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1 de março de 2022.

19:35

Sobre a guerra (por Marcos Rolim)

Pelos riscos de uma escalada do conflito, cabe à esquerda


comprometida com a democracia se somar a todos os esforços
pela paz

Foto: Sergei Malgavko/Agência TASS

Václav Havel, ex-presidente da República Checa, foi um revolucionário


improvável. Não possuía qualquer carisma, não era um bom orador,
costumava ser irônico e empregava conceitos filosóficos quando,
aparentemente, não era o caso. Preso várias vezes por conta de suas
posições políticas, ele costumava dizer que a única forma de resistir a uma
tirania é viver na verdade. Essa expressão, “viver na verdade”, que deu
origem a um livro com uma coletânea de ensaios dele (Living in Truth), não
significa, é claro, “estar de posse da verdade”. O sentido da máxima é bem
diverso. Trata-se de um compromisso de natureza ética que corresponde a
chamar as coisas pelo seu nome, permitir, portanto, às palavras a densidade
que elas possuem, o peso que elas carregam como tradução do mundo. E
fazê-lo radicalmente, mesmo quando se erra, de forma que seja possível
corrigir os rumos assim que o erro for detectado.
Por conta de um artigo escrito em 1978, Havel cumpriu 5 anos de prisão, o
que abalou sua saúde. Foi monitorado constantemente pelos agentes da
polícia política, perseguido, ridicularizado e, mesmo aos olhos do ocidente,
tido como um “sonhador”. Em 1989, ele foi um dos líderes da chamada
“Revolução de Veludo” que colocou abaixo o governo comunista e o regime
de partido único. Havel esteve até o final de sua vida comprometido com a
luta contra as ditaduras e apoiava a oposição russa a Putin no seu direito de
dizer a verdade a um regime fundado na mentira.
Lembrei de Havel quando comecei a ler posts de ativistas da esquerda de
apoio à invasão da Ucrânia e à “guerra de escolha” decidida por Putin. O
primeiro grande movimento para dobrar a realidade é inserir um fato
incontestável, claro e brutal como a guerra, dentro de uma moldura capaz
de dissolvê-lo. Assim, por exemplo, Putin proibiu que a imprensa de seu país
use a expressão “guerra” para se referir aos acontecimentos da Ucrânia. O
que está ocorrendo, segundo o cleptocrata russo, são “manobras militares”.
Na esquerda brasileira e na socioconfusão que a circunda, o que se diz é
que “a culpa pela guerra é da Otan e dos Estados Unidos”. Essa foi, aliás, a
síntese oferecida por um dos ideólogos petistas, Breno Altman, em artigo na
Folha de São Paulo nesta terça-feira (01). Altman, para quem não sabe, é o
estrategista que, em 2018, às vésperas da votação no primeiro turno,
sustentou, em uma live, que “Bolsonaro será o adversário ideal no segundo
turno”. Um homem de visão, como se percebe. Pois bem, o texto de Altman
é estruturado em inverdades, do começo ao fim. Ele começa afirmando que,
em 2014, houve “um golpe” que depôs o presidente da Ucrânia, com o apoio
dos EUA. Na verdade, o Euromaiden, movimento de protesto que reuniu
milhares de pessoas na praça central de Kiev, foi uma revolução
democrática que depôs um presidente depois de três meses de ocupação
pacífica das ruas e de bárbara repressão da Berkut, a polícia assassina à
serviço do governo e que foi dissolvida após a queda de Víktor Fédorovytch
Ianukóvytch, aliado de Putin. Quem tiver dúvida sobre essa caracterização
pode assistir ao documentário Winter on Fire (Netflix), todo ele gravado
durante os protestos, e tirar suas próprias conclusões. Depois, Altman
afirma que Putin optou por “ataques que destruíssem o aparato armado do
vizinho”, o que é uma forma de defender a guerra como “defensiva” quando
nunca houve, de parte da Ucrânia, qualquer ameaça à Rússia (aliás, qual
país fronteiriço à Rússia cogitaria semelhante estultícia?) e quando até as
pedras sabem que a ofensiva russa tem também alvos civis. Putin, no mais,
afirmou que a Ucrânia sequer é um país verdadeiro, ou seja, para ele, a
Ucrânia é parte da Rússia. Ao final de seu texto, o articulista sentenciou: “a
crise ucraniana conclui um período histórico no qual a hegemonia norte-
americana era tida como incontestável. Depois de 30 anos, a ordem bipolar
agoniza sob os pés de uma Rússia reerguida”. Ou seja, Altman saúda a
guerra e vê com otimismo o possível fortalecimento de uma ditadura que
coloca o mundo a beira de uma guerra mundial brandindo suas ogivas
