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De 28 a 31 de março de 2021

De 28 a 31 de março de 2021
ISBN:
Universidade Federal do Triângulo Mineiro
Instituto de Ciências Exatas, Naturais e Educação
Departamento de Matemática
Curso de Licenciatura em Matemática

ANAIS

XIV SEMINÁRIO NACIONAL DE HISTÓRIA DA MATEMÁTICA


De 28 a 31 de março de 2021

Realização
Sociedade Brasileira de História da Matemática (SBHMAT)

Organização
Universidade Federal do Triângulo Mineiro - UFTM

Editoração
Mônica de Cássia Siqueira Martines
Cristiane Coppe de Oliveira

ISBN: 978-65-5941-188-7

2021
EXPEDIENTE

COORDENADORA LOCAL
Profa. Dra. Mônica de Cássia Siqueira Martines

COORDENADORA CIENTÍFICA
Profa. Dra. Cristiane Coppe de Oliveira

COMISSÃO CIENTÍFICA
Andreia Dalcin
Adriana de Bortoli
Ana Carolina Costa Pereira
Angelica Raiz Calabria
Arlete de Jesus Brito
Bernadete Barbosa Morey
Carlos Henrique Barbosa Gonçalves
Carlos Roberto de Moraes
Circe Mary Silva da Silva
Cristiane Coppe de Oliveira (Presidente)
Douglas Marin
Fábio Maia Bertato
Fumikazu Saito
Gustavo Barbosa
Iran Abreu Mendes
João Cláudio Brandemberg Quaresma
John Andrew Fossa
Ligia Arantes Sad
Lucieli Maria Trivizoli
Marcos Vieira Teixeira
Maria Célia Leme da Silva
Mariana Feiteiro Cavalari Silva
Miguel Chaquiam
Mônica de Cássia Siqueira Martines
Moysés Gonçalves Siqueira Filho
Rachel Mariotto
Sabrina Helena Bonfim
Sergio Roberto Nobre
Ubiratan D'Ambrosio
Viviane de Oliveira Santos
Wagner Rodrigues Valente
Zaqueu Vieira Oliveira

COMISSÃO ORGANIZADORA
Carlos Antônio Rezende Filho
Daniel Fernando Bovolenta Ovigli
Domingos Cezar Marino Pontes
Gabriel Faria Vieira
Gracelina Alves Silva
Gisliane Alves Pereira
Leonardo de Amorin e Silva
Mariana Santana Silva
Mônica de Cássia Siqueira Martines
Osmar Aléssio
Paloma de Lima Amaral
Rafaela Ferreira Afonso
Ricardo de Oliveira Muniz Junior
Robson Rodrigues
Róger Santana da Silva

MONITORES DO XIV SNHM


Breno de Sá da Silva
Daniela Caetano Silva
Danilo José Inácio
Isabela Cristina Oliveira
Julie Clara Oliveira de Souza
Maria Luiza Souza e Silva
Milena Rodrigues de Jesus
Pablo Ricardo Nunes dos Santos
Raiane Oliveira Félix
Sumário

Apresentação....................................................................................................... 12

Programação ....................................................................................................... 14

Seção 1: Conferências ........................................................................................ 17

A escrita da História da Matemática. Origem e Institucionalização na Comunidade


Internacional. Primórdios no Brasil ........................................................................ 18

Legitimação Da História Da Matemática Em Grupos De Pesquisa Com Práticas


Interculturais ............................................................................................................................................................ 36

Eugênio Gabaglia: construção de uma biografia ........................................................................... 57

Os Rastros, O Fio E As Tramas – Sofia: Uma Matemática Notável ................................ 65

Seção 2: Mesas redondas................................................................................... 89

Imprimindo historicidade à formação de professores ............................................ 90

La Formación de profesores en Institutos Terciarios y Universidades en Buenos


Aires (1870-1984). Un sistema binario ................................................................................................. 99

La historia de la educación matemática y la formación del profesorado en la


Universidad de Murcia ................................................................................................................................... 113

Pesquisas Sobre Mulheres Na Academia Em Matemática: considerações iniciais


............................................................................................................................ 128

Matemática E Práticas Sociais: Desenvolvimento Da Matemática A Partir Dos


Estudos Da Curva De Rumo Náutica .................................................................. 137

Práticas Sociais Matemáticas Do Comércio E Sua Presença Nos Livros De


Matemática Comercial E Financeira .................................................................................................... 150

Seção 3: Comunicações Científicas. Eixo: História da Educação Matemática


............................................................................................................................ 166
A Construção Científica Dos Programas De Matemática Segundo José Ribeiro
Escobar ............................................................................................................... 167
A Transmissão Da Geometria De Legendre: O Casos Da Colômbia E Da
Venezuela ........................................................................................................... 179
Breve Panorama Do Ensino De Matemática No Brasil Sob A Perspectiva De
Gênero ................................................................................................................ 195
Há Participação De Mulheres Nas Licenciaturas Em Exatas Na Universidade
Federal De Rondônia? ....................................................................................... 212
O Aprendizado Da Matemática E Os Elementos Lúdico E Sensorial Além Dos
Limites Da Sala De Aula ..................................................................................... 228
O Programa De Desenvolvimento Educacional (Pde) Na Formação De
Professores De Matemática De Maringá ............................................................. 238
Os Cadernos De Matemática De Uma Normalista Da Escola Normal Assis Brasil
Em Pelotas (1959-1962) .................................................................................... 252
Os Problemas Matemáticos No Programa “Em Experiência”: Alda Lodi, Minas
Gerais, 1941 ........................................................................................................ 267
REMY FREIRE: Da Demissão Pela Ditadura Salazarista À Naturalização
Brasileira. ........................................................................................................... 281
Uma Proposta Para O Ensino de Conjunto no Livro “Hora Alegre na
Matemática,1.º GRAU” ....................................................................................... 296
Seção 4: Comunicações Científicas. Eixo: História da Matemática ............. 305
A Antiguidade Da Matemática Recreativa Como Atividade Humana De
Entretenimento .................................................................................................... 306
A Anunciação, De Leonardo Da Vinci: Uma Prática Matemática De Artífices No
Século XV............................................................................................................ 321
A Axiomática De Euclides E Hilbert: Apontamentos Históricos E Considerações
............................................................................................................................ 338
A Evolução Da Noção De Continuidade E Reflexões Sobre A Relação Entre
Discreto E Contínuo ............................................................................................ 354
A Neurociência E A Introdução Da Medida Na Geometria .................................. 370
Al-Biruni, Um Representante Da Matemática Islâmica Medieval Via Histórias Em
Quadrinhos .......................................................................................................... 385
Álgebra E Geometria Na Primeira Metade Do Século XIX: Alguns Exemplos Da
Matemática Britânica ........................................................................................... 401
Alguns Breves Apontamentos Sobre A Noção De Fração Em The Ground Of
Artes, De Robert Recorde ................................................................................... 415
Al-Khwarizmi E Omar Khayyam: Similaridades E Diferenças Entre Álgebra E
Geometria............................................................................................................ 427
Bento De Jesus Caraça (1901-1948) - Humanista, Matemático E Pedagogo ..... 442
Breve Apontamento Sobre The Method Of Fluxions And Infinite Series, De Isaac
Newton ................................................................................................................ 464
Concepções Fundamentais Sobre Os Quaternions Hamiltonianos..................... 474
Contribuições Da Álgebra De Al-Khwarizmi Para O Ensino: Um Produto
Educacional ......................................................................................................... 487
Instrumentos Matemáticos Contidos No Tratado De Edmund Gunter (1623) .... 501
Notas Biográficas Do Professor Doutor Tibiriçá .................................................. 515
Sobre Os Conhecimentos Incorporados Nos Reportórios Dos Tempos Entre Os
Séculos XVI E XVIII ............................................................................................. 528
Temas Para Atividades-Históricas-Com-Tecnologias ......................................... 545
Thabit Ibn Qurra (836-901) E A Generalização Do Teorema De Pitágoras ........ 559
Um Breve Percurso Histórico Desde A Geometria Euclidiana Até As Geometrias
Não-Euclidianas .................................................................................................. 576
Um Estudo Sobre Os Conhecimentos Matemáticos Incorporados Na Estrutura Do
Ábaco De Gerbert ............................................................................................... 592
Um Primeiro Olhar De Aspectos Gerais Do Tratado A Arte De Navegar (1606) De
Simão D’ Oliveira................................................................................................. 608
Uma Construção Histórica Das Técnicas Da Transformada Integral Clássica (Citt)
E Generalizada (Gitt): Aspectos Iniciais .............................................................. 625
Seção 5: Comunicações Científicas. Eixo: História e Epistemologia da
Matemática ........................................................................................................ 634
Antêmio e a Elipse .............................................................................................. 635
Aproximação De V3 Em “A Medida Do Círculo”: possíveis métodos usados por
Arquimedes ......................................................................................................... 651
As Transformações Da Geometria Descritiva: do coupe de las pierres à disciplina
principal no ensino superior e técnico ................................................................. 664
O Sistema De Medidas Num Antigo Tratado Islâmico Medieval ......................... 680
Os números negativos nos Principios Mathematicos de José Anastácio da Cunha
............................................................................................................................ 694
Seção 6: Comunicações Científicas. Eixo: História no Ensino da Matemática
............................................................................................................................ 710
A Geometria Projetiva A Partir De Imagens De Um Tratado Renascentista ...... 711
A História Da Matemática Em Disciplinas Dos Cursos De Formação Inicial De
Professores De Matemática Das Universidades Federais Localizadas Na Região
Centro Oeste Do Brasil ....................................................................................... 725
Al-Biruni (973-1048) E O Caso Da Lei Dos Senos Na Trigonometria Triangular
Esférica: Vislumbrando Uma Proposta De Atividades-Históricas-Com-Tecnologia
............................................................................................................................ 740
A Matemática Presente Na Peça De Rosvita De Gandersheim .......................... 755
A Temporalidade Entre Pareceres E A Apreciação Dos PCN Pelo Conselho
Nacional De Educação: Uma Reflexão Pertinente .............................................. 769
Elementos Para Um Tratamento Didático Sobre A Descrição Do Instrumento
Jacente No Plano ................................................................................................ 779
História Da Matemática E Tecnologias Digitais: Do Que Tratam As Dissertações E
Teses (1990 A 2019)? ........................................................................................ 793
História Da Matemática Nas Coleções Do PNLD 2018: Um Estudo Preliminar .. 803
Implementações Envolvendo História Da Matemática: Um Olhar Para Os Artigos
Do XIII SNHM ...................................................................................................... 820
Liga De Ensino Do Rio Grande Do Norte: Concepções E Práticas Voltadas Ao
Ensino De Matemática (1911 – 1924) ................................................................ 835
O Ensino De Logaritmos A Partir Da Articulação Entre História Da Matemática E
Etnomatemática .................................................................................................. 850
Operações De Multiplicação E Divisão Na Babilônia Antiga ............................... 867
UBP Na Formação Continuada De Professores: O Sistema De Numeração Indo-
Arábico E Sua Disseminação Na Europa Ocidental ............................................ 878
Um Estudo Sobre A Revista História Da Matemática Para Professores ............. 893
Seção 7: Relatos de Experiência. Eixo: História no Ensino de Matemática. 910
A Presença Da História Da Matemática Nas Avaliações Do Enem: Uma Experiência
De Iniciação À Pesquisa ..................................................................................... 911
Desenvolvendo A Ideia De Números Inteiros E De Adição Em Uma Turma Do 7º
Ano Do Ensino Fundamental A Partir Dos Numerais Chineses Da Era Shang ... 924
História Da Matemática Em Atividades Sobre A Razão Áurea............................ 940
Razão E Proporção: Possibilidades De Utilizar A História Da Matemática No Ensino
Remoto. ............................................................................................................. 957
Estratégia De Ensino Utilizando O Processo De Leitura Na Matemática Em
Tempos De Pandemia ......................................................................................... 974
Seção 8: Pôster: História da Educação Matemática ...................................... 989
Abordagens Geométricas Em Problemas Aritméticos E Algébricos Propostos Em
Livros Didáticos Do Ensino Médio ....................................................................... 990
Os Saberes Profissionais Em Documentos Oficiais Do Estado De São Paulo . 1001
Seção 9: Pôster: História da Matemática ...................................................... 1010
“Mirifici Logarithmorum Canonis Constructio” De Napier: Uma Descrição Inicial
.......................................................................................................................... 1011
A História Da Matemática Na Região Da Mesopotâmia .................................... 1022
A Mobilização De Alguns Aspectos De Uso Do Báculo De Petrus Ramus, A Partir
Do Estudo De Uma Fonte Histórica, Explorado Em Um Curso De Extensão
Universitária ...................................................................................................... 1029
Alguns Aspectos Gerais Do Instrumento Régua De Carpinteiro De Leonard Digges
(1520-1559) ...................................................................................................... 1040
Breves Considerações Sobre Os 23 Problemas De Hilbert .............................. 1049
História Da Astronomia: Um Breve Estudo Ao Longo Das Antigas Civilizações.
.......................................................................................................................... 1059
História Da Matemática: Elaboração De Uma Bibliografia Por Meio Da Experiência
De Um Professor ............................................................................................... 1070
O Processo De Multiplicação Presente No “Tabuleiro De Xadrez” De John Napier
(1550-1617) ...................................................................................................... 1082
Os Potenciais Operacionais Presentes No Instrumento Promptuario De John Napier
(1550-1617) ...................................................................................................... 1094
Reflexões Sobre A Historiografia Da Matemática ............................................ 1103
Relação Geométrica No Problema 24 Do Papiro De Rhind E Na Regra De Sinais
“Menos Vezes Menos Dá Mais” ...................................................................... 1114
Seção 10: Pôster: História e Epistemologia da Matemática ....................... 1125
Aspectos do desenvolvimento da aritmética na Europa do século XIII ............. 1126
Seção 11: Pôster: História no Ensino da Educação Matemática ................ 1136
Inserções De História Da Matemática Em Livros Didáticos De Matemática Dos Anos
Finais Do Ensino Fundamental ......................................................................... 1137
Os Obstáculos Epistemológicos Em Guy Brousseau E A Emergência Da
Matemática Pura No Século XIX ....................................................................... 1148
Stomachion: Uma Abordagem Sobre A História Da Análise Combinatória ....... 1158
APRESENTAÇÃO
O Seminário Nacional de História da Matemática (SNHM) é um evento que
prioriza a divulgação de estudos e pesquisas sobre História da Matemática a
professores dos vários níveis educacionais, alunos de graduação e pós-graduação,
pesquisadores em história da Matemática e História da Educação Matemática, bem
como a todos os interessados nessa temática. O SNHM é realizado em anos
ímpares, com início no domingo de Ramos e término na quarta-feira da Semana
Santa.

Os seminários nacionais constituem-se numa das formas explícitas para


alcançar os objetivos estatutários da Sociedade Brasileira de História da
Matemática (SBHMat). Caracterizam-se por uma vasta programação de cunho
científico e pedagógico onde são apresentadas as novas produções do
conhecimento na área. Debatem-se temas, são expostos problemas em busca de
soluções, divulgam-se experiências, bibliografias e materiais instrucionais, com o
objetivo de promover o desenvolvimento e a difusão das experiências, estudos e
reflexões na área da História da Matemática e da Educação Matemática.

Foi a quinta vez que o SNHM ocorreu na região Sudeste do Brasil, agora na
Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) na cidade mineira de Uberaba,
considerando-se a série de seminários iniciada em 1995:
▪ I SNHM, 1995, Recife (PE);
▪ II SNHM, 1997, Águas de São Pedro (SP);
▪ III SNHM, 1999, Vitória (ES);
▪ IV SNHM, 2001, Natal (RN);
▪ V SNHM, 2003, Rio Claro (SP);
▪ VI SNHM, 2005, Brasília (DF),
▪ VII SNHM, 2007, Guarapuava (PR);
▪ VIII SNHM, 2009, Belém (PA);
▪ IX SNHM, 2011, Aracajú (SE);
▪ X SNHM, 2013, Campinas (SP);

12
▪ XI SNHM, 2015, Natal (RN),
▪ XII SNHM, 2017, Itajubá (MG);
▪ XIII SNHM, 2019, Fortaleza (CE);
▪ XIV SNHM, 2021, Uberaba (MG).

O XIV SNHM foi realizado de modo remoto, organizado pela Universidade


Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), Campus Uberaba, no período de 28 a 31 de
março de 2021, com apoio de seus dirigentes, do Grupo de Pesquisa em História
da Matemática (GPHMAT_UFTM) sob coordenação local da Profa. Dra. Mônica de
Cássia Siqueira Martines e da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), sendo a
profª Drª Cristiane Coppe de Oliveira, a Presidente da Comissão Científica do
evento.

Nesta XIV edição, recebemos 80 trabalhos sendo, 57 na modalidade


comunicação científica, 05 como relatos de experiência e 18 pôster digitais. Destes,
74 foram aprovados (52 comunicações científicas, 17 pôster e 05 relatos de
experiência). Os relatos de experiência ficaram todos no eixo História no Ensino de
Matemática. Das comunicações científicas 10 se contemplaram em História da
Educação Matemática, 22 em História da Matemática, 05 em História e
Epistemologia da Matemática e 14 em História no Ensino de Matemática. Já os
pôsteres tivemos 02 no eixo História da Educação Matemática, 11 em História da
Matemática, 01 em História e Epistemologia da Matemática e 03 em História no
Ensino da Matemática.

13
PROGRAMAÇÃO GERAL
Horário 28/03/2021 29/03/2021 30/03/2021 31/03/2021
8h – 10h - Pôster Digital Pôster Digital Conferência
(Apresentação (Apresentação de
assíncrona) assíncrona) Encerramento
10h – Café com Café com Café com
10h20 prosa prosa prosa
10h00 – - Minicursos Minicursos Encerramento
12h (apresentação
(10 salas) (10 salas)
do próximo
local do
evento)
12h – 14h - Almoço Almoço Almoço
14h – 16h - Apresentação Apresentação -
oral síncrono oral síncrono
(10 salas) (10 salas)
16h – Café com Café com
16h20 prosa prosa
16h 20 – Conferência 1 Conferência 3 -
17h20 Conferência 2 Conferência 4
Credenciamento
17h20 – Chat do Chat do
18h Pôster Digital Pôster Digital
18h – Abertura Mesa Mesa -
18h30 Redonda 1 Redonda 3
18h30 – Conferência de Mesa Mesa
19h abertura Redonda 2 Redonda 4
19h – 20h -

Conferência de Abertura:
A escrita da História da Matemática, origem e institucionalização na
comunidade internacional e primórdios no Brasil
Palestrante: Sérgio Roberto Nobre (Unesp)

Mesas-redondas:

14
Mesa-redonda 1: História da Educação Matemática e Formação de
professores
Componentes:
Wagner Rodrigues Valente (Universidade Federal de São Paulo) - coordenador
Alejandra Deriard (Instituto de Formación Docente Bernardo Houssay, Argentina)
Encarnacion Sanchez Jimenez (Universidad de Murcia, Espanha)
José Manuel Matos (Universidade Nova de Lisboa, Portugal)

Mesa-redonda 2: Mulheres e a produção científica em matemática


Componentes:
Mariana Feiteiro Cavalari Silva (UNIFEI) - coordenadora
Viviane de Oliveira Santos (UFAL)

Mesa-redonda 3: Interface entre história da matemática e ensino da


matemática
Componentes:
Fumikazu Saito (PUC-SP) - coordenador
Ana Carolina Costa Pereira (UECE)
Bernadete Barbosa Morey (UFRN)

Mesa-redonda 4: Matemática e práticas sociais: algumas histórias


Arlete de Jesus Brito (UNESP Rio Claro) - coordenadora
Aline Mendes Penteado Farves (IFRJ)
Sérgio Cândido de Gouveia Neto (UNIR)

Conferências paralelas:
Conferência 1: Legitimação da História da Matemática em grupos de pesquisa
com práticas interculturais
Conferencista: Lígia Arantes Sad (IFES)

15
Conferência 2: Entre São Paulo e Paris: o Cálculo vetorial do engenheiro
Theodoro Ramos
Conferencista: Rogério Monteiro Siqueira (EACH/USP)

Conferência 3: Estilos e coletivos de pensamento nas pesquisas em História da


Matemática no Brasil
Conferencista: Iran Abreu Mendes (UFPA)

Conferência 4: Eugênio Gabaglia: construção de uma biografia


Conferencista: Juliana Martins (UFRPE)

Conferência de encerramento:
Os rastros, o fio e as tramas: Sofia – uma matemática notável.
Palestrante: Circe Silva Dynnikov (UFPEL)

16
17
A escrita da História da Matemática. Origem e Institucionalização na
Comunidade Internacional. Primórdios no Brasil

Sergio Nobre - Unesp

Introdução

Tenho me dedicado ao tema “A escrita da História da Matemática” desde quando


realizei meu doutorado no início da década de 1990. Como pesquisador em História
da Matemática, e como professor da disciplina História da Matemática, a
inquietação que tenho diz respeito à origem das informações históricas que são
consideradas nos dias atuais como sendo “informações históricas verdadeiras”.
Mas, a inquietação: quem garante que informações que transitam por milênios são
verdadeiras? Um exemplo típico diz respeito a batismos de resultados. São
inúmeros os casos onde há batismos errôneos a respeito de resultados finais em
matemática: Por exemplo:
1. O que hoje é conhecido como Binômio de Newton, na verdade, fora
desenvolvido muitos anos antes por Pascal e Stifel. Newton ocupou-se com
a mesma relação, porém com expoente fracionário (a + x) 1/n
2. O Triângulo de Pascal não poderia ser assim chamado, pois há evidências
que a mesma estrutura fora adotada na China no século XIV. Pascal viveu
no século XVII
3. Somente no Brasil a fórmula da resolução de uma equação de 2 o Grau ficou
conhecida como Fórmula de Bhaskara. Um erro gritante, pois a resolução
de equações deste tipo já era conhecida alguns séculos antes da existência
de Bhaskara – há indícios que em lugares como Egito, Babilônia, China e
Grécia, entre os séculos XX e II antes da era Cristã, já se conhecia uma
forma de resolução de equações do 2o Grau semelhante à atual. Bhaskara,
que viveu no século XII, ocupou-se com as equações do tipo ax2 + b = y2
4. O Princípio de Cavalieri não pode ser assim chamado, pois, embora não se
utilizando as ideias relativas aos indivisíveis, os chineses tinham os
conceitos relativos a esse Princípio por volta do século VI da era cristã
5. O plano coordenado utilizado hoje em dia, conhecido como Coordenadas
Cartesianas, não poderia ter sido atribuído a Descartes, pois, na verdade,
ele não utilizou este sistema da forma como lhe é atribuído. O primeiro a
usar a representação em forma de um sistema de coordenadas foi Leibniz
6. O Princípio de Convergência de Séries, conhecido como Princípio de
Cauchy, na verdade não pode ser chamado assim, pois pelo menos 20 anos
antes o matemático português José Anastácio da Cunha havia chegado a
esse resultado

Enfim, com base nestas inquietações, aprofundei estudos a respeito da História da


Matemática e a sua escrita, e apresento aqui alguns resultados

18
História da Escrita da História da Matemática. Primórdios

Para apresentar este tema, irei utilizar um artigo meu publicado sob o título
“Introdução à História da História da Matemática: das Origens ao Século XVIII” no
ano de 2002 na Revista Brasileira de História da Matemática. Naturalmente, como
historiador, assumi a postura de instigador e, portanto, não isento da conotação
histórico-social à qual estavam ligados os assuntos tratados. Era minha posição
após citar duas epígrafes: A verdade é sempre a realidade interpretada (Oswald de
Andrade) e A primeira lei da História é de não ousar mentir; a segunda, de não
temer exprimir toda a verdade (Papa Leão XIII), apresentar minhas ponderações:

Para apresentar este texto sobre a escrita da história da matemática, permito-me recorrer às
duas epígrafes acima como forma de evidenciar o quão dinâmica e mutável ela é. Se, por um
lado, há a interpretação histórica sobre a realidade, que depende de diversos fatores, como
o espaço e o tempo, as relações de poder entre os povos, os interesses de determinados
grupos, enfim, a história é sempre contada pelos vencedores. Os perdedores não sobrevivem
para contar as suas versões dos acontecimentos e, caso sobrevivam, suas versões não são
de interesse para aqueles que passarão a seguir os novos direcionamentos impostos pelos
que venceram. Por outro lado encontra-se a eterna busca pela verdade histórica. E esta, a
verdade histórica, também depende de interesses.1

No que diz respeito à História da Matemática, a hegemonia do povo ocidental sobre


outros povos é um ponto a ser destacado. Exemplos citados acima confirmam esta
supremacia do povo ocidental e o desprestigio da ciência de outros povos. Por que
atribuir aos chineses descobertas como o “Triângulo de Pascal” ou o “Princípio de
Cavalieri”, se o teria maior valor se estas descobertas fossem atribuídas a
personagens europeus? Um caso bem específico, é a atribuição a René Descartes
da nominação das “Coordenadas”. Isso tem uma explicação. Atribuir a Leibniz o
privilégio da prioridade na utilização das “Coordenadas” seria dar valor aos seus
resultados em relação ao Cálculo Diferencial e Integral. Porém a Europa, com
algumas poucas exceções, estava favorável a Newton no que diz respeito à
prioridade na descoberta do Cálculo Diferencial e Integral e, naquele momento,
batizar as coordenadas de “Coordenadas Cartesianas” ficaria mais simpático, em
detrimento ao nome “Coordenadas Leibnizianas”, pois isso seria uma forma de
valorizar Gottfried Wilhelm Leibniz.

Outro assunto a ser destacado, porém que não será objeto desta conferência, diz
respeito à idolatria dada à Grécia antiga em detrimento de outras culturas também
milenares que produziram ciência de tão boa qualidade quanto à dos povos gregos.
São os casos dos povos orientais, Índia, China, dos povos da Babilônia. Sobre
estes povos, e outros considerados “à margem do pensamento ocidental”, os
estudos estão ganhando corpo na comunidade internacional de historiadores da
ciência.

Na busca sobre de onde vieram as informações sobre a história da matemática,


principalmente as informações do mundo antigo, revisei a literatura e encontrei

1
Nobre, Sergio. 2002. Pág. 4

19
algumas informações importantes, às quais eu divulguei no acima referido artigo
publicado na Revista Brasileira de História da Matemática.

Possivelmente o único texto sobre a história da matemática escrito antes de Cristo que
chegou até nós foi escrito por Vitruvius (séc. I a.C.), um engenheiro/arquiteto romano que se
dedicou a colher informações sobre o mundo antigo, em especial sobre o mundo grego, e
adaptou-as para serem divulgadas ao grande Império Romano que estava em plena
ascensão. Em seu texto Dez livros de arquitetura, uma das mais importantes obras literárias
do período que compreende o início da era cristã e também uma das obras mais divulgadas
no território romano, Vitruvius escreveu importantes passagens relativas à história das
ciências e da matemática.2

Não se sabe ao certo o período o qual Vitruvius viveu. Supõe-se que tenha sido no
século I a.C. Ao ser considerada esta data, já havia se passado alguns séculos de
alguns acontecimentos relatados por ele em seu livro:

Especificamente sobre a história da matemática, Vitruvius oferece ao seu leitor, no prefácio


do livro IX, episódios sobre a geometria na Grécia. Ele desenvolve seu texto a partir de
Pitágoras (c. 580-500), atribuindo a ele e a seus discípulos a descoberta dos números
irracionais e, para isso, utiliza o exemplo da duplicação da área do quadrado. No decorrer do
texto, ele evoca a célebre história do rei Hieron de Siracusa (?-215 a.C.), quando este solicitou
a Arquimedes (287- 212) que descobrisse se fora enganado pelo ourives que confeccionou
sua coroa. Vitruvius conta o episódio da descoberta da solução do problema por Arquimedes
exatamente como é conhecido nos dias atuais, ou seja, ao ir banhar-se, ele descobriu a
solução do problema, que se dá a partir da densidade do material submerso na água, e saiu
gritando pelo recinto afora: “eureka!, eureka!”, o que significa: “eu descobri!”. 3

Estamos falando de cinco séculos, se analisarmos a possível data da existência de


Pitágoras (século VI a.C.) e a possível data da escrita do livro de Vitruvius. É
aproximadamente o mesmo tempo decorrido da data do descobrimento do Brasil
até os dias de hoje. Neste caso, muito mais recente, quanto se sabe de verídico
sobre a chegada dos Portugueses além da Carta de Pero Vaz de Caminha? Aliás,
será que pode ser considerado historicamente fidedigno um documento escrito por
um invasor, cuja intensão seria notificar o Rei Dom Manuel sobre o achamento das
terras que já haviam sido incluídas no Tratado de Tordesilhas de 1494? Quanto nós
brasileiros sabemos sobre o que realmente aconteceu quando a esquadra de Pedro
Alvares Cabral chegou no Brasil? Naturalmente este não é um tema a ser
desenvolvido nesta conferência. Apenas a comparação entre os 500 anos de
distância temporal entre Pitágoras e as informações dadas por Vitruvius, que
somariam 2500 anos até a data de hoje, e os 500 anos do descobrimento do Brasil.

Um outro texto que chegou até nós em sua versão original foi Comentários sobre o
primeiro livro dos Elementos de Euclides, escrito por Proclus (c.420- 485), um
neoplatônico, membro das academias de Atenas e Alexandria. Neste texto, Proclus
menciona alguns autores que haviam produzidos textos com elementos sobre a
história da ciência e da matemática. Um destes texto seria o de Eudemus de
Rhodes, que viveu no século 4º antes da era Cristã. Não somente Proclus, mas

2
Nobre, Sergio. 2002. Pág. 7
3
Nobre, Sergio. 2002. Pág. 7

20
outros autores fazem referências aos textos sobre história da astronomia, da
aritmética e da geometria que teria sido escrito por Eudemus, um suposto discípulo
de Aristóteles. Alguns exemplos sobre assuntos ligados à História da Matemática
foram apresentados no texto ao qual estou tomando como referência:

em seu livro sobre a História da Geometria, ele relata que o teorema “se dois triângulos
possuem dois ângulos e um lado congruentes, então o outro ângulo e os outros dois lados
também são congruentes” foi descoberto por Thales de Mileto (c.624-546) e usado por ele
para determinar a distância que um barco se encontra da costa. Esse é o teorema de número
26, apresentado e demonstrado por Euclides no livro 1 de seus Elementos;

o famoso teorema 47 do livro 1 dos Elementos, de Euclides (c.365-300), ficou conhecido como
“Teorema de Pitágoras” após ter sido contada sua história por Eudemus;

no texto sobre a História da Astronomia é dada a informação de que Thales fez a previsão de
um eclipse ocorrido em 28 de maio do ano 585 a.C.;

um dos capítulos mais relevantes da história da matemática grega, os estudos de Hipócrates


de Chios (~440 a.C) acerca das áreas em regiões em forma de Lua (as "Lunas" de Hipócrates)
e suas contribuições para os estudos relativos às tentativas de resolução dos problemas
clássicos da geometria, também é conhecido através de informações contidas no texto
História da Geometria.4

Os exemplos acima, e ainda outros que aparecem no livro de Proclus, são


elementos que se solidificaram na história da ciência e da matemática. Como
historiador, fica sempre meu questionamento sobre o período de tempo ocorrido
entre o acontecimento e sua divulgação. Nos quatro exemplos acima, esse período
supera 8 séculos.

Outros exemplos onde aparecem informações históricas a respeito da ciência e da


matemática estão em obras enciclopédicas. Para esta apresentação também faço
uso de um texto meu publicado em 2007 na Revista da Sociedade Brasileira de
História da Ciência. O tema “divulgação científica através de enciclopédias
universais” também faz parte de meus objetos de investigação científica desde o
período o qual eu fiz meu doutorado na Universidade de Leipzig, Alemanha. “As
obras enciclopédicas, que vêm sendo produzidas desde o século IV a.C., por
exemplo, também são ricas fontes de informações históricas acerca de
determinados povos em determinados períodos. Informações sobre a história das
ciências e da matemática também encontram-se presentes nessas obras, o que
nos abre um extenso caminho de investigação científica, tanto no que diz respeito
ao conteúdo científico nelas apresentado como à história deste.”5

No que diz respeito a textos que possuam características de uma obra enciclopédica, um
destaque especial deve ser dado a Diogenes Laertius (~séc. III), que escreveu Vitae
philosophorum – Libri X, uma espécie de dicionário biográfico com relatos sobre a vida, os
pensamentos, as opiniões de filósofos famosos do mundo grego. Para a área da

4
Nobre, Sergio. 2002. Pág. 8
5
Nobre, Sergio. 2002. Pág. 9

21
historiografia, essa é uma das mais importantes obras do período grego antigo que chegou
até nós no original.6

Traduzida para o inglês sob o título Lives of eminent philosophers, a obra é composta de 10
livros onde são expostas informações sobre a vida e o pensamento filosófico de 82
personagens importantes do mundo grego. Os verbetes biográficos são apresentados
praticamente da mesma forma que aparecem nas obras biográficas atuais, ou seja, são
destacadas a origem, a instrução, as viagens realizadas, os locais em que exerceu atividades,
os trabalhos feitos, etc, e ainda são acrescentadas informações sobre o personagem tais
como: temperamento e carácter, anedotas contadas sobre sua morte, atividades políticas,
notas sobre seus sucessores, e, quando havia, informações sobre pessoas homônimas. Os
maiores verbetes são de Platão, Aristoteles e Epicurus. Personalidades que possuem maiores
ligações com o desenvolvimento do pensamento matemático, como Thales, Anaximandro,
Anaximenes, Anaxágoras, Sócrates, Euclides, Zenão de Elea, Pitágoras e Eudoxo, também
possuem seus verbetes biográficos no texto de Diogenes.7

Outro texto meu sobre o qual irei dedicar maior atenção é o artigo publicado em
2005 na Revista Brasileira de História da Matemática que trata exclusivamente de
uma importante Enciclopédia publicada no século VII da era Cristã, sob a
responsabilidade de Isidoro de Sevilla8. A obra Etymologiarvm sive Originvm libri
XX (Etimologias ou Origens, vinte livros), considerada um clássico no âmbito das
obras enciclopédicas, possui relevância pois foi produzida no período de transição
entre as Idades Antiga e Média. “As referências históricas presentes na obra
Etimologias aparecem através de pequenas informações, em forma de verbetes
(itens), onde são evidenciados a origem dos assuntos ou quem foram os primeiros
a se ocupar deles.”9 O livro 3 é dedicado à Matemática (de Mathematica, cuius
partes sunt Arithmetica, Musica, Geometrica et Astronomica).

O texto sobre a matemática que Isidoro apresenta na Etimologias, por obedecer a


características próprias a um texto enciclopédico, é classificado como um texto educacional.
E foi certamente este o objetivo do autor, ou seja, apresentar assuntos referentes à
matemática de forma simples e de fácil compreensão. A caracterização de texto educacional
evidencia-se através da forma como Isidoro classifica as quatro partes da matemática.
Aritmética, geometria, música e astronomia são classificadas não como domínios do
conhecimento matemático, mas sim como disciplinas, seguindo, portanto, o propósito do autor
em oferecer um texto didático sobre a matemática que pudesse ser utilizado por estudantes
de sua época.10

Na apresentação dos assuntos, Isidoro fornece informações históricas relativas a


conteúdos específicos que reforçam o conhecimento histórico existente até o
momento o qual a obra Etimologias foi escrita. Destaco alguns exemplos que são
extraídos do artigo publicado em 2005 na Revista Brasileira de História da
Matemática:

Isidoro menciona que Pitágoras foi o primeiro grego a escrever sobre a ciência dos números
e que posteriormente foi completado por Nicomachus ... Isidoro ressalta a figura do

6
Nobre, Sergio. 2007. Pág. 36
7
Nobre, Sergio. 2002. Pág. 10
8
Nobre, Sergio. 2005
9
Nobre, Sergio. 2005. Pág. 52
10
Nobre, Sergio. 2005. Pág. 46

22
personagem de nome Pitágoras (c.580-500), ligado à Ciência dos Números ... Outra
informação histórica importante que aparece nesse pequeno verbete é a existência de um
outro grego que continuou os estudos iniciados por Pitágoras ou por membros da Escola
Pitagórica. Isidoro cita Nicomachus de Gerasa (~100 A.D.), pitagórico que, além de escritos
matemáticos, produziu muitos textos sobre teoria musical 11

Isidoro escreve que a geometria foi inventada pelos egípcios quando, com o recuo das águas
após as inundações do rio Nilo, a terra fértil era dividida para as plantações. Essa divisão de
terras através de medidas de comprimento e medidas de área deu origem ao termo
“geometria” ... A passagem histórica sobre o início da geometria a partir das divisões das
terras férteis às margens do rio Nilo no Egito tornou-se clássica e é citada em textos históricos
até os dias de hoje.12

Isidoro escreve que os gregos afirmam que Pitágoras foi o primeiro a descobrir a arte do som
através de batidas em cordas esticadas e que outros afirmam que Linus de Thebes, Zethus
e Amphion foram os primeiros a ganharem fama nas artes musicais. 13

O Renascimento Europeu e os primeiros ensaios de textos sobre História da


Matemática

Textos que tratam de biografias de personagens ligados ao movimento científico


ganharam força a partir da segunda metade do século XVI. Dentre estes textos,
alguns são biografias escritas por discípulos de personagens do mundo científico,
como são os casos de dois discípulos de Galileu: Racconto istorico della vita del
Sig. Galileo Galilei, escrito por Vincenzo Viviani (1622-1703) e Vita del Signor
Galileo Galilei, escrito por Niccolò Gherardini (?-1678), ambos textos foram
solicitação do príncipe da Toscana, Leopoldo de Medici (1617-1675)14

Outro discípulo de um importante personagem da História da Matemática que


escreveu um texto sobre a vida de seu professor foi Bernardino Baldi (1553-1617).
Sua obra biográfica Vita di Federico Commandino, contendo cerca de 140 páginas,
foi publicada em 1714. No entanto,

... enquanto escrevia um texto sobre a vida de seu mestre, ele colecionou a biografia de cerca
de 370 pessoas que realizaram atividades em matemática e colocou-as no texto Cronica de
matematici overo epitome dell‟istoria delle vite loro. Esse texto foi publicado somente em 1707
na cidade de Urbino. Além da importância histórica por ter sido um dos primeiros dicionários
biográficos contendo biografias somente de matemáticos, Cronica de matematici é uma
excelente obra de consulta para historiadores, pois contém informações biográficas de
matemáticos que não constam nos tradicionais textos de biografias.15

São vários os autores de textos biográficos que trouxeram importantes informações


acerca destes personagens históricos da matemática. Destaco os textos sobre
Bonaventura Cavalieri (1598-1647) escrito por seu discípulo Urbano D’Aviso e

11
Nobre, Sergio. 2005. Pág. 52
12
Nobre, Sergio. 2005. Pág. 54
13
Nobre, Sergio. 2005. Pág. 54
14
Nobre, Sergio. 2002. Pág. 13
15
Nobre, Sergio. 2002. Pág. 13

23
sobre René Descartes (1596-1647) escrito pelo bibliotecário e sacerdote Adrian
Baillet (1640-1706).

A relevância historiográfica desse texto biográfico de Cavalieri escrito por Urbano D’Aviso se
dá pelo fato de que pouco se sabe sobre a vida pessoal de Cavalieri a não ser o que foi
relatado por ele. A única informação que se tem sobre o ano de nascimento de Cavalieri foi
dada por D’Aviso, porém não há documentos que a comprovem. Outras importantes
informações sobre Cavalieri, como estudos realizados, vida religiosa, pessoas com quem
obteve contatos acadêmicos e religiosos, trabalhos publicados e repercussão desses
trabalhos no meio científico europeu, também são relatados por D’Aviso. O texto Vita del P.
Buonaventura Cavalieri é uma pequena biografia (10 páginas), no entanto possui ricas
informações sobre a vida desse ilustre matemático.16

No século XVII alguns autores investiram na produção de obras matemáticas sendo


que, enquanto algumas são textos modestos, outras são verdadeiras coletâneas
onde são apresentados temas relativos à matemática de forma profunda e
detalhada. Dois exemplos, dentre muitos, são as obras dos jesuítas Andrea
Tacquet (1612-1660), belga que, em 1654, publicou em Antuérpia o livro Elementa
geometriae planae et solidae, e Claude François Milliet Dechales (1621-1678),
francês que, em 1674, publicou em Lyon o livro Cursus seu Mundus mathematicus.
O livro de Tacquet, assim como o título apresenta, é um pequeno texto que aborda
apenas temas sobre a geometria plana e sólida, enquanto o livro de Dechales é
uma obra monumental, onde o “Mundo Matemático” é apresentado inicialmente em
três volumes e em uma segunda edição, após a morte de Dechales, o texto é
republicado em 4 edições. Nesta obra “são apresentados todos os assuntos que
eram considerados como sendo matemática na segunda metade do século XVII”17.
Ambos os autores apresentam como introdução ao texto matemático, uma
abordagem histórica referente à matemática. Tacquet começa seu livro com

...o capítulo chamado Historica narratio de ortu et progressu matheseos, um pequeno capítulo
de 12 páginas, onde é contada uma história abreviada da matemática. Em cada um dos
parágrafos do texto, Tacquet evidencia um período ou personagem diferente.... A
apresentação da matemática na Grécia engloba a maior parte do texto. Tacquet desenvolveu
os próximos capítulos com pequenos, porém ricos, comentários sobre as realizações
matemáticas referentes às escolas de Pitágoras, Demócritos, Platão, Eudoxo, Aristóteles,
Arquimedes, Ptolomeu e Diophanto.18

O texto histórico de Dechales aparece apenas na segunda edição do livro que foi
publicada em 1690, sob o título de Tratactus proemialis de progressu matheseos et
illustribus mathematicis, com 108 páginas, um tratado que apresenta o progresso
da matemática e também ilustres matemáticos

... o autor apresenta em nove capítulos algumas das subdivisões da matemática: 1. De


mathesi genere; 2. De progressu Geometriæ; 3. De progressu Arithmeticæ; 4. De progressus
Mechanices; 5. Progressus geographiæ, nauticæ, magneticæ; 6. Architectonices progressus;
7. De progressu Musicæ; 8. Progressus Opticæ; 9. Progressus Astronomiæ, sendo que os
maiores são os capítulos sobre geometria e astronomia. Dechales inicia cada um desses

16
Nobre, Sergio. 2002. Pág. 23
17
Nobre, Sergio. 2002. Pág. 23
18
Nobre, Sergio. 2002. Pág. 22

24
capítulos por meio de uma abordagem sobre as origens do assunto na Antigüidade,
retratando os principais personagens e seus feitos. A história é contada até meados do século
XV e início do século XVI, quando, a partir de então, são apresentadas, em ordem
cronológica, as obras publicadas referentes aos assuntos abordados. 19

Outros documentos históricos de grande relevância para a historiografia das


ciências foram originados a partir das discussões acadêmicas que tomaram parte
em sessões das então recém-criadas Academias Científicas. As atas das
academias fornecem rico material para a historiografia científica. Como exemplos:
Philosophical Transactions, da Royal Society de Londres (fundada em 1660);
Mémoires de l’Acádemie des Sciences, da Academia de Paris (1666); Commentarii
Academiae Scientiarum Imperialis, da Academia de São Petersburgo (1724),
dentre outros. Nas atas da Royal Society encontra-se um dos mais importantes
documentos produzidos durante a disputa entre Newton e Leibniz pela prioridade
da descoberta do Cálculo Diferencial e Integral. Esta histórica disputa se dá a partir
do fato que, com base em sua grande reputação acadêmica, aliado ao seu poder
institucional, Newton ganhou adeptos tanto na Grã-Bretanha, como em alguns
países Europeus (principalmente da França). Isso fortaleceu o pensamento de que
Leibniz teria “possivelmente” plagiado suas ideias. Em 1711 - John Keill (1671-
1721) formalizou a acusação de plágio na Royal Society, e Leibniz, como resposta,
ingenuamente, solicitou que o assunto fosse julgado. Newton, que era o presidente
da entidade, indicou uma comissão composta por seus amigos, e bons
newtonianos, para estudar o assunto. Ao final do processo, ele próprio escreveu o
relatório referente ao processo instaurado e publicou anonimamente. Nesse
famoso relatório, intitulado Commercium epistolicum de analysi promota (1713),
Newton escreveu uma abordagem histórica acerca do assunto em questão com o
intuito de chegar a um resultado conclusivo que, naturalmente, foi a seu favor.20

Nos séculos XVII e XVIII aparecem os primeiros textos completos sobre História da
Matemática, sejam eles em forma de capítulos pertencentes à uma obra mais geral,
ou então textos específicos que abordam apenas assuntos históricos. Alguns
exemplos de capítulos, também apresentados no artigo publicado em 2002 na
Revista Brasileira de História da Matemática seguem:

John Wallis (1616-1703), destacado matemático inglês do século XVII, publicou no ano de
1685, como resultado de vários anos de trabalho voltados à matemática e sua história, o seu
único trabalho científico escrito no idioma inglês, o livro Treatise of Algebra, Both Historical
and Practical. Conforme o próprio título indica, é um texto de álgebra acompanhado por seu
desenvolvimento histórico. Dos 100 capítulos que compõem a obra, 14 são relativos à história
da álgebra, abrangendo um volume superior a 70 páginas. ... Provavelmente este foi o
primeiro texto histórico escrito exclusivamente sobre um dos ramos da matemática, ou seja,
o primeiro texto sobre a história da álgebra21

Uma importante contribuição para o movimento historiográfico da matemática foi dada por
Christian Wolff (1679-1754), filósofo e matemático alemão que, dentre vários textos sobre
filosofia e matemática, publicou em 1710 o livro Anfangsgründe aller mathematischen

19
Nobre, Sergio. 2002. Pág. 23
20
Nobre, Sergio. 2011
21
Nobre, Sergio. 2002. Págs. 28 e 29

25
Wissenschaften. Seguramente este foi o livro-texto de matemática de maior penetração nos
meios escolares alemães na primeira metade do século XVIII. Como parte integrante deste
livro, Wolff escreve o texto Kurzer Unterricht von den Vornehmsten Mathematischen Schriften
(pequena aula sobre os principais textos matemáticos), que, apesar de não obedecer aos
direcionamentos atuais relativos à escrita de um texto histórico, oferece muitas informações
sobre a história da matemática22

Para concluir esta primeira parte de minha apresentação, o livro que é considerado
divisor de águas na historiografia da matemática, pois enquanto seus antecessores
tratavam o assunto de forma estanque, com pequenos parágrafos acerca dos
acontecimentos e dos resultados, surge um livro que trata o assunto histórico de
forma, pode-se dizer, romanceada. Ou melhor, onde as informações são tratadas
em textos corridos, com os fatos se entrelaçando. Este livro ao qual me refiro é
Histoire des Mathématiques, de autoria de Jean Etienne Montucla (1725-1799),
publicado originalmente em dois volumes no ano de 1758, na cidade de Paris. Estes
dois volumes teve uma segunda edição revisada e publicada em 1799, que foi
acrescentada de outros dois volumes em 18023

Histoire des Mathématiques possui características diferentes daquelas relativas aos textos
que até então existiam. Não se assemelha com a espécie de relatório catalográfico presente
nos outros livros. É um texto dissertativo, onde a matemática é apresentada de forma
dinâmica através de sua história, que abrange desde antes do personagem bíblico Noé até o
século XVIII. Além de apresentar com detalhes a história do que hoje é chamado de
matemática pura, o livro contém abordagens sobre a história da astronomia, da mecânica, da
ótica, da música, entre outras.24

Após o livro de Montucla, a Historiografia da Matemática ganha novas dimensões


e, acompanhando seu estilo literário, outros autores organizam grandes obras que
foram publicadas em períodos subsequentes. Destaque para Abraham Kästner
(1719-1800) e seu livro Geschichte der Mathematik, em 4 volumes, publicado em
Göttingen, entre 1796 e 1800. E a obra organizada por Charles Bossut (1730-
1814), Essai sur l‟histoire générale des mathématiques, publicada em 1802, em
dois volumes, na cidade de Paris, que obteve nova e atualizada edição em 1810.

O século XIX e início do século XX irão ser marcados pelo surgimento de obras
específicas sobre a História da Matemática, e, com isso, inicia-se o período do
surgimento dos primeiros pesquisadores que assumem a história como suas
principais atividades científico/acadêmicas. Este movimento ganha forças com a
realização dos primeiros Congressos Internacionais de História da Ciência na
década de 20 do século XX e abre caminho para a fundação da Academia
Internacional de História das Ciências no inverno dos anos 1927/28.

22
Nobre, Sergio. 2002. Pág. 29
23
Historiadores afirmam que os dois últimos volumes são diferentes dos dois primeiros e que foram
organizados pelo amigo de Montucla, o astrô nomo francê s Joseph Jé rô me le François de Lalande (1732-
1807)
24
Nobre, Sergio. 2002. Pág. 34

26
História da Matemática no Brasil – primórdios e crescimento das atividades
histórico/científicas

Antes de iniciar a apresentação deste tema, recorro ao Prof. Hans Wussing,


historiador da matemática alemão, que possuiu grande destaque na comunidade
internacional, que, em um de seus livros, fez uma abordagem sobre os caminhos
da investigação científica em História da Matemática. Ele classifica como sendo
temas os seguintes tópicos:

a) história de problemas e de conceitos;


b) as interligações entre Matemática, Ciências Naturais e Técnica;
c) biografias;
d) organizações institucionais;
e) a Matemática como parte da cultura humana;
f) influências sociais ao desenvolvimento da Matemática;
g) a Matemática como parte da formação geral do indivíduo;
h) análise histórica e crítica de fontes literárias 25

Eu acrescento outros dois tópicos gerais à esta lista pois estes tornaram-se ricos
campos de pesquisa, principalmente para o movimento relativo às pesquisas em
Educação:

i) História do Ensino / da Educação Matemática


j) História na Educação Matemática

Sobre estes dois tópicos não irei tratar nesta conferência, visto que especialistas
nestes assuntos os tratariam com mais propriedades. Dentre vários grupos que
atuam nestas áreas, um destaque especial para o Grupo História Oral e Educação
Matemática (GHOEM), sob a responsabilidade do Prof. Vicente Garnica, e o Grupo
de Pesquisa em História da Educação Matemática (GHEMAT), sob a
responsabilidade do Prof. Wagner Rodrigues Valente.

Tomando como base apenas os tópicos apresentados por Hans Wussing, a nossa
busca é por textos que apresentam a História do Desenvolvimento da Matemática
no Brasil, com isso abrimos o caminho para uma Historiografia da Matemática
nacional.

Especificamente relativo à História da Matemática no Brasil, os primeiros e mais


importantes ensaios surgiram no Brasil no início da segunda metade do século
XX26.

25
Wussing, Hans. 1997. Pág. 5
26
De acordo com Costa, Nelson Lage & Piva, Teresa Cristina de Carvalho. 2011, na Revista do Instituto
Polytechnico Brazileiro, tomo XVIII, ano 1862, há um texto de 13 páginas intitulado Evolução da Mathematica
no Brazil, de autoria de Licinio Athanasio Cardozo. No entanto, não foi possível localizar este texto para

27
Em 1955 foi publicada a obra As Ciências no Brasil, organizada por Fernando de
Azevedo (1894-1974) tendo como primeiro capítulo o texto A Matemática no Brasil,
de autoria do então professor catedrático na Escola Nacional de Engenharia e
membro e professor titular de Matemática do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas
(CBPF) Francisco Mendes de Oliveira Castro (1902-1993)27. Em 38 páginas28,
Oliveira Castro faz um apanhado geral sobre a Matemática no Brasil até a sua
época, iniciando com os Colégios Jesuítas, destacando a vinda de Dom João VI
para o Brasil e a criação da Academia Real Militar e as posteriores Escolas de
Engenharia, culminando com a criação das Faculdades de Filosofia da
Universidade de São Paulo, da Escola de Ciências da Universidade do Distrito
Federal e da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil. Muitos são
os personagens que aparecem destacados no texto. Menciono alguns que são mais
conhecidos pela comunidade de historiadores da matemática brasileira, que
viveram no período entre o Brasil Colônia até o início do século XX: José Fernandes
Pinto Alpoim (1698-1770), Francisco de Borja Garção Stockler (1759-1829),
Joaquim Gomes de Sousa (1829-1863), Oto de Alencar Silva (1874-1912),
Amoroso Costa (1885-1928), Teodoro Ramos (1895-1935). Por ser um texto que
apresenta algumas informações que carecem de aprofundamentos, este é um
excelente material de pesquisa para a Historiografia da Matemática Brasileira.

Outro texto, também de característica generalista, está presente no verbete


“Matemática” da Enciclopédia Mirador Internacional29. Este verbete contempla um
capítulo específico sobre “A Matemática no Brasil”. Ao final do verbete aparece o
seguinte dado: “HEGE/CUNH.”. O “HEGE” corresponde ao Professor do Instituto
Tecnológico de Aeronáutica Leônidas Hegenberg (1925-2012)30, e fica evidente, no
início do verbete, que o autor era do Estado de São Paulo:

A ênfase que aqui se dá ao que sucedeu no Estado de São Paulo deve ser encarada, pois,
como simples fruto da maior facilidade de contato com as fontes e não como deliberada
intenção de diminuir o valor do que se fez em outras regiões brasileiras 31

A respeito do segundo autor “CUNH”, não há informações sobre quem seria.

Sobre o caráter generalista do texto, há a seguinte observação:

As observações que a seguir se indicam são fragmentárias e breves, devido à falta de dados
históricos precisos em que fundamentar inúmeros aspectos do desenvolvimento da
matemática no Brasil. Com efeito, essa história ainda está por ser escrita e os poucos
elementos existentes para traçar o seu perfil estão dispersos em artigos, conferências

analisá-lo. Um segundo texto, também não encontrado por este autor, é A evolução da Mathematica pura no
Brasil, de autoria de A. F. de Lima Campos e publicado em 1927. Este texto é mencionado por Dias, André
Luís Mattedi. 2002 em uma nota de rodapé.
27
Azevedo, Fernando. (org.). 1994. Pág. 96
28
De acordo com a edição de 1994 da obra de Fernando de Azevedo.
29
Houaiss, Antônio. 1976. Págs. 7286-7312
30
Conforme Currículo Lattes disponível em: http://lattes.cnpq.br/6263429492189335
31
Houaiss, Antônio. 1976. Pág. 7308

28
ocasionais e relatos pouco divulgados, perdidos em arquivos de difícil acesso ou em folhetos
de pequena circulação.32

Assim como o texto apresentado anteriormente, este verbete na Enciclopédia


Mirador é uma excelente fonte para a investigação sobre a História da Matemática
brasileira. Os autores fornecem informações sobre pessoas, sobre eventos, sobre
grupos de pesquisa, enfim, muitas informações que, se forem retrabalhadas e
aprofundadas, são ricos materiais para a Historiografia da Matemática Brasileira.

Antes de dar continuidade ao assunto sobre a Historiografia da Matemática no


Brasil, faz-se necessário destacar a relevante atuação do Prof. Ubiratan
D’Ambrosio. Para isso, recorro novamente a um texto que escrevi no ano de 2007,
em uma edição em sua homenagem:

Escrever sobre a influência de Ubiratan D’Ambrosio no movimento científico da História da


Matemática no Brasil requer muito mais do que simplesmente elucidar fatos onde sua
presença marcante foi decisiva para que este movimento chegasse ao patamar que agora se
encontra. Ubiratan não é apenas um dos grandes responsáveis pelo surgimento de uma
comunidade científica voltada a essa área no Brasil, mas é, acima de tudo, o mentor
intelectual deste movimento. Sua presença na comunidade internacional de historiadores da
ciência e da matemática data a partir da década de 70. Em especial para a História da
Matemática, sua participação na reunião científica no Instituto de Matemática de Oberwolfach
– Alemanha, realizada em outubro de 1981, cujo tema específico foi a História da Matemática
nos séculos XVII e XVIII, foi um marco. Suas idéias, ali apresentadas na conferência
Matemática latino-americana na conquista e no início da colonização, certamente mostrou
aos presentes que uma nova versão da escrita da história científica, em especial da História
da Matemática, se fazia necessária. Com este gesto, Ubiratan conclamou para a necessidade
do surgimento de comunidades de historiadores da ciência que atuassem sobre assuntos
considerados periféricos. No Brasil isso vai ganhar força principalmente a partir da década de
90.33

No ano de 1989, sob a Orientação do Prof. Shozo Motoyama (1940-2021), Clóvis


Pereira da Silva defendeu o doutorado no Programa de Pós-Graduação em História
da Ciência, da USP, de título Uma História do Desenvolvimento da Matemática
Superior no Brasil, de 1810 a 1920. Este texto, posteriormente transformado em
livro34, possui características um pouco diferente daquelas existentes nos dois
textos apresentados anteriormente. Muitas das informações acerca da História da
Matemática Brasileira contidas no texto foram obtidas a partir de investigações
realizadas em fontes primárias, visto que resulta de um trabalho de pós-graduação
em nível de doutorado. Há de ser considerado que o perfil do texto do Professor
Clóvis é de caráter generalista, porém, a partir deste trabalho, abriu-se
possibilidades de novas e mais aprofundadas investigações a respeito do tema,
coisa que ele próprio continuou a fazer.

32
Houaiss, Antônio. 1976. Págs. 7307-7308
33
Nobre, Sergio. 2007. Pág. 132
34
Silva, Clóvis Pereira. 1992

29
Um enfoque semelhante, por ser apresentado de forma ampla e geral, foi dado por
Ubiratan D’Ambrosio em seu livro Uma História Concisa da Matemática no Brasil35.
Tive o privilégio de escrever o prefácio deste livro, do qual transcrevo partes abaixo:

D’Ambrosio oferece ao leitor um instigante convite para aprofundar nas investigações


históricas sobre diferentes temas relativos à História da Matemática no Brasil. Além de
apresentar uma visão peculiar e muito original acerca do desenvolvimento científico no Brasil,
o autor aborda temas que estão praticamente em aberto, que carecem a devida profundidade
investigativa. O autor destaca na nota explicativa do livro que seu objetivo foi “dar uma visão
panorâmica e crítica da receptividade de um pensamento concebido e produzido na Europa,
trazido pelo conquistador e pelo colonizador”. Neste sentido, este vôo panorâmico possibilita
que o leitor identifique assuntos específicos que aparecem indicados no texto, com o intuito
de ampliar o conhecimento sobre detalhes que ainda não foram investigados 36.

Os livros de Pereira da Silva e D’Ambrosio, únicos com abordagem geral sobre a


História da Matemática no Brasil, abriram, e ainda abrem, portas para novas
investigações específicas, e sobre algumas destas investigações, irei discorrer no
próximo item.

Construindo a História da História da Matemática no Brasil. A Contribuição


Acadêmica do Grupo de Pesquisa em História da Matemática da UNESP de
Rio Claro para a Historiografia da Matemática Brasileira

Conforme já abordado anteriormente, nesta apresentação irei adotar as indicações


fornecidas por Hans Wussing a respeito da investigação científica em História da
Matemática e, dentre os itens por ele apresentados, somente aqueles cujos objetos
de pesquisa dizem respeito a assuntos ligados ao desenvolvimento da Matemática
no Brasil e a assuntos correlatos. Reforçando que não é nosso objetivo adentrar
em assuntos que dizem respeito ao Ensino da Matemática e suas correlações.
Também irei me restringir à uma produção científica pontual e apresentar alguns
resultados que foram produzidos junto ao Grupo de Pesquisa em História da
Matemática (GPHM) da Unesp, campus de Rio Claro. Ressalto que serão somente
alguns, pois, dentre os trabalhos produzidos no GPHM, irei restringir-me ao tema
História da Matemática no Brasil. Naturalmente esta apresentação seria muito mais
rica se fossem destacados os trabalhos produzidos em outros importantes centros
existentes no Brasil que possuem atividades voltadas à História das Ciências e da
Matemática, como são os casos de Grupos de Pesquisas nas Universidades
Federal de Natal, Federal do Pará, Federal do Espírito Santo, no Instituto Federal
do Espírito Santo, na Universidade Federal da Bahia, na Federal do Rio de Janeiro,
no MAST e na Fundação Osvaldo Cruz, nas Federais do Estado de São Paulo, nas
Universidades Estaduais de São Paulo, dentre outros.

35
D’Ambrosio, Ubiratan. 2008
36
D’Ambrosio, Ubiratan. 2008. Prefácio

30
Antes de iniciar a apresentação das contribuições para a Historiografia da
Matemática oriundas do GPHM, faço questão de destacar aquele que foi, pode-se
dizer, o primeiro trabalho acadêmico referente a um tema específico sobre a
História da Matemática no Brasil, tema este que havia sido mencionado por
Francisco Mendes de Oliveira Castro no texto A Matemática no Brasil, apresentado
anteriormente. Oliveira Castro faz uma pequena menção sobre o prestígio que as
ideias positivistas de Augusto Comte tiveram sobre a Matemática no Brasil37. E, em
seu doutorado defendido junto ao Programa de Pedagogia da Universidade de
Bielefeld, Alemanha, no ano de 1991, Circe Mary Silva da Silva Dynnikov aprofunda
o tema sobre a influência do Positivismo na Matemática Brasileira. Embora no título
da dissertação de doutorado defendida, há menção sobre o “Ensino da
Matemática”38, sobre o qual eu antecipei que não irei mencionar nesta
apresentação, este texto é uma importante contribuição para se entender o
desenvolvimento da Matemática propriamente dita no Brasil do final do século XIX
e início do século XX.

O Grupo de Pesquisa em História da Matemática (GPHM), vinculado ao


Departamento de Matemática e ao Programa de Pós-Graduação em Educação
Matemática da UNESP, campus de Rio Claro iniciou suas atividades no ano de
1995. Nestes 26 anos de existência, vários trabalhos ligados à História da
Matemática foram realizados por seus membros, composto por docentes, alunos e
egressos do Programa de Pós-Graduação. A contribuição que o Grupo deu para o
fortalecimento da Historiografia da Matemática brasileira está listada abaixo. Ao
lado do nome do autor responsável pelo trabalho, está colocado as iniciais do nome
do orientador responsável pelo trabalho, a saber: Rosa Lúcia Sverzut Baroni – RB;
Ubiratan D’Ambrosio – UD, Marcos Vieira Teixeira – MT e Sergio Roberto Nobre –
SN.

INSTITUIÇÕES E SOCIEDADES CIENTÍFICAS

Título Autoria
A Escola de Engenharia de São Carlos e a Fernanda dos Santos Menino -
criação de um Curso de Matemática RB
História da Criação do Curso de Adriana de Bortoli - MT
Matemática na Pontifícia Universidade
Católica de Campinas
A História da Faculdade de Filosofia, Suzeli Mauro - SN
Ciências e Letras de Rio Claro e suas
Contribuições para o Movimento de
Educação Matemática

37
Azevedo, Fernando. (org.). 1994. Pág. 79
38
Dynnikov, Circe Mary Silva da Silva. 1991. Positivismo e Ensino da Matemática: influências portuguesa e
francesa no Brasil no século XIX. Dissertação de Doutorado defendida junto ao Programa de Pós-Graduação
em Pedagogia da Universidade de Bielefeld, Alemanha

31
O Instituto Tecnológico de Aeronáutica na Henrique Marins de Carvalho -
História da Matemática no Brasil SN
O Instituto Cearense de Matemática Eudes Barroso Junior - SN
(1954-1960): A origem do Instituto de
Matemática da UFC
Sociedade de Matemática de São Paulo: Lucieli Maria Trivizoli da Silva -
Um Estudo Histórico Institucional UD
Sociedade Brasileira de Matemática: Um Viviane de Oliveira Santos -
estudo histórico-institucional SN

BIOGRAFIAS

Título Autoria
Primeiro Colóquio Brasileiro de Angélica Raiz Calábria - SN
Matemática - identificação de um registro
e pequenas biografias de seus
participantes.
Mário Tourasse Teixeira - o Homem, o Romélia Mara Alves Souto -
Educador, o Matemático SN
Luigi Fantappiè: Influência na Matemática Plínio Zornoff Táboas - UD
Brasileira. Um Estudo de História como
contribuição para a Educação Matemática
As contribuições de Chaim Samuel Hönig Mariana Feiteiro Cavalari - SN
para o desenvolvimento da Matemática
Brasileira
Sobre condição judaica e a matemática. Edilson Roberto Pacheco - UD
Teodoro Augusto Ramos: Um Estudo Sabrina Helena Bonfim - MT
Documentado de sua Tese de
Doutoramento
O desenvolvimento da Pesquisa em Patrícia de Souza - SN
Equações Diferenciais no ICMC-USP:
Contribuição de Nelson Onuchic
A Matemática é Feminina? Um estudo Mariana Feiteiro Cavalari - SN
histórico sobre a Presença Feminina em
Institutos de Pesquisa em Matemática do
Estado de São Paulo
A Participação da Mulher na Matemática e Margarida Mendonça - SN
na Educação Matemática Brasileira
António Lacaz Neto (1911-1991): um Angélica Raiz Calábria - SN
estudo biográfico
Candido Lima da Silva Dias - da Paulo Cesar Xavier Duarte -
Politécnica aos primórdios da FFCL da RB
USP

32
Um olhar sobre as contribuições do Marcelo Gonzales Badin - SN
Professor Nelson Onuchic para o
desenvolvimento da matemática no Brasil
Intercâmbios Acadêmicos matemáticos Lucieli Maria Trivizoli da Silva -
entre EUA e Brasil: uma globalização do UD
saber
Uma biografia de Eugênio de Barros Raja Juliana Martins - MT
Gabaglia

SÉCULO XIX – DOUTORADOS EM MATEMÁTICA

Título Autoria
O doutorado em Matemática no Brasil: um Celia Peitl Miller - RB
estudo histórico documentado.
História dos Primeiros Doutorados em Mônica de Cássia Siqueira
Matemática defendidos no Brasil Martines - SN
Um estudo sobre o processo que Rachel Mariotto - SN
desencadeou o doutoramento de Joaquim
Gomes de Sousa (1829-1864) e alguns
apontamentos sobre sua tese

ÁREAS DA MATEMÁTICA

Título Autoria
Uma Abordagem Histórica do Antonio Rodolfo Barreto - SN
Desenvolvimento da Estatística no Estado
de São Paulo
Uma História da Lógica Matemática no Carlos Roberto de Moraes - SN
Brasil
Uma história do processo de José do Carmo Toledo - SN
institucionalização da área da Análise
Matemática no Brasil

ANÁLISE DE OBRAS

Título Autoria
O Livro "Théorie des Approximations Fabiane Cristina Höpner Noguti
Numériques et du Calcul Abrégé" de - MT
Agliberto Xavier
O Livro que divulgou o Papiro Rhind no Juliana Martins - MT
Brasil

33
A imersão em um mundo mágico e Rachel Marioto - SN
maravilhoso: Um estudo sobre a obra
literário-educacional de Mário Tourasse
Teixeira
Um estudo de avaliações de matemática Davidson Paulo Azevedo
na Escola de Minas de Ouro Preto - 1876 Oliveira - SN
a 1891

Concluindo, ressalto que os trabalhos aqui apresentados são frutos de


aprofundadas investigações históricas, o que nos fornece maior credibilidade. Com
isso, a escrita da História da Matemática no Brasil ganha novos elementos e se
fortalece.

Referências Bibliográficas

Azevedo, Fernando. (org.). 1994 (2ª Edição). As Ciências no Brasil. Rio de Janeiro:
Editora da UFRJ.
Costa, Nelson Lage & Piva, Teresa Cristina de Carvalho. 2011. A História da
Matemática no Brasil - O Desenvolvimento das Noções do Cálculo, da Geometria
e da Mecânica no Século XIX. In: Scientiarum Historia IV, 2011, Rio de Janeiro.
Congresso de Historia das Ciências e das Técnicas e Epistemologia. Pg. 592-598
D'Ambrosio, Ubiratan. 1997. O Iluminismo e seus Reflexos na Matemática Luso-
Brasileira. in Nobre, S. (ed.) Anais do II Encontro Luso-Brasileiro de História da
Matemática e II Seminário Nacional de História da Matemática. Águas de São
Pedro, 23-26 março de 1997. 53-66.
D’Ambrosio, Ubiratan. 2008. Uma História Concisa da Matemática no Brasil.
Petrópolis: Ed. Vozes.
Dias, André Luís Mattedi. 2002. Matemática no Brasil: Um estudo da Trajetória da
Historiografia. Revista Brasileira de História da Matemática – an international
journal on the History of Mathematics, vol. 2, nr 4. Pg. 169-195.
Houaiss, Antônio (ed. chefe). 1976. Enciclopédia Mirador Universal. São Paulo:
Companhia Melhoramentos.
Kragh, Helge. 1987. An introduction to the Historiography of Science, Cambridge,
Cambridge University Press.
Nobre, Sergio & Baroni, Rosa. 1999. A Pesquisa em História da Matemática e suas
Relações com a Educação Matemática. In Bicudo, M. V. (ed.) Pesquisa em
Educação Matemática: concepções e perspectivas. São Paulo: Ed. Unesp. Pg. 129-
136
Nobre, Sergio. 2002. Introdução à História da História da Matemática: Das Origens
ao Século XVIII. Revista Brasileira de História da Matemática – an international
journal on the History of Mathematics, vol. 2, nr 3. Pg. 3 - 43.

34
Nobre, Sergio. 2005. Isidoro de Sevilla e a História da Matemática presente em sua
Enciclopédia Etimologias (séc. 7). Revista Brasileira de História da Matemática –
an international journal on the History of Mathematics, vol. 5, nr 9. Pg. 37 - 58.
Nobre, Sergio. 2007. Ubiratan D'Ambrosio e o Movimento Científico e Institucional
da História da Matemática no Brasil. In: Wagner Rodrigues Valente. (Org.). Ubiratan
D'Ambrosio: conversas, memórias, vida acadêmica, orientandos. São Paulo:
ANNABLUME. V. 1, pg. 131-141.
Nobre, Sergio. 2007. Uma introdução à história das enciclopédias – a enciclopédia
de matemática de Christian Wolff de 1716. Revista da Sociedade Brasileira de
História da Ciência. Vol. 5, nr. 1. Pg. 34-46.
Nobre, Sergio. 2011. Aula apresentada no Concurso público para provimento de 1
(um) cargo de Professor Titular, em Regime de Dedicação Integral à Docência e à
Pesquisa – RDIDP, junto ao Departamento de Matemática, do Instituto de
Geociências e Ciências Exatas do Campus de Rio Claro, Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, na disciplina “História da Matemática”.
Silva, Clóvis Pereira. 1992. A Matemática no Brasil. Uma história de seu
desenvolvimento. 1. ed. Curitiba: Editora da UFPR.
Söderqvist, Thomas. (ed.). 1997. The Historiography of Contemporary Science and
Technology, Amsterdam, Harwood academic publishers.
Struik, Dirk. 1980. The Historiography of Mathematics from Proklos to Cantor. NTM
– Schriftenreihe Geschichte der Naturwissenschaft, Technik und Medizin. 17, 1-22.
Vogel, Kurt. 1965. L’Historiographie Mathématique avant Montucla. Actes du XIe
Congrès International D’Histoire des Sciences, Varsovie – Cracovie, 3, 179-184.
Wussing, Hans. 1997. Vom Zählstein zum Computer – Mathematik in der
Geschichte, Hildesheim: DIVerlag Franzbecker.

35
LEGITIMAÇÃO DA HISTÓRIA DA MATEMÁTICA EM GRUPOS DE PESQUISA
COM PRÁTICAS INTERCULTURAIS

Ligia Arantes Sad39

RESUMO
O principal motivo para a escolha do tema desta conferência foi oportunizado a partir de
reflexões e demandas de relações diversas quanto ao conhecimento multidimensional e
variacional em história da matemática, que têm tido lugar em grupos de estudo e pesquisa,
escolares e acadêmicos, dos quais tenho participado na última década. O procedimento
da investigação foi levantar informações e apresentar análises sobre algumas influências
e aprendizagens recíprocas, cujos loci das pesquisas ocorreram tanto em meio escolar e
acadêmico como em comunidades culturais locais. O trabalho fronteiriço com as culturas,
em termos das investigações de saberes históricos tradicionais, em especial,
proporcionando inter-relacionamentos voltados para a história da matemática ou a sua
utilização no âmbito da educação matemática, tem permitido alcançar e ampliar a
compreensão dos modos de produção de significados relativos ao fazer matemático. Entre
estes, os significados e conhecimentos advindos da história da matemática como um meio
de legitimá-la entre os participantes dos variados processos investigativos, seja no ensino
e aprendizagem de matemática, de história da matemática ou na pesquisa científica. O
interesse e relevância da análise presente volta-se a estratégias do fazer inerente aos
grupos de pesquisa e sugere que esse caminho tem sido não somente possível a uma
intensificação de uso educacional e apreço pela história da matemática, como valioso no
encontro com o “novo”. Realce que é notado nas trocas culturais, que ocorrem em diálogo
harmonioso, fluindo criatividades no presente, em um “entre-lugar” cultural de pesquisa
para além das fronteiras culturais, propícia aos cooptados em estudos no campo da história
da matemática.

Palavras-chave: História da Matemática. Grupos de Pesquisa. Práticas


interculturais. Legitimação.

INTRODUÇÃO

É desafiante e lacunar a tentativa de mostrar em um texto ou em discurso,


de tempo limitado, os caminhos trilhados em grupos de pesquisa e neles a

39
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo (Ifes).
aransadli@gmail.com

36
impregnação da história da matemática. Especificamente, por se tratar de um
percurso múltiplo de ação acadêmica, escolar e vivenciada também na prática em
comunidades culturais locais.
Ao mesmo tempo, a complexidade desse campo reveste-se de importância
para refletirmos em sentidos variados. Um deles, a respeito da característica
institucional chamada “verticalização” entre os níveis formativos por ela
proporcionados e a integração do ensino, pesquisa e extensão, que podem se
constituir, conforme será mostrado, em constructos potenciais a favor da
legitimidade dos estudos e pesquisas em história da matemática.
A verticalização, entendida como um dos fundamentos do princípio de
organização curricular nos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia,
desde a sua criação pela Lei no 11.892 de 2008, “implica o reconhecimento de
fluxos que permitem a construção de itinerários de formação entre os diversos
cursos” (PACHECO, 2015, p. 10), desde os de nível técnico, à graduação e pós-
graduação.
O que isso tem a ver com o interesse, estudos e pesquisas em história da
matemática? De modo específico, propicia caracterizar que semelhante interação
entre níveis de formação está presente na composição de dois grupos de pesquisa
do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo (Ifes) –
Campus Vitória, liderados por pesquisadores da Coordenadoria de Matemática, dos
quais esta autora também é membro desde 2014. Ambos contam com a
participação conjunta, nem sempre comum a outros grupos de pesquisa, de alunos
do ensino médio técnico, graduação, mestrado e professores que atuam em cursos
de pós-graduação. São eles, o Grupo de Pesquisa em História da Matemática e
Saberes Culturais (GHMat), liderado pela professora Claudia Alessandra de Araújo
Lorenzonni, e o Grupo de Estudos e Pesquisa em Modelo dos Campos Semânticos
e Educação Matemática (Gepemem), liderado pelo professor Rodolfo Chaves e
integrando a Rede Sigma-T40.

40
A Rede Sigma-T é uma rede nacional de pesquisa e desenvolvimento em Educação Matemática,
que congrega professores de matemática e pesquisadores interessados no Modelo dos Campos
Semânticos (MCS). Informações a respeito podem ser obtidas no endereço: http://sigma-t.org.br .

37
Assim, a escolha do tema desta conferência foi proporcionada pela
investigação exploratória do seguinte objetivo – analisar a atuação desses dois
grupos de estudo e pesquisa, discutindo o interesse multidimensional e variacional
em história da matemática e na diversidade cultural, que subsidiaram uma
legitimação desses campos de conhecimento. Cuja relevância de discussões, no
momento atual, se inscreve entre as reflexões de centenas de pessoas que lideram,
integram participativamente ou transitam em grupos de pesquisa brasileiros.

APECTOS PECULIARES DOS GRUPOS DE PESQUISA

Inicialmente, enquanto participantes desses grupos de pesquisa, alunos da


graduação (Licenciatura em Matemática) e mestrandos (EDUCIMAT – Educação
em Ciências e Matemática) cursam ou cursaram disciplinas voltadas a história da
matemática, mas nem todos os pesquisadores e alunos de cursos técnicos, por
exemplo, tiveram contato direto com estudos e/ou pesquisa dessa natureza.
Ademais, temos a valiosa participação, no grupo nomeado GHMat, do mestre em
linguística Mauro Guarani e do professor de matemática Tico Tupinikim, doutorando
em antropologia social (UnB), ambos educadores indígenas em aldeias de Aracruz-
ES.
Por isso, a necessidade de intensificar, no grupo, leituras e discussões que
remetam também a história da matemática, vinculando-a às produções humanas,
instigando investigação em meio ao levantamento de particularidades do
entendimento matemático de determinado cenário cultural. Nessa dinâmica
epistemológica, artefatos e objetos matemáticos, os quais hoje (re)significamos,
produzimos e trabalhamos, também podem ser produto ou recursos que foram
utilizados historicamente de outros modos e em contextos específicos.
No trabalho conjunto e/ou fronteiriço com diferentes culturas locais
(indígenas, paneleiras, ciganos) houve oportunidade de buscar e conhecer
diferenciados e respectivos saberes históricos tradicionais. Em especial atenção,

38
àqueles que pudessem proporcionar inter-relacionamentos voltados a história da
matemática ou à sua utilização no campo da educação matemática.
Uma meta idealizada e perseguida pelos integrantes dos grupos de pesquisa
é, portanto, permitir ampliar a compreensão epistemológica dos modos de
produção de significados relativos ao fazer matemático, tanto histórico quanto em
meio a práticas educacionais e sociais das relações culturais.
Com esse direcionamento, tem-se o apoio em leituras, estudos e práticas
relacionadas a história da matemática, consideradas por estudiosos e
pesquisadores (Powel e Frankenstein, 1997; D’Ambrosio, 2001; Ferreira, 2007;
Radford, 2011; Rogers e Pope, 2019). Eles indicam, entre outras coisas,
contribuições no sentido de mostrar contextos culturais variados, os quais
historicamente legaram produções matemáticas à ciência institucionalizada como
matemática acadêmica ou “universal”, presente também nos currículos escolares.
Ao agregar-se partes da matemática, conhecida como ‘matemática
acadêmica’, a diferentes entendimentos de estratégias desenvolvidas por grupos
culturais específicos, na tentativa de explicar, atuar, inferir e conviver com a
realidade, é importante o cuidado da escuta e observação atenta a outros. De modo
a deixar espaço respeitosamente partilhado e observado, na intenção de fomentar
diferenciados modos de entender e trabalhar a constituição e desenvolvimento do
pensar matematizado.
Um exemplo pode ser observado na explicação quanto a historicidade pelo
próprio povo cigano do ramo dos Calons41, que não preserva qualquer rastro
histórico em termos de documentos ou artefatos, devido a serem bastante
nômades. Mas, mantém forte o costume, desde crianças, da facilidade com
cálculos mentais, requeridos por jogos de baralho e negociações cotidianas de
trocas. Enquanto que entre o povo Guarani, a preservação da historicidade está
bastante incorporada à cultura, valorizada na identidade religiosa, na defesa de
preservação da língua, e mesmo em artefatos, como o arco e flecha e determinados
jogos que requerem inferências e estratégias.

41
Isso ocorreu durante o trabalho de pesquisa de Muller (2015) na comunidade dos Calons, em Praia Grande,
no município de Fundão – ES.

39
São características como essas e outras preocupações que intensificam os
desafios no encontro e trabalho na fronteira entre culturas. No “entre-lugar”, de
acordo com a denominação presente em Bhabha (2010, p.27), onde se invoca o
passado para se criar e produzir “novos” significados em atuação no presente,
provocando visibilidade de outros modos de matematizar. Situações vivenciadas
em meio à prática, no campo de pesquisa, em espaço fronteiriço, serão destacados
na segunda parte deste texto.
Com respeito a olhar para o que representa legitimidade cultural e
acadêmica de um campo de saber instituído, como o caso da história da
matemática, inicio por assumir aqui duas vertentes de diferentes naturezas, porém,
convergentes e não dicotômicas. Uma no âmbito mais sociológico de concepção
ampla a respeito de legitimidade, a partir de Outhwaite et al (1996, p. 413), que
apresentam legitimidade como “conceito empírico ou comportamental, de acordo
com o qual um regime é ‘legítimo’ se a população interessada acredita que ele seja
legítimo”, podendo ter por base uma tradição, apoio em um costume ou interesse.
Outra vertente, no âmbito epistemológico dos sujeitos produtores de
significados e conhecimentos, é a noção de legitimidade considerada na teoria do
Modelo dos Campos Semânticos. Conforme assinalado por Lins (2012), as
legitimidades são internalizadas, e são elas que permitem à pessoa dizer o que diz
em determinado lugar e momento, ou seja, “que aquele modo de produção de
significado era legítimo” (LINS, 2012, p. 20).
Os comentários tecidos até aqui têm o propósito de situar e servir de base à
relevância da escolha temática, bem como subsidiar argumentos na apresentação
das pesquisas e produções realizadas por membros do GHMat e do Gepemem
envolvendo a história da matemática. Isto é, por meio dos exemplos das
produtividades de pesquisa e comentários críticos, tornar sustentável e discutir a
representação e explicação adequadas ao processo, ora em curso, de legitimação
da história da matemática com entrelaçamentos culturais.
Entre os pesquisadores membros do GHMat e do Gepemem tem-se clara a
opção de interesse a estudos e pesquisas que possam estar voltadas a história da
matemática, sendo que no GHMat tem-se priorizado a relação com a diversidade

40
cultural, enquanto que no Gepemem tem-se maior aderência ao relacionamento
epistemológico com base no Modelo dos Campos Semânticos.

PESQUISAS E PRODUTIVIDADES

Os lócus das pesquisas e ambiente do ensino e aprendizagem relativos à


história da matemática ora foi o espaço escolar ou acadêmico, ora espaços em
comunidades culturais locais.
Foram levantadas publicações científicas com relacionamentos à história da
matemática, entre o ano de 2013 e 202042, sob orientação de pesquisadores que
são membros do GHMat e do Gepemem, entre as quais: 3 Monografias (TCC de
Licenciatura em Matemática), 8 Dissertações com Produtos Educacionais, 1 Tese,
4 Livros e 4 capítulos de livros, além de dezenas de trabalhos científicos
apresentados em eventos internacionais, nacionais e regionais, artigos, oficinas,
webinários, mostras culturais e vídeos. Essas produções, aos poucos, foram dando
maior visibilidade aos grupos e contribuem para a consolidação do processo de
legitimação enunciada.
A seguir, no quadro 1, estão alguns títulos provenientes das pesquisas
finalizadas, cujos autores são membros atuantes nos grupos de pesquisa ou de
alunos que foram por eles orientados. A partir deles, escolhi alguns para evidenciar
e comentar. Tais escolhas foram delimitadas pelo acesso ao registro documental,
exame do teor de cada um e constituição substancial para a obtenção de dados e
análise.

QUADRO 1: Produções científicas


Tipo Título Autor(es) Ano Grupo/
Instituição

42
O período entre 2013 e 2020 se justifica pela transição da autora da Universidade Federal do Espírito Santo
(Ufes), onde se aposentou, para ingresso no Instituto de Educação em Ciência e Tecnologia do Espírito Santo
(Ifes), credenciada no Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática (EDUCIMAT).

41
Formação superior específica
Dissertação de professores de matemática Santos, M. G. 2013 Ppge/UFES
no Espírito Santo: uma
história de 1964 a 2000
Os ciganos Calon do
Dissertação acampamento em Praia Grande 2014 Educimat/Ifes
MULLER, B. C.
e o espaço escolar: um olhar
etnomatemático
Prática de ensino e Estágio
Supervisionado na Licenciatura
Tese de Matemática em narrativas de Vieira, R. F. 2016 PpgeUFES
professoras da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de
Alegre
Álgebra e história da
Dissertação matemática: análise de uma Bissi, T. 2016 Gepemem
proposta de ensino a partir da Educimat/Ifes
matemática do antigo Egito
Ensino de História na Educação
Dissertação Básica: (re)significando valores Anjos, W.B. dos 2017 GHMat
sobre os povos indígenas do Educimat/Ifes
Espírito Santo
Teorema de Pitágoras a partir
da história da matemática: Gepemem
Dissertação análises epistemológicas de Prata Filho, G. A. 2018 Educimat/Ifes
atividades em turmas do 9º ano
da rede pública
Construção e transformações
Dissertação do currículo de matemática do Kachel, G. L. S. 2018 Educimat/Ifes
Curso Técnico em Estradas do
Ifes (1960 a 1990)
Saberes Guarani Tambeopé em
aulas de matemática da
Dissertação Moura, A. P. A. 2019 GHMat
educação básica: um olhar
Educimat/Ifes
etnomatemático às suas
MBA’EITXA OO DJADJAPO
Produção de significados a
Dissertação
respeito de números figurados Dutra, T.M. de S. 2020 Gepemem
(*) em um processo de formação Educimat/Ifes
de professores de matemática
Monografia Padrões matemáticos em obras Rodrigues, C. L. 2015 Gepemem
(TCC) (*) de Leonardo Da Vince Comat/Ifes
História da matemática no
Monografia estudo de poliedros de Platão: Schunk, T. J. 2018 GHMat
(TCC) uma intervenção pedagógica no Comat/Ifes
Ensino Fundamental
História em quadrinho no
Monografia ensino de Matemática: uma Gepemem
Majoni, H. S. 2018
(TCC) (*) experiência com o Teorema de Limat/Ifes
Pitágoras.
(E-BooK) Educação matemática
Livro no curso técnico em Estradas Kachel, G. L. S. 2018 HISTOFIC
do Ifes: um olhar para a Sad, L. A. Educimat/Ifes
construção do currículo

42
Teorema de Pitágoras e o
Livro Prata Filho, G. A. 2019 Gepemem
Geogebra: uma relação
Sad, L. A. Educimat/Ifes
possível
Matemática e prática cultural Silva, C. M. S. da GHMat
Livro 2019
indígena Sad, L. A.
Álgebra e História da
Livro Matemática: análise de uma Bissi, T. 2016 Gepemem
proposta de ensino a partir da Sad, L. A. Educimat/Ifes
matemática do antigo Egito
Entre pesquisas em Educação
Capítulo de Matemática, História da Sad, L. A. 2018 GHMat
Livro Matemática e legados Educimat/Ifes
educacionais locais
Uma compreensão histórica da GHMat
Capítulo de formação de professores de Sad, L. A. 2019 Educimat/Ifes
Livro Matemática em cursos
superiores no Espírito Santo
Santos, V. C. GHMat
Iniciação científica Júnior: uma
Capítulo de Lorenzoni, C. A. C. 2020 Curso
experiência com jogos na
Livro de A. Técnico/Ifes
educação escolar indígena
Sad, L. A. Educimat/Ifes
Matemática e sociedade no GHMat
Capítulo de Vieira, A. U. et al 2020
mundo multidimensional da Comat/Ifes
Livro (*)
Panolândia, de Edwin Abbott
(*) Produções científicas provenientes da orientação dos líderes do Gepemem e GHMat.
Fonte: Elaborado pela autora.

Pesquisas como a de Santos (2013), Vieira (2016), Kachel (2018) e Sad


(2007; 2018; 2019) têm como foco a interseção de duas classificações que Baroni,
Teixeira e Nobre (2011) chamaram de “História de Instituições” e “História da
Matemática na formação do matemático e do professor de Matemática”, pois se
voltaram à escrita de uma história sobre a formação superior de professores de
matemática e de instituições de ensino público do Estado do Espírito Santo.
As publicizações dessas pesquisas, em forma de livro e capítulo de livro,
tiveram repercussão junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação em
Ciências e Matemática (EDUCIMAT), principalmente para a linha de pesquisa
denominada “Educação não formal, sustentabilidade, história e memórias no
contexto da educação matemática”. Na qual, por exemplo, comento, a título de
indicação de continuidade temática, o início de nova pesquisa em 2021, em nível
de doutorado profissional, que é pertinente às mesmas classificações da história
da matemática, pois envolve a matemática em cursos de formação superior de
professores de matemática no Espírito Santo.

