camufladas num projeto pseudodemocrático


que dá a ilusão aos governados de estarem decidindo os rumos políticos da sociedade.
Wellen Wood mostra como atualmente o regime de igualdade política, ao contrário da
democracia grega, consegue conviver naturalmente com a desigualdade econômica
tendo em vista a dicotomia entre condição cívica e posição de classe das sociedades
capitalistas:
“Na democracia capitalista, a separação entre a condição cívica e a posição
de classe opera nas duas direções: a posição socioeconômica não determina o
direito à cidadania – e é isso o democrático na democracia capitalista –, mas,
como o poder do capitalista de apropriar-se do trabalho excedente dos
trabalhadores não depende de condição jurídica ou civil privilegiada, a
igualdade civil não afeta diretamente nem modifica significativamente a
desigualdade de classe – e é isso que limita a democracia no capitalismo. As
relações de classe entre capital e trabalho podem sobreviver até mesmo à
igualdade jurídica e ao sufrágio universal. Neste sentido, a igualdade política
na democracia capitalista não somente coexiste com a desigualdade
socioeconômica, mas deixa fundamentalmente intacta.” (WOOD, 2015, 184).

Ellen Wood ainda mostra como dispersão social é uma lógica da fragmentação
capaz de desmobilizar e enfraquecer os movimentos sociais. O próprio movimento
histórico da democracia direta para a representativa indireta não era concebida apenas
como uma forma de distanciar o povo da política, mas também de favorecer as classes
proprietárias. “A 'democracia representativa', tal como uma das misturas de Aristóteles,
é a democracia civilizada com o toque de oligarquia.” (WOOD, 2015, p. 188).

Diante dessas análises, ficam claros os motivos das dificuldades de se buscar


alternativas de superação em razão do aparato do sistema. Além disso, quando todas as
formas de dominação falham, visto que a demanda não correspondida aumenta cada vez
mais a agressividade, e a encenação democrática não traz mais o efeito esperado, o
dominador usa o desespero como justificativa para um regime de força no lugar de um
regime democrático.6 O fundamentalismo liberal de destruição do Estado, portanto,
resulta num caos social. A crise da representatividade política é uma revelação da
falsidade do nosso projeto democrático que, na verdade, se mostrou um regime
oligárquico herdado dos EUA através de uma ditadura do poder econômico.

Essas observações do liberalismo atual tão defendido nos últimos tempos


poderiam imediatamente motivar diversas contraposições, como se, ao apontar a falha
do sistema, necessariamente se tivesse alternativa. Contudo, algumas questões poderiam
ajudar-nos a trazer ao menos um norte diante da atual conjuntura: porque o liberalismo
atual se distingue tão fortemente do liberalismo surgido no século XVII que defendia
não apenas a igualdade de direitos e a livre iniciativa, mas também trazia a ideia de uma
igualdade de oportunidades? Porque a Democracia atual não carrega mais os traços da
democracia grega na qual o cidadão não ficava preso às pressões econômicas da
propriedade e poderia até agir politicamente no sentido de coibir a desigualdade? Em
suma, aparentemente vivemos tanto sob uma falsa democracia, quanto sob um falso
liberalismo, pois os defensores das teses liberais só absorvem aquelas que defendem os
seus interesses descartando aquelas que poderiam ajudar a pensar numa sociedade cujos
cidadãos possuíssem igualdade de direitos e de voz.
A democracia liberal deixa intocada toda a nova esfera de dominação e
coação criada pelo capitalismo, sua transferência de poderes substancias do
Estado para a sociedade civil, para a propriedade privada e as pressões do
mercado. Deixa intocadas vastas áreas de nossa vida cotidiana – no local de
trabalho, na distribuição do trabalho e dos recursos – que não estão sujeitos à
responsabilidade democrática, mas são governadas pelos poderes da
propriedade, pelas “leis” do mercado e pelo imperativo do lucro.” (WOOD,
2015, p. 201)

Além disso, apesar de defenderem “a Mão Invisível do Mercado” e o “Estado


mínimo”, os defensores do dito liberalismo esporadicamente se utilizam a “mão
visivelmente solícita do Estado” para garantir seu poderio econômico.7

Se houvesse a possibilidade de defender o capitalismo e o liberalismo, em


primeiro lugar, deveria haver uma correção de sua prática alinhando-a a teoria. Seria

