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A ambição desmedida e

criminosa dos EUA


Samir Amin
Abril de 2002

Primeira Edição: Publicado originalmente na revista brasileira Caros Amigos, edição


73, abril de 2002. http://carosamigos.terra.com.br/
Fonte: http://resistir.info/
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.

Desde os anos 80, quando é anunciado o colapso do


sistema soviético, desenha-se uma opção pela hegemonia que
conquista a classe dirigente dos Estados Unidos. Levados pela
vertigem de seu poder armado, desde então sem concorrente,
os Estados Unidos decidem afirmar sua dominação, pelo
desencadeamento de uma estratégia estritamente militar de
"controle do planeta".

A estratégia política de acompanhamento do projeto


prepara os seus pretextos, seja quando se trate do terrorismo,
da luta contra o narcotráfico ou da acusação de produção de
armas de destruição em massa.

A "guerra preventiva", formulada desde então como um


"direito" que Washington invoca para si, faz abolir logo de início
qualquer direito internacional. A Carta das Nações Unidas
proíbe o recurso à guerra, salvo no caso de legítima defesa; e
submete a condições severas sua eventual intervenção militar,
que deve ser comedida e provisória. Todos os juristas sabem
que as guerras empreendidas desde 1990 são perfeitamente
ilegítimas e portanto que, em princípio, os que assumiram a
responsabilidade de desencadeá-las são criminosos de guerra.
As Nações Unidas já são tratadas pelos Estados Unidos, mas
com a cumplicidade de outros países, como foi no passado
tratada a Liga das Nações pelos Estados fascistas.
A abolição do direito dos povos, já consumada, substitui o
princípio da igualdade pelo da distinção entre um Herrenvolk*
(o povo dos Estados Unidos e acessoriamente o de Israel) que
tem o direito de conquistar o "espaço vital" que julga
necessário, e os outros povos, cuja própria existência não é
nem mesmo tolerável, a não ser que não represente uma
"ameaça" ao desenvolvimento de projetos dos
autoproclamados "senhores do mundo". Tornamo-nos todos,
aos olhos do establishment de Washington, uns "peles-
vermelhas", quer dizer, povos que não têm direito à existência
a não ser na medida em que não prejudiquem a expansão do
capital transnacional americano.

ESTADO DA ECONOMIA

Quais são esses interesses "nacionais" que a classe


dirigente dos Estados Unidos se reserva o direito de invocar
como melhor lhe pareça? Na verdade, essa classe possui um
único objetivo - "fazer dinheiro" -, tendo o Estado americano
se colocado aberta e prioritariamente a serviço do segmento
dominante do capital constituído pelas transnacionais dos
Estados Unidos.

Esse projeto é imperialista no sentido mais brutal, pois não


se trata de gerenciar o conjunto das sociedades do planeta para
integrá-las num sistema capitalista coerente, mas somente de
saquear os seus recursos. A redução do pensamento social aos
postulados de base da economia vulgar, reforçada pela
disposição dos meios militares que se conhecem, é responsável
por essa derivação bárbara que o capitalismo carrega em seu
interior e que o desembaraça de todo sistema de valores
humanos, substituído pela submissão às pretensas leis do
mercado. Pela história de sua formação, o capitalismo
americano se prestava a esse reducionismo de modo ainda
melhor do que o das sociedades européias. Pois o Estado
americano e sua visão política foram formados para servir a
economia e nada mais, abolindo por isso mesmo a relação
contraditória e dialética entre a economia e a política. O
genocídio dos índios, a escravidão dos negros, a sucessão de
ondas de migrações substituindo a maturação da consciência
de classe pelo confronto de grupos que partilhariam pretensas
identidades comunitárias (manipuladas pela classe dirigente)
produziram uma gestão política da sociedade por um partido
único do capital, em que os dois segmentos partilham as
mesmas visões estratégicas globais, partilham retóricas
adequadas para se dirigir a cada um dos "eleitorados" da
pequena metade da sociedade que crê no sistema o bastante
para se dar o trabalho de ir votar. Privada da tradição pela qual
os partidos operários social-democratas e comunistas
marcaram a formação da cultura política européia moderna, a
sociedade americana não dispôs de instrumentos ideológicos
que lhe permitissem resistir à ditadura do capital.

