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Eram elas: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Cuba, México, Porto Rico, São Domingos, Uruguai e
Venezuela. Informação obtida na obra de Karepovs (2017).
haviam ocupado a secretaria do partido, além dos decemistas 2 . Após reagir com a
proibição da ampla divulgação do texto, a direção do partido cede ao movimento que se
alimentava da circulação ilegal da carta e abre um debate através da imprensa oficial. A
cúpula também aprova uma resolução – com a assinatura de Trotsky – com supostas
propostas democráticas. Trotsky uniu-se à Oposição dos 46, também porque o objeto dos
embates já habitava suas reflexões e o aproximara de Lenin em seus últimos momentos.
Em dezembro, no Pravda, Trotsky publicou artigos criticando a relação da velha guarda
com a nova geração de comunistas, pois aquela usava o argumento da experiência
revolucionária para sobrepor-se aos mais jovens. Além do aspecto geracional, destacava
a centralidade dos mecanismos de administração do Estado, que absorvera parte dos
efetivos operários e punha em perigo o partido, que não estava livre de uma degeneração
burocrática. O momento em que Trotsky volta-se para o risco da burocratização também
foi a solidificação da aliança entre Stalin, Zinoviev e Kamenev.
O segundo período da interpretação de Trotsky sobre a direção do Estado soviético,
teria como formulação principal as teses expressas em Stalin, o grande organizador de
derrotas, obra publicada em 1930 como livro, mas constituída por trabalhos escritos
durante o seu exílio em Alma Ata, Cazaquistão, em 1928. Derrotado no interior do partido,
Trotsky considerava que o stalinismo compreendia uma ala centrista do Partido
Comunista da União Soviética, que oscilava entre tendências de esquerda e os setores
mais à direita, representados por Bukharin.
Sua produção ganha outros contornos durante a década de 1930, cujo livro A
revolução traída realiza boa síntese. Nele, Trotsky aponta que o estágio atingido pela
União Soviética não era o início do comunismo, mas uma etapa transicional que contava
com a sobrevivência de muitos elementos de um Estado burguês, mesmo sem a burguesia
no comando. Esse ponto de partida era compatível com as teses de Marx e Lenin acerca
do Estado, sobretudo deste último, que se dedicou à crítica da teoria e da realidade em O
Estado e a revolução. A fórmula permitia compreender a contradição do Estado operário,
que abolira a propriedade burguesa dos meios de produção, mas manteve as normas de
divisão do produto, através do sistema de salários. Na Rússia, a escassez dava ao corpo
2
Pierre Broué, em Comunistas contra Stalin (2008), transcreveu parte da carta escrita pela Oposição dos
46.
burocrático o poder de atuar em benefício próprio, acumulando privilégios na distribuição
dos bens, já que não tinha acesso à propriedade.
Segundo Trotsky, essa burocracia não havia criado uma forma diferente de
propriedade ou se constituído em uma nova classe, mas era o sintoma da diferenciação
social persistente na União Soviética. No capitalismo, a burocracia representava
politicamente o setor dominante socialmente, no stalinismo, a burocracia teria se tornado
uma camada parasitária, que se elevara sobre as classes sociais para garantir seus
privilégios, era bonapartista. Contraditoriamente, a casta privilegiada precisava defender
a forma de propriedade estatal, que não era sinônimo de socialismo, mas era condição
inicial de sua construção. Desse modo, os trotskistas deveriam defender a União Soviética
de ataques externos a partir da compreensão de que mantinha-se ali um Estado operário,
posição sustentada por Trotsky até a morte.
Mas ideias divergentes das teses de defesa incondicional da União Soviética
brotavam entre os partidários de Trotsky. Em agosto de 1939, Alemanha e URSS
assinavam um pacto que permitiu aos alemães marchar sobre a Polônia e aos russos a
incorporação da Lituânia à sua zona de influência. Em outubro do mesmo ano, tropas
soviéticas invadem a Finlândia. Na seção norte-americana da IV Internacional opera-se
um deslocamento importante: James Burnham e Max Schachtman alinharam-se para
defender que a URSS perdera seu caráter operário e que suas ações militares eram
imperialistas. Ao seu redor, formaram um grupo minoritário, mas que deslocou setores
importantes do Socialist Workers Party (SWP) e dirigentes da IV Internacional, a exemplo
de Mário Pedrosa.
