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A alma americana debilitada – completo – SAPIENTIAM AUTEM NON VINCIT MALITIA 03/11/2023, 20:00

A alma americana debilitada –


completo
Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 14 de janeiro de 2008

O discurso dominante na grande mídia, no show business e nas


universidades dos EUA é hoje tão francamente anti-americano que só em
detalhes de estilo – se tanto – é possível distingui-lo das campanhas de
difamação empreendidas pela URSS nos anos 50 e 60. A elite americana
gaba-se de ter vencido a Guerra Fria, mas parece que foi
psicologicamente dominada pelo inimigo perdedor e acabou acreditando
em tudo o que ele dizia contra ela. A vingança póstuma dos soviéticos
brilha nas páginas do New York Times , no horário nobre da CBS e nos
filmes de Michael Moore e George Clooney com um esplendor que nem
Willi Münzenberg, o gênio da desinformação comunista, jamais teria
ousado sonhar.

O que quer que se diga contra o governo americano, contra os


militares americanos, contra a cultura americana parece hoje gozar de
credibilidade automática, além de poder ser gritado desde o alto dos
telhados sem o menor temor de uma resposta exasperada, ao passo que
toda palavra pró-americana tem de vir cercada de precauções
politicamente corretas, por medo de represálias infalíveis e ruidosas, se
não de um processo judicial. Acompanhar o debate político americano é
confirmar diariamente o sentido profético do verso de William Butler
Yeats: ” The best lack all conviction, while the worst are full of passionate
intensity .” Algo mudou radicalmente no coração da América na segunda
metade do século XX, e mudou exatamente no sentido em que os mais
odientos inimigos do país teriam desejado que mudasse.

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Como isso foi possível? Os agentes da mudança querem fazer-nos


crer que foi tudo um processo espontâneo, natural e inevitável, dando ao
curso da transformação a autoridade de uma lei histórica impessoal que
só a tacanhice reacionária ousaria contestar. Mas há tempos já
compreendi que leis históricas impessoais são quase sempre mera
camuflagem de ações humanas que desejariam passar despercebidas
para que seus efeitos se recubram de uma aura de mistério divino.

A mudança que debilitou a alma americana foi precipitada por três


grandes e bem sucedidas operações de desinformação que, por serem
lançadas desde Washington e não desde Moscou, conseguiram enganar a
nação inteira e forjar um novo “senso comum” (no sentido gramsciano do
termo) a cuja influência nem os mais conservadores e patriotas escapam
por inteiro. Nas três ocasiões as mentiras cuidadosamente elaboradas
pelo próprio governo para lançar sobre os EUA a culpa pelas ações
maliciosas de seus inimigos não só se tornaram verdade oficial, até hoje
repetida uniformemente pela mídia e pelo sistema de ensino, mas se
propagaram pelo mundo, criando a imagem monstruosamente deformada
que hoje alimenta e legitima o ódio anti-americano por toda parte. Pode
parecer absurdo que governantes escolham acumpliciar-se à difamação
do seu próprio país para evitar problemas com a URSS ou para salvar sua
própria imagem eleitoral, mas foi exatamente isso o que fizeram três
presidentes americanos, dois dos quais, por ironia, são apresentados pela
retórica esquerdista como personificações exemplares do anticomunismo
e do “imperialismo ianque”.

As três operações foram concebidas nas altas esferas do Partido


Democrata, mas pelo menos uma delas com intensa colaboração
republicana. Três livros recentemente publicados, um dos quais já
comentei aqui e o outro mencionei de passagem (v. Lições da Guerra Fria
e A autoridade religiosa do mal), revelam por fim o que se passou por trás
do palco nessas ocasiões, as incríveis maquinações de políticos e
jornalistas que por interesses imediatistas não hesitaram em favorecer o

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inimigo e legar às gerações seguintes um país cada vez mais


enfraquecido moralmente.

O primeiro desses episódios foi a operação montada pela


administração Harry Truman – e prosseguida fielmente por Eisenhower –
para negar ou dissimular a presença maciça de agentes soviéticos em
altos postos do governo americano, especialmente no Departamento de
Estado, bem como em funções técnicas e administrativas onde tinham
acesso a informações secretas de natureza militar.

A história é contada com detalhes e extensa documentação por M.


Stanton Evans em Blacklisted by History. The Untold Story of Senator
Joseph McCarthy and his Fight Against America ‘s Enemies , New York ,
Crown Forum 2007. Enquanto vocês não lêem o livro, podem ouvir um
bom resumo feito pelo autor na Heritage Foundation, com comentário de
Herbert Rommerstein, ele próprio responsável por importantes pesquisas
sobre a infiltração soviética nos EUA (v. Blacklisted by History: The Untold
Story of Senator Joe McCarthy).