Se esse projeto deve se desenvolver durante ainda um


certo tempo, ele não gerará mais do que um caos crescente,
exigindo uma gerência cada vez mais brutal a cada golpe, sem
visão estratégica a longo prazo. No limite, Washington não
buscará mais reforçar alianças verdadeiras, o que imporia fazer
concessões. Governos fantoches, como o de Karzai no
Afeganistão, cumprem melhor a tarefa enquanto o delírio da
potência militar levar à crença da "invencibilidade" dos Estados
Unidos. Hitler pensava assim.

"VANTAGEM DO PERDEDOR"

A opinião geral mais corrente é que o poder militar dos


Estados Unidos constituiria apenas a ponta do iceberg,
prolongando uma superioridade do país em todos os domínios,
notadamente os econômicos, e ainda os políticos e culturais. A
submissão à hegemonia que ele preconiza seria, portanto,
incontornável.

O exame das realidades econômicas, porém, não dá apoio


a tal opinião. O sistema produtivo dos Estados Unidos está
longe de ser "o mais eficiente do mundo". Ao contrário, quase
nenhum de seus segmentos teria certeza de vencer os seus
concorrentes num mercado verdadeiramente aberto como o
imaginado pelos economistas liberais. É prova disso o déficit
comercial do país que se agrava de ano para ano, tendo
passado de 100 mil milhões de dólares em 1989 a 450 mil
milhões em 2000. Além disso, tal déficit se refere a
praticamente todos os segmentos do sistema produtivo.
Mesmo o excedente de que se beneficiavam os Estados Unidos
no domínio dos bens de alta tecnologia, que era de 35 mil
milhões em 1990, desde então deu lugar a um déficit. A
concorrência entre o Ariane e os foguetes da Nasa, o Airbus e
o Boeing mostra a vulnerabilidade da vantagem americana.
Diante da Europa e do Japão para os produtos de alta
tecnologia, da China, da Coréia e dos outros países
industrializados da Ásia e da América Latina para os bens
manufaturados triviais, diante da Europa e do Cone Sul da
América Latina para a agricultura, os Estados Unidos não
triunfariam, provavelmente, sem o recurso dos meios "extra-
econômicos" que violam os princípios do liberalismo impostos
aos seus concorrentes!

A economia americana vive como parasita em detrimento


de seus parceiros no sistema mundial. "Os Estados Unidos
dependem, para 10 por cento de seu consumo industrial, de
bens cuja importação não é coberta pelas exportações de
produtos nacionais" (E. Todd., Depois do Império, página 80).

O mundo produz, os Estados Unidos consomem. A


"vantagem" dos Estados Unidos é a vantagem de um predador
cujo déficit é coberto pelo aporte de outros, consentido ou
forçado. Os meios usados por Washington para compensar
suas deficiência são de naturezas diversas: violações
unilaterais repetidas do liberalismo, exportação de
armamentos em grande parte impostos a aliados subalternos,
busca de rendas petrolíferas suplementares (que pressupõe a
imposição da ordem entre os produtores, motivo real das
guerras na Ásia Central e no Iraque). Resta dizer que o
essencial do déficit americano é coberto pelos aportes em
capitais provenientes da Europa e do Japão, aos quais se deve
acrescentar a punção exercida em nome do serviço da dívida
imposta à quase totalidade da periferia do sistema mundial.

A solidariedade dos segmentos dominantes do capital


transnacional de todos os parceiros desse trio é real, e se
exprime por sua adesão ao neoliberalismo globalizado. Os
Estados Unidos são vistos nessa perspectiva como os
defensores (militares, se necessário) desses "interesses
comuns". Washington não busca "partilhar com eqüidade" os
lucros de sua liderança. Os Estados Unidos se empenham, ao
contrário, em tornar vassalos seus aliados, e dentro desse
espírito não estão preparados para deixar a seus aliados
subalternos do trio mais do que concessões menores. Esse
conflito de interesses estará destinado a se agudizar a ponto
de desencadear uma ruptura na Aliança Atlântica? Não é
impossível, mas é pouco provável.

