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Artigo: O Brasil, o capitalismo periférico-dependente, os militares e a guerra híbrida

Os atos de vandalismo nas sedes dos três poderes do Estado brasileiro ocorridos no 8 de
janeiro não devem apenas ser analisados sob o plano da indignação moral e tampouco dos
aspectos jurídico penais. Não que eles não importem. Pelo contrário, são dimensões
relevantes de análise dos lamentáveis fatos ocorridos e devem realmente causar repulsa assim
como a devida resposta das instituições policiais e jurídicas do Estado na apuração das
responsabilidades e punição para os responsáveis. Não obstante, o fato deve ser também
analisado sob o prisma de sua essência, um fenômeno de natureza política.

Neste sentido, os distúrbios provocados em Brasília devem ser compreendidos a partir de


perguntas chave que possam, tal qual uma bússola, nos conduzir em águas seguras rumo às
respostas. Para tanto, é importante questionar quem seriam os supostos beneficiários dos atos
daquele fatídico domingo. Da mesma forma, analisar o comportamento no mínimo estranho
das instituições encarregadas da proteção das instituições federais que simbolizam os poderes
do Estado. Mas as coisas não param por aí. Se faz necessário pensar o acontecido à luz das
características internas brasileira e do sistema internacional.

A quem aproveita os atos violentos de 8 de janeiro? Por que o Comando Militar do Planalto,
controlado pelo Exército e ao qual a guarda presidencial de aproximadamente 90 militares de
elite dos Dragões não agiu para defender o Palácio do Planalto, a sede do governo e do Poder
Executivo federal? Além disso, numa perspectiva dialética, por que a mídia deu uma cobertura
abertamente contrária aos atos golpistas e imputou ao ex-presidente Bolsonaro a
responsabilidade pelos atos? Da mesma forma, por qual razão a burguesia não apoiou o ‘golpe
de 8 de janeiro’ nem as forças armadas utilizaram meios de força? Por fim, por que os Estados
Unidos se apressaram a condenar os atos tidos como terroristas?

A tentativa de buscar respostas necessita de um exame histórico de longo prazo (estrutural ou


sistêmico, como gostam os cientistas sociais) e de curto prazo (conjuntural, caro aos cientistas
políticos). Feito isto, vamos às análises. Em primeiro lugar, no plano histórico e de longo prazo,
o moderno Estado brasileiro se consolidou, no curso do século XX em uma sociedade
contraditória e de classes, com uma revolução burguesa inconclusa, como diria Florestan
Fernandes e periférica e dependente do centro do capitalismo mundial, os Estados Unidos,
como diriam Rui Mauro Marini e Theotônio dos Santos. A Revolução política e econômica de
1930 e que se encerrou em 1990 nos legou uma sociedade com profundas desigualdades
sociais, mas urbanizada e fortemente industrializada, fazendo do Brasil uma das dez maiores
economias do mundo e um país em desenvolvimento.

O preço disto foi não ter mudado as estruturas sociais quem vem desde o período colonial,
pelo qual as elites do capitalismo brasileiro se associaram as elites pré-capitalistas e agrárias
da era colonial e do século XIX. Neste contexto específico, se formou uma importante
instituição permanente e chave que até os dias atuais tem tutelado a política nacional: as
Forças Armadas e, especialmente, o Exército brasileiro. Como em toda sociedade, seja ela pré-
capitalista ou capitalista, os militares são a burocracia estatal que provê segurança ao poder
político representado pelo Estado e pelos governantes. Com a emergência do Estado liberal
burguês brasileiro, as Forças Armadas passam a ser a instituição chave para garantir os
interesses de acumulação de capital da burguesia nacional, associada internamente aos
setores agrários e externamente ao predomínio do capitalismo norte-americano. Eis ai a
essência dos pactos entre as elites nacionais e internacionais sob as quais todas as crises e
formas de resoluções políticas no curto e médio prazo são decididas. A origem destes pactos
ou acordos se deu historicamente com a formação do capitalismo aqui no Brasil em estreita
relação com a hegemonia dos Estados Unidos no continente americano (Doutrina Monroe) e
no plano internacional e possui efeitos decisivos e condicionadores para as características dos
atos políticos ocorridos no Brasil desde 2013, 2016, 2018, 2022 e agora, 2023, no qual se
enquadra o 8 de janeiro.