Para fazer uma idéia dos riscos estratégicos envolvidos na


situação, basta saber que praticamente toda a orientação da política
norte-americana na China durante a revolução comunista foi decidida
com base em relatórios forjados por agentes soviéticos infiltrados no
serviço diplomático americano em Beijing. Mediante falsificações
prodigiosas, esses agentes conseguiram persuadir o governo de
Washington a sonegar ajuda a seu aliado Chiang Kai-Chek e a apoiar as
tropas comunistas de Mao Dzedong, que sem isso jamais teriam
conseguido derrubar o governo chinês e instaurar a mais sangrenta das
ditaduras genocidas que o mundo já conheceu. O embaixador americano
Patrick Hurley percebeu a trama e avisou Washington em tempo, mas
suas mensagens foram desprezadas. Sentindo-se insultado, Hurley pediu
demissão, sendo substituído pelo general George Marshall, que
acreditava naqueles relatórios como se fossem evangelhos revelados.

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Marshall não era pró-comunista, evidentemente, mas se o seu


procedimento no caso não foi um exemplo claro daquilo que Eric Voegelin
chamava de “estupidez criminosa”, não sei o que mais possa se enquadrar
nessa classificação. Após o recorde genocida de 70 milhões de pessoas,
o governo chinês, acumulando bombas atômicas com o dinheiro que lhe é
facultado generosamente pelos investidores americanos, é hoje o maior
risco de segurança para os EUA.

Alertado sobre esse e outros inumeráveis casos de infiltração soviética, o


governo Truman optou por bater no carteiro, fazendo tudo para dar a
impressão de que o único perigo sério para a América era o
anticomunismo, especialmente o do Senador Joe McCarthy, cuja imagem
demonizada ainda permanece viva na memória mundial. Para obter esse
resultado, a tropa-de-choque de Harry Truman não hesitou em dar
sumiço a documentos essenciais que, só agora revelados, mostram que
em substância todas as acusações lançadas por McCarthy eram
verdadeiras e até modestas, em comparação com as dimensões reais do
problema. Além de sonegar provas e proteger-se por trás de testemunhos
falsos, o governo Truman, em vez de afastar os suspeitos, preferiu
apadrinhar suas carreiras, permitindo que subissem na hierarquia e
continuassem prestando serviços à ditadura soviética com dinheiro dos
contribuintes americanos.

Toda uma cultura de antimacartismo que se espalhou pelos livros


didáticos, pelo cinema e pelo jornalismo teve origem nesse
empreendimento de falsificação proposital. As conseqüências disso
prolongam-se até hoje, fazendo com que os americanos, arrependidos de
pecados que jamais cometeram contra os comunistas, sintam mais pavor
ante a possibilidade de um “retorno à era McCarthy” do que ante a de um
ataque conjugado de generais chineses e radicais islâmicos.

O segundo episódio da série veio quando Lee Harvey Oswald matou o


presidente John F. Kennedy em 22 de novembro de 1963. Tanto na Casa

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Branca quanto na CIA ou no FBI, todo mundo sabia que Oswald era um
comunista fanático e que seu intuito ao atirar em Kennedy fôra o de
frustrar qualquer iniciativa americana contra a ditadura de Fidel Castro.
Aterrorizado ante a perspectiva de que uma explosão nacional de revolta
anticomunista respingasse sobre o Partido Democrata, reavivando
suspeitas do tempo de Harry Truman, o presidente Lyndon Johnson fez o
que podia para que a comissão Warren desviasse as atenções desse
ponto sensível, explicando o crime de Oswald não como resultado de
suas convicções ideológicas, mas de motivações genéricas como
instabilidade emocional, problemas de família, etc. Por incrível que
pareça, a comissão consentiu em analisar o mais famoso homicídio
político do século XX sem falar em política. Vindo em socorro do
presidente, a mídia chique e os intelectuais iluminados produziram então
uma caudalosa literatura de pretensões pseudo-sociológicas, que lançava
a culpa do delito sobre a “cultura americana de violência” e outras
generalidades ocas que, no acerto final, eram debitadas na conta dos
conservadores. O discurso anti-americanista da New Left, que então
começava a ganhar algum destaque, recebeu assim um poderoso apoio
vindo do próprio governo de Washington contra o qual ele voltava a sua
histérica eloqüência. Esse discurso acabou por se incorporar no “senso
comum”, ao ponto de que hoje é repetido rotineiramente pela grande
mídia sem que ninguém note nisso nada de estranho. O livro que
descreve essa imensa mutação psicológica que nasceu nas altas esferas
de Washington e se propagou por toda a cultura americana é Camelot and
the Cultural Revolution. How the Assassination of John F. Kennedy
Shattered American Liberalism, de James Piereson (New York, Encounter
Books, 2007).