Em setembro de 1939, com a abertura do debate no SWP, Trotsky prepara o
documento A URSS na guerra, tratando dos acontecimentos sugeridos pelo pacto
Molotov-Ribbentrop para reafirmar as teses da IV Internacional sobre a União Soviética.
O fundamental, para Trotsky, era identificar o que era uma disputa pela linguagem –
camada parasitária ou nova classe, Estado operário ou coletivismo burocrático – e o que
postulava uma mudança nas tarefas políticas da internacional. Se a divergência fosse
apenas retórica, não havia motivo para maiores problemas, no entanto, os
questionamentos dentro e fora da IV indicavam que um grupo desejava a transformação
da atitude dos trotskistas diante da guerra. Sendo assim, Trotsky explora os pontos da
divergência e insere o problema da guerra também sob o ponto de vista daquilo que
merecia ser defendido pelo proletariado: a propriedade estatal.
Desse modo, na iminência do avanço russo sobre territórios ao oeste, Trotsky
afirmava que a burocracia expandiria essa forma de propriedade e levaria as contradições
da URSS aos outros países. Como conclusão política, os territórios dominados deveriam
ser defendidos diante de uma invasão nazista, pois as relações sociais progrediriam com
a ocupação soviética, mas a questão evidenciava problemas que não poderiam ser
deixados de lado, pois a transformação do caráter da propriedade seria realizada pelos
métodos da burocracia e isso poderia suplantar a ideia da revolução dos trabalhadores.
Dessa forma, as teses da IV Internacional continuavam corretas para Trotsky, pois
consideravam a superioridade das relações sociais estabelecidas na URSS ao mesmo
tempo em que pregavam a revolução política para remover a burocracia do poder.
Os artigos de Trotsky reafirmando os princípios mantidos até aquele momento não
foram suficientes para cessar as divergências, que se transformaram em cisão. Mário
Pedrosa, em 9 de novembro, ainda residindo nos Estados Unidos e membro do Comitê
Executivo Internacional (CEI) da IV Internacional, sistematiza suas posições no artigo A
defesa da URSS na guerra atual, tornando a situação do organismo dirigente mais
complexa pois a posição minoritária no SWP tinha maioria na CEI.
Pedrosa defendia que as consequências da assinatura do pacto entre alemães e
russos tornava urgente a discussão sobre o princípio de defesa da União Soviética. Para
ele, o movimento agrupado na IV Internacional sempre reconheceu o direito dos russos
aos giros e acordos diplomáticos para evitar guerras ou preservar a existência do poder
soviético, mas a situação aberta em agosto de 1939 seria diferente. O brasileiro via, pelo
lado dos alemães, que Hitler mirava a Inglaterra ao chegar ao acordo com os russos e que
esses se aproveitariam do desmanche do império colonial britânico para estabelecer um
novo tipo de dominação sobre as revoluções coloniais. Como exemplo imediato,
apresentava a expansão russa sobre os países bálticos e a iminente incursão sobre a
Finlândia.
Ninguém, acredito, ousará afirmar que Stalin está prestes a libertar a Finlândia
ou está indo lá para apoiar a montante revolução proletária. Ninguém seria
capaz de dizer, tampouco, que, na atual conjuntura, a Rússia se defende de um
ataque imperialista. Essa seria apenas uma guerra de banditismo de uma grande
potência contra um pequeno país. Será, portanto, uma guerra de caráter
extremamente reacionário contra um pequeno país. (PEDROSA, 2005, p. 300)
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Karepovs (2001) aponta que Mário Pedrosa, Max Schachtman e C.R.L James participaram de um encontro
da minoria do SWP e subscreveram suas teses, além de apoiar a constituição de uma fração pública do
partido.
como direçção política. Diante disso, Pedrosa o enviou uma carta falando da fragilidade
da IV Internacional e da centralidade que o partido norte-americano detinha para a
existência da organização. Por fim, reclamava democracia e autonomia para que a direção
da internacional questionasse as teses consolidadas desde a construção de uma fração por
Trotsky nos anos 1920.