atômicas.
Ainda que o argumento do “expansionismo da OTAN” fosse aceito, ele não
justificaria a guerra. O que ocorre, entretanto, é que os países do leste da
Europa, que foram dominados por 70 anos por governos títeres de Moscou
e que sentiram na pele os efeitos de regimes liberticidas, corruptos e
sanguinários, têm sobradas razões para temer o expansionismo russo.
Vários deles sofreram intervenções militares quando produziram revoluções
democráticas. Foi assim na revolta da Hungria em 1956, onde se lutava por
“um socialismo verdadeiro” e as tropas soviéticas produziram um massacre
matando 20 mil pessoas; foi assim na Primavera de Praga, em 1968,
soterrada com a invasão de 500 mil soldados russos e mil tanques. Por todos
os lugares onde se conheceu o que bandidos como Nicolae Ceausescu, da
Romênia; Todor Zhivkov, da Bulgária e Erich Honecker da Alemanha
Oriental, para citar apenas três deles, foram capazes de fazer, há um
legítimo e compreensível temor do “grande irmão” do leste e uma demanda
por segurança que encontrou seu leito natural na União Europeia. Esses
sentimentos em todo o leste europeu remontam à luta contra o ideal da
“Grande Rússia” dos czares, se prolongou em todo o período soviético e se
atualiza com o expancionismo russo da era Putin, materializado no conflito
com a Chechênia, na guerra contra a Geórgia e na anexação da Crimeia.
A política imperialista dos EUA, que alimenta várias guerras no mundo e que
sustenta ditaduras como a Arábia Saudita, não constitui argumento a favor
de Putin. Lembrar o histórico de descumprimento das leis internacionais
pelos EUA no momento em que seu governo se opõe à guerra na Ucrânia
seria o mesmo que, diante da anexação da Áustria em 1938, por Hitler,
denunciar os EUA pela tomada do Texas e da Califórnia do México. Da
mesma forma, o fato de que há grupos neonazistas na Ucrânia nada tem a
ver com a guerra – aliás, esses grupamentos que alcançaram 2% de votos
nas últimas eleições ucranianas e não garantiram uma só vaga no
Parlamento, são anti-Rússia e também anti-União Europeia e anti-EUA. A
guerra poderá, entretanto, empoderar esses grupos, o que já vimos ocorrer
com as milícias no Afeganistão armadas pelo ocidente.
Nesse momento, o povo Ucraniano resiste bravamente e dá extraordinária
demonstração ao mundo – como já o havia feito em 2014 – de dignidade e
compromisso com seu País. Se há uma esquerda que é incapaz de ver isso
e que, mais grave, se lança nos braços de um ditador que deveria ser levado
à corte de Haia, então convém sinalizar outra posição – e rápido – antes que
a opinião pública, mais uma vez, seja informada que a esquerda brasileira
não só carrega alegremente ditaduras em sua mochila, mas também saúda
a guerra.
Uma última palavra sobre o ditador Vladimir Putin que governa a Federação
Russa desde 1999 ao lado de bilionários e da máfia: ex-agente da KGB, ele
é, já há muitos anos, a principal referência política de quase todas as
lideranças de extrema-direita no mundo, desde Marine Le Pen, da Frente
Nacional (FR), Nigel Farage do Partido da Independência do Reino Unido
(UK) e Heinz-Christian Strache do Partido da Liberdade (Aus), até Donald
Trump (US). (confira aqui, aqui e aqui). Sua aproximação com Bolsonaro,
aliás, não se deu por acaso. Graças ao seu combate ao liberalismo e aos
Direitos Humanos, a sua postura homofóbica e à defesa dos “valores morais
da família”, travestidos de cristianismo, Putin é o contraponto de tudo aquilo
que o mundo construiu como promessa emancipatória e tradição
democrática.
Por tudo isso, pelos horrores de uma guerra desprovida de qualquer
legitimidade; pelo dever moral de emprestar solidariedade ao povo
ucraniano e a todos os refugiados, entre eles africanos e indianos que
tentam sair da Ucrânia e que têm sido alvo de racismo na fronteira da Polônia
e outras nações europeias; pelos riscos de uma escalada que amplie o
conflito ao ponto de mundializá-lo, cabe à esquerda comprometida com a
democracia se somar a todos os esforços pela paz, denunciando a posição
pró Putin de Bolsonaro e das lideranças políticas que apoiam a agressão
russa.
(*) Marcos Rolim é Doutor e mestre em Sociologia e jornalista. Autor, entre
outros, de “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da
violência extrema” (Appris, 2016).

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