A partir da década de 1990, com o fim da opção pelo socialismo real com o fim da União
Soviética, os Estados Unidos passaram a exercer uma unipolaridade de características
hegemônicas no sistema de Estados baseada na sua supremacia militar e econômica, irmãos
siameses e inseparáveis e personificados na expressão ‘complexo militar e industrial’, núcleo
das elites do poder em uma sociedade estatal capitalista. Ou seja, os políticos e seus partidos
dependem, em última instância, da classe burguesa e do estamento militar para governar.

Dentro desta lógica mais ampla, o Brasil, por ser dependente econômica e militarmente dos
Estados Unidos uma vez que nossas forças armadas não possuem real autonomia decisória, eis
que dependem da transferência tecnológica do Pentágono e estão associadas ao Comando Sul,
na Flórida, que exerce a coordenação das políticas de defesa dos estados latino-americanos e o
Brasil é o mais importante deles. Nesse sentido, um pouco antes do fim da Guerra Fria, o
regime ditatorial civil-militar brasileiro, por contrariar interesses estratégicos dos Estados
Unidos, foi fortemente pressionado no plano externo a negociar o fim do regime.
Internamente, o modelo de desenvolvimento dependente do endividamento externo e a crise
econômica, relacionados com a crise internacional dos anos 70 e 80 que sepultou o
keynesianismo e fez emergir o neoliberalismo, foi um duro golpe as elites civis e militares que
controlavam o Estado brasileiro desde que o projeto populista e nacional-desenvolvimentista
de Vargas, Jango e Brizola fora golpeado em 1964.

O regime militar foi em si cheio de contradições. Por um lado, perpetrou arbitrariedades


contra os direitos humanos e tenha imposto a Lei da Anistia e controlado a transição para a
democracia liberal simbolizada pelo centrão no Congresso e pela tutela constitucional do
artigo 142 da Constituição de 88. Por outro, modernizou a indústria e internacionalizou com
autonomia nossa política externa, resgatando, ainda que sob a ditadura, os princípios do
Estado desenvolvimentista keynesiano e criou importante parque industrial e tecnológico-
militar, pois mesmo após o golpe de 64, o pragmatismo político fez com que certo
nacionalismo conservador estratégico dos militares fosse mantido, em especial sob os
governos Geisel e Figueiredo.

Na medida em que as elites centrais que controlavam o principal estado capitalista global
passaram a ditar os rumos da política econômica e da política estratégica a partir dos anos
Carter e Reagan, entre 77 e começo dos anos 1980, pelas características da estreita associação
das nossas elites industrial e financeira, dependentes por vínculos com os oligopólios
transnacionais cujo centro de decisão são as grandes firmas financeiras, de petróleo, siderurgia
e alta tecnologia civil e militar dos Estados Unidos (e que conformam aquele complexo
industrial e militar acima mencionado), elas passaram a pressionar já em meados dos anos 70
os militares rumo ao retorno da democracia formal.

De outra parte, os próprios militares, desde a Segunda Guerra Mundial, passaram a depender
estruturalmente do Exército americano em termos de material bélico. Todavia, quando entre
os anos 70 e 80 os militares estavam ganhando autonomia relativa com projetos estratégicos
(concebidos entre os anos 30 e 50 por civis e militares nacionalistas) o uso da dívida externa,
do aumento das taxas de juros, assim como pressão política dos EUA contra a política de
comércio exterior brasileiro, potencializaram a inflação e estrangularam nossa economia, já
combalida por um modelo social excludente que não incorporou as massas trabalhadoras que
passaram já no fim dos anos 70 às grandes lutas sindicais contra a ditadura e que projetaram
Lula e o PT. A política de direitos humanos contra os militares, defendida por democratas mas
também republicanos nos Estados Unidos foi a pá de cal ao projeto de nacionalismo
autoritário que não podia ser tolerado nos marcos do neoliberalismo e da nova Guerra Fria e
que conduziria ao cenário de redemocratização e unipolaridade plena nos anos 90 sob os
ditames da grande potência sobrevivente à bipolaridade.