6
Vimos o exemplo do Golpe de 64, e recentemente a Intervenção Militar no Rio de Janeiro
7
Frequentemente o Estado atua no sentido de beneficiar grandes empresas com empréstimos a juros
baixíssimos, além de, em determinadas circunstâncias socorrer com verba do Tesouro instituições
financeiras: https://epocanegocios.globo.com/Empresa/noticia/2017/10/epoca-negocios-socorro-a-bancos-
deve-ter-ajuda-do-tesouro.html., acesso em 15/06/2018.
necessário que o liberalismo realmente trouxesse a igualdade de oportunidades, para só
depois pensar em liberdade econômica. No primeiro tocante estaria o papel do Estado
garantindo essa igualdade através de seus programas sociais e, no segundo tocante,
atuaria a livre iniciativa. Evidentemente, isso parece utópico, pois o próprio poder
econômico favorece a desigualdade social e consequentemente coloca uns à frente dos
outros na corrida meritocrática tão propagada. “Mas o liberalismo – até mesmo como
ideal, para não falar de sua realidade carregada de imperfeições – não está equipado
para enfrentar as realidades do poder numa sociedade capitalista, muito menos abranger
um tipo mais inclusivo de democracia do que o que existe hoje” (WOOD, 2015, p. 204).
Nesse sentido, resta ao Estado, ciente de seu papel político e social, e de sua
independência em relação ao poder econômico, promover a cidadania, fortalecer suas
instituições, integrando e valorizando a participação do povo nos espaços de poder.

Mas, como vimos, as mudanças não ocorrem rotineiramente pela base da


pirâmide. Como então pensar um Estado democrático que alimenta e é retroalimentado
pela participação popular? Aqui entraria o papel do intelectual, como bem delineado por
Sartre, o qual toma consciência da oposição entre a prática e a teoria, bem como das
ferramentas da ideologia dominante, e, como testemunha de um tempo em desordem, se
posiciona em relação aos valores deturpados da sociedade:
Essa tomada de consciência – ainda que, para ser real, deva se fazer, no
intelectual, desde o início, no próprio nível de suas atividades profissionais e
de sua função– nada mais é que o desvelamento das contradições
fundamentais da sociedade, quer dizer, dos conflitos de classe e, no seio da
própria classe dominante, de um conflito orgânico entre a verdade que ela
reivindica para seu empreendimento e os mitos, valores e tradições que ela
mantém e que quer transmitir às outras classes para garantir sua hegemonia.
(SARTRE, 1994, p.30)

O intelectual é definido por critérios como a racionalidade que destrói a noção


de classe criando o universal social e a radicalidade que destrói o irracional particular.
Vindo da burguesia ele é um teórico do saber prático, “é o homem cuja própria
contradição o leva a reencontrar-se se ele explicita esta contradição sobre as posições
dos mais desfavorecidos” (SARTRE, 1971, p.14). O intelectual, segundo Sartre seria o
“guardião da democracia” (SARTRE, 1994, p.53), pois contesta o caráter abstrato dos
direitos da democracia burguesia (que, diga-se de passagem, já percebeu a importância
do intelectual na formação de consciências e é quem o engendra), não porque quer
suprimi-los, mas por quer completá-los com direitos concretos, conservando a verdade
funcional da liberdade. Não seria isso a verdadeira democracia (igualdade de voz e de
direitos) e o verdadeiro liberalismo (igualdade de oportunidades)?

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

AMORIM, Paulo Henrique. O quarto poder: uma outra história. 1.ed. São Paulo:
Hedra, 2015
BACKES, Ana Luiza. Fundamentos da ordem republicana: repensando o pacto de
Campos Sales. Brasília (DF): Plenarium, 2006.
CHOMSKY, Noam. Mídia: propaganda política e manipulação. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2013
LA BOÉTIE, Étienne de; CLASTRES, Pierre; LEFORT, Claude; CHAUI, Marilena de
Souza. Discurso da servidão voluntaria. 4.ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.
SARTRE, Jean Paul. Em defesa dos intelectuais. São Paulo: 1994.
SARTRE, Jean Paul. O escritor não e politico? Lisboa: Dom Quixote, 1971
GOULART, João Vicente. Jango e eu: Memórias de um exílio sem volta. 1ª edição.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016 (pp.19-29)
WEBER, Max. “Os três tipos puros de dominação legítima”. In: COHN, Gabriel
(Org.) Max Weber: Sociologia. São Paulo: Ática, 7ª ed., 1999. (pp. 128-141)
WOOD, Ellen Meiksins. Democracia contra o capitalismo: a renovação do
materialismo histórico. São Paulo: Boitempo, 2003.
Entrevista do jornalista Paulo Henrique Amorim a João Vicente Goulart, filho do ex-
presidente João Goulart, deposto no golpe militar de 1964. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=dj-THPJsLMw, acesso em 15/06/2018

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