43
Das dissertações de Bissi (2016), Prata Filho (2018) e Dutra (2020),
sublinho, em especial, durante os procedimentos das pesquisas, o começo de um
trabalho com fontes históricas antigas. Para tanto, os mestrandos precisaram se
empenhar em muitas buscas investigativas e tempo de dedicação aos estudos, a
fim de entender, produzir significados articulados às suas elaborações
matematizadas e conhecer um pouco mais sobre as perspectivas de autores da
historiografia da matemática. Autores como (Heath, 1964; Boyer, 1974; Strüik,
1989; Katz, 2010; Cajori, 2007; Caraça, 1951; Fauvel & Gray, 1987; Kline, 1990;
Gundlach, 1992; Wussing, 1998; Mendes 2006; Radford, 2011; Roque, 2012), cujas
perspectivas históricas vão desde alguns clássicos de fácil acesso a outros mais
socioculturais e/ou recentes.
Interessante foi o modo como conhecimentos a respeito da história da
matemática e da sua utilização no ensino e aprendizagem da matemática foram
produzidos pelos três (Bissi, Prata Filho e Dutra), não somente nas leituras e
discussões compartilhadas com outros colegas dos grupos de pesquisa ou
participantes da pesquisa de campo, mas também em meio ao trabalho em oficinas
e minicursos, realizados via projeto de extensão e por ocasião de eventos
acadêmicos.
Sublinho que as oficinas foram montadas com material manipulável,
utilizando como base a história da matemática, e o minicurso com a mesma base
e auxílio do software Geogebra. Em seu berço de geração, oficinas e minicurso
adicionaram contribuições de membros dos grupos de pesquisa, em especial dos
alunos de graduação, colegas do mestrado, professores e orientadores. Essas
trocas somaram, favoravelmente, tanto no âmbito epistemológico da produção de
significados e conhecimentos sobre a história da matemática, como para
compreensão das interfaces com a matemática atual.
No caso da oficina de Bissi (2016), para além da criatividade do trabalho
didático com réplicas do Papiro Ahmes (ou Rhind), figura 1, e construção de
tabletes de barro com inscrições numéricas antigas, alguns participantes, diante do
sistema simbólico antigo e a eles “estranho”, faziam comparações reflexivas sobre
o sistema simbólico usado hoje na matemática escolar e acadêmica. O que levou

44
a discutir que aquele sistema simbólico, assim como qualquer outro, representa
uma estipulação aceita e incorporada à linguagem de uma cultura ou, conforme
Sad & Lorenzoni (2020, p. 215), “o que aquele grupo cultural determina como
ontologicamente próprio”.
As oficinas sobre números pitagóricos figurados, realizadas e apresentadas
por Dutra (2020) tiveram uma dinâmica diferenciada, com proposta de trabalho em
grupos, monitorados por integrantes do Gepemem. Eles tinham o papel de orientar
e guiar os participantes das oficinas nas tarefas, em meio às quais transitavam do
modo de produção de significados geométrico para o aritmético e, por
recursividade, ao algébrico.
O recurso manipulativo, foi a partir de tampinhas plásticas de garrafas
(material reciclável), previamente separadas por cores. A abordagem investigativa
e histórica iniciou com os números figurados em forma de quadrados, depois os
triangulares e finalmente pentagonais, usando um número triangular e outro
quadrado (figura 2), conforme a relação de Leonard Eüler (1707-1783), provada em
1750, segundo Bell (2012).

FIGURA 1: Réplica do Papiro Rhind FIGURA 2: Oficina de números figurados

Fonte: Dutra (2020)


Fonte: Bissi (2016)

Ainda, destaca-se o trabalho de Prata Filho (2018), bem como a oficina e, no


ano seguinte, o minicurso – (Re) significações sobre o Teorema de Pitágoras:

45
demonstrações históricas e aplicações via Geogebra – que ele ministrou por
ocasião do XIII Seminário Nacional de História da Matemática. Principalmente, por
sua metodologia de investigação na abordagem de variadas demonstrações
históricas do Teorema de Pitágoras e tarefas de aplicação, nas quais utilizou o
software Geogebra (figura 3) como recurso auxiliar na motivação e compreensão
dos participantes.

FIGURA 3: Demonstração do Teorema de Pitágoras

Fonte: Prata filho (2018)

No ano de 2018, dois dos alunos da licenciatura de Matemática que


frequentavam o Gepemem e já haviam feito a disciplina de História da Matemática,
escolheram fazer seus trabalhos de monografia (TCC) com foco na história da
matemática, Majoni (2018) e Schunk (2018). No ano seguinte, ambos prestaram
processo seletivo e entraram para o mestrado (EDUCIMAT/ Ifes) com projetos
relacionados diretamente com os temas de suas respectivas monografias e
continuaram a partilhar no grupo de pesquisa.
No quadro 1, realçamos três dissertações e produtos de mestrado, de Muller
(2014), Anjos (2017) e Moura (2019), que são relacionados a culturas específicas,
utilizando a etnopesquisa crítica e a historicidade das respectivas comunidades.
Muller (2014) trabalhou em comunidade dos ciganos Calon, em Praia Grande –
Fundão – ES; enquanto que Anjos (2017) e Moura (2019) em comunidade indígena

46
Guarani, em Aracruz – ES, incentivados também pela participação como membros
do GHMat.
Com a intensificação das aproximações interculturais e colaboração de
pesquisadores e professores indígenas a participarem do GHMat, houve condições
propícias e apoio a novos projetos. Assim, tivemos aprovação de dois projetos de
pesquisa com fomento da FAPES (Fundação de Apoio a Pesquisa no Espírito
Santo), sendo que o projeto vigente43 “envolve o contexto histórico dos povos
[Guarani e Tupinikim], a educação matemática escolar indígena e não indígena e
as transformações possíveis mediadas pelo diálogo intercultural” (SAD &
LORENZONI 2020, p. 218). No ano de 2020, foi agregado a esse projeto de pesquisa,
um projeto de extensão, no qual participaram alunos de nível técnico, graduação e
Pós-Graduação.
Desta feita, uma metodologia de exploração foi oportunizada pelo contato
com jogos e brincadeiras tradicionais entre os Guarani, na Aldeia Três Palmeiras,
em Aracruz – ES. A seguir, a título de exemplificação, apresento comentários dos
registros das ações realizadas em dois desses jogos.
No entender e linguagem guarani, a (mangapete), que para nós não-
indígenas é uma brincadeira ou jogo da peteca, e em tupi pe’teka (bater com a
palma da mão), conforme dicionário etimológico de Cunha (1986). Certamente, pelo
jogar batendo com as mãos na peteca, para que ela não caia e tenha certa direção.
Em geral, a peteca é composta por uma base macia, que os guarani de Aracruz –
ES confeccionam utilizando a palha seca de milho, entrecruzadas e preenchidas
com material (como pequenas pedras) para pesar, amarrada com embira ou outro
material a um feixe de penas, as quais ajudam o direcionamento e equilíbrio no ar.
Na oficina, aprendendo com pesquisador guarani sobre como confeccionar
peteca e depois jogar, os estudantes e professores não índios, integrantes do
GHMat, observaram a questão de influência das penas e a trajetória, relaciona ao
fazer matemático. Os indígenas presentes esmeravam-se em sua confecção (de

43
Projeto registrado na Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação do Ifes como “PJ00005819 -
Jogos e brincadeiras indígenas numa perspectiva etnomatemática - 2ª fase”.

47
modo mais silencioso) e, em momento propício, contaram que é um jogo tradicional
entre eles, com rastros religiosos, inclusive por causa do milho44.
Em semelhante partilhar intercultural, ocorreu o trabalho sobre confecção e
lançamento de arco-e-flecha. Esse artefato faz parte dos instrumentos de caça,
mas está também entre os jogos e brincadeiras indígenas dos guarani.
A partir deles foi possível observar um matematizar local, que resultou em
reflexões e perspectivas criadas em termos da história da matemática, que podem
ser relacionadas ao ensino e aprendizagem de noções matemáticas. Isso porque a
trajetória da flecha lançada, nas filmagens durante as oficinas e recomposições em
vídeos, aparece claramente em sua forma parabólica (figura 4). Tais procedimentos
e observações foram descritas, matematicamente, no trabalho científico de alunos
bolsistas de Iniciação Científica, na IV Jornada de Integração Científica do Ifes, em
2020, conforme Ribeiro & Lorenzoni (2020).

FIGURA 4: Forma parabólica das trajetórias da peteca e do arco-e-flecha

Fonte: Ribeiro & Lorenzoni (2020)

Em termos dos estudos históricos, foi motivo para questionar: essa curva, a
parábola, há muito vem sendo observada nos desenvolvimentos históricos? Como?
Investigação bibliográfica pode indicar que, desde os gregos antigos, temos

44Tradicionalmente cultivado, é tido como um alimento fundamental, “a semente do milho para os


Guarani é considerada sagrada, sendo utilizada em cerimônias onde as crianças recebem seus
nomes indígenas (nhemogarai)” (ANJOS & SAD, 2018, p. 26).

48
interesse em equações que resultam em tais curvas. A respeito dela, um dos
rastros mais antigos tem referência a Menaechmus. De acordo com Gardeño
(2000), ele foi mestre de Aristóteles (384-322 a.C.) e de Alexandre Magno. Eles
trabalhavam a média proporcional entre 1 e 2, do seguinte modo 2/x = x/y = y/1, e
daí, x2 = 2y e y2 = x (em notação atual).
Em continuidade ao desenvolvimento histórico, também há a elaboração da
curva a partir de Apolônio (250-175 a.C.), em sua obra Cônicas, Proposição V-8,
V-13, e V-27, a qual passou a ser denominada de parábola, como resultante da
seção de um cone em ângulo reto (KATZ, 1993). Embora, antes, já estivesse assim
nomeada por Arquimedes (287-212 a.C.), conforme tradutores de seu manuscrito
Sobre a quadratura da parábola, que Gardeño (2000) afirma ser devido a
Regiomontano no séc. XVI (figura 5).

FIGURA 5: Parábola em manuscrito arquimediano

Fonte: Gardeño, 2000, p. 52.

49
Na confluência entre matemática, práticas culturais e história da matemática,
foi também composto o livro didático “Matemática e prática cultural indígena”
(SILVA & SAD, 2019), direcionado aos anos iniciais da escola básica. Ele integra a
produção resultante de ações do Projeto de Pesquisa “Jogos e brincadeiras
indígenas numa perspectiva etnomatemática”, contemplado pelo apoio do Edital
FAPES - nº 21/2018.
O livro foi lançado pelas autoras em webinário proposto e gerenciado por
integrantes do GHMat. Essa obra (figura 6) teve como objetivo central mostrar como
conteúdos da matemática escolar podem ser trabalhados nas aulas de escolas
indígenas em abordagens interculturais, prezando por temas da realidade dos
alunos e educadores indígenas, com variadas tarefas matemáticas e algumas
inserções na historiografia da matemática, permitindo atuação de modo
interdisciplinar.

Figura 6: Livro didático “Matemática e prática cultural indígena”

Fonte: acervo da autora.

O livro foi distribuído em escolas da comunidade indígena para que possa


ser um recurso didático às comunidades indígenas locais. Teve a colaboração de
educadores indígenas, alunos e lideranças entre os guarani e tupinikim,

50
professores da Ufes, do Ifes e da Secretaria Municipal de Educação de Aracruz
(SEMED), desde a sua confecção, validação das atividades e lançamento.
O contato com comunidades escolares indígenas locais tem permitido
determinadas matematizações, que levou, por exemplo, à reflexão e investigação
sobre jogos e brincadeiras tradicionais. Entre eles, os jogos tradicionais guarani
explorados no texto de Sad & Lorenzoni (2020), o “Jogo do Milho queimado” e “Jogo
da onça”. Outros jogos e brincadeiras estão no foco das investigações históricas e
matemáticas planejadas por pesquisadores do grupo GHMat, que, atualmente,
estão a elaborar outro livro, desta vez com partes em língua guarani e tupi.
Assim, existem expectativas de continuidade nas pesquisas, aliadas a
atuação da líder do GHMat como professora da disciplina de História da
Matemática, na Licenciatura em Matemática, despertando interesses e
incentivando alunos a intensificar estudos em história da matemática. Por vezes,
continuados na Pós-Graduação do EDUCIMAT/Ifes.
Além disso, a ampliação desse espectro é provocada pelo envolvimento de
alunos do ensino médio técnico, como voluntários ou bolsistas de iniciação
científica e tecnológica, a participar de projetos de extensão que vão sendo
fomentados e permitem o contato direto com mestrandos, doutorandos,
pesquisadores, e, em especial, com grupos culturais diversos.
Tudo isso, em clima de respeito e apoio comum, valoração da cooperação
mútua nas atividades e ações. Atividades consideradas de acordo com Leontiev
(1978), como uma unidade de análise para compreensão coletiva, “de modo que o
homem, no seio deste processo, não entra apenas em uma relação determinada
com a natureza, mas com outros homens, membros de uma dada sociedade.”
(LEONTIEV, 2004, p. 40). Em convergência,

Conhecer a historicidade e explorá-la em conjunção com ideias


matemáticas a serem introduzidas na educação escolar indígena
passa, então, por conhecer e reconhecer os saberes tradicionais da
comunidade e viabilizar o emprego dos conhecimentos, inovações
e práticas produzidos nesse encontro para a solução de problemas
do grupo. (SAD & LORENZONI, 2020, p. 219).

51
Os encontros do Gepemem são realizados em espaço presencial partilhado
no Laboratório de Prática de Ensino Integrado (LPEI), apelidado carinhosamente
de “Cafofo”; e do GHMat, no Laboratório de Ensino de Matemática (LEM) ou, por
vezes, nas dependências da escola indígena em Aracruz. Durante esse tempo
atual, de pandemia pela Covid-19, as reuniões e planejamentos continuam a
acontecer em espaço virtual.

CONSIDERAÇÕES CONCLUINTES

As descrições e explicações apresentadas neste texto tiveram o propósito


de fomentar reflexões e indicar os caminhos trilhados para tornar dinâmico o fazer
matemático aliado à história da matemática e, ao mesmo tempo, aos meandros de
significados partilhados por grupos culturais específicos e locais. Nesse sentido,
promover investigações sobre um possível matematizar local tem realçado novas
perspectivas, significados, resultados e relacionamentos entre a história da
matemática e a matemática acadêmica tida como mais global.
Esse movimento dialético no aproveitamento do processo de verticalização
no Ifes, integrando alunos de nível médio técnico, graduandos, mestrando,
doutorandos e pesquisadores em atividades conjuntas e partilhadas, têm cooptado
uma intensificação do envolvimento, apreço e interesse dos participantes na última
década. Vários deles têm se voltado à compreensão e utilização da história da
matemática, como algo valioso no encontro de suas criatividades ou em suas
práticas educacionais.
O trabalho fronteiriço com as culturas, em termos das buscas de saberes
históricos tradicionais, de inter-relacionamentos voltados para a história da
matemática ou da sua utilização no âmbito da educação matemática, tem permitido
também alcançar e ampliar a compreensão dos modos de produção de significados
relativos ao fazer matemático.
Assim, é possível enaltecer a produção de significado e conhecimentos
legitimados, por meio de seus produtores, no campo do fazer matemático e da
história da matemática, a partir de um entre-lugar na fronteira cultural. O que, aos

52
poucos, é decisivo na legitimação da história da matemática nos grupos de
pesquisa e para além.

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56
Eugênio Gabaglia: construção de uma biografia

Juliana Martins45

RESUMO
Estudos apontam que os problemas apresentados em um trabalho de natureza biográfica
são semelhantes ao de qualquer pesquisa histórica. Nesse sentido, não existem regras ou
métodos pré-definidos para se escrever a história de uma vida. Um exemplo disso será
apresentado nesse texto ao explanar-se sobre o processo de construção e exposição da
biografia do professor de matemática Eugênio de Barros Raja Gabaglia (1862-1919).
Fugindo do padrão da temporalidade linear, a trajetória de sua vida foi construída a partir
de episódios históricos organizados em diferentes temáticas. O primeiro versa sobre a obra
do professor; o segundo sobre sua estreita relação com o Colégio Pedro II; no terceiro
discute-se dados da história de seus antepassados dando ênfase à história de uma figura
de referência em sua vida: seu pai. No quarto episódio o tema é sua formação na Escola
Politécnica; no quinto investigou-se sua infância e os primeiros estudos. O sexto episódio
contém informações sobre as duas principais ocupações de Gabaglia: a engenharia e a
docência; no último episódio histórico citamos alguns relatos de ex-alunos e colegas de
trabalho no intuito de criarmos uma imagem de como o professor Gabaglia era visto pelos
seus contemporâneos.

Palavras-chave: Biografia. Eugênio Raja Gabaglia. História da matemática no


Brasil.

O FAZER HISTÓRICO-BIOGRÁFICO

Para iniciar esse texto serão apresentadas breves reflexões sobre o fazer
biográfico que, nesse caso, refere-se também ao próprio fazer histórico.
Historiadores da matemática eventualmente preocupam-se com o fazer
histórico, isto é, com o processo de produzir uma história contextualizada pautada
em movimentos de crítica, interpretações das fontes selecionadas e, aliados à
escrita de uma narrativa clara e atualizada46.

45 (UFRPE). juliana.martins2@ufrpe.br
46 As concepções de historiografia atualizada e história contextualizada são baseadas em Saito (2015).

57
Ao mesmo tempo em que teorias da história e suas ferramentas
historiográficas passam por processos de atualização, o fazer biográfico também
acompanha essas mudanças. Vejamos,

[...] não se tratava mais de fazer, simplesmente, a história dos


grandes nomes, em formato hagiográfico – quase uma vida de
santo –, sem problemas, nem máculas. Mas de examinar os atores
(ou o ator) célebres ou não, como testemunhas, como reflexos,
como reveladores de uma época. (PRIORE, 2009, p. 9)

No trecho acima a autora afirma que não se espera mais por uma biografia
que relata uma vida “de santo”, espera-se sim por narrativas que retratem vidas de
pessoas (célebres ou não), dentro de suas realidades, seus problemas. Além disso,
que a história dessas pessoas faça emergir os contextos sociais e culturais em que
viveram.
É preciso ficar claro a impossibilidade de se “dominar a singularidade
irredutível de uma vida”, e a impossibilidade de se esgotar o absoluto do “eu” na
vida daqueles que pesquisamos (BORGES, p. 216-217). Assim, a preocupação
atual dos historiadores é com o verossímil, com o que parece poder ser verdadeiro,
o que é possível ou provável.
Ainda na esteira da escrita biográfica Borges (2008), comenta que não
existem regras ou métodos indiscutíveis para se escrever a história de uma vida.
Segundo a autora, pode-se afirmar que os problemas apresentados em um trabalho
dessa natureza são semelhantes ao de qualquer pesquisa histórica.
Um exemplo é que em história sabemos a priori como tudo acabou, isto é,
qual foi o fim daquela história. Muitas vezes o próprio fim é o motivo que leva o
historiador a investigar e construir/escrever sua história. Por isso é preciso tomar
cuidado para a narrativa não se torne um percurso orientado (linear), que segue
uma visão retrospectiva (do fim para o começo).
Sergio Vilas-Boas (2014), discute o modo de encarar e organizar a própria
narrativa biográfica. Diz o autor:

a concepção de tempo, no que se refere à narrativa biográfica,


tende a: transmutar-se da ideia de uma flecha para a imagem de

58
uma espiral; encaminhar-se mais para o modo como o biógrafo
experimenta o tempo do que para o modo como o experimentara o
biografado [...] (VILAS-BOAS, 2014, p. 230)

Ao encarar o tempo como algo que orienta, mas que não dá sentido aos
acontecimentos da vida do biografado, o autor apresenta uma possibilidade de
ruptura com o padrão linear e temporal que a maioria das biografias são
encontradas.

UMA BIOGRAFIA DE EUGÊNIO GABAGLIA: construção e apresentação

O maior desafio para a construção e apresentação de uma biografia que


estivesse de acordo com a literatura norteadora do trabalho foi desvencilhar-se do
modo como os outros relatos sobre a vida do professor Eugênio Gabaglia foram
escritos.
Esses relatos que constituíram boa parte dos dados da pesquisa foram
escritos depois da morte de Gabaglia, sendo assim, de modo geral eles apresentam
uma tonalidade de homenagem e pouco refletem sobre o momento social, cultural
e histórico da época em que ele viveu.
Evidentemente buscou-se outros documentos auxiliares ao processo de
investigação. Foram coletados materiais em bibliotecas da cidade do Rio de
Janeiro, como a Biblioteca Nacional e a Biblioteca do Clube de Engenharia.
Além disso, buscou-se informações no Arquivo da Marinha, no Arquivo
Nacional e no NUDOM (Núcleo de Documentação e Memória do Colégio Pedro II),
e nos documentos doados do acervo pessoal de Elizabeth Pessoa Raja Gabaglia
(neta de Eugênio).
Outra etapa fundamental para a coleta do material foi o levantamento de
notícias em jornais da época por meio da Hemeroteca Digital – Fundação Biblioteca
Nacional.
Após o processo de coleta do material, a primeira ideia para a composição
da história da vida de Gabaglia se assemelhou a um quebra-cabeça que reunia

59
peças aleatórias com informações biográficas retiradas dos documentos
selecionados. Inicialmente as peças estavam desordenadas, porém, aos poucos foi
iniciada uma tentativa de organização temporal para essas informações.
Em um terceiro momento, ao verificar o corpo que a narrativa estava
tomando, buscou-se um modo alternativo para essa construção. A medida em que
se dava o afastamento do modo linear e temporal de apresentar as informações
sobre a vida de Gabaglia, tentava-se criar um modelo de pequenas histórias que
se reunidas, apresentariam sua biografia.
As pequenas histórias foram nomeadas de episódios históricos, por sua
vez, construídos um a um, a partir de temáticas que surgiam da necessidade de
compreensão de algum aspecto da vida de Gabaglia cuja documentação permitia.
Ao fim do trabalho a junção dos sete episódios históricos compõe sua biografia.
Na seção a seguir os episódios são abordados de forma breve, alguns com
mais detalhes do que outros, com o intuito de proporcionar ao leitor uma ideia de
seus conteúdos47.

SETE EPISÓDIOS HISTÓRICOS SOBRE QUEM FOI RAJA GABAGLIA

O primeiro episódio trata da produção escrita de Gabaglia, isto é, sua obra.


A partir do quadro abaixo tem-se uma visão geral dos trabalhos e quando foram
publicados.

QUADRO 1: Obra de Raja Gabaglia


Ano Tese Artigo/Prefácio/Relatório Livro
Series;
Desenvolvimento
das funcções em
1885
serie com os
recursos da analyse
directa
- Relatório sobre Juiz de Fora
Funcções de
- Prefácio do livro Curso de
1893 Nutrição na Serie
Mathematica Elementar, de Aarão
Animal
e Lucano Reis

47
Para ler os episódios na íntegra e conhecer mais sobre a pesquisa de doutorado que
fundamenta esta conferência, ver Martins (2019).

60
Tradução dos livros
1895 a ?
da Coleção FIC
Relatório da Construção da nova
1896
capital de Minas Gerais
- Calculo Verbal, Calculo Graphico,
Calculo Pratico
O homem como - 1º, 2º e 3º parágrafos do livro “O
1897
capital mais antigo documento
mathematico conhecido (papyro
Rhind)”48.
O mais antigo
documento
1899 Distincção entre os logarithmos mathematico
neperianos e naturaes conhecido (papyro
Rhind)
Programmas para
os exames de
1912
machinista da
Escola Naval
A Mathematica em Cambridge
- Prefácio do “Annuario do Collegio
1914 Pedro II” – Vol. I.
- O Collegio Pedro II
Prefácio do “Annuario do Collegio
1915
Pedro II” – Vol. II
Curso de
1917
Navegação Interior
- Prefácio do “Annuario do Collegio
Pedro II” – Vol. III
- A evolução do conceito do
1919
inifinitesimo em mathematica –
parte primeira – Dos Gregos a
Cavalieri
Fonte: Martins (2019, p. 35)

Gabaglia produziu trabalhos em diferentes áreas do saber. Seus ofícios de


engenheiro e professor e, seus interesses pessoais, contribuíram para essa
diversidade de trabalhos. Na área de matemática suas contribuições mais
relevantes foram as traduções dos livros didáticos franceses da coleção F.I.C,
iniciadas por volta do ano de 1895.

A influência dos F.I.C no ensino de matemática no Brasil extrapolou


do ensino no Colégio Pedro II e perdurou muitos anos. Seus
exemplares foram por diversas vezes republicados em novas
edições, no acervo da Biblioteca Nacional encontramos, a exemplo,
a 18ª edição do livro Elementos de Geometria Descritiva do ano de
1966! (MARTINS, 2019, p. 47)

48 Publicados na Revista do Club de Engenharia e na Revista da Escola Polytechnica.

61
Graças a essas traduções o nome do professor Gabaglia passou a figurar
na história do ensino de matemática no Brasil.
Além desse feito, o professor escreveu uma série de textos que, segundo
ele, fariam parte de um trabalho ainda inédito sobre “Historia da Mathematica”,
dentre eles destaca-se o livro “O mais antigo documento mathematico conhecido
(papyro Rhind)”, publicado em 1899. Para Silva (2001), a publicação desse livro
torna Gabaglia o primeiro brasileiro a escrever um livro na área de História de
Matemática.

[...] essa publicação além de tornar Gabaglia um pioneiro na escrita


de textos de história da matemática no Brasil, o coloca, em termos
mundial, entre as primeiras pessoas que estudaram o papiro Rhind,
um tema de recente interesse na Europa na época em que publicou
seu livro (MARTINS, 2019, p. 126).

Atualmente o professor Gabaglia é reconhecido como o divulgador do


papiro Rhind no Brasil.
No segundo episódio o enfoque é dado na estreita relação do professor
Gabaglia com o Colégio Pedro II, instituição na qual trabalhou por mais de 30 anos
e onde realizou os exames preparatórios para ingresso no ensino superior, em 1878
e 1879.
No terceiro episódio é contada uma história dos antepassados de Eugênio,
dando devido destaque a vida de uma de suas maiores influências: seu pai
Giácomo Raja Gabaglia. Na investigação realizada verificou-se que os avós
paternos de Eugênio saíram da Itália a caminho da Província Cisplatina (onde hoje
é o território do Uruguai) em 1829. Poucos anos depois mudaram-se para o Rio de
Janeiro onde Giácomo que era o filho mais velho poderia estudar e ajudar no
sustento da família.
Em 1839 Giácomo formou-se aspirante a guarda-marinha dando início a
sua carreira na Academia da Marinha. Anos mais tarde, Giácomo assumiu um posto
na Comissão Científica de Exploração das províncias do Império, viajando
frequentemente entre o Maranhão e o Ceará, nos anos de 1859 a 1861. Foi nessa

62
última província que conheceu sua futura esposa Maria da Natividade de
Albuquerque Barros. O episódio se encerra com o nascimento de Eugênio de
Barros Raja Gabaglia, o primogênito do casal.
No quarto episódio o tema abordado foi a formação acadêmica de Eugênio
na Escola Polytechnica. A pesquisa mostrou que ele provavelmente concluiu os
seis cursos existentes na instituição naquela época: Curso de Sciencias Physicas
e Naturaes, Curso de Sciencias Physicas e Mathematicas, Curso de Engenheiros
Geographos, Curso de Engenharia Civil, Curso de Minas e o Curso de Artes e
Manufacturas.
Ainda durante o período em que foi acadêmico da Escola Polytechnica
Eugênio participou ativamente de algumas ações, por exemplo a criação do Centro
Abolicionista da Escola Polytechnica, participando da comissão que escreveu os
estatutos do centro, cuja aprovação ocorreu em agosto de 1883. Antes de concluir
seus estudos na Escola Polytechnica, Eugênio já leciona em algumas instituições
de ensino, por exemplo o Colégio Pedro II.
No quinto episódio é contada a história da sua infância, desde seu
nascimento em Niterói – RJ, a mudança para Sobral – CE após a morte de seu pai,
seus primeiros estudos e o retorno para o Rio de Janeiro aos 15 anos, para concluir
os estudos secundários e prestar os exames para ingresso no curso superior.
No sexto episódio são discutidas as atividades profissionais que Gabaglia
exerceu, ou seja, seu ofício como engenheiro e como professor.
No sétimo e último episódio foram apresentados relatos (homenagens
póstumas e historietas) de ex-alunos e ex-colegas de trabalho de Gabaglia no
intuito de proporcionar aos leitores a criação de uma imagem de Eugênio enquanto
professor de matemática.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BORGES, V. P. Grandezas e Misérias da biografia. In: Carla Bassanezi Pinsky


(org). Fontes históricas — 2.ed., 1ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2008.

63
MARTINS, J. Uma biografia de Eugênio de Barros Raja Gabaglia. 2019. 134 fl.
Tese (Doutorado em Educação Matemática) – Instituto de Geociências e Ciências
Exatas do Câmpus de Rio Claro, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho”, Rio Claro, 2019.

PRIORE, M. D. Biografia: Quando o indivíduo encontra a história. In: Revista


Topoi, v. 10, n. 19, jul-dez, 2009. pp. 7-16.

SILVA, C. M. S. A história da matemática e os cursos de formação de


professores. In: Helena Noronha Cury. (Org.). Formação de professores de
Matemática: uma visão multifacetada. 1ª edição. Porto Alegre: Edipucrs, 2001, v.
1, p. 129-166.

VILAS-BOAS, S. Biografismo: Reflexões sobre as escritas da vida. 2ª ed. – São


Paulo: Editora Unesp, 2014.

64
OS RASTROS, O FIO E AS TRAMAS – SOFIA: UMA MATEMÁTICA
NOTÁVEL

Circe Mary Silva da Silva49

RESUMO
Na presente narrativa sobre a matemática russa Sofia Vasiliyevna Kovalevskaia50,
procura-se responder à seguinte questão: que trajetória de profissionalização
trilhou Kovalevskaia para tornar-se a primeira mulher, no século XIX, a ensinar
matemática superior numa universidade europeia? Os resultados, obtidos por meio
de uma análise documental, apontam que a formação em matemática de
Kovalevskaia começou na infância com aulas ministradas por professores
particulares, seguida de uma formação universitária limitada a aulas na condição
de ouvinte, com a participação decisiva do experiente matemático alemão Karl
Weierstrass e apoio profissional do colega e matemático sueco Magnus Gösta
Mittag-Leffler. Ao mesmo tempo que reflete a situação das mulheres excluídas da
formação de nível superior, a trajetória dessa matemática russa mostra o esforço
feito por algumas mulheres para abrir caminhos que lhes possibilitassem o
exercício de atividades “diferenciadas”, permitindo-lhes o ingresso em campos -
como o da matemática – até então prerrogativas quase que exclusiva de homens,
no século XIX.

Palavras-chave: Matemática. Profissionalização. Sofia Vasiliyevna Kovalevskaia.

ABRINDO AS CORTINAS
Uma professora de matemática mulher é um fenômeno perigoso e desagradável, pode-
se dizer calmamente uma monstruosidade. O seu convite para um país onde há tantos
matemáticos muito superiores a ela, só pode ser explicado com a galanteria dos suecos
em relação ao sexo feminino. (TUSCHMAN; HAWIG, 1983, p. 151)

A epígrafe acima, publicada em jornal de Estocolmo (1883), retrata a visão


masculina51 do début de Sofia Kovalevskaia (1850-1891) no ensino superior da

49 Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) E-mail: cmdynnikov@gmail.com


50 As diferentes grafias do nome, em russo, софья васильевна ковалевская, causam confusões
porque às vezes aparece com o apelido “Sonja”, em português significa Sonia. Vogt (2001) listou
uma variedade delas, em várias línguas.
51 A citação é de autoria de August Strindberger (1849-1912), dramaturgo, romancista e contista

sueco, incluída no livro de Tuschman e Hawig.

65
matemática, no final do século XIX, na Suécia. Pela primeira vez, no século XIX,
uma mulher assumiu a docência de matemática superior numa universidade da
Europa. Tal feito não é pequeno, considerando que à época na maioria dos países
do mundo, a frequência a instituições de ensino superior era vedada às mulheres
assim como era impensável a possibilidade de elas exercerem a docência nesse
nível de ensino. Além de todos os preconceitos existentes, no século XIX, a mulher
não tinha na sociedade o mesmo status que os homens. Existia a crença de
supremacia masculina no que dizia respeito à inteligência: o livro publicado na
Suécia e intitulado O estudo e a prática da medicina para mulheres, de autoria do
médico Bischoff (1872), revela exemplarmente esse pensamento. Senão vejamos:
Segundo a ordem divina e natural, o sexo feminino não tem a capacidade de
cultivar e praticar as ciências ou, acima de tudo, as ciências naturais e a
medicina. O emprego do estudo e da prática da medicina, contraria e ofende o
lado melhor e mais nobre da natureza feminina, a modéstia, a vergonha, a
compaixão e a misericórdia que a distinguem do macho. (BISCHOFF, 1872, p.
45)

Entender como essa mulher russa, desafiando o status quo, conseguiu


obter formação profissional e ocupar um lugar no campo matemático foi o objetivo
que orientou o trabalho que deu origem ao presente texto.
Como é possível conduzir metodologicamente pesquisas em História da
Matemática e em História da Educação Matemática? Naturalmente, é uma pergunta
que admite muitas respostas, já que, conforme minha concepção, não existe, no
fazer histórico, caminhos definidos a priori.
A metáfora de Ginzburg (2007), na introdução do seu livro O fio e os rastros,
mostra como ele investigava. Ao trazer o mito grego de Teseu que, no labirinto,
procurava o minotauro para matá-lo, ele está interessado naquilo em que ninguém
havia prestado a atenção - os rastros deixados por Teseu e o fio de Ariadne que o
impediu de se perder no labirinto e lhe permitiu capturar o minotauro.
Ao começarmos uma investigação estamos à caça de um minotauro, que
nós mesmos criamos: é a nossa questão investigativa. Trabalhamos com
documentos e é natural que os procuremos com a mesma garra que Teseu o fez.
No caso da presente investigação, o corpus documental foi constituído por livros:
escritos por Sofia, por pessoas do círculo pessoal de Sofia e historiadores da

66
matemática, artigos publicados por Kovalevskaia, artigos escritos sobre
Kovalevskaia, cartas, fotografias e filmes. Nessa pesquisa, identificamos em dois
filmes biográficos russos, produzidos em 1956 e 1985, que têm como tema central
a primeira mulher matemática russa a se destacar internacionalmente, os principais
personagens que fizeram parte de sua vida.
Neste estudo, a pergunta investigativa que procuro responder é a seguinte:
que trajetória de profissionalização trilhou Kovalevskaia para tornar-se a primeira
mulher, no século XIX, a ensinar matemática superior numa universidade europeia?
A personagem – Sofia Vasiliyevna Kovalevskaia – teve sua escolha
motivada pelas seguintes razões: a primeira e a mais relevante foi o fato de ela ter
sido a primeira professora universitária de matemática no século XIX; uma mulher
revolucionária no campo da educação. Ela abriu caminho para que outras
mulheres, antes excluídas dos estudos superiores da matemática, pudessem
frequentar uma universidade, tornarem-se pesquisadoras e professoras de
matemática. A segunda razão está ligada ao ano jubilar: em 2021 se comemora os
130 anos de sua morte. Em terceiro lugar, porque a história da matemática, tem
dado pouco destaque às atividades matemáticas das mulheres e elas são, portanto,
quase desconhecidas, não só do público em geral, como das próprias professoras
de matemática. Em quarto lugar, porque o conhecimento sobre essa matemática e
professora estrangeira, pode motivar os pesquisadores, no Brasil, a investigar mais
sobre as educadoras brasileiras da área: as pesquisadoras matemáticas, as
autoras de livros didáticos, as líderes nas políticas públicas e as professoras de
matemática. Não apenas aquelas brasileiras que se notabilizaram, mais
conhecidas, como Marília Chaves Peixoto (Silva, 2019), que morreu praticamente
com a mesma idade que Sofia Kovalevskaia, mas aquelas ainda quase anônimas.
É preciso criar novas áreas investigativas no cenário atual de pesquisas em história
da matemática e história da educação matemática.
Como dizia Bloch (2001), ao iniciar uma pesquisa, é preciso agir como um
trabalhador, que não inicia seu trabalho sem alguma ideia prévia do terreno a
explorar, neste caso, sem conhecer as produções já realizadas. Quanto mais
conhecemos o “terreno” menos riscos corremos de inventarmos novamente a roda.

67
Ao escolher um personagem ou uma instituição ou uma teoria matemática
a investigar, é preciso contextualizar essa questão. Os acontecimentos não
ocorrem no vácuo, as pessoas vivem em um lugar e tempo determinados. Como
diz Ginzburg, é preciso descobrir o mundo em que elas deviam conhecer.
Contextualizar é essencial. Para Bloch (2001, p. 60): “nunca se explica um
fenômeno histórico fora do estudo do seu momento”. É importante lançar perguntas
simples para levantar o “cerco”, como um estrategista que não entra em terreno
desconhecido.

O CONTEXTO

Sofia nasceu em 3 de janeiro de 1850, no Império Russo, cuja extensão


territorial era maior do que a Federação da Rússia atual. Incluía grande parte da
Polônia, Repúblicas Bálticas e Finlândia, na sua parte europeia.
Sofia era filha de Vasily Korvin-Krukovsky, tenente-general de artilharia, e de
Elizaveta Schubert. A mãe é descendente de uma família de astrônomos e
matemáticos: o avô materno foi matemático, geodesista e astrônomo russo 52 ,
enquanto o bisavô - Fiodor Ivanovitch Shubert (1758-1825) 53 - foi astrônomo,
matemático, membro da Academia de Ciências de São Petersburgo e chefe do
Observatório Astronômico de São Petersburgo. Ele trocava correspondência com
matemáticos como Pierre-Simon Laplace (1749-1827), Carl Friedrich Gauss (1777-
1855), Friedrich Wilhelm Bessel (1784-1846), entre outros. (KOTCHINA, 1981)
A formação militar de seu pai à época exigia uma forte base em matemática,
por isso ele estudou Cálculo Diferencial e Integral pelo livro do matemático Mikhail
Ostrogradsky (1801-1862). Depois de sua aposentadoria, percebendo que a
formação dos filhos não estava adequada, ele contratou um professor polonês,
Yosef Malevitch, e uma governanta inglesa, Margarita Smith, que contribuíram para
que a formação da jovem Sofia fosse sólida.

52Disponível em http://worldcat.org/identities/lccn-nb2011015976, acesso em 24 nov. 2020.


53Disponível em (https://encyclopedia2.thefreedictionary.com/Fedor+Ivanovich+Shubert), acesso
em 24 nov. 2020.

68
A casa de Korvin-Krukovsky estava aberta para pessoas com diferentes
profissões: professores universitários, políticos, escritores, militares, etc. Um deles,
por exemplo, era Fiodor Dostoiévski, (1821-1881). Aliás, aos 14 anos a jovem nutriu
pelo escritor um grande amor juvenil, não correspondido. Dostoiévski a incluiu, junto
com sua irmã Anna, como personagens de um de seus romances.
Ela nasceu num período de grandes perturbações que influenciaram sua
vida: entre duas revoltas sangrentas da Polônia de 1830 a 1831 e de 1863 a 1864.
A Polônia lutava por sua independência do Império Russo e havia guerras na
Criméia e no Cáucaso. Além disso, de 1855 até 1881, o Czar Alexandre II
conseguiu realizar reformas importantes, entre elas a abolição de escravidão na
Rússia, em 1861. Apesar disso, surgiram movimentos de insatisfação, que
posteriormente resultaram no assassinato do próprio Czar.
A diversidade de opiniões refletiu na variedade de visitantes da casa de
Sofia. Um deles, o professor universitário Lavrov, foi posteriormente preso e exilado
por seus pensamentos libertários. Por outro lado, havia militares, colegas do pai,
que tiveram papel fundamental na represália contra rebeldes, como o general
Yakovlev. (KOTCHINA, 1981) Esta mistura influenciou muito a formação social de
Sofia e de Anna, sua irmã mais velha, que posteriormente participou da Comuna
Francesa. Simpatizando com os poloneses, Sofia, além de tarefas escolares
estudava, em segredo, a língua polonesa com Malevitch.
Foi Alexandre II que começou reformas na educação feminina. Em 1858, foi
criada a primeira escola feminina para a classe média com o aval do governo. A
quantidade de disciplinas determinadas era reduzida, mas incluía aritmética e
geometria para a primeira categoria dessas escolas. Os cursos ginasiais para
mulheres se estabeleceram a partir de 1870. (MINISTÉRIO DE EDUCAÇÃO, 1905)
Devido a isso, a contratação de professores particulares para ensinar em casa era
o hábito. Malevitch trabalhou durante dez anos na educação dos filhos de Korvin-
Krukovsky. (KOTCHINA, 1981)

FORMAÇÃO INICIAL DE SOFIA

69
Uma versão mais documentada da biografia de Kovalevskaia foi
apresentada pela historiadora soviética P.Y. Kotchina 54 , em 1981. A partir de
biografias anteriores e fontes primárias, ela usou as cópias de correspondências de
Sofia recebidas pelo presidente da Academia de Ciências da URSS, as quais foram
enviadas pela Universidade de Estocolmo e pelo Instituto Mittag-Leffler. Kotchina,
ao analisar esse amplo material primário, deu bastante atenção às questões
matemáticas. Nessa obra, a autora apresenta em minúcias o período importante da
vida de Sofia, no qual ela recebeu uma formação decisiva para a sua
profissionalização.
A família e os tutores particulares desempenharam um papel crucial na
formação inicial de Sofia, principalmente no que diz respeito à matemática e física.
No livro que Sofia escreveu sobre sua infância, ela conta que era a sobrinha
favorita do tio Piotr Vasilyevitch e com ele passava muitas horas conversando:
Embora ele nunca tenha aprendido matemática, ele tinha o mais profundo respeito por
essa ciência. De livros diferentes, ele reuniu algumas informações matemáticas e
gostava de filosofar sobre elas, e muitas vezes acontecia de ele refletir em voz alta na
minha presença. Dele eu ouvi, por exemplo, pela primeira vez sobre a quadratura do
círculo, de assíntotas […] cujo significado, é claro, eu não podia entender, mas que
agiu na minha imaginação, inspirando-me à reverência a matemática como a ciência
suprema e misteriosa, inacessível a um simples mortal. (KOVALEVSKAIA, 1974, p. 42-
43)

Em 1858, о professor Malevitch entrou na vida de Sofia. Nos dois primeiros


anos de estudos, ele não percebeu nenhum talento especial em sua aluna, mas
observou que ela era muito atenta nas aulas, aprendia com rapidez e estava
sempre em dia com os estudos. Mas, ela acelerou o estudo de matemática a partir
de sugestão do seu pai. (KOTCHINA, 1981) Como resultado, em dois anos e meio
ela aprendeu aritmética, depois seguiu um curso de álgebra usando dois volumes
da álgebra de Bourdon55 e, aproximadamente na metade do estudo da álgebra,
começou a geometria. Segundo Malevitch, algo marcante aconteceu quando ele
ensinava geometria. A jovem Sofia usou uma estratégia dedutiva diferente daquela
que ele havia ensinado para mostrar a relação entre o comprimento da
circunferência e o diâmetro. Ele chamou sua atenção, exigindo que ela repetisse o

54 Livro publicado na série de biografias científicas pela Academia de Ciências da União Soviética.
55 Éléments d’algèbre, 1849.

70
raciocínio dele, o que a magoou imensamente levando-a chorar. O pai, ao saber do
fato, elogiou a filha. Nas recordações de Malevitch, esta foi a única vez que viu sua
aluna chorar.
Em seu livro de memórias da infância, ela fala sobre Malevitch:
Eu devo o meu treinamento sistemático inicial em Matemática a I. I. Malevich. Foi há
tanto tempo que, agora, não me lembro das suas lições; elas permaneceram em minha
memória sombria. Mas sem dúvida, que elas causaram um grande impacto em mim e
foram importantes no meu desenvolvimento. (KOVALEVSKAIA, 1974, p. 370)

No sexto ano, com 14 anos, ela completou os estudos matemáticos com a


planimetria e estereometria. Malevitch não chegou a ensinar a trigonometria pois a
família viajou, em setembro de 1866, para a Suíça para lá passar o inverno por
causa da doença de Anna. Entretanto, ela aprendeu sozinha a trigonometria lendo
o livro didático de física de Tyrtov, professor da Academia Naval, vizinho e autor da
obra. Tyrtov, percebendo o talento da jovem que sozinha tinha conseguido
compreender teoremas sobre as relações trigonométricas, que constavam na parte
referente à Ótica de seu livro, sugeriu que o pai a enviasse para São Petersburgo
para dar continuidade aos estudos superiores da matemática. Tyrtov recomendou
como professor Alexander Nikolaevitch Strannoliubsky (1839-1903), que era
ouvinte de matemática da Academia Naval. Sofia viajou com a mãe e irmã para
São Petersburgo e começou os estudos no outono de 1867.
Em São Petersburgo as suas habilidades em matemática foram rapidamente
reconhecidas por Strannoliubsky 56 quando este começou a ensinar o Cálculo
Diferencial.
Sofia, em seu livro de memórias da infância, recordava que havia um quarto
de criança na casa em que moravam, no qual, na falta de papel de parede, haviam
sido usados papéis das palestras litográficas do livro de Ostrogradsky sobre Cálculo
Diferencial e Integral, adquiridas por seu pai em sua juventude. Segundo ela: “Da
longa contemplação diária, a aparência de muitas fórmulas ficou na minha

56 Esse professor também estava dando aulas particulares, no período de 1869 a 1872, para
Elisaveta Fiodorovna Litvinova, que estudou matemática no Instituto Politécnico de de Zürich e em
1878 defendeu doutorado na Faculdade de Matemática, Filosofia e Mineralogia na Universidade de
Berna. Sofia e Elisaveta encontraram-se em Zurich em 1872. Após a morte de Sofia, essa professora
de matemática, que conheceu Sofia, escreveu uma biografia literária sobre ela.

71
memória, e o próprio texto deixou uma marca profunda no meu cérebro, embora no
momento da leitura permanecesse incompreensível para mim”. (KOVALEVSKAIA,
1974, p. 43)
Segundo Sofia, quando ela fez a primeira aula de Cálculo Diferencial e
Integral, seu professor Alexander Strannoliubsky ficou muito admirado de como ela
rapidamente entendeu os conceitos de limite e derivada: “[...] foi no minuto em que
ele me explicou esses conceitos, de repente relembrei vivamente de que tudo isso
estava nas folhas memoráveis de Ostrogradsky, e o conceito do limite parecia
familiar para mim há muito tempo”. (KOVALEVSKAIA, 1974, p. 43)
Segundo descrito por Kotchina, Sofia estava encantada por esse professor,
que não a repreendeu quando Sofia lhe comunicou que, além de matemática,
gostaria de estudar Fisiologia, Anatomia, Física e Química. Ao contrário, concordou
com ela, dizendo que estudar exclusivamente matemática parecia ser “algo morto”,
que ela devia não só se dedicar à ciência, mas também a alguma atividade prática.
As aulas terminaram em 1868, quando Strannoliubsky57 tornou-se professor
de carreira da Escola Naval. Além deste professor, ela teve aulas de física com
Fiodor Chvedov, professor da Universidade de São Petersburgo.

SOFIA ABRINDO ESPAÇOS

Nem tudo foi fácil para a jovem, particularmente no que diz respeito ao
prosseguimento de seus estudos em matemática. As primeiras mulheres ouvintes
foram admitidas nos cursos superiores em São Petersburgo, em 1859;
posteriormente em Kharkov, Kiev e Odessa. Apesar disso o Estatuto Universitário58
de 1863, fechou as portas para as mulheres, tanto para as universidades quanto
para a Academia médico-cirúrgica. (MARGOLIN, 1915) O espaço universitário era
recinto masculino. Essa era a realidade da maioria das instituições de ensino

57 Strannoliubsky foi membro de um comitê para arrecadar fundos para cursos para mulheres,
escreveu um livro de álgebra, outro sobre pedagogia, e também emitia pareceres sobre livros
didáticos. Após a morte de Sofia, escreveu um livro sobre as lembranças de sua aluna.
58 O Estatuto Universitário foi um documento elaborado pelo governo para definir regras

universitárias.

72
superior, no século XIX, no mundo, inclusive no Brasil. Em 1868, o reitor da
Universidade de São Petersburgo recebeu um pedido de 400 mulheres (a maioria
das quais da alta sociedade) sobre a criação de aulas e cursos para mulheres. Em
1869, foram abertos os primeiros cursos para esse público em São Petersburgo e
Moscou, mais tarde em Kiev, Kazan, Odessa, Kharkov e Varsóvia. Porém, um curso
feminino mais sólido surgiu apenas em 1872, aberto por Guerie 59 em Moscou.
Somente no final de década de 70 e início de 80 fortaleceu-se o ensino de
matemática e física nesses cursos, sendo que alguns se tornaram faculdades.
(MARGOLIN, 1915) Quem não queria esperar, como Sofia, precisava buscar
alguma alternativa. Esta era estudar no exterior.
Tudo indica que a primeira abertura para os estudos superiores para
mulheres foi feita pela Universidade de Zürich onde, em 1842, foram admitidas
como ouvintes as duas primeiras mulheres suíças. Elas foram seguidas pela russa
Maria Knyajnova. Outra russa, Nadejda Suslova, se formou, em 1867, a primeira
aluna universitária matriculada, no mundo. O caminho estava aberto e a Suíça
estimulava a vinda de alunas estrangeiras60.
Quando Anna, irmã de Sofia, externou ao pai seu desejo de estudar no
exterior, encontrou enorme resistência. Assim, sair do país também não seria uma
tarefa fácil porque as mulheres solteiras na Rússia só podiam viajar para fora do
país acompanhadas por um parente. Entretanto, se casadas, podiam viajar com o
marido ou sozinhas. A solução foi buscar um “casamento fictício”. Vladimir
Kovalevsky, na época um editor, vizinho em Polibono, aceitou a proposta de
casamento com Anna, mas ao conhecer Sofia, mudou de ideia, preferindo a irmã
mais moça, à época uma jovem de 18 anos.
Sofia, a maioria dos seus biógrafos afirmam, casou por conveniência, e
provavelmente por isso, eles dedicam a Vladimir Kovalevsky poucas linhas.
Entretanto, Resnik (1978) escreveu biografia dele, informando mais sobre esse
indivíduo com formação diversificada, pois começou estudando Direito e
posteriormente mudou para a área de Paleontologia, onde tornou-se conhecido

59 Vladimir I. Guerie (1837-1919) foi um historiador, membro correspondente da Academia de


Ciências de São Petersburgo, professor de história da Universidade de Moscou.
60 Disponível em https://www.swissinfo.ch/rus.

73
pelos livros e artigos que publicou. Ele era tradutor, conhecendo várias línguas.
Tardiamente suas realizações em paleontologia foram reconhecidas e ele foi
homenageado com um selo russo. Possuía mentalidade aberta e tinha viajado
muito pela Europa, principalmente Alemanha e França. Ele esforçava-se para
acompanhar os estudos de Sofia, pois achava que a seu lado tornar-se-ia um
homem decente. Sofia começou a estudar assuntos variados, como funcionamento
dos olhos, fisiologia e anatomia, além de iniciar a tradução de textos de Darwin. Ela
estudava em torno de 12 horas por dia, segundo Vladimir Kovalevski. (RESNIK
,1978)
Dois dias após o casamento, que ocorreu em 15 de setembro de 1868,
mudaram-se para São Petersburgo e começaram a assistir aulas na Academia
Médica e Cirúrgica, como ouvintes, não obstante Sofia continuava a gostar mais de
Matemática. Nessa ocasião, teve aulas de física com Strannoliubsky. Tais estudos,
porém foram encerrados com a interdição desta Academia na primavera de 1869
e, a ideia original de estudar no exterior foi retomada.
Em 1869, o casal e Anna viajaram para Viena, onde receberam permissão
para estudar física, mas a vida em Viena era cara e ela achava que em Heidelberg
havia melhores matemáticos. Nesse mesmo ano, Sofia e Anna viajaram para
Heidelberg. Lá, Sofia recebeu apenas autorização para assistir às aulas da
universidade, mas tal autorização ficaria condicionada à permissão de cada
professor. Ela não estava matriculada na universidade, assim estava excluída a
possibilidade de obter um título acadêmico, como ocorria com os homens. Ao
contrário, seu marido era aluno regular do curso de Geologia. Mais tarde, ele obteve
um doutorado em ciências biológicas na Universidade de Jena, que não foi
reconhecido na Rússia. Esse período em Heidelberg foi fundamental para Sofia,
pois o contato com matemáticos e físicos alemães experientes, não apenas a
introduziu em conhecimentos atualizados, mas inseriu a jovem russa num círculo
maior de cientistas.

74
Conforme Mittag-Leffler 61 (1892), ela assistiu aulas com matemáticos e
físicos de grande reputação, entre eles: os matemáticos Paul Du Bois-Reymond62
(1831-1888) e Leo Königsberger (1837-1921), ambos ex-alunos de Weierstrass; os
físicos Gustav Kirchhoff (1824-1887) e o físico Hermann Helmholtz (1821-1894).
Das 22 horas de aulas semanais, na Universidade de Heidelberg, 16 delas eram
de matemática. (COOKE, 1984)
O casal Kovalevski viajava muito e numa dessas viagens, no verão de 1869,
quando estavam na Inglaterra, encontraram-se com Charles Darwin (1802-1882),
Herbert Spencer (1820-1903), Thomas Huxley (1825-1895), entre outros. Vladimir
Kovalevski começou a seguir as ideias evolucionistas de Darwin e traduziu para o
russo a obra darwiniana - A variação dos animais e plantas domesticadas.
A pequena abertura conquistada por Sofia, frequentando aulas em
Heidelberg, e ainda a repercussão que ela alcançou como aluna ouvinte, motivou-
a a estimular outras mulheres russas a tentarem obter sua formação no exterior.
Assim, Julia Lermontova, que desejava cursar química, foi para Heidelberg e ficou
com Sofia. Enquanto Anna, que desejava estudar sobre os movimentos sociais,
mudou-se para Paris.
Os estudantes alemães permaneciam por muito tempo ligados aos seus
mestres, mesmo após concluírem seus estudos, e isso contribuía para a formação
de uma verdadeira rede de contatos científicos. Foi devido à existência dessas
conexões que Königsberger recomendou à Sofia que continuasse seus estudos
com seu antigo orientador, Karl Weierstrass, em Berlin. (VOGT, 2001) Em 1870,
Sofia e sua colega Julia, que estudava química, foram para Berlin.

ESTUDANDO SOB PROTEÇÃO

Muitos que não estão familiarizados com a matemática confundem-na com aritmética e
consideram-na uma ciência seca e chata. Na realidade, esta ciência exige muita

61 Magnus Gösta Mittag-Leffler (1846-1927) nasceu em Estocolmo, estudou na Universidade de


Uppsala onde doutorou-se em 1972. Em 1872 ingressou como professor na Universidade de
Helsingfors (Finlândia) e a partir de 1881 na Universidade de Estocolmo.
62 Du Bois-Reymond foi orientador de doutorado em matemática de um brasileiro – Arthur Vianna

de Lima, que em 1885, publicou o livro Exposé Sommaire des theories transformistes, Paris: Librairie
Delagrave, mudando o foco de suas investigações.

75
formação. Um dos matemáticos mais famosos do nosso século (isto é, Weierstrass) muito
corretamente disse que é impossível ser um matemático sem ter a alma de um poeta [...]
O que me preocupa, nunca fui capaz de decidir o que é mais atraente para mim:
matemática ou literatura. Quando minha mente está cansada de pura especulação, ela
imediatamente se volta para a observação da vida, para a compulsão de reproduzir o que
eu vejo. E por outro lado, às vezes tudo na vida me parece sem importância e sem
interesse, e só as leis eternas e imutáveis da ciência me atraem. É muito possível que
consiga mais numa das duas áreas se me concentrar apenas a ela, mas, ao mesmo
tempo, não posso desistir de nenhuma delas. (KOVALEVSKAIA, Apud TUSCHMANN;
HAWIG, 1993, p. 131)

Em 1870, Sofia e Julia chegaram em Berlin, onde dividiram moradia. Aos


vinte e um anos de idade, Sofia encontrava-se pela primeira vez com o famoso
professor Karl Weierstrass de 56 anos. Segundo Mittag-Lefller (1923, p. 135), Sofia
“[...] tinha aprendido funções elípticas quando assistiu aulas com Königsberg.
Weierstrass lhe deu um caderno sobre suas palestras sobre funções hiperelípticas.
Ele ficou tão satisfeito com a sua capacidade de penetrar neste assunto, que se
ofereceu para lhe dar, em aulas particulares, o mesmo curso que ele ensinava na
Universidade”. Como mulher, ela não tinha permissão de frequentar os cursos na
Universidade de Berlin, assim, os encontros de Sofia e Weierstrass ocorriam,
geralmente, às sexta-feiras (quando ele visitava Sofia) e aos domingos quando ela
o visitava, conforme a correspondência que trocaram. (BÖOLING, 1993)
Por quatro anos, Sofia estudou sob a orientação do renomado professor
alemão. Os cursos que Weierstrass ministrava na década de 1870, na Universidade
de Berlin eram: Introdução à teoria das funções analíticas; Funções elípticas;
Funções abelianas e Cálculo das Variações ou aplicações das funções elípticas.
(WEIERSTRASS, 1988) O mestre experiente sugeria leituras atualizadas, como o
livro de Hermann Schwarz, seu ex-aluno, sobre superfícies minimais.
(WEIRSTRASS, 1993)
Uma interrupção das aulas ocorreu na primavera de 1871. Nesse meio
tempo, ela viajou a Paris. Participou da Comuna de Paris63, junto com a irmã Anna
e seu marido, o francês Charles Victor Jaclard, que na ocasião foi preso. Sofia
engajou-se numa luta política de esquerda, ajudou a escrever e distribuir panfletos

63A comuna de Paris ocorreu em Paris de 18 de março a 28 de maio de 1871. Foi uma tentativa de
implantar um governo controlado por trabalhadores, que antecedeu em termos ideológicos a
Revolução Russa de 1917, a Revolução Alemã de 1918-1919.

76
revolucionários. Para libertar o cunhado, envolveram-se muitas pessoas, entre elas
Vladimir Kovalevski e o pai delas. Após a libertação, o casal Jaclard fugiu para a
Suíça.
Em 1872, Sofia visitou a irmã em Zürich - Anna teve um filho e reuniu a
família vinda da Rússia para a ocasião. O tempo em que esteve em Zürich,
conforme relata Litvinova (1894), ela teve contato com um dos ex-alunos preferido
de Weierstrass (Hermann Schwarz) que queria muito conhecer Sofia. Ele enfeitiçou
Sofia de tal maneira, que ela quase aceitou a proposta de ficar em Zürich para
trabalhar com ele, mas desistiu da ideia temendo magoar Weierstrass. No seu
retorno, Weierstrass tornou-se reitor da Universidade de Berlin. Mesmo muito
ocupado, o mestre alemão não abandonou sua protegida. Em 1873, Sofia já era
considerada mais do que uma aluna, mas uma amiga para o matemático alemão:
“Minha mais cara e querida Sofia, esteja certa, nunca esquecerei que é a gratidão
da minha aluna a quem devo a posse – não da minha melhor, mas da minha única
amiga”. (WEIERSTRASS, 1993, p. 8)
Tomar cartas trocadas entre matemáticos como documentos é muito
interessante porque nos revela às vezes mais do que esperávamos. Não apenas a
matemática desenvolvida aparece nesses registros, mas também as emoções e
fragilidades e nossos personagens tornam-se mais humanos. Weierstrass, o
matemático rigoroso que com seus trabalhos forneceu, por exemplo, um formalismo
ao conceito de limite, introduzindo pela primeira vez a linguagem dos  e , aparece,
no texto dessa carta, como um ser humano que reconhece na sua aluna a sua
melhor amiga, a quem nem a fadiga do trabalho intenso de reitor e pesquisador na
Universidade de Berlin o impede de apoiar e escrever dezenas de cartas e a
orientar.
Em seu retorno a Berlin, ela concluiu três importantes trabalhos que
apresentou na Universidade de Göttingen: Sobre à redução de uma determinada
classe de integrais abelianas da terceira ordem para integrais elípticas; Acréscimos
e observações sobre a foram dos anéis de Saturno e Sobre a teoria das equações
diferenciais parciais.

77
Em 1874, ela obteve o grau de doutora em Filosofia pela Universidade de
Göttingen, sem exame oral, considerando como tese o trabalho intitulado Sobre a
teoria das equações diferenciais parciais, publicado no Journal de Crelle, em 1875.
Sua colega Julia também alcançou o doutorado em química na Universidade de
Göttingen no mesmo ano. Destaca-se que Sofia nunca recebeu um diploma de
licenciada ou bacharel em matemática, o que não era à época condição para obter
o título de doutor.
Todos os trabalhos de Sofia foram publicados em revistas matemáticas
renomadas. O principal deles, sobre a teoria das equações diferenciais parciais,
contém o famoso teorema de Cauchy-Kovalevski, que afirma que uma equação
diferencial parcial analítica na forma normal tem localmente uma única solução
analítica. (DORMAN, 1978, p. 9)
Quando estava em Berlin, o químico Mendeleev visitou Weierstrass. Sofia
aproveitou para apresentar sua compatriota Julia a Mendeleev. Nesse encontro,
segundo Litvinova (1894), Mandeleev e Sofia discutiram muito sobre matemática,
mas divergiram muito sobre a matemática e seu significado. Possibilitar o diálogo
entre mulheres e cientistas e principalmente ampliar espaços profissionais para
elas, era uma das metas de Sofia.

RETORNO A PÁTRIA
Em 1874, ela retornou à São Petersburg. Em 1878 deu à luz sua filha, Sofia
Vladímirovna Kovalevskaya (1878-1952), em outubro daquele ano. Nessa ocasião,
Sofia já era conhecida pelo trabalho de tese, publicado no Journal de Crelle. Nesse
período, Mendeleev ofereceu um jantar que ficou famoso, pois reuniu a nata da
sociedade de São Petersburgo. Na ocasião, Julia ficou no centro das atenções dos
químicos e Sofia dos matemáticos. Lá ela conversou com vários matemáticos
russos, entre eles Chebyshev (1821-1894), que era à época o matemático mais
importante da Rússia. Sofia o havia procurado na década de 1860 pedindo
conselhos para seus estudos, entretanto ele não via nenhuma perspectiva para a
jovem em São Petersburgo. Em 1874, escreveu a Sofia perguntando sobre o
andamento de suas pesquisas e continuou a acompanhar seus passos.

78
Em 1880, o casal se mudou para Moscou. Nesse ano, ela participou do 6 o
Congresso Russo de Naturalistas e apresentou um trabalho sobre funções
abelianas. Seu marido ingressou como docente na Universidade de Moscou e,
paralelamente, trabalhou com Rugozin numa empresa de petróleo. De outubro a
dezembro Sofia regressou a Berlin para trabalhar com Weierstrass. Um pequeno
reconhecimento do talento de Sofia surgiu em março de 1881, quando ela se tornou
membro associada da Sociedade Matemática de Moscou, mas sem direito de
participar das reuniões. É notória a discriminação que ela sofreu por ser mulher, ao
contrário do marido que atuou na universidade, ela nunca teve chance de ingressar
numa universidade russa e nem sequer de participar ativamente da Sociedade de
Matemática de Moscou. Nesse mesmo ano, Sofia viajou a Paris. Em julho de 1882
ela tornou-se membro da Sociedade Matemática de Paris.
Os negócios de seu esposo começaram a ir muito mal. A empresa, uma
refinaria de petróleo, na qual Vladimir Kovalevski foi diretor e que havia sido criada
por Ragozin e, onde trabalhou também o químico Mendeleev, apresentava
dificuldades financeiras. Reznik (1978) o descreve como um homem talentoso, mas
pouco prático, principalmente desastroso na parte comercial. A ameaça de um
processo na justiça por causa dessa empresa levou Kovalevski ao suicídio em abril
de 1883. Sofia sofreu imensamente com essa perda, ficou vários dias sem comer
e tentou durante muitos anos “limpar” o nome do marido. Em 1883, Sofia viajou
para Estocolmo a convite de Mittag-Leffler, primeiro professor de matemática da
Universidade de Estocolmo64 (DOMAR, 1978) criada em 1878, para atuar como
docente. Inicialmente era uma instituição particular e parcialmente financiada pela
cidade de Estocolmo.

UMA RUSSA ENSINANDO MATEMÁTICA NUMA UNIVERSIDADE SUECA

A visão de Sofia Kovalevskaia sobre o país em que exerceu pela primeira


vez a docência universitária foi transcrita por Tuschmann e Hawig65:

64 Ao ser criada ela se chamava Stockholms Högskola, em 1960 passou a se denominar


Universidade de Stockolmo.
65 Tradução: Sofia Kovalevskaia: uma vida para a matemática e emancipação

79
Aqui na Suécia você realmente sente que há uma conexão real na vida entre convicção
e ação. De um modo geral, não é fácil convencer um sueco de nada. Mas uma vez que
você tenha feito isso, ele não para a meio caminho, mas imediatamente coloca sua
convicção em prática [...]. Estocolmo é uma cidade bastante bonita; no que diz respeito
à sociedade, há nela uma mistura de ideias novas e livres em um solo patriarcal e
sinceramente alemão. (KOVALEVSKAIA, apud TUSCHMANN; HAWIG, 1993, p. 91)

Em 1883, finalmente Sofia estava realizando seu sonho de ingressar como


docente de matemática no ensino superior. Tinha a permissão de ministrar a
disciplina em língua alemã, mas depois precisaria conduzir o ensino em língua
sueca. Em carta 66 a Weierstrass, ela comentou que sua chegada foi motivo de
muito alarde nos jornais: “Aqui em Estocolmo todos os jornais, logo no dia seguinte
após a minha chegada, já anunciaram este grande evento ao mundo. A minha
chegada não foi mais do que uma aventura divertida” (WEIERSTRASS, 1993, p.
426). Nessa carta, Sofia relata as suas primeiras impressões de Estocolmo e
comunica que tem a intenção de ministrar sua primeira disciplina sobre Equações
Diferenciais Parciais. Embora demonstre segurança sobre o conteúdo da disciplina,
ela pede conselhos ao seu mestre. A resposta de Weierstrass, registrada em carta,
em 27 de dezembro de 1883, demonstra que, embora ele estivesse confiante nos
conhecimentos matemáticos de sua aluna predileta, ele tinha consciência da
inexperiência de Sofia no magistério superior e, assim, o experiente professor, que
começou sua carreira como professor de ginásio, deu conselhos práticos a Sofia.
A coisa mais importante, agora, é que você tem imediatamente suas primeiras aulas -
não quero dizer que você tem sorte, mas sim que deve criar uma base segura para sua
posição futura. [...] Que queira começar com um curso sobre equações diferenciais
parciais, eu aprovo, razão pela qual você tem uma opinião sobre a sua tese. Mas não
será tão fácil deixar claro aos ouvintes o verdadeiro propósito de suas investigações,
se eles não estiverem bem familiarizados com os fundamentos da teoria das funções
como formulei. É uma questão de mostrar como funções analíticas (estruturas
analíticas) são determinadas pelas equações diferenciais parciais algébricas, onde -
em outras palavras, primeiro deve ter-se tornado claro para os ouvintes que este
problema deve ser considerado como resolvido, se é possível produzir um elemento de
cada função a ser determinada. Mas eu não acho que você vai se safar se você não
encaminhar as investigações análogas sobre equações diferenciais ordinárias, cujos
resultados são mais fáceis de entender e podem dar origem a muitas conclusões
interessantes. (WEIERSTRASS, 1993, p. 303)

66Foi encontrado em 1990, um rascunho de uma carta de Sofia a Weierstrass, enviada em


dezembro de 1883. Pela resposta do mestre alemão, cujo assunto é o mesmo do rascunho,
conclui-se que essa carta foi enviada a Weierstrass.

80
Nessa longa carta de seis páginas, o mestre além de responder de maneira
ordenada a todos os questionamentos de Sofia, comunicava sobre os seus
problemas de saúde, suas dores, comentava sobre o inverno rigoroso, o excesso
de trabalho e sobre a correção de manuscritos. Detalhadamente, explicou como ela
deveria conduzir a disciplina e deu conselhos práticos: “Aconselho-a fortemente a
tratar com mais pormenor algumas equações diferenciais parciais do campo da
Física Matemática, embora a integração delas não tenha praticamente nada em
comum com o primeiro objetivo do teu curso”. (WEIERSTRASS, 1993, p. 306)
Detalhamos um pequeno trecho desse documento, porque ele é revelador
da amizade entre mestre e aluna, e principalmente porque a generosidade do
mestre experiente contrasta com a inexperiência da aluna, que se encontrava num
momento importante de sua vida, que é a iniciação na vida profissional – Sofia
tornava-se uma professora de matemática na Universidade. Aquele recinto
destinado apenas aos homens abriu espaço para a jovem matemática russa, que
não encontrou em seu país de nascimento reconhecimento e precisou migrar para
a Suécia para finalmente exercer o magistério superior.
Weierstrass concluiu essa carta com as seguintes palavras:

E agora uma despedida calorosa, minha melhor amiga, com os meus mais calorosos
votos de que o Ano Novo lhe traga o melhor, não exatamente a admiração dos
jornalistas de Estocolmo, mas a satisfação que, por si só um trabalho sério e bem-
sucedido dá ao homem. Além de felicitações. O teu fiel amigo K.W.. (WEIERSTRASS,
1993, p. 307)

Em 1893, Mittag-Lefller escreveu uma curta nota biográfica sobre Sofia, em


que descreveu a sua estreia como professora de matemática:
Graças ao sucesso do curso, bem como a impressão produzida sobre o inteligente
círculo de Estocolmo, pela simpática e brilhante personalidade de oradora, era possível
para mim garantir fundos suficientes para nomear Sophie Kovalevskii professora de
análise superior de Estocolmo, por um período de cinco anos. Apesar do curto tempo
que viveu na Suécia, ela já tinha o suficiente domínio de nossa língua para ser capaz
de ensinar em sueco desde seus primeiros dias como professora universitária.
(MITTAG-LEFLLER, 1893, p. 387)

Em 1884, Sofia começou a colaborar com a revista Acta Mathematica. Este


periódico foi fundado por Mittag-Lefller em 1882. O periódico continua ativo e
alcançou um alto reconhecimento no círculo de matemáticos.

81
O RECONHECIMENTO – PRÊMIO BORDIN

Sofia pesquisava intensamente sobre a rotação de um corpo sólido em torno


de um ponto fixo. Este problema já havia sido estudado por Euler em 1752 e
Lagrange em 1788. Kovalevskaia definiu um novo caso do movimento de um corpo
rígido, em que o corpo não é simétrico e o centro de massa não está no eixo e, deu
uma solução em termos de funções ultra-elípticas. Além disso, ela revelou que, com
exceção desses três casos, é impossível encontrar uma solução geral do problema
do movimento de um corpo rígido em termos de funções analíticas.
Sofia enviou seu trabalho, com mais de sessenta páginas, para a Academia
de Ciências da França, com o seguinte título: Sur un cas particulier du problème de
rotation d’un corps pesant autor d’un point fixe. Esse trabalho foi escolhido entre 15
outros concorrentes e ganhou o Prêmio Bordin. Por ter sido considerado muito
original, o prêmio que era de 3.000 francos foi acrescido de mais 2.000 francos, e
assim Sofia recebeu, em 1888, da Academia de Ciências da França o valor de
5.000 francos. Um ano depois, ela refinou e resumiu67 o texto e o apresentou no
periódico Acta Mathematica.
No final desse artigo Sofia faz referência à consulta ao Dr. Schwarz
(anexando um trecho da carta recebida), mesmo não tendo sido usado no trabalho.
Falei com o Sr. Schwarz, de Göttingen, cuja sagacidade para imaginar modelos
engenhosos é bem conhecida, pedindo-lhe que me desse a ideia de um modelo em
que se pudesse perceber o caso em questão da rotação de um corpo sólido em torno
de um ponto fixo. Dr. Schwarz teve a complacência de me responder imediatamente e
até se ofereceu para me construir o modelo desejado pelo seu mecânico em Göttingen;
não tive a oportunidade de aproveitar esta proposta cortês, mas permito-me dar aqui a
tradução de um trecho de sua carta. (KOVALEVSKAIA, 1898)

Essa demonstração de respeito a uma ajuda recebida durante à sua


pesquisa revela muito sobre o caráter de Sofia, reconhecendo publicamente as
colaborações recebidas.
Wang (2009) referiu-se ao trabalho de Sofia como uma generalização de um
corpo rígido girando em torno de um ponto estendido em um espaço tridimensional.

67 O artigo que foi resumido tem 56 páginas.

82
A premiação que Sofia recebeu facilitou a Mittag-Lefller (1893) obter uma
prorrogação de seu contrato na Universidade de Estocolmo. Em 1889, ela foi
confirmada na cátedra de matemática como professora vitalícia da Universidade de
Estocolmo. Segundo ele:
Como professora, esforçou-se, com um zelo verdadeiramente contagioso, para expor
o pensamento fundamental desta doutrina, a qual atribuía a maior importância [...].
Constantemente e com alegria manifesta, ela comunicava a extraordinária riqueza de
seu conhecimento e os vislumbres profundos de seu espírito adivinhador para seus
alunos que mostraram apenas a força e a vontade de pulsar nesta fonte”. (Mittag-
Leffler, 1892, p. 387)

Sofia continuou a trabalhar na capital da Suécia. Sua irmã adoeceu


gravemente, e ela viajou novamente à Rússia para cuidá-la. Ela desejava ficar mais
tempo na Rússia e pediu ajuda a Mittag-Lefller. Em resposta, ele explicava a
impossibilidade de ajuda. Um trecho dela merece ser transcrita, pois revela o
aspecto profissional em confronto com o pessoal:
Na Suécia, como na maioria dos outros países, a licença de ausência nunca é
concedida por razões pessoais. Um homem não pode pedir, e nunca seria concedido,
licença para cuidar de uma esposa, filho ou outro parente doente. Pode obter uma
licença para o seu próprio tratamento médico, mas nesse caso é concedida por não
poder trabalhar[...] Se você pedir licença para cuidar de sua irmã, vai provocar uma
tempestade, e vai se tornar um problema […] farei o que puder no seu interesse.
(COOKE, 2002, p. 12)

Ela retornou a Estocolmo antes da morte da irmã, naquele mesmo ano. Em


1888, havia conhecido um novo amor - Maksim Kovalevsky, um historiador e
sociólogo russo, que residia em Nice. Ela tentou um posto em Paris, talvez com o
intuito de ficar mais próxima de Maksim Kovalevsky, mas não conseguiu realizar
esse desejo.
Anne Charlote Leffler-Edgren, irmã de Mittag-Leffler, tornou-se amiga de
Sofia. Após a morte68 de Sofia, que ocorreu prematuramente em 1891 devido a
uma pneumonia, ela escreveu um livro intitulado Sonia Kovalevsky, Biography and
Autobiography, em 1895. Nesta obra, Anne Charlote tentou retratar como ela
percebeu Sofia como pessoa. Juntas escreveram uma peça de teatro, apresentada
em Estocolmo com sucesso.

68 A causa de sua morte foi uma pneumonia.

83
Seu principal mentor e amigo – Weierstrass – chocado com a morte de sua
pupila, e numa atitude de revolta, destruiu as cartas de Sofia. Infelizmente só resta
em torno de 50%, ou seja, as cartas de Weierstrass a Sofia, que foram transcritas
no livro de Bölling (1993), exceto um rascunho de carta de Sofia a Weierstrass,
encontrado em Estocolmo. Weierstrass faleceu seis anos depois de Sofia, também
no mês de fevereiro.

AS CORTINAS SE FECHAM
O percurso de Sofia Kovalevskaia, na busca de sua profissionalização,
mostra os difíceis caminhos que ela precisou trilhar para superar o preconceito
contra as mulheres, quebrar tabus, adquirir conhecimento e mostrar que este
campo do conhecimento não se restringe a um único gênero – o masculino – e que
a docência no ensino superior poderia ser exercida tão bem por uma mulher, quanto
por um homem. A circulação de conhecimentos, que ultrapassa as fronteiras entre
países, possibilitou que Sofia, começando pelos ensinamentos diretos de bons
mestres, da leitura de autores consagrados na ciência, fosse pouco a pouco
adquirindo uma formação em matemática, que se somou àquela obtida
formalmente em instituições de ensino superior. Adquiriu uma formação ampla, que
não se restringiu à matemática, mas incluía física, astronomia, química, anatomia,
aerodinâmica, línguas estrangeiras, literatura e teatro. Sofia, filha de seu tempo,
conseguiu superar as barreiras impostas às mulheres, perseguindo os seus sonhos
com a mesma garra que o herói mitológico Teseu, indo buscar conhecimentos e
parcerias com cientistas de renome como Weierstrass e Mittag-Leffler,
comunicando-se com outros matemáticos, por meio de cartas, publicando suas
pesquisas, participando de eventos científicos, sendo membro de sociedades de
matemáticos e não se intimidando em concorrer cientificamente com outros
matemáticos como ocorreu na Academia de Ciências de Paris.
Os resultados apontam que o preparo para a profissionalização de
Kovalevskaia começou na infância com aulas ministradas com professores
particulares, seguida de uma formação universitária limitada a aulas como ouvinte
(sem direito à matrícula) e com a participação decisiva do experiente matemático

84
Karl Weierstrass. O sonho de Sofia de entrar no campo matemático, tornar-se uma
professora universitária de matemática, dar uma contribuição original nessa área
foi realizado. Entretanto, ela possuía uma ambição maior, que não estava restrita
apenas ao seu ingresso no mundo acadêmico, ela aspirava a abrir um caminho
amplo para as atividades diferenciadas das mulheres como profissionais.
Sua trajetória em busca de uma profissionalização foi um exemplo de luta
para mudar a situação das mulheres, que foram excluídas da formação superior,
no século XIX, na Rússia. Seguindo seu exemplo, outras mulheres russas
conseguiram obter título no ensino superior, como Anna Euvreinova69, que fugiu da
Rússia e foi para Heidelberg, e foi a primeira mulher jurista russa em 1873. Seguiu-
se, Elisaveta Litvinova, na matemática, e Julia Lermontova, na química. O plano de
vida de Sofia era a emancipação feminina.
Os rastros encontrados e conduzidos pelo fio da História Cultural permitiram
que eu escrevesse essa história. Ela é uma possibilidade de narrativa, focada numa
personagem feminina da Matemática que não foi a única no século XIX a desafiar
as regras vigentes. A intenção foi, além de destacar as realizações dessa notável
matemática, mostrar um pouco da humanidade dos personagens: Sofia e aqueles
que lhe foram mais próximos, tanto na trama da vida pessoal quanto na escalada
rumo à sua profissionalização.

Referências
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Frauen [O estudo e a Prática da Medicina por mulheres]. München: Literarisch-
Artistiche Anstalt (TH, Riedel), 1872.
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Janeiro: Zahar.
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Kowalewslaja [Troca de cartas entre Karl Weierstrass e Sofia Kovalevskaia].
Berlin: Akademie Verlag, 1993a.

69 Obteve o título na presença do Rei da Saxonia, na Universidade de Leipzig.

85
BÖLLING, Reinhard. Zum ersten Mal: Blick in einen Brief Kowalewskajas an
Weierstrass. [ Pela primeira vez: um olhar em uma carta de Sofia Kovalevskaia à
Weierstrass] . Historia Mathematica 20 , p. 126-150, 1993b.
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86
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88
89
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E FORMAÇÃO DE PROFESSORES
Imprimindo historicidade à formação de professores

JOSÉ MANUEL MATOS70

RESUMO
Com o propósito geral de imprimir historicidade” na formação de professores, isto é, de
acrescentar profundidade histórica ao conhecimento docente como forma de reforçar a sua
qualidade e a sua identidade, debatem-se as razões e os “comos” da utilização de materiais
do passado da matemática escolar na formação de professores. São propostas quatro
razões que podem ser aplicadas à formação de professores, mas também ser na
escolarização geral: (A) a melhoria das aprendizagens da matemática, (B) a apreciação da
natureza da matemática e da atividade matemática escolar, (C) motivar para a
aprendizagem da matemática e (D) apreciação do papel cultural da matemática. Discutem-
se ainda outras duas razões específicas para a formação docente: (E) conhecimento
histórico da matemática escolar e (F) apreciação de modos distintos de ensino de temas
matemáticos. Quanto aos processos para levar a cabo tal formação, os “comos”,
Distinguem-se duas dimensões: a extensão e o grau de interligação entre os temas do
presente e os do passado.

Palavras-chave: Formação de professores. História da Educação Matemática.


História da Educação.

INTRODUÇÃO
O tema da formação de professores é recorrente nos encontros sobre
história da educação matemática. Debate-se, por um lado, a formação docente no
passado acompanhada pelos enquadramentos teóricos que podem sustentar o
seu estudo, mas debate-se sobretudo os modos como o conhecimento sobre o
tema pode contribuir para a formação de professores atual. É natural que assim
aconteça pois muitos pesquisadores em história da educação matemática

70
Universidade Nova de Lisboa. Endereço eletrónico: jmm@fct.unl.pt. Este artigo é apoiado por
fundos portugueses através da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Projeto
UID/CED/02861/2016.

90
desenvolvem o seu trabalho em instituições de formação de professores e
desejam incorporar o seu interesse investigativo na sua prática docente.
A minha contribuição para o tema desta mesa redonda é uma reflexão sobre
os “porquês” e os “comos” para recorrer à história da educação matemática na
formação de professores e sintetiza um trabalho anterior (MATOS, 2020). O título
retoma a expressão “imprimir historicidade” retirada de um trabalho de António
Miguel e Arlete Brito (1996, p. 49) que condensa muito bem aquilo que penso dever
ser a preocupação central do uso de dimensões históricas na formação de
professores: acrescentar profundidade histórica ao conhecimento docente como
forma de reforçar a sua qualidade e a sua identidade.
O objetivo deste texto é contribuir para o debate sobre a introdução de uma
perspectiva histórica na formação de professores e de educadores matemáticos.
Gostaria de estabelecer duas distinções: em primeiro lugar, não discuto aqui
conteúdos ou métodos de uma disciplina de História da Educação Matemática.
Embora muito do que argumento possa contribuir para essa finalidade, o debate
curricular sobre essa disciplina levar-nos-ia longe do tema que pretendo comentar.
Em segundo lugar, o foco desta minha intervenção está no uso de materiais
relacionados do passado da matemática escolar e não no trabalho com
documentos do passado da matemática “ciência”, tema que constitui outra
problemática.

Razões para utilizar a história da educação matemática na formação de


professores
Procuro agora sistematizar algumas razões para a utilização de materiais do
passado na formação de professores. Recorro em primeiro lugar à reflexão
pioneira de Antonio Miguel em As potencialidades pedagógicas da história da
matemática em questão (1997), que identifica e discute 12 argumentos para a
utilização da história na formação em matemática e que menciona
ocasionalmente problemáticas relacionadas com o passado do ensino da
matemática. Uma segunda fonte decorre das publicações do movimento History
and Pedagogy of Mathematics (HPM), fundado em 1976, no ICME de Karsruhe,

91
que nas últimas décadas questionou os modos como a História da Matemática
pode ser incorporada na aula. Membros deste grupo desenvolveram material
educativo, efetuaram pesquisa empírica, que conduziu à produção e à aplicação
de esquemas metodológicos 71. Recorro aqui essencialmente às reflexões de
Jankvist (2009). Tomando então como ponto de partida os trabalhos de Miguel e
Jankvist, quais podem então ser as razões para utilizar a HEM no ensino de
matemática?
A explicitação dos objetivos pretendidos ao incorporarmos elementos do passado
da matemática escolar em ações de formação de professores ajuda-nos a
determinar as formas de organização dessas ações. Proponho seis razões,
podendo as quatro primeiras ser aplicadas a outros contextos de aprendizagem,
nomeadamente em situações de aula comuns. As duas últimas são específicas
da formação docente.
Uma primeira razão prende-se com (A) a melhoria da aprendizagem da
matemática. Espera-se que o confronto com exemplos de matemática escolar do
passado, em particular nos livros de texto, livros de exercícios ou nos cadernos
dos alunos, permita desvendar conceitos, métodos, teorias, etc., encontrando
abordagens facilitadoras e apoiando mesmo uma visão crítica da matemática. No
caso da formação docente, este estudo de conceitos, métodos, teorias propicia
um enriquecer do seu repertório didático, aumentando a sua capacidade de
explicar, abordar, entender partes específicas da matemática.
O uso de temas e materiais da matemática escolar pode ter vantagem
relativamente ao de materiais históricos de matemática. Existe, por exemplo, uma
diferença importante no que diz respeito aos conceitos matemáticos elementares,
como o são todos os relevantes para a matemática escolar. Tomemos a aritmética
como exemplo. Se pretendemos recorrer a textos matemáticos apenas, podemos
utilizar documentos com alguns milhares de anos. No entanto, existem múltiplos
documentos de matemática escolar sobre o mesmo tópico muito mais próximos de
nós. Tomemos um segundo exemplo para ilustrar o mesmo problema. Enquanto as
dificuldades encontradas por Descartes ou Fermat com coordenadas negativas

71
Este tema encontra.se mais desenvolvido em Matos (2020).

92
está explicitada em documentos do século XVII que, para uma utilização em aula,
necessitam ser duplamente traduzidos, em primeiro lugar para português e, em
segundo, explicando a terminologia e os conceitos adotados por cada um deles, a
mesma dificuldade com coordenadas negativas pode ser detectada em livros de
texto do final do século XIX ou de princípios do século XX numa linguagem
facilmente acessível aos alunos de hoje. A matemática escolar do passado permite
uma maior proximidade e, portanto, é de maior simplicidade didática.
Uma segunda razão tem uma relação próxima com a primeira, mas incide,
não sobre tópicos curriculares específicos, mas sobre a matemática como um todo.
Pretende-se aqui (B) uma melhor apreciação da natureza da matemática e da
atividade matemática escolar, olhando de um ponto de vista diferente conceitos,
representações, conjecturas, provas e sequências. Os materiais do passado,
incluindo modos diferentes de observar os objetos matemáticos bem como outras
lógicas de encadeamento, possibilitam-nos estudar variações no conhecimento
matemático que, por sua vez, autorizam alternativas ao conhecimento escolar
válido. Tal como na razão anterior, o estudo de materiais didáticos do passado
proporciona o estudo de variações da matemática escolar sem necessitar de um
grande investimento na compreensão de terminologias muito distintas das atuais.
Quando o público-alvo são docentes, este questionamento é vital e está no cerne
da sua função profissional. O confronto com abordagens idiossincráticas da
matemática permite aumentar a sua tolerância em relação a processos
matemáticos não convencionais, tornando mais clara a dimensão social e cultural
da matemática.
Uma terceira razão é (C) motivar para a aprendizagem da matemática,
despertando o interesse e vinculando o conhecimento atual e o processo de
aprendizagem ao conhecimento e problemas do passado. Recordo que se está
aqui a falar de motivação, que, em última análise, depende da forma como for
organizada a aula.
Uma quarta razão consiste na possibilidade de, através do aprofundamento
histórico, levar à (D) apreciação do papel cultural da matemática. Pretende-se que
a matemática escolar seja vista como estando integrada nas culturas e nas histórias

93
locais e geral da humanidade. Note-se que alguns tipos de materiais do passado
parecem ser uma boa fonte para apoiar esta quarta razão, em especial edições
locais de textos didáticos, cadernos de alunos, artigos em jornais. Por vezes estes
documentos permitem uma aproximação à cultura local que é obscurecida nos
livros de grande circulação. O estudo de materiais provenientes dos grandes
reformas curriculares (propostas de Klein, matemática moderna, etc.) viabilizam
uma ligação com os grandes movimentos sociais em que elas estão inseridas.
Para apreciar o papel cultural da matemática, devemos também extravasar
os muros da escola e incluir aqui objetos, temas, processos que apenas são
matemáticos para a cultura escolar, mas não o são nas comunidades de origem.
Falo do recurso a conceitos, processos, ou materiais utilizados em comunidades
minoritárias, muitas vezes alternativos à matemática escolar oficial e que, como no
caso dos povos indígenas, já fazem parte do seu património cultural há muito
tempo.
Estas quatro razões adequam-se a intervenções no âmbito de todos os
atores que estiverem em formação: alunos e professores. No caso destes últimos,
bem como no da formação de educadores matemáticos, existem, no entanto, mais
duas razões que se relacionam com as suas responsabilidades como formadores
de matemática e do seu ensino.
A primeira é de âmbito formal e consiste no (E) conhecimento histórico da
matemática escolar, como tópico que regularmente deveria fazer parte da formação
profissional docente.

Considerar o trabalho do professor de matemática numa


dimensão histórica permite uma compreensão diferente do
sentido das ações realizadas nas salas de aula hoje. Ter
ciência de contextos de outros tempos do ensino de
matemática possibilita o entendimento do que são novidades
e continuidades, na tarefa cotidiana de ensinar matemática a
crianças, jovens e adultos. (VALENTE, 2008, p. 11)

Estuda-se a HEM por si própria. Quais os movimentos de reforma curricular?