Havia um duplo movimento nas palavras de Lenin. Um era o alerta para o tamanho
do aparato partidário e estatal, o outro era pensar na pessoa certa para deter esse poder.
Assim, as advertências à postura de Stalin continuaram sendo ditadas nos dias seguintes.
No dia 4 de janeiro de 1923, Lenin sentencia que era preciso substituir Stalin do cargo
que ocupava por um homem que tivesse outras características. Moniz destaca que a
tradução trocava um termo usado por Lenin, amenizando o julgamento sobre Stalin:
Ainda haveriam outros trechos suprimidos, dos quais Moniz faz citações. O
“testamento” de Lenin confundia-se com a própria história do trotskismo. Primeiro por
ter sido feito no momento em que Lenin e Trotsky se aproximaram para enfrentar o
problema da burocratização e encabeçar propostas que batiam de frente com as de Stalin,
como a questão das nacionalidades. Depois, pelo impacto de sua leitura e divulgação.
Lenin morreu em janeiro de 1924, após meses de paralisia imposta pelas suas condições
de saúde. A carta que se transformou em última vontade documentada foi lida em maio
daquele ano em uma reunião do Comitê Central. Era um ferimento profundo em Stalin,
pois a palavra de Lenin já havia recebido status sagrado, mas que não teve maiores
consequências, diante da articulação de Zinoviev e Kamenev em sua defesa e da
passividade de Trotsky, que apenas assistiu ao desenrolar da reunião, que “contra o
protesto de Krupskaia, o Comitê Central aprovou, por esmagadora maioria de votos, a
supressão do testamento” (DEUTSCHER, 1968, p. 151). No entanto, o documento
continuava sendo um artefato importante nos embates políticos. Em 1925, o norte-
americano Max Eastman4, que convivera com Trotsky na Rússia e com ele partilhara
informações, publicou Since Lenin died, narrando o que acontecera no Comitê Central
após a morte do líder bolchevique e citando trechos de seu testamento. Acusado de ser
responsável pela publicação, Trotsky escreve uma reprovação ao livro de Eastman e ao
conteúdo citado pelo autor. No ano seguinte, Eastman publica o testamento completo no
jornal The New York Times. Depois dos recuos de Trotsky em agitar as palavras ditadas
por Lenin, o documento se tornou uma fonte de legitimidade para os oposicionistas. Não
por acaso, o Grupo Comunista Lenine publicou o testamento na primeira edição de A
Lucta de Classe.
A crítica de Moniz, levantada anos depois, teve resposta do editor João Calvino
em uma nota da empresa, que argumentava ter feito a tradução diretamente da versão
publicada em 1942 nos Estados Unidos. A questão é transformada em polêmica e Moniz
usa o Correio da Manhã para travá-la, publicando seu primeiro artigo assinado no jornal.
Para confrontar a explicação da casa editorial, Moniz confronta a edição norte-americana
com a versão publicada no Brasil.
4
Max Eastman (1883-1969) foi um socialista nascido nos Estados Unidos e responsável pela revista The
Liberator, que publicou, entre outras coisas, artigos do jornalista John Reed, autor de Os dez dias que
abalaram o mundo. Segundo Robert J. Alexander (1991), Eastman recebeu uma cópia do testamento de
Lenin das mãos de Trotsky e nunca o perdoou pela reprovação recebida após sua publicação. Ao longo da
década de 1930 vai abandonando suas posições de esquerda e torna-se um defensor de ideias liberais e da
perseguição aos comunistas empreendida pelo senador Joseph McCarthy.