No plano doméstico brasileiro, o enfraquecimento das políticas industriais foi um efeito deste
cenário internacional definido pelas elites transnacionais hegemonizadas pelo capital
financeiro norte-americano e ao qual os grandes bancos brasileiros privados estão associados
na lógica do capitalismo periférico e dependente estruturalmente. Assim, a burguesia
industrial foi perdendo espaço assim como o projeto militar autônomo associado a elas e que
fora montado ao longo do regime civil-militar da ditadura e que sobreviveu à duras penas
durante o regime tulelado de Sarney.

A transição política e o presidencialismo de coalizão foi o resultado deste processo histórico


com raízes, portanto, interna e externa que se entrelaçam. O pouco de projeto nacional de
desenvolvimento estratégico que os militares brasileiros representavam desde 1930 foi
soterrado nos anos 1990 por conta dos interesses do capital nacional e internacional (norte-
americano) e que não podem ser dissociados dos interesses estratégicos dos Estados Unidos
em subordinar o Brasil aos seus cálculos geopolíticos, eis que o Brasil é o único país do
hemisfério ocidental com capacidade de se projetar como grande potência no sistema
internacional.

Todavia, num aspecto e este nada positivo, os militares conseguiram manter sua posição
estratégica no sistema político brasileiro: seu papel de tutor da democracia inconclusa e
liberal. Desde a proclamação da República, os militares buscaram tutelar o Estado nacional e
impedir a democratização e ascensão social das classes trabalhadoras. Este foi o aspecto
negativo pois como toda a força armada de um Estado burguês, cumpre o papel de coerção
das classes sociais subalternas e de proteção da classe burguesa e da classe média aquela
associada. E um dos raros aspectos que ao menos possuía que era o de defensor de um
projeto estratégico e nacionalista de desenvolvimento, desapareceu com a agenda neoliberal.
Desta forma chegamos à 2023 num cenário que praticamente fora criado entre os anos 80 e
90.

Cenário este acrescido com a reestruturação das esquerdas brasileiras desde os anos 80 e que
passaram a se enquadrar à lógica neoliberal das elites do capital e das forças armadas, por um
lado, e à tradicional e histórica tendência das elites brasileiras de cooptação e negociação pelo
alto, sem ouvir ou mobilizar as massas populares.

Neste quadro, a partir dos anos 2010, no contexto da crise econômica que faz parte da etapa
cíclica financeirização do capital, mas agora sob a hegemonia dos grandes bancos e fundos de
investimentos internacionais, o imperialismo (no sentido leninista) do ciclo de acumulação de
capital presidido pelos Estados Unidos enquanto ator hegemônico do sistema capitalista
internacional passa a sofrer o desafio chinês e russo no campo econômico e estratégico,
parceiros comerciais nos governos do PT. O Brasil é o país mais importante para os Estados
Unidos dentro do sistema da Doutrina Monroe e no contexto de uma disputa em torno da
hegemonia ou da multipolaridade que a Guerra na Ucrânia representa, o retorno a um Brasil
desenvolvimentista e anti-neoliberal, ainda que não rompe totalmente com os fundamentos
do capitalismo financeiro brasileiro e estadunidense, não pode ser tolerado. Tampouco
também uma perigosa autonomia das Forças Armadas no campo político no caso de uma
ditadura, para que não se repita eventual risco de autonomia como a criada pela ditadura
militar brasileira no passado recente.