Quais as suas intenções? Como evoluiu a visão do que constitui aprender e ensinar

94
matemática e qual a relação com visões mais gerais do ato educativo? Cabe
também neste tópico o estudo da história do campo académico EM.
Uma última razão consiste na (F) apreciação de modos distintos de ensino
de temas matemáticos, nomeadamente identificando motivações para as
sequências curriculares, as definições (implícitas ou explícitas), as representações,
os exemplos, os exercícios, etc., eventualmente encontrando métodos que se
revelem adequados para situações particulares. Permitem também identificar as
dificuldades e os obstáculos e os modos como eles foram contornados. Espera-se
que os docentes tomem consciência do processo criativo do “fazer matemática”,
decifrando abordagens não convencionais da matemática. Embora exista uma
relação próxima com discussão sobre a natureza da matemática (razão B), aqui o
foco está nas alternativas didáticas.
Não incluí aqui como razão para a inserção de temas do passado em cursos
de formação de professores o despertar o interesse de futuros professores para a
pesquisa em história da educação matemática. Penso que, para os que
demonstrarem interesse pela área, haverá tempo de a aprofundarem mais tarde,
quer através de projetos de colaboração com instituições de ensino superior, quer
de uma formação em mestrados ou doutoramentos. A inclusão da história da
educação matemática em cursos de formação de professores deveria antes
centrar-se em “imprimir historicidade”.

Como utilizar a história da educação matemática na formação de


professores
Após ter abordado as razões para a introdução de materiais do passado do
ensino da matemática na formação de professores e de educadores matemáticos
atuais, faltaria agora discutir os “comos”, isto é, os métodos para o fazer.
Estes métodos, naturalmente, estão relacionados com as razões que
explicitei na secção anterior e dependem do bom senso pedagógico de cada
formador, adaptado aos formandos e às circunstâncias. Uma primeira dimensão
que podemos discutir relaciona-se com dimensão a extensão destas intervenções
didáticas. Elas podem ser de natureza pontual, em que são referidas informações

95
factuais isoladas, ou assumir a forma mais prolongada de um módulo de ensino, ou
mesmo de um curso completo sobre o tema. Concretizando, em aritmética, a
extensão das referências históricas pode tomar a forma de pequenas informações
sobre algarismos antigos, mas também incluir o estudo de algoritmos aritméticos
alternativos, ou até mesmo um curso aprofundado sobre as variações dos
significados e procedimentos aritméticos ao longo do tempo e nas diversas culturas.
Uma segunda dimensão prende-se com o grau de interligação entre os
temas do passado e os do presente. Assim, podemos incorporar informações
pontuais ou isoladas nos diversos tópicos, assumindo uma interligação simples com
os restantes temas disciplinares “contemporâneos”. Isso pode acontecer quando,
por exemplo, pretendermos recuperar temas ou materiais esquecidos (logaritmos,
aritmética racional, métodos complexos de resolução de equações, algoritmo da
raiz quadrada, cartas de Parker, etc.) procurando sensibilizar os formandos para
uma visão mais ampla da matemática.
Existem outros casos em que, embora recorrendo a temas e materiais do
passado, a interligação com o presente tem mais importância (chamemos-lhe
interligação média). Tomemos, por exemplo, os casos do material dourado ou dos
jogos lógicos de Dienes em que é possível imaginarmos o seu uso apoiando um
ensino adequado a programas contemporâneos. Pode pois fazer sentido que, em
cursos de formação de professores, estes temas ou materiais sejam explorados
fazendo referência ao seu uso no passado — relacionado com as manipulações
concretas da Escola Nova no primeiro caso e com a aprendizagem de estruturas
no tempo da Matemática Moderna —, mas refletindo em simultâneo sobre o seu
uso no presente. Pense-se, ainda, num trabalho de comparação entre as diferentes
opções pedagógicas para uma definição de limite. Embora muito relevante para os
dias de hoje, esta discussão necessariamente assenta na pesquisa de opções
didáticas do passado. Neste caso, é mesmo impossível conduzir uma avaliação
das distintas definições (ao estilo de Cauchy, de Heine, da Matemática Moderna,
etc.) sem recorrer ao passado.
Mas é também possível imaginarmos ainda um projeto escolar em que a
visão sobre o passado seja sistematicamente incorporada, procurando desenvolver

96
uma consciência mais profunda (“imprimindo historicidade”), tanto da própria
matemática escolar quanto das dimensões sociais e contextos culturais em que ela
intervém, incorporando pois uma interligação profunda entre passado e presente.
Esta versão mais aprofundada da interligação entre passado e presente pode
mesmo ser estabelecida a um nível consideravelmente denso, debatendo, quer
aspectos importantes do fazer matemática como, entre outros, a parte de estruturas
conceituais gerais e de motivações associadas; a natureza evolutiva da matemática
exemplificada por notação, terminologia, métodos, representações, bem como
noções de prova, rigor e evidência; e o papel dos paradoxos, contradições,
intuições e a motivação para generalizar, abstrair e formalizar, quer mostrando
como o meio social e cultural pode influenciar o desenvolvimento ou o atraso do
desenvolvimento de certos domínios matemáticos; mostrar que a matemática é
parte integrante da herança cultural e das práticas de diferentes civilizações,
nações ou grupos étnicos; e mostrar que as correntes na educação matemática ao
longo do tempo refletiram tendências e preocupações na cultura e na sociedade.
Esta interligação profunda pode também alargar o debate a temas que vão
para lá da matemática escolar. No caso dos jogos lógicos de Dienes, por exemplo,
é possível alargar o estudo histórico de modo a abordar os pressupostos
psicológicos, quer dele próprio, que de Jean Piaget, que estão na base do seu
trabalho. Dicotomias bem atuais, como, por exemplo, entre processo e produto ou
entre abstração e intuição, constituem temáticas amplas que atravessam boa parte
da história da matemática escolar e a sua abordagem em cursos de formação de
professores pode proporcionar um feliz casamento entre passado e presente.

Uma última nota


Apesar de as minhas considerações estarem centradas na formação de
professores, penso que elas se podem igualmente aplicar à formação de
educadores matemáticos. Estou-me a referir a programas de mestrado e
doutoramento em educação matemática que, conforme argumentei noutro local
(MATOS, 2020), penso que devem incorporar uma visão histórica dos problemas
do ensino e da aprendizagem da matemática.

97
REFERÊNCIAS
JANKVIST, U. T. A categorization of the ‘whys’ and ‘hows’ of using history in
mathematics education”. Educational Studies in Mathematics, New York, v. 71,
n. 3, p. 235-261, 2009.

MATOS, J. M. História da Educação Matemática e Educação Matemática. In:


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Formação de professores: aproximações possíveis. São Paulo: Livraria da Física,
2020. p.19-51.

MIGUEL, A. As potencialidades pedagógicas da história da matemática em


questão: argumentos reforçadores e questionadores. Zetetike, Campinas, S.P., v.
5, n. 2, p. 73-106, 1997.

MIGUEL, A.; BRITO, A. de J. A história da matemática na formação do professor


de matemática. Caderno CEDES, Campinas, v.40, p. 47-61, 1996.

VALENTE, W. R. Uma história da matemática escolar no Brasil (1730-1930).


São Paulo: Annablume, 1999.

98
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E FORMAÇÃO DE PROFESSORES

La Formación de profesores en Institutos Terciarios y Universidades en


Buenos Aires (1870-1984). Un sistema binario.

Prof. Alejandra Deriard72

RESUMEN

En este escrito se plantea una reflexión referida a la historicidad de la creación del aparato
formador de profesores en Argentina, presentándose la cronología histórica del período
comprendido entre 1870 y 1984 acerca de la Formación de Profesores en Argentina. La
metodología de pesquisa observa exclusivamente el estudio de fuentes secundaria, de
autores destacados de la Historia de la Educación local.

Se concluye que la formación de profesores de educación secundaria en Argentina


obedeció a un sistema binario, formado por los Institutos Terciarios de Formación de
Profesores y las Universidades.

Palabras clave: Profesores, Matemática, Normalismo, Universidad, Terciarios

INTRODUCCIÓN:

En este escrito se plantea una reflexión referida a la historicidad de la


creación del aparato formador de profesores en Argentina, en general, definida por
autores que me preceden, como un sistema binario. Tal reflexión se llevará a cabo
mediante el análisis de fuentes secundarias. En este me sitúo no solo como
seleccionadora de fuentes, sino como recreadora, en cierto modo de las mismas,
por el hecho de haber decidido cuales fuentes fueron pertinentes para llevar

72Instituto
Superior Bernardo Houssay. Universidad Nacional de Tres de Febrero. Argentina.
aderiard@untref.edu.ar/ alejandraderiard@gmail.com

99
adelante la tarea, reconstruyendo la historicidad de este período, sin abandonar
métodos imprescindibles en el trabajo histórico, como la crítica de ellas y de los
momentos en los cuáles suceden los hechos, con la intención de apartarme del
mero oficio de narradora (Mendez, 2011)
Se concluye que la formación de profesores de enseñanza secundaria, en el
período mencionado, en matemática y otras asignaturas, en Argentina obedece a
un sistema binario, en el que coinciden la formación en Institutos Terciarios de
Formación de Profesores (posteriormente a las Escuelas Normales Superiores); y
la formación de profesores en las Universidades.

LA FORMACIÓN DOCENTE EN ARGENTINA, UN SISTEMA BINARIO:

Según el documento de la OEI/UNESCO de 2004, denominado “Situación


de la formación docente inicial y en servicio en Argentina, Chile y Uruguay”
elaborado por Pogré, además de otras fuentes consultadas locales tales como
Alliaud (1993, 1994), Armendano (1994), Alberguchi (1999), Campoli (2004,
Tedesco (2002) y otros autores destacados en la Historia de la Educación en
Argentina, dispuestos en la bibliografía del presente escrito, no cabe duda que la
formación de profesores tuvo su nacimiento, desarrollo y consolidación por fuera
del nivel universitario
A modo de resumen, podemos indicar que inicialmente, la formación de maestros
y profesores en Argentina se generó y promovió como una especialización del nivel
secundario, luego de la fundación de las Escuelas Normales Nacionales, cuya
primera escuela se crea en 1870, en la ciudad de Paraná. Será en una segunda
fase, pasado el 1900, que se produce una mejora y diversificación en las
instituciones educativas, a nivel terciario, también llamadas Institutos de Educación
Superior, que son las que hoy sustentan gran parte de la oferta docente o de
formación pedagógica (Campoli, 2004).

100
Es importante señalar que la educación superior (para la formación de
profesores de educación básica, educación inicial y media) en Argentina se
presenta hoy como un sistema binario compuesto por dos subsistemas, cada uno
de los cuales integra una heterogénea cantidad de instituciones y
población. Según el documento presentado por la OEI en 2004 (Pogré, 2004),
se indica que, por un lado, visualizamos un subsistema no universitario o terciario,
integrado por los denominados "Institutos Superiores" y cuyas carreras están, en
su mayor parte, orientadas a la formación docente (maestros de enseñanza inicial
y básica, profesores de enseñanza media); teniendo dichas carreras una
duración en general de cuatro años73.
Por otro lado se encuentra el subsistema universitario, apoyado por al menos 100
instituciones de nivel universitario, entre las que se encuentran universidades e
institutos universitarios dependientes de dichas universidades74.

CRONOLOGÍA DE LA FORMACIÓN DE PROFESORES EN ARGENTINA:

CREACIÓN DE LAS ESCUELAS NORMALES NACIONALES DURANTE EL


GOBIERNO DE MITRE Y SARMIENTO:

Durante los años 1862 y 1880 se desarrolló en Argentina un amplio programa


de gobierno, el cual, en el campo de la educación, tuvo como objetivo organizar un
nuevo sistema educativo acorde con los principios liberales de la
época (Gobierno de los presidentes Mitre y Sarmiento).
En el esquema de la configuración del sistema de educación nacional, que hasta
entonces estaba constituido solo por la educación general y la educación

73
El subsistema terciario incluyó en el año 2000 una población de 440.000 alumnos, los cuales se
encontraban distribuidos en más de 1.700 instituciones. (Pogré, 2004)
74
El susbistema universitario, según datos del estudio de Pogré ante la UNESCO, informa la
inscripción de 1.250.000 estudiantes para el mismo año 2000. (Pogré, 2004)

101
universitaria, la escuela primaria se convierte en prioridad siendo objetivo central de
la educación.
En este esquema, el objetivo principal e inicial para el cumplimiento de estos
postulados fue la formación de Maestros de estas y para estas escuelas primarias.
Al mismo tiempo, es importante señalar que dentro de la educación general, los
estudios medios (secundarios) se dictaron en algunas instituciones que dependían
a) En algunos casos del Estado nacional,
b) en otros casos de gobiernos provinciales (estatales)
c) y también estaban a cargo de algunas órdenes religiosas,
Como resultado, todos los planes de estudio ofrecidos por las escuelas medias
carecían de absoluta uniformidad y homogeneidad. La única nota común de estas
escuelas medias fue que estaban destinadas básicamente solo a proporcionar
estudios preparatorios para ingresar a la universidad. (Alliaud, 1993)

ANTECEDENTES DE LA CREACIÓN DE LAS ESCUELAS NORMALES:


CREACIÓN DEL COLEGIO NACIONAL- (GOBIERNO DE MITRE 1863):

Como antecedente de la creación de las Escuelas Normales, se puede


mencionar que durante el gobierno del presidente Bartolomé Mitre (1862-1868), se
inició una importante reorganización de la enseñanza secundaria, que culminó en
1863 con la creación del Colegio Nacional de Buenos Aires, a partir de lo cual se
inició el proceso de diferenciación de la educación secundaria, es decir, la creación
de nuevos tipos de establecimientos de educación secundaria.
Una de estas líneas diferenciadas de la educación secundaria dio lugar a la
creación de la Escuela Normal, origen de la formación de profesores de nivel inicial
y básico, en Argentina. (Alliaud, 1993)

NORMALISMO EN ARGENTINA

102
El “Normalismo” en Argentina comenzó con la labor educativa de Domingo
Faustino Sarmiento (1811-1888), quien sin duda fue la piedra angular y la cuna de
la formación docente en el país.
La primera Escuela Normal fue fundada en Paraná, provincia de Entre Ríos en 1870
y dependía directamente de las autoridades del gobierno central quién definía
sus planes y programas de estudio. Bajo este impulso normalista, es que se
nacionalizaron las escuelas provinciales normales y se excluyó de ellas la
educación religiosa, dando a estos estudios un carácter estrictamente laico.
La Escuela Normal de Paraná se organizó en dos cursos:

• Un primer “curso normal”, destinado, no solo a brindar un sistema de


conocimientos adecuado a las necesidades de la educación ordinaria en la
república, sino también orientado al arte de enseñar y las habilidades necesarias
para su ejercicio,
• Un segundo curso, denominado “curso de aplicación”, que además de
brindar educación básica a niños de ambos sexos, sería utilizado por los futuros
docentes (estudiantes de la Escuela Normal), para realizar la práctica docente.
Es decir, un curso de formación docente de cuatro años y otro curso para la
aplicación de clases prácticas que hacían que los estudios durasen un total de seis
años.

En 1875 se instaló en la ciudad de Tucumán la Escuela Normal de "maestros".


Posteriormente, fue replicada en otras partes del país, iniciando el proceso
de finalización de la profesionalización docente.

A partir de este episodio se consolidó la institucionalización del Normalismo en


Argentina, a través de la cual se logró la homogeneización de un modelo de
enseñanza y un modelo de institución educativa con identidad social propia y
estrechamente relacionado con el cientificismo y la universalidad del conocimiento.

El objetivo de expandir el modelo normalista se logró y concretó en 1885: se había


fundado una Escuela Normal en cada capital de provincia desde 1870. (Alliaud,
1993).

103
Será a partir de la década de 1880, cuando, de la Escuela Normal surgirán nuevos
planes de estudio, complementarios, con el objetivo de brindar diferentes tipos de
modalidades o pautas para la formación del profesorado. Estos estudios se
considerarían postsecundarios, aunque eran ofrecidos por las Escuelas Normales.

A partir de 1910 se empezarían a introducir reformas en los planes de estudios de


los docentes de las escuelas normales que duraban de dos a tres años y a las que
se incorporaron dos modalidades -Ciencias y Letras- manteniendo un cuerpo de
disciplinas pedagógicas comunes a ambas modalidades. Esta organización de
maestros normales (magisterio) se mantuvo hasta 1953 y sería un antecedente de
la Formación de Profesores de enseñanza secundaria en Matemática
específicamente.

Podemos identificar, en este primer período, al enfoque que Davini (2008)


denomina como “enfoque clásico” para la formación de formadores. Dicho enfoque
entiende a las prácticas docentes como campo de aplicación de conocimientos,
métodos y técnicas para enseñar. Aunque con sus diferencias, aquí se reúnen tanto
la tradición del Normalismo, como la Académica y la Tecnicista (Davini, 2008).
Este enfoque se instaló desde los orígenes de la formación del magisterio (Alliaud,
1993) y es solidario con el desarrollo del sistema escolar. Se propuso formar a los
estudiantes en las prácticas a través de la aplicación de métodos fundamentados
en el acompañamiento sistemático de los docentes a cargo de las aulas. Los
conocimientos que se administraban en la formación eran los básicos para enseñar,
tales como los relativos a la comprensión de los niños, de acuerdo al desarrollo
teórico de la época.

Durante este período, se formaron una gran cantidad de maestros que, junto al
sostenido desarrollo del sistema escolar, consiguieron alfabetizar e incluir en la
cultura a prácticamente todos los alumnos, a lo largo y a lo ancho del país. Los
maestros normales cumplieron un importante objetivo de inclusión de niños y
jóvenes a la ciudadanía, la vida social y cultural, y la incorporación al mundo del
trabajo (Davini, 2008).

104
MAS ALLÁ DEL NORMALISMO, EL SEMINARIO PEDAGÓGICO, UN PRIMER
PASO PARA LA FORMACIÓN DOCENTE EN ESTUDIOS SUPERIORES, UN
PRIMER PASO HACIA LA FORMACIÓN DEL PROFESOR DE MATEMÁTICA

En 1903 y también en el contexto del proceso de diferenciación de los


estudios secundarios, cabe mencionar la creación del
Seminario Nacional Pedagógico a cargo de Juan Ramón Fernández, ministro de
Educación de la presidencia de Roca.

Por ese entonces, la enseñanza en las escuelas secundarias era impartida por los
egresados de las Universidades, los maestros egresados de las Escuelas Normales
y los bachilleres egresados del Colegio Nacional de Buenos Aires.

El propósito de crear el Seminario Pedagógico era el de formar profesores para el


nivel intermedio y, si bien en un principio estaba dirigido a egresados universitarios,
posteriormente se aceptaron egresados de bachillerato de colegios nacionales y
normales, por lo que debemos considerarlo postsecundario.

El Seminario Pedagógico, brindó formación a aquellos que ya tuvieran formación


previa en pedagogía, mediante el siguiente esquema:

• Un curso teórico y experimental en Ciencias de la Educación en la Facultad de


Filosofía y Letras.

• Un curso de Pedagogía General a realizar en la Escuela Normal con práctica en


una escuela de aplicación de un año.

• Un curso de pedagogía específico, a realizar de forma eficaz en el Seminario


Pedagógico.

Con este esquema complejo fue lanzado en 1903, con la proyección de extenderlo
a la formación de maestros normales. Este proyecto quedaría trunco debido a
problemas de salud de Fernandez, quien fue sucedido por Joaquín V. González,
quien no continuó con este proyecto. (Pinkasz, 1992)

105
JOAQUÍN V GONZALEZ. LA UNIVERSIDAD NACIONAL DE LA PLATA COMO
CENTRO PEDAGÓGICO:

Su compromiso con la educación de nuestro país se puede materializar en la


nacionalización de la Universidad Nacional de La Plata, en 1905, que promovió
como ministro de Educación y presidió por 12 años. La influencia de su
pensamiento político-pedagógico se puede expresar en el carácter experimental y
científico que ha adquirido esta universidad desde sus inicios. En cuanto a lo
pedagógico, dicha universidad fue pionera en el establecimiento de la formación
pedagógica en sus claustros, así como en la creación de escuelas y colegios
adscritos a la universidad que, a su vez, sirvieron como instituciones de aplicación.

El ministro González tuvo una aspiración importante: la creación de una "Facultad


de Pedagogía". Su principal preocupación fue la de proporcionar
una sólida preparación pedagógica y científica a los profesores de secundaria, pero
también fomentar áreas de "experimentación" o "aplicación" para no desembocar
en un divorcio entre "práctica y vida" (González, 1907). Con ello se cumpliría su
aspiración: una sólida formación teórica con un peso en la investigación y la
experimentación, impartida por la universidad, y una formación pedagógica acorde
al nivel de formación, con un fuerte peso en la práctica.

A través del trabajo de estos dos políticos e intelectuales (Fernández y


González) podemos ver un cambio en la concepción y organización de la educación
secundaria y superior, materializado en sus ideas. Este cambio está sin duda ligado
a los cambios sociales ocurridos en la época y la necesidad de que responda a este
contexto. La preocupación por la formación del profesorado de secundaria también
indica la importancia de estas instituciones y el principio de un camino en el que se
constituirían como un nivel del sistema educativo nacional (Pinkasz, 1992).

106
CREACIÓN DEL INSTITUTO NACIONAL DE PROFESORADO SUPERIOR EN
LA CIUDAD DE BUENOS AIRES.

A fines de 1904 se crea en Buenos Aires el Instituto Nacional de Profesorado


Superior (INPS) que, al igual que la Escuela Normal de Paraná y el Seminario
Pedagógico, fueron antecedentes importantes de los hoy Institutos Formadores
Terciarios, sirviendo de referencia y modelo para la creación de establecimientos
similares en toda la Argentina (Quintana y González 1904).

El proyecto INPS tuvo como objetivo organizar cursos teóricos y prácticos para
quienes aspiraban a obtener el diploma de "profesor de secundario” en materias
específicas, que posibilitara la docencia en las escuelas nacionales. Aquí
encontramos el segundo antecedente a la formación específica del Profesor de
Matemática.
El decreto de creación del INPS parte de los supuestos que para ser un "buen
maestro de la escuela secundaria no es suficiente saber todo lo que debe enseñar,
o más, sino también necesita saber cómo enseñar." (Quintana y González 1904)
Entre 1907 y 1908 se intentó conciliar la formación docente entre la Facultad de
Filosofía y Letras de Buenos Aires y el Instituto Superior de Profesorado. Esa
posibilidad falló y las dos instituciones se separaron en 1909.
A su vez, el modelo creado en el INPS de Buenos Aires fue posteriormente
reproducido en Paraná (1933) y Catamarca (1943) y luego generalizado en todo el
país (Roggi, 1998).

Pinkasz (1992), analiza la creación del INPS en relación a las tensiones existentes
entre las instituciones que asumen esa tarea y los cambios producidos en la propia
educación secundaria. El autor da por sentado que desde sus orígenes el Instituto
entró en competencia con la universidad, ya que eran sus egresados quienes hasta

107
el momento se desempeñaban como profesores en los Colegios Nacionales
(Pinkasz, 1992).

FORMACIÓN DE PROFESORES EN LAS UNIVERSIDADES:

Con la creación de la Facultad de Filosofía y Letras y la Sección Pedagógica


de la Universidad Nacional de La Plata por JV González (1906), se inician los
estudios pedagógicos a nivel universitario. En 1927, también se crea, en la
Universidad de La Plata, el Instituto de Didáctica, cuyo principal objetivo fue a partir
de 1930, realizar “estudios e investigaciones sobre organización e historia de la
educación argentina y en el exterior, doctrinas y problemas educativos
contemporáneos, problemas psicológicos relacionados con la didáctica, entre
variadas temáticas.

Mientras tanto, las Universidades Nacionales siguieron la impronta trazada por la


Universidad de La Plata y Buenos Aires. La aparición del diploma universitario del
profesor de secundaria cambió la estructura docente, lo que introdujo una
nueva legitimidad, la del profesor universitario diplomado para el ejercicio en
escuelas secundarias (Pinkasz, 1992).

Como se observa precedentemente, con el correr de los años, el conocimiento se


fue ampliando y complejizando. Dando lugar, a partir del siglo XX, a la tradición
académica, mayormente en las Universidades, que atribuyó cada vez más peso a
las disciplinas y la investigación científica. El mayor embate de esta tradición
académica estuvo dirigido a cuestionar la formación pedagógica y metodológica,
considerada trivial y sin rigor científico. Sólo bastaba el sentido común para aplicar
los preceptos de las “ciencias serias”. La regla general era que cuanto más se
aproximara uno a las ciencias básicas, más alto resultaba ser su status académico.

108
En el país, este enfoque tuvo mayor presencia en la formación del profesorado para
el nivel secundario, viéndose reflejado en la formación del Profesor de Matemática.
En otros términos, se fue abandonando el énfasis en los métodos, pero se mantuvo
la concepción de las prácticas, aunque solo como campo para la transmisión de las
disciplinas (Davini, 2008).

LA CREACIÓN DE INSTITUTOS TERCIARIOS PARA LA FORMACIÓN DE


PROFESORES DE SECUNDARIA

Entre 1968 y 1974 se llevó a cabo la reforma docente, con cambios


curriculares y también en los títulos que se ofrecía: Maestro de Educación Primaria,
Maestro Normal y Maestro de Educación Inicial, Profesor de Secundaria. El único
estándar común que se mantuvo a pesar de los cambios en las titulaciones y el plan
de estudios fue el concepto de que los estudios didácticos deben ser de mayor
calidad, es decir, no se perdió la necesidad de profesionalizar la carrera docente. La
formación docente fue la base principal del crecimiento de las instituciones de
educación (terciarios), ya sea en términos de peso en la matrícula total de estos
institutos o en términos de número de carreras. Así, podemos decir que los
Institutos de Formación de Profesores (terciarios) se han convertido en el principal
componente de la oferta académica de la educación superior no universitaria.

Avanzando un poco más en el proceso, entre 1976 y 1983, durante el cual se


estableció la admisión universitaria restrictiva, el número de estudiantes de este
nivel educativo y, en consecuencia los estudios didácticos, aumentaron
considerablemente. A partir de 1984, con el regreso de los gobiernos
constitucionalmente electos y, por tanto, el ingreso irrestricto a las universidades,
el crecimiento continuó siendo sostenido, pero a un ritmo más lento. Por tanto, en
referencia a lo observado al inicio del desarrollo, se podría extraer una primera gran
conclusión y que el sector terciario, por su especial énfasis en la formación docente,
fue y sigue siendo hoy el principal sector responsable de la formación docente en

109
el país, tanto por la diversidad y por la amplia cobertura de su oferta, así como por
la alta proporción de alumnos que se albergan en sus aulas.

Con respecto a las tradiciones de enseñanza a partir de los años 60, logra gran
impulso la tradición tecnicista, de base neoconductista, que inundó la literatura
pedagógica y las instituciones formadoras (Deriard, 2020), en especial con la
reforma de la Matemática Moderna. La formación en las prácticas docentes
mantuvo el status de campo de aplicación al final de la carrera, pero agregando y
desarrollando una batería de técnicas instrumentales. Los docentes sintieron que
se jerarquizaba su labor, con la incorporación de una gran cantidad de técnicas
para la acción (Davini.2008)

CONCLUSIÓN:

Es cierto que, si bien cualquier persona puede enseñar a otros en distintos


contextos desde el principio de los tiempos, los docentes ejercen esta tarea de
enseñar como profesión, en ámbitos determinados de la enseñanza formal o del
mundo del trabajo. En esta profesión, la enseñanza deja de ser una tarea de
aficionados, desplazando al enseñante empírico.
Desde esta perspectiva, la docencia pone de manifiesto una práctica profesional
específica con el fin de poner en funcionamiento los medios adecuados para la
transmisión educativa según distintas finalidades e intenciones.
La docencia se apoya en un espacio estructurado de conocimientos y en criterios y
estrategias de acción que van evolucionando con el tiempo, tal como se vio en los
párrafos anteriores.
La situación de la formación de profesores de matemática, hoy, en Argentina, a
pesar de estar ya a 150 años de la creación de las Escuelas Normales Nacionales,
se debate entre los mismos dos polos, identificados por las siguientes frases:

110
“Tienes que ensuciarte las manos con tiza” y “el futuro profesor se ve a sí mismo
principalmente como un especialista disciplinar y en la alternativa como alguien que
enseña” (Estévez, 2006).
Estos dos polos no escapan a las tradiciones mencionadas en cada uno de los
períodos detallados a lo largo de la historia de la formación de profesores. En ellos
se observa el binomio formador en Argentina, Institutos Terciarios versus
Universidad. Ese debate, abierto en 1909, aún se mantiene en 2020.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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innovación educación, Buenos Aires, Troquel / IIPE, 2001.
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Nacional de Educación, Buenos Aires, 1999.
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de América Latina, Buenos Aires, 1993.
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Argentina. IESALC/IES/UNESCO, Buenos Aires. http://www. oei.
es/docentes/info_pais/informe_formacion_docente_argentina_iesalc. pdf
[consultado 30/10/2018], 2004.
Davini, M. C. Acerca de las prácticas docentes y su formación. Área de Desarrollo
Curricular. Dirección Nacional de Formación e Investigación. Instituto Nacional de
Formación Docente. MECyT. 2008
Deriard, A. Manuales en Buenos Aires (1967-1987) en la búsqueda de una “vulgata
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da Educação, 24, 99373.2020
Esteve, J. Identidad y desafíos de la condición docente: vocación, trabajo y
profesión en el siglo XXI. Tenti Fanfani, E. (comp.). El oficio de docente: vocación,
trabajo y profesión en el siglo XXI. Buenos Aires: OSDE-IIPE/UNESCO, 19-69.
2006
Méndez, Jorgelina La formación de profesores de nivel medio: entre la demanda y
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111
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http://institutojvgonzalez.buenosaires.edu.ar/instituto/decreto.html (último acceso:
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Innovaciones Educativas. Sobre la formación y formación de profesores. Año X, Nº
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Tedesco, JC: Nuevos tiempos. Maestros nuevos. Documento del congreso El
desempeño de masters en América Latina , BID / UNESCO. Ministerio de
Educación, Brasilia, 2002.

112
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E FORMAÇÃO DE PROFESSORES
La historia de la educación matemática y la formación del profesorado en la
Universidad de Murcia

ENCARNA SÁNCHEZ JIMÉNEZ75

RESUMEN
Esta intervención analiza el papel de la historia de la educación matemática en la formación
de profesores. Tras mostrar cuál es la presencia institucional de la historia de la educación
en general en los programas de formación de maestros y de profesores de secundaria, así
como las razones para ello, se analiza y se proporcionan ejemplos de lo que puede aportar
a la formación de profesrores la inclusión de esta visión histórica. Se concluye la necesidad
de una formación que contemple una perspectiva histórica de la educación matemática en
la formación de docentes de matemáticas y que dicha perspectiva se relaciona a su vez
con el proceso de profesionalización de estos profesionales.

Palabras clave: Historia de la educación matemática. Formación de profesores.


Disciplinas escolares.

INTRODUCCIÓN

La historia de la educación matemática es, ante todo, una historia social


(Viñao, 2012; Karp, 2014), con un carácter interdisciplinar, y una de las disciplinas
relacionadas es la propia didáctica de la matemática. Pero la relación con esta
disciplina no se refiere solo a la utilización de herramientas de investigación, sino
que atañe al objetivo mismo de las indagaciones. La historia investiga el pasado
con un interés que parte de las inquietudes del presente; no se limita a describir el
pasado, sino que construye los problemas que están en la base de la investigación
a partir de lo acontecido en épocas anteriores, pero motivada por inquietudes

75
Facultad de Educación. Universidad de Murcia esanchez@um.es

113
surgidas en el momento actual. Para Antonio Nóvoa (2015) el objetivo último de la
historia de la educación no es el pasado que ya no va a volver, sino determinar
cómo se ha prolongado hasta la actualidad y aún después. Para este autor, el
interés de estudiar el pasado es situar los problemas del presente, esa sería la
aportación principal de la investigación histórica.
En mi intervención en esta mesa redonda me propongo dar razones que
apoyen la inclusión de la historia de la educación matemática en la formación de
los maestros y de los profesores de enseñanza secundaria.

LA VISIÓN DE LOS DOCENTES SOBRE LA HISTORIA DE LA EDUCACIÓN

Antonio Viñao caracteriza así la visión que tienen los docentes de la historia
de la educación:

Los docentes, como cualquier otro grupo profesional, tienden a


considerar: (a) que la historia de la educación comienza con su
experiencia –memoria– personal y profesional de la misma y que
antes de dicha experiencia sólo existe un magma más o menos
confuso e invariable; (b) que dicha historia se centra o gira en
torno a su campo disciplinar y al nivel educativo al que
pertenecen; y (c) que cualquier tiempo pasado –en especial aquél
en el que cursaron sus estudios u otro tiempo mítico no
concretado– fue mejor que el actual en lo que a la educación se
refiere. (Viñao, 2012, p. 105-106)

Señala asimismo una tendencia a interesarse casi exclusivamente por


aspectos o acontecimientos anecdóticos de la historia, o de la historia de una
disciplina, así como por ciertos personajes ‒igualmente aislados, sin ubicarlos en
un movimiento educativo o en el contexto educativo de su época‒ a los que se
rinde culto.
Un ejemplo de esto último lo vemos en España en la figura de Pedro Puig
Adam, quien es considerado el precursor o iniciador de la didáctica de las
matemáticas en España, sobre todo por el profesorado de secundaria. En España
se decidió conmemorar la fecha de su nacimiento declarándola Día Escolar de las
Matemáticas. Se alude, sobre todo, a su famoso Decálogo del profesor de

114
Matemáticas, escrito en 1955, a su pertenencia a la Comisión Internacional para la
Mejora de la Enseñanza de Matemática y a la celebración en Madrid, gracias a su
intervención, de la XI Reunión de la Comisión Internacional para el estudio y
mejoramiento de la Enseñanza Matemática (CIEAEM) (Rodríguez, 1960, en Puig
Adam, 1960) y el libro editado tras ella, que contenía una extensa propuesta de
materiales didácticos. La mayoría de los profesores conocen su labor en los años
cincuenta del siglo pasado y sus publicaciones en la Revista de Enseñanzas
Medias, y sitúan más o menos en esa época el interés por las cuestiones
metodológicas y por la enseñanza más centrada en los alumnos.
No se tiene en cuenta que sus primeros libros, escritos junto a Julio Rey
Pastor, Elementos de aritmética, de 1927, y Elementos de Geometría, de 1928,
ambos pertenecientes a la Colección Elemental Intuitiva, fueron escritos en la
llamada Edad de Plata de la educación en nuestro país, en un contexto de intensa
renovación metodológica en todas las disciplinas y en la matemática en particular
(Sánchez-Jiménez, 2015); ni se relaciona su obra con las corrientes pedagógicas
o las ideas escolanovistas que inspiraban aquel movimiento. Se venera, con razón,
la figura de este profesor pero no se conoce ‒ni se reconoce‒ la influencia de los
denominados, en la teoría antropológica de lo didáctico (TAD), niveles de
codeterminación didáctica que están por encima de la propia disciplina, en
particular el pedagógico o el social (Chevallard, 2002).
Se pasan por alto igualmente ‒en parte por desconocimiento, aunque no
solo‒ las contribuciones de un grupo de profesores normalistas que fueron los
verdaderos precursores del proceso de disciplinarización de la didáctica de la
matemática (Sánchez-Jiménez, 2020) y quienes escribieron los primeros libros
sobre metodología de la matemática. Es cierto que durante la dictadura franquista
se hicieron muchos esfuerzos por borrar la memoria de quienes habían liderado la
renovación metodológica en la enseñanza, personas en general vinculadas a
instituciones como la Junta para Ampliación de Estudios (1907-1939) organismo
oficial que al igual que todos los dependientes ideológicamente de la institución
Libre de Enseñanza (1876-1936) fueron especialmente odiados por el nuevo

115
régimen político. Esto sin duda motivó que las nuevas generaciones de profesores
de secundaria no conocieran la labor realizada por aquellos profesores.
Por último, otro de los motivos que destaca Viñao en relación con el
desconocimiento y la falta de interés por la historia de la educación entre el
profesorado es la escasa investigación sobre la historia de las disciplinas en
España por parte de las didácticas específicas, en comparación con otros temas.
Como ejemplo, cita el escaso porcentaje de artículos sobre esta temática entre
2000 y 2009 en dos revistas de didáctica de las matemáticas, una de ellas la revista
SUMA, precisamente editada por la Federación Española de Sociedades de
Profesores de Matemáticas y órgano de expresión del conjunto de las asociaciones
españolas de profesores de matemáticas. Es más, los que hay están clasificados
por la revista como de historia de las matemáticas. Esta escasa presencia se
confirmó en un trabajo fin de máster que dirigí, y en el que se clasificaron más de
600 artículos publicados de 1998 a 2001 y de 2013 a 2018, confirma esta tendencia
(Rabadán, 2019). Otro trabajo fin de máster que dirigí pretendía analizar los tipos
de problemáticas tratadas en este caso en una prestigiosa revista internacional en
lengua española y dirigida fundamentalmente a investigadores, la revista RELIME;
pues bien, de las 46 contribuciones entre 1998 y 2002 hay tres de historia de la
educación matemática, dos de autores mejicanos y una de autoría española; y entre
2015 y 2018, de 45 artículos tan solo hallamos uno de esta temática, de un autor
brasileño vinculado al GHEMAT (Navarro, 2018).

LA HISTORIA DE LA EDUCACIÓN EN LA FORMACIÓN INICIAL DEL


PROFESORADO

Los planes de estudio

La historia de la educación matemática como tal no está presente en la


actualidd en la formación inicial de los maestros ni de los profesores de secundaria.
En España aún es minoritaria la proporción de profesores de didáctica de la

116
matemática preocupados por esta temática. En cambio, entre las competencias
académicas que la Agencia Nacional de Evaluación de la Calidad y Acreditación
(ANECA), en el Libro Blanco del Título de Grado, establece como necesarias para
que los futuros maestros de primaria, en cualquiera de sus especialidades puedan
«ayudar a alcanzar a los alumnos los objetivos del área de matemáticas del
curriculo» sí que figura la historia de la propia disciplina matemática: «Conocer
elementos básicos de historia de las matemáticas (y de la ciencia en general) de
manera que se reconozca la necesidad del papel de la disciplina en el marco
educativo» (ANECA, 2004, p. 100). Aunque después esta competencia ni siquiera
aparece reflejada con claridad en la Orden Ministerial que establece las
competencias obligatorias que deben contemplar todos los títulos de Grado en
Educación Infantil, donde solo se hace referencia al conocimiento de «los
momentos más sobresalientes de la historia de las ciencias y las técnicas y su
trascendencia.» (Orden ECI/3854/2007, p. 53737). Y en la correspondiente Orden
para el título de maestro de primaria no hay referencias a la historia de la
matemática.
La única referencia en estas directrices legislativas a la historia de la
educación en la formación inicial de los maestros se limita a establecer como
obligatoria en todos los títulos universitarios de maestro de Primaria la competencia
«Conocer la evolución histórica del sistema educativo en nuestro país y los
condicionantes políticos y legislativos de la actividad educativa», incluida en el
módulo Procesos y contextos educativos (Orden ECI/3857/2007, p. 53749).
Con todo, la existencia del área de conocimiento de Historia de la
Educación en las Facultades de Educación hace que esté presente la historia de la
educación en la formación de profesores. En la Universidad de Murcia, la
presentación de la asignatura Teorías e instituciones contemporáneas de la
educación habla de
Introducir en el conocimiento de la estructura y significación de las
principales teorías educativas, y de su aportación al desarrollo y
evolución del pensamiento pedagógico; analizar la génesis y
evolución de nuestro sistema educativo y de la escuela como
institución, promoviendo una actitud reflexiva y de conocimiento
crítico en torno a las directrices ideológicas y políticas que han

117
orientado su evolución; y, por último, comprender el papel asignado
y desempeñado por diferentes movimientos, teorías, instituciones y
agentes educativos. (Teorías e instituciones contemporáneas de la
educación. Guía docente).

Vemos que no hay ninguna alusión a la historia de las disciplinas ni al


proceso de profesionalización docente de los profesores.
Y en cuanto a la formación del profesorado de secundaria, en el Master que
han de cursar tras obtener el título de grado universitario en la disciplina, para
formarse profesionalmente como profesores de secundaria, en particular para ser
profesor de matemáticas, se dedican 1,5 créditos a la historia de la educación
secundaria:

Esta materia pretende contribuir a que el futuro profesorado de


Educación Secundaria conozca la génesis, la configuración y la
evolución de los sistemas educativos, y especialmente de la
educación secundaria, incluida la formación profesional, en nuestro
país.También se aborda el proceso de profesionalización docente
como resultado del establecimiento de un marco legal sobre su
formación, los requisitos de acceso y las condiciones de trabajo.
Asimismo, se analiza cómo las disciplinas y el código disciplinar se
configuran como elementos clave de la profesionalización docente.
(Profesionalización docente, Ciudadanía, Familia y Educación.
Guía Docente.)

En esta asignatura sí que se contemplan aspectos que no aparecen en la


formación de los maestros, como los procesos de profesionalización docente del
profesorado de secundaria y la evolución de las disciplinas y el código disciplinar
como constitutivos de esa profesionalización. Aunque lo aborda para las disciplinas
en general y no de la matemática o su didáctica, ya que se trata de una asignatura
del bloque de contenidos genéricos, comunes a los profesores de todas las
materias. El conocimiento de algún aspecto de la historia de la educación
matemática, en particular, queda a cargo de la voluntad ‒y los conocimientos‒ de
los profesores de didáctica de la matemática que se encargan de las asignaturas
asignadas a esta área.
En el siguiente apartado se ofrecen algunos ejemplos de cómo la historia
puede explicar situaciones que el presente no puede por sí solo descifrar.

118
Contenidos históricos en la formación inicial de los docentes

El primer ejemplo de utilización de la historia de la educación matemática


en la formación de maestros se refiere a un material escolar, el ábaco. En los planes
de estudio actuales de los dos títulos de maestro en la Facultad de Educación de
la Universidad de Murcia se estudia el sistema de numeración posicional y el ábaco
es uno de los materiales con los que se trabaja. A pesar de que para su uso
didáctico preferimos un ábaco de no más de 4 columnas, y de disposición vertical,
es frecuente que los ábacos comercializados tengan una disposición horizontal
pero, sobre todo, la mayoría de ellos tienen diez filas con diez bolas cada una. La
razón de ese número tan elevado de filas no puede explicarse por ninguna cuestión
de necesidad, ya que como medio para comprender el principio posicional no es
preciso trabajar con múmeros tan grandes, y es ahí donde los resultados de la
investigación histórica, en este caso la tesis doctoral de Dolores Carrillo,
contribuyen a explicar este fenómeno (Carrillo, 2005).
El origen del ábaco con fines didácticos en España está en el siglo XIX. Fue
José Mariano Vallejo el primero en describir en 1822, en su Esposicion sobre el
estado de la enseñanza pública, hecha á las Cortes por la Direccion General de
Estudios, el «bastidor de enteros», para enseñar la numeración; se trataba de un
material de uso didáctico consistente en un bastidor con 100 bolas, colocadas diez
en cada uno de los diez alambres. Este material vuelve a aparecer en su obra Idéas
primarias que deben darse á los niños en las escuelas acerca de los números, al
mismo tiempo que se están ejercitando en la clave analítica de la lectura . Vallejo
lo presenta como un medio para el método de enseñanza intuitivo iniciado por
Pestalozzi; en aquel momento el aparato no se denomina ábaco ni se usa para
hacer cálculos. Durante todo el periodo isabelino (segundo tercio del siglo XIX),
incluso ya desaparecido Vallejo, se siguieron utilizando sus obras y los tableros
contadores descritos por él.
Pablo Montesinos describe a principios de la década de los cuarenta del
siglo XIX. En su Manual para las escuelas de párvulos, un «tablero contador» para
números enteros −en este caso y a diferencia del de Vallejo, con los alambres fijos−,

119
que será un material que aparecerá en la mayoría de las obras publicadas en aquel
periodo para la enseñanza de la aritmética. Con el tablero se estudiaban los
números hasta el 100 y se cantaban las combinaciones básicas de la suma
mientras el maestro iba «siempre moviendo el número de bolas que se espresan»
(Montesino, 1850. En Ccarrillo, 2005, p. 299) en el tablero contador. Aunque
reconoce que había quienes preferían el uso del ábaco, opinaba que el hecho de
representar en el tablero contador la decena con diez bolas, y no una,
proporcionaba «una idea exacta de la decena ó decenas que está manejando» (p.
309).
El uso del ábaco con fines didácticos en las escuelas tiene pues su origen
en los tableros contadores, un medio intuitivo para iniciar a los niños en el
conocimiento de los números y en la aritmética, desde las escuelas de párvulos,
con cien bolas repartidas en diez filas, que ha sido la imagen de este instrumento
en los catálogos de material didactico (Carrillo, 2017). Esta retrospectiva histórica
explica dos fenómenos que se observan aún en este siglo.. El primero es que se
asocie en muchos casos el ábaco a la educación infantil, a pesar de que en esa
etapa no se aborda el sistema de numeración como tal, es decir, el principio
posicional, que es lo que justifica el uso del ábaco como ábaco propiamente. O que
se proponga el uso del ábaco para trabajar el «concepto de número», mientras que
el sistema de numeración o el principio posicional se citan en relación con el uso
de otros materiales (Castro; Del Olmo; Castro, 2002). El otro fenómeno es que los
ábacos que se comercializan en la actualidad en España tengan en su mayoría diez
filas de bolas. Al presentar estos aparatos en la asignatura Didáctica de las
Matemáticas en la Educación Infantil, solo el conocimiento de la HEM da razón de
su forma y de algunas de las propuestas que hemos comentado.

El segundo ejemplo elegido para mostrar el papel de la historia en la


formación de los maestros se refiere igualmente al material didáctico, en este caso
a la influencia de los ‘dones’ de Froebel en los contenidos de la educación infantil.
El trabajo de tesis doctoral de María José Martínez (Martínez, 2013) aporta algunos
elementos explicativos.

120
En los dones hay dos cuerpos geométricos que se repiten con insistencia:
la esfera (en el primer y segundo don) y el cubo (en todos salvo el primero, que
consta solo de bolas). El cilindro aparece apenas una vez en el segundo don y en
el cuarto y el sexto aparecen ortoedros ligados al cubo, como resultado de la
descomposición de este.
Este material penetró en nuestro país a través de traducciones de obras
extranjeras primero y luego de libros de autores españoles, el primero de ellos
Pedro de Alcántara. Además, contribuyeron a difundir el método las revistas
profesionales (Anales de Primera enseñanza, La Escuela Moderna, etc.), las
exposiciones de material de enseñanza, como la que tuvo lugar durante el
Congreso Nacional Pedagógico en 1882, y también los catálogos de material
escolar; en el Centro de Estudios sobre la Memoria Educativa (CEME) de la
Universidad de Murcia hay alrededor de una treintena de catálogos que anuncian
los dones froebelianos, el más antiguo data de 1881 y es de la casa Bastinos. Se
observan anuncios de material de Froebel en catálogos de los años sesenta del
siglo pasado, catalogados en este centro de estudios.
El conocimiento de los dones de Froebel formaba parte de la formación de
los maestros, ya que se impartía esta formación en la Escuela Normal Central (a
los profesores normalistas) y también en las escuelas modelo de párvulos. Y se
siguió usando durante el periodo escolanovista; en el primer tercio del siglo XX se
adquiría este material para las escuelas de párvulos, aunque, según Martínez
(2013), ya desprovisto de la filosofía en la que se basaba.
Esta difusión de un material en el que predominaban la esfera y el cubo
explica que, en periodos recientes e incluso en la actualidad estos cuerpos ‒y en
menor medida el cilindro y los prismas rectangulares‒ tengan una presencia a
veces casi exclusiva en la educación infantil. Así, cuando se establece en una
reforma educativa a finales del siglo XX, el currículo de la etapa de educación
infantil, en el bloque dedicado a los conocimientos espaciales y geométricos la
única referencia a objetos geométricos tridimensionales sea «Cuerpos
geométricos: Esfera, cubo» (Real Decreto 1333/1991, p. 29725). Y esto a pesar de
que no haya razón en este nivel para centrarse en las formas más regulares, ya

121
que lo que se pide que hagan es: «Exploración sistemática de algunas figuras y
cuerpos geométricos para descubrir sus propiedades y establecer relaciones» (p.
29725). Al analizar el currículo en la formación de maestros, el conocimiento de las
propuestas de Froebel ayuda a explicar el tipo de figuiras que se proponen.

El estudio del patrimonio material de la escuela es un tema del que se


ocupa la historia de la educación matemática, pero no es el único. La pertinencia
de incluir contenidos de este campo de investigación en la formación de los
profesores queda patente también al tratar dispositivos didácticos actuales, que son
reinvenciones de otros que tienen un origen histórico.
Un ejemplo lo hallamos en el método de proyectos. Se trata de un
dispositivo didáctico que en la actualidad se estudia en la formación de maestros y
se utiliza en las escuelas; la presencia de los proyectos en las memorias de
prácticas que presentan los alumnos tras su periodo de prácticas en los centros de
infantil y primaria, así como en los Trabajos de Fin de Grado, avalan la difusión
actual del método. La experiencia evaluando trabajos de alumnos tras su paso por
las escuelas en las que realizan las prácticas de maestro, muestra que el tema
central del proyecto no es casi nunca las matemáticas, sino las ciencias sociales o
las ciencias experimentales y, a veces, temas transversales como la educación en
valores. La matemática aparece de manera más o menos ocasional en el proyecto,
aunque se suele hacer hincapié en que está presente.
Nuevamente se pone de manifiesto lo que la historia de la educación
matemática puede aportar a la formación docente, en particular a la «matemática
para enseñar». En este caso se recurre a otra de las tesis doctorales (Sánchez-
Jiménez, 2015) sobre historia de la educación matemática realizadas por
investigadores de didácticas específicas integrados en el CEME, centro de estudios
que se creó en 2009 con la finalidad de promover, conservar, estudiar y difundir la
memoria y el patrimonio histórico-educativo de las instituciones educativas, en
particular, de las de la Región de Murcia (Carrillo, Moreno, Sánchez-Jiménez,
2020).

122
El método de proyectos se difundió en España gracias, sobre todo, a la
labor de Lorenzo Luzuriaga, Fernando Sainz y Margarita Comas, en las décadas
previas a la Segunda República y los años previos, justamente cuando la
renovación pedagógica inspirada en las ideas de la escuela nueva estaba en su
mayor apogeo. En aquel momento ya había personas, como el inspector David
Bayon y Ángel Ledesma, críticas con el método, que señalaron algunas de sus
carencias o puntos débiles, como la falta de sistematización y de rigor o el énfasis
en la espontaneidad, por parte de quienes pensaban que la labor de la escuela
debe ser intencional y plantear objetivos que vayan más alla de los que supone la
vida en sociedad.
Una investigación sobre la ‘ecología’ de este dispositivo didáctico mostró
restricciones no solo por las condiciones de las escuelas españolas de primer tercio
de siglo, sino también otras que tenían que ver con la pedagogía dominante y, en
especial, con el modelo epistemológico de las matemáticas que imperaba en las
instituciones relacionadas conla enseñanza primaria. Los proyectos, como otros
dispositivos ligados a la escuela nueva, se adaptaban mejor a las ciencias
experimentales y sociales, por ejemplo, que a las materias instrumentales, como
las matemáticas. Se pretendían conocimientos más funcionales, pero sin tener en
cuenta las restricciones ligadas a la naturaleza de la matemática, como el carácter
jerárquico y abstracto de esta disciplina. Las matemáticas en los proyectos
aparecían en su origen ‒y en la actualidad‒ en su vertiente más instrumental, de
tal forma que los proyectos proporcionan un contexto de aplicación de las técnicas
matemáticas, y una razón de ser para estos conocimientos, más que un medio de
construir unos saberes matemáticos organizados.
El uso de herramientas propias de la TAD, en concreto la noción de
Recorrido de Estudio e Investigación, en el análisis histórico, ha permitido poner de
manifiesto algunos fenómenos (Sánchez-Jiménez y Carrillo, 2019; Sánchez-
Jiménez, Carrillo, Chevallard & Bosch, 2020) cuya detección proporciona
elementos para tener en cuenta al abordar en la formación actual de los maestros
el estudio de este y otros dispositivos de enseñanza ligados a ciertas técnicas
didácticas. Uno de esos fenómenos es que la cuestión que genera el proyeccto no

123
actúa en el caso de las matemáticas como verdadera cuestión generatriz a partir
de la que se pueda construir una verdadera organización matemática que pueda a
su vez integrarse en otras más complejas. El método de proyectos tal como se
aplica a otras disciplinas no garantiza la creación de las técnicas matemáticas y el
papel del profesor como director del proceso de estudio, más claro para otras
disciplinas, no se suele mantener en el caso de las matemáticas.
En este caso, la inclusión de la historia de la educación matemática en las
asignaturas de didáctica de la matemática en la formación de los docentes permite
poner de relieve que, para que las innovaciones pedagógicas afecten a la
educación matemática en el sentido deseado, es imprescindible considerar las
características epistemológicas de la disciplina y no hacerlo solo desde un modelo
pedagógico generalista.

REFLEXIONES FINALES

Karp y Furinghetti (2018) destacan que, en general, quienes se dedican a


enseñar matemáticas no poseen formación en historia de la educación matemática,
ya que no suele formar parte de los currículos de la formación de profesores. Por
otra parte, existe el riesgo de interpretar la historia de la educación matemática con
ideas preconcebidas que, o bien avalan los defectos de una educación considerada
tradicional, o bien idealizan acríticamente el pasado; además existe el riesgo,
frecuente, de atribuir a los datos o hechos que se describen un significado acorde
con una perspectiva contemporánea, el «presentismo» contra el que alerta Antonio
Nóvoa (2015).
Si bien la historia no explica por sí sola todos los fenómenos didácticos
actuales, hemos visto cómo una visión histórica nos puede ayudar a comprender la
presencia y el uso de ciertos dispositivos, materiales o no, utilizados en la
enseñanza actual o reciente de la matemática, e incluso la presencia o ausencia de
ciertos contenidos en el currículo currículo requiere que se interprete en un contexto
histórico amplio. Entender algunos fenómenos didácticos actuales, como la
influencia de los dispositivos o las técnicas didácticas sobre la matemática que se

124
enseña, y buscar elementos de respuesta requiere volver la vista hacia su origen,
y ahí es donde confluyen la historia de la educación matemática y la didáctica de
esta disciplina.
Por otra parte, y tal como apuntaba Valente (2010), el profesor de
matemáticas actual es heredero de los profesores de matemáticas de épocas
pasadas. La inclusión de la historia de la educación matemática en la formación
docente contribuye a dotar de un mayor sentido de identidad profesional a los
maestros y a los profesores de secundaria en tanto que profesores de matemáticas.

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127
PESQUISAS SOBRE MULHERES NA ACADEMIA EM MATEMÁTICA:
considerações iniciais
Mariana Feiteiro Cavalari76

RESUMO
O presente trabalho foi elaborado para a apresentação na mesa redonda intitulada
“Mulheres e a produção científica em Matemática” que busca debater tópicos relativos à
participação das mulheres na Matemática. Neste contexto, busco discutir aspectos
referentes à literatura relacionada à presença das mulheres na academia nesta área do
conhecimento. Para tanto, são tecidas considerações iniciais acerca da produção científica
sobre Gênero e participação de mulheres na Matemática, em especial, no contexto
brasileiro. Estas podem contribuir para a realização de pesquisas, ainda incipientes nestas
temáticas em nosso país, bem como, para uma reflexão sobre as condições de trabalho
das mulheres na academia que podem, inclusive, embasar a elaboração de ações e de
políticas públicas visando um aumento da participação feminina na Matemática.

Palavras-chave: Gênero na Academia. Mulheres na Matemática. Pesquisas acadêmicas.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho é referente a uma das apresentações realizadas no


âmbito da mesa-redonda “Mulheres e a produção científica em Matemática”. Nesta
mesa-redonda, buscamos discutir aspectos relativos à participação das mulheres
na produção do conhecimento Matemático.
Com vistas a iniciar o debate referente a esta temática, neste texto apresento
considerações acerca da produção científica relacionada à participação das
mulheres na academia em Matemática, que foram elaboradas com base em
trabalhos que venho realizando e orientando nos últimos anos77.
Para tanto, apresento breves informações acerca da presença de mulheres
na história da Ciência, bem como, considerações sobre a História das Mulheres e
trabalhos de Gênero na Matemática. Destaco a relevância da realização de
trabalhos que envolvam temáticas relativas a Gênero e participação de mulheres
na produção do conhecimento Matemático, em especial, no contexto brasileiro.

76 Docente da Universidade Federal de Itajubá (UNIFEI). mfcavalari@unifei.edu.br.


77De modo especial, o trabalho intitulado “WOMEN, MATHEMATICS AND ACADEMIA: a study on
Brazilian and United Kingdom Theses”, realizado em 2018, na University College London.

128
Afinal, corroboro a Moschkovich (2012) e Cavalari (2019), que indicam que nosso
país possui uma estrutura acadêmica distinta da de outros países, exigindo, assim,
a realização de estudos especificamente voltados para nossa realidade.

PESQUISAS SOBRE MULHERES NA ACADEMIA EM MATEMÁTICA

Com vistas a iniciar a discussão sobre pesquisas acerca da participação de


mulheres na produção do conhecimento matemático ao longo do tempo,
destacamos, inicialmente, que as mulheres estiveram, por muitos anos ausentes
da História da Ciência. De modo que, para Pérez-Sedeño & Garcia (2002), quando
pensamos em mulheres na ciência “[...] a reação imediata é de indicar a ausência
de mulheres no desenvolvimento desta atividade ao longo da história”. (p. 3,
tradução nossa)78.

Variados fatores contribuíram para esta situação, dentre os quais podemos


citar a forma que ciência se estruturou e o tardio acesso das mulheres às
universidades e academias que, de certa forma, determinaram que as mulheres,
por diversos séculos, atuassem de forma “invisível” na produção do conhecimento
científico (SCHIEBINGER, 2001).

Diante da invisibilidade das mulheres na história, por volta da década de 70


do século XX, teve início a História das Mulheres como campo de estudos, que
buscava “[...] integrar as mulheres à história.” (SCOTT, 1992, p. 85) e tinha como
principais sujeitos históricos as mulheres.

Na referida década, para Tabak (2002), inicialmente, foram produzidas


biografias de cientistas de destaque e, segundo Pérez-Sedeño & Garcia (1992), a
escrita destas biografias se configura, como um dos primeiros esforços para
compreender a participação feminina na ciência.

De fato, atualmente não é difícil encontrar trabalhos que apresentem


biografias de mulheres que se dedicaram ao estudo da Matemática em diversos

78No original: “Cuando se habla de mujery ciencia, la reacción inmediata es la de indicar la


ausencia de mujeres en el desarrollo de esactividad a lo largo de la historia.”

129
contextos históricos. Inclusive podemos encontrar estudos recentes que partem de
biografias para identificar obstáculos enfrentados por mulheres na carreira
acadêmica, como por exemplo, Oliveira & Cavalari (2019).
Entretanto, é necessário destacar que as investigações que se voltam para
compreender a participação da mulher na Matemática e na produção do
conhecimento matemático ao longo da história não precisam, necessariamente, se
pautar em biografias e/ou exclusivamente nas mulheres.

Há trabalhos que se voltam para o estudo de questões relativas à Gênero


na Ciência e na Matemática. O termo gênero, embora em um sentido “mais restrito”
se refira

[...] aos estudos que têm a mulher como objeto; num sentido
amplo este deve ser entendido como uma construção social,
histórica e cultural, elaborada sobre as diferenças sexuais.
Portanto, o conceito de gênero não se refere especificamente
a um ou outro sexo, mas sobre as relações que são
socialmente construídas entre eles. (ALMEIDA, 1998, p. 40)

Os trabalhos de gênero para Smith (2003), podem ser importantes para a


historiografia, pois uma versão desta “[...] que reconheça o gênero nos permitirá
dar novo polimento em nosso espelho sobre o passado.”(p. 37). Cavalari (2010),
por exemplo, aborda questões relativas à Gênero, História e Matemática, ao
analisar a porcentagem de mulheres entre os concluintes da graduação, pós-
graduação e na docência em Universidades Estaduais Paulistas, desde a criação
destas até 1990. Neste trabalho, foi identificada uma sub-representação feminina,
em especial, no mestrado, doutorado e docência.

A sub-representação feminina na Matemática, também, é evidenciada por


Brech (2018), que apresenta dados brasileiros relativos de 1998 a 2014, conforme
indicado na figura 1.

130
FIGURA 1: Percentual de mulheres que concluíram a graduação, mestrado e
doutorado em matemática, por ano, no Brasil.

Fonte: Brech, 2018, p. 2.

As informações apresentadas em Cavalari (2010) e na figura 1, indicam que


a sub-representação feminina na Matemática em nosso país é, nas palavras de
Cronin & Roger (1999), persistente, pois se mantém ao longo dos anos.
Estas informações, também, nos permitem observar que as metáforas “leaky
pipeline” apresentada por Blickenstaff (2005) e “efeito Funil” elaborada por Cronin
& Roger (1999) se aplicam ao cenário matemático brasileiro, assim como, a ideia
destes autores de que a sub-representação feminina é progressiva, ou seja, se
amplia ao aumentar a titulação79.
Neste contexto, corroboramos a Barroso (1975), que considera que “[...] o
próprio fato de ser reduzida a sua participação é indicador claro da existência de
obstáculos poderosos a seu ingresso e desenvolvimento na carreira científica” (p.
613). Embora este trabalho tenha sido escrito há mais de quarenta anos, ele
permanece atual, já pesquisadores como Rosser & Taylor (2009), enfatizam que
mesmo com as conquistas das mulheres no ensino superior e após décadas de

79
Com base nestes dados apresentados por Brech (2018) e por dados apresentados em Cavalari
(2010), identificamos que quando se aumenta o nível de ensino, diminui-se a presença feminina e
que de modo específico no Brasil, a queda percentual de mulheres na Matemática ocorre no
mestrado.

131
debates, os problemas que mantêm as mulheres distantes da Ciência ainda não
foram resolvidos. Para estes autores, tal situação resulta no fato de poucas
mulheres alcançar altos cargos ou posições de liderança e destaque.
Com relação a atuação de mulheres em posições de destaque na academia
em Matemática e ao seu reconhecimento, podemos citar que encontramos somente
a acadêmica Karen Keskulla Uhlenbeck (1942- ) dentre os 22 laureados com o
Prêmio Abel80, e somente Maryam Mirzakhani (1977-2017) dentre os 60 laureados
com a Medalha Fields81.
No cenário nacional, no início de 2019, foi identificado que as mulheres
representam apenas 3% dos membros titulares da Academia Brasileira de
Ciências, na área de Ciências Matemáticas (OLIVEIRA, 2020). Destacamos,
também, que somente 22% dos docentes de programas de pós-graduação em
Matemática são mulheres, enquanto esta porcentagem permanece em torno de
40% quando consideramos do ensino superior nesta área (BRECH, 2018). Além
disto, somente 10% dos bolsistas produtividade em Matemática são mulheres
(IMPA, 2017).
Nesta perspectiva, é relevante a realização de estudos que busquem
identificar fatores que podem influenciar a participação 82 de mulheres na
Matemática em diferentes contextos históricos e geográficos. Afinal, a participação
da mulher na academia, nas ciências de modo geral e na matemática de modo
particular, bem como os fatores que a influenciam, se alteram ao longo da história
(OLIVEIRA & CAVALARI, 2019) e também são influenciados pelo “[...] pelo papel
que é localmente atribuído à ciência, [...] pelo sistema educativo e pela presença
ou ausência de sistemas que viabilizem a vida profissional e familiar da mulher.”
(VELHO & LEON, 1998, p. 316).

80 Dados identificados em https://www.abelprize.no/c76018/seksjon/vis.html?tid=76019 em janeiro


de 2021.
81 Dados identificados em
https://www.mathunion.org/imu-awards/fields-medal em janeiro de 2021.
82
Estes fatores podem ser referents ao acesso à academia e à permanência na carreira acadêmica
e crescimento profissional. Para UNESCO (2017), tais fatores interagem entre si, de maneira
complexa, e afetam a participação da mulher nos estudos das áreas de STEM.

132
Podemos observar, no cenário internacional, um aumento do número de
trabalhos acerca da identificação de tais fatores, sobretudo voltados a área áreas
de STEM (sigla em inglês que se refere às áreas Ciência, Tecnologia, Engenharia
e Matemática). Podemos, também, identificar a realização de pesquisas que
objetivam sistematizar o conhecimento produzido sobre estes fatores. Dentre estas,
destacamos, Blickenstaff (2005), Galeshi (2013), Smith (2014) e Blackburn (2017).
Especificamente com relação ao contexto brasileiro, ainda são poucos
trabalhos acadêmicos voltados a esta temática, em especial, na Matemática. Ao
observarmos teses que apresentam resultados relacionados com gênero na
Matemática83, elaboradas no Brasil e Reino Unido, no período de 1977 a 2017
identificamos 39 trabalhos84, dos quais apenas 9 são brasileiros e a grande maioria
se volta para obstáculos relativos ao acesso ao ensino superior, não abordando
questões relativas à atuação da mulher no ensino superior e na academia
(CAVALARI, 2019).
Neste sentido, destaco a necessidade da realização de pesquisas acerca de
fatores que influenciam a participação feminina na Matemática, especificamente,
voltadas ao cenário nacional. Estas são ainda mais necessárias, devido ao fato já
mencionado de que a estrutura acadêmica do Brasil se distingue da de outros
países, tornando essencial a elaboração de estudos especificamente voltados para
nossa realidade.
Enfatizo que tais investigações podem estudar fatores que se configurem
como “Obstáculos” e/ou como “Suportes”, assim como o trabalho desenvolvido por
Fouad e colaboradores (2010).
A identificação destes fatores, juntamente com os debates realizados por
pesquisadoras da área de Matemáticas, pode contribuir para uma reflexão sobre
as condições de trabalho das mulheres na academia.
Estes debates, segundo Brech (2018), têm ocorrido em espaços voltados
para as mulheres matemáticas, como por exemplo, os seguintes eventos: Encontro

83
Neste sentido, se analisarmos especificamente voltados a gênero ou Mulher na Matemática este
número é ainda inferior.
84
Sendo que 14 delas foram elaboradas nos últimos sete anos do período analisado.

133
Paulista de Mulheres na Matemática, Women Mathematicians in Latin America,
Women in Mathematics in Latin America: Barriers, Advancements and New
Perspectives e o World Meeting for Women in Mathematics. Para esta autora, tais
debates levam “[...] à reflexão e à conscientização, que formam um passo
importante para evitar o viés de gênero e romper o círculo vicioso estabelecido” (p.
04).
Neste contexto, destacamos a importância de tais momentos de discussão
e reflexão, pois algumas pesquisas indicam que mulheres acadêmicas têm
dificuldade de identificar (ou até mesmo negam que existam) obstáculos
relacionados ao gênero na academia (VELHO & LÉON, 1998; CAVALARI 2007;
LOPES, 2014).
Assim, ressaltamos que as pesquisas acerca da participação da mulher na
Matemática são fundamentais, pois permitem uma reflexão que vão além das
experiências particulares. Podendo, desta forma, juntamente com os referidos
debates, contribuir para reflexões acerca desta temática que podem, inclusive,
embasar a elaboração de ações85 e de políticas públicas para o aumento da
participação feminina na Matemática e na produção do conhecimento matemático.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho apresento breves considerações acerca da produção


científica relacionada à participação das mulheres na academia em Matemática.
Por meio destas, ressalto a relevância do aumento de investigações que se voltem
para identificar fatores, ou nas palavras de Fouad e colaboradores (2010), os
“obstáculos” e/ou “suportes” que influenciam a participação de mulheres na
Matemática.

85
Sobre estas ações, Oliveira (2020, p. 08) indica que a “[...] comunidade brasileira tem começado
a promover iniciativas que podem indicar que o incentivo para meninas ingressarem em carreiras
científicas e tecnológicas [...] Como exemplo, é possível citar a criação de um Comitê de Gênero
na Sociedade Brasileira de Matemática (SBM) e projetos como o Meninas Olímpicas do IMPA (MOI),
o Torneio de Matemática para Meninas (TM)² e o financiamento da participação de meninas em
competições como o European Girls’ Mathematical Olympiad (EGMO)”.

134
Destaco que pesquisas com este enfoque têm sido realizada no cenário
internacional, entretanto, estas ainda são pouco numerosas no Brasil, que além de
possuir particularidades na estrutura acadêmica, possui uma sub-representação
feminina na Matemática progressiva e persistente.
Neste sentido, enfatizo a necessidade da realização de investigações que
relacionem mulheres, história e matemática e indico a relevância de repensar o
papel da mulher na matemática e na produção científica desta área, bem como a
urgência da idealização e implementação de ações e políticas públicas para o
aumento da participação feminina na Matemática.

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136
MATEMÁTICA E PRÁTICAS SOCIAIS: DESENVOLVIMENTO DA
MATEMÁTICA A PARTIR DOS ESTUDOS DA CURVA DE RUMO NÁUTICA

Aline Mendes Penteado Farves86

RESUMO
O objetivo da discussão proposta para esta mesa redonda é “Matemática e práticas sociais:
algumas histórias”, na qual trazemos a perspectiva do desenvolvimento da matemática a
partir dos estudos da curva de rumo náutica, por Pedro Nunes. Primeiramente
apresentamos a importância que Pedro Nunes atribuía à Matemática, que pode ser
verificada por meio de suas obras. Em seguida apresentamos a caracterização que Pedro
Nunes fez dos dois tipos de curva náutica, assim como sua origem nas práticas sociais da
navegação. Por fim, apresentamos a relevância dos estudos de Pedro Nunes como ponto
de partida para o desenvolvimento de outros problemas matemáticos, além da sua
importância para a cartografia.

Palavras-chave: Curva de rumo. Pedro Nunes. Loxodromia. Práticas Sociais.

INTRODUÇÃO

O objetivo da discussão proposta para esta mesa redonda é “Matemática e


práticas sociais: algumas histórias”, na qual trazemos a perspectiva do
desenvolvimento da matemática a partir dos estudos da curva de rumo náutica, por
Pedro Nunes. As ideias apresentadas são fruto da dissertação de mestrado
intitulada “Pedro Nunes e a Distinção de Dois Tipos de Trajetórias na Navegação:
a Linha de Rumo e o Círculo Máximo” (PENTEADO, 2011).
Pedro Nunes, nasceu em Alcácer do Sal (uma vila localizada no Sul de
Portugal, perto de Lisboa), no ano de 1502. Suas contribuições científicas foram
muito amplas, iniciando suas publicações em 1537, sendo a maioria voltada à

86
Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ). aline.penteado@ifrj.edu.br.

137
navegação. Destacou-se como matemático, desenvolvendo atividades como
professor e cosmógrafo real.
Foi no contexto dos Descobrimentos e das Grandes Navegações em
Portugal que esta história se desenvolveu. Todo este contexto exigiu novos
métodos de cálculo de posições e de rotas, e para isto a Matemática foi
imprescindível, envolvendo principalmente geometria esférica e astronomia. Pedro
Nunes ressalta que as navegações e os Descobrimentos de Portugal estavam
ocorrendo devido ao “ensino e instrumentos e regras de astrologia e geometria”.
Apesar de alguns erros, todos os conhecimentos obtidos durante os séculos XV e
XVI, permitiam uma localização em praticamente qualquer parte dos mares e todos
esses avanços deram origem a uma ciência náutica, que tinha como base a
matemática e a astronomia (BETHENCOURT et al., 1998, p. 74).
O maior problema enfrentado pelos navegadores nesta época, era com
relação à direção que o navio deveria seguir para se chegar a determinado destino,
e esse fato se complicava ainda mais quando não estavam próximos da costa
(BETHENCOURT et al, 1998).
Com todos os avanços obtidos na navegação, tornou-se possível realizar
muitas viagens, como a de Cristóvão Colombo no hemisfério Norte, em 1492, de
Vasco da Gama à Índia pelo hemisfério sul, em 1498 e para o Pacífico, em 1520.

A MATEMÁTICA NAS OBRAS DE PEDRO NUNES

Nesta época, surgiram muitas obras de cunho prático, como se fossem


manuais de profissão, voltadas para a navegação (LEITÃO, 2006). Como Pedro
Nunes não era um navegador, suas teorias nasceram principalmente por meio da
leitura de obras clássicas e pela busca de soluções para a navegação.
Os textos de Pedro Nunes diferenciavam-se desses manuais, pois
apresentavam um caráter mais teórico, principalmente pela fundamentação
matemática que ele apresentava para as questões da náutica. Por este motivo,
Pedro Nunes e suas obras não foram muito aceitas pelos navegadores,

138
principalmente pelo fato de não ter experiência de navegação. Todo o contexto
deste período promoveu uma demanda de conhecimentos mais amplos da
Matemática e assim proporcionou condições favoráveis para o desenvolvimento
desta e consequentemente da geografia e da astronomia:
estes textos são estudos e reflexões em torno dos fundamentos da
arte náutica. (...) alguns estão escritos em latim e recorrem a
conceitos matemáticos avançados, manifestamente muito para
além do que pilotos e marinheiros podiam entender. (...) São
cuidadosas reflexões sobre os fundamentos da navegação que
então se praticava, sobre os seus pressupostos, os seus problemas
e a sua fundamentação. (LEITÃO, 2006, p. 90)

Para Pedro Nunes, o estudo da natureza tinha que estar fundamentado na


Matemática e isto é perceptível em todas as suas obras: “para a navegação e
descobrimentos de terras, a nossa arte de navegar é a mais fundada em ciências
matemáticas que nenhuma outra poderá usá-la” (NUNES, 2002, p. 1371) e também
afirma “que as navegações de Portugal são as mais certas e melhor fundadas que
nenhuma outra” (NUNES, 2002, p. 138).
Além disso, ele consagrava à Matemática os progressos que estavam
havendo na navegação, afirmando que essas viagens e descobertas não ocorreram
ao acaso e pela sorte, mas sim devido ao conhecimento de regras e instrumentos
da Matemática:

Ora, manifesto é que estes descobrimentos de costas, ilhas e terras


firmes não se fizeram ao acaso, mas partiam nossos navegantes
ensinados e providos de instrumentos e regras de astrologia e
geometria, que são as coisas de que os Cosmógrafos devem estar
providos. (NUNES, 2002, p. 121)

Ele considerava que os pilotos tinham que saber a Matemática, pois senão
poderiam se enganar e atribui o desconhecimento da matemática como a causa de
erros na navegação: “e porque isso também é coisa em que facilmente se poderia
enganar qualquer pessoa que não fosse exercitada nas ciências matemáticas”
(NUNES, 2002, p. 155). Afirma ainda que “ciência não é outra coisa senão um
conhecimento habituado no entendimento, o qual se adquire por demonstração, e
demonstração é aquele discurso que nos faz saber” (NUNES, 2002, p. 5).

139
Ele também procurava demonstrar suas afirmações: “Nem deve haver
dúvida no que escrevi nessa parte, porque nenhuma coisa é mais evidente que a
demonstração matemática, que de nenhuma maneira se pode contrariar” (NUNES,
2002, p. 119). Sobre isso, Leitão (2006) afirma que “Para Nunes, portanto, a
matematização não é simplesmente o tratar numericamente um assunto. O que
sempre procurou foi erigir um edifício lógico-demonstrativo, estruturado ao modo
euclidiano” (LEITÃO, 2006, p. 194).
Em todos os seus trabalhos encontramos diversos problemas de
geometria, geometria da esfera, trigonometria esférica e álgebra. Por meio de suas
obras podemos verificar que ele buscou estruturar uma náutica científica, apoiando
as teorias na Matemática e, além disso, tentava explicar aos pilotos a importância
da preparação teórica matemática para o sucesso das navegações. Assim,
consideramos que Pedro Nunes foi um teórico interessado pela prática,
promovendo mundialmente o movimento da navegação de uma arte prática para
um tema científico (SIMÕES et al, 2007).

AS CURVAS DE RUMO NÁUTICO

O estudo da curva de rumo náutica, denominado linhas de rumo, foi um dos


temas estudados por Pedro Nunes (1502-157), cujas contribuições são bem
conhecidas.
Como já dissemos, a grande questão dos navegadores sempre foi qual rota
deveriam seguir no mar. Pedro Nunes foi o primeiro, que temos conhecimento, a
fazer estudos sobre a loxodromia e sobre a representação dessa curva nas cartas
de marear. O ponto principal de sua teoria foi a distinção de dois tipos de rotas:
• Loxodromia ou linha de rumo: “é a linha que intercepta os vários meridianos
segundo um ângulo constante.” (MIGUENS, 1996, p. 9);
• Ortodromia: “é qualquer segmento de um círculo máximo da esfera terrestre.
É, assim, a menor distância entre dois pontos na superfície da Terra.” (MIGUENS,
1996, p. 9);

140
Basicamente, a loxodromia consiste em uma curva que corta com um
mesmo ângulo, todos os meridianos do globo terrestre. Esta curva foi uma
ferramenta muito útil no século XVI nas navegações marítimas, pois a maneira mais
natural de se navegar em alto mar é mantendo um ângulo constante com o norte
da bússola. Como nessa época os navegadores possuíam poucos instrumentos de
navegação, seguir uma trajetória sempre na mesma direção era mais seguro e,
apenas com a bússola eles podiam se orientar, cruzando todos os meridianos do
globo terrestre com a mesma inclinação, chegando aos seus destinos.
Os termos loxodromia e ortodromia não foram utilizados por Pedro Nunes
para se referir a estes dois tipos de curva de rumo. Para se referir à loxodromia ele
usou: “certa maneira de linhas curvas”, “linha curva e irregular”, “linha curva, que
não é círculo nem linha direita”, “obliquidades e rodeios”, “sinuoso e oblíquo”, entre
outros.

E quanto ao comprimento do caminho andam muito mais do que


eles acham (...), porque vão fazendo grandes rodeios e quando,
sem tomar a altura por estimação do caminho que tem andado,
querem fazer seu ponto, lançam em linha direita o que eles tem
andado por rodeios e os lugares ficam mais longe. (NUNES, 2002,
p. 113)

Já para se referir à ortodromia, os termos utilizados foram: “círculo grande”,


“círculos maiores”, “círculo máximo”, “caminhos direitos”, “direito e contínuo”, entre
outros.
Pelas expressões acima, percebemos que a loxodromia indica a ideia de
que a navegação por este modo é caracterizada por uma curva na esfera, em
contrapartida com a ortodromia que determina uma ideia de “reta” na esfera, que
seria um círculo máximo. Um dos motivos que levou Pedro Nunes a escrever dessa
maneira é que a loxodromia implica em um caminho mais longo do que a
ortodromia. Por isso, ele designa loxodromia por curva, irregular, sinuoso, oblíquo,
rodeio, curvilíneo em oposição à ortodromia por reto, direito, circular e contínuo,
que é o caminho mais curto.

141
ORIGEM NAS PRÁTICAS SOCIAIS

O desenvolvimento dos estudos de Pedro Nunes teve origem na


navegação, ou seja, os problemas e dúvidas que surgiam na prática. Em uma de
suas obras, ele aponta o motivo que o levou a estudar a loxodromia: as perguntas
do navegador Martim Afonso de Sousa, quando ele regressou de uma viagem ao
Brasil em 1530-32.
Às questões deste navegador, Pedro Nunes deu uma resposta elaborada,
que consistiu na produção de um tratado na versão portuguesa e posteriormente
sua tradução para o latim.
Uma das dúvidas era: “Por que, governando a leste ou oeste, navegavam
em uma altura sempre sem nunca poder chegar à equinocial onde levamos a proa
juntamente com o leste da agulha?”.

FIGURA 1: Explicação da dúvida de Martim Afonso de Souza

Fonte: Almeida (2004, p. 490)

Martim Afonso de Sousa ao regressar do Brasil, partiu do ponto M e


resolveu tomar e conservar um rumo leste, V=90°, ou seja, apontando para o ponto
S, para sair do Brasil e chegar a Lisboa. Assim, ele acreditava que navegaria pelo
círculo máximo que passa por M e S, e que em algum momento da viagem iria
interceptar o Equador. Entretanto, isto não ocorreu e ele verificou que, em vez de
se aproximar do Equador, seguia no paralelo do ponto de saída.

142
Pedro Nunes explicou que se um navio partisse de M apontando a leste,
com rumo constante, iria percorrer o paralelo PP’ e não o círculo máximo, de arco
MS, e dessa forma, nunca interceptaria a equinocial.
Como já dissemos, os pilotos nessa época procuravam sempre manter um
ângulo constante durante os trajetos, devido aos poucos instrumentos de
navegação disponíveis. Por isso, era mais seguro navegar mantendo sempre
ângulo constante com o norte da bússola, que era o instrumento que eles
dispunham. Entretanto, eles acreditavam que navegando desta maneira eles
percorriam um círculo máximo na esfera.
Explicando de outra maneira, podemos dizer que os pilotos acreditavam
que navegando com rumo constante eles sairiam de um ponto qualquer da esfera,
navegariam ao longo de um círculo máximo e assim, em algum momento
regressariam para o mesmo lugar de partida, ou seja, dariam a volta ao mundo.
Essa ideia dos pilotos vai ao encontro de nossa intuição, mas Pedro Nunes,
mostrou que eles não estavam pensando corretamente: “como se dirigem sempre
para a mesma parte do mundo, mantendo uma direcção constante, de forma
alguma podem seguir por caminhos direitos” (NUNES, 2008, p. 276).
Ele afirma que navegar por um círculo máximo (ortodromia) consiste em
fazer diferentes ângulos com os meridianos ao longo do trajeto, com exceção da
equinocial, sendo esta ideia muito rejeitada pelos pilotos daquele tempo.
Sobre a navegação ao longo de um círculo máximo, a desvantagem implica
que os navegadores devem fazer mudanças no rumo durante toda a viagem:

Mas quem por ele for saiba que tem de mudar de rumo, não apenas
uma vez, mas muito amiúde, devido à mudança dos ângulos de
posição, resultante dos sucessivos meridianos que se atravessam.
A investigação deste assunto é assaz subtil, e consiste em
determinar quanto crescem ou decrescem estes ângulos ao longo
do trajecto. Quem assim avançar seguirá a direito. (NUNES, 2008,
p. 276)

Já como vantagem, temos que é o menor caminho entre dois pontos


quaisquer da esfera terrestre: “o caminho ao longo do círculo máximo tem a
vantagem de ser o mais breve e curto para os viajantes.” (NUNES, 2008, p. 276).

143
Com relação à navegação por linhas de rumo, a desvantagem é que perfaz
um caminho mais longo:

(...) quanto ao comprimento do caminho, andam muito mais do que


eles acham (...) porque vão fazendo grandes rodeios e quando,
sem altura por estimação do caminho que tem andado, querem
fazer seu ponto, lançam em linha direita o que tem andando por
rodeios, e os lugares ficam mais longe do que são, que é grande
desserviço de vossa alteza, e se pela altura os navegantes poucas
vezes acertam fazem sua conta, umas vezes erram, por darem
mais lonjura, e outra vezes por darem menos. (NUNES, 2002, p.
113 e 114)

Por esse motivo, ele critica os pilotos por navegarem com rumo constante,
pois sabe que implica em um caminho mais longo.
Portanto, resumidamente, com relação às linhas de rumo, Pedro Nunes
verificou que não coincidiam com os arcos de círculo máximos como até então se
pensava. Apesar da navegação ao longo do círculo máximo ser o menor caminho,
o problema que se levanta é que os pilotos precisam mudar o rumo constantemente
e isso nem sempre é viável.
No tratado na versão portuguesa ele acrescenta a seguinte figura:

FIGURA 2: Representação da loxodromia na obra de Pedro Nunes

FONTE: Almeida (2004, p. 491)

144
Temos que ele se baseou em uma carta de projeção polar equidistante do
hemisfério Norte, sem os paralelos e com 4 meridianos (representados pelas linhas
retas que se cruzam no polo). Assim, temos a visão do polo (no centro da
circunferência) e sobre esta circunferência, que é a linha do equador, existem 4
pontos A, B, C e D espaçados 90°. Também temos 4 rumos que partem de cada
um desses 4 pontos: os azimutes das linhas de rumos desses pontos são dois de
45° e dois de 67°30’.
Conforme a explicação de Pedro Nunes, sabemos que inicialmente ele
acreditava que as linhas de rumo atingiam os polos: “Como parece nessa figura
que vai cercando o globo do mar e da terra, até chegar ao ponto que está debaixo
do pólo, onde todos os rumos vão finalmente entrar” (NUNES, 2002, p. 184). Em
um texto posterior ele omitiu esta figura, devido as controvérsias com relação a
atingir os polos. Esta questão foi objeto de muitas controvérsias no século XVI.
Hoje, sabemos que as linhas de rumo formam uma curva em forma de hélice
esférica na esfera terrestre.

CONCLUSÃO

Todo o contexto histórico de Portugal dos séculos XV e XVI criou condições


favoráveis para o surgimento de diversos estudos. As necessidades práticas das
navegações propiciaram estudos voltados para esta temática, sendo que um deles
foi sobre o conceito da loxodromia, realizado primeiramente por Pedro Nunes.
Este matemático dedicou sua vida ao aprimoramento da náutica e da
cartografia náutica. “Foi um pensador, um filósofo que aliou a cultura da época com
a técnica e o humanismo” (MARTINS, 2005). Ele queria progredir as ciências nas
áreas da náutica e da cartografia náutica embasando-se na Astronomia e na
Matemática. Assim, ele promoveu o surgimento da navegação teórica, que tinha
como alicerce a matemática, que para Leitão (2008) foi a maior contribuição de
Pedro Nunes.

145
Tratando especificamente da loxodromia, muitas das ideias de Pedro
Nunes serviram de ponto de partida para o desenvolvimento de outros problemas
matemáticos, além de ser fundamental para a cartografia. Suas ideias acerca da
loxodromia se propagaram muito rapidamente e tornaram-se conhecidas em
diversos países, dos quais podemos citar Espanha, França, Inglaterra (Gemma
Frísio e John Dee) e Países Baixos (Simon Stevin e Willebrord Snell).
Ele também esteve preocupado com o comportamento da curva nas
proximidades dos polos, ou seja, seu comportamento assintótico, tema alvo de
muitos estudos posteriores, envolvendo o estudo de análises infinitesimais.
No período em que ele publicou suas ideias, pelo fato de suas teorias de
navegação estarem alicerçadas na matemática, seu público-alvo ficou restrito a
matemáticos e astrônomos, inclusive fora de Portugal, e suas ideias não foram
muito utilizadas diretamente pelos pilotos portugueses, pois estes não
compreendiam suas ideias. É claro que aos poucos estas ideias foram sendo
introduzidas no conjunto de conhecimentos sobre navegação dos pilotos.
A trajetória que hoje é denominada curva loxodrômica é caracterizada por
uma espiral que tende para um dos polos:

FIGURA 3: representação da espiral

FONTE: Mathworld.wolfram.com

Entretanto, vimos que percorrer esta curva não implica em percorrer a


menor distância entre dois pontos na esfera terrestre, sendo que o menor caminho
consiste numa geodésica da esfera: o arco de círculo máximo que passa por tais
pontos. Além disso, também verificamos que percorrer este círculo máximo na

146
esfera não implica em cortar todos os meridianos sob o mesmo ângulo, como os
navegadores do século XVI acreditavam.

FIGURA 4: Ortodromia – ângulos distintos com os meridianos

FONTE: Betasom.it

Com relação a representação da loxodromia nas cartas náuticas,


verificamos que Pedro Nunes acreditava que a loxodromia era representada por
uma reta, o que veio a se confirmar com as ideias de Mercator posteriormente. Já
a ortodromia é representada no plano por uma curva, como na figura a seguir.

FIGURA 5: Representação plana da loxodromia e da ortodromia

FONTE: Artoweb.itc.nl

147
As diferenças entre essas duas trajetórias consistem na principal inovação
de Pedro Nunes, pois no século XVI, os pilotos as consideravam como sendo a
mesma. Para pequenas distâncias, a loxodromia e a ortodromia são muito
próximas. Entretanto, para grandes viagens, principalmente em latitudes elevadas,
a diferença entre as duas pode ser muito significativa.
Além de distinguir esses dois tipos de trajetórias ele propôs um modo de
navegar por arcos de círculo máximo, representável matematicamente, no qual a
navegação pela linha de rumo é um caso limite. Assim, ele supõe que o navio
seguiria uma trajetória que é formada por uma série de arcos de círculos máximos,
tais que os ângulos que faz com os meridianos sejam sempre iguais. Dizemos que
a curva loxodrômica é um caso limite porque a trajetória descrita desta maneira
tende para esta curva.
Por fim, esses estudos contribuíram para posteriores estudos sobre mapas,
como por exemplo, na elaboração dos mapas de Mercator. Além disso,
posteriormente outros matemáticos estudaram esta curva. Como exemplo, Jacques
Bernoulli relacionou essas curvas com a espiral logarítmica.