Moniz também denunciava que um capítulo inteiro havia sido suprimido no
processo de edição pela Calvino. Eram nove páginas a menos, por causa da ausência de
“Esbôço de um retrato”, texto introdutório ao livro e que apresentava as impressões de
Ludwig ao encontrar Stalin. Além do testamento de Lenin, Moniz destaca dois momentos
que poderiam confundir o leitor. Em um deles, Ludwig citava os processos orquestrados
contra a velha guarda bolchevique, marcados pelas confissões forjadas contra muitos dos
que haviam feito a revolução. Em outro, o biógrafo desacreditava a pecha de agente
estrangeiro lançada sobre Trotsky, denunciado como agente do imperialismo inglês ou
das potências do eixo, ao sabor da política externa soviética.
Para Moniz, a mudança da negação “quem nunca viu” para “quem já viu” alterara
o sentido da afirmação, retirando a aparente convicção de Ludwig sobre a inocência de
Trotsky diante dessas acusações. O artigo considerava a discussão encerrada, mas José
Calvino escreve uma réplica, publicada no Diário da Noite e depois enviada ao Correio
da Manhã como direito de resposta 5 . O editor tentava explicar as divergências das
traduções dando como origem da versão brasileira “as últimas provas tipográficas”
5
José Calvino entrou com uma ação judicial e obteve uma decisão favorável. Porém, seu texto excedia o
tamanho do artigo original e por isso não foi publicado na íntegra, tendo sido interrompido ao ultrapassar
o limite de caracteres.
(CALVINO FILHO, 1 out. 1943, p. 5) enviadas pelo autor, documentação que não poderia
ser conferida pelo crítico ou leitor. Portanto, a adição de capítulos, trechos ou divergências
no texto, eram justificados pela diferença entre os papeis de Ludwig e a edição impressa.
Calvino também comentou a crítica à tradução de alguns trechos citados por Moniz,
afirmando que “no máximo, pode-se dizer que o tradutor usou palavras em português com
certa impropriedade, porque poderia ser mais preciso” (CALVINO FILHO, 1 out. 1943,
p. 5).
Além de buscar responder ao crítico, Calvino atua politicamente. Primeiro,
mobilizando o ideário anticomunista, no Brasil sob o Estado Novo, ao dizer que Moniz
“publicou em ‘Carioca’ uma maliciosa propaganda do comunismo, a pretesto de criticar
o livro Stalin” (CALVINO FILHO, 1 out. 1943, p. 5). Depois, lançando sobre Moniz o
epíteto de “trotskista”, termina defendendo o conteúdo para onde apontavam as supostas
intervenções no livro de Emil Ludwig.
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São eles: Capitalismo de Estado e não Estado Operário degenerado; O capitalismo de Estado;
Nacionalização e socialização, publicados, respectivamente, nos dias 8, 22 e 29 de dezembro de 1946.
mas transforma suas conclusões. Kautsky não via a guerra como consequência
inescapável do desenvolvimento do capitalismo e, escrevendo em 1914, supunha que um
“ultra-imperialismo” ou “super-imperialismo” vigoraria após a guerra.
Escrevendo já com a segunda guerra concluída, Edmundo Moniz retoma o
conceito de Kautsky, que pode ser definido como “la alianza entre las más grandes
potencias capitalistas, que abandona la lucha para cooperar en paz y llevar al cabo el
reparto definitivo del mundo” (VILLA, 1976, p. 69), mas demarcava sua diferença com
o socialista alemão.
REFERÊNCIAS
CALVINO FILHO, João. “Stalin”, de Emil Ludwig, não foi deturpado em sua tradução.
Diário da Noite. Rio de Janeiro, 1 out. 1943, p. 5.
DEUTSCHER, Isaac. Trotski: O profeta desarmado (1921-1929). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1968.
PEDROSA, Mário. A defesa da URSS na guerra atual. Cad. AEL, Campinas-SP, v. 12,
n.22/23, 2005.
______. Carta de Mario Pedrosa a Leon Trotsi. In: ABRAMO, Fulvio; KAREPOVS,
Dainis. (orgs.) Na contracorrente da história. Documentos do trotskismo brasileiro
1930-1940. São Paulo: Sundermann, 2015.