O conflito promissor se situa num outro terreno. O das


culturas políticas. Na Europa, uma alternativa de esquerda se
mantém sempre possível. Essa alternativa imporia
simultaneamente uma ruptura tanto com o neoliberalismo
quanto com o alinhamento às estratégias políticas dos Estados
Unidos. O excedente de capitais que a Europa se contenta até
agora em "colocar" nos Estados Unidos poderia então ser
alocado a um relançamento econômico e social, sem o que esse
relançamento continuará impossível. Mas, assim que a Europa
escolhesse, por esse meio, dar prioridade a seu
desenvolvimento econômico e social, a saúde artificial da
economia dos Estados Unidos entraria em colapso e a classe
dirigente americana se veria em confronto com seus próprios
problemas econômicos e sociais. Eis por que "a Europa será de
esquerda ou não será nada".

A LÓGICA DE HITLER

As causas que estão na origem do enfraquecimento do


sistema produtivo dos Estados Unidos são complexas. Mas são
estruturais. A mediocridade dos sistemas de ensino geral e da
formação, produto de um preconceito tenaz que favorece
sistematicamente o "privado" em detrimento do serviço
público, é uma das razões mais importantes da crise profunda
que a sociedade dos Estados Unidos atravessa.

A opção militarista dos Estados Unidos ameaça todos os


povos. É proveniente da mesma lógica que foi no passado a
lógica de Adolf Hitler: modificar pela violência militar as
relações econômicas e sociais em favor do Herrenvolk do
momento. Essa opção, ao se impor à frente do cenário
internacional, sobredetermina todas as conjunturas políticas,
pois a efetivação do desencadeamento desse projeto
fragilizaria a um ponto extremo os avanços que os povos
pudessem obter por suas lutas sociais e democráticas. Pôr em
xeque o projeto militarista dos Estados Unidos se torna então
a tarefa primordial, a responsabilidade maior, para todos. Sem
dúvida, um certo número de governos do Terceiro Mundo é
odioso. Mas o caminho para a necessária democratização não
passa, certamente, por sua substituição por regimes fantoches
vindos nos blindados do invasor, abandonando os recursos de
seu país à pilhagem das transnacionais americanas.

O combate para pôr em xeque o projeto dos Estados Unidos


é, com certeza, multiforme. Comporta aspectos diplomáticos
(defender o direito internacional), militares (se impõe o
rearmamento de todos os países para enfrentar as agressões
projetadas por Washington - nunca esquecer que os Estados
Unidos utilizaram armas nucleares quando tinham o seu
monopólio e renunciaram a elas durante o tempo em que não
tinham mais esse monopólio) e políticos (notadamente no que
se refere à construção européia e à reconstrução de uma frente
dos não-alinhados).

O combate contra o imperialismo dos Estados Unidos e sua


opção militarista é o combate de todos os povos, de suas
vítimas maiores da Ásia, África e América Latina, dos povos
europeus e japoneses condenados à subordinação, mas
também igualmente do povo americano. Saudemos aqui a
coragem de todos aqueles que, "no coração da besta", recusam
se submeter, como seus predecessores recusaram ceder ao
macarthismo dos anos 1950. Como aqueles que ousaram
resistir a Hitler, eles conquistaram todos os títulos de nobreza
que a história pode conceder. A classe dominante dos Estados
Unidos será capaz de voltar atrás do projeto criminoso a que
aderiu? Uma pergunta que não é fácil de ser respondida.
Evidentemente, algumas derrotas políticas, diplomáticas e
talvez mesmo militares poderiam encorajar as minorias que,
no seio do establishment dos Estados Unidos, aceitariam
renunciar às aventuras militares nas quais seu país se
engajou.

Se tivessem reagido em 1935 ou 1937, os europeus teriam


conseguido deter o delírio hitlerista. Reagindo somente em
setembro de 1939, eles se infligiram dezenas de milhões de
vítimas. Atuemos para que, diante do desafio dos neonazistas
de Washington, a resposta seja mais precoce.

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