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149
PRÁTICAS SOCIAIS MATEMÁTICAS DO COMÉRCIO E SUA PRESENÇA NOS
LIVROS DE MATEMÁTICA COMERCIAL E FINANCEIRA

Sérgio Candido de Gouveia Neto87

RESUMO
Ao longo dos anos a atividade comercial estabeleceu um conjunto de práticas, que
posteriormente foram sistematizadas e passaram a constar os livros de Aritmética
Comercial e Financeira, além de serem escolarizadas, principalmente nos cursos
de comércio. No Brasil, as aulas de Comércio foram estabelecidas no século XIX,
passando por diversas reformas ao longo do século XX. Nesse sentido, questiona-
se: como as práticas relacionadas às diversas artes de comerciar foram tratadas
nos livros de Matemática Comercial e Financeira que circularam no Brasil no século
XX? Assim, o trabalho aqui delineado tem como objetivo geral analisar as diversas
práticas do comércio presente nos livros de Matemática Comercial e Financeira que
circularam no Brasil no século XX. Como referencial teórico-metodológico,
utilizamos a concepção de práticas sociais de Souza (2004), que entre os diversos
pontos, destacamos as práticas como um conjunto de atividades ou ações físico-
afetivo-intelectuais que se caracterizam por serem conscientemente orientadas por
certas finalidades; além de produtores de conhecimentos. De uma forma geral, os
livros de Matemática Comercial e Financeira são caracterizados pela presença de
prática sociais mais antigas, bem como, com práticas sociais de diversos ramos do
comércio. Estas práticas sociais foram sistematizadas nestes livros e
posteriormente escolarizadas nos cursos de comércio.

Palavras-chave: Ensino Comercial. Livros didáticos. Aritméticas Comerciais.

INTRODUÇÃO

Comprar, vender, trocar... A arte de comerciar constitui uma ação humana


muito antiga. Contudo, o comércio começou a adquirir uma proporção mundial
durante a Idade Média, com o estabelecimento das relações entre a Europa, África
e Oriente. Um pouco destas práticas comerciais deste período foram relatadas por

87 Fundação Universidade Federal de Rondônia (UNIR). sergio.gouveia@unir.br

150
Marco Polo em seu livro "As viagens de Marco Polo", que retrata principalmente as
viagens dele para a China.
Segundo Le Goff (1982), durante a Idade Média ocorreu uma verdadeira
revolução comercial, e a partir dela nasceu a figura do mercador, fosse ele o
itinerante, fosse ele o sedentário88, bem como os seus desdobramentos. Por
exemplo, dos mercadores que trabalhavam com o comércio do dinheiro, surgiram
os prestamistas sobre penhores (emprestavam dinheiro a curto prazo), os
cambistas e os banqueiros. Os cambistas desempenhavam duas funções: o câmbio
das moedas e o comércio de metais preciosos. Com o tempo, passaram a aceitar
depósitos e tornaram-se banqueiros. Havia também os “banqueiros” que, além de
participar de toda a atividade comercial, praticavam as “atividades financeiras
múltiplas: comércio de letras, aceitação de depósitos e operações de crédito,
participação em várias sociedades e práticas de seguros” (LE GOFF, 1982, p.31).
Mas qual a importância de entender estas práticas? Diversos conceitos,
ideias e técnicas que foram criadas, desenvolvidas e praticadas por esses
personagens da Idade Média chegaram até os dias atuais. Por exemplo, os
modelos de contratos e de associação comercial; as técnicas do seguro; as letras
de câmbio, a contabilidade (LE GOFF, 1982) e práticas de cálculos financeiros.
As empresas daquela época faziam o controle das finanças por numerosos
registros, em livros de compras, de vendas, de matérias primas, de depósitos, de
terceiros. De um modo geral, com o tempo aquelas empresas passaram a ter um
sistema duplo nos registros para as contas abertas dos sócios no estrangeiro. A
compensação dos pagamentos passava a ser feita por um jogo de escrituração,
sem transferência de numerário. Esse método, conhecido como partidas duplas ou
partidas dobradas permitiu o desenvolvimento do sistema de contas, ou seja, da
contabilidade (LE GOFF, 1982).
O método das partidas dobradas foi sistematizado e publicado em um livro
intitulado “Summa de Arithmetica, Geometria proportioni et propornalità”, de autoria
do Frade italiano Luca Pacioli. A edição 1494, publicada na cidade de Veneza, traz

88 De acordo com Le Goff (1982), o mercador sedentário procurava capitais fora dos seus recursos
próprios para financiar as viagens marítimas.

151
um capítulo sobre contabilidade denominado de “Particulario de computies et
Scripturis”, que trata do método das partidas dobradas (CORREGIO, 2006).
Embora hoje tenhamos essa separação entre matemática e contabilidade, na
época de Pacioli as partidas dobradas eram um método aritmético, que consistia e
consiste em fazer débitos e créditos de mesmo valor para cada operação. Um
débito pode corresponder a vários créditos, de forma que a soma desses créditos
deve ser igual ao valor do débito (IUDÍCIBUS et al, 2007).
Além do texto de Pacioli, diversas outras aritméticas utilizadas por
mercadores passaram a ser publicadas naquele período (ZUIN, 2007). Essas
aritméticas eram caracterizadas pela redação em línguas vernáculas e pela escrita
indo-arábica (o algarismo). Elas representavam o que alguns pesquisadores
chamam de aritmetização do real (ALMEIDA, 1994), ou seja, contribuíram para o
estabelecimento de uma mentalidade do cálculo e de aritmetização de aspectos do
dia a dia.
No espectro das diversas aritméticas comerciais que foram escritas durante
a Idade Média, temos a anônima “Aritmética de Treviso”, o “Qui comenza la nobel
opera de arithmetica” de Pietro Borghi, ou ainda, em Portugal, o “Tratado da Prática
d'Arismetica” de Gaspar Nicolas e o “Tratado da arte d'Arismetica” de Bento
Fernandes, as quais trataram, por exemplo, da relação entre matemática e
contabilidade; da matemática e das práticas do comércio.
Essas aritméticas, ao que tudo indica, foram utilizadas na formação dos
comerciantes e de seus filhos (HÉBRARD, 1990), pois esses livros eram em língua
vernácula, ao passo que os livros de matemática utilizados nas universidades eram
publicados em latim. Sem escolas para ensinar a cultura profissional específica,
“[...] A formação dos mercadores fez-se em serviço, parece que cada família tinha
disponível para esse fim uma compilação de modelos e de instruções que se
transmitem de geração em geração, sem deixar de enriquecer-se [...]” (HÉBRARD,
1990, p. 75). Por exemplo, ao publicar seu livro “Summa de Arithmetica, Geometria
proportioni et propornalità”, no fim do século XV, o frade italiano Luca Pacioli
sistematizou as partidas dobradas, método de escrituração mercantil já tão
difundido nas casas de negócios da Idade Média (LE GOFF, 1982). Em sua

152
juventude, Pacioli foi preceptor dos filhos do mercador Antonio Rompiansi,
oportunidade em que teria estabelecido os primeiros contatos com as atividades
comerciais (VALENTE, 2006).
Como parte da cultura do comerciante, a aritmética passou a integrar o
conjunto de saberes elementares da formação básica do sistema escolar muito
anos depois. Na França, Jéan-Baptiste de La Salle propôs somente no século XVIII,
a escolarização das aprendizagens derivadas da cultura mercantil, seja ela a arte
caligráfica, a epistolar, a aritmética prática, seja a arte de arrumar os livros
contábeis (HÉBRARD, 1990; ZUIN, 2007).
Além dessa formação básica nas escolas primárias e secundárias, ainda
no século XVIII foram criadas as primeiras escolas específicas, destinadas à
formação do comerciante e de seus funcionários. Por exemplo, em Portugal, a Aula
do Comércio foi instituída no ano de 1759, como parte das reformas administrativas
realizadas pelo Marquês de Pombal.
Essas aulas de comércio tinham como objetivos de formar comerciantes e
guarda-livros, conforme instituído nos seus estatutos (PORTUGAL, 1759). No
documento, foram estabelecidos os conhecimentos que esses profissionais
aprenderiam ao longo do curso, compreendendo a aritmética (quatro operações,
conta de quebrados, regra de três); sistemas de pesos e medidas; câmbios;
seguros e escrituração mercantil (métodos de escrever os livros de contabilidade).
Com a criação de tais escolas específicas, teve-se de uma forma mais contundente,
a escolarização de saberes derivados da cultura mercantil. A aritmética dos
mercadores, parte dessa cultura, passou a compor a cultura escolar técnica.
Com a transferência da família real portuguesa para o Brasil em 1808,
foram tomadas diversas medidas para o estabelecimento da Corte em território
brasileiro e entre elas, estava a instauração das aulas de comércio, com estatutos
semelhantes às de Portugal (BRASIL, 1808). Naquela época, os compêndios de
Bézout eram referência para a aritmética, a álgebra e a geometria. Sobre o texto
de Bézout, Valente (2006) nos dá uma ideia de como estava estruturada a sua
aritmética: os números e as quatro operações fundamentais, frações, “números
complexos”, raiz quadrada e cúbica, razões, proporções, regra de três, progressões

153
aritmética e geométrica e logaritmos. Cumpre observar que os compêndios de
Bézout, que circulavam no início das Aulas de Comércio, não apresentavam
elementos de aritmética comercial. De acordo com Valente (2006), somente o
compêndio Elementos de Aritmética, de Bézout, adaptado por José da Silva
Tavares e reimpresso a partir de 1836, traz elementos da cultura mercantil:

[...] Tavares inclui um apêndice com o seguinte título: “Appendice –


Applicação das Regras d´Arithmetica às operações de commercio e de
banco, etc.”. Nele estão presentes ensinamentos sobre o cálculo de
juros, de câmbio, de seguro, de conversão de pesos e medidas,
moedas, um “modelo de uma conta corrente feita segundo o methodo
mais moderno, sem dependencia de números vermelhos”, uma tabela
de câmbios entre o Brasil e a Inglaterra, dentre vários outros itens para
uso do comércio (VALENTE, 2006, p. 74-75, grifo nosso).

O regulamento da Aula de Comércio construído nos seios da Junta de


Comércio previa um curso de dois anos, ficando os conteúdos da aula divididos da
seguinte forma:

Art. 24. No primeiro ano lerá o respectivo ‘Lente’ - Aritmética, Álgebra


até as equações do segundo graus inclusive, e as duas primeiras
secções de geometria, [...], Juros simples, e compostos, Descontos,
e Abatimentos, Regras de Companhia, e de Liga, falsa posição,
Cálculo de anuidades, Amortização, Regra conjunta, Moedas, Pesos,
e Medidas Nacionais, e Estrangeiras, Câmbios, e Arbítrios de
Câmbio.
Art. 25. No segundo ano lerá o ‘Lente’ respectivo - História geral do
Comércio, de seus elementos [...] de câmbio, de risco, seguros [...]
(BRASIL, 1846).

Os conteúdos de aritmética contidos nessa legislação estavam mais


próximos dos livros de aritmética comercial da época, do que vinha sendo ensinado
por José Antônio Lisboa, ao utilizar o livro de Bézout. Essas aulas permaneceram
por muito tempo com praticamente a mesma estrutura. Só anos depois é que foram
reformadas.
Tais aulas de Comércio passaram por algumas reformas no século XIX, as
quais moldaram e definiram uma estrutura que foi utilizada nos primeiros cursos
comerciais do século seguinte. Nesse sentido, as reformas do ensino comercial no

154
século XX separaram a formação desses profissionais em cursos específicos
(contabilidade, economia e administração). A primeira mudança na Legislação no
século XX aconteceu em 1905, com a criação dos cursos gerais (formar guarda-
livros) e cursos superiores (formar chefes de contabilidade de bancos e grandes
empresas comerciais). Gouveia Neto (2015) conjectura que o livro "Calculos
Commerciaes" de Verediano de Carvalho era a referência que circulava nestes
cursos, mesmo tendo sido publicado em 1880. Verediano foi autor de livros na área
de escrituração mercantil.

Desejamos acenar os vários períodos e pôr em destaque a obra


produzida pelos autores patrícios. Dois são os ciclos das nossas
obras sobre contabilidade. O que antecedeu o Tratado de
Escrituração Mercantil [de 1885], de Verediano de Carvalho, o
posterior a este Tratado até o presente. [...] O livro de Verediano fez
época, tendo atingido a mais de vinte edições. Com esta publicação
encerrou-se o ciclo da contabilidade empírica, no Brasil. (D’ÁURIA,
1929, p. 2-3 apud POLATO, 2008).

O livro de Verediano de Carvalho apresenta uma estrutura bem simples,


dividida em 93 páginas. Porém, seu conteúdo está mais próximo de elementos da
prática social mercantil, tais como regra de três, proporções, juros, descontos,
porcentagens, desconto por dentro, divisores para juros, mistura, liga ou preço
médio, progressões dos preços, tábuas de juros compostos, anuidades,
amortizações, tábua de mortalidade, seguros de vida, regra de falsa posição
(simples e composta), câmbios, sistema de pesos e medidas, moedas, logaritmos
etc.
Outras duas reformas na área aconteceram em 1923 e 1926; entretanto,
foi na reforma de 1931, a conhecida Reforma Campos, que se regulamentou a
profissão de contador e se estabeleceram os cursos técnicos.
Essa legislação de 1931 instituiu também a estrutura dos cursos do ensino
comercial, dividindo-os em nível técnico (Secretário, Guarda-livros, Administrador-
vendedor, Atuário, Perito-contador) e superior (Administração e Finanças). Por
meio da Reforma Capanema, instituída em 1943, o ensino comercial passou a ter
os cursos comerciais básicos (1º ciclo), que davam acesso aos cursos comerciais
técnicos (2º ciclo) (Comércio e Propaganda, Administração, Contabilidade,

155
Estatística e Secretariado). Contudo, somente em 1945 é que foram criados os
cursos superiores de Ciências Contábeis. Assim, a partir de 1945, dois cursos
passaram a coexistir: o Técnico em Contabilidade (de grau médio) e o Superior em
Ciências Contábeis (graduação).
Esses cursos comerciais no Brasil utilizaram-se de uma gama de diferentes
obras de Matemática Comercial e Matemática Financeira nas disciplinas de
Matemática, que de alguma forma ou outra, tratavam das diversas práticas do
comércio. Nesse sentido, questiona-se: como as práticas relacionadas as diversas
artes de comerciar foram tratadas nos livros de Matemática Comercial e Financeira
que circularam no Brasil no século XX? E como foram escolarizadas?
Assim, o trabalho aqui delineado tem como objetivo geral analisar as
diversas práticas do comércio presente nos livros de Matemática Comercial e
Financeira que circularam no Brasil no século XX, bem como, analisar os processos
de escolarização.

REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO

De uma forma geral, temos um banco de dados composto por Almanaques


relativos ao comércio, anuários, fotos sobre escolas de comércio, jornais,
legislações do ensino comercial, livros de matemática comercial e financeira, livros
de contabilidade, diversos materiais da Campanha de Aperfeiçoamento e Expansão
do Ensino Comercial (CAEEC), Revistas de Contabilidade, Revistas do Grêmio da
Escola de Comércio Álvares Penteado, além de teses, dissertações e artigos sobre
o ensino comercial.
Entretanto, em função da quantidade de documentos, elegemos como fonte
aqueles que davam respostas às nossas inquietações. Mas os documentos não se
tornaram fontes pela simples escolha. Escolhemos como fontes as legislações, os
projetos de cursos (normas e finalidades), os livros didáticos (conteúdos ensinados
e as práticas escolares).

156
Assim, sobre estas fontes procuramos entender as práticas sociais dos
mercadores, dos comerciantes etc. Assim, nosso horizonte teórico sobre as
práticas sociais, foi apoiado definição de Souza (2004), que as entende como:

[...] um conjunto de atividades ou ações físico-afetivo-intelectuais que


se caracterizam por serem: 1. conscientemente orientadas por certas
finalidades; 2. espaço-temporalmente configuradas; 3. realizadas
sobre o mundo natural e/ou cultural por grupos sociais no interior dos
quais as relações interpessoais se caracterizam por serem ou
relações público-institucionais de trabalho organizado, ou outros tipos
de relações humanas não institucionalizadas; 4. produtoras de
conhecimentos, saberes, tecnologias, discursos, artefatos culturais
ou, uma palavra, de um conjunto de formas simbólicas (SOUZA,
2004).

PRÁTICAS SOCIAIS DO COMÉRCIO MAIS ANTIGAS SISTEMATIZADAS NOS


LIVROS DE MATEMÁTICA COMERCIAL E FINANCEIRA

Para entendermos a presença de algumas práticas comerciais nos livros


de Aritmética Comercial, Matemática Comercial e Matemática Comercial e
Financeira publicadas no Brasil no século XX, precisamos recorrer a alguns textos
mais antigos. De acordo com Le Goff (1982), três zonas da Europa foram
responsáveis por uma verdadeira revolução comercial na Idade Média: a região do
Norte (forte domínio eslavo-escandinavo), a do Mediterrâneo (forte domínio
muçulmano) e a terceira, a Europa de Noroeste, que desempenhava uma função
produtora industrial. Os negócios, no entanto, não se limitavam a essas regiões,
uma vez que os mercadores do Mediterrâneo negociavam também com o Oriente
e África.
A figura do mercador dessas regiões passa por diversas fases. De
itinerante, caracterizado principalmente pelos negócios em grandes feiras, passa
pela figura do “mercador sedentário”, que buscava capitais fora dos seus recursos
próprios para financiar as viagens marítimas, até chegar finalmente no mercador-
banqueiro, personagem que participava tanto do comércio das mercadorias quanto
da atividade financeira (LE GOFF, 1982).
As letras de câmbio, os contratos e associações, os seguros e mesmo a
contabilidade foram alguns dos métodos e técnicas desenvolvidos por tais

157
mercadores. Ricardo (2007) complementa e ressalta que com a expansão
mercantil:
[...] houve um grande avanço nas questões creditícias em relação às
transações bancárias. Estabeleceram-se formalmente os juros, os
sistemas monetários, as bolsas, as especulações, os seguros, as
sociedades por ações, que levaram à centralização e modernização
das cobranças fiscais, com a popularização das letras de câmbio [...]
(RICARDO, 2007, p.66).

Foi necessário também o desenvolvimento dos métodos caligráficos, para


atender uma forte correspondência internacional e, principalmente, o registro nos
livros contábeis, que necessitavam de precisão e clareza (HÉBRARD, 1990). Para
o comércio internacional, o mercador tinha que ter conhecimento dos diversos
formatos de pesos, medidas e moedas criados em regiões com sistemas políticos
e econômicos extremamente fragmentados. O conhecimento das moedas de várias
praças comerciais era imprescindível, pois, além de representarem um valor e um
símbolo monetário, eram também mercadorias, ou seja, eram cunhadas, ou a ouro,
ou a prata ou ainda, como uma liga desses dois metais.
Permeando todos estes elementos, a aritmética entra como um método de
resolução de problemas de cálculo dos juros, dos câmbios e do valor dos seguros,
de contabilidade (balanço de contas, entrada e saída), além de problemas de
proporção de ouro e prata na liga das moedas e das divisões das partes nos
contratos, que seriam as regras de companhia. O manuscrito “Liber Abaci” ou livro
do cálculo, escrito por Leonardo de Pisa ou Fibonacci en 1202, constitui um
exemplo mais antigo que sistematiza estas práticas.
Segundo Sigler (2002), o texto foi baseado na aritmética e álgebra que
Fibonacci teria aprendido durante suas viagens pelo Mediterrâneo, e contribuiu
para a difusão dos numerais indo-árabes entre os mercadores italianos, servindo
como fonte para a aprendizagem dos negócios do comércio. O manuscrito está
dividido em quinze capítulos: “leitura e escrita dos números no sistema indo-árabe,
multiplicação de números inteiros, adição de números inteiros, extração do menor
número pelo maior (subtração), divisão de números inteiros, multiplicação de
números inteiros por fracções, adição, subtração e divisão de frações, aquisição e

158
venda de mercadorias e similares, determinadas regras para compras e vendas,
regra das companhias, liga de moedas, solução de problemas diversos, regra da
falsa posição, raízes quadradas e raízes cúbicas, regra da proporção geométrica e
questões de álgebra e amulcabala” (SIGLER, 2002).
Desses capítulos, quatro tratam diretamente sobre a aritmética comercial.
Os problemas nessa área cobrem temas como regras de companhia, conversões
de moedas e medidas (dos capítulos 8 ao 11), com resoluções baseadas em
diversos métodos e algoritmos, entre eles o método da falsa posição e a resolução
de equações quadráticas (capítulos 13 e 14) (SIGLER, 2002).
Nesse sentido, ao analisarmos os livros de Matemática Comercial,
Matemática Financeira e Matemática Comercial e Financeira publicadas no Brasil
no século XX, notamos a presença de tópicos práticas comerciais sistematizadas
que remetem a estes tempos do Liber Abaci, tais como cálculos de juros simples e
compostos, descontos simples e compostos, câmbios, moedas, ligas de moedas,
divisão proporcional em contratos (regras de companhia ou de sociedades),
sistemas de amortização de empréstimos, etc. (c.f. MARTINS, 1927; D'AMBRÓSIO
e D'AMBRÓSIO, 1984; SOUZA, THIRÉ, LEMGRUBER, 1932).
Outros assuntos tais como os cálculos de probabilidades, binômios de
Newton, bem como, os cálculos de seguros de vida, seguros de morte e os cálculos
auxiliares (tábuas de mortalidade, vida média etc.), estão relacionadas a períodos
mais recentes, já que estes assuntos são remetidos ao surgimento das empresas
de seguros no século XVII.
De um modo geral, percebe-se que estas práticas sociais ou estes
resquícios do passado estão no presente. Obviamente, podem não ser exatamente
as mesmas práticas sociais, já que elas estão relacionadas outros tempos e outros
lugares. No entanto, é importante frisar que uma prática do passado pode ser
transformada/modificada para servir a uma prática mais atual.

DAS DIVERSAS PRÁTICAS SOCIAIS DO COMÉRCIO PRESENTES NOS


LIVROS DE MATEMÁTICA COMERCIAL E FINANCEIRA

159
Le Goff (1982) no seu texto “Mercadores e Banqueiros da Idade Média",
relaciona a atividade exercida pelo comerciante com a sua prática. Nesse sentido,
podemos observar que os livros de Matemática Comercial, Matemática Financeira
e Matemática Comercial e Financeira publicadas no Brasil no século XX
apresentam atividades relacionadas aos banqueiros, aos cambistas, entre outros.
Por exemplo, o livro Mathematica Financeira de Coriolano Martins publicado em
1927 apresenta os conteúdos de Misturas e Ligas (ligas metálicas), um tópico muito
útil relacionado às atividades dos joalheiros, aos penhoristas e de uma forma geral,
ao cunho de moedas. Outros assuntos, tais como o de câmbios estão relacionados
aos cambistas, aos exportadores etc. Ao passo que os assuntos de seguros, vida
média etc. estão relacionadas aos seguradores etc.
Nesse sentido, cumpre observar que determinadas épocas impõem a
sistematização de outras práticas. Esse o caso do mercado de café, que impuseram
a sistematização dos cálculos e assuntos correlatos nos livros de Matemática
Comercial e Matemática Financeira entre as décadas de 1910 e 1930. Com o alto
excedente de produção de café comprados pelas casas comerciais de Rio de
Janeiro e São Paulo, financiadas pelos bancos, começou-se a controlar o preço.
Com objetivo de se defender deste modelo de mercado, os produtores começaram
a pleitear medidas para a sustentação e estabilização dos cursos do café. O
sistema de caixa de conversão criado em 1906 é um exemplo de tais medidas. A
caixa de conversão foi um sistema de crédito que visava manter o equilíbrio do
poder de troca da moeda brasileira frente ao comércio com outras nações, como
parte de política de valorização do café.
As caixas de conversão e o mercado de café apareceram nos livros de
Matemática Comercial e Financeira nas Aritméticas Comerciais e Financeiras nas
décadas de 1920 e 1930. A “Aritmética Comercial e Financeira” 89 publicada em
1917 do contador Carlos de Carvalho e o “Compêndio de Aritmética Comercial” do
professor de matemática Carlos Francisco de Paula, da escola de Comércio Bento
Quirino de Campinas.

89 Esta aritmética comercial teve ampla aceitação nas escolas de comércio, a julgar pelo número
de edições, sendo a última a décima oitava, publicada em 1956.

160
O que se discutiu nos textos foi a conversão dos preços do café entre os
mercados de Havre; Hamburgo; Londres e Nova Iorque. Este assunto estava em
perfeita sintonia com a sociedade da época, cuja economia e política giravam em
torno do mercado de café. Se por um lado, estas forças político-econômicas
influenciaram os autores a ponto de colocarem o assunto nos seus livros, por outro
lado, eles podem ter pensado somente na preparação dos alunos das escolas de
comércio e comerciantes, que trabalhariam com estes assuntos nas suas
atividades diárias.
Da mesma forma, outro assunto relacionado ao mercado de café era o
tópico de caixas econômicas, de conversão e de amortização. Estes assuntos
apareceram em um livro intitulado “Matemática Financeira” livro de Matemática
Financeira publicado em 1927 pelo contador e engenheiro Coriolano M. Martins.
Embora constituído em um único capítulo, estes três tópicos remetem a situações
diferentes. Por exemplo, a caixa de amortização foi criada em 1827 e tinham como
objetivos a emissão, a amortização, o resgate e a substituição de apólices da dívida
pública, bem como o pagamento de juros. Já a caixa de conversão foi criada em
1906 a partir do Convênio de Taubaté, estabelecido entre os governadores de São
Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro para proteger o mercado de café (FURTADO,
1991).
Outro assunto presente nos livros de Matemática Financeira que
abordaremos é o de inflação. Trigo (2020) em seu estudo mostra que este assunto
entrou nos livros didáticos por volta dos anos de 1960, no livro Matemática
Comercial e Financeira, de Nicolau D’Ambrósio e Ubiratan D’Ambrósio (12ª edição),
publicado em 1963. Segundo Trigo (2020) estes autores introduziram o assunto da
questão inflacionária a partir de definições sobre a emissão de papel moeda:

Operação econômica muito delicada e que deve se processar com o


máximo cuidado, em medidas justas. (...) A emissão sem lastro
poderá ocasionar a inconversibilidade e a moeda passará a ter curso
forçado. E, econômicamente, tal fato é comêço de calamidade.
Portanto, a emissão e a evasão de lastro devem ser evitados ao
máximo, como princípio de segurança econômica (D’AMBRÓSIO,
D’AMBRÓSIO, 1963, p.133).

161
Contudo, somente anos depois, no fim da década de 1980 é que este
assunto passou a ser mais sistematizado nos livros de Matemática Comercial e
Financeira, adquirindo o formato que conhecemos atualmente. Segundo Trigo
(2020), isso aparece principalmente no livro "Matemática Financeira" de José Dutra
Vieira Sobrinho:

[...] Na edição de 1991, na página 158, o autor trabalha a taxa real a


partir do tratamento da taxa efetiva e taxa de inflação dessa forma:
taxa de inflação = (1+taxa efetiva)/(1 + taxa de inflação). Já no
capítulo nove, ao tratar sobre operações realizadas no sistema
financeiro brasileiro, o autor define inflação a partir das ORTNs. Por
fim, são apresentados diversos exercícios sobre inflação (TRIGO,
2020).

A inserção desse assunto nos livros de Matemática Comercial e Financeira


não se deu uma forma linear, antes de tudo, foi marcado pela relativização pelos
autores do tópico de inflação, já que no período entre as décadas de 1960 e metade
da década de 1990 foi marcado por altíssimas taxas de inflação. Nesse sentido,
nos questionamos se a demora na sistematização deste assunto nos livros de
Matemática Comercial não está relacionada a interesses de grupos dominantes,
pois é um tópico que mexe e muito com o ativo das empresas e bancos ao longo
dos tempos.
De uma maneira geral, esses exemplos mostram a sistematização de
práticas e a inserção delas nos livros didáticos podem estar relacionadas ao
período, além de interesses de grupos dominantes. Ademais, devemos levar em
consideração o tempo para sistematização de uma prática. No caso da inflação, o
processo de inserção nos livros didáticos demorou quase três décadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como atividade humana, o comércio criou e desenvolveu modos de ser e


estar no mundo, das mais simples atividades comerciais às mais complexas. Por
exemplo, o escambo, processo rudimentar de troca de uma mercadoria por outra,
constitui um exemplo de atividade comercial empregada e desenvolvida pelo
homem. Hoje, a maioria das transações é realizada eletronicamente, ou seja,
determinado valor é debitado de uma conta e creditado em outra.

162
Esse processo de crédito e débito, um princípio básico da contabilidade,
utiliza uma operação matemática simples, composto por adição e subtração. A
Idade Média foi marcada pelo registro desses processos nos livros de matemática.
Além do princípio contabilístico, esse período nos legou um conjunto de técnicas,
métodos e sistemas desenvolvidos pelos mercadores nas suas atividades, tais
como as letras de câmbios, os sistemas monetários e de seguros, as bolsas de
valores, as sociedades por ações, os bancos e os sistemas de juros etc.
De uma forma ou de outra, a matemática permeou as atividades dos
mercadores. Por exemplo, a partir dos sistemas monetários foram desenvolvidos
os cálculos de câmbios e as ligas metálicas (cálculo proporcional entre as partes
de ouro e prata). Da mesma forma, com base nas letras de câmbios, foram
desenvolvidos os cálculos de juros e descontos. Por fim, dos contratos e da divisão
entre as partes, foram aplicados o princípio da divisão proporcional, surgindo
consequentemente as regras de sociedades e de companhias.
O desenvolvimento de todos estes cálculos foi acompanhado pelo uso e
aplicação de conteúdos matemáticos que funcionaram como pré-requisitos, tais
como razões, proporções, regras de três (simples e composta), porcentagens etc.
Mesmo sem serem escolarizadas, tais organizações dos conteúdos expõem uma
perspectiva típica das disciplinas escolares.
De maneira geral, esta matemática, composta por múltiplos elementos e
controversa, mas resultante da cultura mercantil, só foi escolarizada em fins do
século XVIII. Na Aula de Comércio em Portugal, criada pelo Marquês de Pombal
para formar os mercadores, os guarda-livros e os caixeiros. Posteriormente, este
modelo da Aula de Comércio foi transferido por D. João VI, para o Brasil em 1809.
Da mesma forma que em Portugal, em terras brasileiras formavam-se os
comerciantes, os guarda-livros, além dos funcionários públicos para atender a corte
portuguesa.
No princípio, essas práticas sociais da matemática tinham como finalidade
a formação do mercador, mas ao passar para a escola adquiriu outras finalidades,
qual seja, tornou-se parte da estrutura de formação dos profissionais do comércio:
guarda-livros e caixeiros. Neste momento, não era só mais um saber derivado da

163
cultura mercantil, mas passou a fazer parte da cultura escolar e principalmente,
elemento da cultura profissional.

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165
166
A CONSTRUÇÃO CIENTÍFICA DOS PROGRAMAS DE MATEMÁTICA
SEGUNDO JOSÉ RIBEIRO ESCOBAR

Ana Maria Antunes de Campos90


RESUMO
O presente artigo objetiva apresentar as concepções de José Ribeiro Escobar acerca dos
programas de ensino de matemática nas primeiras décadas do século XX. O estudo integra
uma pesquisa mais ampla e finalizada no curso de mestrado. Para atingir esse objetivo,
será analisado seu livro intitulado A Construção Científica dos Programas. São Paulo
passava por transformações urbanas significativas e tinha por objetivo iluminar e civilizar
os espaços públicos com vista à modernidade. Essas transformações incidiram sobre a
escola e seus programas. José Ribeiro Escobar era um intelectual e expert que exerceu o
cargo professor lente de matemática da Escola Normal da Capital e colaborava com a
Revista Educação, Revista da Sociedade de Educação e Jornal O Estado de São Paulo. A
análise revela que Escobar acreditava que o aluno aprendia por meio da emoção e
pensamento e dessa forma era necessário organizar os programas para que esses eventos
fossem associados, sendo fundamental o uso de materiais concretos para ensino dos
conteúdos escolares, visto que esses instrumentos fariam com que a criança aprendesse
com interesse e com significado. Foi possivel constatar que as oscilações referentes aos
programas escolares e aos métodos de ensino não estavam atreladas a uma questão
progressista, elas eram consequências dos movimentos políticos, econômicos e sociais
vigentes.

Palavras-chave: Currículo, Escola Nova, Programas de Ensino. José Ribeiro


Escobar. Educação Pública.

INTRODUÇÃO

Esse trabalho faz parte de uma pesquisa mais ampla sobre a trajetória
intelectual e profissional de José Ribeiro Escobar, um professor paulista que atuou
efetivamente nas primeiras décadas do século XX na educação brasileira,
sobretudo na educação matemática. Foi realizado um recorte dessa pesquisa de
mestrado, com a finalidade de apresentar os pontos de vistas de Escobar, acerca

90
Doutoranda em Educação Matemática pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP E-
mail: camp.ana@hotmail.com

167
dos programas de ensino. A análise foi realizada por meio de seu livro intitulado A
Construção Científica dos Programas.
José Ribeiro Escobar, que teve uma grande contribuição e participação na
educação brasileira, principalmente na área de matemática, e colaborou
significativamente com publicações Revista Sociedade de Educação e Revista de
Ensino da Associação Beneficente do Professorado Paulista. Ele é mencionado em
vários textos de História da Educação nas primeiras décadas do século XX, o que
destaca sua importância para educação brasileira, participando na organização da
educação paulista, nos anos de 1914 a 1926, bem como na Reforma do Ensino do
Estado de Pernambuco. (CAMPOS, 2019).
Escobar era um professor intelectual e expert uma vez que teve uma vida
ativa na área educacional, participando de inquéritos, debates, discussões políticas,
organizando cursos de formação ao professorado, engajado na produção de
saberes na formação de professores e no ensino. Escobar exerceu cargos de
destaque na instrução pública, atuando em cargos de respeito e confiança.
Segundo Almeida e Valente (2019) a constituição de um expert depende
do quanto esse profissional se destaca em sua profissão; de seus saberes, sejam
eles científicos ou experiências práticas e vivencias, que possibilitem e ampare o
exercício de sua função; da ocupação de cargos, cadeiras e postos, que
possibilitam que esses saberes sejam estruturados para o funcionamento escolar.
Morais (2017, p. 66) destaca que “o reconhecimento do expert é dado sempre pela
comunidade a que ele pertence e sempre em relação à sua expertise profissional.”
Do mesmo modo é possivel afirmar que José Ribeiro Escobar foi um
intelectual, que conectado nas relações sociais, no qual sua rede de sociabilidade
sofreu "a mediação de trunfos escolares e culturais, cujo peso é tanto maior quanto
mais se acentua a concorrência no interior do campo intelectual”. (MICELI, 2001,
p. 79). Os intelectuais são vistos como organizadores e educadores de uma
sociedade atrasada e será por meio das mãos desses senhores que a nação se
modernizará, o sucesso dessa empreitada, não depende de um intelectual e seus
esforços individuais, mas da coletividade, da sua rede de sociabilidade e de seus
projetos em conjunto.

168
Os intelectuais e expert usavam a imprensa para discutir não só a
educação, mas o meio em que viviam, assim os periódicos se constituíam como
verdadeiras fontes de investigações e permitiam a análise e compreensão da
situação da instrução pública; discussões pedagógicas; temáticas variadas;
divulgando os pensamentos desses inspetores, professores e diretores
pertencentes às escolas; bem como as inovações pedagógicas que veiculavam
nesta época.
Com objetivo de divulgar seus pontos de vista acerca dos programas de
ensino, Escobar publicou nove artigos e um livro entre os anos de 1923 a 1934. Isto
posto, o objetivo desse artigo é apresentar as considerações de José Ribeiro
Escobar acerca dos programas de ensino a partir do seu livro intitulado A
Construção Científica dos Programas.

OS PROGRAMAS DE MATEMÁTICA NO INÍCIO DO SÉCULO XX

Segundo Nagle (1974) São Paulo passava por transformações urbanas


significativas, que tinha por objetivo iluminar e civilizar os espaços públicos com
vista à modernidade; refletindo a dimensão urbano-industrial; retirando a aparência
de província e os resquícios do Império; tornando-se sinônimo de progresso e
cosmopolitismo.
Isto posto, era necessária uma remodelação dos programas de ensino com
vistas a modernidade pedagógica, ou seja, educar para o progresso era o debate
político educacional desse período, divulgado nos impressos e defendido pelos
intelectuais do período que tinham por objetivo proporcionar escola para todos,
conferindo à educação o papel principal na solidificação da ordem social.
(MONARCHA, 1999).
Os programas são transformados fundamentalmente nos processos de
ensinar e aprender. Nos cursos para professores aparecem nos programas os
estudos psicológicos, assim como a psicometria, psicologia das vocações,
psicopedagogia e a didática. As lições de coisas passam a ser uma disciplina e não
mais um método. Segundo Nagle:

169
Num apanhado geral, o movimento da Escola Nova, como se sabe,
significou um processo de remodelação das instituições escolares,
como consequência da revisão crítica da problemática educacional.
Em confronto com a “escola tradicional”, em relação à qual se
colocou em termos antitéticos, a Escola Nova se fundamenta em
nova concepção sobre a infância. (Nagle, 1974, p. 248).

Não existia nas primeiras décadas do século XX os cursos de licenciaturas,


contudo o ensino da matemática era ministrado por um professor primário, que era
designado a lecionar essa disciplina, este professor tinha uma forte formação geral
e especializadas na arte de ensinar, ou seja, era expert na metodologia do ensino.
O saber estava “nas mãos de um único professor” (VALENTE, 2014, p. 192). Logo,
com o advento da república esse programa foi modificado, pois surge o processo
de desenvolvimento industrial, na qual a sociedade brasileira passa a se preocupar
com a formação do homem capaz de atuar ativamente na sociedade, sobretudo
nas atividades fabris.
Consequentemente, o ensino da matemática sofre alterações significativas
e o raciocínio lógico deveria ser estimulado para preparar o cidadão para a vida em
sociedade, onde o professor deixa de ser o único elemento possuidor de saber e
passa a ser um instrumento de mudança e, assim, as habilidades matemáticas são
“os saberes elementares matemáticos que integram o desenho, aritmética, cálculo,
geometria, formas, trabalhos manuais, entre outros” (Valente, 2014, p. 191).
A escola busca criar medidas para orientar, motivar e estimular os
estudantes a buscarem atividades nas indústrias, visando a mão de obra,
erradicando com a ociosidade e para diminuindo a distância que os separava dos
países desenvolvidos. As transformações no âmbito escolar giraram em torno de
novos métodos de ensino que implicam sobre os programas escolares e sobre as
disciplinas. Deste modo, o ensino da matemática sofre alterações:

Enriquecido com o ensino do sistema métrico decimal


(noções de medida), da geometria prática (taquimetria)
indicando com o estudo dos sólidos e a aplicação à medida
de superfícies e volume e das noções de contabilidade,
compreendendo a divisibilidade dos números, frações,

170
cálculos decimais, redação de cartas comerciais,
memorandos e faturas. Possuíam todas essas noções
matemáticas uma finalidade instrumental e prática, tendo em
vista o uso na vida, especialmente urbana, no comércio e no
trabalho. (SOUZA, 1998, p. 177).

O raciocínio lógico deveria ser estimulado para preparar o cidadão para a


vida em sociedade, onde o professor deixa de ser o único elemento possuidor de
saber e passa a ser um instrumento. Para Escobar essas modificações permitiriam
que o professor tivesse liberdade de organizar o seu programa; liberdade tardia,
mas fundamental, pois cada um poderia adaptá-lo “as mil circunstâncias variáveis
da ocasião”, ou seja, o professor poderia pensar com originalidade e o aluno teria
de modificar seu modo de aprender, pois estavam viciados em uma metodologia
teórica, que não permitia a experimentação e vivências, pois a prática amorfa “por
miríades de lições, lhes foi impresso indelevelmente no subconsciente; e só o
hábito mata o hábito”. (ESCOBAR, 1923, p. 88).

OS PROGRAMAS SEGUNDO ESCOBAR

José Ribeiro Escobar desde a sua formação em 1903 na Escola Normal da


Capital, vivenciou a remodelação dos programas de ensino nos anos de: 1905 –
Decreto N. 1281, de 24 de abril de 1905 - Programa de ensino para os Grupos
Escolares e Escolas-Modelo de São Paulo; 1918 - Decreto N. 2944, de 8 de agosto
de 1918 –Programa de ensino para os Grupos Escolares do Estado de São Paulo;
1921 - Decreto N. 3.356, de 31 de maio de 1921 - Programa das Escolas Primárias
de São Paulo; 1925 – Decreto nº 3.858, de 11 de junho de 1925 - Programa de
Ensino do Curso Primário para os Grupos Escolares e Escolas Isoladas ; 1934 -
Decreto 5884 de 21 de abril de 1933 – Institui o Código de Educação de São Paulo
Programa Mínimos do Curso Primário para os Grupos Escolares.
Ele conhecia de perto os programas de ensino instituídos e, frequentemente,
criticava-os relatando que eles não satisfaziam as necessidades pedagógicas dos
alunos; faltava uma organização competente; havia um extenso currículo e uma má
distribuição entre as matérias, o que tornava as aulas excessivamente teóricas; e,

171
eram necessários programas que estimulassem os alunos a pensarem.
(ESCOBAR, 1934).
Escobar atuou nas primeiras décadas do século XX como professor de
matemática, de álgebra e aritmética, logo se familiarizou com a disciplina e, por
esse motivo, escreveu sobre a educação matemática, propondo novas
metodologias para o ensino dessa ciência.
Escobar buscava novos métodos de ensino para diversas disciplinas, mas
sobretudo um método com destinação específica ao ensino da Matemática. Para
ele as aulas deveriam ser repletas de raciocínio e observação, e os programas de
ensino não deveriam apresentar conteúdos separados, mas apresentar atividades
em que os alunos pudessem usar suas percepções.
José Ribeiro Escobar escreve um livro em 1934, denominado “A Construção
Científica dos Programas”, neste momento ele era Chefe do Serviço de Programas
e Livros Escolares, da Diretoria Geral do Ensino do Estado de São Paulo. Ele
abordou tópicos sobre: novos tempos, novos problemas; a psicologia (genética,
individual, estruturalista, social); aspecto social; tópicos de Dewey; trabalhos
práticos e não especializados e dificuldades dos programas de Aritmética. Neste
livro ele traz referências a intelectuais renomados de outros países para
fundamentar sua ideia de que é necessário se modificar a metodologia educacional
brasileira, com vistas a conquistar uma educação moderna, estimulando o aluno
por meio da psicologia e dos aspectos sociais.
Este texto de 1934 é um manual de como construir um programa eficiente
para o desenvolvimento do espírito; ao arquitetar um programa é necessários três
fatores: “a criança - com suas necessidades, e instintos, variáveis com os indivíduos
e idades; a sociedade - com seus reclamos, sempre em transformação; as
aquisições intelectuais da humanidade” (Escobar, 1934, p. 9).
Com relação a matemática ele descreve que os desenhos são fundamentais
para a didática da leitura e dos números, afirmando que Pestalozzi foi o primeiro a
usar desenhos para exemplificar os números, fazendo um comparativo entre Born,
Lay, Beetz e Pestalozzi para afirmar suas concepções. Escobar assegura que para
compreensão do número por meio de objetos esses senhores fizeram diversas

172
pesquisas e experiências para apresentar resultados satisfatórios com relação a
como esse sistema estimula e motiva a criança para o aprendizado (ESCOBAR,
1934).
Para a linguagem ele diz ser necessário trabalhar as narrativas, os contos
de fadas, a dramatização, os jogos e que, para isso, é preciso dar liberdade a
expressão e a socialização. Escobar afirma que a criança é “um ser ativo, com sua
capacidade psicológica, é o centro de toda atividade escolar”, assim é fundamental
que seja levado em conta suas estruturas orgânicas, intelectuais, instintos, desejos,
curiosidade e interesse.
Ele compara a classificação da evolução intelectual de Claparède com a de
Ferriére e descreve que a pesquisa de Bickingham e Mactatchy, sobre o
conhecimento numérico das crianças e aponta que as elas já possuem esses
conceitos antes mesmo de entrarem na escola primária e divulga o resultado destaa
pesquisa. Essa investigação conclui que existe um ponto certo para que as crianças
aprendam determinados conteúdos e que este ponto só será possível de ser
compreendido por meio da psicologia.
José Ribeiro Escobar apresenta que os programas devem ser direcionados
por um sistema de projetos, em que o plano não está subordinado à passos formais,
mas a “criação viva e espontânea do aluno, cuja atividade livre se coordena pelos
seus interesses naturais”. (Escobar, 1934, p. 86). Segundo ele, quando o professor
usa essa metodologia está ajudando no desenvolvimento educativo do aluno para
a vida social, assim ele reformula o “esquema de projeto” para as escolas paulistas.
Segundo Escobar “a construção de um programa escolar requer estudos
objetivos principalmente da psicologia genética e da análise social, que precisam
ser estreados no Brasil, onde os próprios conhecimentos de segunda mão estão
longe de ser divulgado” (Escobar, 1933, p. 39).
Ele sempre se queixava que as publicações de livros e artigos fora do Brasil
eram imensas e que o Brasil engatinhava neste aspecto, pois não oferecia
bibliotecas ao professorado, talvez por este motivo escreva sobre esta pesquisa em
seu artigo, como que para inaugurar o tema sobre análise social.

173
José Ribeiro Escobar reclama da falta das aulas de psicologia, pedagogia e
didática, que são praticamente inexistentes, sendo o professor de Psicologia
obrigado a lecionar sobre a psicologia do adulto, que os professores de didática
nem sempre são especialistas na matéria.
José Ribeiro Escobar relata sobre a importância de criar as salas, ambientes
e os museus escolares como instrumento da didática, e justifica dizendo que “a sala
ambiente é o convite ao trabalho pessoal do aluno, ao ensino experimental, ao
aprendizado ativo, e para ele, é o encaminhamento para o tempo integral, a que é
naturalmente conduzido pela execução do trabalho feliz” (Escobar, 1933, p. 150).
Ele tinha aspirações em modificar o cenário educacional e, para isso,
divulgava suas concepções metodológicas relacionadas ao ensino ativo, salas
ambientes, utilização de instrumentos lúdicos (jogos e brinquedos), excursões
pedagógicas, museu escolares, puericultura, ensino da matemática, organização
da educação sexual e higiênica, dentre outras práticas educacionais.
Escobar sugere a criação de um novo curso, nos quais os alunos após se
formarem na Escola Normal deveriam ingressar nas Escolas de Psico-Pedagogia
e, após um ano, deveriam se matricular na Escola de Didática.
Para Escobar essa ideia deveria ser implementada em todo Brasil, sendo
composta de uma farta biblioteca, uma organização ideal, realizável, econômica e,
em vez de uma cultura livre, teriam professores técnicos perfeitos “uma plêiade de
experimentadores e inovadores seguros, da tempera de Decroly, Fontegne,
Cousinet, Dewey e Kerschensteiner.” (Escobar, 1933, p. 141).
A partir da análise dos artigos de José Ribeiro Escobar fica evidente seu
interesse pela metodologia e pela psicologia. Para Escobar era indispensável que
a psicologia, pedagogia e ciência andassem de mãos dadas. Seria por meio dessa
tríade (psicologia, pedagogia e ciência) que os professores entenderiam como a
criança aprende e que metodologias usar para estimular os alunos.
José Ribeiro Escobar vivia na década de 1920 em um ambiente muito
marcado pela psicologia, a Escola Normal da Capital onde estudou e lecionou
possuía um Gabinete de Antropologia Pedagógica e Psicologia Experimental, os
olhos da maioria dos educadores que pensavam a educação estavam voltados para

174
psicologia, com o intuito de compreender a “genética dos fenômenos, explicando o
superior pelo inferior: a criança, pelo animal e pelo selvagem, e o adulto, pela
criança” (MONARCHA, 1999, p. 299).
Escobar defende a educação da personalidade pela autonomia intelectual
do aluno e pelo trabalho pessoal. Relata que a educação pela atividade individual
é um horizonte na formação psicológica da criança e que a escola do trabalho,
vinda de Kerschensteiner fundamentava essa concepção. José Ribeiro Escobar
cita intelectuais de períodos diferentes para afirmar suas convicções sobre a escola
do trabalho, naquele período era comum essa prática, uma vez que não existia uma
tradição acadêmica.
Contudo, José Ribeiro Escobar não era propagador apenas dos ideais de
Kerschensteiner, ele o cita do mesmo modo que menciona Decroly, Kilpatrick,
Pestalozzi e outros autores, logo não se pode afirmar que ele era Pestalozziano,
Decroliano ou Kerschensteineriano por ter destacado esses senhores em alguns
de seus artigos, caso contrário seria possível afirmar que ele era seguidor de
Franklin Bobbitt pois dedicou um artigo inteiro a tradução de sua obra intitulada Os
maiores objetivos da educação. (CAMPOS, 2019).
Escobar buscou nesses e em outros autores referência para compreender
como a criança aprende e de que maneira ele como professor poderia auxiliá-lo em
seu desenvolvimento intelectual. Quando descobriu de que maneira poderia ajudar
começou a propagar seus ideais. Ele acreditava que a escola se constitui como um
meio de colocar a criança em ação, e essa ação seria possível por meio do
aprendizado ativo, que ocorria dentro da escola e fora da escola por intermédio da
observação, experimentação, vivência e ação.

TECENDO ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Escobar não falava sozinho sobre as transformações necessárias nos


programas de ensino, novas metodologias, métodos e intervenção para o ensino
da matemática, algumas dessas concepções eram compartilhadas entre os

175
intelectuais da época, dentre eles, Savério Cristófaro que também havia divulgado
artigos sobre o ensino da matemática (Miorim & Brito, 2012).
Os programas de ensino não estavam desconectados dos problemas
políticos, sociais e econômicos por qual a sociedade brasileira passava, eles não
eram imparciais, mas refletiam os movimentos e necessidades da sociedade dentro
das escolas, bem como estavam relacionados com a própria estrutura escolar, e
de acordo com a organização escolar foi se definindo o método a ser empregado.
Por conseguinte, se conjectura que as oscilações referentes aos programas
escolares e aos métodos de ensino não estavam atreladas a uma questão
progressista, elas eram consequências dos movimentos políticos, econômicos e
sociais vigentes.
José Ribeiro Escobar esperava que seus artigos modificassem o ensino
brasileiro e que por meio da propagação dessas novas práticas o professor
enxergasse o aluno como um espírito ávido por aprender, entretanto era necessário
que o aluno aprendesse por si mesmo pois, para Escobar, a criança deveria
conquistar o aprendizado, a evolução, suas impressões e conquistar acima de tudo
a vida.
A suposição é que ele foi um dos pioneiros a propagar as salas ambiente,
os museus e excursões escolares, bem como o uso de materiais concretos para
ensino dos conteúdos escolares. Escobar acreditava que por meio desses
instrumentos a criança teria interesse em aprender e dessa forma aprenderia com
significado.
Acredita-se que seus esforços por divulgar a importância das salas ambiente
e seus escritos sobre o tema tenham colaborado, anos mais tarde, para a
estruturação e construção das chamadas brinquedotecas escolares. Sugestão de
um estudo futuro.

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177
primário o que, como e por que ensinar? Estudos histórico-comparativos a partir
da documentação oficial escolar. 1 Ed. São Paulo: Editora Livraria da Física,
2014.

178
A TRANSMISSÃO DA GEOMETRIA DE LEGENDRE:

o caso da Colômbia e da Venezuela

Carlos Antonio Assis de Oliveira91


Gert Schubring92

RESUMO
O livro de Geometria de Legendre é considerado um best-seller durante todo o século XIX,
sendo utilizado em muitos países e traduzido para diversas línguas. Neste trabalho,
lançamos mão do conceito de transmissão para analisar, comparativamente, por meio da
análise histórica de livros de Matemática (Schubring, 2003), como o livro foi transmitido e
apropriado na Colômbia e na Venezuela. Analisamos três traduções do livro, uma
espanhola, uma colombiana e uma venezuelana, nas quais encontramos indícios de sua
grande importância histórica na América Hispânica. Todas as traduções apresentam uma
característica peculiar em sua transmissão: são traduções fiéis das versões originais, ou
seja, fazem pouquíssimas alterações adaptativas no corpo do texto, fazendo apenas
algumas mudanças editoriais. Além dessa constatação, nossas pesquisas foram capazes
de responder um questionamento historiográfico sobre o papel de Muñoz Tébar na
tradução venezuelana, mostrando que ele seria o revisor do corpo do texto, e não o
tradutor.

Palavras-chave: Livro Didático. Geometria. Legendre. Transmissão. América


Hispânica.

INTRODUÇÃO

91
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). carlosroot4@gmail.com

92
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). gert.schubring@uni-bielefeld.de

179
O século XIX constitui um ótimo período para realização de pesquisas
sobre a História do Ensino de Matemática (KARP e SCHUBRING, 2014, p.197-
199), ainda mais quando o estudo foca nos livros-texto adotados. Segundo
Schubring (1987), estudar livros didáticos seriam ótimas maneiras de entendermos
a dinâmica do ensino de Matemática numa determinada época, já que apenas o
estudo dos currículos e dos decretos ministeriais vigentes poderiam nos levar a
criar uma imagem distorcida da realidade, visto que muito do que está escrito nos
decretos e currículos não foram cumpridos.
Não estamos dizendo que estudar as mudanças curriculares e ministeriais
sejam irrelevantes, é que às vezes a situação torna-se tão complicada no cenário
sociocultural, que um estudo mais sistematizado é inviável. Como exemplo, temos
o caso da Espanha no século XIX, que teve num período de menos 75 anos cerca
de 25 trocas de currículo de matemática (AUSEJO, 2014, p.286).
O livro de Geometria escrito por Legendre demonstra ser um desses bons
exemplos de livros que moldaram o ensino de geometria em diversos tipos de
instituições de ensino --neste caso, secundário e superior-- e em diversos países
(SCHUBRING, 2009). Mas apesar de sua influência em praticamente todo o
ocidente, daremos um foco especial à América Hispânica.
A América Latina é um desiderato de pesquisar, mas a falta de pesquisas
dificultava tal empreendimento. Graças às pesquisas de Carvalho (2014), abriram-
se caminhos para pesquisas comparativas entre a Venezuela e a Colômbia. Num
levantamento bibliográfico feito pelos autores, encontramos duas traduções do livro
de Legendre para o castelhano, uma colombiana e uma venezuelana, publicadas
em, respectivamente, 1866 e 1879. Além de nos sentirmos motivados por Carvalho
(2014, p.335), que aponta a necessidade de realizar maiores pesquisas dos
processos de transmissão para a América Latina.
Assim, o objetivo deste trabalho é analisar de maneira comparativa como
foi o processo de transmissão do livro de geometria de Legendre para a Colômbia
e para a Venezuela na segunda metade do século XIX.

180
METODOLOGIA

O fazer histórico requer uma apresentação da metodologia que será


aplicada de maneira mais explanatória. Isso acontece por entendermos que, a
metodologia utilizada em História da Matemática não apenas se concentra em
descrever procedimentos a serem realizados, mas sim visa fornecer uma lente
teórica na qual as fontes serão analisadas e interpretadas.
Assim, um melhor detalhamento dos conceitos facilita a compreensão das
reflexões que serão feitas em nossa análise histórica. Isso nos ajuda a evitar a
escrita de trabalhos que sejam puramente descritivos, sem reflexões críticas sobre
os fatos envolvidos, algo que pode ser relativamente fácil de encontrarmos na
História da Educação Matemática.
A Transmissão de ideias é um conceito conhecido na comunidade não só
da História da Matemática (OLIVEIRA e SCHUBRING, 2018, p.112-113), mas
também na História das Ciências. O conceito é utilizado como uma tentativa de
entender como determinadas ideias científicas, livros etc. foram circulando entre os
lugares. Existem três problemáticas em torno dessa concepção. A primeira é
considerar que polo receptor da transmissão apropria-se de maneira integral do
conceito, não sendo responsável por nenhuma modificação no mesmo, ou seja, é
uma recepção passiva. A segunda está em considerar que tanto o polo emissor
quanto o receptor agem de maneira neutra nessas transmissões, como se essas
fossem desprovidas de intencionalidades (SCHUBRING, 1999, p.30-32). A terceira
está relacionada com o fato dos pesquisadores assumirem tacitamente que os
conceitos têm equivalência com as concepções contemporâneas dos mesmos
(ibid.). Um exemplo disso é quando encontramos frases alegando que os
primórdios do conceito de função pode ser encontrado nos babilônios.
Entendemos que a concepção descrita anteriormente é um entendimento
ingênuo da maneira de como o conhecimento científico é apropriado por outras
culturas, pois quando nos aprofundamos na análise das fontes, vemos que
nenhuma das três características acima se sustenta. Um exemplo da concepção

181
descrita acima é o conceito de Circulação de Ideias apresentado pelo projeto
Cirmath93, mais precisamente no artigo (NABONNAND et all, 2015).
Assim, o conceito de Transmissão que será adotado neste trabalho será,
muito, diferente do descrito acima. O primeiro ponto de destaque é considerarmos
que o polo receptor das transmissões atua de maneira ativa nas recepções
(SCHUBRING, 1999, p.29-35), adequando os conceitos adquiridos a seus próprios
propósitos, o que resulta em alguns casos em novas perspectivas. O segundo
ponto é assumirmos que as transmissões nunca são neutras ou desprovidas de
finalidade, já que as intencionalidades costumam se dar de maneira implícitas.
A análise histórica de livros didáticos de Matemática foi descrita por
Schubring (1987, 2003) e tem como principal objetivo estabelecer critérios objetivos
para a realização de uma análise de um livro histórico de Matemática. Uma de suas
principais indicações é reunir a maior quantidade de edições diferentes de um
determinado livro, em busca de alterações na concepção epistemológica dos
autores. Junto a isso, é necessário que entendamos as relações mantidas entre o
autor e a comunidade científica da época, a editora etc. Neste trabalho, damos
ênfase ao papel ativo dos tradutores, o que faz dessa metodologia uma parte crucial
do entendimento das relações entre os tradutores e suas respectivas épocas.
Como um dos principais pontos deste trabalho é a comparação e análise
de livros didáticos históricos, é necessário uma metodologia adequada para a
realização dessa tarefa. Optamos pela utilização da Hermenêutica Objetiva como
uma forma de dar consistência às nossas análises, realizadas em comparação do
francês-francês e francês-espanhol. A concepção de hermenêutica apresentada
por Schubring (2003; 2005b; 2018) nos dá as ferramentas necessárias.
Gostaríamos de frisar o adjetivo ‘objetiva’ no nome do conceito. Esse adjetivo vem
para caracterizar uma diferença existente entre a versão mais comum, conhecida
pelos trabalhos dos filósofos alemães W. Dilthey e H. Gadamer, em que se as
interpretações subjetivas têm maior peso. A versão descrita neste trabalho, como
o nome já diz, foca-se nas interpretações objetivas dos conteúdos.

93
Circulação da matemática nos e pelos jornais: história, territórios e públicos
https://cirmath.hypotheses.org/

182
LEGENDRE E OS ELEMENTOS DE GEOMETRIA

Adrien-Marie Legendre (1752-1833) foi um matemático francês, nascido


em Paris. Destacou-se por diversas contribuições para a Matemática, sendo as
mais importantes feitas na área de teoria dos números e de funções elípticas, mas
aqui, neste trabalho, damos ênfase para a publicação de um de seus livros:
Éléments de Géométrie de 1794 –onde parte de seu valor reside no fato do autor
não ser um entusiasta da geometria --não como campo de pesquisa-- mas ter se
animado em escrever um livro sobre a disciplina fundamentado nos princípios
pregados pela Revolução Francesa de confecção de livros elementares. Seu livro
foi responsável pela instauração de uma nova concepção de rigor em geometria
para a época. Em 1810, temos a fala de Delambre: “M. Legendre tomou a si fazer
em nós o gosto pelas demonstrações rigorosas” (Delambre, apud. SCHUBRING,
2009, p.45).
Para entendermos um pouco mais sobre o contexto de popularização do
livro de Legendre, é imprescindível que falemos de outro ator muito relevante para
este período, o matemático francês Sylvestre-François Lacroix (1765-1843).
Em síntese, destacamos uma grande diferença de Lacroix para Legendre:
Lacroix tinha a ambição de ser um autor utilizado em todas as disciplinas da
Matemática, além de ter grande envolvimento político com a educação. Enquanto
isso, Legendre era o extremo oposto. Viveu concentrado em suas pesquisas e não
procurou por renome público ou cargos políticos (SCHUBRING, 2009, p.362),
apesar de ter conquistado ambos.
Em 1799, Lacroix decidiu que escreveria um livro dedicado à geometria,
tudo para completar seu curso de Matemática e conseguir com que seus livros
fossem escolhidos pela comissão do Ministério do Interior. Tal atitude fez com que
Legendre sentisse que seu livro estaria ameaçado, visto que ele era o único livro
de geometria que apresentava a geometria de maneira rigorosa.

183
Por isso, Legendre marcou um encontro com Lacroix para tentar fazer com
que este desistisse dessa ideia (SCHUBRING, 2009, p.362). Apesar de num
primeiro momento Lacroix ter aceitado em não publicar um livro de geometria,
depois de sua conversa com Legendre, ele ameaçou retirar outros dois de seus
livros (aritmética e álgebra) da editora de Duprat, um editor de importantes livros de
Matemática.
Como tal atitude teria sérias consequências econômicas para a editora,
Duprat indagou Legendre sobre tais problemas. Legendre envia uma carta para
Lacroix, em fevereiro de 1799, em que reforçava o que fora acordado. Para
minimizar os efeitos de Lacroix ter que desistir de seu projeto, Legendre propunha
a Lacroix que continuasse utilizando seu livro na sua posição de professor na École
Centrale des Quatre-Nations, mas que agora poderia complementar as aulas com
outras obras. Mas agora Legendre propunha um oligopólio em detrimento do
monopólio que seu livro tinha (SCHUBRING, 1987, p. 46).
Durante determinado tempo, Lacroix conseguiu o monopólio de todos os
livros de matemática que eram utilizados nos liceus (SCHUBRING, 2003).
Entretanto, em outras instituições o livro de Legendre era mais utilizado que o de
geometria de Lacroix– e em particular em muitos países, mesmo além da Europa
do Oeste: na Rússia, no Império Otomano, na Grécia e na Pérsia (SCHUBRING,
2009, p.365).

Os "Éléments de Géométrie” de A. M. Legendre

O livro teve sua primeira publicação no ano de 1794, um pouco antes da


realização do primeiro concurso de livros didáticos, uma das façanhas do período
revolucionário (SCHUBRING, 2003). Como era de praxe para os livros desse
período, sua estrutura segue o modelo da elementarização do conhecimento,
propagado pelo Iluminismo. Com seu relativo sucesso nos primeiros anos, já em
1799 vemos a publicação da segunda edição, agora contando com o apêndice de
Trigonometria.

184
Em 1799, com o fim da ênfase na escrita de livros pelo método analítico,
Legendre publica um extenso texto anexo sobre a trigonometria, onde utiliza o
método sintético. Ao contrário de alguns revolucionários, o autor não tinha tanto
apreço pelo método analítico e entendia que não existia um método ideal para
explicar todos os assuntos, mas sim que determinados conteúdos seriam melhor
entendidos caso utilizassem outro método de exposição. Isso nos mostra que o
autor também tinha preocupações voltadas para o ensino de Matemática.
O apêndice contém cerca de 100 páginas, com algumas variações
dependendo da edição. Para termos uma ideia do quão significativo é esse
acréscimo, o conteúdo original do livro contém cerca de 280 páginas.
Um outro ponto de destaque é que em diversas traduções o apêndice de
trigonometria foi publicado como um livro separado. Nossas pesquisas indicaram
que tal acontecimento se justifica em grande parte pela questão econômica. O fato
de ser possível diminuir em 100 páginas o livro sem perder o conteúdo principal
fazia com que o custo de produção fosse mais baixo.
A partir do último ano do século XVIII, temos novas edições publicadas em
1799, 1800, 1802, 1804, 1806, 1808, 1809, 1812, 1813, 1817 e 1823, enquanto
Legendre ainda estava vivo. Isso nos mostra a grande popularidade do livro já nas
primeiras duas décadas após sua publicação.
No entanto, isso é uma pequena parte da dimensão que tal livro alcançaria
no século XIX. Uma segunda tradução foi realizada por Jesús Muñoz Tébar na
Venezuela em 1908, uma evidência da demanda por tal obra nas Américas no
século XX. Além disso, encontramos versões sendo comercializadas na América
do Sul em 1944 (BEYER, 2020, p.33).
A principal característica dessas novas edições é o fato de Legendre
constantemente alterar as notas de fim de texto. Tais notas mostraram ser de
extrema importância para a época em que foram publicadas, mas também contém
um grande valor para nossa análise histórica, com destaque para a nota sobre a
teoria das paralelas.
Depois da morte de Legendre, em 1833, seus livros ainda tiveram muitas
outras edições, dentre novas edições e reimpressões. Entretanto, não é uma tarefa

185
fácil descobrir ao certo quantas foram, pois devido às publicações “paralelas” do
livro feitas em Bruxelas a partir da década de 1830, a numeração ficou muito
confusa, impossibilitando sabermos o real número de edições.
Houve pela mesma editora das edições originais, Firmin-Didot, duas
edições: a 13ª de 1838 e a 14ª de 1840, com o mesmo texto da 12ª edição de 1822,
a última revisada por Legendre.
Na década de 1840, a editora aceitou Marie Alphonse Blanchet (1813-
1894) como organizador das próximas edições do livro. Blanchet estudou na École
polytechnique (1833-1835) e foi professor em escolas privadas de ensino
secundário. Durante sua trajetória, Blanchet teve pouco destaque no Ensino de
Matemática, publicando, além dos elementos, apenas uma coleção de exercícios
de geometria (Schubring, 2009, p.367).
Em 1845, com a primeira edição do texto alterado por Blanchet, a editora
acrescentou uma reedição da 14ª edição, que havia sido relançada em 1842. Em
1849, Firmin-Didot publicou a segunda edição de Blanchet, acrescentando também
a reedição original, porém chamando-a desta vez de 15ª edição.
As mudanças feitas por Blanchet também ocorreram no corpo do texto e
não estão apenas relacionadas à diagramação ou à mudanças estéticas no livro.
Tais mudanças foram tantas, que na primeira versão modificada pelo editor, o livro
foi publicado como um livro duplo, isto é, após o término da versão modificada, foi
incluída uma versão publicada originalmente por Legendre.
As alterações também são responsáveis por um outro fator que torna a
análise do livro de Legendre ainda mais interessante: o processo de reinício de
contagem das edições, isto é, quando Blanchet começou a alterar o livro, ele
reiniciou o processo de contagem das edições, e intitulando sua versão como sendo
uma nova edição (“Nouvelle Édition”). Esse fato é importante por mostrar ainda
mais o sucesso do livro de Legendre.
As reedições das versões originais de Legendre não se restringiram à
primeira metade do século XIX, mas continuaram na segunda metade com versões
originais, publicadas pela mesma editora, paralelamente às novas edições de
Blanchet, até ao menos os anos 1870.

186
Um fato de destaque é que mesmo depois das versões alteradas por
Blanchet terem sido publicadas, em 1862—ou seja, 17 anos após a primeira
modificação—, a editora Firmin Didot publicou uma versão original de Legendre,
ainda intitulada de 15ª edição. No entanto, a segunda edição de Blanchet (1849)
diz em sua capa que ela foi baseada na 15ª edição do original, mostrando uma
confusão da própria editora com as edições. Além disso, Firmin Didot publicou em
1857 uma outra 14ª edição do livro original, bagunçando ainda mais a ordem das
edições. Dito isso, supomos a existência de uma demanda pelo livro original, já que
a versão de Blanchet já tinha alcançado relativo sucesso com suas versões
anteriores.
O livro de Legendre foi um sucesso tão grande que podemos identificar
traduções publicadas em, pelo menos, dezessete países. Sendo algum deles a
Itália (1802) (primeira tradução conhecida), a Espanha (1807) e o Brasil (1809). Um
fato de grande importância para a dimensão de utilização desse livro é a existência
de traduções concorrentes feitas em países como a Itália e a Grécia, que chegou a
ter várias traduções com diversas reedições cada uma (SCHUBRING, 2009, p.366-
373).

AS TRANSMISSÕES PARA A COLÔMBIA E PARA A VENEZUELA

Para este trabalho, três traduções da Geometria de Legendre são


importantes: A primeira delas foi traduzida por Antonio Gilmán, publicada em
Madrid pela Imprenta de Repulles, em 1807, com segunda tradução publicada em
1827, mas agora em Paris. A segunda foi traduzida por Luís Maria Llieras,
publicada em Bogotá pela Imprenta de Gaitán, em 1866. A terceira foi traduzida por
Jesus Muñoz Tebar, publicada em Caracas pela editora Alfred Rothe, em 1879,
com uma segunda tradução em 1908, também em Caracas.
Como a primeira edição modificada por Blanchet data de 1845, só podemos
analisar as eventuais concorrências entre as edições na segunda metade do século
XIX. Desta maneira, chamamos a atenção para um fato não ainda muito bem
entendido na historiografia atual quanto à ampla disseminação internacional e

187
longeva do livro. A obra não foi primeiramente utilizada nas versões originais --no
caso, pelos primeiros 50 anos, de 1794 até 1845-- e depois, na segunda metade
do século XIX, apenas com a utilização das versões “blanchetianas''. Bem
diferentemente, podemos constatar como nova evidência que foram publicadas --e
assim, disponíveis e acessíveis-- ambas versões paralelamente na segunda
metade do século XIX.
Uma característica que chamou nossa atenção durante as análises
comparativas foi perceber que as três traduções não alteraram praticamente nada
o corpo do texto. As principais modificações foram de natureza editorial, por
exemplo, retirar o apêndice de trigonometria (os três tradutores) e publicá-lo
separadamente como um livro independente, alterar a ordem de aparecimento dos
apêndices do livro (Llieras).
Isso de certa maneira nos surpreendeu, já que esperávamos encontrar
interferências mais diretas dentro do texto. Com efeito, refletindo sobre o problema
posto, chegamos à conclusão de que o processo ativo dos tradutores latinos no
polo da recepção da tradução deu-se no momento em que estes escolheram
deliberadamente qual versão do livro de Legendre seria escolhida para a tradução:
a versão original ou a versão alterada por Blanchet.
Assim, o processo de comparação entre as versões da Geometria de
Legendre constitui, em si, uma análise dos processos de transmissão para os
países em questão. Sendo necessária uma maior explanação sobre suas
diferenças.
Legendre começa seu livro explicando qual seria o objeto de estudo da
geometria: “A geometria é uma ciência que tem por objeto a medida da extensão.
A extensão tem três dimensões, longitude, latitude e altura.” (LEGENDRE, 1802,
p.1, tradução nossa). A partir daí, passa para o conceito, nesta ordem, de linha
(comprimento sem largura), ponto, reta, superfície (tem comprimento e largura, mas
não altura), plano e sólido ou corpo (tem as três medidas da extensão). Ou seja, o
autor apresenta as definições dos conceitos em ordem crescente de dimensões.
Já nas de Blanchet, as definições começam pela ideia de que um corpo
ocupa um determinado lugar do qual se chama volume: “Todo corpo ocupa no

188
espaço indefinido um lugar que se chama volume” (LEGENDRE, 1849, p.1,
tradução nossa). A partir dessa primeira, temos que os termos são definidos, nesta
ordem: os conceitos de superfície (limite que separa o corpo do espaço que o
rodeia), de linhas (lugar onde as superfícies dos corpos se encontram) e o de ponto
(lugar em que as linhas se encontram). Assim, vemos que as definições partem da
dimensão mais alta para a mais baixa.
Tais mudanças configuram uma mudança epistemológica para com a
geometria. Um dos motivos apresentados por Blanchet para justificar as alterações
foi alegar que a obra original continha imperfeições e algumas lacunas.
Um dos temas que mais atraía a atenção de Legendre era a teoria das
paralelas. Todavia, Blanchet, além de ter excluído as reflexões feitas por Legendre
em suas notas, também mudou praticamente todas as proposições desta seção no
capítulo I.
Uma das principais modificações feita por Blanchet está na utilização do
método dos limites, um método da Matemática superior. Nas primeiras definições
e nas demonstrações envolvendo círculos e corpos redondos, o método é utilizado.
Com isso, ele teve que introduzir explicações sobre o que seria esse método.
Blanchet alterou algumas demonstrações, e estas modificam a concepção de
Legendre, destacamos Legendre:II.XVI e II.XVII e Blanchet:II.XVIII, que envolvem
as diferenças entre grandezas comensuráveis e incomensuráveis.

Versão espanhola

Podemos destacar o fato da tradução de Gilmán ser uma tradução muito


fiel ao livro original, sendo identificadas pouquíssimas alterações no texto. As
poucas diferenças estão concentradas no âmbito gramatical. Por exemplo, no
segundo parágrafo da primeira definição do livro, encontramos a seguinte frase no
original: "L'étendue à trois dimensions, longueur, largeur et hauteur.” (LEGENDRE,
1802, p. 1), enquanto que na versão de Gilmán tem-se “La extension tiene tres
dimensiones, longitud, latitud, y altura ó profundidad.” (LEGENDRE, 1807, p. 1).

189
Aqui podemos notar apenas o acréscimo de um sinônimo para referir-se à palavra
altura, que neste caso seria profundidad.
Apesar do exemplo acima, nem todas as mudanças são apenas de
palavras específicas, em alguns casos vemos a reestruturação da frase, mas com
o significado equivalente. Vemos na primeira proposição do Livro I: “Les angles
droits sont tous égaus entre eux.” (LEGENDRE, 1802, p.6), enquanto que na versão
traduzida encontramos “Todos los ángulos rectos son iguales.” (LEGENDRE, 1807,
p.6). Vemos que ambas as frases expressam a mesma propriedade.
A versão espanhola, apesar de não ter sido publicada nas Américas,
apresenta grande relevância para a disseminação do livro nos países de língua
castelhana. Analisando a presença do livro de Legendre na América Hispânica,
podemos constatar que até a década de 1860, circulavam versões do livro em
francês e em castelhano, justamente as traduções feitas por Gilmán.

Versão Colombiana

Luís M. Llieras (1842-1885) foi um engenheiro colombiano. Estudou no


Colégio Militar da Colômbia, onde recebeu seu título de idoneidade como
engenheiro. Ele foi, também, professor em vários colégios e universidades, sendo
importante destacar sua atuação na Escuela de Ingeniería de la Universidad
Nacional, onde deu aulas de geometria euclidiana, geometria descritiva e
astronomia. Em 1868, foi reitor do Colégio Nacional de Velez. Em 1873, exerceu o
cargo de diretor do Observatório Astronómico.
A versão utilizada por Llieras para a tradução foi uma de Blanchet. Um dos
pouquíssimos pontos de intervenção que conseguimos identificar em sua tradução
está presente na definição de linha reta. Na segunda edição de Blanchet, vemos
que a definição de linha reta contém a palavra francesa ‘chemin’ (caminho). No
entanto, por algum motivo desconhecido, a partir da nona edição a palavra ‘chemin’
some da definição. O restante da definição é igual, mas agora faltando a palavra
‘chemin’.

190
A intervenção de Llieras ocorre exatamente aí. Em sua tradução, que foi
feita a partir de uma décima do Blanchet, logo sem a palavra ‘chemin’, ele
acrescenta à definição a palavra ‘camino’.

Versão Venezuelana

Jesús Muñoz Tébar (1847-1909) foi um engenheiro, militar e político


venezuelano. Estudou no Colégio Vargas de Caracas e cursou a Academia Militar
de Matemáticas, formando-se em 1866 com o grau de Teniente de Ingenieros.
Recebeu seu título de doutorado em Ciências Filosóficas pela Universidad Central
de Venezuela, instituição onde foi reitor por duas vezes.
A versão utilizada por Tébar foi uma original de Legendre. Supomos seu
apreço pela concepção de Legendre sobre a Geometria, pois temos evidência que
ambas versões eram comercializadas na Venezuela (BEYER, 2020, p.39).
Comparando sua tradução com a segunda tradução de Gilmán, publicada
em 1827, conseguimos elucidar uma questão historiográfica (BEYER, 2020). Na
capa da tradução venezuelana podemos notar a inscrição “Revisada por Jesús
Muñoz Tébar”, enquanto que nas notas de fim de texto, vemos a inscrição
"traduzida por Jesús Muñoz Tébar”. Isso gerava um debate sobre se Tébar tinha
atuado como revisor do texto, da versão de Gilmán de 1827, ou se foi um erro por
parte da gráfica. Tal dúvida se justificava pelo fato de Tébar ter todos os gabaritos
e motivações para traduzir toda a obra.
Quando olhamos para o corpo do texto, vemos que as diferenças entre as
versões quase não existem, sendo todas revisões muito pontuais, por exemplo,
“reta AB” é trocado por “reta CD”. O principal ponto de nossa argumentação se
baseia no seguinte fato: Na primeira edição de Gilmán (1807. p.1), a definição de
reta aparece como “el camino mas corto entre dos puntos”, sendo ‘camino’ a
tradução da palavra francesa ‘chemin’. Na segunda edição, Gilmán troca a palavra
‘camino’ por ‘distancia’, mesmo com o original continuando com a palavra ‘chemin’.
Ou seja, interferência ativa do tradutor. Quando olhamos a versão de Tébar,

191
constatamos que a definição de reta é feita com a palavra ‘distancia’ e não ‘camino’.
Isso pode parecer pouco, mas quando comparamos a tradução das notas, vemos
que já na primeira frase, que apesar de terem o mesmo sentido, foram escritas de
maneira distintas, indicando que pessoas diferentes que traduziram.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como primeiro resultado, temos a constatação do uso da versão original


de Legendre na segunda metade do século XIX. Isso é de grande importância para
entendermos um pouco mais da dinâmica de uso desse livro, desconstruindo a
ideia de que o livro editado por Blanchet foi a única versão utilizada nesse período
e evidenciando uma demanda pelo pensamento original do autor.
Além disso, destacamos como o conceito de transmissão é uma ferramenta
adequada para esse objeto de estudo. Neste trabalho, tivemos contato com uma
abordagem mais refinada dessa ideia: entender que o papel ativo dos tradutores se
deu, primeiramente, na escolha entre a versão original e a alterada e,
segundamente, nas poucas intervenções ao texto (por exemplo “camino” e
“distancia”, “altura” ou “profundidad”).
Um ponto de destaque é termos conseguido responder aos
questionamentos historiográficos sobre a em torno da tradução venezuelana,
mostrando que Tébar, ao menos na versão de 1879, foi o responsável pela revisão
do corpo do texto e não pela tradução como antes sustentado pela historiografia
tradicional.
As pesquisas, junto com a situação do estado da historiografia, nos
mostraram a necessidade da extensão da pesquisa para outros autores franceses
influentes no século XIX. Um primeiro nome que já se tem evidência da ampla
utilização é o matemático francês Sylvestre-François Lacroix, citado neste trabalho
com tendo uma controvérsia com Legendre.
Com a ampla utilização, tanto do original quanto do Blanchet, do livro na
Colômbia e na Venezuela, levantamos uma questão: Os livros de geometria
publicados posteriormente foram influenciados pelos livros de Legendre? Caso

192
afirmativo, a influência é da versão original ou da alterada? No entanto, isso é um
tema para pesquisas futuras.

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194
BREVE PANORAMA DO ENSINO DE MATEMÁTICA NO BRASIL SOB
A PERSPECTIVA DE GÊNERO

Daniele Aparecida de Oliveira94


Mariana Feiteiro Cavalari95

RESUMO
Este trabalho, de abordagem qualitativa e do tipo bibliográfico, busca compreender como
as diferenças no processo de ensino de Matemática ofertado à meninos e meninas ao
longo dos séculos podem ter contribuído para a baixa participação feminina nessa área e
tem o intento de apresentar um breve panorama da história da educação escolar
enfatizando elementos da instrução matemática no Brasil sob a perspectiva de gênero.
Para realizar esta investigação foram consultados artigos e livros sobre o histórico da
instrução masculina e feminina no Brasil, além de teses e dissertações desenvolvidas
dentro das temáticas de História da Educação e História da Educação Matemática e, ainda,
materiais sobre diversos momentos sócio-históricos nacionais. Tais materiais
possibilitaram a realização de um breve panorama da educação brasileira sob o enfoque
de gênero, destacando semelhanças e diferenças da instrução oferecida a meninos e
meninos desde o Período Imperial, marcado pelos ensinamentos jesuítas em um contexto
em que não era reconhecida a necessidade de instruir as mulheres, até o Período
Republicano, no qual ocorreu a reversão de hiato de gênero no ensino superior. Após a
análise do material consultado, é possível notar que a educação brasileira, especialmente
no que diz respeito à instrução matemática, foi praticada de forma desigual a meninos e
meninas, fato que pode ter contribuído para a construção de estereótipos de gênero que,
ainda nos dias atuais, podem influenciar o interesse e motivação das meninas com relação
à Matemática. Destaca-se, também, que a existência de lacunas de trabalhos ora da
instrução feminina, ora da masculina, em determinados períodos históricos, dificultam a
realização de um estudo relacional sobre as práticas de ensino de Matemática no país.

Palavras-chave: História da Educação Matemática. Educação Feminina no Brasil.


Educação Matemática Feminina no Brasil.

INTRODUÇÃO

94
Mestranda em Educação em Ciências na Universidade Federal de Itajubá – UNIFEI. Email:
daniaoliveira@outlook.com.br
95
Docente do Instituto de Matemática e Computação da Universidade Federal de Itajubá – UNIFEI. Email:
mfcavalari@unifei.edu.br

195
O estudo da relação histórica construída entre os homens, as mulheres e a
educação, particularmente no contexto do Ensino de Matemática, pode trazer
importantes contribuições para investigar a problemática do interesse feminino por
áreas de Matemática intensiva. Dessa forma, torna-se relevante a realização de um
estudo da História da Educação e Educação Matemática à luz da perspectiva de
gênero, destacando semelhanças e, principalmente, diferenciações ao longo dos
anos no cenário educacional brasileiro.
Para realizar uma leitura da História da Educação, sob a perspectiva do
gênero, este trabalho se baseia em Louro (1994). Para esta autora, estudos com
essa temática podem ser desenvolvidos em duas principais perspectivas, que
podem ser complementares. A primeira diz respeito aos estudos que focam nos
processos de socialização/educação de meninos e meninas, sobre a construção da
feminidade ou masculinidade ou, ainda, sobre análises de processos históricos-
educacionais em que a categoria gênero é realçada como, por exemplo, a
feminilização do magistério. A segunda perspectiva destacada por Louro (1994),
que é menos explorada nos estudos acadêmicos, diz respeito a uma leitura com
viés de gênero em pesquisas da História da Educação nas quais esta categoria
analítica não é explicitamente abordada. Dessa forma, propõe
[...] uma leitura com a preocupação de desvendar o gênero, interessada na
observação da construção (implícita ou explícita) dos gêneros; uma leitura
capaz até mesmo de ler o silêncio, de perceber na omissão da questão, na
sua negação, uma forma determinada de concepção dos gêneros. Nessa
via alargam-se imensamente as fontes para a história da educação sob a
perspectiva do gênero, uma vez que não mais ficamos restritas aos(às)
pesquisadores(as) identificados(as) com tal temática, mas temos a nosso
dispor uma produção historiográfica muito mais ampla. (LOURO, 1994, p.
35).

Para melhor compreender a relação histórica das mulheres com a instrução


escolar, faz-se necessário entender, também, como se desenvolveu a educação
masculina ao longo dos anos. Este fato se justifica pela adoção da perspectiva dos
estudos de gênero de Scott (1999), em que informações sobre as mulheres são, ao
mesmo tempo, informações sobre os homens e vice-versa, de forma que homens
e mulheres são definidos em termos recíprocos.

196
Nesse sentido, buscando compreender como as diferenças no processo de
ensino de Matemática ofertado à meninos e meninas ao longo dos séculos pode
ter contribuído para a baixa participação feminina nessa área, esse trabalho tem o
intento de apresentar um breve panorama da história da educação escolar,
enfatizando, principalmente, elementos da instrução matemática no Brasil, sob a
perspectiva de gênero. Entende-se que essa construção é necessária a fim de
contextualizar a tradição cultural que se estabeleceu sobre a presença de mulheres
em áreas de Matemática e que, ainda nos dias atuais, pode ter influência na
motivação e desempenho das meninas em Matemática.
Dessa forma, foi realizado um estudo bibliográfico em livros, artigos,
dissertações e teses sobre o histórico da instrução feminina e masculina, a História
da Educação e, também, sobre diversos momentos sócio-históricos brasileiros. A
apresentação de tais informações é necessária ao adotar a perspectiva dos estudos
que realizam abordagens de gênero, pois entende-se que
[...] as diferenças nos níveis educacionais não decorrem de características
biológicas, mas sim das condições históricas e estruturais da conformação
de cada sociedade. Em quase todos os países do mundo as mulheres
sempre tiveram maiores barreiras no acesso à escola. (BELTRÃO; ALVES,
2009, p. 126).

Com base nesses materiais, nas duas seções seguintes são apresentados
um breve panorama da educação ao longo dos regimes políticos nacionais e são
destacadas diferenciações praticadas na instrução matemática ofertada a meninos
e meninas, respectivamente.

A EDUCAÇÃO BRASILEIRA DO PERÍODO COLONIAL AO PERÍODO


REPUBLICANO

Entende-se que não é possível dissociar as práticas de instrução


matemática do contexto educacional e histórico ao qual elas estavam submetidas.
Dessa forma, nessa seção é apresentado um panorama da educação no Brasil,
que tenta abarcar as suas principais características e objetivos, destacando,
sempre que possível, as diferenciações em relação ao gênero.

197
É importante situar que a educação feminina no Brasil foi marcada pelo
confronto com o papel socialmente delimitado às mulheres, geralmente restrito ao
espaço privado. Apesar da instrução recebida por elas, desde o período Colonial,
estar estritamente relacionada às suas classes sociais, a educação que mulheres
brancas, ricas ou pobres, negras escravas e indígenas recebiam, em geral, não as
preparava para a escrita e leitura (MONTEIRO; GATI, 2012) mas sim aos cuidados
familiares e domésticos, para as de classes mais abastadas, e ao trabalho na
agricultura e mineração para aquelas de classe menos abastadas. Contudo,
conforme apontado por Saffioti (1979), a extensão da instrução escolar a
contingentes femininos contribuiu significativamente no processo de redefinição do
papel social das mulheres.