O mais irônico em tudo isso é que, se Lee Oswald, convertido ao


comunismo desde a adolescência, não podia de maneira alguma ser
considerado representativo das correntes reacionárias supostamente
responsáveis pela “violência americana” que o teria induzido ao
homicídio, muito menos poderia sê-lo o fanático palestino Sirhan Bishara
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Sirhan, que em 1968 assassinou o irmão do ex-presidente, Robert


Kennedy. Não por coincidência, hoje sabemos que a Autoridade Palestina
da Yasser Arafat foi de cabo a rabo uma criação da KGB (v.
http://www.weizmann.ac.il/home/comartin/israel/pacepa-wsj.html), mas,
na época, a incansável fábrica de mitos da elite esquerdista conseguiu
fazer que dois crimes praticados por agentes pró-comunistas contra dois
políticos notoriamente anticomunistas parecessem obras da “direita
reacionária”, e que essa versão rigorosamente invertida da realidade se
incorporasse à psique americana tão profundamente que será preciso
muitas décadas para desarraigá-la, se ainda for possível.

A terceira grande mentira, também definitivamente incorporada aos


rituais do masoquismo pseudo-moralista da América contra si mesma, foi
igualmente obra de Lyndon Johnson. Após ter dificultado por todos os
meios possíveis a ação das tropas americanas no Vietnã, Johnson tirou a
conclusão lógica da sua própria estratégia, transfigurando a vitória em
derrota. Em 31 de janeiro de 1968, o exército norte-vietnamita de Ho Chi-
Minh lançou uma grande ofensiva contra os americanos e sul-vietnamitas.
A idéia era ocupar de uma vez todas as cidades do Vietnam do Sul, a
começar pela capital, Saigon, preparando um levante geral com o auxílio
dos guerrilheiros vietcongues. Militarmente, a ofensiva foi um fracasso
monumental. Os comunistas perderam em poucos dias cinqüenta mil
soldados e todos os objetivos que haviam conquistado. Mesmo o famoso
ataque à embaixada americana em Saigon foi um fiasco: nem um único
vietcongue conseguiu entrar no edifício – todos morreram na porta.
Como, no entanto, o exército americano, procedendo segundo a norma de
praxe nessas ocasiões, retirasse velozmente os funcionários civis por
meio de helicópteros colocados no topo da embaixada, as imagens da
retirada foram exibidas pela TV americana como provas de pânico geral e
indício certo da derrota iminente do Vietnam do Sul. Quando o presidente
Johnson viu essas cenas assim interpretadas pelo veterano comentarista
de TV Walter Cronkite, ponderou: “Se perdi o Cronkite, perdi a nação.” O
comandante norte-vietnamita, general Giap, deu-lhe toda a razão, ao
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admitir que sua principal arma contra o Vietnã do Sul tinha sido a mídia
americana. Endossando a lenda da derrota americana, Johnson impôs a
seu país uma humilhação que a mídia elegante e a intelectualidade
tagarela não cessaram de celebrar desde então como um castigo justo
imposto ao povo reacionário, fanático e violento que perseguira inocentes
na era McCarthy e assassinara dois Kennedys…

Só agora, com o primeiro volume do livro consagrado pelo historiador


Mark Moyar à guerra do Vietnã, a realidade da vitória artificialmente
travestida em derrota começa a aparecer. Leiam Triumph Forsaken. The
Vietnam War 1954-1964 (Cambridge University Press, 2006).

Nenhum outro país do mundo teve tantos traidores por milha quadrada
quanto os EUA. Toda a mitologia anti-americana que circula no mundo
originou-se em Washington e Nova York – com nada mais que leves
empurrões iniciais da KGB. Como os EUA conseguiram sobreviver a tão
graves mentiras lançadas contra o país por seus próprios governantes e
por seus mais destacados líderes intelectuais, eis algo que só pode ser
explicado pela obstinada permanência residual do apego popular às
tradições americanas. É verdade que nós, brasileiros, não precisamos vir
à América do Norte para conhecer um povo bom governado por
trapaceiros. Mas a pergunta que não me sai da cabeça é se os trapaceiros
de Brasília teriam subido tão alto sem a ajuda dos de Washington.

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