Por outro lado, e na esteira das fases da guerra híbrida movida entre 2013 e 2018 contra o
Brasil e não apenas contra o PT, os atos de 8 de janeiro servem para múltiplos objetivos: 1-
fazer com que as Forças Armadas apontem como o responsável Jair Bolsonaro, como eventual
mentor dos atos de protesto ocorridos; 2- garantir que a parcela da pequena e média
burguesia que apoiava os bolsonaristas seja enfraquecida no curso da aliança tática e
momentânea do capital financeiro (mundial e nacional, associado as suas respectivas mídias
corporativas, como Estado de São Paulo, Rede Globo, etc.) com o PT, representada pelo
governo de ampla coalizão com setores de centro-direita como Alckmin (capital financeiro e
parte do que restou do PSDB) e Tebet (parcela do PMDB e agronegócio); 3- garantir que as
reformas estruturais iniciadas com o golpe parlamentar do impeachment de 16 se aprofundem
em prol dos interesses do capital financeiro ao qual os militares são aliados estruturais; 4-
garantir uma espécie de tutela tanto por parte das Forças Armadas como por parte da
Febraban e da Fiesp sob o governo de coalisão de centro-esquerda do PT para que este não se
conduza à esquerda com políticas de desenvolvimento autônomas internacionalmente e que,
no plano interno, redundem em inclusão social e aumento do mercado interno, com a
reversão da reforma trabalhista, reforma tributária, derrubada da Lei do Teto de Gastos e as
privatizações da Eletrobrás, Nuclebrás e continuidade da privatização em fatias da Petrobrás.

Assim, a guerra híbrida movida contra o Brasil tem no 8 de janeiro a conjunção de atores
sociais internos e externos que se aproveitariam do enfraquecimento do governo Lula no
médio e longo prazos. Aparentemente, tudo leva a crer que não interessa as elites
econômicas e militares nacionais associadas aos Estados Unidos um golpe clássico pelo menos
por enquanto. O objetivo pode ter sido uma forma de testar a reação e a força da esquerda
moderada do governo mas fundamentalmente enfraquecer o bolsonarismo dentro de uma
lógica de rearranjo das elites nacionais – fundamentalmente de direita e centro-direita. Em
princípio, caso o governo Lula, o qual reagiu assertivamente e com autoridade aos atos em
Brasília, passe a romper com a aliança tácita firmada com as elites burguesas para poder
enfrentar eleitoralmente a extrema direita bolsonarista, ai os mecanismos de baixo custo do
golpe parlamentar poderão entrar em curso.

Por outro lado, as elites dos Estados Unidos, tanto republicanas quanto democratas, não
parecem querer apoiar um governo de extrema direita que poderia conduzir o Brasil a um
estado de crise, anomia e até de guerra civil que poderia comprometer os ganhos de
acumulação de capital da fração das elites burguesa nacional e internacional num momento de
crise em que o centro da disputa de poder está na Eurásia contra a Rússia e a China. Por esta
razão é que os democratas de Biden, que representam neste momento o conjunto das elites
dos EUA, não apoiariam um golpe militar contra o governo Lula, desde que este se mantenha
dentro de uma política que não confronte os interesses geoeconômicos e geopolíticos das
elites e do Estado norte-americano.

Desta forma, o governo Lula, pela conjunção dos fatores acima mencionados, pode ganhar
maior espaço de manobra para enfrentar o movimento de 8 de janeiro e ganhar força para
poder se contrapor aos seus adversários que se encontram entranhados tanto no seio das
Forças Armadas, dentro do Estado brasileiro, como dentro do coração da burguesia nacional
que momentaneamente o apoia no governo de coalizão, assim como o apoio temporário dos
Estados Unidos.

Mas tudo isto é frágil e pode mudar ao sabor dos acontecimentos caso os interesses do capital
sejam afetados. Sem apoio financeiro interno e político externo (leia-se do Pentágono), os
militares brasileiros não arriscariam um golpe pois sempre que deram foi com apoio interno e
externo. No entanto, caso o governo venha a confrontar os fundamentos do neoliberalismo e
do capitalismo dependente e periférico à Washington, o Exército poderá ter apoio para
exercer um golpe a moda clássica, de tipo militar, no caso do golpe parlamentar não ter
sucesso, pois o espectro de um golpe clássico nunca desapareceu, apenas passou a ser
modernamente a ‘ultima ratio’, caso tudo o mais falhe, como manda a doutrina de guerra de
quarta geração gestada pelos think tank do Pentágono. A alternativa a isto será a não
necessidade de um golpe, com um governo domesticado. OU um governo democrático com o
protagonismo de Lula e a convocação organizada e firme das massas populares nas ruas contra
o neoliberalismo e o imperialismo. Oxála a última alternativa vingue em quatro anos! Simples
assim.

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