Segundo Saffioti (1979), o primeiro registro de instrução no Brasil, ocorrido


durante o Período Colonial, é atribuído aos jesuítas que criaram escolas de
primeiras letras. A instrução jesuítica contribuía para o fortalecimento da
predominância masculina e tinha como características formas dogmáticas de
pensamento, além de pregar a autoridade máxima da Igreja e do Estado
(BELTRÃO; ALVES, 2009). Até serem expulsos da Colônia no século XVIII, os
jesuítas criaram vasta rede de ensino, que tinha como missão “[...] conquistar, para
a fé cristã, os adultos da sociedade em formação” (SAFFIOTI, 1979, p. 102).
A instrução jesuítica destinada a mulher, segundo Saffioti (1979), se
caracterizava como uma forma de ensiná-la a se submeter à Igreja e ao marido, ao
invés de atuar como instrumento de libertação a favor da emancipação feminina.
Tal situação se adequava ao contexto colonial, visto que na civilização portuguesa
a instrução feminina era considerada uma “heresia social”, pois às mulheres cabia
apenas aprender prendas domésticas (SAFFIOTI, 1979). Muito dessa condição se
deve à forte influência religiosa, pois, como afirma Rodrigues (1962), as ordens
religiosas femininas estabelecidas nessa época pregavam às mulheres uma vida
contemplativa e as dispensava de participar de atividades de cunho intelectual, que
podiam até mesmo serem vistas como supérfluas ou perigosas.
A sociedade brasileira começou a mudar no período em que a Família Real
portuguesa chegou ao Brasil, em 1808, seguido da sua Independência, em 1822

198
(BELTRÃO; ALVES, 2009). Para esses autores, a educação no Período Imperial
passou a ser vista como forma de ascensão social. Segundo Saffioti (1979), nesse
novo contexto, surgiu a intenção de promover instrução feminina na Constituição
de 1823, que apesar de ter sido elaborada idealizando funções maternas e
domésticas, reconhecia que era necessário instruir a mulher.
Posteriormente, com a Lei Geral do Ensino de 1827, foram esboçadas
primeiras ideias de inserção feminina na docência e da expansão de escolas
femininas de primeiras letras em cidades, vilas e lugares mais afastados em que
existissem maiores demandas populacionais (MONTEIRO, GATI, 2012). Segundo
essas mesmas autoras, sendo as mestras responsáveis pela educação feminina
estas deveriam se mostrar honestas e prudentes, além de ter conhecimentos de
costura e bordado que as tornariam dignas para exercer essa função.
Contudo, apesar dessa lei “[...] constituir um marco histórico, só admitia as
meninas nas escolas de primeiro grau, ou seja, nas pedagogias, reservando os
níveis mais altos – liceus, ginásios e academias – para a população masculina.”
(SAFFIOTI, 1979, p. 105). Além disso, conforme apresentado por Rodrigues (1962,
p. 67), nota-se que nas discussões e debates realizados em torno dessa lei, a
instrução feminina era defendida por deputados que acreditavam que as mulheres
“[...] dão a primeira educação aos filhos e que fazem bons e maus, pois os homens
moldam a sua conduta aos sentimentos delas”. Monteiro e Gati (2012) ressaltam o
currículo diferenciado de meninos e meninas no 12º artigo de tal constituição visto
que, para elas, a instrução oferecida excluía o ensino de geometria e a aritmética
limitava-se às quatro operações.
Entende-se, então, que a instrução feminina tinha como objetivo educar
visando o papel social ocupado pela mulher na sociedade da época, mantendo-a
boa mãe e esposa. Dotta (2015) afirma que matérias consideradas de natureza
mais racional, não faziam parte da instrução feminina devido ao entendimento de
que homens e mulheres apresentavam capacidades cognitivas diferentes, sendo a
feminina inferior à masculina. Tal condição também refletia na remuneração dos
mestres e mestras, visto que a geometria era o critério para estabelecer as

199
remunerações e, apesar da igualdade de salários garantida pela lei, as mulheres
recebiam menos por não ensinarem esse conteúdo às meninas (SAFFIOTI, 1979).
Em 1834, com a Reforma Constitucional foram criadas Assembleias
Legislativas Provinciais que foram incumbidas de legislar e criar estabelecimentos
próprios para a instrução pública, que resultou na fundação das Escolas Normais
(MONTEIRO, GATI, 2012). Essas escolas surgiram como um ramo de ensino
superior ao primário, cuja regulamentação poderia variar de acordo com a
Província, mas com características distintas dos liceus ou colégios de nível
secundário (SAFFIOTI, 1979, p. 110). Em 1846, foi criada em São Paulo a primeira
Escola Normal, que inicialmente era exclusiva do público masculino. Esse curso,
que tinha dois anos de duração, oferecia disciplinas como: lógica, gramática geral
e da língua nacional, teoria e prática da aritmética, noções gerais de geometria
prática e suas aplicações, caligrafia, princípios de doutrina e religião do Estado,
métodos e processos de ensino (RODRIGUES, 1962).
De 1850 a 1860, segundo Monteiro e Gati (2012), a consolidação da
formação de professores foi instável, oscilando entre um discurso de valorização
da profissão e uma prática que subtraía meios para não realizá-la. Nesse período
também foram malsucedidas as tentativas de criar “cursos femininos” por escolas
elementares da Bahia e de São Paulo. Essa realidade começou a mudar entre 1868
e 1870, quando ocorreram transformações que movimentaram ideias no setor
educacional e, pela primeira vez, fora reconhecida a crença de que “um país é o
que a sua educação o faz ser”. Nesse contexto, a perspectiva de difusão da
instrução trouxe consigo a necessidade de educar a mulher (MONTEIRO, GATI,
2012).
Segundo Antônio (2014, p. 36), “[...] a partir da década de 1870, algumas
escolas normais passaram a oferecer o curso normal em duas seções: uma para o
sexo masculino e outra para o sexo feminino”. Em 1876, “[...] a abertura da sessão
feminina da Escola Normal no Seminário da Glória representou a primeira via de
instrução escolarizada institucional de nível médio aberta às mulheres no âmbito
do ensino público” (ALMEIDA, 1998, p. 23). Em 1885, foram apresentadas

200
propostas de reformas das Escolas Normais, que além de prezar por melhores
condições físicas de suas instalações,
Propunha, outrossim, a separação de ensino para alunos de um e outro
sexo, fundamentando que a escola mista “não está de acordo com os
nossos costumes e tem acarretado dificuldades para a boa ordem e
disciplina escola”. Demais, era inconveniente que as aulas fossem
conjuntas, mesmo sob o aspecto didático, pois “não podem ser idênticas
para alunos de um e de outro em razão da diversidade de desenvolvimento
intelectual, superior no homem” (RODRIGUES, 1962, p. 161).

Aos poucos as mulheres foram ingressando nas escolas normais,


resultando no processo que ficou conhecido como feminilização do magistério,
devido ao acentuado número de mulheres que ingressou na instrução que formava
professoras do primário. Esse foi o primeiro passo dado em busca da emancipação
feminina para o mercado de trabalho. Somado à abertura de profissões mais
atraentes financeira e socialmente aos homens, a carreira de professor primário
tornou-se uma oportunidade inegável às mulheres que estavam ansiosas para
ampliar seu universo (AMARAL; SANTANA; SANT’ANA, 2015). Com isso, de
acordo com Rabelo, Costa e Martins (2015, p. 13), as mulheres passaram “[...] a
serem vistas como atuantes no contexto social [...]. O casamento, todavia era
socialmente esperado, mas se algo o impedisse, a sua “culpa” seria diminuída, pois
sendo ela Professora, seu destino de cuidadora é parcialmente preenchido.”.
Analisando o processo do feminilização do magistério, tendo em vista o
papel social da mulher restrito ao ambiente privado e aos cuidados domésticos, é
possível entender que por ser, durante muito tempo, a única profissão feminina
socialmente aceita, devido às características maternais associadas a ela, em
combinação com a proibição de ingressar em outros cursos, resultou na grande
concentração de mulheres em cursos normalistas. No entanto, Almeida (1998, p.
23) ressalta que esse processo
[...] não foi apenas resultado de uma concessão masculina, nem se veiculou
sem estar impregnado de preconceitos ligados ao sexo, mas significou a
oportunidade entrevista pelas jovens de conseguir maior liberdade e
autonomia, num mundo que se transformava e no qual queriam ocupar um
determinado espaço que não apenas o que lhes foi reservado pela
sociedade masculina e representado pela vida no lar, dedicando-se
inteiramente à família.

201
As Escolas Normais consistiam como uma das poucas oportunidades de
instrução feminina de grau mais elevado no Império, além de dar direito às mulheres
a um trabalho assalariado. Beltrão e Alves (2009) afirmam que o decreto imperial
permitindo matrículas de mulheres em cursos superiores data de 1881. No entanto,
as condições e a qualidade do ensino oferecido nas etapas anteriores de instrução,
tanto às mulheres quanto aos homens, não os habilitavam para as faculdades.
Monteiro e Gati (2012) afirmam que o ensino secundário das Escolas Normais,
instituídas em 1880, por exemplo, supervalorizavam condições morais em
detrimento de condições de competências e formação intelectual. Não obstante,
não era comum que houvesse estímulo social e familiar para que mulheres
prosseguissem nos estudos (SAFFIOTI, 1979).
Anos antes da Proclamação da República no Brasil, surgiram ideias
inspiradas pelo liberalismo e cientificismo estrangeiros e começaram a ser
percebidas as necessidades da instrução feminina a medida em que essas
correntes de pensamento pretendiam promover reformas sociais e políticas.
Enquanto a Igreja Católica representava o pensamento conservador e defendia o
baixo nível de educação feminina como forma de manter a família preservada moral
e socialmente, o cientificismo não atribuía a inferioridade mental das mulheres à
sua natureza anatômica ou fisiológica, mas sim às formas pelas quais a sociedade
condenara o desuso dos seus cérebros (SAFFIOTI, 1979). Para essa corrente de
pensamento
[...] se a desigualdade de capacidades intelectuais entre os sexos se devia
a fatores de caráter histórico, a mulher não estava condenada a persistir na
ignorância e, portanto, na inferioridade mental e social. A solução
encontrava-se na educação feminina, capaz de permitir uma recuperação
do atraso a que esteve sujeita a evolução do cérebro da mulher. (SAFFIOTI,
1979, p. 112)

Com o início do regime republicano em 1889, o sistema educacional


brasileiro passou por um processo de renovação. A influência da Igreja Católica na
instrução escolar foi formalmente enfraquecida. Contudo, o modelo de ensino
superior, advindo do Império, e o ensino secundário aquisitivo ainda privilegiava
camadas abastadas da sociedade, além de conservar o hiato entre a rede primária
e superior (SAFFIOTI, 1979).

202
Nesse mesmo ano, o decreto nº 7.247, de 19 de abril de 1879, no 12º
parágrafo do 9º artigo garantia que:
Aos individuos approvados nas disciplinas do § 1º ou nas dos §§ 1º e 2º
serão conferidos diplomas de habilitação que, em igualdade de
circumstancias, lhes darão preferencia, quanto áquelles, para os logares do
professorado primario, e quanto a estes, para os do magisterio primario e
secundario. (BRASIL, 1879, s/p).

Tal decreto significava que seria dada equivalência ao grau secundário às


mulheres que concluíssem o curso normal. Entretanto, tais escolas, segundo
Saffioti (1979), eram altamente deficientes. Dessa forma, até o ano de 1930,
mesmo com as reformas que permitiam o acesso feminino à instrução superior, as
mulheres não haviam conquistado o seu lugar nesse nível de ensino no Brasil,
tendo em vista que essa ainda não era vista socialmente como uma necessidade
para a mulher (SAFFIOTI, 1979) e a preparação insuficiente que estas recebiam
nos níveis anteriores.
A educação feminina na Era Vargas (1930-1945), voltou a receber atenção
especial, tendo em vista que deveria ser oferecida a elas uma instrução adequada
ao seu papel familiar (GARCIA, 2000). Nahes (2007) afirma que esse momento
significava, portanto, um retrocesso significativo em relação às conquistas
femininas anteriores, visto que haviam discursos que reforçavam a ideologia de
uma mulher submissa, dócil e quase beatificada, que deveria ser uma aliada
quando o assunto era a educação nacional.
Transformações econômicas que foram ocorrendo no cenário nacional
modificaram, aos poucos, a posição das mulheres na sociedade. Contudo, a
presença feminina em universidades só ficou demarcada após o período de
redemocratização do país (NAHES, 2007). Segundo Beltrão e Alves (2009, p. 5)
A partir dos anos 60 que as mulheres brasileiras tiveram maiores chances
de ingressar na educação superior. Com a intensificação da
industrialização: os governos militares, instalados no país após 1964 e
inspirados no modelo norte-americano, tomaram medidas para atender a
demanda crescente por vagas e qualificação profissional, de acordo,
inclusive, com os compromissos internacionais. A aliança entre os militares
e a tecnoburocracia possibilitou um grande crescimento da pós-graduação,
com o objetivo de formar professores competentes para suprir a própria
universidade, estimular o desenvolvimento da pesquisa científica e
assegurar a formação de quadros intelectuais qualificados para responder
às necessidades do desenvolvimento nacional.

203
Com o crescente ingresso de mulheres nas universidades, a partir dos anos
1970 passa a ser identificada uma reversão do hiato de gênero no ensino superior
brasileiro, conforme apontado por Beltrão e Alves (2009). Desde então, as mulheres
passaram a representar a maioria de matrículas em todos os níveis educacionais
do país.
Diante dessa breve apresentação de fatos históricos acerca da educação
no Brasil, nota-se que, durante muito tempo, a instrução feminina foi impossibilitada
por fatores de ordem religiosa, social, moral e institucional. Tais fatores também
influenciaram o ensino de elementos de instrução matemática diferenciados a
meninos e meninas, como apresentado na seção, a seguir.

ENSINO DA MATEMÁTICA NO BRASIL: CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DA


DESIGUALDADE DE GÊNERO?

A breve apresentação da instrução formal no Brasil, da seção anterior,


fornece um importante pano de fundo para a análise de um histórico da instrução
matemática no Brasil e, por meio dela, algumas considerações podem ser tecidas.
Apesar de existirem poucas pesquisas que façam investigações sobre a
instrução matemática feminina no Brasil, algumas teses e dissertações defendidas
na perspectiva dos estudos de História da Educação e História da Educação
Matemática apresentam fatos que podem contribuir para um esboço da condição
de ensino de Matemática oferecido a meninos e meninas ao longo dos anos.
Nesse sentido, tomando como referência o levantamento de Gonçalves
(2015), a respeito das teses e dissertações defendidas entre 1990 e 2010, no
âmbito de Programas de Pós-Graduação em Educação Matemática e áreas afins,
foram buscados, dentre os trabalhos listados por esse autor, aqueles que

204
pudessem contribuir com informações a respeito das características do ensino de
matemática de meninos e meninas ao longo da história do Brasil. Além de teses e
dissertações de História da Educação em geral, artigos científicos também foram
consultados. Contudo, deve ser ressaltado que não é a intenção deste trabalho
realizar uma revisão sistemática, nem esgotar todas as fontes de informações a
respeito dessa questão.
Conforme apresentado na seção anterior, ao estudar sobre a História da
Educação é importante ressaltar que a instrução no Brasil, durante muito tempo,
atuou para a manutenção do status quo, ou seja, tinha como objetivo instruir os
homens para carreiras públicas, enquanto às mulheres era oferecido instrução das
primeiras letras e cuidados domésticos e familiares, com o intuito de que estas
permanecessem na esfera privada. Dessa forma, deve-se reconhecer que a
importância socialmente atribuída à instrução feminina era inferior à masculina.
A Matemática pode ser considerada uma das grandes diferenças dos
currículos escolares de meninos e meninas, já que elementos diferenciados dessa
disciplina eram ensinados a um e outro gênero. Tal condição fica evidente na
educação jesuítica na Colônia, na instrução oferecida no Período Imperial, até a
primeira metade do século XX, já no regime Republicano.
Na Lei Geral de Ensino de 1827, um dos marcos históricos para a educação
feminina, fica expresso que deveriam existir escolas femininas nas cidades e vilas
mais populosas, desde que os presidentes da Província julgassem que estas
fossem necessárias.
No que diz respeito ao programa de ensino, de acordo com Rodrigues
(1964), pela Lei de 1827, os conhecimentos relativos à Matemática que as mulheres
deveriam saber se resumiam apenas às quatro operações elementares. Noções de
geometria, que eram oferecidas em cursos voltados aos meninos, não eram
ensinadas as meninas. As justificativas para tal situação eram variadas. Enquanto
para alguns estes conhecimentos não eram vistos como necessários às mulheres,
para outros, a natureza feminina - considerada inferior à masculina - era
intelectualmente incapaz de aprender conteúdos mais racionais, tais como a
Geometria. Tal visão foi difundida por muito tempo na sociedade e,

205
consequentemente, na educação brasileira. Ao invés desses conteúdos, os
conteúdos programáticos das meninas incluíam prendas que serviam à economia
doméstica (RODRIGUES, 1964).
De acordo com Hilzendeger (2009), de 1810 a 1874, a instrução superior
matemática era desenvolvida exclusivamente em instituições militares, nas quais
as mulheres não tinham acesso permitido. Dessa forma, nos períodos em que a
instrução escolar feminina só poderia ser ministrada por professoras, subentende-
se que estas, muitas vezes, tinham formação matemática precária por não terem
acesso a uma formação matemática superior e este pode ter sido um fator que
tenha contribuído para regulamentar a prática de um ensino da matemática inferior
às meninas.
Embora a regulamentação vigente prezasse por um ensino de Matemática
excludente em relação às meninas, Amaral, Santana e Sant’Ana (2015), identificam
em avaliações datadas de 1939 do 4º ano do ensino primário feminino da Bahia
conteúdos como Aritmética e Desenho Geométrico, que deveriam ser exclusivos
do ensino dos meninos. Segundo os autores
Nas provas de Aritmética, há enunciados de adição com frações, o cálculo
de Múltiplo Divisor Comum, problemas com juros simples e juros
compostos, atividade de proporção/análise combinatória, utilizando o
sistema métrico, divisões com 2 algarismos, conversão de sistema métrico
e monetário (AMARAL, SANTANA, SANT’ANA, 2015, p. 123).

O ensino de tais conteúdos, apesar de não constituir – formalmente - parte


obrigatória do currículo das meninas naquela época, pode representar o início da
conquista da igualdade de gênero na formação escolar.
Uma outra fonte importante para os estudos em história do ensino de
matemática é constituída de livros e materiais didáticos. Pesquisas que realizam a
análise desses materiais utilizados para o ensino da Matemática em vários períodos
também permitem identificar nuances de inferioridade feminina. O trabalho de
Hilzendeger (2009), por exemplo, tem como material de análise o livro “Primeira
Arithmetica para meninos ”, compilado pelo engenheiro José Theodoro de Souza
96

96Pais (2010) ressalta o fato que edições dessa obra de Souza Lobo publicadas a partir do século
XX foram intituladas apenas “Segunda Aritmética”, mantendo os mesmos conteúdos.

206
Lobo, muito utilizado no ensino público e privado no século XIX no estado do Rio
Grande do Sul.
Ao investigar como esse livro didático, no seu contexto sócio-histórico,
contribuiu para a constituição de masculinidades por meio de uma perspectiva de
estudos de gênero, é identificado um cenário de invisibilidade feminina. Dentre 66
exercícios propostos como “Problemas de Recapitulação Geral”, Hilzendeger
(2009, p. 86) afirma que apenas dois deles envolvem personagens femininos,
sendo que o “´[...] primeiro apresenta a mulher como dona-de-casa, tendo como
tarefa a costura; o outro, um trabalho de agulha.” A autora argumenta que a
proposta de José Theodoro de Souza Lobo, de abordar problemas relacionados às
mulheres em atividades domésticas, deve estar condicionada à educação
diferenciada atribuída pelas legislações vigentes. Para Pais (2010, p. 135), essa
obra revela características da realidade educacional brasileira do século XIX,
[...] referente à divisão de escolas primárias para meninos e para meninas.
Mas, não era apenas uma simples divisão em dois tipos de escola. A
diferença maior estava nos programas de ensino de Matemática prescritos
para cada caso. Desde a lei das Escolas de Primeiras Letras, de 15 de
outubro de 1827, as meninas não estudavam geometria e a parte da
aritmética era bem reduzida em relação aos conteúdos previstos para os
meninos. Enquanto o plano de estudo previsto para os meninos envolvia o
estudo das operações com números naturais, frações, números decimais,
proporção, aplicações e noções elementares de geometria; o plano de
estudo previsto para as meninas somente envolvia as quatro operações
fundamentais.

Com a reforma Couto Ferraz, em 1854, foram extintas as diferenças


explícitas do estudo da Matemática por gênero. Contudo para Pais (2010) até o
final do século XIX essa diferença ainda era percebida.
Hilzendeger, (2009, p. 87) afirma que ao “[...] reforçar o discurso
heteronormativo, mecanismos de controle e de regulação eram acionados para
“garantir” às mulheres “modos de ser” de acordo com normas, regras e padrões
sociais [...].” Apesar das várias reformulações a respeito da educação feminina e
até mesmo do papel social da mulher, o estudo de Casagrande (2005), ao analisar
representações de gênero em livros didáticos de Matemática do ensino
fundamental nos anos de 1990-1993 e 2000-2003, identificou que não havia citação
de mulheres que contribuíram para o desenvolvimento científico e/ou matemático.

207
Com relação aos enunciados, as mulheres aparecem em
profissões/funções de cuidado, tais como, professora, enfermeira e dentista. Já os
homens, são representados em profissões como comerciantes e pintores,
reforçando a “função” de provedor da família. Dessa forma, a autora considera que,
até aquele momento, os “[...] livros analisados não incorporaram as transformações
nas relações sociais ocorridas nas últimas décadas” (CASAGRANDE, 2005, p.
179).
Até os dias atuais, ainda podem ser notadas diferenças, embora mais sutis,
em relação ao interesse e envolvimento das meninas com a Matemática. Dados
numéricos a respeito da proporção de mulheres que seguem carreiras relacionadas
às áreas de Matemática intensiva são um exemplo dessa condição. Dessa forma,
entende-se que o peso da tradição da educação feminina que se estabeleceu no
Brasil pode ser um viés para explicação do baixo interesse feminino por tais áreas,
de forma que ainda precisam ser realizadas pesquisas mais aprofundadas que
relacionem essas temáticas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após essa breve apresentação de fatos históricos, relacionados ao ensino


da Matemática no Brasil, por meio de um viés de gênero, alguns pontos principais
podem ser destacados. O primeiro consiste na existência de lacunas de
informações a respeito, ora da educação feminina, ora da masculina, em
determinados períodos históricos, fato que dificulta a realização de um estudo
relacional sobre a prática do ensino de matemática no país.
Um segundo ponto a ser ressaltado são as marcas de um ensino de
Matemática desigual a meninos e meninas, sendo que elas, por muito tempo,
estiveram às margens do conhecimento matemático. Tal condição pode ter
contribuído para a construção de estereótipos relacionados à aprendizagem e à
motivação matemática das meninas brasileiras. Nota-se que a análise de livros
didáticos, ainda nos dias atuais, indica a sub-representação feminina na

208
Matemática, a presença de crenças e estereótipos com relação ao desempenho de
meninos e meninas e, por vezes, reforçam a apresentação de papeis considerados
femininos e masculinos como sendo naturais.
Diante desse cenário, entende-se que apesar das várias mudanças pelas
quais a educação e as práticas educacionais passaram ao longo dos anos, a
tradição de desigualdade estabelecida no passado ainda pode ter reflexos na
problemática feminina com respeito à Matemática. Nesse sentido, torna-se
relevante a realização de pesquisas que investiguem de forma mais aprofundada
as relações e influências dessas desigualdades históricas no atual interesse das
meninas pela Matemática.

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211
Há participação de mulheres nas licenciaturas em exatas na Universidade
Federal de Rondônia?

Ana Beatriz Pinheiro Bruno


Rafaela Ferreira Afonso
Fundação Universidade Federal de Rondônia – UNIR – Brasil

Resumo

A busca por respostas sobre a contribuição das mulheres na ciência ao longo dos
tempos vem se tornando tema de pesquisas na atualidade e a necessidade de
compreender a atuação e a presença das mulheres atualmente nos cursos de licenciatura
de Universidades Públicas fizeram com que este trabalho fosse desenvolvido na
Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Inicialmente as mulheres eram vistas como
mães, por isso ocupavam o cargo de professoras, para assim educar as crianças assim a
sociedade criou profissões e carreiras que as mulheres são influenciadas a seguir. Visto
que existem diversos fatores que influenciam diretamente na hora de uma mulher decidir
qual curso irá fazer, entretanto vale ressaltar também que há inúmeras dificuldades
enfrentadas pelas mesmas ao iniciar uma graduação e em específico as licenciaturas em
exatas, tais como química, física e matemática não estão entre os preferidos das mulheres,
segundo a pesquisa do MEC, não estão entre os 20 mais procurados pelas mesmas.
Através de pesquisa documental e bibliográfica, os dados obtidos via e-sic foram tratados
e analisados, buscando identificar como as mulheres se fazem presentes nos cursos de
licenciatura em Ciências Exatas da UNIR. Ao analisarmos o número de mulheres nos
cursos observamos que não há uma equidade de gênero nas licenciaturas da Universidade
Federal de Rondônia.

Palavras-chave: Mulheres na Matemática, Igualdade de gênero, Licenciatura e


mulheres.

1. Contexto Social
Há alguns anos o papel da mulher na sociedade era visto como dona de
casa, que cuida dos filhos e do marido, conforme a modernização da sociedade, os
avanços tecnológicos, culturais e econômicos esse cenário da mulher vem
mudando constantemente, as mesmas vem lutando diariamente por seus direitos
e, ganhando seu espaço nas universidades e no mercado de trabalho.
A partir do século XIX algumas mulheres predominantemente brancas e da
alta sociedade começaram a ter acesso ao estudo, posteriormente as mulheres de
outras classes e etnias tiveram esse acesso. Durante muito tempo pensava-se que
seria apenas uma perda de tempo uma mulher estudar, pois a sua função na
sociedade era ser uma boa mãe.

212
Segundo Nogueira e Saavedra, os papéis sociais e estereótipos de gênero
influenciam sobremaneira as ações, o pensamento e as crenças do indivíduo, uma
vez que ele se encontra imerso em uma teia de relações socioculturais, nas quais
se movimenta visando atender, justamente, às expectativas depositadas sobre ele
e desempenhar a função que lhe foi atribuída.
1.1. O início no ensino superior
O início das mulheres nas universidades foi marcado por muitas lutas de
inclusão social, quando o que prevalecia era a velha cultura da maternidade quando
se falava em mulheres, com isso Guacira Louro (1997b) analisa a história da
transformação do magistério em uma profissão feminina. Os discursos do século
XIX que legitimaram a entrada das mulheres nas escolas estavam intimamente
ligados à função da maternidade, ou seja,

[...] se o destino primordial da mulher era a maternidade, bastaria pensar


que o magistério representava, de certa forma, a 'extensão da
maternidade', cada aluno ou aluna vistos como um filho ou uma filha
'espiritual'" (LOURO, 1997b, p. 450).

O contexto social em que ocorre a expansão do ensino superior é marcado


pela abertura do regime político ditatorial, pela liberalização sexual e pela quebra
de antigos 'tabus'. O movimento feminista começa a ressurgir no Brasil e a entrada
das mulheres no mercado de trabalho aparece também nas classes mais altas, nas
quais tradicionalmente o papel desempenhado pelo contingente feminino estava
ligado ao espaço doméstico e aos afazeres do lar.
Atualmente o número de mulheres em todos os níveis educacionais é maior
do que o de homens, neste contexto é importante analisar a inserção das mulheres
no âmbito educacional. Com a vinda da Família Real Portuguesa em 1822,
começou por alto a preocupação de proporcionar educação as mulheres,
fornecendo então o ensino primário para as meninas, que seria lecionado por
professoras, “Porém, devido à falta de professoras qualificadas e sem conseguir
despertar maior interesse dos pais, o ensino não chegou a abranger uma
percentagem significativa de alunas” (UNICEF, 1982 apud BELTRÃO; ALVES,
2009, p. 128).

213
A educação feminina no período Imperial ocorreu diante de uma situação
muito difícil, pois, houve poucos avanços, segundo Aranha (2006, p. 229), em
“algumas famílias mais abastadas, às vezes elas recebiam noções de leitura, mas
se dedicavam sobretudo às prendas domésticas, à aprendizagem de boas
maneiras e à formação moral e religiosa”. O objetivo principal ainda era prepará-las
para o casamento, pois as mulheres que conseguiam estudar aprendiam
principalmente coisas básicas para cuidar de uma família.
No final do século XVIII, as moças começaram a se especializar na carreira
do magistério, uma das possíveis profissões destinada à mulher e aceita pela
sociedade.
Os Estados Unidos foi o primeiro país a criar uma universidade exclusiva
para mulheres por volta de 1840, no Brasil o acesso ao ensino superior foi mais
tardio no fim do século XIX, Aranha (2006, p. 230) indicou que “a primeira mulher a
se matricular na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro foi Dona Ambrozina de
Magalhães, em 1881”. Já para Bezerra (2010, p. 4), a “primeira mulher a ingressar
na universidade no Brasil, foi no estado da Bahia no ano de 1887, formando-se pela
faculdade de medicina”. Para Beltrão e Alves (2009), foi somente em 1887 que Rita
Lobato Velho Lopes tornou-se a primeira mulher a obter o título de médica no Brasil,
ela foi autorizada pelo decreto nº 7247, de 19 de abril (1879) rubricado por D. Pedro
II, superando a discriminação da época.
Apesar da divergência nas informações, todas confirmam que o acesso da
mulher ao ensino superior só ocorreu nos anos de 1880 no Brasil e era necessário
autorização dos pais e governo.

2. As mulheres nas licenciaturas em ciências exatas


O padrão que a sociedade criou das profissões e carreiras que as mulheres
devem seguir influenciam diretamente na hora de uma mulher decidir qual curso irá
fazer, entretanto vale ressaltar também que há inúmeras dificuldades enfrentadas
pelas mesmas ao iniciar um curso superior, sendo que a maioria classifica os
cursos de exatas como os mais difíceis, e que consequentemente demandam mais

214
tempo da estudante, que possivelmente tem uma família para cuidar e não poderia
se dedicar tanto.
As licenciaturas são em sua maioria os cursos escolhidos pelas mulheres,
porém, em áreas de educação infantil, ou cursos voltados a ciências humanas.
Segundo pesquisas do MEC de 2017, o curso que teve maior presença feminina foi
pedagogia, contando com 660.917 matrículas em todo o país naquele ano. Os
cursos de química, física e matemática não estão entre os preferidos das mulheres,
segundo a pesquisa do MEC, esses cursos não estão entre os 20 mais procurados
pelas mesmas.
De acordo com Cramer, Neto e Silva (2002 pg. 26) [...] Na educação, a
participação da mulher é muito acentuada no ensino fundamental, no qual ocorre
uma identificação com o processo de aprendizagem e o afeto, ou seja, há uma
correlação entre o “ensinar“ e o “ofício de ser mãe”.
Segundo o Censo da Educação Superior de 2016, as mulheres, que são a
maior parte da população brasileira, representam 57,2% dos estudantes
matriculados em cursos de graduação no país. Ainda assim, este aumento não
acompanhou a proporção entre homens e mulheres nos cursos de ciências exatas.
Elza Furtado Gomide foi a primeira mulher a concluir um doutorado em
Matemática em uma instituição brasileira, a paulista se formou em Física em 1944,
na USP, e defendeu a tese de doutorado em Matemática no ano de 1952, também
na USP e em 1968, passou a chefiar o Departamento de Matemática da
universidade.
Visto que no Brasil a inserção das mulheres nas áreas das exatas ainda vem
sendo uma luta diária, o objetivo do trabalho é levantar dados da presença das
mulheres nas licenciaturas de exatas na Universidade Federal de Rondônia,
mensurando-os desde o início do curso, acompanhando o número de ingressantes
e concluintes.

3. Metodologia

Os cursos de Licenciatura em Ciências Exatas e Engenharias, da


Universidade Federal de Rondônia, serão objetos de estudos, através de pesquisa

215
exploratória documental e bibliográfica. Buscaremos analisar a participação das
mulheres nesses cursos.

A Fundação Universidade Federal de Rondônia foi fundada em 8 de julho de


1982. Atualmente a UNIR possui oito campi, localizados nos municípios de
Ariquemes, Cacoal, Guajará-Mirim, Ji-Paraná, Porto Velho, Presidente Médici,
Rolim de Moura e Vilhena. Sendo que apenas os campi de Porto Velho e Ji-Paraná
contam com licenciaturas na área de ciências exatas.

Para realizarmos a pesquisa, usamos a metodologia da análise histórica


documental. Essa técnica visa identificar, por meio de catálogos, registros
acadêmicos e/ou centros de documentos históricos relevantes para a pesquisa, que
servirão como fontes.

A pesquisa documental trilha os mesmos caminhos da pesquisa


bibliográfica, não sendo fácil por vezes distingui-las. A pesquisa bibliográfica utiliza
fontes constituídas por material já elaborado, constituído basicamente por livros e
artigos científicos localizados em bibliotecas. Esta pesquisa recorre a fontes mais
diversificadas e dispersas, sem tratamento analítico, tais como: tabelas estatísticas,
jornais, revistas, relatórios, documentos oficiais, cartas, filmes, fotografias, pinturas,
tapeçarias, relatórios de empresas, vídeos de programas de televisão, etc.
(FONSECA, 2002, p. 32).

Ainda sobre a metodologia de pesquisa, Bloch (apud Mariotto, 2009) ressalta


que muitos não se dão conta das dimensões dessa empreitada pois o historiador
reúne os documento, os lê, e

esforça-se por lhes pesar a autenticidade e a veracidade. Depois do que, e


só então, põe mãos à obra. Só há nisto um contratempo: ´e que jamais
historiador algum procedeu desta maneira. [...] Porque os textos, ou os
documentos arqueológicos, mesmo os mais claros na aparência e os mais
condescendentes, só falam (verdadeiramente) quando se sabe interrogá-
los.

Segundo Costa (2019), aprender a interrogar os documentos é uma tarefa


árdua, e pode tomar vários caminhos, não podendo, assim, prever qual o caminho

216
que será seguido, ou qual o procedimento que será utilizado. Independente do
caminho a ser seguido, será necessário arguir os documentos encontrados, além
de os interpretar à luz dos conhecimentos sociais em questão.

Os dados foram solicitados via E-Sic, sendo eles, número de discentes


matriculados e concluintes dos cursos de Matemática, Física e Química nos campi
Porto Velho e Ji-Paraná, desde o início dos cursos até o ano de 2020. Os dados
disponibilizados pela instituição foram reorganizados para uma melhor análise.

4. Resultados e discussões
4.1. Mulheres nas Licenciaturas da UNIR
A Universidade Federal de Rondônia foi criada em 1982 pela Lei nº 7011, de
08 de julho, após a criação do estado pela Lei Complementar nº 47, de 22 de
dezembro de 1981, os cursos de licenciatura em exatas estão concentrados nos
campi de Porto Velho e Ji Paraná.
4.2. Licenciaturas em Porto Velho
O curso de Licenciatura em Matemática de Porto Velho foi criado em 1983,
considerando a necessidade da maioria dos professores de Matemática que
atuavam nas Escolas do Estado não ter Formação Superior. Em 1987 foi criado o
Curso de Ciência com Habilitação em Matemática pela portaria 322 de 11.05.1987,
que atendia as disciplinas: Matemática, Biologia, Física, Química, além de Noções
Básicas de Geologia. O primeiro vestibular foi realizado para 40 vagas e o curso
funcionava no prédio da UNIR/Centro.
Em 1988, o curso foi transferido para o Campus José Ribeiro Filho e em
1996, após reuniões com o colegiado, o curso foi reestruturado devido à
insatisfação da comunidade acadêmica, em seguida foi encaminhada aos
conselhos superiores da UNIR, uma proposta curricular para a mudança do Curso
de Ciência com Habilitação em Matemática para Licenciatura Plena em
Matemática.
Os dados obtidos via e-sic foram de 2010 a 2020, conforme tabela abaixo:

Tabela 1 - Discentes matriculados Matemática

217
Ano Homens Mulheres Total
2007 31 9 40
2008 22 19 41
2009 27 17 44
2010 31 17 48
2011 22 18 40
2012 32 15 47
2013 27 17 44
2014 27 20 47
2015 30 19 49
2016 31 19 50
2017 23 22 45
2018 25 15 40
2019 35 9 44
2020 29 20 49
Total 392 236 628
Fonte: Elaborado pela autora, 2021.

Tabela 2 - Concluintes Matemática


Ano Homens Mulheres Total
2010 9 4 13
2011 6 3 9
2012 6 6 12
2013 4 4 8
2014 4 6 10
2015 3 3 6
2016 3 11 14
2017 6 7 13
2018 12 7 19
2019 5 1 6
2020 0 0 0
Total 58 52 110
Fonte: Elaborado pela autora, 2021.

218
O curso de Física no campus de Porto Velho é o segundo curso de Física
implementado no Estado, ele foi criado em 2007 e os dados disponibilizados foram
do início do curso até 2020.

Tabela 3 - Discentes matriculados em Física


Ano Homens Mulheres Total
2007 32 7 39
2008 34 7 41
2009 27 10 37
2010 16 19 35
2011 27 19 46
2012 39 11 40
2013 29 9 38
2014 35 8 43
2015 33 12 45
2016 33 12 45
2017 33 13 46
2018 29 10 39
2019 37 11 48
2020 33 12 45
Total 437 160 587
Fonte: Elaborado pela autora, 2021.

Tabela 4 - Concluintes Física


Ano Homens Mulheres Total
2010 1 0 1
2011 1 0 1
2012 4 3 7
2013 2 2 4
2014 0 3 3
2015 1 2 3
2016 3 5 8

219
2017 3 5 8
2018 0 3 3
2019 1 1 2
2020 0 0 0
Total 16 24 40
Fonte: Elaborado pela autora, 2021.

O curso de Química iniciou em 2002 no campus de Porto Velho, está ativo


até o ano atual, os dados abaixo relatam o históricos de entrada e saídas de alunos
do curso:

Tabela 5 - Discentes matriculados em Química


Ano Homens Mulheres Total
2002 26 17 43
2003 22 23 45
2004 27 23 50
2005 24 18 42
2006 28 24 52
2007 23 18 41
2008 15 36 51
2009 21 30 51
2010 14 40 54
2011 15 21 36
2012 11 13 24
2013 20 18 38
2014 11 20 31
2015 12 12 24
2016 16 16 32
2017 17 25 42
2018 13 21 34
2019 25 29 54
2020 16 27 43
Total 356 431 787
Fonte: Elaborado pela autora, 2021.

220
Tabela 6 - Concluintes Química
Ano Homens Mulheres Total
2005 0 0 0
2006 12 17 29
2007 5 2 7
2008 1 9 10
2009 7 9 18
2010 4 14 18
2011 4 6 10
2012 2 10 12
2013 6 9 15
2014 5 17 22
2015 0 1 1
2016 2 4 6
2017 6 6 12
2018 4 13 17
2019 1 2 3
2020 0 0 0
Total 59 119 180
Fonte: Elaborado pela autora, 2021.

4.3. Licenciatura em Ji- Paraná


O primeiro curso de Física implantado no Estado de Rondônia foi no ano de
1992 no campus de Ji-Paraná, contando com licenciatura e bacharelado. Abaixo
estão o quantitativo de alunos da licenciatura de 2002 a 2020, os dados anteriores
a 2002 não foram disponibilizados pela instituição.

Tabela 9 - Discentes matriculados em Física Licenciatura


Ano Homens Mulheres Total
2002.1 5 1 6
2002.2 15 5 20
2003.1 15 8 23

221
2003.2 11 1 12
2004.1 - - -
2004.2 29 9 38
2005.1 - - -
2005.2 36 26 62
2006.2 37 8 45
2007.2 46 19 65
2008.1 1 1 2
2008.2 23 16 39
2009.2 26 27 53
2010.2 0 2 2
2011.1 16 25 41
2011.2 2 1 3
2012.1 23 26 49
2014.1 38 24 62
2015.1 29 19 48
2016.1 27 30 57
2017.1 28 23 51
2018.1 24 19 43
2019.1 25 15 40
2020.1 14 11 25
Total 470 316 786
Fonte: Elaborado pela autora, 2021.

Tabela 10 - Concluintes Física Licenciatura


Ano Homens Mulheres Total
2009.1 1 0 1
2009.2 2 2 4
2011.1 2 1 3
2012.1 1 0 1
2012.2 3 3 6
2013.2 3 8 11
2014.2 4 4 8

222
2016.1 1 4 5
2016.2 2 0 2
2017.1 0 1 1
2017.2 2 1 3
2018.1 4 2 6
2019.1 2 4 6
Total 27 30 57
Fonte: Elaborado pela autora, 2021.

O processo de interiorização da UNIR foi no ano de 1988 e o primeiro curso


instituído foi a Licenciatura em Matemática no Campus de Ji-Paraná, inicialmente
como curso de Ciências com Habilitação em Matemática, formando professores
para atuarem apenas no então 1º grau (atualmente Ensino Fundamental) e em
1992 o curso passou a condição de Licenciatura Plena em Matemática e um depois
para Licenciatura em Matemática.
O curso de Matemática é ofertado no período vespertino e noturno,
dependendo do semestre de entrada, com o mesmo PPC. Nas tabelas abaixo é
apresentado o número de discentes matriculados e concluintes do ano de 2006 a
2020, dados anteriores não foram fornecidos pela instituição.

Tabela 11 - Discentes matriculados em Matemática


Ano Homens Mulheres Total
2006 28 14 42
2007 38 7 45
2008 22 17 39
2009 23 23 46
2010 28 31 59
2011 31 29 60
2012 15 15 30
2013.1 10 13 23
2013.2 21 29 50
2014.1 0 7 7
2014.2 19 30 49

223
2015.1 2 4 6
2015.2 15 20 35
2016.1 2 1 3
2016.2 14 14 28
2017.1 0 1 1
2017.2 14 17 31
2018.1 25 25 50
2019.1 10 11 21
2020.1 18 23 41
Total 335 331 666
Fonte: Elaborado pela autora, 2021.

Tabela 12 - Concluintes Matemática integral


Ano Homens Mulheres Total
2009.1 0 2 2
2010.1 2 0 2
2010.2 0 2 2
2011.1 4 0 4
2011.2 0 1 1
2012.1 0 0 0
2012.2 0 1 1
2013 - - -
2014 - - -
Total 6 6 12
Fonte: Elaborado pela autora, 2021.

Tabela 13 - Concluintes Matemática noturno


Ano Homens Mulheres Total
2010.2 2 0 2
2011.1 3 3 6
2011.2 2 1 3
2012.1 2 0 2
2012.2 1 3 4

224
2013.1 1 1 2
2013.2 1 5 6
2014.1 0 1 1
2015.1 0 1 1
2015.2 1 3 4
2016.1 4 4 8
2016.2 5 5 10
2017.1 0 0 0
2017.2 2 4 6
2018.1 5 4 9
2018.2 0 0 0
2019.1 4 5 9
2019.2 3 2 5
Total 36 42 78
Fonte: Elaborado pela autora, 2021.

Consideração final
A presença das mulheres no desenvolvimento da ciência ao longo da história
vem sendo discutida atualmente e o número de pesquisas sobre o tema vem
aumentando pois pouco se sabe sobre suas contribuições. Este trabalho busca
compreender a atuação e a participação das mulheres nos cursos de licenciatura
em Ciências Exatas da universidade pública no estado de Rondônia em um de seus
campi.
A partir dos dados apresentados na pesquisa conclui-se que no campus de
Porto Velho a matrícula de homens nos cursos de licenciatura é maior que a de
mulheres nos dois cursos de licenciatura, onde temos um total de 1185 homens e
827 mulheres ao longo do período pesquisado.
No campus de Ji- Paraná, houve uma mudança a partir do ano de 2008 onde
o número de mulheres passou a ser maior que o de homens matriculados, tal
mudança pode estar ligada a implementação de políticas públicas como o Reuni,
no entanto ainda assim o número de homens matriculados ao longo do período
analisado é maior, com total de 805 homens e 647 mulheres.

225
No entanto, percebe-se que mulheres ocupam grande parte da relação de
concluintes, onde o total de concluintes do campus de Porto Velho são 195
mulheres e 133 homens e do campus de Ji- Paraná, 69 homens e 78 mulheres, no
período pesquisado.
Uma das dificuldades encontradas para a realização deste trabalho foi a
ausência de dados antes de 2002, os dados não foram fornecidos via e-sic e
ausência de dados e pesquisas relacionadas ao estado de Rondônia, as mulheres
no estado de Rondônia e a busca por referencial bibliográfico sobre as mulheres
nas exatas.
O objetivo inicial do trabalho, de analisar a participação das mulheres ao
longo do curso, foi finalizado e a pesquisa está em andamento e a próxima etapa é
entrevistar egressas e professoras do curso de licenciatura em Ciências Exatas.

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226
Os 20 cursos superiores mais escolhidos pelas mulheres no Brasil. Disponível em:
<https://pronatec.pro.br/mec-divulga-os-20-cursos-superiores-mais-buscados-pelas-
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Departamento de matemática. Disponível em: <http://www.dmat.unir.br/pagina/exibir/2128>
Acesso em: 04 de Janeiro de 2021.

227
O APRENDIZADO DA MATEmÀTICA E OS ELEMENTOS Lúdico e sensorial
ALEM DOS LIMITES DA SALA DE AULA

Fátima Aparecida Kian97


Luís Delcides Rodrigues da Silva98

RESUMO
O presente artigo apresenta um panorama sobre o ensino da matemática de forma
maçante e demasiadamente concentrado em sala de aula. Os alunos para tomarem gosto
do aprendizado e perceber a sua aplicabilidade, especialmente no dia a dia, necessita
vivenciar as experiências na realidade, especialmente em atividades extra aula ou o
docente levar os estudantes até uma loja de materiais de construção, supermercado para
experimentar novas experiências. É necessário ter experiências extra classe para um
melhor aprendizado da matemática e a sua aplicabilidade no cotidiano? O estudo
apresenta a importância da matemática no cotidiano, o olhar dos objetos comuns como
tríades. Para isso, a partir de uma pesquisa qualitativa, de cunho bibliográfico, os caminhos
da leitura e do estudo literário foram traçados com bases nos ensinamentos de Charles
Sanders Pierce, um dos principais pensadores da Semiótica Americana, ao mencionar a
experiência de olhar para a estrada e o ensinamento de Lewis Carrol, com toda a sua
inteligência ao associar a história de Alice no País das Maravilhas com ensinamentos sutis
acerca da geometria espacial e os detalhes precisos acerca dos números e de suas
características através de uma trama prazerosa e envolvente como “Alice no País das
Maravilhas”. O objetivo do presente estudo é apresentar a importância da educação das
ciências exatas, especialmente fora dos limites da sala de aula ao proporcionar experiência
e, as considerações desta pesquisa é mostrar a aplicabilidade da matemática para os
alunos e a importância dos cálculos no dia a dia.

Palavras-chave: Aula. Experiência. História. Aprendizado.

INTRODUÇÃO

Para incentivar alguém ao aprendizado, especialmente no inicio da vida


escolar é preciso ter um atrativo para que o garoto seja incentivado a entender,

97 Universidade Federal do ABC (UFABC), fatima.kian@ufabc.edu.br


98 Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU), luisdelcides@gmail.com

228
participar e perceber como os exercícios praticados em sala de aula possuem uma
aplicabilidade para o dia a dia.
A presente pesquisa apresenta a importância da matemática no cotidiano.
Para aqueles que desejam ir para as humanas a fim de escapar da matemática, ela
nunca sairá do caminho e sempre estará sempre em algum lugar, seja no cálculo
das notas, na aplicabilidade de alguma regra legal e assim por diante.
Importante mencionar sobre a metodologia aplicada para a pesquisa. Em
primeiro plano, as seções expostas neste libelo foram frutos de uma revisão
bibliográfica com base nas pesquisas de Charles Sanders Pierce (1839-1914), um
dos pensadores da Semiótica Americana, e o qual possui uma forte ligação com a
matemática.
Outro autor a ser mencionado é Gilles Deleuze (1925-1995), ao tratar sobre
a lógica dos sentidos e nesta obra do mencionado autor, este faz uma menção
importantíssima ao estado de Puro Devir e o presente estudo trata sobre este
estado durante o aprendizado da matemática pelo estudante.
Por último, é importante mencionar sobre Lewis Carrol e a sua obra “Alice
no país das Maravilhas” uma experiência lúdico-sensorial, ao contar uma história,
ao envolver princípios e símbolos matemáticos e como estes exercem intensa
influência sobre o aprendizado dos estudantes de uma forma leve e prazerosa.
O objetivo é demonstrar a importância da experiência extra-aula. Não cabe
o ensino da matemática enclausurado em uma sala de aula, é preciso vivenciar
novas experiências e ir além dos limites da escola para dar mais sentido ao
aprendizado e estimular a percepção sensorial.

1. MATEMÁTICA NO COTIDIANO

Quem escolhe as humanidades é pra escapar da matemática. Logo a


matemática faz parte da vida, do cotidiano. Ao contar, fazer as contas das despesas
do lar, usa-se a matemática, ao consumir, comprar um bem, utiliza-se dos cálculos
numéricos e das operações precisas e, até mesmo, no ato de saber se passará ou

229
não de semestre ou para uma nova etapa em um curso é preciso ater-se a arte da
contabilização.
Há uma crise ao tratar sobre matemática, um trauma. Diante da sua
exatidão e de toda a sua justeza, a ciência dos números e cálculos algébricos
possui seu caráter humanístico e lúdico semiológico.
Ao fazer uma revisão de literatura acerca da educação matemática, é
importante citar o trabalho de Lewis Carrol, especialmente na aplicabilidade deste
com a história de “Alice no país das maravilhas”, em que a garota, ao querer ser
duas pessoas, em um estado de puro devir, conforme exemplificado por Deleuze
(1974, p.2) faz referência quando a personagem encontra-se na expectativa da
aquisição da chave.
É essa bidirecionalidade de Alice, mencionada por Carrol e Deleuze,
apresentada por jogos de sentidos e não sensos que caracteriza as figuras. Estas
apresentam-se não apenas pela trama da história, mas pelas tópicas e lógicas.
Ao concentrar-se pelas tópicas e lógicas. Há ligações entre pontos e
extremidades e há uma operacionalidade algébrica na construção textual de Carrol,
especialmente no momento que este descreve sobre uma caixa de vidro e o seu
olhar concentra-se neste recipiente, de uma forma a exemplificar a geometria
espacial para os alunos com dificuldade de compreendê-la.
Um exemplo de Carrol (2002, p.25) é sobre a “corrida de comitê” e diante
da curiosidade e da ausência de uma explicação teórica plausível, foi preciso
utilizar-se da prática. Este delimitou as pistas

Primeiro ele delimitou a pista de corrida como se fosse um tipo de


circulo (a forma exata não importa, ele dissera) então todo o
destacamento foi distribuído pela pista, aqui e ali. Não houve o
tradicional “Um, dois, três, já!”, mas todos começavam a correr
quando queriam e paravam quando queriam, dai não era fácil saber
quando a corrida terminava. Entretanto, quando eles já estavam
correndo há mais ou menos meia-hora, e já estavam quase secos,
o Dodo repetinamente gritou: “ A corrida já está
acabada!”(CARROL, 2002, p.25).

230
A exemplificação encontrada na trama de Carrol (2002) é um exemplo
ausente nas aulas de matemática. Há muita teoria, muita relação em sala de aula
e falta a vivência do dia a dia na realidade diária e especialmente tarefas extra
classe, onde o grupo de estudantes pode vivenciar a experiência diária para um
melhor aprendizado da álgebra.
A seção a seguir trata sobre as tríades. Como o dia a dia pode ser
importante para o aprendizado da matemática, especialmente na aplicabilidade de
seus conceitos, especialmente na construção civil, onde há erros crassos,
especialmente na aquisição de materiais.

2. TRIADES: UM OLHAR MATEMÁTICO NO APRENDIZADO

É importante mencionar acerca das tríades. Ao referenciar-se nos estudos


de Pierce (2005, p.10), há os enunciados, considerados exemplos de triplicidade e
estes se dividem em real, possível e necessário. Há nomes, proposições e
inferências e as respostas, afirmativa, negativa e incerta para uma pergunta.
Há três tipos de fatos: caracteres singulares, predicáveis de objetos
singulares; caracteres duplos ao referenciar-se aos pares de objetos e os plurais,
ao fazer referência a caracteres triplos.
Portanto:

Uma estrada com uma bifurcação é uma análogo do fato triplo,


porque põe três terminais em relação uns com os outros. Um fato
duplo é como uma estrada sem bifurcação; liga apenas dois
terminais. Ora, combinação alguma de estradas sem bifurcação
pode apresentar mais do que dois terminais; mas qualquer número
de terminais podem ser ligados por estradas que não possuem um
cruzamento por mais de três direções. (PIERCE, 2005, p.11)

Ao utilizar-se dos conceitos exemplificados por Pierce (2008), é justificável


o trabalho de conceitos simples, do dia a dia no ensino da matemática,
especialmente na ministração da matéria de geometria espacial, um simulacro para

231
alunos de formações básicas e um dos componentes de maior exigibilidade em
certames para as importantes universidades brasileiras.
Na observação das tríades e especialmente a sua aplicabilidade no
conceito da trigonometria e a geometria espacial, o aluno, especialmente de nível
fundamental e médio possui muitas dificuldades ao interpretar problemas. Daí, o
movimento bidirecional de insegurança e esta muitas vezes incompreendida pelo
professor em sala de aula, por causa do excesso de alunos.
Também é importante mencionar sobre a dificuldade dos professores em
aliar à teoria a prática, especialmente do uso do dia a dia da geometria espacial,
especialmente no cálculo de volumes. Inúmeros materiais de construção poderiam
ser preservados e reutilizados se os construtores tivessem a mínima noção em
aplicar os cálculos aprendidos na formação básica.
No trecho a seguir, será tratado acerca dos acontecimentos e os devires
em sala de aula, as insatisfações e as dúvidas, que por muitas vezes não são
sanadas pelo professor – seja pela falta de observação ou a dificuldade em ter uma
comunicação eficiente e direta com o aluno.

3. O PURO DEVIR DO ALUNO DE MATEMÁTICA

O puro devir, conforme relatado na primeira série de paradoxos


mencionados por Deleuze (1974, p.2), apresenta o exemplo da trama escrita por
Lewis Carrol, ao tratar sobre as categorias especiais e como a personagem Alice
não se torna apenas maior do que era, torna-se maior agora e menor antes.
Essa bidirecionalidade de Alice, descrita por Deleuze (1974) como o puro
devir, que avança e puxa nos dois sentidos ao mesmo tempo, acontece também
com o aluno do ensino básico, especialmente nas interpretações dos problemas
apresentados por seus professores.
Ao olhar para a distinção das dimensões das coisas limitadas e medidas,
freadas e um devir-louco, que nunca se detém, sempre se furtando ao presente e

232
coincide o futuro e o passado, esta descrita com lucidez por Platão, é reconhecida
essa dualidade que está oculta nos corpos sensíveis e materiais.
Conforme a descrição de Deleuze (1974, p. 3):

O paradoxo deste puro devir, com a sua capacidade de furtar-se ao


presente, e a identidade infinita: identidade infinita dos dois sentidos
ao mesmo tempo, do futuro e do passado, da véspera e do amanhã,
do mais e do menos do demasiado e do insuficiente, do ativo e do
passivo, da causa e do efeito. É a linguagem que fixa os limites (por
exemplo, o momento em que começa o demasiado), mas é ela
também que ultrapassa os limites e os restitui a equivalência infinita
de um devir ilimitado. (DELEUZE, 1974, p. 3)
.
Conquanto, é essa bidirecionalidade, com dúvidas e incertezas e, por
muitas vezes, por vergonha dos colegas, o garoto omite a conversa com o
professor. Ao levar a dúvida pra casa, a indignação e a ânsia para solucionar tal
exercício incomodam os tutores e daí, o desanimo e a frustração com o
aprendizado da matemática.

3.1 A ludicidade como aprendizado


3.1.1. O Campo de Críquete

Carrol (2002, p.84) apresenta uma riquíssima descrição do campo de


críquete da rainha. Alice, a personagem principal, ao adentrar ao jardim percebe
algo diferente: os nomes dos jardineiros eram chamados por números e em cada
intervenção uma história.
Toda essa trama descrita no campo de críquete é uma forma que Carrol
(2002) escolheu para o aprendizado do críquete e a importância do jogo no
aprendizado da matemática.
Alice, como personagem central da história, viveu todas as experiências do
campo de críquete e no enredo, com toda a riqueza de detalhes onde mexia com
as emoções tanto do fio condutor da história quanto do leitor, ao perceber todo o
movimento semiótico do jogo de críquete.

233
Para a personagem principal:

Alice pensou que ela nunca em sua vida vira um campo de críquete
tão curioso: ele era todo cheio de saliências e sulcos, as bolas de
críquete eram ouriços vivos e os tacos eram flamingos também
vivos. Os soldados curvaram-se e colocavam as mãos no chão para
fazer os arcos do jogo. (CARROL, 2002, p. 88)

A experiência participativa do estudante é de suma importância e serve de


estímulo para este perceber a necessidade do aprendizado da matemática. Não
um aprendizado estritamente teórico, maçante e sem vivência. É ter a experiência
do dia a dia a percepção sensorial do momento em uma brincadeira.

3.1.2 A Falsa tartaruga

Outro exemplo da mistura da brincadeira com a experiência do aprendizado


é a história de Alice e a Falsa tartaruga. Tudo começa com um encontro feliz entre
a personagem condutora da história e a Duquesa.
Após uma resposta dura de Alice, Carrol (2002, p. 91) faz menção a objetos
pontiagudos e explora bastante os objetos geométricos, com características
peculiares e a observação da personagem central quanto aos elementos presentes
na trama.
Em meio aos pensamentos individualistas de Alice, Carrol (2002, p.91),
trabalha sempre com o confronto e como o próprio Deleuze (1974, p.5) faz
referência às inversões como a contestação da identidade pessoal da personagem
central.
Há um trabalho de percepção quando some a voz da Duquesa, bem no
meio da fala moral e forte de Alice, e para a sua surpresa encontra a rainha, com
os braços cruzados e franzindo o cenho, ao misto de tempestade com raios e
trovões (CARROL, 2002, p. 92).
Outro exemplo da mistura do suspense com o trabalho matemático da
geometria, especialmente ao usar a descrição de objetos pontiagudos, com a

234
percepção e a troca de personagens, especialmente no trabalho de sonoridades
para aguçar a capacidade sensorial da criança em perceber os movimentos.

3.2 O aprendizado sensorial

Ao ler a trama de Carrol (2002) em “Alice no país das maravilhas”, não é


simplesmente uma história para contar para crianças. É perceber a riqueza de
detalhes e como um matemático utiliza-se de tantos recursos semióticos para o
ensino da matemática.
Para Pierce (2005, p. 17) a mente sintetiza não apenas pelas atrações
interiores, mas pelo interesse da inteligibilidade, no interesse do próprio “Eu penso”
sintetizador.
Ou seja: “a mente faz através da introdução de uma ideia que não está
contida nos dados e que produz conexões que estes dados, de outro modo, não
teriam” (PIERCE, 2005, p.18). O exemplo é um trabalho de um poeta e de um
novelista ao escolher certas afinidades as quais a mente atribui uma certa
aprovação.
Ao Aplicar no aprendizado diário, da escola, é preciso aliar estes conceitos
ao dia a dia. Não basta apenas concentrar esforços em sala de aula, dar a aula
maçante, sem a mínima experiência sensorial, especialmente ao estimular a
percepção do aluno com a realidade diária.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O conteúdo teórico é apresentado na maioria das vezes e este se concentra


na sala de aula. Falta para a escola básica conciliar os conceitos teóricos e liga-los
com a prática do dia a dia.
A dificuldade é presente, especialmente na aquisição de materiais,
mensuração de itens de construção civil e até mesmo para conferir a aferição de

235
um terreno para uma situação de atendimento judicial. Fatores externos da vida do
professor, especialmente os particulares se sobrepõe ao trabalho e por muitas
vezes não há uma entrega e uma comunicabilidade adequada na sala de aula.
Há muita teoria, muita relação em sala de aula e falta a vivência do dia a
dia na realidade diária e especialmente tarefas extraclasse, onde o grupo de
estudantes pode vivenciar a experiência diária para um melhor aprendizado da
álgebra.
Os professores e as dificuldades em aliar à teoria a prática, especialmente
do uso do dia a dia da geometria espacial, especialmente no cálculo de volumes.
Materiais, originários da construção civil ou ingredientes e alimentos poderiam ser
preservados, reutilizados e poupados se a população em si, tivesse o hábito de
fazer contas, calcular e fossem incentivadas para um aprendizado prático da
matemática.
A ausência da comunicabilidade reflete no desinteresse do aluno. O sofrível
contexto familiar já é um fator desmotivador para a criança ir até a sala de aula e,
em um estado de exceção, onde a falta de prioridades, especialmente dos pais, ao
investirem em uma conexão de internet de qualidade ou por deficiências técnicas
locais, resulta na evasão escolar e na premissa da falta de utilidade diária para usar
determinado exercício transmitido pelo professor.
Não dá para escapar da matemática. Ela faz parte do dia a dia e é a
necessidade diária de qualquer pessoa. Seja no cálculo da nota e até na compra
de um produto, a elaboração da receita e na aferição de um material para a reforma
da casa, o cálculo algébrico está sempre por perto.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARROL, Lewis. Alice no País das Maravilhas. _Ed. São Paulo: Editorial Arara
Azul, 2002. Disponível em: http://www.editora-arara-azul.com.br Acesso em 29 de
dez de 2020.

DELEUZE, Gilles. A Lógica do Sentido. _ed. São Paulo: Perspectiva Ed. Da


Universidade de São Paulo, 1974.

236
GONÇALVES, Talita da Cunha; et.al. Identificação de lacunas no processo de
aprendizagem dos conteúdos de geometria no ensino médio pelo método de
Van Hiele. Revista Eletrônica de Educação Matemática REVEMAT ,
Florianópolis, v. 15, p. 01-20 , jan./dez., 2020 Universidade Federal de Santa
Catarina. ISSN 1981- 1322. DOI: https://doi.org/10.5007/1981-1322.2020.e74525
Acesso em 29 de dez de 2020.

PIERCE, Charles Sanders. Semiótica. _ed. São Paulo: Ed. Perspectiva editora
da Universidade de São Paulo, 2005.

237
O PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO EDUCACIONAL (PDE) NA
FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE MATEMÁTICA DE MARINGÁ
dando voz às memórias

Raissa Araujo de Oliveira99


Maria Elena de Oliveira Valentim100
Sandra Regina D'Antonio Verrengia101

RESUMO
O Programa de Desenvolvimento Educacional - PDE, implantado a partir do ano de 2007,
constitui-se em um sistema de formação continuada desenvolvido pelo Governo do Estado
do Paraná visando a melhoria da qualidade da educação, a valorização profissional e a
progressão de carreira dos docentes. Com intuito de resgatar informações históricas a
respeito da formação dos professores de Matemática de Maringá no PDE, bem como, de
mostrar quais os impactos desse programa na vida dos docentes e, em sua prática de sala
de aula é que propomos esta pesquisa de natureza qualitativa e cunho exploratório que
têm como proposta metodológica um levantamento bibliográfico a respeito do tema e a
aplicação de entrevistas semiestruturadas realizadas via Google Meet seguindo os
princípios da História Oral. De acordo com os relatos obtidos concluímos que a estrutura
do PDE deu suporte para que os docentes pudessem, a partir dos momentos de estudo,
inserções na Universidade e reflexões teórico-práticas, repensar sua prática, melhorando
assim, o trabalho desenvolvido em sala de aula.

Palavras-chave: Programa de Desenvolvimento Educacional. Formação de


professores. História Oral.

INTRODUÇÃO

99
Universidade Estadual de Maringá (UEM). rayyyisa.oliveira.raj@gmail.com
100
Universidade Estadual de Maringá (UEM). ra93290@uem.br
101
Universidade Estadual de Maringá (UEM). srdantonio@uem.br

238
O Programa de Desenvolvimento Educacional (PDE) foi um programa
destinado à formação de professores efetivos que atuam nas escolas públicas do
Estado do Paraná. Foi idealizado durante a elaboração do Plano de Carreira do
Magistério por meio da Lei Complementar nº. 103 de 15 de março de 2004 e,
implantado no ano de 2007, com o objetivo de proporcionar a melhoria da qualidade
da educação, a valorização profissional e a progressão de carreira dos docentes
conforme o artigo 20 da Lei Complementar nº103/2004:

Fica instituído, no âmbito da Secretaria de Estado da Educação do


Paraná, o Programa de Desenvolvimento Educacional – PDE,
destinado ao professor, com o objetivo de aprimorar a qualidade da
Educação Básica da Rede Pública Estadual (PARANÁ,
GOVERNO, 2004, p.05, apud JOST, 2011, p. 5).

Antes da implantação do PDE os docentes da rede Estadual de Ensino do


Paraná tinham suas carreiras estagnadas no nível II, mesmo após a conclusão de
seus mestrados e doutorados, pois esses não eram considerados pela Secretaria
de Educação do Estado para avanço de carreira. Contudo, após muitos embates
entre professores, sindicato e governo o PDE passa a ser a garantia de ascensão
dos educadores para o nível III.
Neste trabalho nosso intuito será o de resgatar informações históricas sobre
a formação dos professores de Matemática de Maringá no PDE, bem como, mostrar
a importância do programa e as mudanças que ocorreram na prática desses
profissionais a partir do relato das experiências vivenciadas por esses docentes.
Consideramos essa uma pesquisa de natureza qualitativa, visto que nosso
maior interesse recai sobre o relato desses professores, isto é, na explanação de
suas vivências a partir do projeto, na descrição das mudanças ocorridas em sua
prática docente a partir do PDE.
Com vistas a descrever tais experiências e dar voz a esses sujeitos
utilizamos como recurso uma entrevista semiestruturada com questões elaboradas
previamente, realizadas por meio de videochamadas com dia e horário agendado
via Google Meet seguindo alguns dos princípios da História Oral. Essas entrevistas
foram gravadas, transcritas e encaminhadas aos docentes entrevistados para que

239
pudessem ler, mudar o que achassem necessário e, por meio do preenchimento do
termo de consentimento livre e esclarecido - TCLE, autorizar o uso das informações
nelas destacadas.

O PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO EDUCACIONAL (PDE)


Como evidenciado nas pesquisas de Hochuli (2011), Jost (2011), Nesi
(2016), Rhea (2018), a criação e implantação do PDE foi uma iniciativa do Governo
do Estado do Paraná visando não só atender às solicitações de professores e do
sindicato com relação a uma política de elevação na carreira docente para o nível
III, como também a criação de um programa de formação continuada que tinha
como objetivo a melhoria da qualidade de educação do Estado.
A primeira seleção do PDE ocorreu no ano de 2006 coordenada pela
Universidade Estadual de Londrina. A seleção contou com duas etapas: a primeira
uma prova objetiva e de redação com caráter eliminatório e a segunda uma prova
de títulos com caráter classificatório. Posteriormente, a seleção dos candidatos
ficou a cargo da Secretaria de Educação e Esportes do Paraná -SEED/PR sendo
essa realizada a partir de editais específicos publicados anualmente com critérios
definidos pela SEED/PR.
Em 20 de julho de 2010 a Lei Complementar nº. 130/2010 regulamentou o
Programa PDE tornando-o uma política educacional de caráter permanente que
previa o ingresso anual de 3% dos professores da rede por meio de processo
seletivo estabelecido pela SEED/PR.
Inicialmente, a seleção para o PDE admitia somente professores que
estavam no Nível II Classe 11 do Plano de Carreira, tornando-se assim, a única
forma de ascensão para o Nível III. A partir da Lei Complementar nº. 130/2010
docentes que se encontravam no Nível II, Classe 8 de suas carreiras poderiam
também participar da seleção e, se aprovados, ingressar no programa.
Os professores aprovados no processo de seleção para a entrada no PDE
tiveram a redução de suas atividades docentes durante os dois anos em que
participaram do programa. No primeiro ano, o afastamento das atividades era de

240
100%. Nesse período, os docentes participavam de formações dentro das
Universidades conveniadas com o programa e, recebiam orientação de um
professor das Instituições Educacionais Superiores (IES) para elaboração de suas
propostas de intervenção na escola, isto é, partindo de uma problemática
identificada pelo docente em sua disciplina ou local de atuação o professor da IES
o orienta com relação a seu objeto de estudo contribuindo com seus conhecimentos
a respeito do referencial teórico e dos encaminhamentos metodológicos mais
pertinentes para essa proposta de intervenção.
No segundo ano, o afastamento era de 25% de sua carga horária docente
sendo este, correspondente às horas destinadas à implementação dessas
propostas no interior das escolas e a elaboração de seu trabalho final orientado
pelos professores das IES. Durante este período, o professor PDE orientava
também um Grupo de Trabalho em Rede (GTR), uma proposta de formação
continuada à distância para os professores do Estado do Paraná, onde socializam
seus estudos e produções, projeto e materiais didáticos, desempenhando o papel
de tutores na implementação do projeto de intervenção na escola.

O formato do Programa de estudos, do PDE, se estrutura a partir


de três eixos: a proposta de estudo direcionada pelos
professores orientadores das Instituições Educacionais
Superiores; a elaboração de materiais didáticos para o uso nas
escolas; a orientação dos Grupos de Trabalho em Rede - GTRs
com a finalidade de compartilhar e debater o projeto do
professor participante (JOST, 2011, p. 6).

Com relação ao formato do programa PDE ele se estrutura a partir de


três eixos conforme representado na figura 1 onde se encontram descritas as
atividades desenvolvidas no programa.

Figura 1: Atividades a serem desenvolvidas no PDE.

241
Fonte: Nesi (2016), p.5.

No Eixo I denominado Atividades de Integração Teórico-Práticas estão


incluídas as atividades de planejamento do Projeto de Intervenção na Escola;
discussão dos objetivos, da fundamentação teórica, das estratégias de ação, do
cronograma e das referências; elaboração de um material didático, enquanto
estratégia metodológica, que sirva aos propósitos de seu Projeto de Intervenção
Pedagógica na Escola; Implementação do Projeto de Intervenção Pedagógica na
Escola e o Artigo Final com o objetivo de divulgar e socializar o trabalho
desenvolvido pelo Professor PDE.
O Eixo II é o eixo das Atividades de Aprofundamento Teórico que, como o
próprio nome já diz, visa o aprofundamento teórico das questões educacionais em
geral e das questões específicas das disciplinas que compõem o currículo da
Educação Básica da Rede Estadual objetivando ampliar, aprofundar e atualizar os
seus conhecimentos. As atividades desenvolvidas incluem cursos, seminários,
encontros de área, eventos de inserção acadêmica e apresentação do Artigo Final
dos professores PDE à comunidade acadêmica e aos diferentes profissionais da
Área da Educação, para validação do Artigo Final pelo grupo de professores
Orientadores da disciplina/área.
O Eixo III é o eixo das Atividades Didático-Pedagógicas com Utilização de
Suporte Tecnológico em que o professor PDE participa de formação tecnológica

242
para aprimorar o uso de recursos tecnológicos para o desenvolvimento das
atividades previstas no Programa, como a tutoria no Grupo de Trabalho em Rede.
O documento síntese de 2014 do PDE destaca que,

O PDE assume os seguintes pressupostos: a) Reconhecimento


dos professores como produtores de conhecimento sobre o
processo de ensino e aprendizagem. b) Organização de um
programa de formação continuada atento às reais necessidades
de enfrentamento de problemas ainda presentes na Educação
Básica. c) Superação do modelo de formação continuada
concebido de forma homogênea e descontínua. d) Organização
de um programa de formação continuada integrado com as
instituições de ensino superior. e) Criação de condições
efetivas, no interior da escola, para o debate e promoção de
espaços para a construção coletiva do saber (PARANÁ, 2014,
p. 2 apud HOCHULI, 2011, p. 16).

Com relação aos custos ao governo para o programa ocorrer estão: a


bolsa auxílio do professor PDE, o pagamento de seus proventos de forma
integral, o pagamento de um professor temporário para ministrar as aulas no
lugar do professor afastado e, também, a construção de prédios dentro das
Universidades para atender os professores da rede. Segundo Hochuli (2011)
estes prédios foram construídos na UEM (Maringá), UNICENTRO (Guarapuava
e Irati), UENP (Jacarezinho e Cornélio Procópio), UEPG (Ponta Grossa),
UNIOESTE (Cascavel e Marechal Cândido Rondon) e UEL (Londrina).
Com base no que foi exposto sobre o Programa de Desenvolvimento
Educacional PDE é inegável o valor e relevância que o mesmo proporciona para
a carreira do professor e para a melhoria da educação Básica no geral por meio
dos projetos desenvolvidos que são uma forma de tentar solucionar problemas
presentes nas escolas e, ainda pela partilha desses materiais com outros
professores durante os tutoriais nos GTRs e no site da Secretaria de Educação
do Estado do Paraná onde são disponibilizados as propostas e artigos finais
desenvolvidos no programa.

METODOLOGIA DE PESQUISA

243
Segundo D'Ambrosio (2004, p.12) a pesquisa qualitativa “tem como foco
entender e interpretar dados e discursos” o que está sendo feito neste projeto por
meio da interpretação das falas dos professores participantes do PDE.
De acordo com Albert (2011, p. 155) a História Oral é uma metodologia de
pesquisa e de constituição de fontes que consiste na realização de entrevistas
gravadas com indivíduos que participaram de, ou testemunharam, acontecimentos
e conjunturas do passado e do presente.
A História Oral busca

[...] acrescentar memórias e vozes aos documentos tradicionais que


são fontes de pesquisa em História. A história oral não carrega
dentro da Educação Matemática apenas a noção de que privilegia
relatos orais que são textualizados, mas sim a noção de que não
há uma história verdadeira e que há uma multiplicidade de olhares
que devem ser registrados e interpretados (Borba, 2004, p.5).

Ainda Segundo Albert (2011, p.165) “uma das principais riquezas da História
Oral está em permitir o estudo das formas como pessoas ou grupos efetuaram e
elaboraram experiências, incluindo situações de aprendizado e decisões
estratégicas.” Com base nos conceitos apresentados pelos autores percebemos
que a História Oral é de suma importância para o desenvolvimento desse projeto
que tem como objetivo resgatar informações históricas sobre a formação dos
professores de Matemática de Maringá no PDE e de seus apontamentos com
relação a mudança em sua prática docente utilizando entrevistas semiestruturadas.
A entrevista semiestruturada é composta por perguntas elaboradas pelos
entrevistadores mas que não precisam ser feitas obrigatoriamente, deixando o
entrevistado à vontade para que conte a sua história e, caso os entrevistadores
achem necessário, sejam feitas. Escolhemos essa forma de entrevista para que os
professores participantes se sentissem o mais à vontade possível em relatar suas
experiências durante e depois do programa, bem como as influências deste em sua
prática docente posterior. Após os procedimentos realizados, já relatados na
introdução, pudéssemos fazer a análise dos dados que será apresentada a seguir.

244
DANDO VOZ ÀS MEMÓRIAS
Nesta seção temos a intenção de descrever trechos das entrevistas dos
professores e como o PDE contribuiu com a sua atuação, segundo seus
depoimentos. Os dados que aqui constarão serão referentes ao relato de duas
professoras que autorizaram previamente a divulgação de suas entrevistas. Vamos
nos referir a elas como professora A e professora B. Mas antes de trazer trechos
das entrevistas para o diálogo, exibiremos no quadro 1, as perguntas que foram
feitas aos professores nas entrevistas que baseiam a escrita desta seção.

Quadro 1: Perguntas da entrevista semiestruturada.

1. Fale um pouco sobre você (quem é - apresentação; qual sua formação, porque
escolheu essa profissão; o que a docência significa para você)
2. Qual foi seu ano de ingresso no programa PDE?
3. Quais critérios avaliativos foram utilizados para compor sua pontuação e classificação
de entrada no programa?
4. Sobre o período de formação no Programa:
❏ Como foi?
❏ Destaque os aspectos relevantes dessa formação.
❏ Destaque os aspectos limitantes dessa formação.
❏ De que forma os conhecimentos teórico metodológicos contribuíram com seu
fazer em sala de aula? E com a elaboração de sua proposta de
implementação?
❏ Como foi o período de construção de sua proposta?
❏ De que forma os encontros de orientação colaboraram com o resultado final
do trabalho a ser desenvolvido em sala de aula e da produção do artigo final?
❏ Sobre os encontros de orientação destaque os aspectos positivos e
limitantes.
❏ Em que escola se deu a implementação de sua proposta pedagógica? Para
que turma?
❏ Quais os aspectos positivos e limitantes da implementação?
❏ Você gostou dos resultados?
❏ O trabalho mudou sua forma de conduzir as aulas nas demais turmas em que
leciona?
❏ O trabalho contribuiu com sua formação?
❏ Quais foram os resultados obtidos com a implementação de sua proposta?
❏ O GTR - grupo de trabalho em rede que você coordenou trouxe algo novo e
significativo para finalização de sua proposta?
❏ A experiência vivenciada teve continuidade pós PDE ou foi apenas utilizada
para a conclusão do programa?

245
❏ Como você avalia a nova proposta de formação do PDE?
❏ Descreva o significado dessa experiência em sua vida profissional.

Fonte: as autoras.

A primeira questão foi feita com a intenção de entender um pouco mais


sobre o processo de formação docente das professoras e porque escolheram
lecionar a disciplina de Matemática. A professora A sempre gostou muito de
Matemática mas, quando entrou no curso, ainda não sabia se realmente queria dar
aula. Foi durante os estágios da graduação que teve esta certeza. Fez graduação
na FAFIMAN (Fundação Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Mandaguari)
em Mandaguari e se formou em 1997, um ano depois começou a lecionar, passou
em um concurso e em seguida já assumiu. Fez duas pós-graduações e tentou um
mestrado na área da educação mas não conseguiu entrar.
A professora B fez o ensino médio com técnico em magistério porque era
o único curso que tinha em sua cidade no período diurno e, também a partir dos
estágios que realizou, começou a gostar do ensino. Fez graduação em Ciências de
primeiro grau na FAFIPA em Paranavaí e iniciou como professora de Ciências,
depois fez uma complementação em Palmas na FACEPAL e então começou a dar
aulas de Matemática.
Na segunda e terceira questões as professoras A e B tiveram respostas
muito parecidas já que ambas ingressaram no PDE em 2014 e tiveram como critério
para ingresso uma prova de títulos como graduações, pós-graduações, e cursos.
Com relação à questão 4 optamos por dividir em alguns aspectos quanto a
formação, a proposta de implementação, os resultados da implementação, o que
este tempo fora de sala influenciou na prática docente das professoras e sobre as
contribuições dos grupos de trabalho em rede.

A formação

246
No aspecto da formação tínhamos a intenção de entender como foi para as
professoras voltar para a sala de aula como alunas e, identificar como esse período
contribuiu com a formação delas.
A professora A comparou diversas vezes as aulas do PDE com as aulas do
mestrado e afirmou “aprendi muita coisa no curso para mim foi uma aprendizagem
[...] como se fosse um mestrado mesmo.”
A professora B relatou que no começo sentiu um pouco de dificuldade mas
que entendeu que precisava ser uma coisa de cada vez e, por seu relato mostra
que foi superando essas dificuldades e aprendendo muito: “Sim, de início assim eu
me senti um pouco perdida, tinham muitas informações, muitas mesmo. Eu não
entendia o que era, tinha a parte de artigo, implementação, projeto.” “[...] adquiri
muito conhecimento [...] Melhorei muito na forma de conduzir minhas aulas, a
metodologia, o conhecimento que eu adquiri, as novas metodologias que eu
conheci e poder assim interagir melhor com o aluno que deixou de ser
simplesmente o ouvinte e passou a ser o ator. ”
Por meio dos relatos obtidos podemos perceber pelas falas das docentes
que voltar para a sala de aula fez com que se renovassem, e aprofundassem as
metodologias de ensino para melhorar a sua forma de conduzir as aulas e, além
disso, que as aulas ajudaram na elaboração da produção didático-pedagógica.

A Elaboração da Proposta
Sobre a elaboração das Propostas de Intervenção a professora A relata
que “Quando a gente teve que selecionar o projeto, um tema para a gente
pesquisar, [...] na aula de matemática a gente sabe que a maioria dos alunos têm
muita dificuldade, você explica, explica e eles não entendem. Então eu queria ter
uma metodologia que eu pudesse usá-la na sala de aula, mas que os alunos
tivessem mais facilidade no entendimento do conteúdo. O meu orientador [...] pedia
pra gente ir lá a cada 15 dias, [...] eu ia praticamente quase toda semana porque
o professor falava que tinha que tirar as dúvidas, então tudo que eu fazia que ele
achava que não tava bom eu já arrumava em seguida”.

247
A professora B relata que “[...] primeiramente, eu tive que levantar uma
problemática dentro da escola, dentro da matemática e qual seria o tema e o que
esse tema ia ajudar na resolução daquela problemática. [...] Escolhi a problemática,
trouxe para a professora [...] e a partir daí eu fui orientada qual era a melhor
metodologia para trabalhar com esses alunos, foram traçados os objetivos e todas
as etapas daí.”
A escolha da proposta é para ser algo que as professoras vivenciam em
sala de aula, algo que notam que os alunos têm maior dificuldade e após essa
escolha podemos perceber pela fala das professoras a importância do professor
orientador da IES (Instituição de Ensino Superior) para direcionar o
encaminhamento da proposta escolhida e a melhor forma de trabalhar-lá. Outro
ponto relevante nesta questão foi com relação da fala da professora D que explica
que na primeira edição do PDE foi proposto aos professores elaborarem um folhas
onde deveria interligar três disciplinas, mas que pela dificuldade encontrada pelos
professores, já foi excluído no mesmo ano. Contudo, ressaltamos que essa
proposta parece, também, muito interessante por ser um trabalho interdisciplinar
ligando outras áreas de conhecimento a Matemática.

Sobre a implementação da proposta


Quando questionada sobre os resultados a professora A respondeu que
“Sim, eu gostei muito. [...] a minha intenção era que os alunos quisessem estudar,
não ficassem com aquela recusa. [...] então quando o professor ia trabalhar [...] eles
já ficaram entusiasmados porque depois eles iam ter toda essa prática. Então tem
resultado sim.”
A professora B afirmou que os resultados foram o que ela esperava “[...]
percebi que com esse trabalho, os pontos positivos, pra mim foi a questão do
conhecimento e o melhor direcionamento das minhas aulas e para os alunos levou
a uma maior reflexão sobre o uso indevido das redes sociais.”
Desde modo podemos perceber que os professores tiveram resultados
satisfatórios com relação aos seus objetivos e que além do conhecimento que os

248
professores adquiriram para sua prática docente o PDE também possibilitou
diferentes reflexões para os alunos por meio dos projetos que influenciam em
diferentes aspectos na vida dos mesmos.

Sobre as mudanças na prática docente


Sobre as mudanças na prática de sala de aula depois da participação no
PDE a professora A afirmou que “Eu fiquei esse tempo afastada e aí também assim
na aula no PDE com os professores sempre nós tínhamos aquele momento de todo
mundo relatar sobre as suas dificuldades, relatar também o objetivo do seu projeto,
porque que estavam querendo isso, então a troca ali ajudou bastante porque eu
lembro que eu era muito de explicar e o aluno tinha que entender e aí eu fui
melhorando com isso.’’
A professora B afirmou que “E é óbvio eu mudei definitivamente, eu mudei
minha metodologia em sala de aula, a condução, a maneira de conduzir as aulas.”
De uma forma geral, depois da participação no programa as professoras
relataram mudança em sua prática em sala de aula depois do PDE, o que evidencia
a importância desse período de afastamento de sala de aula para que o professor
consiga se dedicar aos estudos e ter uma melhor formação.

Grupos de Trabalho em Rede (GTR)


Quando questionada se houve contribuições do Grupo de Trabalho em
Rede (GTR) para seu trabalho, a professora A afirma que “Sim, eu acredito que
todos eles as experiências que quando você conversa você depois aplicar [...] tudo
que eu fico sabendo que eu vejo que tem resultado eu aplico isso daí na escola.”
A professora B afirma que “ [..] tive bastante participação, o meu grupo foi
um grupo que poucos alunos desistiram e isso é muito importante quando a gente
está trabalhando em rede, [...] como é um grupo geralmente de professores que
estão trabalhando a minha maior dificuldade foi a falta de leitura dos materiais que

249
a gente coloca lá para eles poderem ter acesso, eles não lêem, tentam responder
sem fazer a leitura e aí as respostas fugiam um pouco do assunto.”
Como afirmam as professoras, os GTRs contribuíram para a troca de
experiências e didática tanto como tutores quanto como professoras da Educação
Básica. Alguns docentes que participavam tentavam responder as questões sem
ler os textos mas, os que realmente participavam, implementavam as propostas em
suas salas mesmo com algumas alterações.
A partir desses relatos podemos concluir que as aulas que os professores
tiveram nas IES durante o PDE proporcionaram um aprofundamento em métodos
e metodologias que, além de ajudarem na elaboração, implementação e finalização
da proposta, fizeram com que os professores mudassem sua conduta de sala de
aula tentando dinamizar as mesmas e proporcionar uma maior interação dos alunos
com os temas trabalhados em sala de aula o que, no geral, contribuiu com o
entendimento e compreensão desses alunos frente aos conteúdos matemáticos
estudados.

CONCLUSÃO
A partir dessa pesquisa podemos concluir que o PDE é um programa de
suma importância na carreira do professor, bem como para a educação, visto que,
proporciona ao docente a possibilidade de se dedicar exclusivamente durante um
ano aos estudos e a se aprofundar em novos métodos e metodologias, refletindo
assim, sobre sua prática docente a partir da implementação de novas proposições
de ensino. O PDE também desafia esses professores a buscarem soluções para
problemas encontrados em sala de aula, ao mesmo tempo que melhora seu salário
a partir da possibilidade de avanço para o nível III da carreira docente.
Outros aspectos relevantes a serem aqui também destacados são com
relação a mudança que ocorre dentro de sala de aula e, as contribuições desta na
formação do aluno promovendo assim, a melhoria da educação desses espaços
escolares. E, o fato de os professores compartilharem esses projetos com outros
docentes por meio das tutorias nos Grupos de trabalho em rede - GTRs e, depois

250
de concluídos os trabalhos finais os mesmos serem disponibilizados no site da
Secretaria de Educação do Estado do Paraná onde podem ser acessados por todos
que tiverem interesse no tema. Tais fatos só reforçam a amplitude e importância do
PDE e ressaltam a necessidade de sua retomada em caráter presencial com a
ligação entre Universidades e a Educação Básica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBERTI, V. História dentro da História. In: PINSKY, C. B. Fontes históricas. São


Paulo: Contexto, 2011.

BORBA, Marcelo de Carvalho; ARAÚJO, Jussara de Loiola. Pesquisa Qualitativa


em Educação Matemática: notas introdutórias. In: BARBOSA, Marcelo de Carvalho;
ARAÚJO, Jussara de Loiola. Pesquisa Qualitativa em Educação Matemática. 6.
ed. São Paulo: Autêntica, 2019.Introdução. p. 23-29.

D’AMBROSIO, U. Prefácio. In: BORBA, M. de C.; ARAÚJO, J. de L. Pesquisa


qualitativa em Educação Matemática. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

GARNICA, A. V. M. História Oral e Educação Matemática. In: BORBA, M. de C.;


ARAÚJO, J. de L. Pesquisa qualitativa em Educação Matemática. Belo Horizonte:
Autêntica, 2004.

HOCHULI, Elisângela Belniaki. PDE: programa de desenvolvimento educacional


do paraná. 2011. 46 f. Monografia (Especialização) - Curso de Especialização em
Políticas e Gestão da Educação da Universidade Federal do Paraná, Universidade
Federal do Paraná, Curitiba, 2011.

JOST, Araci. PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO EDUCACIONAL – PDE.


POLÍTICA PÚBLICA DE FORMAÇÃO CONTINUADA DO ESTADO DO PARANÁ:
limites e perspectivas. In: CONGRESSO NACIONAL DE EDUCAÇÃO - EDUCERE,
10, 2011. Curitiba: Pucpr, 2011. p. 3802-3813.

NESI, Elisângela Rovaris. PDE/PR: os limites e as possibilidades de uma


formação teórico-metodológica do professor de matemática em um programa de
formação continuada. Educação Matemática, São Paulo, v. 18, n. 2, p. 975-
987, 2016.

251
OS CADERNOS DE MATEMÁTICA DE UMA NORMALISTA DA ESCOLA
NORMAL ASSIS BRASIL EM PELOTAS (1959-1962)

Luciane Luz102

RESUMO
O presente trabalho é um fragmento do projeto de mestrado vinculado ao Programa de
Pós-Graduação em Educação Matemática da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL),
no qual investiga a Escola Normal Regional Imaculada Conceição, situada na cidade de
Pelotas, Rio grande do Sul, no período de 1955 a 1974, com o intuito de identificar os
saberes matemáticos integrantes da formação de normalistas. O estudo historiográfico
envolve a análise de diversas fontes, entre elas, um dos quatro cadernos com saberes
matemáticos que pertencem ao acervo pessoal da normalista Ana Maria Dominguez. Entre
os resultados parciais da análise identificou-se os saberes matemáticos referentes às
frações, aos números decimais e ao sistema legal de unidades de medida. Foi possível
observar que os saberes matemáticos a ensinar e para ensinar aparecem juntos nos
cadernos, que as professoras do curso normal se apropriavam das ideias pedagógicas
presentes na Revista do Ensino do Rio Grande do Sul e tinham a influência de autores
como Irene de Albuquerque e Edward Lee Thorndike.

Palavras-chave: História da Educação Matemática. Curso Normal. Cadernos de


Matemática.

INTRODUÇÃO

Este trabalho apresenta um recorte do projeto de mestrado realizado junto


ao Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da Universidade
Federal de Pelotas (UFPel), no qual investiga a Escola Normal Regional Imaculada
Conceição, localizada na cidade de Pelotas – Rio Grande do Sul – no período em
que ela existiu, de 1955 a 1974, com o intuito de identificar os saberes matemáticos
que permeavam nesta instituição.

102 Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). lbichet615@hotmail.com.

252
O estudo está vinculado ao Projeto de Pesquisa Estudar Para Ensinar:
saberes matemáticos e práticas nas Escolas Normais do Rio Grande do Sul (1889-
1970) 103 . A investigação está centrada no âmbito da história da educação
matemática, assunto que é pesquisado pela autora desde a graduação, porém com
outros olhares e abordagens.
Sendo assim, apresenta-se um dos quatro cadernos que foram produzidos
durante a formação da normalista Ana Maria Dominguez, na Escola Normal Assis
Brasil (Pelotas/RS). Dominguez ingressou nesta escola em 1952, no 3º ano
primário, e concluiu o Curso Normal no ano de 1962. Posteriormente, os referidos
cadernos foram utilizados por Ana Maria Dominguez como formadora de
normalistas na Escola Normal Regional Imaculada Conceição (ENRIC), onde foi
professora de didática da matemática, no período de 1965 a 1973.
Os cadernos do acervo pessoal de Ana Maria Dominguez fazem parte do
conjunto de fontes analisadas neste estudo historiográfico. Viñao (2008) diz que os
cadernos escolares “[...] devem ser situados como fonte histórica no contexto das
práticas e pautas escolares, sociais e culturais de sua época, seu uso há de
completar-se e combinar-se com outras fontes históricas [...]” (VIÑAO, 2008, p. 27).
Assim, as escritas dos cadernos analisados são indícios daquilo que era ensinado
na escola normal. Estes registros levam o pesquisador a refletir sobre os possíveis
usos e significado desse objeto (CORDOVA, 2016, p. 212).
A partir da análise das escritas nos cadernos de Ana Maria Dominguez foi
viável fazer uma aproximação com as práticas e saberes matemáticos ocorridos
durante sua formação. Procurou-se conhecer quais e como os saberes
matemáticos a ensinar eram apresentados nos cadernos da normalista. Destaca-
se, também, a contribuição da normalista em entrevista concedida durante a
investigação. Pois, entende-se que cada pessoa traz em sua memória aquilo que a
torna única e essencial. De acordo com Portelli (1997), “a essencialidade do
indivíduo é salientada pelo fato de a história oral dizer respeito a versões do
passado, ou seja, a memória” (PORTELLI, 1997, p.16).

103 O Projeto propõe a investigar, em perspectiva histórica, a formação de professores primários


para o ensino dos saberes matemáticos implementado nas Escolas Normais ou complementares
do Rio Grande do Sul, no período 1889-1970.

253
Neste sentido, considera-se que as fontes escritas e orais se
complementam, pois elas têm características em comum, uma preenchendo a
outra. Esta forma de coletar informações envolvendo outras fontes que se
complementam umas às outras, vem ao encontro do que Burke (2016) descreve,
seja, “os historiadores também viajam para coletar conhecimento, seja visitando
arquivos ou, no caso da história oral, entrevistando informantes e registrando suas
memórias de eventos e processos passados” (BURKE, 2016, p. 75).
Nesta perspectiva, entende-se que conhecer as práticas e os saberes
matemáticos que circularam durante a trajetória da formação de Ana Maria
Dominguez na Escola Normal Assis Brasil e, posteriormente, como professora na
ENRIC, permitirá ao investigador adquirir novos conhecimentos do passado sobre
a formação em matemática das normalistas.

ESCOLA NORMAL ASSIS BRASIL

O Instituto Estadual de Educação Assis Brasil foi fundado em 1929 como


Escola Complementar de Pelotas, através do decreto nº 4273 – a primeira escola
pública na cidade de Pelotas direcionada à formação de professores primários. Até
aquele momento, quem tivesse interesse em se tornar uma normalista precisava
se deslocar até a cidade de Porto Alegre-RS para fazer o Curso Normal (AMARAL;
AMARAL, 2007).
No período em que Ana Maria Dominguez fez o curso normal, de 1959 a
1963, a referida instituição denominava-se Escola Normal Assis Brasil, conforme a
caderneta de presença da normalista que, assim como outros objetos, foram
cedidos para digitalização104.
Dominguez ingressou na Escola Normal Assis Brasil, na 3ª série do curso
primário em 1957, onde concluiu seus estudos até o Ginasial. Após se formar
prestou o exame de admissão para o Curso Normal, sendo aprovada. Segundo ela,
“[...] desde a adolescência já me vinha na ideia o fato de ser professora, algumas

104
Os quais serão disponibilizados em acervo digital produzido pelo Projeto de Pesquisa Estudar
Para Ensinar: saberes matemáticos e práticas nas Escolas Normais do Rio Grande do Sul (1889-
1970), outros materiais foram doados para a pesquisa.

254
coisas que me marcaram muito e eu disse: eu quero ser professora! Situações
sociais, coisas assim. Quero ser professora para colaborar para que isso não
aconteça! ” (DOMINGUEZ, 2019, p. 1).

A COLEÇÃO DE CADERNOS

Entre os documentos do acervo pessoal cedidos para esta investigação,


tem-se a coleção de quatro cadernos utilizados por Ana Maria Dominguez na sua
formação na Escola Normal Assis Brasil. Conforme seu depoimento, estes
cadernos foram utilizados como referência para sua atuação como professora de
Didática da Matemática na Escola Normal Regional Imaculada Conceição (ENRIC).
Os saberes matemáticos presentes nos cadernos da normalista são muito
semelhantes aos prescritos no Programa Experimental de Matemática para o Curso
Primário de 1959, os quais estavam, também, presentes nas Revistas Pedagógicas
produzidas pela Secretaria de Educação e Cultura do Rio Grande do Sul, como a
Revista do Ensino (RE/RS).
A Revista do Ensino foi citada em um dos cadernos da coleção analisada.
As revistas, supostamente utilizadas, aparecem em uma lista onde são citados sete
números da RE/RS e o ano de publicação. A nota foi encontrada no final do caderno
e seu registro permitiu a localização exata de quais exemplares foram usados.

FIGURA 1: RECORTE DO CADERNO 1.

Fonte: Dominguez, 1961.

255
Foi possível observar que estes exemplares serviram como referência para
a professora da disciplina de Didática da Aprendizagem em Matemática do curso
normal da Escola Normal Assis Brasil, pois foram identificadas atividades iguais as
da RE/RS em um dos cadernos de Ana Maria Dominguez. Isto demonstra o quanto
este material foi importante, tanto para os professores formadores, quanto para as
normalistas que utilizariam esses saberes ao ministrarem suas aulas.
Sobre a importância da RE/RS para o magistério estadual, cabe destacar o
trabalho de Luiz Henrique Ferraz Pereira (2017) que ressalta a relevância da RE/RS
e os discursos sobre as ocorrências matemáticas presentes na revista pedagógica.
O autor menciona que o objetivo do seu estudo era “explicitar e analisar quais foram
os discursos que circularam nos artigos publicados pela RE/RS no período
compreendido entre 1951 e 1978, o que dizem esses discursos e quem fala sobre
matemática” (PEREIRA, 2017, p. 21).
Quanto aos cadernos, ressalta-se que os mesmos estão em perfeito estado
de conservação, o que garantiu sua análise na íntegra. O quadro a seguir apresenta
as características materiais de cada caderno.

QUADRO 1: Características materiais dos cadernos.

Fonte: Elaborado pela autora.

Os quatro cadernos que formam o conjunto são referentes aos saberes


matemáticos relacionados ao ensino primário. A seguir, apresenta-se os saberes
matemáticos considerados, neste estudo, como sendo os mais significativos no
primeiro caderno.

256
CADERNO 1: Atividades aritméticas

Este caderno possui 64 páginas com conteúdos de matemática sendo, na


sua maioria, instruções para ensinar as operações aritméticas e, também, como
confeccionar e usar materiais didáticos. Percebe-se que Ana Maria Dominguez
utilizou além de caneta azul, lápis preto e de cor vermelha, pois em algumas
páginas foram encontradas marcações na cor vermelha, supostamente, para
destacar itens importantes. A maior parte das atividades encontram-se com a data
em que foram realizadas, contudo alguns registros parecem estar fora da ordem
cronológica.
Identificou-se que os saberes a ensinar, presentes no caderno, são
referentes às frações, aos números decimais, ao sistema legal de unidades de
medida, à geometria e porcentagem, à regra de três e juros. Paralelamente,
aparecem os saberes que constituem a matemática para ensinar, tais como, o
material para a representação de frações, sugerido pela professora, para as suas
alunas confeccionarem, entre outros. A figura a seguir mostra o material
confeccionado por Ana Maria Dominguez.

FIGURA 2: MATERIAL PARA ENSINAR FRAÇÕES.

257
Fonte: Foto da autora.

Os materiais utilizados para a confecção do recurso didático foram o papelão


e a pelúcia. O papelão foi recortado em círculos e forrado, em ambos os lados, com
a pelúcia colorida. Este material, segundo Ana Maria Dominguez, era muito
utilizado para ensinar as frações e suas operações. Futuramente, ela utilizou o
mesmo material com suas alunas, nas aulas de Didática da Matemática, na ENRIC.
Os saberes a ensinar referentes às frações que integravam a formação das
normalistas aparecem divididos em subitens, os quais englobam as quatro
operações aritméticas elementares, como pode-se observar no quadro a seguir:

QUADRO 2: Detalhamento do conteúdo de frações.

258
Fonte: Elaborado pela autora.

Em cada subitem existente no caderno encontra-se, além dos exemplos, os


exercícios e os problemas, indicando a utilização do material concreto que aparece
representado em desenhos. No caso da soma de frações heterogêneas, que
aconteceu no dia 07/03/61, está detalhada a operação que deveria ser feita e a
instrução para objetivação, seguida de uma explicação:

Por que se divide o menor múltiplo pelo denominador de cada


fração na soma e subtração de frações heterogêneas? E por que
se multiplica o resultado pelo numerador? Porque só se somam
frações homogêneas e é preciso reduzir todas ao mesmo
denominador. Divide-se o denominador comum pelo denominador
de cada fração para se saber por qual número o denominador deve
ser multiplicado para igualar ao denominador comum. Multiplica-se
pelo numerador porque o denominador já foi multiplicado pelo
mesmo número, para igualar a fração (DOMINGUEZ, 1961, p. 5).

Observa-se a explicação das etapas que as normalistas deveriam seguir


para a realização dos cálculos, conduzindo-as ao resultado. A objetivação também
faz parte desta etapa de aprendizagem, complementando o processo de
entendimento do saber, para quando as normalistas fossem explicar às suas alunas
este mesmo saber. Objetivar um número é relacioná-lo com a realidade que lhe dá
significação, Thorndike (1936), apregoava que:

259
Devemos considerar, não só sua apresentação formal e sistemática
por meio de pontos, contadores, traços, etc. [...], mas também em
associações não formais e incidentais, com as que se podem fazer
com objetos e atos da vida cotidiana. O último tipo de concretização
é muito mais interessante e apresenta, além disto, maiores
probabilidades de contribuir para o entendimento da noção que se
pretende dar (THORNDIKE, 1936, 136).

Um exemplo interessante de objetivação encontra-se na página 7 do


caderno no item b - denominador (comum) encontrado por multiplicação (primos
entre si), onde aparecem os cálculos e ao lado a representação desenhada das
frações.

FIGURA 3: RECORTE DO CADERNO 1.

Fonte: Dominguez, 1961.

Na figura 3, há o desenho acompanhado dos cálculos referentes a soma de


frações heterogêneas com dois círculos pequenos que correspondem aos dois
inteiros, e o desenho do círculo dividido em terços, com cada terço dividido em sete
partes, resultando que o círculo ficou subdividido em 21 partes, mas 2/3
correspondem a 14/21 e o 2/7 a 6/21, o que somando dá 20/21, por isso nota-se
uma pequena parte pintada de vermelho onde está escrito “sobrou”.

260
A análise do caderno sugere que os rabiscos e as anotações em suas
páginas sejam indicações da sua utilização, tanto para aprender a matemática,
quanto para aprender a ensinar a matemática. Muitos são os saberes para ensinar,
portanto, este está ligado ao saber a ensinar, ou seja, as normalistas precisavam
aprender como transmitir os saberes que estavam aprendendo.
Pode-se dizer que os saberes que envolvem o objeto de trabalho nestas
atividades abrangem os saberes para ensinar, pois “traduz-se como um saber
capaz de tornar esse objeto constituindo-o como um ensinável, um saber como
instrumento de trabalho” (VALENTE, 2017, p. 216).
A operação de divisão de frações é apresentada na imagem a seguir, com
um exemplo de atividade que demonstra a objetivação da divisão de um número
misto por um número inteiro.

FIGURA 4: RECORTE DO CADERNO 1.

Fonte: Dominguez, 1961.

Esta atividade aparece no caderno de Ana Maria Dominguez com exemplo


de “divisão de número decimal por inteiro”, sendo o primeiro de três casos
referentes ao tópico “Divisão”. Na sequência está o segundo caso, que é a divisão
de inteiro por decimal, e o terceiro caso é a divisão de decimal por decimal.
Percebe-se, no primeiro desenho de tiras, que a segunda tira possui apenas nove
quadradinhos, quando deveria ter dez quadradinhos. Mesmo assim, entende-se
que esta é a representação da divisão do número decimal 1,2 pelo inteiro 3, assim,

261
as marcações em caneta azul que correspondem ao inteiro formam três grupos
com quatro marcações diferentes.
Quanto aos problemas, eles aparecem com frequência, sendo uma forma
de exemplificar as situações da realidade do aluno, utilizando as diferentes
operações. Entre os problemas encontrados, além do cálculo, foram a
representação das frações com desenhos em forma de círculos, bolinhas ou
barrinhas. A seguir (Figura 5), temos um problema onde percebe-se a objetivação,
para o saber coleção de frações, onde a soma é representada por bolinhas.

FIGURA 5: RECORTE DO CADERNO 1.

Fonte: Dominguez, 1961.

Nesta página do caderno, como visto na figura 5, sob o título ‘Fração de


coleção’, o item relacionado a soma descreve a seguinte situação: “Um menino
ganhou 2 dúzias de ovos de Páscoa; deu 2/4 para o irmãozinho e 1/4 para a mãe.
Quanto deu?”. Primeiro, percebe-se 24 bolinhas desenhadas representando o total
de ovos de Páscoa que o menino ganhou, depois elas estão separadas em quatro
partes, formando 4 grupos de 6 bolinhas. Para representar as frações referentes as
quantidades que o menino deu, tem-se a representação, em cor vermelha, de dois
traços cruzados na forma de X que correspondem a fração 2/4, ou seja, foram
riscados dois grupos de um total de quatro grupos, e o X na cor verde

262
correspondendo a fração 1/4 que representa um grupo riscado de um total de
quatro. Contando a quantidade de ovos da fração 3/4 encontra-se 18 ovos.
Cabe mencionar o uso incorreto do sinal de igualdade na escrita 1/4 = 6 e
3/4 = 18, pois neste problema 1/4 corresponde a quantidade de 6 ovos e não é igual
a 6 ovos, assim como 3/4 corresponde a 18 ovos, mas a professora escreveu com
o sinal de igualdade. O rigor ao empregar corretamente as sentenças e símbolos é
uma preocupação dos matemáticos; o professor primário algumas vezes não tem
essa preocupação ou esse rigor ao escrever os símbolos matemáticos.
Entende-se que o problema adequado não é aquele longo e complicado,
mas aquele que usa noções matemáticas que estão sendo ensinadas, “uma noção
de matemática só tem valor para a aprendizagem se ajuda a resolver problemas
que a vida oferece, é necessário que essa mesma noção se apresente em
situações diferentes” (ALBUQUERQUE, 1951, p. 45).
Os saberes relacionados ao sistema métrico, presentes no caderno,
começam com a recomendação do que deve ser ensinado em cada ano escolar,
seguidos de instruções sobre como ensinar. Thorndike (1931) apregoava um
ensino das medidas relacionado às situações da vida:

Qualquer palavra ou algarismo só adquire sentido, quando


associado a algum objeto, acontecimento, qualidade ou relação
real. [...] no estudo das medidas, é superior a qualquer conexão
indireta, aquela que leva o aluno a referir a medida à realidade,
comparando-a com uma superfície, um peso, uma extensão, etc.
(THORNDIKE, 1936, p 132).

A explicação sobre a necessidade de padronização da medida é indicada


para ser ensinada no terceiro ano, pois é quando as crianças já sabem os números
decimais. Esta necessidade surge na diferença entre as medidas como ‘o palmo’ e
‘os passos’, pois elas divergem de pessoa para pessoa, sendo assim, a utilização
do metro é utilizado como padrão universal. “Depois da noção de medida e de
metro, começar o sistema métrico. As crianças já devem saber os números
decimais. Começa-se quando já estão nos décimos” (DOMINGUEZ, 1961, p. 45).
Segundo Albuquerque (1951):

263
O estudo do nosso sistema de pesos e medidas deve começar
levando a criança a compreender a relação e a significação de
termos a que seu ouvido já está acostumado pela vida prática:
metro, litro, meio metro, meio litro, etc. Não será dada, a princípio,
qualquer noção de múltiplos e submúltiplos (ALBUQUERQUE,
1951, p. 164).

Ela explica que o professor primeiro deve ensinar a noção de décimos


e centésimos de uma unidade e a escrita de números decimais, depois a forma de
escrever metros e fração de metros, levando a criança a compreender que existe
uma relação decimal entre o metro, o decímetro e o centímetro (p. 166).
No caderno, há a solicitação para ‘mandar as crianças fazerem uma fita
métrica’, um metro exato que depois será dividido em decímetros para entenderem
que o metro se divide sempre em dez partes, assim como nos decimais
(DOMINGUEZ, 1960, p. 45). Segundo Albuquerque (1951), para ensinar metro o
professor deve ter um metro ou uma fita métrica, enquanto às crianças, solicita-se:

[...] uma régua graduada (de preferência duplo-decímetro) com o


auxílio da qual construirão seu próprio metro. Para isso, cada
criança receberá uma tira de papel, que cortará na medida do
metro, conferindo no metro da professora. O metro, dobrado ao
meio, dará meio metro. Os primeiros exercícios constarão de
mensurações aproximadas com essas medidas. Com o auxílio da
régua, dividirão o metro em decímetros, ou grupos de 10
centímetros. Será, mesmo, interessante que escrevam na fita
métrica (ALBUQUERQUE, 1951, p. 165).

Cabe ressaltar, que no caderno foram encontradas outras sugestões de


atividades que dialogam com a referida autora. Entre elas, destaca-se uma
atividade interessante para objetivar as medidas de superfície, a qual indica a
utilização de quadradinhos de cartolina (DOMINGUEZ, 1960, p. 49). Albuquerque
(1951), sugere sobre esta mesma atividade:

O professor deve recortar quadrados de cartolina, representando,


respectivamente, 1 m², 1 dm², 1 cm². Lembrará que seria impossível
trazer para aula o km² [...]. Para levar à redescoberta do cálculo da
área, é indispensável que seja fornecido à criança um pedaço de
papel centimetrado, isto é, dividido em quadrículas de 1 cm de lado.
(ALBUQUERQUE, 1951, p. 172).

264
Observa-se que para alcançar a objetivação, tanto as atividades do caderno
quanto os exemplos, são indicações de que o curso normal estava apoiado nas
orientações pedagógicas daquele período, uma vez que as atividades do caderno
são semelhantes às sugeridas no livro Metodologia da Matemática de Irene
Albuquerque, sustentando que houve apropriação das ideias da referida autora pela
normalista Ana Maria Dominguez.

CONSIDERAÇÕES

Ao apresentar este trabalho visou-se identificar os saberes matemáticos a


ensinar e para ensinar na formação de normalistas, a partir de análise documental
realizada em cadernos do acervo pessoal de Ana Maria Dominguez, recebidos no
decorrer de sua formação como normalista na Escola Normal Assis Brasil. Tais
saberes matemáticos foram, posteriormente, ensinados às suas alunas na Escola
Normal Rural Imaculada Conceição, quando foi professora de Didática da
Matemática.
Durante a formação de Ana Maria Dominguez os professores se
apropriavam dos saberes presentes na RE/RS e também eram influenciados com
as ideias de Irene de Albuquerque e de Edward Lee Thorndike. O que demonstra
a preocupação no curso normal com os ensinamentos didáticos, visto que eram
abordados, tanto os saberes a ensinar, quanto os saberes para ensinar. Ao
inserirem as novas ideias pedagógicas que estavam circulando, as alunas
iniciavam o processo de constituição dos novos saberes evidenciando o saber
voltado à objetivação no ensino da criança no curso primário.
Pretende-se apresentar os outros cadernos de Dominguez, assim como foi
feito com este Caderno 1, no intuito de elucidar os saberes matemáticos a ensinar
e para ensinar no curso primário, dialogando com autores que influenciaram a
formação de normalistas com suas ideias pedagógicas, como Irene de Albuquerque
e Edward Lee Thorndike, e artigos publicados na Revista do Ensino do Rio Grande
do Sul, entre 1955 e 1974, período que compreende esta investigação.

265
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBUQUERQUE, Irene. Metodologia da Matemática. Rio de Janeiro: Conquista,


1951.
AMARAL, Giana Lange; AMARAL, Gladys Lange. Instituto de Educação Assis
Brasil: Entre a memória e a história 1929-2006. Pelotas: Seiva, 2007.

BÚRIGO, Elisabete Z.; DALCIN, Andréia; SILVA, Circe Mary S.; RIOS, Diogo F.;
FISCHER, Maria Cecilia B.; PEREIRA, Luiz Henrique F. Estudar para Ensinar:
práticas e saberes matemáticos nas escolas normais do Rio Grande do Sul (1889-
1970). Projeto de Pesquisa. CNPq. Porto Alegre, 2016. 41 f.

BURKE, Peter. O que é história do conhecimento?. 1.ed. São Paulo: Editora


Unesp, 2016.

CORDOVA, T. Redações, cartas e composições livres: O caderno escolar como


objeto da Cultura material da escola (Lages/SC - 1935). História da Educação,
Porto Alegre, v. 20, n. 49, p. 209-226, maio/ago. 2016.

DOMINGUEZ, Ana Maria Echinique. Memórias de uma normalista. [Entrevista


concedida a] Luciane Bichet Luz. Pelotas, 17 de jul. 2019.

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Grande do Sul. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2017.
Acessado em 10 de agosto de 2020.
http://editora.upf.br/images/ebook/a_matematica_na_revista_do_ensino_final.pdf

PORTELLI, A. Tentando aprender um pouquinho: algumas reflexões sobre a ética


na história oral. Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-
Graduados de História, [S.l.], v. 15, set. 2012. ISSN 2176-2767. Disponível em:
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THORNDIKE, Edward. A nova metodologia da aritmética. 1936. Disponível em:


https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/116408

VALENTE, Wagner Rodrigues. Os saberes para ensinar matemática e a


profissionalização do educador matemático. Revista Diálogo Educacional [en
linea]. 2017, 17(51), 207-222[fecha de Consulta 20 de Diciembre de 2019]. ISSN:
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VIÑAO, A. Os Cadernos escolares como fonte histórica: aspectos metodológicos


e historiográficos. In: MIGNOT, A. C. V. Cadernos à vista: Escola, Memória e
Cultura escrita. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2008. P. 15-28.

266
Os problemas matemáticos no programa “em experiência”: Alda Lodi, Minas
Gerais, 1941.

Ana Cristina S. M. Rocha105

RESUMO
Em 1941, a Secretaria de Educação de Minas Gerais publicou um programa que se
intitulava “em experiência” (MG, 1941). Voltado para o ensino primário, o programa de
Aritmética e Geometria é de autoria de Alda Lodi, especialista em Metodologia da
Aritmética pelo Teachers College da Universidade de Columbia, que ocupava a cadeira
desta mesma disciplina na Escola de Aperfeiçoamento de Belo Horizonte. Neste trabalho,
nosso objetivo é o de analisar as recomendações de Alda Lodi para o ensino de problemas
matemáticos, suas finalidades e as noções que fundamentavam as afirmações presentes
no programa. A análise do programa de 1941 é parte de um projeto mais amplo, e que
considera a análise dos trabalhos produzidos por Lodi durante sua trajetória profissional
como elemento importante para sua classificação de expert em educação (Hofstetter e
Valente, 2017). Além disso, ele procura estabelecer os elementos de uma matemática a e
para ensinar que contribuíram para a constituição dos saberes profissionais do professor
que ensina matemática no Brasil, e mais particularmente em Minas Gerais nas décadas de
1930 e 1940.

Palavras-chave: Alda Lodi. História da educação matemática. Ensino de


Problemas.

INTRODUÇÃO:

No final da década de 1920, Francisco Campos, então secretário dos


negócios interiores de Minas Gerais, planejou uma ampla reforma do sistema de
educação do estado ao lado do governador Antônio Carlos Ribeiro de Andrada. Os
planos da reforma acompanhavam a tendência nacional de um esforço em busca

105Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Bolsa de Pós-Doutorado Fapesp n. 2019/04525-


7. E-mail: anasmrocha@gmail.com.

267
da modernização de um sistema ainda em estruturação, que considerava a
formação de professores como fundamental para o sucesso da empreitada.
Este contexto se entrecruzou com o do convite recebido por Ignácia
Guimarães, professora na Escola Normal de BH, para uma temporada de
especialização no Teachers College da Universidade de Columbia, com bolsa
Macy, em 1926. Em troca da licença para a viagem, Guimarães ajudou Campos a
transformar sua temporada em Nova Iorque em uma missão pedagógica composta
por quatro outras professoras: Lúcia Casassanta, Benedicta Valladares Ribeiro,
Amélia Monteiro e Alda Lodi (Fonseca, 2010).
De modo bastante sucinto, estas são as circunstâncias que tiram Alda Lodi
de seu cargo de professora primária nas classes anexas da Escola Normal Modelo
de Belo Horizonte e a colocam na narrativa que queremos enfatizar aqui: a da
especialista em ensino de matemática. Depois de dois anos como aluna do
Teachers College (1927-1929), Alda Lodi retornou ao Brasil como professora da
cadeira de Metodologia da Aritmética da recém criada Escola de Aperfeiçoamento
de Belo Horizonte (EA).
Essa instituição era uma das peças fundamentais do projeto pensado por
Campos: a partir dos cursos ali ministrados, os professores em exercício entrariam
em contato com o debate sobre a renovação do ensino e as experiências já
testadas em outros países. Depois da temporada de formação, a maior parte deles
voltava para as escolas como orientadores de ensino, responsáveis por
implementar as mudanças preconizadas pela reforma (Prates, 1989; Kulesza,
2019).
A experiência de Lodi como aluna no TC e professora na EA é importante
para entender a dinâmica de circulação dos saberes matemáticos no campo da
formação de professores e na constituição dos saberes profissionais do professor
que ensina matemática (Hofstetter e Valente, 2017; Valente, 2020). Ao mesmo
tempo, é também essencial para entender os elementos que qualificam Lodi para
a convocação que recebe: a de elaborar os programas do ensino primário de Minas
Gerais, o primeiro publicado em 1941 e o segundo publicado em 1953.

268
A convocação do Estado para as atividades de formação que
desempenhou e a elaboração dos programas já mencionados são um dos indícios
que fundamentam a hipótese de que Alda Lodi é uma expert da educação, que
atuou no campo do ensino de matemática (Hofstetter e Valente, 2017; Morais,
2018). Neste artigo vamos analisar, portanto, um dos elementos de sua expertise:
o programa de Aritmética e Geometria 1941. Dentro os limites dessa comunicação
nosso objetivo é o de examinar as recomendações deste programa relacionadas
aos problemas matemáticos.

PROFISSIONALIZAÇÃO, EXPERT E EXPERTISE

Antes de passar ao exame mais específico do Programa de 1941, cabe


explorar algumas concepções que orientam esta pesquisa. A primeira está ligada
ao processo histórico de profissionalização das atividades relacionadas ao ensino,
e no nosso caso particular, do professor que ensina matemática. Para compreendê-
lo é preciso olhar para os saberes específicos dessa profissão, que englobam tanto
as chamadas ciências da educação quanto os saberes disciplinares de referência.
Surge daí uma matemática forjada para a docência, que se constitui no diálogo
permanente entre o que se ensina e o que é necessário saber para ensinar. Esta
matemática “não se reduz à sua forma disciplinar” e “distingue matemáticos de
educadores matemáticos” (Valente, Bertini, Morais e Pinto, 2017, p.10).
Esse debate é ancorado nos estudos de Rita Hoffstetter e Bernard
Schneuwly sobre os saberes profissionais e em suas aplicações no campo da
história da educação matemática (Hofstetter e Valente, 2017). De acordo com
esses autores, os saberes profissionais do professor seriam de dois tipos: “os
saberes a ensinar, ou seja, os saberes que são objetos do seu trabalho; e os
saberes para ensinar, em outros termos os saberes que são as ferramentas de seu
trabalho” (Hofstetter e Valente, 2017, p. 131-132). Ainda sobre esses saberes é
possível afirmar que eles dialogam entre si e com a cultura escolar de cada período
(Julia, 2001).

269
A constante interação entre esses saberes fica explícita no caso de Alda
Lodi. Como a análise de sua trajetória nos indica, seu trabalho se concentrou no
debate sobre uma matemática para ensinar, uma vez que esses saberes são
específicos da formação de professores, campo em que ela atuava. Considerando
a documentação encontrada no seu arquivo pessoal, deve-se considerar também
a noção de “matemática para ensinar ensinada” por Lodi para suas alunas da EA e
do IEMG (Bertini, 2019a; Valente, 2018). Ao mesmo tempo, os programas do
ensino primário escritos por Alda Lodi também sinalizam a sistematização de uma
matemática a ensinar, pensada para ser posta em ação nas classes escolares de
Minas Gerais.
O debate sobre o processo de emergência de especialistas em educação e
a valorização e legitimação de sua expertise é também ligado ao debate sobre a
profissionalização a que já nos referimos. Quando Hofstetter, Schneuwly e
Freymond analisam essa emergência partindo do exemplo da Suíça, eles destacam
que este é um “fenômeno concomitante à entrada em cena do Estado, encarregado
da instrução pública e à emergência do campo disciplinar das ‘ciências da
educação’" (Hofstetter e Valente, 2017, p.56). Com um recorte temporal amplo
(séculos XIX e XX), esses pesquisadores acompanham as transformações tanto
em relação aos atores que exercem o papel de experts quanto às atividades que
estes desempenham para atender a máquina estatal. A isto, estes autores chamam
de “modos de expertise” (Hofstetter e Valente, 2017, p.104).
Ainda que o contexto educacional brasileiro tenha em comum o
protagonismo estatal no direcionamento e financiamento da educação, é preciso
considerar a afirmação desses autores de que “a expertise está inextricavelmente
ligada ao sistema escolar e ao Estado, na medida em que este último a molda”
(Hofstetter e Valente, 2017, p.106). Assim, o caso de Alda Lodi nos parece útil para
explorar as particularidades locais desse processo e suas articulações com a
dimensão internacional a que nos referimos quando exploramos o exemplo suíço.
Ao explorar o conceito de expert, Morais (2018, p.29) insere a experiência
de Lodi nos Estados Unidos como parte de um processo que “caracteriza a
emergência de experts da educação” no Brasil, que buscam especialização no

270
exterior e que, neste movimento “produzem novos saberes no campo pedagógico”.
Mais do que o capital simbólico da viagem ao Teachers College, o que coloca Lodi
no mapa que estamos traçando é a apropriação que ela fará dos conteúdos de sua
especialização no campo do ensino da matemática, contribuindo para a
configuração desses saberes profissionais em Minas Gerais. Neste artigo, vamos
explorar um dos recortes possíveis dentro desse amplo quadro de apropriações e
sistematizações dos saberes profissionais ligados ao ensino de matemática feito
por Alda Lodi: o modo como o ensino de problemas matemáticos aparece no
programa de 1941.
A análise que vamos desenvolver aqui é também um desdobramento da
análise que fizemos sobre as articulações entre o local e o internacional, pensadas
a partir das anotações de aula de Lodi sobre o ensino de problemas matemáticos
no seu último semestre no Teachers College da Universidade de Columbia (Rocha
e Valente, 2020). Ali, também consideramos os trabalhos produzidos pelos autores
norte-americanos referenciados no caderno. O debate presente nestas anotações
e artigos sinalizam também dinâmicas de interação entre os saberes da matemática
escolar e os saberes da psicologia da aprendizagem a partir de conceitos como
inteligência e raciocínio. A opção por um exame mais detalhado do debate norte-
americano teve como consequência um exame mais superficial das apropriações
de Lodi no Brasil.
Por isso, além do que viu e ouviu nos Estados Unidos, cabe considerar que,
no programa de 1941, essa educadora também dialogou com essas noções a partir
de autores e obras que circularam no Brasil e que trabalharam com a relação entre
raciocínio e problemas matemáticos. Edward Thorndike, Antonio Faria de
Vasconcelos e Alfredo Miguel Aguayo são exemplos que podem ser mencionados.
Eles ampliam o circuito Brasil-Estados Unidos que investigamos inicialmente
e sinalizam que autores que aparecem nos apontamentos de Alda Lodi, como
Walter Monroe (1918), também eram discutidos em livros como o de Faria de
Vasconcelos sobre raciocínio aritmético (Faria de Vasconcelos, 1934; Marques,
2018). Por sua vez, Faria de Vasconcelos é uma das indicações de leitura do
Programa de Aritmética e Geometria de autoria de Lodi em 1941, assim como

271
Thorndike (MG, 1941). Estes elementos sinalizam o sentido multidirecional do
intercâmbio de ideias ligadas ao ensino de matemática, reafirmando questões
levantadas pelo debate ligado à internacionalização da educação (Droux e
Hofstetter, 2014).

OS PROBLEMAS MATEMÁTICOS NO PROGRAMA DE ENSINO DE ALDA


LODI: cálculo, raciocínio e ordenamento.
Em 1941, a secretaria de Educação de Minas Gerais editou um programa de
ensino por eles intitulado “em experiência”. A ideia era escutar a opinião dos
professores que colocassem em ação as orientações do programa sobre seu “valor
educativo e perfeita exequibilidade” (MG, 1941, p.12). Assim, posteriormente, se
estabeleceria um programa “definitivo”, já modificado pelas sugestões destes
professores.
Em meio aos papéis do arquivo pessoal Lodi, encontramos um exemplar
deste programa, com suas anotações e marcações. O “Programa em experiência”
é por ela renomeado como “Programa com orientações metodológicas”. De fato, o
programa de 1941 que vamos analisar aqui se propõe não só a estabelecer as
diretrizes do ensino de Aritmética e Geometria, mas registra indicações de como
fazê-lo. Nesse sentido, grande parte do conteúdo que encontramos neste
documento consolida as orientações presentes nas anotações de Alda de Lodi de
1929 e nas anotações de suas alunas na década de 1930106.
Este não parece ser o primeiro programa do ensino primário escrito por Lodi
para a Secretaria de Educação. Ainda em 1937, Lodi anotou em um dos seus
currículos:
“Os atuais programas de Arit. e Geometria (curso primário) e o de
‘Princípios Gerais de Educação’ e ‘Metodologia da Arit. e
Geometria’ (Escola de Aperf.) foram feitos por mim. Há lugar para
estes trabalhos? Onde?” (“Curriculum vitae”, Arquivo pessoal de
Alda Lodi).

106
Sobre as recomendações sobre o ensino de problemas matemáticos presentes nos cadernos
das alunas de Lodi conferir: Bertini, 2019a e Fonseca et. al., 2014.

272
No caso do programa de 1941, é possível encontrar versões da introdução
deste programa no seu arquivo, ainda datilografado. Alguns deles foram reescritos
e rasurados, mas a versão melhor acabada foi digitalizada por Diogo Reis e é um
dos anexos de sua tese de doutorado (Reis, 2014). A versão é intitulada “Aritmética
e Geometria: considerações sobre o ensino de Aritmética e Geometria no curso
primário”, mesmo título do programa impresso. Este texto, datilografado, incorpora
as alterações feitas à caneta no exemplar de 1941 que encontramos no arquivo de
Lodi. O resultado dessas modificações pode ser visto no programa publicado
posteriormente, já em 1953 (MG, 1957).
Além da introdução e da discriminação dos conteúdos por cada ano escolar
(1º ao 4º anos), o programa também fornece indicações de leitura para os
professores. Além disso, lista tanto os objetivos gerais do ensino da disciplina no
ensino primário, quanto os objetivos a serem alcançados a cada ano. É com base
nesse detalhamento que vamos analisar as recomendações que Lodi faz aos
professores em relação ao uso de problemas matemáticos no ensino primário.
Visto que a questão do interesse é mencionada durante todo o programa,
muitas vezes ao lado da menção aos problemas matemáticos, cabe mencionar que,
embora a virada pedagógica da Escola Nova tenha se centrado fortemente na
criança a partir da psicologia cognitiva, a valorização da experiência infantil não é
um fator inteiramente novo no debate sobre o ensino. Quando olhamos para as
preocupações do método intuitivo, a importância do cotidiano também é evocada
porque esse é um dos elementos que ajudariam a criança a entender conceitos
abstratos a partir de situações concretas. Por isso, os problemas matemáticos
propostos em muitos livros que seguiam o método intuitivo também buscavam
evocar situações que fossem familiares às crianças (Bertini, 2019b).
Deste modo, além de reconhecer a importância de despertar o interesse a
partir dessas experiências, a psicologia oferecia aos educadores a oportunidade de
olhar para a aprendizagem dos problemas sob o ponto de vista da organização do
raciocínio e da graduação dos conteúdos a partir da capacidade de aprendizagem
dos alunos. Aqui, entra em cena a ideia de treino relacionado ao desenvolvimento
de “hábitos mentais ou conexões”, como afirma Thorndike (Santos, 2006, p.173),

273
de um “grupo de hábitos ou habilidades”, como afirma Upton (s.d., p.281) ou ainda
de promover “associações úteis”, como afirma Lodi (MG, 1941, p.90).
Nas palavras dos autores com quem Lodi teve contato em sua temporada
no Teachers College, era preciso separar o “maquinário da aritmética” da
capacidade de operar esse “maquinário” (Upton, s.d.). Dito de outro modo, era
preciso entender que a resolução de problemas era composta por dois conjuntos
de habilidades: a mecânica, do cálculo em si, e a do raciocínio, ligada à capacidade
de resolução. Por isso, mais do que despertar o interesse das crianças a partir de
situações ligadas à experiência, os problemas matemáticos ganham uma dimensão
diferente porque conferem sentido ao “maquinário” dessa disciplina.
A separação entre o domínio das operações e a capacidade de desenvolver
um raciocínio correto, utilizando-as como recurso, é resumida por Lodi no programa
de Aritmética e Geometria de 1941. De acordo com ela:
“Encontram-se facilmente alunos que sabem a técnica das
operações porque se habituaram a fazê-las. Não tão facilmente se
encontram aqueles que sabem “quando” e “como” devem aplicar as
operações porque não lhes foi desenvolvida a capacidade de
compreender e interpretar as diferentes situações, e nem a
habilidade para empregar, selecionando, os seus recursos
aritméticos” (MG, 1941, p. 88, grifos da autora).

Assim, Lodi compartilhava com os educadores norte-americanos a


concepção que separava compreensão e operação, raciocínio e cálculo. Também
concordava que eram os problemas matemáticos que conferiam “finalidade às
operações” (MG, 1941, p. 90).
Para Clifford Upton, a primeira tarefa da escola era a de ensinar as crianças
o “maquinário da Aritmética”, ou seja: “operações de adição, subtração,
multiplicação com números, frações ordinárias e decimais” (Upton, s.d, p. 281).
Ainda de acordo com ele, uma das contribuições da Psicologia para o ensino de
matemática foi a de mostrar que “o ensino dessas operações fundamentais era na
realidade o ensino de um grande grupo de hábitos” (Upton, s.d, p. 281). Assim, o
domínio do “maquinário” transformava o cálculo num processo mecânico. Ainda
que o ensino primário [primary grades] trabalhasse com problemas matemáticos, a

274
tarefa de ensinar a operar o “maquinário” recaía principalmente nas séries
posteriores [gramar grades].
Em contrapartida, no programa escrito por Alda Lodi, os problemas
ganhavam uma dimensão significativa também no ensino primário. Aos alunos
deveriam ser apresentados problemas que despertassem o interesse da criança
“de possuir os instrumentos necessários à solução” (MG, 1941, p.91). Era a partir
do apelo ao raciocínio e ao interesse que os professores conseguiriam fazer com
que os alunos aceitassem “de boa vontade, os exercícios formais, necessários à
fixação e à rapidez do processo” (p.89). Também era a partir daí que eles
aprenderiam “a formação dos números pela soma, subtração, multiplicação e
divisão” (p. 89-90).
Se seguimos a lógica de classificação desenvolvida por Bertini (2019b), é
preciso mencionar que os problemas matemáticos tinham aqui uma dupla
finalidade. As recomendações do programa escrito por Alda Lodi sinalizam que eles
não eram apenas estratégicos em relação ao interesse infantil, mas também eram
utilizados para a aplicação dos conteúdos aprendidos durante as aulas, ao final de
cada período. Assim, para as turmas do primeiro ano, é apenas no segundo
semestre (julho, agosto e setembro) que Lodi recomenda o uso de “problemas e
outros exercícios com as medidas aprendidas” (MG, 1941, p.95). Esta
recomendação se repete ao longo de todo o programa, sempre ao final de um grupo
de conteúdos que deve ser ministrado pelo professor.
O desenvolvimento da capacidade de resolução dos problemas
matemáticos dos alunos em sala é observado duplamente: em relação ao domínio
dos conteúdos e ao raciocínio a ser desenvolvido. Neste sentido, os problemas são
ao mesmo tempo, ferramenta para aprendizagem e um “saber a ser ensinado”
(Bertini, 2019a). Isso fica mais claro quando analisamos os objetivos de
aprendizagem de cada ano escolar, listados no programa. No quadro 1
organizamos esses objetivos selecionando os que se referem exclusivamente aos
problemas matemáticos.

275
QUADRO 1: Capacidade de resolver problemas matemáticos, de acordo
com cada ano.

Ano Objetivo a ser alcançado

1º Resolvem pequenos problemas relativos à ‘loja escolar’.


Resolvem pequenos problemas de uma operação sobre assuntos
vários, presos às suas experiências.

2º Resolvem pequenos problemas de uma ou mais operações e


aplicam a matéria estudada.

3º Fazem, no mínimo, duas leituras dos problemas com finalidades


diferentes: a) Para compreender o problema; b) Para tomar os
dados necessários à solução.
Sabem destacar, no problema, os fatos principais.
Resolvem problemas escritos, envolvendo os processos e noções
estudadas.

4º Sabem aplicar a aritmética na solução dos problemas que surgem


em suas atividades.
Resolvem, com facilidade, os problemas mais comuns sobre
compras, usando meios rápidos e econômicos nos processos
mentais.
Resolvem problemas escritos, envolvendo os processos e noções
estudadas.
Não aceitam resultados absurdos dos problemas que resolvem,
porque são capazes de reconhecê-los através da interpretação das
relações estabelecidas.
Resolvem problemas práticos...
... Sobre frações ordinárias
... Sobre frações decimais
... Aplicando seus conhecimentos sobre: divisões do tempo; metro,
decímetro, centímetro, milímetro; quilômetro; quilo, grama e suas
divisões mais usadas; litro; metro quadrado e metro cúbico; área.
... Para encontrar a porcentagem de um número, isto é, para
conhecer comissões, abatimentos, lucros, perdas ou juros simples
de certa quantia.
Tabela elaborada pela autora a partir do programa de Aritmética e Geometria de
1941 (MG, 1941, pp. 97-112).

276
Assim, esperava-se que a criança expressasse o desenvolvimento do seu
raciocínio a partir da capacidade de resolver diferentes problemas matemáticos. As
dificuldades são graduadas em relação aos conteúdos, e também em relação a
conexão mais imediata ou não com o universo infantil. Assim, inicialmente estes
problemas estão fortemente vinculados às experiências mais imediatas dos alunos
(chamadas no programa de “atuais”). Ao que parece, a loja escolar é um recurso
importante para suscitar questões motivadoras neste contexto.
No quarto ano, ainda que os problemas sejam trabalhados a partir de
situações concretas, a noção de problemas “práticos” implica a relação com
conteúdos que já não estão diretamente ligados à experiência infantil, como o
cálculo de juros. A isto se chama “os problemas que a prática exige” (MG, 1941,
p.111). Estes objetivos estão conectados aos objetivos mais gerais do programa.
Dentre eles: o de desenvolver um trabalho “qualitativa e quantitativamente dosado”,
o de “desenvolver a capacidade para aplicar os conhecimentos” e o de “desenvolver
a capacidade de raciocinar e o hábito de raciocinar” (MG, 1941, p.93).
As indicações intituladas “bibliografia para o professor” (MG, 1941, p.113),
Lodi menciona os livros que fundamentam o modo como os problemas são
trabalhados ao longo do programa. O entrecruzamento das recomendações ali
mencionadas com o ordenamento do conteúdo a ser ministrado em cada ano
escolar pode indicar relações mais específicas entre programa e manuais voltados
aos professores. O mesmo pode ser dito da relação que se pode ser estabelecida
entre programas e cadernos, como já apontamos anteriormente. Nos limites desta
comunicação, nosso objetivo foi o de abordar as recomendações de Alda Lodi como
indicativo de sua expertise e de sua contribuição para o campo do ensino de
matemática em Minas Gerais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, procuramos apontar as contribuições de Alda Lodi para o


ensino de problemas matemáticos e seus usos a partir do “Programa em

277
experiência”, publicado pela Secretaria de Educação em Minas Gerais em 1941.
Essa análise é parte de um projeto mais amplo, que procura mapear as
contribuições de Alda Lodi para o ensino de matemática em Minas Gerais, com o
objetivo considerar a pertinência de enquadrá-la dentro da categoria de expert da
educação. Além disso, ele procura estabelecer os elementos de uma matemática a
e para ensinar que contribuíram para a constituição dos saberes profissionais do
professor que ensina matemática no Brasil, e mais particularmente em Minas
Gerais nas décadas de 1930 e 1940.
Neste sentido, nosso artigo se concentrou em sinalizar como as noções de
raciocínio e interesse estavam conectadas com uso de problemas matemáticos
pelos professores. Assim, os problemas aparecem como recurso para o ensino de
outros conteúdos, ao mesmo tempo em que são também um saber a ser ensinado.
O domínio das crianças da capacidade de resolver determinados problemas é
encarado aqui como parte do desenvolvimento do raciocínio matemático desses
alunos. Esse desenvolvimento é medido a partir de diretrizes fornecidas por Lodi
ao final dos conteúdos de cada ano escolar, que indicam o tipo de raciocínio que a
criança já deve ser capaz de desenvolver, a partir de problemas específicos.
Finalmente, é possível afirmar que, embora predominantemente focado nos
saberes a ensinar, as prescrições do Programa de 1941 nos informam também
sobre os saberes necessários ao professor, sinalizando a “constante interação” dos
saberes a e para ensinar a que nos referimos no começo do texto.

AGRADECIMENTOS:
Este trabalho é parte de um amplo projeto de pesquisa conduzido pelos membros
do Grupo de Pesquisa de História da Educação Matemática no Brasil (GHEMAT)
intitulado: “A matemática na formação de professores e no ensino: processos e
dinâmicas de produção de um saber profissional, 1890-1990” (FAPESP, Projeto
Temático n. 2017/15751-2), e é fruto do desenvolvimento do subprojeto intitulado
“Os arquivos da professora Alda Lodi: as apropriações estadunidenses para a

278
constituição de uma nova matemática no ensino e na formação de professores”
(Bolsa FAPESP, Processo n. 2019/04525-7). Também agradeço a Bruna Ramos
Giusti, que me chamou atenção para as recomendações de Alfredo Miguel Aguayo
sobre a resolução de problemas matemáticos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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em livros que circularam em Minas Gerais na primeira metade do século XX: um
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Física, 2020.

280
REMY FREIRE: da demissão pela ditadura salazarista à naturalização
brasileira

Antonio Peixoto de Araujo Neto107


Lucieli M. Trivizoli108

RESUMO
O presente trabalho se insere nos estudos desenvolvidos em uma pesquisa de
doutoramento finalizada em 2019 pelo Programa de Pós-Graduação em Educação para a
Ciência e a Matemática (PCM) da Universidade Estadual de Maringá (UEM) cujo objetivo
foi compor uma narrativa histórico-biográfica sobre Remy Freire e as suas contribuições
para a Matemática e para a Educação Matemática no Paraná. Para este artigo, temos por
objetivo apresentar aspectos históricos da expulsão de Remy Freire pelo regime ditador
português no governo de António de Oliveira Salazar e da sua imigração para o Brasil.
Remy Freire nasceu em 24 de novembro de 1917 em Lisboa e era filho de Garibaldi Alves
Freire e Laura da Silva Teixeira Freire. Era formado em Ciências Econômicas e Financeiras
pela Universidade de Lisboa, onde também fez seu doutoramento em Ciências
Econômicas. Além disso, era doutor em Estatística pela Universidade de Paris. Foi
assistente de Bento de Jesus Caraça o qual contribuiu para o desenvolvimento do ensino
da Matemática em Portugal. Amparadas por uma pesquisa de estratégia bibliográfica e
documental, nossas análises evidenciaram que Remy Freire foi demitido de suas funções
de professor extraordinário do Instituto Superior de Ciências Econômicas e Financeiras em
18 de junho de 1947. Durante sua permanência em Curitiba, entre 1952 e 1955, em que
foi um dos mobilizadores para a criação da Sociedade Paranaense de Matemática e um
núcleo matemático atualizado para a época, conseguiu sua naturalização brasileira
publicada no Diário Oficial de 20 de novembro de 1953.

Palavras-chave: História da Matemática no Brasil. António de Oliveira Salazar.


Remy Freire. Sociedade Paranaense de Matemática.

INTRODUÇÃO

107
Faculdade de Engenharia e Inovação Técnico Profissional (FEITEP). netopeixotoaraujo@hotmail.com.
108
Universidade Estadual de Maringá (UEM). lmtrivizoli@uem.br.

281
A evolução social, econômica e científica está fortemente vinculada às
decisões políticas. Do mesmo modo, os intercâmbios estiveram presentes no
processo da implantação da atividade científica. Historicamente, o desenvolvimento
matemático no Brasil foi impactado pela vinda de matemáticos estrangeiros em
função de diversos fatores dos seus países de origem (TRIVIZOLI, 2011). Por
exemplo, segundo Silva e Siqueira (2015) o matemático italiano Luigi Fantappiè
(1901-1956) esteve no Brasil na Universidade de São Paulo (USP) entre 1934 e
1939 junto com um grupo de italianos em que liderou o que ficou conhecida como
Missão Italiana, que existiu até 1942, após o rompimento diplomático entre o Brasil
e a Itália nos tempos da 2ª Guerra Mundial e o seu envolvimento com o Partido
Nacional Fascista (PNF) italiano. De acordo com D’Ambrosio (2011) uma das
principais preocupações de Fantappiè ao chegar no Brasil foi modernizar o ensino
de Cálculo Diferencial e Integral com o intuito de o transformar em um curso de
Análise Matemática.
Além dos italianos, podemos citar a presença de franceses, membros do
grupo Bourbaki, no Departamento de Matemática da Faculdade de Filosofia
Ciências e Letras (FFCL) da USP, entre os anos de 1945 e 1966, o que ficou
marcado como influência francesa na Seção de Matemática (PIRES, 2006).
Nesse sentido, destacamos também a comunidade portuguesa de
matemáticos que veio para o Brasil e contribuiu com o desenvolvimento da
Matemática brasileira. Por exemplo, Gomes (1997) observa a implantação no
Recife de um núcleo de matemáticos portugueses para iniciar e implantar um
Departamento de Matemática na Universidade Federal do Pernambuco (UFPE) na
década de 1950 iniciada por Alfredo Pereira Gomes e Manuel Zaluar Nunes, em
1953, e depois por intermédio dos primeiros, vieram para o Brasil os professores
José Morgado, Ruy Luis Gomes, em 1962, e António Brotas, em 1963, dentre
outros. Segundo Morgado (1997), mais de vinte docentes vieram trabalhar para a
Universidade do Recife expulsos do ensino superior e do exercício de ensino e de
pesquisa pelo governo de António Salazar em Portugal.
Assim como em Recife, outros lugares foram escolhidos como destinos
pelos matemáticos portugueses expulsos pela ditadura Salazarista. Segundo Silva

282
(1997) o professor António Aniceto Ribeiro Monteiro (1907-1980) ficou no Brasil no
período entre 1945 e 1948 e iniciou as suas atividades docentes na Faculdade
Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro. Além disso,
também trabalhou como pesquisador no Núcleo Técnico Científico de Matemática
da Fundação Getúlio Vargas, criado em 1945. Um de seus importantes trabalhos
no Brasil, intitulado “Filtros e Ideais I”, foi publicado nas Notas de Matemática, em
1948. Durante o tempo em que esteve no Brasil desenvolveu importantes
atividades e influenciou um significativo número de futuros matemáticos no Brasil
como, por exemplo, Leopoldo Nachbin.
Curitiba também foi destino de um dos matemáticos portugueses expulsos
pelo regime ditador. Segundo Rezende (2011), João Remy Teixeira Freire,
popularmente conhecido como Remy Freire, nasceu em Lisboa, Portugal. Era
formado em Ciências Econômicas e Financeiras pela Universidade de Lisboa, onde
também fez seu doutoramento em Ciências Econômicas. Além disso, era doutor
em Estatística pela Universidade de Paris. Foi assistente de Bento de Jesus
Caraça, nome que contribuiu para o desenvolvimento do ensino da Matemática em
Portugal. Remy Freire veio de Portugal para o Brasil em 1952 e foi um dos
idealizadores para a criação da Sociedade Paranaense de Matemática (SPM) e
difusor da Matemática em Curitiba, onde ficou estabelecido, de acordo com as
nossas análises, até 1955 quando foi para o Chile ocupar uma posição na
Organização das Nações Unidas (ONU) (ARAUJO NETO, 2019). Segundo a
publicação Brasil (1953), Remy Freire nasceu em 24 de novembro de 1917. Além
disso, de acordo com Brasil (1953), Remy era filho de Garibaldi Alves Freire e Laura
da Silva Teixeira Freire.
Remy Freire foi objeto de estudo da nossa pesquisa de doutoramento
finalizada em dezembro de 2019 no Programa de Pós-Graduação em Educação
para a Ciência e a Matemática (PCM) da Universidade Estadual de Maringá (UEM).
Na referida pesquisa, o objetivo foi compor uma narrativa histórico-biográfica sobre
Remy Freire e as suas contribuições para a Matemática e para a Educação
Matemática no Paraná (ARAUJO NETO, 2019). Desta forma, para este artigo, que
se insere nas temáticas de interesses do Grupo de Estudos em História da

283
Matemática e Educação Matemática (GHMEM 109 ) vinculado a UEM, temos por
objetivo apresentar aspectos históricos da expulsão de Remy Freire pelo regime
ditador português no governo de António de Oliveira Salazar e da sua imigração
para o Brasil.
A presente pesquisa está inserida no campo da História da Educação
Matemática (HEM) no Brasil. Baroni e Nobre (1999) observam que a História da
Educação Matemática incorpora temas relevantes para a compreensão do
desenvolvimento da Matemática no Brasil e do seu ensino. Dentre estes temas
indicados por Baroni e Nobre (1999, p. 133) destacamos “História de pessoas
significativas ao desenvolvimento da Educação Matemática no país”, subtema da
nossa pesquisa no campo da HEM. Uma justificativa para a realização de
pesquisas biográficas relativas à História da Matemática é observada por Baroni e
Nobre (1999, p. 131-132) quando alertam que “há um campo totalmente aberto e
inexplorado, naquilo que diz respeito à História do desenvolvimento da Matemática
no Brasil”. Uma outra justificativa é defendida por Cavalari (2012) quando observa
que o desenvolvimento de pesquisas que abordam a trajetória acadêmica de
matemáticos que atuaram no cenário nacional, como é o caso de Remy Freire no
Paraná, contribui para a escrita de uma história da Matemática brasileira.
De acordo com Fiorentini e Lorenzato (2009), a biografia ou a história de
vida é um tipo de investigação que objetiva narrar e compreender a evolução de
uma pessoa ou de um grupo de pessoas, dando enfoque à trajetória profissional,
sobretudo às suas práticas sociais e aos seus ideais. Para esses autores, para
compor uma biografia, podem ser utilizados como fontes de informação
autobiografias, cartas, fotografias, diários, anotações, crônicas, publicações, entre
outras. Para este artigo, de estratégias bibliográfica e documental, utilizaremos
como fontes as publicações oficiais que remetem à expulsão de Portugal e a
naturalização brasileira de Remy Freire e a literatura consultada sobre o governo
de António de Oliveira Salazar.

109 <https://ghmem.com/. Acesso em 20 de outubro de 2020>

284
Fiorentini e Lorenzato (2009) observam que a pesquisa bibliográfica é
aquela que se faz preferencialmente sobre a documentação escrita e nesse tipo de
pesquisa, a coleta de informações é feita a partir de fichamento das leituras.
Segundo Sá-Silva, Almeida e Guindani (2009) a principal diferença entre a pesquisa
bibliográfica e a pesquisa documental está na natureza das fontes: a pesquisa
documental é aquela desenvolvida a partir de documentos que não receberam
tratamento analítico, fontes primárias, e a pesquisa bibliográfica é constituída a
partir da literatura existente, fontes secundárias. No caso da presente pesquisa, as
fontes primárias são as publicações oficiais e as fontes secundárias são formadas
pelos textos consultados.
Assim, no que segue, apresentamos um contexto sucinto do Governo de
António de Oliveira Salazar, a propulsão do regime ditador, o contexto da expulsão
de Remy Freire de Portugal, a sua naturalização brasileira e as suas principais
contribuições para a Matemática e a Educação Matemática no Brasil.

O GOVERNO DE ANTÓNIO DE OLIVEIRA SALAZAR

De acordo com Martinho (2007), em 1926, um golpe militar pôs fim aos
dezesseis anos da Primeira República portuguesa. Uma das justificativas para o
término do curto período da Primeira República seria a entrada de Portugal na 1.ª
Guerra Mundial e as transições de 45 governos nestes poucos anos. Após a queda
da Primeira República, os modelos Portugal sebastianista e o Portugal
restaurador110 transformaram-se nos principais pilares para a construção de um

110 Segundo Martinho (2007) D. Sebastião foi um jovem rei de Portugal que faleceu em 1578 em uma batalha.
Seu tio, o cardeal D. Henrique, foi o seu sucessor pois ele não teve filhos. O reinado de D. Henrique durou
apenas dois anos, quando este veio também a falecer. Este fato desencadeou uma crise sucessória e deixou
o caminho livre para a União Ibérica. Oriundo da Espanha, Felipe II foi aclamado rei de Portugal em 1581 sob
o nome de Felipe I. Porém, dada a insatisfação com a administração espanhola, principalmente a partir do
reinado de Felipe IV, em 1621, quando adotou uma política de maior integração dos territórios ibéricos, fez
acender o mito de que D. Sebastião, cujo corpo não havia sido encontrado, retornaria para reconquistar a
independência portuguesa. O sebastianismo correspondeu, portanto, à ideia mítica de salvação nacional. A
restauração, ou seja, a separação de Portugal da Espanha se deu, por fim em 1640 com a ascensão de D.
João, duque de Bragança, após uma conspiração de nobres e letrados contra a presença dos representantes
da Espanha em Lisboa

285
novo modelo de governo, opostos ao modelo individualista liberal, centrado no
homem, que era considerado até então.
António de Oliveira Salazar (1889-1970), sob forte influência da doutrina
católica, foi seminarista e tornou-se catedrático em Ciências Econômicas e
Financeiras, em 1919, pela Universidade de Coimbra. Iniciou sua vida política
durante a Primeira República elegendo-se em 1921 como deputado pelo Partido
Centro Católico. Foi convidado para assumir a pasta de finanças após o golpe de
1926. Nos anos seguintes, conseguiu equilibrar as finanças do Estado por meio de
medidas duras, o que causou estranheza por conta do regime republicano vigente
até então. Em 1932, foi nomeado para ser presidente do Conselho de Ministros e
um ano depois conseguiu aprovar uma nova constituição, que ficou conhecida
como Estado Novo, um regime ditatorial, em que se tornou o 1.º Ministro por 36
anos.
O regime do Estado Novo permaneceu ativo entre o período de 1933 e
1974 e possuía duas vertentes, uma tradicionalista e a outra conservadora.
Segundo Martinho (2007), António de Oliveira Salazar foi o principal propulsor do
novo regime e defendia o reestabelecimento dos princípios tradicionalistas
pautados na fé, no resgate da cultura e dos princípios que deveriam ser
rememorados na própria história do país. Para Salazar, ser moderno era voltar no
tempo, reforçando os perfis tradicional e conservador que defendia.
Um dos maiores apoios ao governo ditador veio da Igreja Católica que era
contrária ao regime liberal proposto pela Primeira República, principalmente no
tocante à laicidade. O conservadorismo católico, segundo Martinho (2007), foi
determinante para o novo regime de governo. Considerando seu caráter elitista, o
poder católico foi promovido e divulgado pela comunidade universitária das
Universidades de Coimbra e do Porto.
Pinto (2000) observa que Salazar foi um governante forte que conseguia
impor e defender os seus interesses mas não pode ser considerado um líder
carismático. Centralizava os seus objetivos em um grupo restrito de conselheiros e
se distanciava dos seus Ministros de Governo para as tomadas de decisões.

286
Martinho (2007) relata que Salazar confiava suas decisões a organizações e
instituições como a Igreja Católica e as elites políticas.
Outro aspecto destacado por Martinho (2007) se refere à reestruturação do
ensino escolar, principalmente o primário, durante o regime ditador. Disciplinas de
cunho religioso foram reintroduzidas no currículo das escolas oficiais e uma
reestruturação nacionalista e tradicionalista do que era ensinado sobre a história
de Portugal foi realizada.
Segundo Rollo (2011), após a 2.ª Guerra Mundial as camadas
oposicionistas ao governo ditador fomentaram as discussões para uma abertura à
democracia das forças contrárias ao regime vigente. Como resposta, o governo
Salazarista organizou o afastamento das forças universitárias contrárias, iniciando
com Bento de Jesus Caraça e Mário de Azevedo Gomes, em 1946. Entretanto,
essa medida não foi suficiente para calar a elite cultural e científica do país. Em 14
de junho de 1947, António de Oliveira Salazar por meio de um Decreto no Diário do
Governo de 18 de junho de 1947, afasta de suas funções um grupo de docentes,
dentre eles Remy Freire, que era professor extraordinário do Instituto Superior de
Ciências Econômicas e Financeiras:

FIGURA 1: Decreto de demissão de Remy Freire

287
Transcrição do parágrafo grifado:

288
Dr. João Remy Teixeira Freire, professor extraordinário, interino, do
Instituto Superior de Ciências Econômicas e Financeiras.

Fonte: Rezende (2014), grifo dos autores.

De acordo com Martinho (2007), o domínio do regime ditador de António


Salazar seguiu incontestável até meados da década de 1950, momento em que a
organização das colônias portuguesas ganhou notoriedade. Em 1954, a fragilidade
do regime português foi potencializada, quando a União Indiana invadiu os
territórios de Dadra e Nagar-Haveli e, em 1961, foram ocupados os territórios do
chamado "Estado da Índia" (Índia Portuguesa), resultado da resistência do governo
Salazarista em negociar com a Índia. A recusa de conceder independência aos
outros territórios portugueses suscitou a chamada Guerra Colonial (em Angola,
Moçambique e Guiné-Bissau: Guerra de Libertação), que foi pouco a pouco
desestabilizando o regime ditador português.
Uma placa em homenagem aos 42 docentes e investigadores expulsos das
Universidades durante o Estado Novo figura na fachada do edifício da reitoria da
Universidade do Porto. O nome do professor Remy Freire está inserido nesta
homenagem:

FIGURA 2: Homenagem aos expulsos das Universidades pelo Estado novo

289
Transcrição do parágrafo grifado:
João Remy Teixeira Freire
Instituto Superior de Ciências Econômicas e Financeiras
Universidade Técnica de Lisboa
Fonte: Universidade do Porto, grifo dos autores.

De acordo com as nossas análises, Remy Freire retornou a Portugal após


a queda do regime ditador.

290
A NATURALIZAÇÃO BRASILEIRA E AS PRINCIPAIS CONTRIBUIÇÕES DE
REMY FREIRE PARA A SPM

Após a sua expulsão pelo governo ditador de António de Oliveira Salazar,


Remy Freire veio para o Brasil e ficou estabelecido em Curitiba. De acordo com a
publicação no Diário Oficial de 20 de novembro de 1953, João Remy Teixeira Freire
foi naturalizado brasileiro por meio do Decreto de 17 de novembro de 1953 sendo
assegurados os direitos e deveres da Constituição e das Leis do Brasil:

FIGURA 3: Naturalização brasileira de Remy Freire

Transcrição do parágrafo grifado:

291
João Remy Teixeira Freire, natural de Portugal, nascido a 24 de novembro de
1917, filho de Garibaldi Alves Freire e Laura da Silva Teixeira Freire, residente
no Estado do Paraná.
Fonte: Brasil (1953), grifo dos autores.

Segundo Newton Costa (2006, in COUSIN, 2007, p. 33), a vinda de Remy


Freire para Curitiba “injetou sangue novo para a própria Universidade Federal do
Paraná e para a cultura paranaense”. Ainda segundo Newton Costa, “criando a
Sociedade Paranaense de Matemática (SPM), incentivando o estudo em
Matemática, a publicação e a indagação no âmbito matemático” (COSTA, 2006, in
COUSIN, 2007, p. 33).
Com a criação da Sociedade Paranaense de Matemática em 31 de outubro
de 1953, Remy Freire promoveu em Curitiba um núcleo matemático moderno para
a época por meio de cursos que ministrou sobre Teoria das Matrizes, conforme Ata
da reunião da diretoria da SPM de 27 de maio de 1954. Além disso, conforme Ata
da reunião da diretoria da SPM de 5 de agosto de 1954, foram estabelecidas
conexões com outros matemáticos da época como Elon Lages Lima, que ministrou
cursos sobre Espaços Vetoriais e Topologia dos Espaços Métricos. Outros
momentos que destacamos sobre a participação de Remy Freire na SPM são
encontrados nos documentos das reuniões da diretoria, de 30 de outubro de 1954,
quando anunciou o envio de manuscritos sobre Álgebra Abstrata, pelo professor
Leopoldo Nachbin e, na reunião de 18 de dezembro de 1954, propôs a elaboração
de um plano de um curso de preparação para os vestibulares para as Instituições
de Ensino Superior. Remy Freire, segundo Costa (2006, in COUSIN, 2007),
defendia uma dinamização das pesquisas nas diferentes áreas da Matemática.
Um dos mais notórios discípulos de Remy Freire no Brasil é o professor
Newton Carneiro Affonso da Costa, um dos principais lógicos matemáticos
brasileiros e que, em várias de suas obras e entrevistas, remete a Remy como o
responsável pelo início da sua caminhada pela Matemática.

CONSIDERAÇÕES

292
Os desafios do desenvolvimento de uma pesquisa histórica como esta são
diversos. Sabemos que as eventuais lacunas causadas pela falta de acesso às
informações são inevitáveis. A dificuldade do acesso aos documentos e demais
informações vinculadas ao professor Remy Freire reforçaram a importância da
execução desta pesquisa e as suas contribuições para o entendimento da História
da Matemática no Paraná e, consequentemente, no Brasil.
O objetivo deste artigo de apresentar aspectos históricos da expulsão de
Remy Freire pelo regime ditador português no governo de António de Oliveira
Salazar e da sua imigração para o Brasil foi atendido na medida em que mostramos
o seu decreto de demissão em decorrência das suas ideologias serem contrárias
às do Governo, que eram embasadas na vanguarda dos princípios da Igreja
Católica quanto ao conservadorismo e ao tradicionalismo. A saída de Remy Freire
e dos demais professores de Portugal evidenciam a fragilidade do desenvolvimento
científico português frente a um regime político ditatorial, com um ensino limitado
pela crença na fé católica e nos princípios militares.
Por outro lado, a chegada da comunidade matemática portuguesa no
Brasil, marcou um novo momento para o núcleo matemático no Recife e em
Curitiba, sendo nesta última, possibilitada a criação da Sociedade Paranaense de
Matemática, considerada um divisor de águas na cultura matemática curitibana.

REFERÊNCIAS

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e a Educação Matemática no Paraná. 2019. 123 f. Tese (Doutorado) - Programa
de Pós-graduação em Educação Para a Ciência e a Matemática, Centro de
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293
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pediram a fim de que possam gozar dos direitos outorgados pela Constituição e
Leis do Brasil. Diário Oficial: Seção I. Brasília, 20 nov. 1953. Ministério da Justiça
e Negócios Interiores.

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um relatório para a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de
São Paulo e suas possíveis cópias. Revista Brasileira de História da Ciência,
Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, p.110-121, dez. 2015.

SOCIEDADE PARANAENSE DE MATEMÁTICA. Curitiba. Ata da reunião


realizada no dia 27 de maio de 1954. Livro 1, f. 5.

SOCIEDADE PARANAENSE DE MATEMÁTICA. Curitiba. Ata da reunião


realizada no dia 5 de agosto de 1954. Livro 1, fs. 5 e 6.

SOCIEDADE PARANAENSE DE MATEMÁTICA. Curitiba. Ata da reunião


realizada no dia 30 de outubro de 1954. Livro 1, fs. 6 e 7.

SOCIEDADE PARANAENSE DE MATEMÁTICA. Curitiba. Ata da reunião


realizada no dia 18 de dezembro de 1954. Livro 1, fs. 7 e 8.

TRIVIZOLI, L. M. Intercâmbios Acadêmicos Matemáticos entre EUA e Brasil:


uma globalização do saber. 2011. 158.f. Tese (Doutorado em Educação
Matemática) - Universidade Estadual Paulista. Rio Claro, 2011.

295
UMA PROPOSTA PARA O ENSINO DE CONJUNTO NO LIVRO “HORA
ALEGRE NA MATEMÁTICA”, 1.º GRAU

Relicler Pardim Gouveia111

RESUMO
Neste artigo busca-se caracterizar elementos de um saber profissional do professor que
ensina matemática, por meio da análise do livro intitulado Hora Alegre na Matemática, de
autoria Romilda Araujo. O texto se ampara em autores que colocam o saber profissional
como tema para análise do ensino e da formação em contexto histórico. A questão que
norteou o estudo foi: “que matemática para ensinar surge ao analisar as orientações da
autora, no livro Hora Alegre na Matemática, ao introduzir o ensino de conjunto?”. A análise
desta obra revelou que, neste período, os professores necessitavam se apropriar das
noções deste conteúdo para tornar o ensino intuitivo e elementar. Além disso, se deveria
fazer uso de recursos materiais como por exemplo o flanelógrafo, de situações do dia a dia
e da utilização de objetos como dispositivo intuitivo para que a matemática pudesse se
tornar mais significativa.

Palavras-chave: Saberes. Livro didático. Conjunto.

INTRODUÇÃO

O presente estudo busca caracterizar elementos de um saber profissional


do professor que ensina matemática por meio da análise do livro Hora Alegre na
Matemática, de Romilda Araujo. Além disso, a investigação, visa contribuir com
ações da pesquisa112 de doutorado em andamento, que tem como objetivo discutir
como os elementos provenientes do Movimento Matemática Moderna vão se

111 Universidade Federal de São Paulo – Campus Guarulhos (UNIFESP). reliclerpardim@gmail.com.


112Tal projeto tem por título: A Matemática Moderna para ensinar no primário (1960 – 1990):
mudanças no saber profissional. A pesquisa conta com financiamento da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo, processo FAPESP 2019/13630-9.

296
apresentando na formação de professores que ensinam matemática nas primeiras
séries do 1.º grau, entre os anos de 1960 e 1990, na cidade de São Paulo.
Para analisar a constituição dos saberes profissionais, elegemos como
ferramental teórico-metodológico conceitos advindos da História Cultural, da
História da Educação e da História da Educação Matemática. Dentre eles, faz-se
destaque: Chartier (1990), com as noções de representação e apropriação; Certeau
(2011), estratégias, táticas e discursos históricos; Hofstetter, Scheneuwly (2017),
saberes; e mais próximo do nosso objeto teórico Bertini, Morais e Valente (2017),
com os conceitos de matemática a ensinar e matemática para ensinar.
Neste estudo optamos pela matemática para ensinar, partindo da análise
do livro supracitado em linhas anteriores. O referido material tinha a intenção de
atender tanto as necessidades dos alunos, quanto as dos professores que ensinam
matemática nas primeiras séries do 1.º grau.
Concentramo-nos nas orientações da autora para o ensino de conjunto na
primeira série do 1.º grau, com vistas o questionamento que matemática para
ensinar surge ao analisar as orientações da autora, no livro Hora Alegre na
Matemática, ao introduzir o ensino de conjunto?

ORIENTAÇÕES SOBRE O ENSINO DE CONJUNTO

O livro Hora Alegre na Matemática de autoria de Romilda Araujo, é uma


obra em 4 volumes, que compreende as quatro séries primárias, publicada pela
editora IBEP – Instituto Brasileiro de Edições Pedagógicas. No livro não é
apresentado a data de publicação, nem o número da edição, no entanto, na última
página é possível encontrar o selo: “propriedade da biblioteca COLTED 113 1967”,
sendo assim, entende-se que a edição e publicação se deu por volta deste período.

113A Comissão do Livro Técnico e Didático (COLTED), localizava-se no Rio de Janeiro, foi criada
em 1966 e extinta em 1971. Tinha como objetivo coordenar as ações referentes à produção, edição
e distribuição do livro didático.” (BATISTA; SANTOS; SOUZA, 2016, p. 1027).

297
FIGURA 1: Capa do livro Hora Alegre na Matemática114

Fonte: Araujo, s.d


Essa obra é composta pelo manual do professor e livro do aluno. Apesar
de realizarmos várias buscas no intuito de conseguir ambos os materiais (manual
do professor e livro do aluno), não foi possível encontrar o segundo material. Por
isso analisamos apenas o manual do professor.
No livro destinado ao primeiro ano primário115, são encontrados 100 planos
de aula divididos em 8 estágios sendo que em média, cada um deles é composto
por 12 planos de aula e um teste ao final.
Para este estudo centramo-nos na ideia de conjunto. Esse conteúdo é
trabalhado no primeiro estágio, composto por 18 planos de aula, dentre estes,
apenas os planos de aula n.º 2 ao n.º 17, evocam a ideia de conjunto. O plano de
aula n.º 1, propõem que o professor trabalhe com os alunos o reconhecimento de
figuras, que apresentem formas e tamanhos variados; bem como leve os alunos a
reconhecer a direita e esquerda, como também, identificar figuras que estejam em
diferentes posições. Por sua vez, o plano de aula n.º 18 propõe que o professor
incentive seus alunos a escreverem os numerais de 1 a 9 em sequência e a lerem
os numerais na linha numérica.
Em cada plano de aula é definido de modo gradual o que deve ser
trabalhado, conforme podemos observar no quadro 1.

114 A capa aqui apresentada refere-se à edição que possuímos, no entanto, na internet foi possível
encontrar uma capa diferente da que é apresentada aqui.
115 Para este artigo foi feita a opção por trabalhar apenas com o livro do primeiro ano primário.

298
QUADRO 1: Conteúdo trabalhado em cada plano de aula
Plano de O que deve ser trabalhado?
Aula
- Levar as crianças à ideia do conjunto.
- Corresponder um a um os elementos dos conjuntos.
- Ver conjuntos sem nenhum elemento.
N.º 2
- Desenvolver a discriminação visual.
- Desenvolver o vocabulário matemático: muito, pouco, mais, menos,
etc. (quantidade); maior, menor, etc. (tamanho).
- Usar o vocabulário, em cima, embaixo, antes, primeiro, à direita, à
N.º 3 esquerda, etc. (posição)
- Desenvolver a discriminação visual.
- Correspondência um a um entre os elementos dos conjuntos.
- Conjuntos formados de um só elemento.
N.º 4 - Conjuntos formados de nenhum elemento.
- Enumeração de 1 a 4.
- Identificação de 1 a 4.
- Enumerar de 1 a 4.
- Corresponder o nome do número à quantidade enumerada.
N.º 5 - Identificar rapidamente.
- Ler e escrever os numerais 1 e 2.
- Reproduzir as quantidades enumeradas.
- Corresponder um a um os elementos dos conjuntos.
- Enumerar, identificar e reproduzir conjuntos de 5 e 6 elementos.
N.º 6
- Escrever os numerais 3 e 4.
- Unir o símbolo numérico à quantidade correspondente.
- Comparar conjuntos e completar quantidades.
N.º 7 - Agrupar os elementos dos conjuntos do total 3 e 4.
- Usar os numerais 1, 2, 3 e 4.
- Enumerar até 7.
- Reproduzir quantidades.
N.º 8
- Escrever os números 5 e 6.
- Unir os símbolos às quantidades.
- Comparar conjuntos.
- Usar o símbolo de igualdade (=)
N.º 9
- Escrever a sentença matemática correspondente.
- Concluir se a sentença matemática é verdadeira ou não.
- Comparar quantidades.
- Completar conjuntos, deixando-os com a mesma quantidade de
N.º 10
elementos.
- Agrupar conjuntos de 5 elementos.
- Enumerar conjuntos de 8 e 9 elementos.
N.º 11 - Reproduzir quantidades.
- Escrever o numeral 7.
N.º 12 - Agrupar conjuntos de 6 elementos
- Comparar conjuntos.
- Usar o símbolo diferente
N.º 13
- Escrever a sentença matemática.
- Concluir se a sentença matemática é verdadeira ou não.
- Unir os símbolos às quantidades correspondentes.
- Completar conjuntos, deixando-os com o mesmo número de
N.º 14
elementos.
- Escrever os numerais 8 e 9.
N.º 15 - Agrupar conjuntos de 7 elementos.
N.º 16 - Agrupar conjuntos de 8 elementos.

299
N.º 17 - Agrupar conjuntos de 9 elementos.
Fonte: Elaborado pelo autor

O plano de aula n.º 2 é construído de modo a fazer com que o professor


conduza os alunos à ideia de conjunto. Para tanto, é evidenciado que se deve
introduzir este novo termo: “Conjunto”. No plano de aula n.º 6, o aluno se apropriará
dos novos termos: “correspondência e corresponder”. No plano de aula n.º 7, os
novos termos são: “agrupar, agrupamento e total”. No plano n.º 9 o aluno se
apropriará do termo “sentença matemática”.
Como recurso material, em todos os planos de aula é sugerido que o
professor faça uso do flanelógrafo116, pois a partir deste, os alunos têm a
possibilidade de observar as construções com maiores detalhes. Por exemplo, na
primeira atividade proposta no plano de aula n.º 2, o professor com o uso do
flanelógrafo pode solicitar a um dos alunos para colocar um “grupo de gatinhos”. A
partir deste primeiro movimento, seria possível introduzir a ideia de conjunto,
discutindo com a turma agora a representação de um “conjunto de gatinhos”. Como
sequência da atividade e ainda utilizando o recurso do flanelógrafo o professor não
mais solicitará que se coloque um grupo de bolinhas, mas sim, um conjunto de
bolinhas.
Outro exemplo de atividade, para introdução da ideia do conceito em
questão, é utilizando conjunto de figuras com quantidades iguais e figuras
semelhantes, como pode ser observado na figura 2.
FIGURA 2: Conjuntos de patinhos

Fonte: Araujo (s/d, p. 10).

116O flanelógrafo é um recurso didático. É uma placa coberta por uma flanela ou material
semelhante, no qual se fixa figuras diversas.

300
A partir desta imagem o professor poderá solicitar que os alunos liguem os
elementos de um conjunto, com os elementos do outro conjunto. Em seguida, ele
pode questionar se sobrou patinho que não teve ligação com outro, em algum
conjunto, ou ainda, se o aluno conseguiu alguma outra relação.
Para além do uso do flanelógrafo, outros materiais sugeridos pela autora
para serem utilizados são: lousa, caixa com tampinhas, palitos, material da
criança117, contador, etc. Um exemplo de uso de alguns destes materiais pode ser
encontrado em uma atividade no plano de aula n.º 6. Com o uso da lousa, orienta-
se o professor a construir uma estrela e perguntar aos alunos quantas são
observadas. Em seguida deve-se aumentar o número até quatro, sempre de modo
progressivo, fazendo com que o aluno possa dizer a quantidade. Depois, solicita-
se que eles coloquem sobre a carteira 3 tampinhas. Neste novo movimento o
professor poderá solicitar que os alunos representem de forma escrita a quantidade
de tampinhas que ele possui na carteira. Por fim, solicita que o aluno escreva em
numeral a quantidade quatro.
Por meio desta atividade, é possível perceber que o professor pode ir
construindo de modo gradual as etapas, primeiro utilizando uma representação
oral, a qual é obtida a partir da identificação de imagens. Após esse
reconhecimento, eles (os alunos) podem ir construindo compreensões sobre
aquela quantidade, passando para uma representação escrita do número que
significa a quantidade de tampinhas que há sobre a mesa. Na última etapa deste
ciclo, o aluno deve conseguir representar de forma simbólica o número quatro.
Percebe-se que nesse livro, orientava-se o uso de materiais, de modo que
o professor pudesse utilizá-los como suporte para o desenvolvimento das aulas. O
foco parecia estar no percurso que levaria à aprendizagem do aluno. Percebe-se
uma linearidade e uma sequência lógica para se desenvolver o conteúdo.
É certo que a vertente epistemológica e didática se manifesta na condução
dos planos de aula, enunciados pela autora, para conduzir o ensino de matemática.
Embora isso aconteça, percebe-se que a cultura escolar deste momento estava

117 Em nenhum local é explicado o que seria esse material da criança. Pelo modo que é utilizado na
atividade fica evidente que seja o caderno do aluno e lápis.

301
impregnada por uma vertente em que o professor inseria o aluno em uma prática e
um conhecimento mais voltado as suas ações cotidianas. Por esse motivo André
Chervel, nos garante que a disciplina escolar associada às práticas, deriva da
semelhança entre o trabalho docente e as condições ditadas pela sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O livro de Romilda Araujo, traz que o professor pode propor aulas que
agreguem a participação do aluno, de modo ativo, aproximando-o com o ensino de
matemática. Ademais, o modo que a autora conduz os planos de aula, possibilita
aos professores levarem o ensino a se aproximar mais do dia a dia dos alunos,
admitindo uma conjuntura mais moderna para ensinar.
Ao longo do livro Hora Alegre na matemática, percebe-se que o mesmo
atribui uma sequência metodológica “prática” para o desenvolvimento do trabalho
docente, uma vez que fornece ao professor planos de aula que favorecem um
trabalho com maiores experiências pelo aluno. Uma das ideias centrais é a de que
o aluno sempre deve construir a ideia do que está sendo trabalhado, a partir de sua
experimentação. As necessidades deles vão se materializando ao passo que o
professor se utiliza de recursos materiais que perfazem a observação e a
sistematização de um ensino mais participativo entre professor-aluno e aluno-
professor.
O processo de ensinar matemática proposto no livro de Romilda Araujo, de
certo modo, já empregava elementos do Movimento da Matemática Moderna, assim
como destacado na capa do livro de que “era para escola moderna”. As
informações aqui discutidas evidenciam contribuições da nova proposta dada pelo
Movimento da Matemática Moderna, as quais manifestam aportes teóricos
suficientes para oferecer condições para uma maior interação com a matemática.
Em Araujo (s.d), a matemática para ensinar já estaria posta desde a
sequência estabelecida pelos estágios que compreende os planos de aula. Em se
tratando do ensino de conjuntos, no livro podemos perceber, que a autora teve
cuidado ao propor que cada conceito fosse trabalhado em momentos adequados,

302
de modo progressivo: primeiro a compreensão do que era um conjunto, depois
correspondência, agrupamento, e por fim sentença matemática.
Ademais, a autora propõe que o professor construa a ideia de conjunto,
valendo-se de materiais concretos, para auxiliar o aluno a encontrar soluções para
questões propostas pelo professor.
Vemos que a dinâmica dada ao ensino de conjunto induz o aluno a
compreender o que estava sendo ensinado pelo professor, e essa percepção pode
ser verificada nas solicitações recorrentes do professor para que o aluno fizesse
representações ou observasse as representações que um conjunto pode tomar.
Retomando a nossa questão de investigação: Que matemática para
ensinar surge nas orientações da autora, no livro Hora alegre na Matemática, ao
introduzir o ensino de conjunto? Podemos indicar que a matemática para ensinar
estava presente na construção e no desenvolvimento da obra, que parte de uma
experimentação e das práticas da autora para melhor conduzir o desenvolvimento
dos alunos nas diversas escolas. Por fim, é possível dizer que o livro Hora Alegre
na Matemática, ao propor o estudo de conjunto, se revela como um documento
importante que objetivava uma matemática para ensinar em tempos do Movimento
da Matemática Moderna.

REFERÊNCIAS

ARAUJO, R. Hora Alegre na Matemática. São Paulo: Instituto Brasileiro de


Edições Pedagógicas, s.d.

BATISTA, C. O.; SANTOS, E. S. C. dos; SOUZA, M. M. de. A Comissão do Livro


Técnico e do Livro Didático (COLTED) e o treinamento de professores para o uso
do livro didático. In: Encontro Nacional de Pesquisa em História da Educação
Matemática, 3., 2016, São Mateus. Anais do 3º ENAPHEM. São Mateus:
Enapehm, 2016. p. 1025-1036. Disponível em:
https://periodicos.ufms.br/index.php/ENAPHEM/article/viewFile/6267/4603.
Acesso em: 25 jan. 2021.

BERTINI, L. F.; MORAIS, R. dos S.; VALENTE, W. R. A matemática a ensinar e


a matemática para ensinar: novos estudos para a formação de professores. São
Paulo: Editora Livraria da Física. 2017.

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CERTEAU, M. de. A Escrita da História. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense-
Universitária, 2011.

CHARTIER, R. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel,


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profissões do ensino e da formação. In: HOFSTETTER, R.; VALENTE, W. R.
(org.). Saberes em (trans)formação: tema central da formação de professores.
São Paulo: Livraria da Física, 2017. p. 113-172.

304
305
A ANTIGUIDADE DA MATEMÁTICA RECREATIVA COMO ATIVIDADE
HUMANA DE ENTRETENIMENTO

Maria da Conceição Alves Bezerra118


Marlene Gorete de Araújo119

RESUMO
A Matemática Recreativa (MR) envolve jogos matemáticos, quebra-cabeças matemáticos,
problemas históricos, Problemas Recreativos, curiosidades topológicas, magia, arte, além
de outras tarefas de caráter lúdico e pedagógico. Quanto à origem histórica da Matemática
Recreativa, é impossível saber com exatidão. Para isso, destacamos antigos problemas de
natureza recreativa que servem como marcadores históricos úteis. O objetivo deste artigo
é apresentar antigos indícios de atividades com Matemática Recreativa à professores da
Educação Básica e estudantes do curso de Licenciatura em Matemática. Desse modo,
realizamos um mapeamento de pesquisa que versam sobre a Matemática Recreativa a
partir de Teses e Dissertações produzidas por pesquisadores brasileiros e estrangeiros.
Após esse mapeamento, nos trouxe como resultado, o entendimento da Matemática
Recreativa como uma abordagem metodológica que pode proporcionar motivação,
diversão, alegria, entretenimento e pode tornar a Matemática séria mais compreensível ou
prazerosa. Por fim, o nosso trabalho contribui para apresentar a Matemática Recreativa
aos professores de Matemática em formação.

Palavras-chave: Antiguidade da Matemática Recreativa. Problemas de Natureza


Recreativa. História da Matemática.

INTRODUÇÃO

Este trabalho é parte de uma investigação em andamento, versando sobre


a Matemática Recreativa (MR). A MR é uma abordagem metodológica em
Educação Matemática que pode contribuir, em sala de aula de Matemática, aos

118
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). mcabst@hotmail.com
119
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). marllenearaujo@hotmail.com

306
propósitos mais comumente reconhecidos como promover o aprendizado de
Matemática, promover uma ligação da Matemática de sala de aula com a História
da Matemática, proporcionar um certo entretenimento, entusiasmo, e fora da sala
de aula, ser como meio de popularização da Matemática. No entanto, queremos
destacar algumas potencialidades que a Matemática Recreativa pode promover: o
prazer, a alegria, a diversão e outras dimensões positivas em sala de aula e, com
isto promover o desenvolvimento dos estudantes (SUMPTER, 2015).
Dessa forma, a Matemática Recreativa é uma abordagem metodológica,
importante para o ensino de Matemática, pois pode ser vista como uma forma lúdica
de apresentar problemas históricos, Problemas Recreativos, jogos matemáticos,
quebra-cabeças matemáticos, curiosidades topológicas, magia, arte, além de
outras tarefas de caráter lúdico e pedagógico, e não só para a diversão, mas para
despertar a curiosidade, desafiar, para desenvolver o raciocinio lógico e
matemático. Sendo assim, o uso da MR no ensino de Matemática pode contribuir
para tornar as aulas mais dinâmicas, divertidas, lúdicas e instigantes com os
conteúdos matemáticos.
Mas afinal, por que expor sobre a antiguidade da Matemática Recreativa
como atividade humana de entretenimento?
Nosso projeto de pesquisa maior versa sobre aspectos conceituais,
didáticos-pedagógicos e os tipos de tarefas mais frequentes em Matemática
Recreativa, a saber: jogos matemáticos, quebra-cabeças matemáticos e Problemas
Recreativos. No presente artigo, nosso objetivo é apresentar antigos indícios de
atividades com Matemática Recreativa e antigos problemas (clássicos) de natureza
recreativa. Além disso, apresentamos de modo sucinto definições e os aspectos de
MR, considerando os estudos de autores no campo da Educação Matemática em
âmbito nacional e internacional.

PERCURSO METODOLÓGICO

307
Este trabalho é caracterizado por uma abordagem metodológica de pesquisa
qualitativa. Inicialmente, realizamos um mapeamento de pesquisa (FIORENTINI,
PASSOS, LIMA, 2016) envolvendo Matemática Recreativa a partir de Teses e
Dissertações produzidas por pesquisadores brasileiros e estrangeiros publicadas
na área nos últimos 24 anos (1994 a 2018). Para o levantamento das Teses e
Dissertações foi realizada uma pesquisa que teve como fonte de consulta o Banco
de Teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES), na base nacional da Biblioteca Digital de Teses e Dissertações (BDTD),
e na plataforma de Portal Periódicos Capes para busca de literatura internacional.
Posteriormente, realizamos uma análise nas Teses e Dissertações que
consideramos de maior relevância para nosso estudo. Após a análise, obtivemos
as concepções e aspectos da MR, as vantagens e desvantagens de introduzir essa
ferramenta em sala de aula, as principais tarefas em MR, matemáticos, obras e
autores que contribuíram para a divulgação da MR no Brasil e no exterior. Esses
resultados serão apresentados em publicações posteriores.
Veremos a seguir antigos indícios de atividades com MR, bem como antigos
problemas (clássicos) de natureza recreativa, e assim, enfatizar a importância
desses trabalhos para o fortalecimento da Matemática Recreativa e História da
Matemática.

ANTIGOS INDÍCIOS DE ATIVIDADES COM MATEMÁTICA RECREATIVA

De início, apresentamos uma discussão sobre a MR a partir da Tese de


Bártlová (2016), uma vez que consideramos importante essa exposição inicial para
situar os professores de Matemática em formação inicial e/ou continuada sobre a
antiguidade da MR como atividade humana de entretenimento. Para isso,
destacamos antigos indícios de atividades com Matemática Recreativa, bem como
alguns antigos problemas de natureza recreativa e históricos do campo da MR.
Para Bártlová (2016), os indícios mais antigos de atividades relacionada à
MR são representadas pelas Bolas de Pedra Esculpidas da Escócia. Estas formam

308
uma classe enigmática de objetos projetados para manipulação e parecem datar
do período neolítico tardio (3000 – 2500 a.C.). Os objetos constituem-se de pedras
de arenito ou granito. Todos as pedras têm, aproximadamente, o mesmo tamanho
e são decoradas com padrões de saliências esculpidas em espaçamento uniforme
sobre botões circulares em torno da superfície da esfera (Figura 1).

FIGURA 1: BOLAS DE PEDRA ESCULPIDAS DA ESCÓCIA

Fonte: Bártlová (2016, p. 13).

Os modelos das Bolas (esferas) variam, mas a maioria delas se encaixa no


modelo de seis botões. No entanto, é possível encontrar esferas esculpidas com
número de botões variando de 3 a 160. Algumas esferas parecem fabricadas mais
habilmente do que outras, e algumas raras, têm decoração adicional. Para todas,
percebe-se uma valorização da simetria no desenho.
Apesar de seu grande número, pouco se sabe sobre as Bolas de Pedra
Esculpidas e seu objetivo ainda é desconhecido. Poucas, entre elas, estão
danificadas ou mostram sinais de uso e não foram encontradas em contextos que
sugerissem uma função específica. Presume-se que tenham sido objetos não
utilitários de significação simbólica.
Alguns matemáticos estão interessados nas esferas por causa de sua beleza
estética. Seus criadores estavam gerando objetos esféricos com máxima simetria.
Assim, para saber mais informações sobre as Bolas de Pedra Esculpidas visite o
site do Museu Nacional da Escócia – National Museum of Scotland
(https://www.nms.ac.uk/).
Outra atividade antiga que pertence a MR, segundo Bártlová (2016), são os
Quadrados Mágicos. Para a autora, o exemplo mais antigo que se conhece de um

309
problema computacional é o Quadrado Mágico (Figura 2). Supõe-se que o
Quadrado Mágico tenha sido construído durante o reinado do imperador Yu que
era conhecido pelos matemáticos chineses em torno de 2200 a.C.

FIGURA 2: TARTARUGA LO-SHU

Fonte: Bártlová (2016, p. 14).

A Figura 3 a seguir, no lado esquerdo, mostra a configuração do Lo-Shu, na


qual os números de 1 a 9 são compostos por nós feitos em cordas sendo nós pretos
para os números pares e brancos para os ímpares.

FIGURA 3: PADRÃO QUADRADO COM MARCAÇÕES E NÚMEROS

Fonte. Bártlová (2016, p. 14).

A literatura disponível hoje em dia sobre Quadrados Mágicos é vasta e inclui


muitas variações, como Quadrados Mágicos de tamanhos diferentes e Quadrados
Mágicos, cujas entradas são todos quadrados perfeitos distintos, cubos mágicos,
dentre outros. Nesse sentido, destacamos o trabalho de Menezes (2004), onde a
autora traz as definições sobre os Quadrados Mágicos, os dados históricos, o
mistério e a magia que os envolvem, principalmente ao Lo-Shu, bem como as

310
principais classificações e os métodos de construção dos Quadrados Mágicos
(MENEZES, 2004).
Por entender que a compreensão da MR é central na nossa investigação, a
seguir apresentamos e discutimos alguns antigos problemas (clássicos) de
natureza recreativa, além de definições e os aspectos da MR.

ANTIGOS PROBLEMAS DE NATUREZA RECREATIVA

Para introduzir a ideia de MR aos professores de Matemática em formação


trazemos aqui alguns problemas (clássicos) de natureza recreativa (Quadro 1) tão
antigos e difundidos que já têm, inclusive, nomes próprios. Dos problemas
apresentados, os 08 primeiros foram extraídos do trabalho de Bártlová (2016) e o
nono foi extraído de Segantini (2015), e da obra O Homem que Calculava, de Malba
Tahan (2017).

Quadro 1. Antigos Problemas (clássicos) de Natureza Recreativa


Nº Nome do Enunciado Referências
problema
1. Problema do Obter um número que somado com Para uma melhor
tipo pense seus 2/3 e desta soma, subtraindo- compreensão
em um se a terça parte, dê 10. Qual é o acerca do
número número? problema 28 do
Papiro de Rhind
(1650 a.C),
consultar a
dissertação de
Martins (2015) e a
tese de
Gonçalves (2011).
2. Problema do Há 7 casas, em cada casa temos 7 Para uma melhor
tipo canção gatos, cada gato mata 7 ratos, cada compreensão
de ninar rato comeu 7 grãos de cevada, acerca do
cada grão teria produzido 7 hekats problema 79 do
de cevada. Qual a soma das coisas Papiro de Rhind
enumeradas? (1650 a.C),
consultar a
dissertação de
Martins (2015) e a

311
tese de
Gonçalves (2011).
3. O Problema Hélio, o Deus do Sol, tinha bois e Para mais
do Gado vacas, divididas em quatro informações
rebanhos de diferentes cores: sobre as versões
branca, preta, malhada e castanha deste problema, e
e, cada parte, tinha bois e vacas. Os as soluções
bois: o número de bois brancos era históricas
um meio mais um terço dos bois consultar as teses
pretos mais o de castanhos; o de Bártlová (2016)
número de bois pretos era um e Gonçalves
quarto mais um quinto dos bois (2011).
malhados mais o de castanhos; o
número de bois malhados era um
sexto mais um sétimo do de bois
brancos mais o de castanhos. As
vacas: o número de vacas brancas
era um terço mais um quarto do
total de animais pretos; o número
de vacas pretas era um quarto mais
um quinto do total de animais
malhados; o número de vacas
malhadas era um quinto mais um
sexto do total de animais
castanhos; o número de vacas
castanhas era um sexto mais um
sétimo do total de animais brancos.
Quantos animais existiam ao todo
de cada tipo?
4. O Problema A princesa Dido solicitou ao rei Para mais
da Princesa Berbere Iarbas um pequeno pedaço informações
Dido de terra para um refúgio temporário
sobre os
até que ela pudesse continuar suaaspectos
jornada. Ela pediu a quantidade de
históricos da
terra que poderia ser englobada Lenda de Dido e
pelo couro de apenas um touro, o as soluções,
rei concordou. A inteligente Elisa,
consultar a tese
cortou a pele do touro em tiras bem
de Bártlová
finas, de modo que ela conseguiu o
(2016), a
suficiente para cercar toda uma dissertação de
colina. Souza (2014) e o
vídeo sobre a
Lenda de Dido.
5. O Problema Josefo e seus companheiros (40 O problema, as
de Josefo soldados) foram presos em uma versões da lenda
caverna, cuja saída foi bloqueada e as soluções

312
pelos romanos. Eles preferiram históricas
suicidar-se a serem capturados e encontram-se na
decidiram que iriam formar um tese de Bártlová
círculo e começar a matar-se (2016) e no artigo
pulando de três em três. Existe a de Ezquerra
possibilidade de alguém ocupar (2012).
uma posição em que seja possível
escapar da morte?
6. O Problema Um homem se encontra na margem O problema, as
de travessia – de um rio com um lobo, uma cabra variações dos
o lobo, a e uma couve. Para atravessar o rio enunciados e as
cabra e a existe apenas um barco pequeno, soluções
couve que cabe apenas o homem e um de encontram-se na
seus pertences. Como pode tese de Menezes,
atravessar em segurança o homem (2004, p. 15-23) e
junto com seus pertences? no artigo de
Lopes (2017, p.
73-90).
7. O Problema Quantos pares de coelhos serão O problema
dos Coelhos produzidos ao fim de um ano, aparece na obra
começando com um só par se, em Liber Abaci
cada mês, cada par gera um novo proposto por
par que se torna produtivo a partir Leonardo de Pisa
do segundo mês? (Fibonacci) e as
soluções
encontram-se na
tese de
Gonçalves (2011,
p. 430-437).
8. O Problema O problema consistia em saber se Para uma
das pontes era possível percorrer as pontes discussão mais
de que ligavam uma ilha no rio Pregel, detalhada sobre o
Königsberg em Königsberg (atual Kalinigrado, enunciado e a
na Rússia), ao restante da cidade, resolução do
sem passar pela mesma ponte problema
duas vezes. consultar o artigo
de Lopes e
Táboas (2015, p.
23-32).
9. O Problema Um problema de herança de 35 O problema foi
dos 35 camelos deve ser repartido, pelos extraído da obra
Camelos três herdeiros, da seguinte forma: o O Homem que
mais velho deveria receber a Calculava de
metade da herança; o segundo Malba Tahan
deveria receber um terço da (2017, p. 21-22) –
edição

313
herança; e o terceiro um nono da comemorativa de
herança. Como fazer a partilha? 120 anos do
nascimento do
autor e da
dissertação de
Segantini (2015).
Fonte: Produzido pelas autoras com informações disponíveis em Bartlová (2016) e
Segantini (2015).

Bártlová (2016), afirma que a MR é tão antiga quanto a Matemática em si


como se constata nos problemas da Matemática Egípcia no papiro de Rhind que,
também conhecido como Papiro de Ahmes (1650 a.C), contém uma série de
tabelas e 87 problemas com as respectivas soluções e no papiro de Moscou (1890
a.C) que contém 25 problemas. Para a autora, é impossível saber exatidão com a
origem histórica da MR.
Recreações ainda hoje propostas, em geral, foram escritas há milhares de
anos. Segundo Bártlová (2016), no papiro de Rhind encontramos problemas de
diversão (nº 28), conhecidos como pense em um número, mas também de um tipo
diferente como canção de ninar, a exemplo do problema 79. Ainda de acordo com
a autora, esses problemas não tinham aplicação na vida cotidiana, talvez seu
objetivo principal fosse proporcionar prazer intelectual.
Outro importante problema descrito no estudo de Bártlová (2016) é o
Problema do Gado de Arquimedes (287 – 212a.C.), um dos maiores matemáticos
da antiguidade. Arquimedes nasceu em Siracusa (Sicília) e morreu durante a
pilhagem romana de Siracusa. Para mais informações, é possível consultar a Tese
de Ida Maria Faria de Lira Gonçalves intitulada Os problemas da matemática: o seu
papel na matemática e nas aulas de matemática (2011, p. 338-348). Para essa
autora, o famoso Problema do Gado de Arquimedes representa um tipo comum de
recreação matemática e histórica.
Outro problema considerado por Bártlová (2016) como O Problema da
Princesa Dido também é conhecido como Lenda de Dido. O poeta romano clássico
Publius Vergilius Maro, conhecido por Virgílio (70 a.C – 19a.C.) descreveu em
Eneida (A Eneida, faz parte do período clássico, 80 a.C. – 70 d.C.) a lenda da
princesa fenícia Dido. Elisa era uma princesa do século IX a.C. da cidade de Tiro,

314
às margens do Mediterrâneo, localizada onde hoje localiza-se o Líbano. A princesa
fenícia Dido fundou uma nova cidade que ficou conhecida como Cartago que hoje
pertence a Tunísia, menor país do norte da África.
Dido resolveu, de forma intuitiva, o que hoje é chamado de problema
isoperimétrico e que é enunciado da seguinte forma: Entre todas as curvas
fechadas simples no plano, de comprimento dado L, encontre aquela que engloba
maior área. A primeira demonstração do problema isoperimétrico amplamente
aceita surgiu em 1870 como consequência do trabalho do matemático alemão Karl
Weierstrass (1815 – 1897) em Cálculo das Variações. Depois de Weierstrass,
outros matemáticos obtiveram demonstrações do problema isoperimétrico usando
Geometria, Cálculo Diferencial e Integral e Séries de Fourier (BÁRTLOVÁ, 2016).
Para uma discussão mais detalhada sobre os aspectos históricos do
problema isoperimétrico sugerimos a Dissertação de autoria de Fabio Fiuza de
Souza (2014) intitulada A Lenda de Dido como motivação para o estudo de figuras
isoperímetro na educação matemática: explorando a dedução-lógica.
Recomendamos também o vídeo da série Matemática na Escola que aborda
conteúdos de Matemática do Ensino Médio sobre a Lenda de Dido
(http://www.youtube.com/watch?v=SSaOcnmYt6I).
Segundo Bártlová (2016), outro problema da antiguidade é O problema de
Josefo, uma lenda de Flávio Josefo (em latim, Flavius Josephus), historiador
romano-judaico que viveu no século I, primeiro século da Era Cristã (37 ou 38 d.C),
e autor do livro Bellum Judaicum – A Guerra dos Judeus). O famoso Problema de
Josefo, um clássico na MR, pode ser encontrado no artigo escrito por Pedro Alegría
Ezquerra (2012), intitulado Entre la matemática y la magia: la leyenda de Josefo y
la mezcla australiana.
Bártlová (2016) destaca também os Problemas de travessia – o lobo, a cabra
e a couve. Para este problema destacamos as contribuições da Tese de Menezes
(2004) que fez um estudo sobre a história de algumas Recreações Matemáticas. A
autora, traz a história, as versões e respectivas variações ao longo do tempo de um
problema de travessia da obra de Propositiones Ad Acuendos Juvenes de Alcuíno
de York (735 – 804), em português, Problemas para estimular os jovens.

315
Menezes (2004) evidencia um famoso problema de lógica que pertence a
uma classe de problemas conhecida como problemas de travessia – O problema
do lobo, a cabra e a couve – (problema número 18 de Alcuíno). Outra contribuição
sobre os problemas propostos por Alcuíno de York encontram-se no artigo de
Frederico José Andries Lopes (2017, p. 79-90) intitulado Propositiones Ad
Acuendos Juvenes, de Alcuíno de York – Tradução.
Bártlová (2016) aponta na obra Liber Abaci (O Livro do Ábaco, em 1202)
Problemas Recreativos e históricos do maior matemático italiano da Idade Média,
Leonardo de Pisa (1170 – 1250), mais conhecido como Fibonacci. O Liber Abaci é
um tratado sobre métodos e problemas algébricos em que o uso de numerais indo-
arábicos é fortemente recomendado. Fibonacci introduziu no Capítulo XII o
problema 37 que lhe deu fama, O problema célebre dos coelhos, e originou a
conhecida sucessão de Fibonacci.
Uma sequência numérica é dita recursiva quando um determinado termo
pode ser calculado, em função de termos antecessores. Para Bártlová (2016), a
sequência de Fibonacci foi a primeira dessas sequências recursivas conhecidas na
Europa. Para saber mais informações sobre Fibonacci, a sua obra Liber Abaci, o
problema dos coelhos e a sucessão de Fibonacci pode-se consultar a Tese de
Gonçalves (2011, p. 423-437).
Outro exemplo que merece destaque é apontado por Bártlová (2016) na
origem da Topologia ou, mais especificamente, da Teoria dos Grafos. A origem
dessa teoria está relacionada a um problema proposto por Leonhard Euler (1707 –
1783) sobre a possibilidade de percorrer as sete pontes da cidade de Königsberg
(atual Kalinigrado, Rússia) sem passar pela mesma ponte duas vezes. Bártlová
(2016) afirma que Euler fez um modelo simples da realidade que ele estava
estudando, o qual foi considerado por trabalhadores, posteriormente, um modelo
útil em outras situações.
Dessa forma, a MR surge como uma importante fonte de modelos
matemáticos que são a matéria prima para a pesquisa matemática. Outra
contribuição importante sobre o Problema das pontes de Königsberg é de autoria

316
dos pesquisadores Frederico José Andries Lopes e Plínio Zornoff Táboas (2015, p.
23-32) no artigo intitulado Euler e as Pontes de Königsberg.
Por fim, O Problema dos 35 Camelos extraído da obra O Homem que
Calculava, de Malba Tahan (2017) narra as aventuras e proezas matemáticas de
um calculista Persa – Beremiz Samir – na Bagdá (Capital do Iraque, situada à
margem do Rio Tigre) do século XIII. Ainda nessa linha sobre a referida obra,
destacamos a Dissertação intitulada Problemas recreativos na obra O Homem que
calculava, de Malba Tahan e a Resolução de Problemas da autoria de Clarice
Segantini (2015). Para a autora, o problema traz aspectos históricos e curiosos,
além de despertar a curiosidade e imaginação de quem os lê.
Bártlová (2016), afirma que não há uma definição clara sobre o que pertence
ou não à MR, mas o mais importante é chamar atenção para os Problemas
Recreativos e históricos que influenciaram a Matemática séria. Nesse sentido, é
importante destacar que nem todo problema matemático é um Problema
Recreativo.
Os problemas apresentados no Quadro 1 ilustram um tipo de tarefa
normalmente usada na MR. É importante destacar que certos Problemas
Recreativos não têm autoria conhecida por serem muito antigos enquanto outros
são de autoria de algum personagem de renome na Matemática.
De uma forma ou de outra, os problemas carregam historicidade, foram
criados com finalidade de entretenimento (espontaneamente ou não). Além disso,
os Problemas Recreativos têm potencialidade para divulgação científica ou para
uso pedagógico. Se, a este tipo de problemas, acrescentamos jogos e quebra-
cabeças matemáticos temos o que se costuma chamar de Matemática Recreativa.
Como argumenta Bártlová (2016), o que conhecemos hoje como MR tem
uma longa história e está intimamente ligada à própria Matemática. Além dos
exemplos anteriores (Quadro 1), é importante destacar que, nos séculos passados,
os grandes matemáticos se ocupavam da MR por interesse, curiosidade ou hobby.
Atualmente, a Educação Matemática procura usar a MR para fins pedagógicos.
Com base em Bártlová (2016), Nunes (2019) elaborou a seguinte definição
de MR:

317
Matemática Recreativa (MR) é uma parte da matemática de
sempre, a matemática “séria”, que carrega um traço de diversão.
Nela se entrelaçam quatro aspectos de fronteiras indefinidas que
podem ser assim nomeados: aspecto científico-popular; aspecto de
entretenimento, diversão; aspecto pedagógico e aspecto histórico
(NUNES, 2019, p. 23).

Bártlová (2016), destaca quatro aspectos relacionados à MR, os quais estão


interligados e influenciam uns aos outros: o aspecto popular-científico, o aspecto
divertido (entretenimento), o aspecto pedagógico e o aspecto histórico. Sobre isso,
apresentamos a seguir, de forma resumida, o que entendemos por cada um desses
aspectos da MR.
Os aspectos popular-científico e divertido (entretenimento) implicam que a
MR tem potencialidades para ser usada em tarefas de divulgação científica, pois
podem apresentar a Matemática de modo divertido e compreensível para um
público amplo. O aspecto pedagógico indica que tarefas envolvendo MR pode ser
um meio de se aprender Matemática.
O aspecto histórico refere-se ao fato de que a MR é antiga. Existem indícios
de essa ferramenta date de milhares de anos atrás. Outro sentido que podemos
atribuir ao aspecto histórico é a possibilidade de podermos usar tarefas de MR para
estudar História da Matemática.
Dessa forma, a MR é uma abordagem metodológica que estimula e motiva
o ensino de Matemática e pode fortalecer a capacidade de raciocinar e resolver
problemas. Nessa perspectiva, entende-se que a MR tem potencial para fazer a
integração entre os conteúdos matemáticos, mostrando o lado lúdico da
Matemática.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A expressão Matemática Recreativa (MR) ainda hoje causa espanto à muitas


pessoas. Por isso, neste artigo, apresentamos algumas contribuições sobre a MR,
por exemplo, antigos indícios de atividades com MR e antigos problemas
(clássicos) recreativos e históricos, que podem servir de fonte para futuros estudos
para esse tema.

318
A MR pode servir de ponte para a elaboração de conceitos matemáticos e
sua abrangência vai além de jogos matemáticos, quebra-cabeças matemáticos,
Problemas Recreativos, desafios, competições, dentre outros, pois a MR é muito
ampla no campo da Matemática.
Desse modo, após o mapeamento de Teses e Dissertações produzidas por
pesquisadores brasileiros e estrangeiros que versam sobre MR nos trouxe
contribuições para o entendimento da MR como uma abordagem metodológica que
pode trazer um pouco de leveza, entretenimento, entusiasmo, aprendizado de
aspectos inesperados e não tradicionais da Matemática.
Como resultado do nosso estudo, apresentamos alguns aspectos da MR aos
professores de Matemática em formação inicial e/ou continuada para que eles
possam conhecer melhor sobre a MR e a posicionarem-se sobre o tema. Portanto,
esperamos que este trabalho possa contribuir para a introdução da MR em sala de
aula em diferentes níveis de ensino.

REFERÊNCIAS

BÁRTLOVÁ, T. History and current state of recreational mathematics and its


relation to serious mathematics. Doctoral thesis. Charles University in Prague.
Faculty of Mathematics and Physics – Department of Mathematical Analysis.
Prague, 2016.

COSTA, O. A matemática recreativa no ensino básico. Dissertação (Mestrado


em Ciências – Formação Continuada de Professores), Área de especialização em
Matemática, Universidade do Minho, 2014.

EZQUERRA, P. A. Entre la matemática y la magia: la leyenda de Josefo y


lamezcla australiana. Revista Eureka sobre Enseñanza y Divulgación de las
Ciencias. Universidad de Cádiz. APAC-Eureka. ISSN: 1697-011X. DOI:
10498/14868. 9 (3), 410-421, 2012.

FIORENTINI, D; PASSOS, C. L. B; LIMA, R. C. R. (Org.). Mapeamento da


pesquisa acadêmica brasileira sobre o professor que ensina matemática:
período 2001 – 2012. Campinas, SP: FE/UNICAMP. Campinas/SP, 2016.

319
GONÇALVES, I. M. F. L. Os Problemas da Matemática: o seu Papel na
Matemática e nas aulas de Matemática. Doutorado em Matemática – Ensino da
Matemática, Universidade da Madeira, Portugal, 2011.

LOPES, F. J. A. Propositiones Ad Acuendos Juvenes, de Alcuíno de York –


Tradução. Revista Brasileira de História da Matemática – RBHM, vol. 17, nº 33,
p. 73-90, 2017.

LOPES, F. J. A; TÁBOAS, P. Z. Euler e as Pontes de Königsberg. Revista


Brasileira de História da Matemática/RBHM, Vol. 15, nº 30, p. 23-32, 2015.

MARTINS, J. O livro que divulgou o papiro Rhind no Brasil. Dissertação


(Mestrado em Educação Matemática). Instituto de Geociências e Ciências Exatas,
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Rio Claro, 2015.

MENEZES, J. E. Travessias Difíceis, Divisões Divertidas e Quadrados


Mágicos: evolução Histórica de três Recreações Matemáticas. Tese de
Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2004.

NUNES, E. M. A. Estudo sobre a Matemática Recreativa e sua Inserção no


Ensino de Matemática. Dissertação de mestrado no Programa de Pós-
Graduação em Ensino de Ciências Naturais e Matemática da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2019.

SEGANTINI, C. Problemas Recreativos na Obra o Homem que Calculava, de


Malba Tahan, e a Resolução de Problemas. Dissertação de mestrado no
Programa de Pós-Graduação em Ensino na Educação Básica. Universidade
Federal do Espírito Santo, Centro Universitário Norte do Espírito Santo, 2015.

SOUZA, F. F. A Lenda de Dido como Motivação para o Estudo de Figuras


Isoperímetro na Educação Matemática: explorando a Dedução-Lógica.
Dissertação de Mestrado do Mestrado Profissional em Matemática em Rede
Nacional – PROFMAT. Rio de Janeiro, 2014.

SUMPTER, L. Recreational Mathematics – Only For Fun? Journal of Humanistic


Mathematics. v. 5, n. 1, p. 121-138, 2015. Doi: 10.5642/jhummath.201501.07.

TAHAN, M. O Homem que calculava. Rio de Janeiro: Record, 2017.

320
A ANUNCIAÇÃO, DE LEONARDO DA VINCI:
uma prática matemática de artífices no século XV

Midiã Barbosa120
Gustavo Barbosa121

RESUMO
O objetivo desse estudo é explorar as relações entre arte e matemática no Renascimento
Italiano. O foco do trabalho concentra-se no quadro A Anunciação, pintado pelo jovem
Leonardo da Vinci em meados de 1470, quando ainda convivia no ateliê de Andrea de
Verrochio. Empregando uma metodologia de pesquisa histórico-bibliográfica, a análise do
quadro conta com uma interpretação em chave arquitetônica. Verifica-se a influência de
outra figura eminente do Renascimento, Leon Battista Alberti, que em homenagem a
Vitrúvio incorpora e aprofunda elementos da harmonia musical na construção de espaços.
Destaca-se o papel de Alberti como liame entre as culturas universitária e artística que
delimitava o ambiente em diversas regiões da Itália na época, Florença inclusive. A
exemplo de Alberti, Leonardo foi também um polímata que entrelaçava diferentes
interesses e não impunha divisão às formas de conhecimento. Entre os elementos
matemáticos presente no quadro A Anunciação está a sequência numérica de Fibonacci.
A convergência de significados, ocultos e explícitos, contribui para o esclarecimento dos
usos que pintores e outros artistas faziam da matemática como adornamento para sua arte.

Palavras-chave: Leonardo da Vinci. Leon Battista Alberti. Geometria. Harmonia.


Anunciação.

INTRODUÇÃO

Esta pesquisa busca, dentro do contexto do movimento artístico-cultural


conhecido como Renascimento Italiano, explorar as conexões entre práticas
artísticas e matemáticas. Abordamos especificamente a obra A Anunciação (1472),
de Leonardo da Vinci (1452-1519), trabalho composto em sua juventude e cujas

120
Universidade Federal da Integração Latino Americana (UNILA). E-mail:
midiajbarbosa@gmail.com.
121
Universidade Federal da Integração Latino Americana (UNILA). E-mail: gvbarbosa@gmail.com.

321
relações matemáticas são pouco exploradas. A partir de sua análise compositiva,
verificamos elementos matemáticos presentes na obra que seriam resultado da
influência de Leon Battista Alberti (1404-1472) sobre o jovem aprendiz Leonardo.
Desde suas proporções, o quadro da Anunciação apresenta medidas não
usuais às encontradas em outras obras da época. A saber, diferentes registros
reportam 100 x 221,5 m ou 98 x 217 m (VALLI, 2012, p. 39). Sua perspectiva
deslocada também é digna de nota, no caso o observador precisa se posicionar à
direita do centro do quadro. Contudo, são nos componentes ocultos a uma primeira
e descuidada vista que o engenho de Leonardo se revela.
Entre os números e figuras simbólicos, nos deparamos em nosso percurso
com a “extrema e média razão”, conceito definido no Livro VI dos Elementos de
Euclides (2009, p. 231). Amplamente difundido a partir do início do século XVI por
Luca Pacioli (1447-1517) em seu tratado A Divina Proporção, como “razão ou
proporção áurea”. A construção geométrica do retângulo áureo evolui para outro
retângulo, este mais alongado, cuja relação pode ser traduzida como √𝟓.
A medida que a pesquisa avançou, analisamos a terna 4, 6 e 9 disposta no
perímetro do quadro, e que divide os espaços da composição. Esses números, por
sua vez, revelam uma correlação entre música e espaço construído, uma aplicação
da harmonia musical à construções arquitetônicas e, por conseguinte, às suas
representações pictóricas. Por fim, a disposição dos blocos posicionados no canto
do muro da habitação da Virgem oculta a unidade de medida do quadro – a pedra
do construtor – e sua relação com a famosa sequência de Leonardo de Pisa (1170-
1250).
Para compreender os elementos presentes na Anunciação foi necessário
recorrermos a uma análise pictórica em chave arquitetônica, como a utilizada por
Franca Manenti Valli em seu livro Leonardo: il comporre armonico nella tavola
dell’Annunciazione, de 2012. Esta é, portanto, a nossa fonte primária. De outra
parte, na qualidade de pesquisa em História da Matemática, exploramos como a
conjuntura da sociedade e cultura contribuíram para a compreensão e
desenvolvimento dos vínculos entre arte e matemática no período que envolve a
composição da Anunciação. Para tanto, servimo-nos dos estudos do historiador

322
inglês Peter Burke, que em sua obra O Renascimento Italiano (2010) nos fornece
uma base histórica cultural e social da Itália do século XV. Um tal enquadramento
contextual ganha traços mais bem definidos sob a figura de Leon Battista Alberti.
Partimos do pressuposto de que o grupo cultural definido por pintores e
escultores diferencia-se socialmente daquele composto por escritores e
humanistas. Uma vez concebidos como espaços distintos e disjuntos – o
estúdio/oficina dos artistas e a universidade – nota-se um movimento de
aproximação promovido e estimulado por Alberti. Vale lembrar que uma das
características pelas quais Leonardo é lembrado é justamente “a habilidade de
conectar disciplinas – artes e ciências, humanidades e tecnologia” (ISAACSON,
2017, p. 21). A existência desse duplo sistema nos fez questionar como os artífices
adquiriam, compartilhavam e reinterpretavam os saberes da Antiguidade Clássica.
E ainda, como esses saberes poderiam estar disponíveis ao jovem Leonardo
durante o seu aprendizado na oficina de Andrea de Verrochio (1435-1488).

ELITE CRIATIVA

Burke (2010, p.57) utiliza a expressão “elite criativa” para se referir ao grupo
composto por 600 indivíduos majoritariamente masculino de pintores, escultores,
humanistas, escritores de medicina, de física, músicos, compositores, arquitetos,
entre outros. Os filhos de artesãos e donos de oficinas somam 114 membros, e
desses 96 são também artífices, escultores, isto é, trabalhadores manuais.
Simultaneamente, 40 profissionais liberais ou comerciantes e nobres abarcam os
pais conhecidos de humanistas, escritores de física, ou seja, profissionais
intelectuais.
Sendo assim, a elite criativa dividia-se em dois grupos: um literário
constituído por aristocratas e nobres, que investiam na educação universitária de
seus filhos, almejando melhores cargos nas cortes; e outro artístico formado por
artesãos, cujos filhos desde cedo começavam a trabalhar nas oficinas (o que
reduzia a possibilidade de seu letramento formal)122. Na ausência de uma formação

122
Ibidem, p. 63.

323
em latim os artesãos não eram considerados parte da elite cultural (ISAACSON,
2017, p. 53).
Uma explicação para o fenômeno está relacionada à diferença entre
treinamento e custeio, uma vez que a primeira categoria iniciava a preparação de
seus filhos em torno dos 16 anos, em média. Para esses, as artes liberais:
gramática, retórica e lógica (o trivium); astronomia, música, aritmética e geometria
(o quadrivium), formavam a base de estudos para que prosseguissem para um dos
três níveis mais altos: medicina, teologia e leis. Os filhos dos artesãos, por sua vez,
além das facilidades de observações precoces no ambiente do estúdio, tinham
também o incentivo fiscal das guildas (BURKE, 2010, p. 66-70).
Um forte ponto de convergência entre essas duas culturas era uma rígida –
porém não intransponível – hereditariedade da profissão do pai para o filho. O que
poderia ser considerado um infortúnio por nossa sociedade atual foi, para
Leonardo, sua salvação: o fato de ser filho ilegítimo. Vale ressaltar que a Florença
do século XV tinha valores diferentes dos nossos: “Outro ingrediente era o quanto
ele se sentia confortável com o fato de ser um tanto desajustado: filho ilegítimo,
gay, vegetariano, canhoto, muito disperso e, às vezes, herético”. (ISAACSON,
2017, p. 27-28)
Evidencia Isaacson (2017, p. 50) que uma vez nascido fora de um
casamento foi concedido a Leonardo escapar de uma corrente de pelo menos cinco
gerações de tabeliões na família. Apesar de não manifestar o interesse em legitimar
seu filho, “Ser” Piero da Vinci (1427-1504) providenciou-lhe alguma educação
formal, ainda que rudimentar, como foi o caso de uma escola de ábaco. Porém,
tendo percebido que o menino tinha mais interesse em desenhar do que por
qualquer outra coisa, aproveitou-se do contato com Andrea del Verrochio que dirigia
um dos melhores ateliês de Florença, para direcionar as habilidades do menino.
Inserido nesse ambiente, Leonardo engajou-se no programa de estudos de
Verrochio, que envolvia anatomia, música, filosofia e geometria, além de técnicas
para escultura e efeitos de luz e sombra na pintura, como o panejamento, o
“chiaroscuro” e o “sfumato”. Outra das funções dos mestres de ateliês de Florença
era “trabalhar nos festivais e espetáculos públicos dos Médici” (ISAACSON, 2017,

324
p. 64), cuja experiência ensinaria Leonardo a perspectiva e motivaria seus
posteriores mecanismos engenhosos.
Especificamente no caso dos artífices, o ateliê era ocupado por assistentes,
aprendizes e outros pintores, em um ambiente altamente colaborativo.

A relação destes aprendizes com o mestre estava regulada pelas


corporações, nomeadamente no que diz respeito à sua idade, ao
pagamento que faziam ou recebiam e ao tempo que deviam frequentar a
oficina. (CRUZ, 2006, p. 95)

Em vez de incentivar os aprendizes a manifestarem sua própria genialidade,


a finalidade do ateliê era produzir arte e artefatos comerciais em fluxo contínuo, de
modo que “a maioria dos trabalhos era produzidos coletivamente” (ISAACSON,
2017, p. 53).
A existência de sistemas culturais duplos é posta em questão por Burke e
dela compartilhamos: se os artífices interrompiam os seus estudos ainda crianças
para ajudar nas oficinas, como, ao se tornarem adultos, adquiriam os saberes da
“Antiguidade Clássica revelada em suas pinturas, esculturas e edifícios?” (BURKE,
2010, p. 74). Uma explicação para isso passa pela criação da prensa de tipos
móveis de Johannes Gutenberg (1398-1468) para imprimir livros, e pela expansão
literária que ela possibilitou. O autor salienta que no final do século XV a produção
de literatura não era uma indústria, mas a reprodução sim uma vez que “a produção
de manuscritos na Itália do século XV tornara-se comercial e padronizada”123.
Não obstante, em 1452, ano em que Gutenberg começou a comercializar
sua versão da Bíblia, um manuscrito da obra Da Arte de Construir (De Re
Aedificatoria), do polímata Leon Battista Alberti foi apresentada ao papa Nicolau V.
Publicado postumamente apenas em 1485, versões preliminares em cópias
manuscritas desse tratado teriam desempenhado grande influência sobre
Leonardo. Alberti, por sua vez o compôs num misto de reverência e crítica aos dez
livros de Da Arquitetura, do arquiteto romano Marco Vitrúvio Polião. O humanista
se dedicou a compartilhar seu trabalho, promovendo debates entre seus pares

123
Ibid., p. 87.

325
intelectuais e viu na publicação uma forma de acelerar a geração de conhecimentos
(ISAACSON, p. 49-50).

ENCARNAÇÃO DIVINA

Era natural que conforme os discípulos dos atêlies se tornassem mais


habilidosos e seguros de sua arte assumissem a responsabilidade de trabalhos
menores. Na década de 1470, Leonardo, então na casa dos vinte anos, produziu
sozinho quatro obras, entre as quais A Anunciação. As outras eram “[...] duas
pequenas pinturas religiosas de uma Madona com uma criança e um retrato
revolucionário de uma dama florentina, Ginevra de’ Benci.” (ISAACSON, 2017, p.
77). Conjectura-se que a Anunciação foi realizada em 1472 quando Leonardo já
havia se consagrado mestre, mas seguia trabalhando no ateliê de Verrochio.
O tema do anúncio é comum na iconografia cristã renascentista e representa
o momento no qual o anjo Gabriel anuncia à Virgem Maria que ela entre as
mulheres é a escolhida para gestar e criar o Filho de Deus.

FIGURA 1: A ANUNCIAÇÃO

Fonte: Le Gallerie Degli Uffizi

Considerações a seu respeito dividem os autores. Para Isaacson (2017, p.


77) “embora ambiciosa, a pintura tem tantos defeitos que a atribuição de sua autoria

326
a Leonardo foi muito discutida”. De outra parte, segundo David A. Brown, a obra
“foi concebida e executada com espírito de pesquisa científica, e que para Leonardo
ela deveria ter a mesma eficiência da estrutura arquitetônica que a contém,
construída segundo as regras da geometria” (apud VALLI, 2012, p. 21).
O quadro pode causar estranhamento a um observador desatento por causa
da técnica chamada anamorfose utilizada por Leonardo, “que sugere que o ponto
de vista ideal para se olhar a imagem seja por uma de suas laterais” (ISAACSON,
2017, p. 78). No caso, a lateral direita. Certamente, os elementos evidentes já
tornam o quadro digno de admiração, contudo, o nosso foco está nos componentes
ocultos à uma breve vista.

DO RETÂNGULO ÁUREO AO RETÂNGULO √𝟓 – UMA INTERPRETAÇÃO


GEOMÉTRICO-INCOMENSURÁVEL PARA AS DIMENSÕES DO QUADRO

A largura e altura do quadro podem ser compreendidas dentro do conceito


de delimitação que, segundo Alberti, consiste na “correspondência recíproca entre
as linhas que definem as dimensões” (ALBERTI, 2014, p.368).

Que Leonardo conhecesse a fórmula √5 é demonstrado por alguns


esboços do Codice Forster. Entre os desenhos da página 21r estão
aqueles que se referem aos estudos bem conhecidos sobre áreas
equivalentes, e em específico, sobre modalidades correntes para a
definição gráfica. (VALLI, 2012, p. 45, grifo do autor, tradução
nossa)

FIGURA 2: LEONARDO DA VINCI, STUDI GEOMETRICI, CODICE FORSTER I, f. 21r

327
Fonte: Valli, 2012, p. 59
O processo de construção geométrica inicia-se com um quadrado, a partir
do qual pode-se construir o retângulo áureo, e, posteriormente, pelo mesmo
processo chega ao retângulo √𝟓.

FIGURA 3: CONSTRUÇÃO DO RETÂNGULO√𝟓

Fonte: Valli, 2012, p. 51

Analisando a figura acima, após construir-se um quadrado de lado 𝑳 o


procedimento para se obter o retângulo áureo é exatamente aquele descrito por

328
Euclides na Proposição 11 do Livro II dos Elementos (2009, p. 146-147). Isto é,
toma-se o ponto médio do lado 𝑳 do quadrado, depois, com a ponta seca do
compasso em 𝑳⁄𝟐 e a outra no vértice, obtém-se o comprimento 𝑳 ∗ 𝝋 sobre a
extensão do lado 𝑳 , a partir do qual irá se construir o retângulo. Por fim,
empregando o mesmo processo com o compasso a partir da diagonal do retângulo
áureo chega-se ao retângulo √𝟓.
Observa-se o fato que de que tal proporção não é exata se cotejarmos as
medidas mencionadas anteriormente. Das medições do quadro reportadas acima
temos: 𝟐𝟐𝟏, 𝟓⁄𝟏𝟎𝟎 = 𝟐, 𝟐𝟏𝟓 e 𝟐𝟏𝟕⁄𝟗𝟖 ≈ 𝟐, 𝟐𝟏𝟒𝟐 … , ao passo que √𝟓 ≈ 𝟐, 𝟐𝟑𝟔 … .
Não obstante, o tipo de exatidão a que estamos acostumados não era uma
pretensão renascentista.
No entanto, o “percurso geométrico” (VALLI, 2012, p. 60) para a construção
do retângulo √𝟓 passa por um itinerário diferente, como mostrado abaixo:

FIGURA 4: O PERCURSO GEOMÉTRICO PARA O RETÂNGULO √𝟓

329
Fonte: Valli, 2012, p. 60-61.

UMA INTERPRETAÇÃO HARMÔNICO-COMENSURÁVEL PARA AS


DIMENSÕES DO QUADRO

Historicamente, as relações harmônicas entre os comprimentos de cordas e


a intensidade das vibrações sonoras que elas produzem são atribuídas aos
Pitagóricos. “O uníssono é obtido quando as cordas são do mesmo tamanho (uma
proporção 1:1). Uma oitava é obtida por uma proporção 1:2 do comprimento das
cordas. A quinta, por 2:3, e a quarta, por 3:4.” (LIVIO, 2006, p. 42). Já a
correspondência entre harmonia musical e espaço construído teria sido combinada

330
por Vitrúvio. Suas reflexões a respeito dos intervalos musicais concentram-se nos
Capítulos IV e V do Livro Quinto de seu tratado Da Arquitetura (Polião, 1999, p.
124-128), em que trata da organização dos espaços em edifícios públicos. Quanto
a Alberti, o exame das áreas mais convenientes para o dimensionamento de obras
arquitetônicas encontra-se nos Livros V, VI e IX de Da Arte de Construir. Interessa-
nos aqui em específico as relações harmônicas de origem musical descritas por
Alberti que definem a construção do perímetro d’A Anunciação.
A consonância diapente ou sesquiáltera, que significa basicamente uma
parte mais a sua metade (1 + 1/2) compreende, portanto, a proporção 2 : 3, e
caracteriza o intervalo musical de quinta. Sua representação geométrica é um
retângulo cuja razão entre as dimensões é de dois para três.

FIGURA 5: ÁREA DIAPENTE OU SESQUIÁLTERA (QUINTA)

Fonte: Valli, 2012, p. 57

Leonardo parece querer exibir no Anúncio um retângulo classificado como


diapente duplo, sua construção é descrita da seguinte forma:

uma vez traçada a dimensão menor da área, por exemplo, de


comprimento quatro, constrói-se uma primeira sesquiáltera de
comprimento seis; a esta se acrescenta uma outra área cujo
comprimento é a metade da precedente de tal modo que o
comprimento total resulte nove (ALBERTI, 2014, p. 370).

Segue abaixo sua representação visual correspondente a um retângulo de altura


quatro e comprimento nove.

FIGURA 6: SESQUIÁLTERA DUPLA

331
Fonte: Valli, 2012, p. 55

Pela combinação da terna 4, 6 e 9 obtém-se o retângulo √𝟓. Substituindo os


valores temos: 𝟗 ∶ 𝟒 = 𝟐, 𝟐𝟓 ≈ √𝟓 . O resultado obtido de forma geométrico-
construtiva por Alberti é o mesmo que o descrito por Euclides na Sectio Canonis
(Barbosa, 2018), em que o autor utiliza um linguagem algébrico-aditiva para a
composição de acordes. O diapente duplo, assim descrito, em linguagem moderna
fica: (2 : 3) x (2 : 3) = 4 : 9.
Fica-nos patente no decorrer da pesquisa que A Anunciação comunica-se
não só por símbolos figurados, iconográficos, mas também por meio de suas
entidades numéricas e relações entre elas.

A PEDRA FUNDAMENTAL

A análise pictórica realizada por Valli (2012) nos permite identificar uma
unidade fundamental no quadro, algo difícil posto que suas dimensões não
condizem com as medidas florentinas em voga na época da composição d’A
Anunciação. O ponto de convergência das linhas ortogonais que divide a cena
evidencia um bloco na aresta da residência. Do mesmo modo, nos cinco blocos
que compõem o canto da casa também observa-se que tanto o rosto do anjo como
o da Virgem seguem a mesma proporção e estão posicionados na altura do
primeiro e terceiro bloco, respectivamente.

FIGURA 7: A unidade de medida

332
Fonte: VALLI, 2012, p. 100.

A escolha do bloco como unidade de medida não é arbitrária se analisada à


luz das escrituras sagradas como contexto para a pintura. Vejamos duas
passagens esclarecedoras. A primeira é o Salmo 118, 22: “A pedra que os
construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular” (KING JAMES, 2017, paginação
irregular). A segunda está em 1 Pedro 2, 6: “Eis que ponho em Sião uma pedra
angular, escolhida e preciosa, e aquele que nela deposita sua confiança jamais
será envergonhado” (KING JAMES, 2017, paginação irregular).
Alinhada e sobreposta por sobre A Anunciação como uma régua, a unidade
de medida estabelecida divide os temas em valores consecutivos da série de
Fibonacci.

FIGURA 8: a divisão das partes

333
Fonte: Valli, 2012, p. 121 e 124, respectivamente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Acredita-se que a difusão da teoria albertiana das proporções aplicada à


arquitetura é anterior à publicação do tratado que a contém, em 1452. O que torna
possível que Leonardo tenha acessado cópias manuscritas contendo os
apontamentos de Alberti. Sabe-se que Alberti frequentou e conviveu em meio à
comunidade artística de Florença e que Leonardo descreveu em seus cadernos
princípios artísticos e matemáticos por ele utilizado. A apropriação que Alberti faz
da teoria musical presta dupla homenagem: a Vitrúvio, o arquiteto romano; e à
antiguidade, na forma dos pitagóricos e também de Aristoxeno. Leonardo, por sua
vez, apreciador de música e de ideias heterodoxas, presta tributo ao seu presente
e ao passado.
Em nossa interpretação, seja a razão áurea, como as relações lineares de
origem numérica ou geométricas e os números da sequência de Fibonacci,
organizam a obra segundo função, posição dos personagens, no dimensionamento

334
do jardim, aposento da Virgem e a paisagem e, portanto, são úteis à delimitação e
à colocação. Permitem, dessa forma, apreciar a obra em uma harmonia racional.
Burke (2010) põe atenção nos termos utilizados na época para descrever as
pinturas, entre eles estão: natureza, ordem, riqueza, expressividade e habilidade.
Haviam duas ideias de natureza no período: a do mundo físico e da força criativa.
Alberti pressupõe que os artífices devem empregar a segunda concepção pois “a
natureza raramente atinge a perfeição, e os artistas devem visar a beleza, como
faz a natureza” (BURKE, 2010, p.173).
Uma pista para o uso das proporções na pintura, arquitetura, pode estar nos
valores compartilhados por alguns membros da elite criativa, como era o caso de
Lorenzo Ghiberti (1378-1455) e Piero de la Francesca (1415-1492) (BURKE, 2010,
p. 174). As analogias entre as proporções dos edifícios com as do corpo humano e
entre harmonia visual e musical foi comum no século XV; uma implicação é a de
que a beleza segue regras racionais, de fato regras matemáticas. Tal concepção
se confunde no espaço do ateliê pois tem a capacidade de proporcionar regras para
a beleza, mas também pode ter sido utilizada pelos mestres enquanto ferramenta
de ensino.
É de nosso conhecimento que Leonardo foi um eminente observador da
natureza e buscou durante sua vida conjuga-la com a teoria e a prática, e mesmo
jovem demonstrou compreender a pintura como uma premissa intelectual.
Acreditamos que suas escolhas parecem estar ordenadas mediante um processo
mensural onde cada linha é traçada com o intento de lograr uma perfeita
coordenação das partes. O mais interessante para nós é reconhecer as práticas
artísticas e matemáticas como pertencentes ao espaço de ateliê.
Na condição de uma iniciação científica, o propósito desse trabalho não é
determinar relações esotéricas na obra juvenil de Leonardo da Vinci, mas propor
um diálogo a partir da interpretação proposta pela arquiteta italiana Franca Manenti
Valli. Em vez de discutir as possíveis intenções de Leonardo, julgamos ser mais
proveitoso verificar os usos que artistas poderiam fazer da matemática. Como se
vê no trabalho que ora se apresenta, a matemática subsumida à arte lhe conferia
legitimidade, ordem e medida. Interessa-nos, sobretudo o resultado dos

335
intercâmbios entre cultura universitária e artística, que teve em Leon Battista Alberti
um de seus maiores representantes. A extensão de sua influência é tema que
merece aprofundamentos.
Por fim, ressaltamos que há ainda outras relações a serem exploradas n’A
Anunciação de da Vinci, e que esta trata-se de uma primeira abordagem.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBERTI, L. B. Da Arquitetura. Tradução e organização de Sérgio Romanelli.


São Paulo: Hedra, 2012.

BARBOSA, G. Euclides – Sectio canonis – apresentação e tradução. In:


Revista Brasileira de História da Matemática. Vol. 18, n. 36, p. 31-75, 2018.
Disponível em: <https://www.rbhm.org.br/index.php/RBHM/article/view/19>.
Acesso em: mai, 2019.

BURKE, P. O Renascimento Italiano. Tradução de José Rubens Siqueira. São


Paulo: Nova Alexandria, 2010.

CRUZ, J. A. A oficina do artista, ou as relações entre a ciência e a arte a


propósito de uma imagem. In: Revista Interacções, vol. 2, n.º 3, p. 88-111, 2006.
Disponível em: <https://revistas.rcaap.pt/interaccoes/article/view/310>. Acesso
em: dez, 2020.

ISAACSON, W. Leonardo da Vinci. Tradução de André Czarnobai. Rio de


Janeiro: Intrínseca, 2017.

KING JAMES. Bíblia Sagrada King James: Atualizada. Tradução dos


manuscritos nas línguas originais do Tnakh (Bíblia Hebraica), e o B’rit Hadashah
(Novum Testamentum Graece), de acordo com o estilo clássico, majestoso e
reverente da Bíblia King James (Authorized Version), de 1611. Tradução e revisão
permanente a cargo do Comitê Internacional de Tradução da Bíblia King James
para a língua portuguesa, sob direção da Sociedade Ibero-Americana & Abba
Press no Brasil. São Paulo: Abba Press, 2017.

LIVIO, M. Razão áurea: a história de Fi, um número surpreendente. Tradução


Marco Shinobu Matsumura. Rio de Janeiro: Record, 2006.

POLIÃO, M. V. Da Arquitetura. Tradução e notas de Marco Aurélio Lagonegro.


São Paulo: Hucitec; Fundação Para a Pesquisa Ambiental, 1999.

336
VALLI, F. M. Leonardo: il comporre armonico nella tavola dell’Annunciazione.
Milano: Silvana Editoriale S.p.A., 2012.

337
A AXIOMÁTICA DE EUCLIDES E HILBERT:
Apontamentos históricos e considerações

Gabriela Daiani de Freitas124


Kelly Roberta Mazzutti Lübeck125

RESUMO
O presente trabalho deriva-se de uma proposta de dissertação de mestrado que se
encontra em fase inicial e está sendo desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em
Ensino (PPGEn), vinculado à Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE).
Nesse artigo, apresentamos um recorte do desenvolvimento da geometria euclidiana,
tendo como personagens principais aqui citados, Euclides de Alexandria (c. 300 a.C.) e
David Hilbert (1862-1943). Nosso objetivo é buscar na História da Matemática, na
geometria especificamente, a contextualização de como se deu o desenvolvimento dos
conceitos geométricos abordados no ensino de geometria referenciados nos currículos de
cursos de Licenciatura em Matemática das universidades estaduais públicas do Paraná,
na tentativa de melhor compreender o impacto da apresentação axiomatizada da geometria
na formação inicial do professor. A metodologia utilizada neste trabalho foi a pesquisa
bibliográfica. Concluímos que tanto o sistema axiomático de Euclides quanto de Hilbert,
cada um com suas particularidades, apresentam proposições da Geometria Euclidiana que
trabalhamos hoje, entretanto se estruturaram sobre perspectivas científicas distintas:
enquanto Euclides se apoia numa geometria mais pragmática, ocupando-se de expor as
propriedades do espaço idealizado pelos gregos, Hilbert constrói sua geometria de forma
abstrata. Ademais, ao estudar a História da Matemática, seus personagens e desfechos,
entendemos o processo que levou às descobertas de temas, mostrando nuances que
poderiam passar despercebidas, o que contribui para o enriquecimento da aprendizagem
e para compreensão da ordem estabelecida em algumas sequências de conteúdos.

Palavras-chave: História da Matemática. Geometria. Sistema axiomático. Ensino


e Aprendizagem de Matemática.

INTRODUÇÃO

124
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). E-mail: gabrieladaianedefreitas@hotmail.com.
125
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). E-mail: kellyrobertaml@gmail.com.

338
Esse artigo trata-se de uma investigação em andamento, versando sobre
história da geometria e o sistema axiomático, tendo como Euclides e Hilbert as
personagens principais. Destaca-se que essa pesquisa é parte de uma proposta de
dissertação de mestrado que está sendo desenvolvida no Programa de Pós-
Graduação em Ensino (PPGEn), vinculado à Universidade Estadual do Oeste do
Paraná, campus de foz do Iguaçu (UNIOESTE/Foz).
O estudo aqui, inserido na linha da História da Matemática (HM), tem como
objetivo apresentar um recorte do desenvolvimento da geometria de Euclides de
Alexandria e David Hilbert, perscrutando a evolução do sistema axiomático
geométrico. Nesse sentido, trataremos de forma breve como o método axiomático
grego evoluiu até aos padrões que ensinamos hoje em dia. Por questão de
exequibilidade, não traçaremos aqui todo o percurso histórico do desenvolvimento
da geometria, desde o seu início até a atualidade, mas faremos um recorte,
destacando as ideias de Euclides e Hilbert, que corrobora como um dos objetivos
de nossa dissertação, que é realizar uma contextualização histórica de como se
deu o desenvolvimento dos conceitos geométricos abordados no ensino de
geometria referenciados nos currículos de cursos de Licenciatura em Matemática
das universidades públicas estaduais do Paraná. Para melhor compreensão do
cenário das duas épocas, elencamos um pouco do contexto sociocultural das
mesmas, seguido pela apresentação de aspectos do desenvolvimento da
geometria destes atores.

CONTEXTO SOCIOCULTURAL GREGO

O enfraquecimento da Grécia, após sucessivos conflitos travados durante


as Guerras Médicas (séc. V a.C.) e principalmente com a Guerra do Peloponeso
(431-404 a.C.), contribui para o enfraquecimento e empobrecimento nas cidades
gregas, que se tornaram alvos fáceis para o forte reino da Macedônia, situado ao
norte. Os macedônios dominaram toda a região a partir da Batalha de Queroneia

339
(338 a.C.), onde Felipe II da Macedônia (382-336 a.C.) derrotou o exército formado
pela liga das cidades gregas, e assim, a Grécia tornou-se parte do Império
Macedônio (FUNARI, 2002).
Em 336 a.C., dois anos após a queda dos estados gregos, Filipe II foi
sucedido por seu filho, Alexandre o Grande (356-323 a.C.), que deu início à uma
carreira de conquistas militares ímpar, através da Ásia e nordeste da África. Essa
expansão foi responsável pela disseminação da cultura grega pelo Oriente, na qual
Alexandre fundou diversas cidades que levavam o seu nome, com destaque para
cidade de Alexandria, no Egito.
Segundo Funari (2002, p. 74-75), com o falecimento de Alexandre, em 323
a.C., seu vasto império dividiu-se entre seus principais comandantes militares,
resultando na formação de monarquias na Macedônia, Egito e na Síria. O reino
Ptolomeu I (c. 367-283 a.C.) incluía o Egito e as regiões adjacentes. Ainda, segundo
Eves (2011, p. 166), este escolheu Alexandria como sua capital, onde construiu a
famosa Universidade de Alexandria, instituição religiosa e científica que dispunha
de salas de aula, laboratórios, jardins, bibliotecas bem aparelhadas e habitações.

O fulcro da instituição era a grande biblioteca, que por muito tempo


foi o maior repositório de registros culturais de todo o mundo e que
dentro de 40 anos após sua fundação ostentava mais de 600 mil
rolos de papiro. Por volta de 300 a.C. a universidade abriu suas
portas e daí para frente, por quase um milênio, Alexandria se tornou
a metrópole intelectual da raça grega. (EVES, 2011, p. 167)

A Biblioteca de Alexandria foi um dos mais célebres espaços de produção


de conhecimento da Antiguidade, tendo grande importância como centro irradiador
da cultura helenística. Conforme Garbi (2007), Euclides foi diretor da área de
matemática do Museu, onde ensinou e escreveu seus tratados.
Após a morte de Alexandre entramos no período da história da Grécia e de
parte do Oriente Médio conhecido como Período Helenístico, caracterizado pela
concretização do ideal de Alexandre, que era a difusão da cultura grega aos
territórios que conquistava, o que marcou um certo sincretismo cultural,
ocasionando o desenvolvimento de várias ciências (MARCONDES, 1997, p. 107-

340
109). Assim, ainda perdura por vários séculos a importância ao pensamento lógico
e dedutivo e o poder da argumentação nos grandes centros de cultura, tal como a
Universidade de Alexandria.

EUCLIDES E OS ELEMENTOS

Não se sabe muito a respeito da biografia de Euclides de Alexandria, devido


à carência de informações desta e de tantas outras personalidades gregas antigas.
Grande parte do que conhecemos é devido a Proclus (412-485), filósofo
neoplatônico grego que viveu cerca de 750 anos depois de Euclides, e provém do
Sumário Eudemiano, informações iniciais que Proclus introduz antes do Livro I, dos
Elementos, onde apresenta a geometria grega desde seu surgimento até Euclides.
O Sumário de Eudemo ou o Catálogo dos geômetras é uma passagem da obra
desaparecida História da Geometria, de Eudemo (370-300 a.C.), um dos principais
discípulos e colaboradores de Arístóteles (384-322 a.C.). Em continuação ao
Catálogo, na parte acrescentada por Proclus, o autor procede por inferência,
constatando que Euclides viveu no tempo do primeiro Ptolomeu, atingiu seu
acúmen por volta de 300 a.C. e recebeu seu treinamento matemático dos discípulos
de Platão em Atenas (BICUDO, 2009, p. 41-42).
Euclides foi autor de inúmeros trabalhos, dos quais apenas cinco
razoavelmente completos chegaram à contemporaneidade. Sua fama repousa
principalmente sobre seus Elementos. Conforme Katz (2009), os Elementos de
Euclides, é o mais importante texto matemático da época grega e provavelmente
de todos os tempos. Ele apareceu em mais edições do que qualquer outra obra,
excetuando-se a Bíblia. “Mais de mil edições impressas dos Elementos já
apareceram desde a primeira delas em 1482, por mais de dois milênios esse
trabalho dominou o ensino de geometria” (EVES, 2011, p. 167-168).
Embora houvesse versões anteriores de Elementos antes de Euclides,
conforme citado no Sumário Eudemiano, o seu é o único a sobreviver, talvez por
ter sido o primeiro escrito após os fundamentos da teoria da proporção e da teoria

341
dos irracionais e seguindo as contribuições que Aristóteles propusera através das
cuidadosas distinções que sempre deveriam ser feitas entre número e magnitude.
Foi, portanto, “completo” e bem organizado (KATZ, 2009).
Segundo Fernandes (2017, p. 18), Aristóteles faz uma distinção muito
pertinente relacionada à questão dos incomensuráveis e a impossibilidade de sua
representação aritmética, onde embora argumentando que aritmos, conceito grego
de número, mais estrito que os números naturais por não abranger o zero e o um,
e magnitude pertençam a mesma categoria de quantidade, são de espécie distinta:
aritmos é discreto e magnitude é contínua, sendo essa distinção efetuada da
seguinte maneira: é discreto aquilo cujas partes não têm limite comum.
De acordo com Bicudo (2009, p. 41), quando se pensa na dificuldade que
era a confecção de cópias manuscritas na época, se um tratado trouxesse algo
excelente e bem organizado, passava-se a copiar este em detrimento de outrem e
tendo escrito seu trabalho a cerca de 2.300 anos, não há cópias autografas ou
mesmo provenientes daquela época. Os fragmentos mais antigos foram
descobertos no Egito datados de aproximadamente 225 a.C., nas quais parecem
estar escritas notas de duas proposições do Livro XIII, e pedaços de papiro que
contém partes do Livro II datados de cerca de 100 a.C. (KATZ, 2009, p. 52).
Os Elementos é um trabalho constituído por treze livros, que tratam não
somente da geometria, mas contém teoria dos números e álgebra elementar
(geométrica). O tratado se compõe de 465 proposições distribuídas nos trezes
livros. Seus primeiros seis livros formam um tratamento relativamente completo de
magnitudes geométricas bidimensionais enquanto os livros VII-IX tratam com a
teoria dos números, de acordo com a instrução de Aristóteles para separar o estudo
de magnitude e número.
De fato, Euclides incluiu dois tratamentos inteiramente separados da teoria
da proporção, no Livro V para magnitudes e no Livro VII para números. O Livro X
então fornece a ligação entre os dois conceitos, porque é onde Euclides introduz
as noções de comensurabilidade e incomensurabilidade, mostrando que, no que
diz respeito às proporções, magnitudes comensuráveis podem ser tratadas como
números. O livro continua apresentando uma classificação de algumas grandezas

342
incomensuráveis. O livro XI trata do estudo das figuras tridimensionais e no Livro
XII com método da exaustão aplicada a objetos bidimensionais e tridimensionais.
Finalmente, no Livro XIII, ele estuda poliedros regulares e poliedros inscritos em
uma esfera (KATZ, 2009).

ASPECTOS FORMAIS DOS ELEMENTOS

Apesar da importância do conteúdo dos Elementos, deve-se ressaltar ainda


mais a influência da obra para a transformação da estruturação do conhecimento
matemático, que é a maneira formal que se apresenta o conteúdo. Os Elementos
é uma obra de grande sofisticação lógica, onde em seu trabalho Euclides define os
conceitos que se servirá para demonstrar posteriormente na obra as suas
proposições.
Um dos grandes feitos dos matemáticos gregos antigos foi a criação da
forma postulacional de raciocínio, inspirados na lógica Aristotélica, especialmente
na teoria do silogismo, o primeiro estudo formal de lógica que possuímos (SMITH,
2012, p. 2). A fim de se estabelecer uma afirmação num sistema, deve-se mostrar
que essa afirmação é uma consequência lógica de algumas afirmações
previamente estabelecidas. A própria constituição política e social da pólis (cidade-
estado) grega, que enaltecia o uso da retórica, da dialética, entre seus cidadãos,
contribuiu significativamente para a forma de estruturar o pensamento matemático,
que teve em Platão (428-347 a.C.) um dos seus principais disseminadores. Na pólis
“Quem pede a palavra? [...] Qualquer cidadão [grego] tinha o direito de fazer este
apelo. Mas, de fato, poucos o faziam. Os que possuíam dons de oratória [...] os
hábeis no raciocinar e no usar a voz e o gesto, estes é que obtinham ascendência”
(NOVA CULTURAL, 1999, p. 7).
Assim, na matemática, um certo conceito é definido a partir de conceitos
anteriores, que por sua vez foram definidos por outrem e assim por diante. Bicudo
(2009, p. 82) menciona que, “como não há, dada a nossa finitude, possibilidade de
um retrocesso ad infinitum, é preciso dar uma solução ao ‘e assim por diante’.” Essa

343
solução, bem conveniente, aliás, é acolher que alguns termos devem ser aceitos
sem definição. Essas afirmações assumidas inicialmente se denominam
postulados ou axiomas.
Conforme Katz (2009, p. 53), Euclides prefaciou vários dos treze livros com
definições dos objetos matemáticos discutidos, em consonância com a visão
aristotélica de que um trabalho científico necessita começar com definições e
axiomas. Dessa forma, Euclides toma seu trabalho no pano de fundo de seus
axiomas e postulados, e assim, passa a provar um resultado após o outro, baseado
em resultados ou axiomas anteriores.
Eves (2011), aponta, que devido a mudanças e acréscimos feitos por
editores subsequentes, não se sabe com precisão quantas ou quais afirmações ele
assumiu como seus postulados e quais assumiu como axiomas. Euclides faz a
diferenciação entre axioma e postulado, onde os postulados são verdades
geométricas, dão significado ao objeto em estudo, no caso a geometria, enquanto
os axiomas (ou noções comuns) constituem verdades comuns a qualquer área e
possuem validade geral. Seguem os axiomas,

1. As coisas iguais à mesma coisa são também iguais entre si.


2. E, caso sejam adicionadas coisas iguais a coisas iguais, os todos
são iguais.
3. E, caso de iguais sejam subtraídas iguais, as restantes são
iguais.
4. E, caso iguais sejam adicionadas a desiguais, os todos são
desiguais.
5. E os dobros da mesma coisa são iguais entre si.
6. E as metades da mesma coisa são iguais entre si.]
7. E as coisas que se ajustam uma à outra são iguais entre si.
8. E o todo [é] maior que a parte.
9. E duas retas não contém uma área. (EUCLIDES, 2009, p. 99)

As noções comuns fazem referência, em linguagem atual, a propriedade


transitiva, a propriedades de igualdade em geral e do conceito euclidiano de
igualdade geométrica para triângulos, quadrados, círculos ou linhas. Menciona que
o todo é maior do que a parte e que duas retas não contém uma área, o que foi
demonstrado não ser verdadeiro a depender do contexto em que se trabalha.
Os cinco postulados são:

344
1. Fique postulado traçar uma reta a partir de todo ponto até todo
ponto.
2. Também prolongar uma reta limitada, continuamente, sobre uma
reta.
3. E, com todo centro e distância, descrever um círculo.
4. E serem iguais entre si todos os ângulos retos.
5. E, caso uma reta, caindo sobre duas retas, faça os ângulos
interiores e do mesmo lado menores do que dois retos, sendo
prolongadas as duas retas, ilimitadamente, encontrarem-se no lado
no qual estão os menores do que dois retos. (EUCLIDES, 2009, p.
98)

Os três primeiros postulados tratam da existência de retas e círculos: os


postulados um e dois estabelecem a existência de uma reta determinada por dois
pontos; o postulado três estabelece a existência de um círculo, dados seu centro e
seu raio. O quarto postulado não trata como os três primeiros de dizer que algo
existe, mas sim de estabelecer uma igualdade entre ângulos. O quinto e último
postulado do sistema de Euclides é o mais famoso, conhecido como Postulado das
Paralelas. Uma versão do século XVIII creditada ao matemático Playfair, que é
logicamente equivalente à de Euclides, diz que: “Por um ponto fora de uma reta
pode-se traçar uma única reta paralela à reta dada” (BARBOSA, 2008, p. 09).
Ainda na época dos gregos, dúvidas foram estabelecidas quanto a
colocação deste enunciado como um postulado e não como um teorema a ser
demonstrado. Incontáveis tentativas frustradas de demonstrar o quinto postulado
foram realizadas, e depois de quase dois mil anos de estudos, resultaram
finalmente na descoberta de geometrias não-euclidianas, obtidas a partir da
negação do quinto postulado (GARBI, 2007, p. 60).
O final do século XIX contou com o aparecimento de sistemas de axiomas
para diversos tipos de estruturas matemáticas, impulsionados pelo surgimento das
novas possibilidades geométricas: as geometrias não-euclidianas, cujos principais
nomes associados são János Bolay (1802–1860) e Nicolai Lobachevsky (1793–
1856), pela primazia na divulgação de seus resultados. As noções de grupo e corpo
foram estabelecidas, assim como a noção de um espaço vetorial. Da mesma forma,

345
axiomas foram desenvolvidos para o conjunto de inteiros positivos, e um grande
esforço foi realizado para a definição precisa da ideia de um número real.
A teoria geral dos conjuntos produziu alguns paradoxos tão profundos e
inquietadores que se impôs um tratamento urgente. A própria lógica, como
instrumento usado pela matemática para obter conclusões a partir de hipóteses
aceitas, foi aprofundada minuciosamente. É claro, o mais antigo sistema de
axiomas que existia era o de Euclides para o estudo da geometria, e, como os
matemáticos tinham noção, ele possuía diversas falhas lógicas (KATZ, 2009)
(EVES, 2011, p. 655).

Seria realmente notável se os Elementos de Euclides, sendo uma


tentativa tão antiga e monumental de aplicar o método
postulacional, não apresentasse defeitos lógicos. Os focos de luzes
de inúmeras análises críticas subsequentes revelaram muitos
defeitos na estrutura lógica da obra. De todos esses defeitos, talvez
o mais grave consista em várias suposições tácitas, sem base nos
postulados, admitidos por Euclides. (EVES, 2011, p. 656)

O sistema axiomático de Euclides era utilizado até então como referência


à geometria, no entanto, vários matemáticos através dos tempos perceberam que
o geômetra havia feito suposições em algumas provas que não eram mencionadas
explicitamente no seu catálogo de axiomas e postulados.
Entre algumas falhas citamos o postulado dois que afirma que uma reta
pode ser prolongada indefinidamente, o que não garante que uma reta é infinita,
mas tão somente que não se extingue, ou que é ilimitada. Segundo Berlinski (2018,
p. 42), essa definição de que linhas podem ser produzidas indefinidamente é,
todavia, peremptória, pois há diferença entre espaço ilimitado e espaço infinito, “a
superfície de uma esfera é ilimitada mas não infinita, e uma sequência de frações
diminuindo até zero é infinita mas não ilimitada”.
Assim, como realça Katz, com os novos desenvolvimentos nas geometrias
não-euclidianas, em que fosse reexaminado a natureza dos axiomas, houve um
esforço conjunto entre vários matemáticos para corrigir a situação no que diz
respeito ao trabalho de Euclides e colocar a geometria num patamar tão forte
quanto possível.

346
Será que os axiomas da geometria euclidiana eram consistentes?
Ou estavam enterrados na enchente obscura de suas
consequentes proposições que, junto com suas negações, podiam
ambas ser demonstradas? (BERLINSKI, 2018, p. 101)

Das inúmeras tentativas de estabelecer um conjunto completo de axiomas


a partir do qual a geometria euclidiana poderia ser derivada, o mais bem sucedido
foi provavelmente David Hilbert, matemático alemão considerado um dos mais
notáveis de seu tempo.

DAVID HILBERT E ALGUNS ASPECTOS SOCIOCULTURAIS

David Hilbert (1862–1943), um dos últimos matemáticos universais,


excepcionalmente talentoso, nasceu em Königsberg, então capital da Prússia
Ocidental, onde passou os primeiros 33 anos de sua vida dentro e ao redor da
mesma cidade, atual Kaliningrado, Rússia, tendo contribuindo para diversas áreas
da matemática. Lá ele frequentou a universidade e, após concluir seu doutorado
em 1885, ingressou no corpo docente. Ele ganhou destaque, porém, somente
depois de ser chamado por Felix Klein para trabalhar em Göttingen, elevando o
status desta universidade com relação a produção matemática como umas das
mais proeminentes da Alemanha, e provavelmente do mundo, até o primeiro terço
do século XX (KATZ, 2009, p. 868).
Ainda, Katz menciona que Hilbert é famoso por sua palestra no Congresso
Internacional de Matemáticos em Paris em 1900, onde ele apresentou uma lista de
23 problemas que seriam de importância central para a matemática no século XX.
Ele acreditava firmemente que eram os problemas que impulsionavam o progresso
matemático e sempre estava confiante de que "wir mussen wissen, wir werden
wissen” (precisamos saber, nós saberemos). Seu nome está associado a diversas
teorias e resultados matemáticos, confirmando o exímio trabalho que realizou nesta
área.

347
Hilbert viveu entre o final do século XIX e início do século XX, que são
marcados por vários acontecimentos históricos que influenciaram em muito o
desenvolvimento de todas as áreas da ciência, desencadeando uma época de
investigações científicas sem precedentes. A Revolução Industrial, que começou
no século XVIII na Inglaterra e durante o século XIX se espalha pelo continente
europeu e América, impulsionou o crescimento econômico e tecnológico numa
velocidade espantosa, marcando assim o início de mudanças radicais na estrutura
da sociedade (EVES, 2011, p. 516-517).
No campo da matemática, na segunda metade do período oitocentista, é
indiscutível a excelência em tratados de álgebra, análise e teoria dos números, a
formulação dos conceitos das grandes estruturas sobre as quais podemos
caracterizar comportamentos das operações matemáticas e do nascimento da
álgebra abstrata moderna. É nesse período que sob o desenvolvimento de várias
geometrias não euclidianas, permanecia uma questão em aberto no meio
acadêmico, que era a existência ou não de uma contradição interna na geometria.

A OBRA FUNDAMENTOS DA GEOMETRIA

Em 1899 Hilbert publicou o trabalho intitulado Grundlagen der Geometrie


(Fundamentos da Geometria), obra de grande importância, onde faz uma
apresentação rigorosa e desenvolve uma axiomatização moderna da geometria
euclidiana e discute pontos importantes das novas geometrias emergentes.
Esta obra além dos axiomas para geometria apresenta a compatibilidade e
independência mutual dos axiomas, sendo um deles o axioma das paralelas. Em
outros capítulos, trata de assuntos relacionados a teoria da proporção, o teorema
de Pascal, a teoria de áreas planas, o teorema de Desargues e construções
geométricas baseadas nos seu conjunto de axiomas.
Os gregos conceberam a geometria como uma ciência dedutiva no pano
de fundo de certos axiomas. Euclides foi notável em seu tempo e alcançou com
êxito seus objetivos. Contudo, a lista de axiomas de Euclides não parecia completa,

348
com isso Hilbert se dedicou a uma expansão e por consequente reforma da lista
original dos cinco postulados, transformando-os em vinte.
Hilbert desejava elaborar o enunciado de um sistema de axiomas completo
e tão simples quanto possível para a geometria, e deduzir deles os teoremas
geométricos mais importantes de tal forma a trazer o mais claramente possível o
significado dos diferentes grupos de axiomas e a projeção de cada um dos axiomas
nas consequências que deles se retiram (HILBERT, 1950, p. 1).
De acordo com Martins (2011, p. 154), esta abordagem marca a transição
para o método axiomático moderno, onde os axiomas agora não são mais vistos
como verdades auto evidentes.

Segundo Hilbert, não era mais necessário tratar dos objetos


comuns à geometria (reta, ponto e plano) para construir
demonstrações em geometria. Objetos do cotidiano podem
substituir os objetos primeiros da geometria de modo que a
construção e o valor lógico das demonstrações permaneçam
válidos. A discussão, entretanto, não se baseia nos objetos, mas
sim nas relações entre eles. (MARTINS, 2011, p. 154)

Em seu livro, David Hilbert inicia tratando de três termos indefinidos:


pontos, retas e planos, e estabelecendo suas relações mútuas a partir de axiomas.
Como Hilbert observou, apenas os axiomas definem as relações, não sendo preciso
apelo a intuição geométrica para provar resultados.

Sobre a necessidade de abstrair os conceitos geométricos, conta-


se que Hilbert certa vez dissera: “Temos sempre que ser capazes
de substituir ‘pontos, retas e planos’ por ‘mesas, cadeiras e canecas
de cerveja’”. O trabalho de Hilbert, ao desconsiderar o apelo à
intuição, abriu a possibilidade de definir axiomaticamente espaços
abstratos, sem a obrigatoriedade de conexão com o mundo físico.
(MOL, 2013, p. 130)

Logo, a ideia um sistema de axiomas de Hilbert é um pouco diferente de


Euclides e dos gregos antigos. Os pensadores tentavam declarar certos fatos
óbvios a conceitos que eles entendiam intuitivamente, enquanto Hilbert, por outro
lado, deseja abstrair as propriedades dos axiomas de qualquer interpretação da
natureza concreta de um objeto ou do sentido conotativo de seus termos.

349
Demonstra assim, um teorema a partir da estrutura ou das propriedades que os
elementos admitem dentro da estrutura.
Euclides começa seu primeiro livro tentando definir os entes geométricos,
onde coloca, “ponto é aquilo que nada é parte” (EUCLIDES, 2009, p. 97). Esta é a
primeira coisa que ele diz e a primeira coisa que é contestada, pois qual é o
significado de partes? Veja que é uma definição que significa pouco, pois se
axiomas podem ser aceitos sem prova, também alguns termos deveriam ser aceitos
sem definição.
Eis o que Hilbert escreve sobre os elementos da geometria, logo ao iniciar
o primeiro capítulo de Fundamentos da Geometria,

Vamos considerar três sistemas distintos de coisas. As coisas que


compõem o primeiro sistema, serão chamados pontos e
designados pelas letras A, B, C, ...; as da segunda serão chamadas
linhas retas e designadas pelas letras a, b, c,...; e as coisas do
terceiro sistema, serão chamados planos e designados pelas letras
gregas 𝛼, 𝛽, 𝛾, ... Os pontos são chamados de elementos da
geometria linear; os pontos e linhas retas, os elementos da
geometria plana; e os pontos, linhas e planos, os elementos da
geometria espacial ou os elementos do espaço. (HILBERT;
TOWNSEND, 2006, p. 3, grifo do autor, tradução nossa).

Hilbert divide seus axiomas em cinco grupos: os axiomas de incidência, de


ordem, das paralelas, da congruência e de continuidade. De acordo com Martins
(2011, p. 158), existem três condições que um sistema axiomático deve satisfazer:
ser consistente, ser completo e ser independente. Tendo definido seus axiomas,
Hilbert procedeu por mostrar que a geometria é consistente se a aritmética for
consistente, isto é, que deles não se podia deduzir nenhuma contradição, pelo
menos sob a suposição de que a aritmética não tinha contradições.
Seu trabalho ficou conhecido como programa de Hilbert, ou seja, uma
tentativa de fundamentar a matemática em um sistema com certas regras e
propriedades que incluem as três condições destacadas acima. Entretanto,

Em 1930, numa conferência em que participaram Hilbert e o


matemático austríaco Kurt Gödel (1906–1978), Hilbert proferiu um
discurso em que reafirmou o Programa de Hilbert enquanto Gödel

350
anunciou o seu Primeiro Teorema da Incompletude que [...] mostra
que o Programa de Hilbert é inexequível. (GASPAR, 2018, p. 7)

Assim, como consequência do Primeiro Teorema da Incompletude de


Gödel, temos que as teorias matemáticas razoáveis para fundamentar a
matemática não podem ser completas, ou seja, “há limites para o que se pode
conhecer matematicamente” (GASPAR, 2018, p. 8).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, apresentamos um breve levantamento da história da


geometria euclidiana, analisando dois grandes matemáticos, que contribuíram,
cada qual, grandemente para a definição e o avanço da matemática. Com o
exposto, na medida em que nos é descortinado o desenvolvimento da geometria,
através dos sistemas axiomáticos desenvolvidos por Euclides e Hilbert,
principalmente cientes do contexto sociocultural e do pensamento da época, é
inevitável uma reflexão sobre a evolução da matemática e das ciências.
Ambos os sistemas, cada um com suas particularidades, apresentam
proposições para a Geometria Euclidiana que trabalhamos hoje, com os seus
resultados padrões para paralelismo, áreas, semelhanças, ângulos etc. Entretanto,
enquanto Euclides baseia sua sistemática em preceitos que emergem de
observações do mundo real, buscando explicar um universo euclidiano, Hilbert se
distancia do concreto e fundamenta sua geometria em estruturas lógicas-dedutivas
abstratas que permitem ir além do universo euclidiano, adentrando em outras
geometrias.
Assim, quando pensamos na geometria que deve ser ministrada na
educação básica, surge-nos alguns questionamentos com respeito aos conteúdos
dos cursos de licenciatura em Matemática, como por exemplo: Que “geometrias”
estão sendo trabalhadas nestes cursos? Qual a influência dos sistemas
axiomáticos para o ensino deste tema? O rigor abstrato prejudica uma posterior

351
instrução mais pragmática para uma área do ensino básico que essencialmente se
apoia no concreto?
Estas são algumas questões que queremos discutir e acreditamos que
entender a história em que se concretizaram tais descobertas referentes a
geometria irá nos ajudar a elucidá-las.
Por fim, ao estudar a História da Matemática, seus personagens e
desfechos, entendemos o processo que levou à descoberta de temas e conteúdos,
mostrando nuances que poderiam passar despercebidas. Com este trabalho,
espera-se incentivar novas produções na área, de modo a contribuir, também, para
o entendimento do contexto em que as ideias matemáticas surgem, estimulando a
aprendizagem e a pesquisa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BERLINSKI, David. Os Elementos de Euclides. Trad. Claudio Carina. 1. ed. Rio


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Introdução Irineu Bicudo. São Paulo: EDUNESP, 2009, p. 15-95.

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EDUNESP, 2009.

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Grega Antiga. Revista de Humanidades de Valparaíso, Valparaíso (Chile), n. 9,
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GARBI, Gilberto G. A Rainha das Ciências: um passeio histórico pelo


maravilhoso mundo da matemática. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2007.

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HILBERT, David; TOWNSEND, E.J. The Foundations of Geometry. Chigago:


Kessinger Publishing, 2006.

KATZ, Victor J. A History of Mathematics: an introduction. 3. Ed. New York:


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MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: Dos pré-socráticos a


Wittgenstein. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

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O Grundlagen der Geometrie como exemplo de solidariedade lógica entre a
aritmética e a geometria. 2011. 223p. Tese (Doutorado em História das Ciências e
das Técnicas e Epistemologia) — COPPE/IQ/IM, UFRJ, Rio de Janeiro, 2011.

MOL, Rogério S. Introdução à História da Matemática. Belo Horizonte: CAED-


UFMG, 2013.

NOVA CULTURAL. Vida e Obra. In: PLATÃO. Diálogos. São Paulo: Nova
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SMITH, Robin. A Lógica de Aristóteles. Investigação Filosófica, v. 3, n. 2, artigo


digital 2, 2012.

353
A EVOLUÇÃO DA NOÇÃO DE CONTINUIDADE E REFLEXÕES SOBRE A
RELAÇÃO ENTRE DISCRETO E CONTÍNUO

Ironei Angelo dos Santos Junior126


Humberto de Assis Clímaco127

RESUMO
As fontes históricas conhecidas levam a crer que a compreensão ou elaboração da noção
de continuidade, bem como sua oposição à ideia de discretude – ou propriedade de ser
discreto – surgiu na Grécia Antiga. Um dos belos exemplos foi Zenão, que com seus
paradoxos apresentou ao mundo intelectual da época tal contradição com enorme clareza.
Até o surgimento da Revolução Científica e da noção de função, a continuidade era
relacionada ao movimento de um objeto de um ponto a outro. Com a modernidade essa
visão muda, sobretudo a partir da obra de Descartes e da plena incorporação dos estudos
dos números e operações à matemática teórica, bem como à relação que se estabelece
entre geometria e análise a partir daí, que o mesmo realiza. Newton e Leibniz abordam de
maneira nova, a partir dos conceitos do cálculo que desenvolvem, a noção de continuidade
e da matemática discreta a partir do estudo de séries e do movimento, mas ainda passaria
mais de um século até o momento em que Bolzano e Cauchy, inicialmente, e Weierstrass
e Dedekind, posteriormente, criassem as definições de continuidade que são usadas até
os dias atuais, que resultaram na unificação entre o discreto e o contínuo. No presente
artigo, realizado de acordo com a metodologia documental-bibliográfica, mostraremos
aspectos dessa história buscando compreender como se deu, ao longo da história, a
relação entre contínuo e discreto, e sua relação com a questão do formal e intuitivo.

Palavras-chave: Continuidade. Definição. Matemática.

OS INÍCIOS DA CONTINUIDADE
Mais de 2000 anos antes de surgir uma definição formal da continuidade
de funções, se costumava atribuir a propriedade de ser contínua a uma grandeza

126
Universidade Federal de Goiás (UFG). ironeijunior@discente.ufg.br 1.
127
Universidade Federal de Goiás (UFG). humberto_climaco@ufg.br 2.

354
ou fenômeno da natureza quando este era constituído de um todo ininterrupto, sem
furos, como é o segmento de reta, ou como se supõe que seja o tempo ou o
movimento. Em geral, a continuidade estava associada à noção de movimento e
de relação.
Um dos grandes exemplos dessa noção é o paradoxo de Zenão que retrata
uma corrida entre a tartaruga e o herói de guerra Aquiles, a relação consistia em
algo parecido com a organização dos pontos na reta, que remete a uma concepção
discreta.
O mais conhecido dos paradoxos formulados por Zenão é o chamado “de
Aquiles e a Tartaruga”, e pode ser enunciado da seguinte forma: numa corrida em
entre Aquiles e a Tartaruga em que esta última sai na frente, cada vez que Aquiles
alcança o local exato em que se encontrava a Tartaruga, ela já percorreu certa
distância e se encontra em outro ponto; isso ocorre sucessivamente, numa
quantidade indefinida de vezes, de modo que, por mais que Aquiles corra, ele
nunca encontrará a Tartaruga.
Em oposição à continuidade se encontra o atributo de ser discreto: diz-se
que algo é discreto quando é separável, como se costumam considerar os
números.

A CONTINUIDADE NA GRÉCIA ANTIGA

Aristóteles formula uma noção de continuidade associada ao movimento e


à rejeição de que o espaço seja formado por um número finito ou infinito de pontos,
o que invalidaria os Paradoxos de Zenão:

A grandeza sobre a qual a mudança toma lugar é contínua. Pois


suponha que uma coisa mudou de C para D. Então se CD fosse
indivisível, duas coisas que não têm partes poderiam ser
consecutivas, e desde que isso seja impossível (o espaço entre
elas?), deve ser uma grandeza e, portanto, ser divisível
indefinidamente. Então essa coisa efetua inumeráveis mudanças
antes de que ele tenha efetuado qualquer mudança dada (Física, livro
VI, 237-a, 31–34).

355
Os atomistas conceberam, ao contrário de Aristóteles, um universo
discreto, formado por partes indivisíveis isoladas, e usaram estes conceitos para
calcular o volume de sólidos e a área de figuras geométricas.
A busca, por parte dos gregos, de construir uma matemática que se
adequasse a seus ideais estéticos e metafísicos fez com que – apesar de suas
grandes contribuições – houvesse uma desvalorização da noção de número, o que
os afastou da busca de uma definição numérica, discreta e estática, da
continuidade.
É por isso que as soluções dadas por Eudoxo, Aristóteles, Teeteto e
Euclides para a crise dos fundamentos priorizou a fundamentação dos conceitos
matemáticos na geometria, cujos objetos são contínuos; em detrimento do discreto,
do número. Prevaleceu na matemática grega, uma concepção geométrica contínua
de matemática e não aritmética ou discreta.

A CONTINUIDADE NA MODERNIDADE

Primeiramente com o fortalecimento do comércio e das navegações, a


retomada de uma vida comercial ativa nas cidades e a crescente introdução dos
algarismos indo-arábicos, e posteriormente os estudos das soluções de equações
algébricas e o advento da Revolução Científica e – e em particular com as obras
de Descartes, Cavallieri, Kepler etc. – começa uma progressiva valorização dos
números e da natureza discreta da Matemática (ver CLÍMACO, 2011).
Por outro lado, certo “espírito de experimentação” (STRUIK, 1989) por parte
dos matemáticos fez com que a exigência de rigor própria dos gregos fosse sendo
progressivamente abandonada ou diminuída.
Assim, são retomados métodos que os gregos usaram (como a exaustão,
as coordenadas) e suas realizações teóricas, mas abandonando, para efeitos de
cálculos e descobertas, certas preocupações excessivas com o rigor e a busca da
beleza e da harmonia que fazia com que os gregos, com frequência, deixassem de

356
explorar outros aspectos da matemática – em particular curvas que expressavam
movimento e os aspectos operacionais dos números e das contas.
No entanto, conhecedores das obras dos gregos e utilizando-as, houve no
período da Revolução Científica uma forte união entre os aspectos discreto e
contínuo: a valorização dos números não se deu apenas como fonte de cálculos
práticos, mas como valorização teórica dos mesmos, o que levou à fundação da
álgebra (ver BOUTROUX (1992)) e à criação da geometria analítica.
Descartes usou coordenadas, desenvolveu uma álgebra de fácil operação,
revalorizou os números e aceitou na geometria uma série de curvas que os gregos
não admitiam. Kepler retomou concepções atomistas para cálculo de áreas e
volumes.
Mas o surgimento da noção de função no século XVII ainda não colocou
para os matemáticos, de imediato, a questão de definir funções contínuas, e a
noção de continuidade só viria a ser tratada de maneira separada da noção de
movimento ou transformação de fenômenos da natureza no século XIX.
Embora Newton tenha realizado importantes estudos sobre séries
numéricas, sua obra Principia Mathematica Philosophiae Naturalis ainda está
repleta de demonstrações geométricas.
Newton concebeu quantidades contínuas por meio do movimento contínuo,
rejeitando explicitamente a definição de curvas como formadas por pontos, mas as
compreendeu como sendo geradas pelo movimento de pontos. A falta de definição
adequada de conceitos fundamentais do Cálculo, como limites e continuidade (e,
portanto, também de convergência, derivação e integração), o levou a algumas
contradições, como Berkeley (2010) viria a mostrar.
Leibniz tratou da noção de continuidade em diversas obras e também em
suas correspondências. Em 1702, em carta a Varignon, ele afirma que “se alguma
transição contínua se supõe como terminando num certo limite, então é possível
formar um raciocínio geral que abarca também o limite final” (Leibniz, 1859, p. 93).
Em outra publicação, aparece a afirmação de que “A natureza ... nunca dá saltos”
(LEIBNIZ, 1890, p. 567). Outra ainda afirma que “Nenhuma mudança se faz por
meio de saltos” (LEIBNIZ, 1879, p. 168).

357
Em uma carta endereçada a Bayle de 1687, Leibniz apresenta de uma
maneira ainda diferente a lei da continuidade: como um “princípio de ordem geral”,
cuja origem se assenta no infinito e é de fundamental importância na geometria e
na física:

Quando a diferença entre dois casos dados numa série dada [ou
que] se pressupõe que pode diminuir até se tornar menor do que
qualquer quantidade dada, a diferença correspondente encontrada
ou nos seus resultados deve ser necessariamente também
diminuída ou tornar-se menor do que qualquer quantidade dada.
Ou, para dizer isso de maneira mais comum, quando dois casos ou
dados se aproximam um do outro continuamente, de maneira que
um pelo menos passa pelo outro, é necessário para suas
consequências ou resultados (ou o desconhecido) que façam o
mesmo. Isso depende de um princípio mais geral, que, conforme
os dados são ordenados, também os desconhecidos são
ordenados [Datis ordinatis etiam quaesita sunt ordinata] (LEIBNIZ,
1969, p. 37; orig.: LEIBNIZ, 1887, p. 52).

Na versão latina do “Sobre o Princípio da Continuidade” Leibniz faz uma


formulação mais clara da diferenciação entre variáveis independentes (que ele
chama de “dado”), e dependentes (“procurado”):

Se na série de quantidades dadas dois casos se aproximam um do


outro continuamente, de maneira que um eventualmente se torna o
mesmo que o outro, então ele tem inevitavelmente que ocorrer na
série correspondente da quantidade dependente ou derivada que é
procurada. Isso é uma consequência do princípio ainda mais geral a
seguir: uma ordem determinada no que é dado corresponde a uma
determinada ordem no que é procurado (LEIBNIZ, 1904, p. 84).

A CONTINUIDADE NO SÉCULO XVIII


A questão da continuidade matemática acabou por ser confundida com a
“lei de conservação do movimento” aplicada aos “corpos duros”: se dois corpos
duros se colidem, há perda de energia, ou simplesmente transferência de um para
o outro? Leibniz sustentou que não poderia haver perda de energia, por respeito à
“lei da continuidade”, pois não seria possível “transitionem per saltum” (cf.
SCHUBRING, 1993, p. 182).

358
Mas, enunciada dessa forma, a lei da continuidade tornava-se equivalente
ao Teorema do Valor Intermediário, o que colocou tal teorema como algo
fundamental (equivalente a um princípio) para a Matemática, pela primeira vez. (cf.
SCHUBRING, 1993).
É no século XVIII que a matemática começa a tomar a forma que ela tem
hoje, e os tratados matemáticos, e mesmo os de mecânica, passaram a conter cada
vez menos desenhos e cada vez mais fórmulas, funções e séries.
Critérios de convergência de séries, essenciais para a definição de limite,
não eram estudados a fundo. Prosseguiram explicações que ora recorrem a
analogias com a natureza, ora a argumentos metafísicos.
As contradições nas tentativas de definir os conceitos básicos do cálculo
continuavam sem solução, e somente D'Alembert tentou definir seus conceitos em
termos de limite, mas ainda com certas dubiedades.
A consequência prática disso é que as séries infinitas, que apareciam com
cada vez mais frequência na resolução de equações diferenciais, chegavam a
resultados totalmente absurdos, mesmo nas mãos de grandes matemáticos.
Como consequência da interpretação da lei da continuidade leibniziana,
Bernoulli, posteriormente, postulou o Teorema do Valor Intermediário como um
conceito físico, e não matemático:

Se a natureza pudesse passar de uma extremidade para a outra, por


exemplo, do estágio parado para o movimento, do movimento para o
parado, ou do movimento em uma direção para o movimento na
direção oposta, sem passar por todos os movimentos imperceptíveis
que levam de um para o outro; o primeiro estado deveria ser
destruído, sem que a natureza soubesse em qual novo estado ele se
tornaria; pois, afinal, por qual razão deveria um ser tomado
preferencialmente, e pelo qual não se poderia perguntar por que este
e não aquele? Não tendo conexão necessária entre dois estados,
sem passagem do movimento para o estado parado, do parado para
o movimento, ou de um movimento (em uma direção) para um
movimento na direção oposta; nenhuma razão determinará a
produção de uma coisa no lugar de outra (BERNOULLI, 1727, p. 9).

Euler fala sobre as curvas serem contínuas ou descontínuas relacionando


com o conceito de função:

359
A ideia de linhas curvas em primeiro lugar leva à sua divisão em
curvas contínuas e descontínuas. Chama-se uma linha curva de
contínua quando sua natureza é determinada por uma função
específica de x; ao contrário, ela é chamada de descontínua ou mista
e irregular quando diferentes partes dela, BM, MD, DM etc., são
determinadas por diferentes funções de x (EULER, 1748).

ARITMETIZAÇÃO
Chama-se aritmetização o processo pelo qual a matemática passou a
basear seus conceitos mais importantes na noção de aritmética, mais exatamente,
na noção de número real. Este processo revolucionou a matemática, na medida em
que inverteu a relação contínuo-discreta. Se antes o número era visto como
expressão de grandezas físicas contínuas, ou como princípio metafísico cuja
validade era confirmada e legitimada pelo funcionamento da natureza, com a
aritmetização o número passou a fundamentar o próprio conceito de continuidade
(isso se deu por meio das séries numéricas e pela definição da noção de
continuidade em termos aritméticos, portanto estáticos).
Bolzano e Cauchy foram os matemáticos da primeira metade do século XIX
que mais avançaram nesse sentido. Bolzano formulou de uma maneira mais
fundamentada a necessidade de reescrever os fundamentos do cálculo sobre
bases “puras”, mas sua obra não foi tão conhecida nem teve o mesmo impacto que
a de Cauchy, que também desenvolveu tais princípios em mais áreas da
matemática do que Bolzano.
Com a definição de continuidade a seguir – que seria formulada poucos
anos depois em termos semelhantes por Cauchy, e tornada ainda mais analítica
por Weierstrass na segunda metade do século – a continuidade passa a ser tratada
de maneira aritmética e estática.

a expressão que uma função f(x) varia de acordo com a lei de


continuidade para todos os valores de x dentro ou fora de
determinados limites significam somente isto: se x é algum valor
destes, a diferença f(x+w) – fx pode ser tornada menor do que
qualquer quantidade dada exigindo apenas que w possa ser tomada
tão pequeno quanto queiramos. Com a notação que eu introduzi na
Seção 14 do Binomischhe Lehrsatz etc. (Praga, 1816), este é f(x+w)
= fx + W. (BOLZANO, 2004, p. 256).

360
Bolzano também enunciou um critério de convergência de séries hoje
conhecido como “Critério de Convergência de Cauchy” (anterior à de Cauchy) e fez
a prova da existência do maior limite inferior (ou menor limite superior) para
conjuntos limitados, que chamamos hoje de ínfimo (e supremo). Esta foi reescrita
por Weierstrass como “toda sequência limitada (de números reais, sabe-se hoje)
tem uma subsequência que converge” e desde o final do século XIX passou a ser
chamada de “Teorema de Bolzano-Weierstrass”.
Cauchy deu ainda a seguinte definição de continuidade, muito semelhante
à de Bolzano, poucos anos depois:

Seja f(x) uma função da variável x, e suponhamos que, para cada


valor de x intermediário entre dois limites dados, esta função admita
constantemente um valor único e finito. Se, partindo de um valor x
compreendido entre estes limites, atribui-se à variável x um
acréscimo infinitamente pequeno α, a própria função receberá por
acréscimo a diferença f(x+α)-f(x), que depende, ao mesmo tempo, da
nova variável α e do valor de x. Isto posto, a função f(x) será, entre os
dois limites atribuídos à variável x, função contínua desta variável, se,
para cada valor de x intermediário entre limites, o valor numérico da
diferença f(x+α)-f(x), decresce indefinidamente com aquele de α. Em
outros termos, a função f(x) permanecerá contínua em relação a x
entre os limites dados, se entre estes limites, um acréscimo
infinitamente pequeno dado, a variável produzir sempre um
acréscimo infinitamente pequeno da própria função. Diz ainda que a
função f(x) é, na vizinhança de um valor particular atribuído à variável
x, função contínua dessa variável, todas as vezes que ela é contínua
entre dois limites de x, mesmo muito próximos, que contém o valor do
qual se trata. (CAUCHY, 1821, p. 43, original de 1817)

Weierstrass, na segunda metade do século XIX, apresenta uma definição,


que não foi escrita em artigo ou em tratado, mas em notas de aulas posteriormente
publicadas por alunos, que é análoga à que se encontra nos livros de cálculo dos
dias atuais, dando uma definição equivalente às de Bolzano e de Cauchy, mas com
maior clareza e precisão, eliminando toda referência a noções como “tornar-se”,
“aproximar-se”, “decrescer”, dentre outras, que remetem a questões relativas a
mobilidade, infinitamente pequeno ou semelhantes. “Weierstrass definiu f(x) como
sendo contínua, dentro de certos limites de x, se para qualquer valor x0 tal que para

361
todos os valores neste intervalo a diferença f(x)-f(x0) é, em valores absolutos, menor
do que 𝜺” (BOYER, 1949, p. 287).

Mas, se se concebem os axiomas de um ponto de vista do método


hipotético-dedutivo, característico da corrente chamada de axiomática, como o
fizeram Giuseppe Peano (1858-1932), Julius Wilhelm Richard Dedekind (1831-
1916) e David Hilbert (1862-1943), apresenta-se uma perspectiva diferente.
Dedekind, cerca de setenta anos depois da publicação da definição de continuidade
de Bolzano presente em seu Prova Puramente Analítica... (2004) afirmou que a
correspondência entre a reta e o conjunto dos números reais deve ser
simplesmente postulada de modo que seja evidente para o sujeito, e assim não
cabem demonstrações desta correspondência.
Em suas palavras:

Eu vejo a essência da continuidade (...) no seguinte princípio: se uma


repartição de todos os pontos da reta em duas classes é de tal
natureza que todo o ponto de uma das classes está à esquerda de
todo o ponto da outra, então existe um e um só ponto pelo qual é
produzida esta repartição de todos os pontos em duas classes, ou
esta decomposição da reta em duas partes... Creio não errar
admitindo que toda a gente reconhecerá imediatamente a exatidão
do princípio enunciado. A maior parte dos meus leitores terá uma
grande desilusão ao aprender que é esta banalidade que deve revelar
o mistério da continuidade... Que cada um ache o princípio enunciado
tão evidente e tão concordante com a sua própria representação da
reta, isso satisfaz-me ao máximo grau, porque nem a mim nem a
ninguém é possível dar deste princípio uma demonstração qualquer.
A propriedade da reta expressa por este princípio não é mais que um
axioma, e é sob a forma deste axioma que nós pensamos a
continuidade da reta, que reconhecemos à reta a sua continuidade.
Se o espaço tem, de fato, uma existência real, não é algo necessário
para que ela (a reta da qual tratam os matemáticos, nota minha) seja
contínua... e mesmo se soubéssemos com certeza que o espaço é
descontínuo, ainda assim não há nada que nos proíba... de preencher
estes furos no pensamento, tornando assim a reta contínua
(DEDEKIND, 1963, p.11-12; original de 1888).

Da mesma forma, a definição dos números irracionais por intervalos


encaixados, elaborada em sua forma atual por Hilbert e Kolmogorov, que
apresentamos na forma que foi descrita por Richard Courant (1888-1972), que foi
aluno de Hilbert, e Robbins Herbert (1915-2001) por meio da afirmação de que “um

362
ponto irracional é completamente descrito por uma sequência de intervalos
racionais encaixados de comprimentos tendendo a zero” (COURANT & HERBERT,
2000, p.82), também não é mais que uma forma de postulação explícita de algo
que intuímos da noção de continuidade espaço-temporal. Isso porque, concebida
desta forma, “a existência sobre a reta numérica (considerada como uma reta) de
um ponto contido em cada sequência de intervalos encaixados com pontos
extremos racionais” (2000, p.82) é considerada como

um postulado fundamental da Geometria... Nós a aceitamos, da


mesma forma como aceitamos outros axiomas ou postulados em
Matemática, por causa de sua plausibilidade intuitiva e sua utilidade
na construção de um sistema consistente de pensamento
matemático... Construir esta definição, após ter sido levado a uma
sequência de intervalos racionais encaixados por meio de um
sentimento intuitivo de que o ponto irracional “existe”, significa
dispensar o apoio intuitivo com o qual nosso raciocínio procedeu e
compreender que todas as propriedades matemáticas de pontos
irracionais podem ser expressas como propriedades de sequências
de intervalos racionais encaixados (COURANT & HERBERT, 2000,
p.82-83).

De acordo com a tendência axiomática ou hipotético-dedutiva da


matemática, o Teorema do Valor Intermediário poderia, ao contrário do que pensou
Bolzano, ser considerado um axioma, da mesma forma que o teorema de Pitágoras
(571/570-497/496) pode ser tratado como um axioma da geometria euclidiana pela
simples razão de que ele é logicamente equivalente ao postulado das paralelas.

O SIGNIFICADO DAS TRANSFORMAÇÕES DO CÁLCULO OCORRIDAS NO


SÉCULO XIX
As citações sobre o século XVIII são suficientes para mostrar que a visão
que Leibniz tinha da continuidade era bem distante da concepção aritmética do
século XIX. Isso é confirmado por Schubring, que afirma que os autores que viram
na última definição citada uma versão diferente, mas equivalente, à noção moderna
de continuidade,

não tomaram consciência de uma diferença conceitual essencial...


enquanto o conceito moderno diz respeito à continuidade de

363
funções, a versão de Leibniz diz respeito a quantidades de variáveis
geométricas (SCHUBRING, 1993, p. 176; itálico do autor).

Assim, mesmo que dificilmente alguém discorde da afirmação de Tatiana


Roque de que “a constituição da noção de rigor, ora vigente, está ligada à história
da análise da matemática” (ROQUE, 2012 p. 404-405), não é possível concordar
com sua afirmação, ao se referir aos matemáticos do século XVIII, de que

não podemos afirmar que seus resultados carecessem de rigor,


como se eles tivessem o objetivo de avançar sem preocupações
com a fundamentação de seus métodos (ibidem, p. 406-407).

É preciso entender que os matemáticos do século XVII iniciaram um


movimento consciente de abandonar o excessivo rigor dos gregos na geometria
para alcançarem novos resultados, e que esta disposição foi, em grande medida,
continuada pelos matemáticos do século XVIII, uma mentalidade que Struik chama
de “espírito de experimentação” (STRUIK, 1989, p. 21). A atitude de Euler é
exemplar dessa tendência. Como afirmou Clímaco (2011), em referência aos
matemáticos do século XVIII:

Os objetos de maior preocupação destes matemáticos eram a


criação e o desenvolvimento da matemática, e não sua
fundamentação. O que não significa que não se tenha tratado do
rigor e nem se criticado a fragilidade da base sobre a qual se
assentava o enorme edifício matemático do século XVIII. Se por um
lado é inquestionável a grandiosidade dos avanços da matemática
deste século, por outro, os questionamentos de Berkeley às noções
de infinito e infinitésimo continuavam sem resposta satisfatória, e o
caráter contraditório das explicações que os matemáticos tentavam
dar para estas noções foi colocado em evidência pelas críticas do
bispo, e também pela manipulação sem cuidado de séries infinitas,
que levou Euler a generalizar resultados particulares a ponto de
afirmar como verdadeira a igualdade 𝟏 = 𝟏 + 𝐱 + 𝒙𝟐 + ⋯ +
𝟏−𝒙
𝐱𝒏 +. .. para valores quaisquer, como x =−1, x =1, x = 2 etc (cf.
RUSNOCK, 1997, p. 73). Assim, no final do século XVIII, estes
conceitos (infinito, infinitésimo, continuidade), ou eram explicados
em termos metafísicos, ou em termos de explicações geométricas,
ou que envolviam as noções de espaço e de tempo (BOYER, 1949
p. 287).

364
Do ponto de vista do historiador, o fundamental não deve ser a subjetiva
questão de saber se Euler e outros acreditavam ou não que seu trabalho era
rigoroso, mas sim de compreender a natureza do trabalho matemático que
desenvolviam, o quanto se dedicavam às questões de fundamentos, o valor que
davam a estas questões e o que entendiam por rigor e fundamentos.
Grabiner, estudiosa da história de Cauchy e do processo de aritmetização,
tem dados históricos que corroboram nossa visão, ao mostrar que, no século XVIII,

Explicações dos matemáticos sobre a natureza do cálculo eram


encontradas principalmente em introduções a exposições do
cálculo, especialmente em cursos de leituras e em livros baseados
neles, em exposições populares da matemática para público leigo,
e em respostas a ataques à solidez lógica do cálculo. Eles não
eram comumente encontrados em artigos impressos em jornais
científicos. Até os anos 1780, quase não há exceção a esta
afirmação. Mas ela continua válida para o resto do século
(GRABINER, 1981, p. 23).

Mas, mesmo reconhecendo que a autoconsciência dos matemáticos do


século XVIII não seja o mais importante, pode-se afirmar que em certa medida os
matemáticos do século XVIII tinham consciência, sim, da ausência de rigor do
cálculo, a ponto de ninguém ter conseguido ainda responder às objeções feitas
ainda no século XVII por Berkeley aos seus fundamentos, nem sequer ter
respondido, de maneira efetiva, aos Paradoxos de Zenão. Os matemáticos do
século XVIII compreendiam que seu mérito era fazer a matemática crescer evitando
se paralisarem por razões de natureza lógica ou mesmo de inconsistência nos
fundamentos e julgavam que, naquele momento, o progresso de seu trabalho
matemático não dependia deste rigor. Dizer que tais matemáticos não tiveram a
mesma preocupação com o rigor dos matemáticos do século XIX em nada diminui
sua obra, mas nos ajuda a compreender a dinâmica do crescimento e da
transformação da matemática em cada época.
E esse rigor só foi alcançado quando houve a aritmetização: a
fundamentação do cálculo na noção de limite, e o estudo rigoroso da convergência
de séries. Somente este desenvolvimento permitiu à matemática alcançar
generalidade a que chegou no século XIX, o que permitiu um novo impulso às

365
demais ciências e preparou a grande expansão e especialização matemática do
século XX. Afinal, com a transformação ocorrida no século XIX, a matemática
deixou de ser ciência das quantidades, grandezas e cálculos (no sentido de contas)
para ter em seu centro a noção de demonstração dos resultados conhecidos; além
disso, a criação dos conceitos que os matemáticos criaram para demonstrar tais
resultados (em particular os conceitos de limite, derivada e convergência)
transformaram completamente a matemática, chegando ao que nos dias atuais se
conhece como matemática pura (o que Roque (2012, p. 404-408) reconhece).

E o surgimento da matemática pura não se limita à aritmetização, nem é um


fenômeno isolado do que ocorreu em outras áreas. Como afirma Giddens (991, p
39), “é característico da modernidade... a reflexão sobre a natureza da própria
reflexão".

Uma das mais importantes características da matemática moderna,


surgida no século XIX, e de ambas as tendências que a tentaram
definir, é sua autorreflexividade, sua dimensão meta-matemática.
No início do século XIX, durante a Segunda Revolução Industrial,
os matemáticos passaram a ter consciência da necessidade da
auto-reflexão, de refletirem sobre seus próprios conceitos. Surgiu
então a meta-matemática, uma forma de conceber a matemática
que esboçou uma concepção própria de lógica-matemática, e com
a qual ela, que sempre havia sido caracterizada pelas quantidades
e grandezas, perdeu esta característica com a mudança e
amplitude das suas próprias ideias, tornando-se uma disciplina
conceitual. (CLÍMACO, 2010)

Conceitos como funções, séries e derivadas – anteriormente vistos como


instrumentos das ciências físicas – passaram a ser vistos, a partir do século XIX –
como objetos próprios da matemática, a serem estudados de maneira separada,
ou pelo menos bem distante, de seu uso em outras ciências ou de noções intuitivas.

Do ponto de vista da relação entre o contínuo e o discreto, as progressivas


transformações na noção de continuidade no século XIX resultaram numa
reconciliação entre o discreto e o contínuo: se na Grécia Antiga predominaram os
aspectos qualitativos e uma abordagem contínua, não numérica, da matemática, e
se os indus, árabes e chineses priorizaram aspectos numéricos, portanto discretos,

366
da mesma, o século XVII inicia uma conciliação entre o discreto e o contínuo que
vieram a ter um ápice na definição de número de Dedekind, que resolve, por assim
dizer, o que ele chama de “mistério da continuidade”, que é o mistério desse
conceito matemático tão pouco intuitivo que é a reta numérica, e que assombrou
pela primeira vez os gregos com o paradoxo de Aquiles e a Tartaruga, mas que até
matemáticos como Bolzano, Cauchy e Weierstrass não conseguiram compreender
de maneira plena.

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mais distintamente concebidos ou mais obviamente deduzidos do que os mistérios
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STRUIK, Dirk. História Concisa das Matemáticas. Tradução de João Guerreiro. 3.


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369
A NEUROCIÊNCIA E A INTRODUÇÃO DA MEDIDA NA GEOMETRIA

Manoel de Campos Almeida128

RESUMO

Investiga-se como resultados da Neurociência elucidam os processos neurofisiológicos


mediante os quais o cérebro avalia magnitudes mediante frações simbólicas e não
simbólicas. Enfatiza-se a importância de Lei de Weber-Fechner para a compreensão
desses mecanismos. Estudam-se os diferentes sistemas de representação numérica.
Mostra-se como os números podem ser alinhados em um eixo (efeito SNARC), bem como
podem existir outros eixos que permitem a avaliação de proporções em um espaço
tridimensional, o que permite ao cérebro a estimativa de medidas. Apresenta-se quando
dentro da História da Matemática as mensurações surgem no âmbito da Geometria, no
Neolítico, ou seja, quando ocorre o nascimento da geometria métrica.

Palavras-chave: Pré-História da Matemática. Neurociência. Frações não simbólicas

Preâmbulo

Cabe, preliminarmente, um esclarecimento sobre o que os gregos


interpretavam por multitude. Boécio, em seu De Institutione Arithmetica
(Masi,1983), nos esclarece que há duas espécies de essências, que compõem
todas as coisas. Uma é contínua, denominada magnitude, que caracteriza corpos
contínuos, tais como uma pedra, uma árvore ou uma área ou volume. A outra é
caracterizada por ser disjunta, determinada por suas partes, reduzida a uma única
reunião coletiva, tal como um rebanho, um coro, uma multidão, uma pilha de coisas,
cujo nome próprio é multitude. Diríamos, hoje, que magnitude é um conjunto
contínuo e que multitude é um conjunto discreto. Multitudes são contáveis,
enquanto que magnitudes são medidas.

128 PUCPR & UFPR – Emeriti. manoel1748@gmail.com

370
Lei de Weber-Fechner

A lei de Weber estatui que a diferença perceptível entre o tamanho de dois


estímulos depende mais da razão entre as suas duas magnitudes do que das suas
diferenças absolutas.
Ernest Heinrich Weber (1795-1878) foi precursor em quantificar o modo de
como um ser humano responde a um estímulo físico. A Lei que leva seu nome (Lei
de Weber) estabelece que uma diferença noticiável entre dois estímulos é
proporcional à magnitude dos estímulos. Gustav Theodor Fechner (1801-1887)
aperfeiçoou a Lei de Weber, estabelecendo que a sensação subjetiva é
proporcional ao logaritmo da intensidade do estímulo.
Essa relação pode ser descrita pela equação diferencial 𝑑𝑝 = 𝑘 𝑑𝑆, onde dp
𝑆
é o acréscimo diferencial na percepção, ds é o acréscimo diferencial no estímulo e
S é o estímulo em um dado instante. A constante de proporcionalidade k deve ser
determinada experimentalmente. Integrando essa equação, obtemos por solução
𝑝 = 𝑘 𝑙𝑛 𝑆 + 𝐶 , onde ln denota o logaritmo neperiano (natural) de S e C é uma
constante de integração.
Para encontrarmos o valor de C, coloquemos p = 0, isto é, consideremos
no instante inicial a ausência de percepções, obtendo daí 𝐶 = −𝑘 ln 𝑆0 valor este
que substituído na solução obtida e empregando as propriedades dos logaritmos
conduz à 𝑝 = 𝑘 ln 𝑆 , o que mostra que a relação entre estímulo e percepção é
𝑆0

logarítmica.
Uma consequência da Lei de Weber-Fechner é que a habilidade para
discriminar entre dois valores de estímulo depende mais na sua razão do que dos
seus valores absolutos. Essa fração, conhecida como fração de Weber, relaciona
S, um estímulo em um instante considerado, com 𝑆0 , um estímulo inicial. Portanto,
a sensação subjetiva é proporcional à fração 𝑆, ou melhor, ao logaritmo dessa
𝑆0

fração (Almeida, 2017, 2019).

371
Sistemas de representação de valores numéricos129

Presentemente teoriza-se que os animais podem possuir dois diferentes


sistemas não verbais para representa valores numéricos. O primeiro sistema (OFM
- Object-File Model) representa precisamente números pequenos (até 3 ou 4),
sendo cada objeto a ser enumerado em um conjunto representado por um único
símbolo. Numerosidades (ou o senso numérico) são explicadas por esse sistema.
Numerosidades são multitudes contáveis, enquanto que geralmente é aceito como
senso numérico animal são multitudes com até quatro elementos, objeto do OFM.
Como a representação da quantidade é exata, animais empregando esse modelo
não seguem a lei de Weber ou mostram efeitos de razão.
No segundo sistema, denominado de sistema de números aproximados
(ANS- Approximate Number System), animais representam aproximadamente
números maiores e também possivelmente números menores. Nesse sistema
quantidades são representadas como magnitudes mentais, ou seja, não simbólicas,
estando sujeitas a efeitos de razão; portanto, quantidades usando este sistema
seguem a lei de Weber (Benson-Amram, 2017; Anobile, 2018; Almeida, 2018; et
al.)
As frações podem ser representadas simbolicamente ou não-
simbolicamente. As frações simbólicas podem ser representadas em duas formas:
as frações comuns (da forma a/b, onde a e b são inteiros: 1/2, 1/12,...) e as frações
decimais (0,5; 0, 314;...). Já as frações não simbólicas representam proporções
entre magnitudes (p.ex.: comparação entre dois segmentos; duas áreas, etc.).

Origens históricas das frações

Cabe relembrar que o uso das frações decimais somente se tornou habitual
tardiamente na História da Matemática. Apenas após a publicação da obra “La

129
Para uma apresentação mais extensa sobre a evolução histórica do conceito de número sugere-
se compulsar Almeida (2019); para detalhes sobre a Pré-História e a Neurociência da Geometria
indica-se Almeida (2020 a).

372
Disme” (1585), de Simon Stevin (1548-1620) o seu emprego se universalizou.
Todavia, as primeiras frações que a história registra foram as sexagesimais, ainda
hoje de uso extenso em computações de tempo e de ângulos. O sistema
sexagesimal já estava em uso pelos sumerianos, os inventores da escrita, antes de
2100 a.C. Os gregos mantiveram a tradição do emprego de frações sexagesimais,
que até hoje é empregada. Já os egípcios preferiam operar com frações unitárias.
Por exemplo, quando hoje nós escrevemos 2h 20min 45s isso equivale a

) horas, em notação sexagesimal, em notação decimal teríamos


20 45
(2 + +
601 602

(2 + + )) horas, empregando frações unitárias, resultado que dificilmente seria


1 1
3 80
reconhecido no presente.
Logo, considerações históricas nos permitem levantar uma dúvida sobre
como muitos dos estudos neuronais atuais sobre frações são conduzidos.
Geralmente eles se limitam às frações decimais, costumeiras hodiernamente. Isso
é explicado pelo fato de que os participantes desses estudos só conhecem e estão
habituados a operar com frações decimais.
Todavia, historicamente, elas só surgem tardiamente, logo dificilmente
influenciariam nos processos cognitivos evolutivos concernentes às frações. Isso
permite supor que as mesmas são construtos culturais, mentefatos aos quais algum
tipo de processo cognitivo, ainda não devidamente esclarecido, merecedor de
pesquisa mais aprofundada, se adequa.
Possivelmente, pode-se conjecturar, nesse processo as frações seriam
representações não simbólicas de magnitudes analógicas. Do mesmo modo, como
uma informação adicional sobre a sua natureza, pode-se admitir que esse processo
independe da base do sistema de numeração empregado para notar as frações,
seja ele decimal, sexagesimal ou qualquer outro, o que reforça a hipótese anterior.

Como o cérebro processa as frações

Até recentemente não tínhamos ideia de como o cérebro processa frações;


tanto os processos cognitivos neurofisiológicos envolvidos como o local no cérebro

373
onde são processadas constituíam mistérios arcanos. Recentes estudos,
realizados por Simon Jacob e Andreas Nieder começam a desvendar os véus que
os encobrem (Jacob, 2009; Nieder, 2004, 2006, 2019).
A habilidade de codificar magnitudes, de quaisquer espécies, é um pré-
requisito imprescindível para o desenvolvimento da matemática. O surgimento da
linguagem, a emergência do pensamento simbólico, a invenção da escrita e sua
capacidade para armazenar externamente símbolos, tornaram possível que o ser
humano pudesse evoluir de uma aproximada representação de magnitudes
absolutas, em seus estágios iniciais, para um conceito de número sofisticado.
A introdução de frações comuns, como a razão de dos números inteiros, foi
um passo conceitual fundamental avante, ampliando os limites do campo dos
números inteiros para tratar com magnitudes. Embora o conceito de números
inteiros seja intuitivo e adequado à contagem e à ordenação, apenas com a
introdução das frações o sistema numérico tornou-se mais flexível e ganhou em
precisão. Porém, questões essenciais permaneciam, tais como: o cérebro humano
processa frações automaticamente ou, alternativamente, acessa numerador e
denominador em separado?
Sabia-se que magnitudes absolutas eram codificadas por neurônios
individuais, os quais emitem picos (pulsos) de descargas elétricas em resposta a
determinados números. Contudo, não era conhecido se como a razão de dois
números era codificada, se processando o numerador e o denominador em
separado, ou pela extensão da codificação de magnitudes às quantidades relativas.
Os resultados de suas pesquisas mostram que frações não são apenas
construtos mentais, resultados de considerá-las como a razão entre dois números
inteiros, mas sim são dadas intuitivamente, ou seja, são representações inatas.
Os experimentos por eles realizados mostraram que populações de
neurônios no córtex parietal, ao redor do sulco interparietal (IPS) anterior e
horizontal, são sintonizadas para determinadas frações, independentemente do
formato de sua representação. Isso quer dizer que não importa se as frações são
representadas como numerais, ou seja, simbolicamente: 1:6, 3:6, 5/7,..., ou são
apresentadas em uma forma verbal (1/6 um sexto: sechstel, em alemão; ¼ um

374
quarto: viertel, etc.). Isso significa que razões simbólicas são representadas como
uma categoria de magnitudes abstratas no cérebro humano. Portanto, o córtex
interparietal representa frações comuns de um modo independente de sua notação
(Kadosh, 2007, 2009; Nieder, 2004, 2006, 2019; et. al.)
Desse modo, constatou-se que as regiões do cérebro com populações
neuronais ativadas por mudanças nas frações que lhe são apresentadas, tanto
simbolicamente como verbalmente, são o sulco interparietal e o córtex pré-frontal.
Esses estudos demonstram que o cérebro humano não executa uma
simples divisão para criar um número real, p. ex. 1/4 = 0,25, processando então
números reais ao invés de frações ou proporções, mas sim constituem uma
categoria própria de magnitudes abstratas, específica, inata.
Seria de se esperar que resultados similares fossem obtidos quando
fossem apresentados como estímulos razões de magnitudes não simbólicas e não
verbais; analógicas, portanto. Dados obtidos com primatas não humanos sugerem
que macacos também compartilham o conceito de proporcionalidade (frações)
quando treinados a discernir entre as razões de dois comprimentos de linha
(Nieder, 2004, 2006; Bongard, 2010; Cantlon, 2006).
Estudos eletrofisiológicos subsequentes do córtex pré-frontal mostraram
fortes similaridades na codificação de quantidades absolutas e relativas; a atividade
neuronal decresce gradualmente quando a distância entre um estímulo pré-
determinado e um estímulo apresentado aumenta, devido ao efeito SNARC.
Aparentemente, na cultura ocidental tanto o alfabeto como os números
parecem ser representados em uma “linha mental” horizontal orientada da
esquerda para a direita (o efeito SNARC: Spatial-Numerical Association of
Response Codes). Já os chineses letrados associam números a um eixo vertical, o
que mostra que fatores outros, como a direção da escrita adotada, podem influir
nessa percepção. É interessante observar como a cultura pode influir nesse efeito
cognitivo.
Na maioria dos adultos, a mera apresentação de um numeral arábico já
levanta preconceitos na orientação da sua atenção e na sua resposta motora.
Mesmo quando executando uma tarefa simples como decidir se um número é par

375
ou ímpar, ou se é maior ou menor que cinco, números pequenos são
automaticamente colocados no lado esquerdo do espaço, enquanto que números
maiores são mapeados no lado direito. Isso é uma consequência do efeito SNARC
(Almeida, 2018).
Numerosas evidências mostram, portanto, que as mesmas áreas do
cérebro que processam numerosidades estão também sintonizadas no
processamento de frações.
Essa nova compreensão sobre como o cérebro interpreta frações comuns
contribui para esclarecer a importância das frações de Weber no tratamento de
numerosidades. Como elas são representações inatas, uma categoria própria de
magnitudes abstratas, as frações de Weber se constituem em um elemento chave
na compreensão de como o cérebro processa numerosidades e do porque ele
percebe números em uma escala logarítmica, conhecida como efeito SNARC, pois
a percepção é proporcional a essas frações.

As frações simbólicas e não simbólicas compartilham substratos neurais


comuns?

Estudos conduzidos por Julia Mock e Stefan Huber, em 2018, investigaram


o processamento cognitivo de proporções simbólicas (por exemplo, frações e
decimais) e não simbólicas (por exemplo, padrões de pontos e gráficos de pizza)
em um procedimento de duas etapas. Primeiro, investigaram ativações cerebrais
relacionadas ao processamento de proporcionalidades. Em segundo lugar,
avaliaram se proporções (frações) simbólicas e não simbólicas compartilham
substratos neurais comuns (Mock, 2018).
Para isso, realizaram um estudo empregando fMRI (Ressonância
Magnética Funcional) usando tarefas de comparação de magnitudes com
proporções (frações) simbólicas e não simbólicas, utilizando a avaliação do efeito

376
de distância como indicador do processamento de proporções relacionado à
magnitudes.
A maior ativação cerebral para o processamento simbólico, quando
comparada ao não simbólico, foi encontrada no giro supramarginal direito, no sulco
intraparietal e no giro angular esquerdo. Essas regiões são reputadas como
importantes durante cálculos exatos e na recuperação de fatos aritméticos, p.ex.,
durante a adição.
Seus resultados indicaram ativação conjunta de áreas específicas occipito-
parietal, incluindo o sulco intraparietal direito (IPS), durante o processamento de
proporções de magnitude. Mais especificamente, os resultados indicam que o IPS,
que é comumente associado ao processamento de magnitude absoluta (números
inteiros), está também envolvido no processamento de informações de magnitude
relativa (frações), independentemente do formato de apresentação, seja ele
simbólico ou não simbólico, o que confirma parcialmente as suposições levantadas
pelos autores anteriormente.
Isso significa que há um substrato neural comum para o processamento
tanto de magnitudes relativas, ou seja, de frações, como de números inteiros. No
entanto, também encontraram padrões distintos de ativação para o processamento
de magnitude de diferentes formatos de apresentação,
Concluíram que seus resultados sugerem que o processamento para
formatos de apresentação separados não está associado apenas a manipulações
de magnitude no IPS, mas também ao aumento das demandas sobre funções
executivas e uso de estratégias, associadas com regiões cerebrais frontais, bem
como atenção visual e codificação em regiões occipitais.
Assim, o processamento de proporções (frações) de magnitude pode não
refletir exclusivamente o processamento de informações de magnitude numérica,
mas também de informações de domínio geral (Mock, 2018).
Isso esclarece que esse mecanismo cognitivo poderia também, além de
processar proporções (frações) numéricas, igualmente processar proporções não
simbólicas de outras grandezas continuas, como área, tamanho, densidade, etc.
Lembramos que números são apenas símbolos que expressam quantidades, dessa

377
forma esse mecanismo cognitivo que processa proporções (frações) relativas seria
importante parcela estruturante tanto da mente humana como dos animais,
confirmando assim a tese de que conceitos matemáticos constituem tijolos
fundamentais para construção da mente (Almeida, 2020 a, b).

Outros eixos espaciais também apresentam o efeito SNARC?

O efeito SNARC sugere que números são representados em uma linha


horizontal, orientada da esquerda para a direita, como o eixo dos números reais,
onde os números menores estão a esquerda e os maiores a direita.
O processamento de frações não simbólicas pelo cérebro permite
avaliações de magnitudes tais como a avaliação de distâncias sobre um eixo, desse
modo a existência desse mecanismo neurológico explica como é possível a
introdução de mensurações em Geometria.
Todavia, muito menos evidências existiam se outros eixos, como o vertical
e o sagital apresentavam esse efeito. Aleotti (et.al.) investigaram, em 2019, pela
primeira vez o efeito SNARC ao longo dos três eixos cartesianos.
Suas descobertas podem ser interpretadas como uma evidência em favor
de três linhas de número mental independentes, uma para cada eixo (ou seja,
horizontal, vertical e sagital). Fundamentaram suas conclusões mostrando que
seus experimentos encontraram evidências do efeito SNARC ao longo dos três
eixos.
Sugerem, portanto, que os números sejam representados ao longo de um
espaço numérico mental tridimensional, que, por sua vez, pode ter guiado
originalmente a formulação de representações de números utilizadas em
matemática, como o triedro de eixos coordenados da geometria analítica.
Mostra que o cérebro tem uma capacidade de processar números
tridimensionalmente, o que lhe permite acessar áreas, volumes, de avaliar
numericamente todo o espaço que nos cerca, nosso Lebensraum. Isso esclareceria
o mecanismo neural que processaria a introdução de mensurações na Geometria,

378
tanto plana como espacial. Teríamos, pela primeira vez, noções sobre o tratamento
neural dessa parte da matemática.
Contudo, cabe uma observação. Isso não significa que temos em nosso
cérebro um sistema de eixos coordenados, seja ele cartesiano ou não, mas sim que
temos a capacidade neural de avaliar quantitativamente as três dimensões do
nosso espaço: comprimento, largura e altura. Estímulos provenientes de pistas
sensórias, visuais, auditivas ou outras podem, por meio desse sistema, serem
avaliados quantitativamente permitindo assim reconstruir a noção de um espaço
tridimensional regrado.
Os estímulos visuais são produzidos pela projeção pelo cristalino dos
objetos, formando imagens bidimensionais no fundo da retina, sendo daí
conduzidos pelo nervo ótico para as áreas de processamento visual no cérebro.
A combinação dessas imagens bidimensionais com uma terceira dimensão,
por meio desse espaço numérico tridimensional neural, possibilitaria criar uma
representação neural do espaço envolvente. Contudo, esse mecanismo ainda
necessita ser melhor investigado.
O fato de que muitas magnitudes contínuas, como peso, densidade, etc.,
seguirem a lei de Weber-Fetchner significa que nosso cérebro pode processar
avaliações de proporcionalidades entre os constituintes dessas categorias, as
quais, se eventualmente dispostas em uma linha numérica, que siga o efeito
SNARC, e simbolizadas por números (ou frações), constituiria o mecanismo
cognitivo que processaria tanto as magnitudes geométricas como outras
magnitudes igualmente contínuas.
O processamento de frações não simbólicas pelo cérebro permite
avaliações de magnitudes tais como as necessárias à prática de atividades
esportivas, ou do caminho a ser percorrido quando em fuga do ataque de algum
animal, ou segurar um corpo em queda livre acidental, ou ultrapassar uma rua em
meio ao trânsito, sem as quais nossa vida cotidiana seria impossível.

Quando historicamente foram introduzidas as medidas na Geometria ?

379
Como os princípios dos processos neurais envolvidos em mensurações
começam a serem esclarecidos, cabe indagar quando na história as medidas
quantitativas começaram a ser necessárias. Devido ao modo de vida extremamente
simples dos povos do Paleolítico, voltado exclusivamente para a sobrevivência,
elas não eram essenciais. Processos simples de contagem lhes eram suficientes;
bastava uma simples avaliação visual para a produção de padrões geométricos,
como o ocre de Blombos ou os fragmentos de casca de ovos de avestruz de
Diepkoloof. Medidas não eram indispensáveis para a produção desses padrões, a
prática levava à perfeição. Para denotar uma medida, necessitamos de números,
pois eles são símbolos para quantidades. Um número simboliza o resultado de uma
medida.
No Neolítico, com a introdução da agricultura e do pastoreio, em torno de 12
Ka130, a mensuração de conceitos geométricos, tais como comprimento, área e
volume, começou a ser imprescindível. Os povos deixaram de serem nômades,
para se concentrarem em vilas ou verdadeiras cidades, cuja população necessitava
ser alimentada. As cidades de Jericó (>10 Ka) e de Çatal Höyük (c.9 Ka) talvez
sejam as mais antigas conhecidas. A própria sobrevivência dessas populações
neolíticas estava vinculada à área plantada, ao volume da colheita,
A introdução desses Lebensmittel ocasionou o que Childe (1975) denominou
de Revolução Neolítica e à concentração em povoados chamou Revolução Urbana
(Almeida, 2011, 2020 a).
Controles eram fundamentais, uma contabilidade arcaica foi estabelecida.
Sistemas metrológicos foram desenvolvidos. Fundamental para mensurações é o
estabelecimento de unidades padrões, Um sistema métrico compreende múltiplos
e submúltiplos de uma determinada unidade, ou seja, múltiplos e frações desta
(Nissen, 1993; Almeida 2011, 2020 a). Por isso é importante conhecermos como o
cérebro processa conceitos como “unidade” e “frações”.

130 Ka - mil anos atrás.

380
Para o controle de quantidades manipuláveis, multitudes, desenvolveram
sistemas de metrológicos de contagem por meio de tokens, pequenos artefatos de
argila de diversos formatos (id.).
Três foram os principais fatores para a introdução de medidas geométricas
no Neolítico: 1) a necessidade do cálculo das áreas cultivadas e controle do volume
das colheitas, exigências de uma contabilidade arcaica; 2) a transição de uma
arquitetura curvilinear do Paleolítico para um retilinear no Neolítico; 3) construção
de centros cúlticos, megalíticos ou não.
Os abrigos Paleolíticos eram curvilineares, circulares, ovoides ou tendas
alongadas, circundados por pedras ou ossos de mamíferos, como mamutes,
recobertos por peles, galhos ou folhas (Jelinek, 1976). No Neolítico principou-se a
construir o que se pode considerar como casas verdadeiras, retilineares, quadradas
ou retangulares. Em Nevali Çori (c.12 Ka) foram encontradas 29 casas retangulares
que tinham subdivisões internas, construídas com pedaços de pedras unidas por
camadas de argila (Almeida, 2017).
O cálculo das áreas cultivadas era fundamental, tanto para o controle da
produção, avaliação das taxas devidas aos governantes pelo fruto das colheitas,
como para a titulação da propriedade da terra. O conceito de propriedade individual
da terra é inexistente para os povos caçadores-coletores, pois, para eles, é um bem
natural, propriedade coletiva do povo. Além disso, as melhores áreas para cultivo
eram as circundantes dos rios, os quais frequentemente inundavam, tanto na
Mesopotâmia como no Egito, apagando as divisas, que necessitavam ser
reconstruídas.
Desde cedo se descobriu que a mais simples maneira de recobrir (ladrilhar)
o plano era por meio de figuras geométricas retilineares elementares, como
triângulos, quadrados e retângulos, cujos procedimentos de cálculo de suas áreas
respectivas, além de serem os mais fáceis, provavelmente foram os primeiros
descobertos.
A medição de comprimentos era fundamental, tanto para o cálculo de áreas
como na construção de casas ou centros cúlticos. O mais antigo centro cúltico
conhecido é o de Göbekli Tepe, no sul da Anatólia, na Turquia, com uma idade de

381
c. 11 Ka. Gil Haklay e Avi Ghopher (2020) estudaram a arquitetura e a geometria
desse sítio, concluindo que três das suas estruturas monumentais
aproximadamente redondas, a maior com um diâmetro de c. 20 m, foram
inicialmente planejadas como um projeto único, envolvendo noções geométricas
insuspeitadas para esse período. Afirmam que os centros dos três círculos de pedra
estão colocados aproximadamente no meio dos pilares centrais, bem como se
estes três pontos forem ligados obtém-se um triângulo equilátero, com uma
aproximação de c. 25 cm nos seus lados de c.19 m.
Contudo, esses resultados devem ser encarados cum grano salis. Não é
muito crível que primeiro lançaram esse triângulo para depois construírem os
círculos. Todavia, essas construções mostram que esses povos já intuíam que o
plano não pode ser recoberto por círculos tangentes, pois restam espaços vazios
inaproveitados entre eles, Por isso se dedicaram a empregar figuras retilineares em
sua geometria prática.
Números, portanto, constituiem uma estratégia arquitetada pelo homem para
avaliar proporções relativas de quantidades, sejam elas discretas ou contínuas.
Isso confirma a tese de D’Ambrosio, quando afirmou que a Matemática é uma das
estratégias elaborada pelo homem em busca da sobrevivência de sua espécie
(D’Ambrosio & Almeida, 2017; Almeida, 2017).

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384
AL-BIRUNI, UM REPRESENTANTE DA MATEMÁTICA ISLÂMICA
MEDIEVAL VIA HISTÓRIA EM QUADRINHOS

Pérola Diana Gomes Felipe 131


Giselle Costa de Sousa 132

RESUMO
Com o intuito de incrementar o contexto educacional, a proposta de uma história em
quadrinhos (HQ) vem para introduzir um pouco da história da matemática islâmica
medieval a partir do personagem de al-Biruni (973-1048), de seus diversos trabalhos e das
suas contribuições em várias áreas do conhecimento, em especial da matemática. Para
tanto, a fundamentação está pautada no uso da História da Matemática (HM) no ensino
atrelado às Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC) a partir da
caracterização de aliança trazida por Sousa (2020). A presente pesquisa é de cunho
metodológico qualitativo com uma exploração da revisão literária sobre história em
quadrinhos no ensino, bem como, a respeito de al-Biruni e seu trabalho no contexto da
matemática islâmica da idade média. Como resultado, chegamos a criação e
desenvolvimento de uma HQ por meio dos recursos da plataforma Pixton como uma
proposta cujo intuito é trazer a história da matemática para sala de aula a partir dos dados
bibliográficos existentes sobre al-Biruni e sua produção.

Palavras-chave: História da matemática. Matemática islâmica medieval. al-Biruni.


História em quadrinhos.

INTRODUÇÃO

O período medieval foi marcado por ser cheio de incentivadores de diversas


áreas do conhecimento relacionadas às ciências e por ter muitos estudiosos
islâmicos contribuindo com abordagens nessas áreas particularmente no oriente.
O personagem abordado na presente pesquisa, al-Biruni, é um dos representantes

131
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). peroladiana@gmail.com.
132
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). gisellecsousa@hotmail.com.

385
da contribuição islâmica medieval para essa produção do conhecimento, em
especial, da matemática. Propomos apresentar sua história via HQ com o uso de
estudo histórico relacionado ao tema. Dessa forma, nos utilizamos de uma pesquisa
bibliográfica qualitativa cujo referencial está atrelado à HM e à HQ.
Numa perspectiva de possibilitar aos alunos a conhecerem aspectos da
história da matemática islâmica medieval elencamos acontecimentos ligados à al-
Biruni e sua produção de maneira que fossem apresentados por meio de uma HQ.
Assim, diante do leque de características favoráveis à inserção na sala de aula, a
produção de uma HQ veio para estabelecer uma maior relação dos alunos com a
história da matemática islâmica medieval a partir da figura de al-Biruni e de sua
produção.

FUNDAMENTOS DA PROPOSTA: HM E HQ

A história da matemática é um segmento que auxilia o educador


matemático no desenvolvimento de suas atividades, de forma que pode deixa-las
mais criativas para os alunos, como também, mais críticas no que diz respeito à
produção do conhecimento matemático.
Assim, de acordo com Saito (2015), temos que:

A história da matemática busca compreender e analisar o processo


da construção do conhecimento, considerando os conceitos e o
conhecimento em seu contexto. Nesse sentido, mais do que uma
análise meramente filosófica, religiosa, científica, social, política,
econômica etc., a história da matemática investiga o processo de
construção do conhecimento acerca da natureza e das técnicas
matemáticas na inter-relação de diferentes aspectos em torno do
objeto matemático. (SAITO, 2015, p. 32)

Conforme expõe Roque (2012, p. 20) sobre história, devemos entender o


como e o porquê de sua construção nos ajuda a compreender que o papel da
história não é acessório na formação de uma imagem matemática: sua função é
também social e política.

386
Logo, percebemos que a história da matemática não está apenas atrelada
ao conhecimento, mas também a interação com outras disciplinas de modo que
haja uma contextualização entre elas.
A história da matemática é cativante e de acordo com Sousa (2020),
percebemos que é importante:

Discutir o uso pedagógico da HM na direção de proporcionar uma


aprendizagem significativa aos alunos, fornecendo métodos aos
professores, de modo a levar os discentes a uma compreensão da
matemática escolar de uma forma atrativa, com base em alguns
episódios ou problemas matemáticos históricos. (SOUSA, 2020, p.
18)

Quer dizer que, quando um professor faz uso da HM priorizando o âmbito


pedagógico acaba por permitir que os alunos aprendam matemática por meio da
história dessa ciência.
Atualmente, a história da matemática é valorizada por diferentes
segmentos do conhecimento, principalmente no ensino de matemática, porque dá
acesso a diferentes ideias, argumentos, temas e outras questões que foram
esquecidas (ou abandonadas), incentivando novas reflexões sobre a construção do
conhecimento. (SAITO, 2015, p. 20)
Segundo Miguel e Miorim (2019, p. 61-62) dentre os argumentos favoráveis
quanto ao uso da HM no ensino destacamos quanto a natureza epistemológica:
fonte de seleção de objetivos adequados para o ensino aprendizagem da
matemática escolar; fonte de busca de compreensão e de significados para o
ensino-aprendizagem da matemática escolar na atualidade; quanto a natureza
ética: fonte que possibilita a desmistificação da matemática e a desalienização do
conhecimento do seu ensino; e fonte que possibilita a apreciação da beleza da
matemática, da estética inerente e seus métodos de produção e validação do
conhecimento.
A experiência da HM pode ser ampliada para desenvolver, nos estudantes,
habilidades de pesquisa, tais como a elaboração e o uso de atividades

387
investigatórias, aumentando seu interesse pela matemática. (FOSSA, MENDES,
VALDÉS, 2006, p. 90)
Partindo do objetivo de apresentar a história de al-Biruni e sua matemática
de maneira a levar aos alunos uma leitura textual unida a imagens, assim como
encontrar uma leitura mais usual e acessível a todos, optamos por usarmos um
gênero textual específico.
Diante de um leque de gêneros textuais, destacamos alguns como: bilhete,
conto de fadas, diário, editorial, e-mail, encarte, fábula, história em quadrinhos,
poema, reportagem, resenha, romance, telefonema. Percebemos que cada um
deles possui a sua marca, peculiaridade, especificidades, bem como uma
caracterização própria. Partindo dos pontos levantados, achamos por bem que a
escolha como gênero textual adequado para a nossa pesquisa fosse: história em
quadrinhos haja vista diversos argumentos e características. De fato, de acordo
com Eguiti (2001), as histórias em quadrinhos reproduzem uma conversação
natural, na qual os personagens interagem face a face, comunicando-se por
palavras e expressões faciais e corporais. Consequentemente, esse gênero ajuda
o leitor/aluno a manter sua atenção presa ao enredo por possuir elementos como
expressões faciais e linguagem acessível o que torna a compreensão mais clara e
simples.
Por meio de sua iconicidade, a história em quadrinhos pode oferecer ao
leitor elementos que o texto literário apenas descreve ou não apresenta: na mesma
adaptação, podem ser vistos o vestuário, o mobiliário, a decoração das casas e o
estilo arquitetônico daquele período. Cabe ao professor ressaltar esses aspectos
presentes em narrativas quadrinhísticas, para que a leitura extrapole os limites do
aspecto verbal e seja enriquecida pelo visual. (SANTOS, VEGUEIRO, 2012).
Portanto, diante da contribuição pela matemática islâmica medieval, por
meio do legado deixado por al-Biruni, além da importância de introduzirmos
atividades voltadas a inserção da história da matemática na sala de aula,
desenvolvemos uma história em quadrinhos que trate dessas demandas e que
apresentamos adiante.

388
AL-BIRUNI NO CONTEXTO DA MATEMÁTICA ISLÂMICA EM HQ

A fim de compor a HQ proposto foi realizado um levantamento bibliográfico


sobre al-Biruni que resultou na criação de uma história em quadrinhos afim de
apresentar esse personagem e sua produção para alunos tanto de cursos de
licenciatura em matemática quanto da educação básica. Tal procedimento, fez
parte de uma pesquisa qualitativa de cunho bibliográfico cujos resultados
culminaram em produção, em língua portuguesa, de texto histórico biográfico sobre
al-Biruni, bem como, levantamento sobre sua produção a partir de informações em
sites como Mactutor, biografias em língua inglesa sobre al-Biruni, além de artigos
em periódicos em língua estrangeira, conforme consta em Souza e Sousa (2018).
Segundo Borba (2004), uma pesquisa qualitativa prioriza procedimentos descritivos
à medida em que sua visão de conhecimento explicitamente admite a interferência
subjetiva, o conhecimento como compreensão que é sempre contingente,
negociada e não é verdade rígida. Considerando esses aspectos, foi dado um
tratamento interpretativo ao texto produzido por Souza e Sousa (2018) de modo
completa-lo e compor a HQ.
Para a produção e criação da HQ utilizamos uma plataforma denominada
Pixton, que é um serviço online capaz de criar variados ambientes, expressões
faciais, vestimentas, dentre tantos outros recursos. Justamente em virtude da maior
variabilidade de recursos, em nossa pesquisa, o Pixton se mostrou o mais viável.
Ao extrairmos os elementos essenciais a partir da pesquisa bibliográfica,
elaboramos um roteiro incluindo criação das falas, cenários e personagens com o
intuito de compor a HQ.
Com a finalidade de que o leitor tenha acesso às informações que julgamos
mais importantes, criamos um enredo fictício de maneira a inserir o leitor no tempo
e espaço em que a HQ está sendo narrada. Para tanto, criamos um personagem
também fictício, cujo nome é o mesmo de al-Biruni (o chamaremos de jovem al-
Biruni para não confundir com o matemático que também fazemos menção). O
jovem possui pais matemáticos e recebe esse nome em homenagem ao

389
matemático islâmico. Na HQ, o jovem al-Biruni se dirige a biblioteca de sua escola
para obter mais informações sobre quem foi o al-Biruni que deu origem a seu nome.
Seguem imagens da HQ que retratam esse momento.

Figura 01: Início da HQ

390
Fonte: Elaborado pela autora com o Pixton, 2020.

Com a intenção de dar mais envolvimento do personagem fictício com o al-


Biruni verdadeiro, assim como dos leitores com o enredo, criamos uma viagem no
tempo para Ghaznah, última cidade em que al-Biruni viveu e 10 anos antes de sua
morte. Nesse momento da HQ pode ser salientado que o matemático al-Biruni teve
que mudar de cidade algumas vezes em função dos conflitos islamicos do período,
bem como, por interesses científicos. Dessas viagens, surge muito de sua erudição
e produção.
Figura 02: Jovem al-Biruni viaja a Ghaznah

Fonte: Elaborado pela autora com o Pixton, 2020.

Na sequência de quadrinhos adiante foi feita a apresentação entre os


personagens e um breve comentário sobre o significado do nome de al-Biruni tendo
em vista o contexto islâmico. Vale salientar que os nomes das pessoas, dessa
região, traziam na realidade as suas biografias, pois cada termo do nome possui
um significado de acordo com os costumes islâmicos e suas estruturas. De fato, o

391
nome completo de al-Biruni é Abu Raihan Muhammad ibn Ahmad al-Biruni,
descrição que fornece informações sobre a sua linhagem ancestral, por exemplo,
Biruni é uma palavra persa e foi dada a sua família quando eles emigraram do
Tajiquistão.
Além disso, o encontro dos personagens ocorreu em uma casa de
sabedoria, de maneira que o leitor tenha contato com a existência desse local tão
importante no contexto em estudo, pois é considerado um dos primeiros centros de
ensino e pesquisa do mundo árabe. Pode-se ressaltar que haviam outras
instituições similares na região e qual sua relação com o conhecimento produzido
na época.

Figura 03: O jovem encontra o matemático al-Biruni

392
Fonte: Elaborado pela autora com o Pixton, 2020.

Nos quadrinhos a seguir, na perspectiva de que o leitor e o personagem


tenham proximidade com os trabalhos produzidos e estudos realizados por al-
Biruni, o jovem al-Biruni é convidado para um passeio com o objetivo de o expor a
variados cenários remetendo aos estudos realizados. Além disso, o leitor também
se depara com informações sobre a data e local de nascimento de al-Biruni e de
maneira bem sucinta ao significado de termos como mulçumano, árabe, islâmico e
califado. Um aspecto interessante a ser explorado nesse momento consiste na
influência de questões teológicas na produção de conhecimento.

Figura 04: al-Biruni e sua produção em seu contexto

393
Fonte: Elaborado pela autora com o Pixton, 2020.

Nos próximos quadrinhos, os personagens conversam sobre a existência


de incentivadores dos trabalhos de al-Biruni e de outros estudiosos. Como
resultado do incentivo de vários patrocinadores e da existência de muitas guerras
no período em questão, como dito, al-Biruni morou em diversas regiões. Desses
vários patrocinadores, alguns se destacaram, tiveram o apresso de al-Biruni e
foram mencionados na HQ.

Figura 05: al-Biruni e suas influências

Fonte: Elaborado pela autora com o Pixton, 2020.

É interessante também destacar a influência causada pelos aspectos


religiosos na vida de al-Biruni, conforme posto.

Figura 06: al-Biruni e aspectos teológicos

394
Fonte: Elaborado pela autora com o Pixton, 2020.

Na sequência de quadrinhos exposta poderemos encontrar alguns da


estudos, livros e trabalhos desenvolvidos por al-Biruni e que, diante de nossa
pesquisa, elencamos como os mais significativos.

Figura 07: al-Biruni e seus trabalhos

395
Fonte: Elaborado pela autora com o Pixton, 2020.

Posteriormente, nos próximos quadrinhos, os personagens se despedem


para que o al-Biruni (personagem fictício) retorne a biblioteca de sua escola. Na
biblioteca, o jovem continua sua leitura e logo se depara com a informações das
homenagens prestadas após a morte de al-Biruni. Tais homenagens foram feitas
por meio de selos comemorativos do milênio de seu nascimento e foram expostas
no enredo.

Figura 08: Homenagens a al-Biruni

396
Fonte: Elaborado pela autora com o Pixton, 2020.

397
Para encerrar essa sequência narrativa, o jovem al-Biruni retorna para casa
e expõe aos pais sua felicidade em tomar conhecimento da origem de seu nome,
bem como descobrir o quanto al-Biruni realizou estudos em diversas áreas do
conhecimento, em especial a matemática. Assim como, do quanto ele contribuiu
para humanidade e de como a influência de seu contexto colaborou para a
produção de conhecimento que vai além do que entendemos hoje como sendo a
matemática.

Figura 09: O retorno do jovem al-Biruni

Fonte: Elaborado pela autora com o Pixton, 2020.


Nesse contexto, a HQ se encerra com diversas possibilidades de apreciação
do contexto da matemática islâmica medieval a partir de al-Biruni e seus trabalhos.

RESULTADOS

A sequência narrativa em quadrinhos trazida na seção anterior tem a


finalidade de inserir a história da matemática na sala de aula. Nessa ótica apresenta
a leitura da HQ como uma atividade que pode ser desenvolvida na educação
básica, por exemplo, a partir dos anos finais do ensino fundamental possibilitando
ao professor a abordagem de assuntos ligados ao contexto histórico, político e
social da época medieval em que viveu al-Biruni de maneira que os alunos tenham
informações que vão além da contribuição na matemática exclusivamente, mais
ainda de sua relação com outros aspectos.

398
No âmbito geral, a produção e também exploração da HQ é uma ferramenta
cujo potencial didático é relevante podendo ainda estar atrelada à cursos de
formação de professores, pois tem um apelo visual ligado ao gênero textual e às
suas características, bem como possui argumentos sobre a utilização da HM ao
inserir vários temas em seu enredo.
No âmbito universitário, em especial nos cursos de licenciatura em
matemática, a HQ exposta anteriormente pode ser apresentada em disciplinas
como a de História da Matemática com o intuito de fazer com o que os alunos
compreendam de maneira mais clara sobre a história da matemática islâmica.
Além disso, a HQ produzida possibilita a abordagem de um outro
segmento: a produção de uma HQ, por parte dos alunos, após terem sido
apresentados a um tema específico como, por exemplo, a matemática islâmica
medieval. Assim, a exploração da HQ produzida pelos alunos pretende ainda
resultar em um roteiro de atividades exploratórias e investigativas que contemple
pontos a serem aprofundados e que incluem aspectos matemáticos. Nessa
perspectiva, segundo Alves (2015, p.30) uma história é usada em atividades de
ensino e de aprendizagem que permitem aos alunos levantarem hipóteses e
interpreta-las, aguçando assim, a sua intuição, o raciocínio-lógico, a capacidade de
argumentação e a tomada de decisões. Portanto, a presente atividade desenvolvida
tem por objetivo ensinar a matemática a partir da aliança firmada entre HM, TDIC
e IM.
Essa aliança é constituída por meio da utilização da História da Matemática
em conjunto com os respaldos gerados pelas Tecnologias Digitais de Informação e
Comunicação a partir da Investigação Matemática.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, J. M. S. Dos Mínimos Quadrados À Regressão Linear: Atividades


Históricas Sobre Função Afim e Estatística Usando Planilhas Eletrônicas. 2015.
301f. 2015. Tese de Doutorado. Dissertação (Pós-Graduação em Ensino de
Ciências Naturais e Exatas) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal.

399
BORBA, M. C. A pesquisa qualitativa em Educação Matemática. 2004.
Disponível em: http://www.rc.unesp.br/gpimem/downloads/artigos/borba/borba-
minicurso_a-pesquisa-qualitativa-em-pdf. Acesso em 05 jun. 2020.

FOSSA, J. A.; MENDES, I. A.; VALDÉS, J. E. N. A História como um agente de


cognição na Educação Matemática. Porto Alegre: Sulina, 2006.

MIGUEL, A.; MIORIM, M. História na educação matemática. Autêntica Editora,


2019.

ROQUE, T. História da matemática. Editora Schwarcz-Companhia das Letras,


2012.

SAITO, F. História da matemática e suas (re) construções contextuais. São


Paulo: Livraria da Física, 2015.

SANTOS, R. E.; VERGUEIRO, W. Histórias em quadrinhos no processo de


aprendizado: da teoria à prática. Eccos Revista Científica, n. 27, p. 81-95, 2012.

SOUSA, G. C. de. Aliança entre História da Matemática e Tecnologias via


Investigação Matemática: Reflexões e práticas. São Paulo: Livraria da Física,
2020.

SOUZA, Francisco Neto Lima de; SOUSA, Giselle Costa de. AL-BIRUNI E SUA
MATEMÁTICA. In: Boletim Cearense de Educação e História da Matemática -
Volume 05, Número 14, 253 – 263 (2018) DOI: 10.30938/bocehm.v5i14.232.

400
Álgebra e geometria na primeira metade do século XIX:
Alguns exemplos da matemática britânica

Leandro Silva Dias133


Gérard Emile Grimberg134

RESUMO
Após um longo período de isolamento em relação ao continente, os ingleses se afastam
da abordagem puramente sintética, herdada de Newton, para uma mais analítica, com a
inserção dos termos usados pelo cálculo diferencial leibniziano. Na mesma medida,
seguindo o movimento iniciado pela Sociedade Analítica, surgem matemáticos abertos a
pesquisa internacional, dos quais se destacaram Arthur Cayley, J. J. Sylvester e George
Salmon. Estes, seguidos por vários outros, utilizaram as várias técnicas algébricas
aplicadas a geometria, como por exemplo o uso das transformações lineares para as
mudanças dos eixos coordenados. Ao ler estes trabalhos ficam as questões: como ocorreu
o interesse inglês pela álgebra aplicada à geometria? Como participa a teoria dos
invariantes? Quais são seus interesses geométricos? Como ocorre a influência desta
relação entre álgebra e geometria sobre os futuros trabalhos de Cayley? Para responder
estas questões, analisamos os principais artigos sobre o tema de matemáticos como:
Henry Parr Hamilton, De Morgan, Arthur Cayley e George Boole. Entre estes, destaca-se
a influência de Boole sobre Cayley, sobre o uso das transformações lineares aplicada a
geometria. Percebeu-se o quanto foi importante o crescente uso da álgebra aplicada à
geometria, pois abriu novos caminhos de pesquisa. Além da importância desta relação,
álgebra e geometria, para o desenvolvimento da teoria dos invariantes, a partir do artigo
de 1841 de Boole que culminaram nos importantes trabalhos de Cayley sobre esta teoria,
dos quais se destacam as memórias sobre os quantics.

Palavras-chave: Álgebra. Geometria. Boole. Cayley.

133
Programa de Pós-graduação em Ensino de Matemática UFRJ (PEMAT). leandro.dias@ifrj.edu.br.
134
Programa de Pós-graduação em Ensino de Matemática UFRJ (PEMAT). gerard.emile@terra.com.br.

401
Introdução

A primeira metade do século XIX foi marcada por importantes fatos que
influenciaram a pesquisa matemática britânica. A influência dos trabalhos de
Newton, do qual geometria euclidiana era a base de toda pesquisa matemática, fez
com que os britânicos criassem resistência a todo desenvolvimento da análise e do
cálculo diferencial que ocorreu nos demais países europeus. Tal estado de
afastamento em relação à matemática europeia perdurou até o final do século XVIII.
A partir de Robert Woodhouse, iniciou-se um grupo de matemáticos
interessados em introduzir as inovações analíticas e do cálculo diferencial, que
permeavam a pesquisa matemática europeia. A escola analítica, formada por
matemáticos seguidores das ideias de Woodhouse, procurou retirar a matemática
britânica do isolamento provocado pela tradição de Newton.
Além do ganho obtido com as novas notações do cálculo diferencial, houve
uma abertura para pesquisas em geometria analítica, com destaque para a álgebra
com aplicações geométricas. Além da álgebra de Peacock, concorrem para esse
avanço os desenvolvimentos analíticos de Hamilton e De Morgan. A criação de um
periódico inglês específico para publicações de artigos matemáticos, com a
presença de diversos artigos relacionados à geometria analítica e álgebra com
aplicações geométricas, nos dá a clara noção das mudanças que ocorreram nos
anos iniciais da primeira metade do século XIX.
Dentro deste contexto, a nossa pesquisa procura analisar como se deu a
relação entre álgebra e geometria em alguns textos matemáticos britânicos da
primeira metade do século XIX. Assim, nos perguntamos: como ocorreu o interesse
inglês pela álgebra aplicada à geometria? Como participa a teoria dos invariantes?
Quais são seus interesses geométricos? Como ocorre a influência desta relação
entre álgebra e geometria sobre os futuros trabalhos de Cayley?
Tendo em vista nossos questionamentos, apresentaremos alguns aspectos
geométricos que permearam o ambiente de pesquisa inglês da primeira metade do
século XIX, bem como a sua relação com a teoria dos invariantes. Serão
apresentadas características da geometria analítica britânica, porém não temos a

402
intenção de esgotar as considerações, mas sim de apresentar as mais relevantes
aos nossos questionamentos.
Em seguida, veremos o interesse inicial de Cayley por geometria analítica
em seu primeiro artigo de 1841, do Cambridge Mathematical Journal, que nos
sinaliza alguns aspectos importantes da álgebra aplicada à geometria. O início da
teoria dos invariantes, como afirmado por historiadores como Tony Crilly e Karen
Parshall, pode ser tomado a partir do artigo de George Boole de 1841, Exposition
of a General Theory of Linear Transformations, apresentado em duas partes no
Cambridge Mathematical Journal. Também sem a intenção de esgotar o assunto,
apresentaremos a teoria de Boole e os aspectos geométricos presentes em seu
artigo. Boole, através de seu artigo de 1841, influenciou os trabalhos de Cayley que
desenvolveram a teoria dos invariantes. Cayley contou com a parceria de Sylvester
e Salmon, o qual também se interessa pelo assunto posteriormente.

Geometria analítica inglesa do século XIX

No início do século XIX, importantes mudanças na Inglaterra influenciaram


a formação dos estudantes daquele período. Daí a importância de iniciarmos com
uma contextualização, dando enfoque para o desenvolvimento da geometria
analítica, foco inicial das pesquisas de Cayley.
A escola newtoniana foi responsável por deixar a matemática britânica
isolada do restante da Europa, no que diz respeito aos desenvolvimentos
matemáticos da análise, do cálculo diferencial e das abordagens analíticas com
respeito à geometria.
A questão da escolha da notação de Newton na Inglaterra, em oposição à
notação de Leibniz pelo restante da Europa, não é suficiente para explicar o atraso
britânico, pois, mesmo que a notação de Newton fosse superior à de Leibniz, os
matemáticos britânicos estariam em desvantagem em relação ao restante da
comunidade matemática europeia, que traduzia e utilizava os resultados de
Newton, Taylor, Maclaurin, dentre outros, para sua própria notação. Por outro lado,

403
os matemáticos britânicos não realizaram um esforço semelhante, colocando-se
em situação de distanciamento em relação aos seus vizinhos (BALL, 1889, p.98).
Somado a isso, temos o fato da escola de Newton insistir no uso de
demonstrações geométricas, mesmo após os princípios do cálculo diferencial já
terem se tornados universais. Com isso, empregavam os métodos mais criativos
possíveis para inserir tais demonstrações sempre que podiam. Daí uma resistência
à análise e o fato de o critério de rigor britânico estar firmado na geometria sintética.
George Peacock foi o mais influente dos membros da escola analítica, que
foi responsável por retirar os matemáticos britânicos desta situação de isolamento
em relação ao restante da Europa. Isso chegou a ser um fato preocupante para tais
matemáticos, uma vez que o isolamento perdurava desde a última metade do
século XVIII.
O principal obstáculo para as inovações dos métodos analíticos e do
cálculo diferencial vinha dos principais docentes e membros do senado, que
consideravam qualquer tentativa de inovação como um pecado contra a memória
de Newton (BALL, 1889, p.117).
Esse novo movimento, identificado como escola analítica, teve início com
Robert Woodhouse, primeiro a publicar um trabalho que introduzia as novas
notações do cálculo diferencial. Com título Principles of analytical calculation, sua
obra foi publicada em 1803, em Cambridge, porém foi severamente criticada pela
adoção dos novos métodos (BALL, 1889, p.118).
Em 1812, Peacock, Herschel e Babbage, seguindo a influência das
observações de Woodhouse, concordaram em formar a Sociedade Analítica, com
o objetivo de defender o uso dos métodos analíticos e da nova notação do cálculo
diferencial na universidade, no lugar da antiga notação de Newton (BALL, 1889,
p.120).
A primeira das duas conquistas marcantes dessa sociedade foi, em 1816,
a publicação da tradução do livro texto Elementary differential calculus, de Lacroix;
e, a segunda, em 1817, foi a introdução por Peacock dos símbolos do cálculo
diferencial no conjunto dos documentos do exame do senate-house (Ball, 1889,
p.120).

404
Guicciardini (1989, p.136) destaca que, apesar da importância da
Sociedade Analítica, há de se considerar o trabalho anterior de Woodhouse, em
Cambridge, bem como de muitos outros centros de reforma igualmente
importantes, desde academias militares como a Royal Military Academy at
Woolwich, até universidades, como Oxford, Edinburgh, Glasgow, Dublin, dentre
outras.
Além disso, Guicciardini afirma:

Mas a segunda e mais importante contribuição dos membros da


Sociedade Analítica foi que eles iniciaram uma tendência de pesquisa
que caracterizou grande parte da matemática britânica até Cayley e
Boole, As Memórias da Sociedade Analítica foram centradas no
cálculo de operadores e equações funcionais. (GUICCIARDINI, 1989,
p.137, tradução nossa)

Mas a segunda e mais importante contribuição dos membros da Sociedade


Analítica foi que eles iniciaram uma tendência de pesquisa que caracterizou grande
parte da matemática britânica até Cayley e Boole, As Memórias da Sociedade
Analítica foram centradas no cálculo de operadores e equações funcionais.
(GUICCIARDINI, 1989, p.137)
Veremos adiante que, a partir das inovações da Sociedade Analítica,
surgem matemáticos como George Boole e Cayley desempenhando papeis
fundamentais para o desenvolvimento da pesquisa na Teoria dos Invariantes. Isso
pode ser atribuído, em parte, a esse período de mudanças na matemática britânica,
o que concorda com a afirmação de Guicciardini.
Dentre as muitas inovações da Sociedade Analítica, pode-se destacar o
aumento progressivo de trabalhos em geometria analítica. Segundo Ball (1889,
p.129), o único trabalho que introduzia o tema em Cambridge, no início do século
XIX, tratava da Álgebra de Wood, que possuía um apêndice de aproximadamente
trinta páginas no final do livro. O título era On the application of algebra to geometry,
e continha as equações da reta, da elipse, e de poucas outras curvas. Logo, a
necessidade de um livro texto em geometria analítica foi primeiramente suprida pelo
trabalho de Henry Parr Hamilton em 1826 (BALL, 1889, p.129).

405
A geometria analítica de Henry Parr Hamilton

Henry Parr Hamilton (1794-1880) graduou-se no Trinity College, B.A., em


1816. Exerceu vários ofícios universitários, tomando o grau de M.A. em 1819. O
livro texto de Henry Parr Hamilton, The Principles of Analytical Geometry Designed
for use of students in the University, como induz o próprio título, vinha suprir uma
lacuna no ensino de geometria analítica em Cambridge. Em seu prefácio, o autor
deixa claro que seu trabalho visa a atrair a atenção dos estudantes para esse ramo
da ciência que considera extensamente útil para os superiores departamentos de
matemática (HAMILTON, 1826, p.iii).
Sua abordagem detalhada possui duas partes: uma para geometria de
duas dimensões e outra para geometria de três dimensões, incluindo
transformações dos eixos coordenados e sólidos de revolução, além da
apresentação formal da reta, parábola, elipse e hipérbole e das curvas e superfícies
quaisquer de segunda ordem.
No capítulo XI de sua obra, encontram-se transformações de coordenadas
no espaço, tema que nos interessa, uma vez que Boole retoma essa ideia em seu
artigo de 1841 sobre transformações lineares. Segue primeira proposição do livro
de Hamilton:

Prop. 1. Para passar de um sistema de eixos oblíquos para outro, a


origem sendo a mesma. Sejam x, y, z e x’, y’, z’ serem as
coordenadas de um ponto a que se refere aos eixos primitivo e novo,
respectivamente. Se o mesmo raciocínio for aplicado ao plano, que
foi utilizado (72) no caso da reta, pode ser provado que as
coordenadas primitivas são funções lineares das novas; vamos
supor, por conseguinte,
x = mx’ + n y’ + pz’ ,
y = m’ x’ + n’ y’ + p’ z’ ,
z = m’’ x’ + n’’ y’ + p’’ z’ ,
nas quais as constantes m, n, p . . . estão agora a serem
determinadas. (HAMILTON, 1826, p.245, tradução nossa)

406
A transformação linear das variáveis era abordada de forma clara com a
interpretação geométrica de mudança dos eixos coordenados. Hamilton acrescenta
em sua observação, feita após desenvolver alguns de seus corolários:

Observação. A transformação das coordenadas de um sistema


retangular para outro, é subserviente a várias questões importantes
nos departamentos de Mecânica. Entre os diferentes métodos que
têm sido propostos para executar esta operação, o referido acima é
o mais geralmente utilizado. Foi utilizado pela primeira vez por Euler,
e foi subsequentemente adotado por Lagrange e de Laplace.
(HAMILTON, 1826, p.251, tradução nossa)

Dois anos mais tarde, Hamilton publica An analytical system of conic


sections, que foi substituído somente pelo trabalho de John Hymers, Conic sections
de 1837 (BALL, 1889, p.130). Peacock também contribui com o ensino de
geometria analítica num trabalho que, segundo Ball (1889, p.130), foi emitido
anonimamente, em 1833, com o título Syllabus of trigonometry, and application of
algebra to geometry e setenta páginas destinadas à geometria analítica. Houve
uma segunda edição, em 1836, antes do trabalho de Hymers.

Contribuições de De Morgan

De Morgan foi igualmente importante propagador do uso da álgebra


aplicada à geometria. Ele publica dois artigos no Transactions of the Cambridge
Philosophical Society, um no quarto volume, no ano 1833, e outro no quinto volume,
em 1835. O segundo artigo trata das superfícies de segunda ordem, uma pesquisa
similar à primeira, que tratou das curvas de segunda ordem.
É importante notar que a principal referência britânica para estes artigos de
De Morgan trata-se justamente do Analytical geometry de Henry Hamilton,
conforme o próprio De Morgan cita em seu segundo artigo (DE MORGAN, 1835,
p.93).
No primeiro artigo, On the General Equation of Curves of Second Degree,
de 1830, De Morgan inicia apresentando seu objetivo:

407
O objetivo deste trabalho é chamar a atenção para algumas
propriedades das Curvas de Segundo Grau, por meio das quais a
redução de suas equações de um conjunto de eixos para outro é
materialmente facilitado. (DE MORGAN, 1833, p.71, tradução nossa).

Ele considera uma curva qualquer do segundo grau na qual os eixos formem
um ângulo θ, logo 𝒙𝒚
̂ = 𝜽 , e que a origem seja movida para um ponto de
coordenadas m e n nas direções de x e y. Também considera que os novos eixos
̂ =
possuem as seguintes inclinações, em comparação com os eixos originais, 𝒙′𝒙
̂ = 𝝍, sendo 𝒙’ e 𝒚’ os novos eixos coordenados, então 𝒙′𝒚′
𝝓 e 𝒚′𝒙 ̂ = 𝝍 − 𝝓 = 𝜽′.
A partir daí, apresenta as equações da curva, no primeiro e no segundo sistema de
eixos coordenados, respectivamente:
𝑎𝑦 2 + 𝑏𝑥𝑦 + 𝑐𝑥 2 + 𝑑𝑦 + 𝑒𝑥 + 𝑓 = 0,
2 2
𝑎′𝑦 ′ + 𝑏′𝑥′𝑦′ + 𝑐′𝑥 ′ + 𝑑′𝑦′ + 𝑒′𝑥′ + 𝑓′ = 0.
Com estas considerações, De Morgan encontra as relações abaixo, que
representam x e y em função dos novos eixos coordenados:
sin(𝜃−𝜙) ′ sin(𝜃−𝜓) ′
𝑥= 𝑥 + 𝑦 + 𝑚,
sin 𝜃 sin 𝜃
sin 𝜙 sin 𝜓
𝑦 = sin 𝜃 𝑥 ′ + sin 𝜃 𝑦 ′ + 𝑛.
Substituindo, na primeira equação do segundo grau esses valores de 𝒙 e 𝒚,
os resultados dos coeficientes de 𝒚′ 𝟐 , 𝒙′𝒚′, 𝒙′ 𝟐 , etc. devem ser proporcionais a 𝒂′,

𝒃′, 𝒄′, etc.; feitas as substituições e desenvolvimentos, ele apresenta:


𝐴 = 𝑎 − 𝑏 cos 𝜃 + 𝑐 cos 2 𝜃,
𝐵 = sin 𝜃(𝑏 − 2𝑐 cos 𝜃),
𝐶 = 𝑐 sin2 𝜃,
𝐷 = 2𝑎𝑛 + 𝑏𝑚 + 𝑑 − cos 𝜃(2𝑐𝑚 + 𝑏𝑛 + 𝑒),
𝐸 = sin 𝜃(2𝑐𝑚 + 𝑏𝑛 + 𝑒),
𝐹 = 𝑎𝑛2 + 𝑏𝑚𝑛 + 𝑐𝑚2 + 𝑑𝑛 + 𝑒𝑚 + 𝑓.
Desta etapa inicial de seu artigo, o autor tira algumas considerações:

No qual é importante observar que, se as coordenadas primitivas


forem retangulares 𝐴 = 𝑎, 𝐵 = 𝑏 e 𝐶 = 𝑐. Se, além disso, a origem
não for alterada 𝐷 = 𝑑, 𝐸 = 𝑒, 𝐹 = 𝑓. Também, se os eixos de 𝑥’
forem paralelos aos de 𝑥 e 𝑥̂ ′ 𝑦 ′ = 90°, a equação torna-se
2 2
𝐴𝑦 + 𝐵𝑥𝑦 + 𝐶𝑥 + 𝐷𝑦 + 𝐸𝑥 + 𝐹 = 0. (DE MORGAN, 1833, p. 72,
tradução nossa)

408
A partir dos desenvolvimentos de Gauss e Lagrange em substituições
lineares, surgem, na primeira metade do século XIX, pesquisadores ingleses
interessados em desenvolver as propriedades dessas substituições e de suas
aplicações à geometria e, consequentemente, às demais áreas das ciências físicas,
como a mecânica. Nesses dois artigos, De Morgan demonstra estar entre esses
pesquisadores, o que nos sinaliza o interesse crescente em se aplicar à álgebra
uma interpretação geométrica.
Logo, conforme a escola analítica vencia as barreiras impostas pela tradição
de Newton, não houve somente um ganho nos métodos analíticos e do cálculo
diferencial, mas também ocorreu uma abertura para todo trabalho continental,
inclusive para esses métodos de aplicações da álgebra para geometria.
A seguir, destacaremos o primeiro trabalho de Cayley em que revela seu
interesse por geometria analítica.

Primeiro artigo de Arthur Cayley

Esses fatos explicam o interesse do primeiro artigo de Cayley, On a Theorem


in the Geometry of Position, de 1841, de fazer uso da relação álgebra e geometria,
o que está em consonância com o movimento trazido pela escola analítica e com
sua leitura das recentes produções matemáticas dos principais jornais de sua
época.
O trecho inicial do artigo deixa clara sua intenção:

Propomo-nos aplicar o seguinte teorema (novo?) à solução de dois


problemas em Geometria Analítica.
Dados os símbolos
𝜶, 𝜷, 𝜸
𝜶, 𝜷
|𝜶|, | ′ | , | 𝜶′ , 𝜷′ , 𝜸′ | , &𝒄.
𝜶 , 𝜷′
𝜶′′ , 𝜷′′ , 𝜸′′
denotam as quantidades
𝜶, 𝜶𝜷′ − 𝜶′ 𝜷, 𝜶𝜷′ 𝜸′′ − 𝜶𝜷′′ 𝜸′ + 𝜶′ 𝜷′′ 𝜸 − 𝜶′ 𝜷𝜸′′ + 𝜶′′ 𝜷𝜸′ − 𝜶′′ 𝜷′ 𝜸, &𝒄.
(CAYLEY, 1841, p. 267, tradução nossa)

409
Neste artigo de 1841, Cayley se propôs a encontrar a relação existente entre
cinco pontos colocados no espaço arbitrariamente. Usando para isto recursos
algébricos, dentre os quais propriedades dos determinantes e uso das equações
da circunferência e da esfera (CAYLEY, 1841, p. 268).
Crilly (2006, p. 55) destaca alguns fatos importantes deste primeiro artigo de
Cayley, a começar pelo fato desse problema da relação entre pontos no espaço já
ter sido tratado por J. L. Lagrange, Lazare Carnot e Jacques Binet (amigo de
Cauchy). Isso mostra a capacidade de Cayley em reconhecer problemas e
interpretá-los, trazendo para a realidade inglesa e expressando relações algébricas
por meio de determinantes. Outro destaque de Crilly (2006, p. 55), consiste no fato
curioso de o problema recair novamente na “moderna teoria dos invariantes” na
segunda metade do século XIX, ou seja, de certa forma, sua primeira investigação
possui relação com a teoria que ajudaria a fundar a partir de 1845.
Esse trabalho inicial demonstra o grande interesse de Cayley pela álgebra
aplicada à geometria. O fato condiz com as possíveis influências recebidas por seu
primeiro tutor, George Peacock, e pelo ambiente propício criado pela escola
analítica e por suas leituras, enquanto iniciava seus estudos em Cambridge.

O início da teoria dos invariantes

O que nos interessa, além de uma apresentação do início da Teoria dos


Invariantes, é o fato do referido trabalho trazer uma interpretação geométrica para
essas transformações. Boole explicita essa interpretação, mostrando sua
importância. Num exemplo, seleciona o caso abaixo (1841a, p. 11):

𝒂𝒙𝟐 + 𝟐𝒃𝒙𝒚 + 𝒄𝒚𝟐 = 𝒂′𝒙′ 𝟐 + 𝟐𝒃′𝒙′𝒚′ + 𝒄′𝒚′𝟐 , (01)


𝑨𝒙𝟐 + 𝟐𝑩𝒙𝒚 + 𝑪𝒚𝟐 = 𝑨′𝒙′ 𝟐 + 𝟐𝑩′𝒙′𝒚′ + 𝑪′𝒚′𝟐 . (02)
No exemplo, tem-se: 𝜽(𝑸) = 𝑨𝑪 − 𝑩𝟐 , 𝜽(𝒒) = 𝒂𝒄 − 𝒃𝟐 , 𝜽(𝑹) = 𝑨′𝑪′ − 𝑩′𝟐 ,
𝜽(𝒓) = 𝒂′𝒄′ − 𝒃′𝟐 , que seriam as soluções pelo método anteriormente apresentado.
Boole aplica seu método:
𝜽(𝑸)
=
𝜽(𝑹) (03) e
𝜽(𝒒) 𝜽(𝒓)

410
(𝒂
𝒅 𝒅 𝒅
+𝒃 +𝒄 )𝜽(𝑸) (𝒂′
𝒅 𝒅 𝒅
+𝒃′ ′ +𝒄′ )𝜽(𝑹) , (04)
𝒅𝑨 𝒅𝑩 𝒅𝑪 𝒅𝑨′ 𝒅𝑩 𝒅𝑪′
=
𝜽(𝒒) 𝜽(𝒓)

realizando as substituições e resolvendo as diferenciações:


𝑨𝑪−𝑩𝟐 𝑨′𝑪′−𝑩′𝟐 (05) e
=
𝒂𝒄−𝒃𝟐 𝒂′𝒄′−𝒃′𝟐
𝒂𝑪−𝟐𝒃𝑩+𝒄𝑨 𝒂′𝑪′−𝟐𝒃′𝑩′+𝒄′𝑨′. (06)
=
𝒂𝒄−𝒃𝟐 𝒂′𝒄′−𝒃′𝟐
Em relação à primeira igualdade, (01), ele faz a seguinte consideração:

Isto corresponde à idéia geométrica de um mudança de


coordenadas, a partir de um par de eixos 𝒙, 𝒚, possuindo um ângulo
𝜽, para um outro par 𝒙′, 𝒚′, cujo ângulo de inclinação é de 𝜽′, então
(01 ) tornar-se
𝒙𝟐 + 𝟐𝒙𝒚𝒄𝒐𝒔𝜽 + 𝒚𝟐 = 𝒙′𝟐 + 𝟐𝒙′𝒚′𝒄𝒐𝒔𝜽′ + 𝒚′𝟐
∴ 𝒂 = 𝟏, 𝒃 = 𝐜𝐨𝐬 𝜽, 𝒄 = 𝟏, 𝒂′ = 𝟏, 𝒃′ = 𝐜𝐨𝐬 𝜽′ , 𝒄′ = 𝟏.
Desde (41) e (42), então
𝑨𝑪−𝑩𝟐 𝑨′𝑪′−𝑩′𝟐,
𝟐
= 𝟐
(𝐬𝐢𝐧 𝜽) (𝐬𝐢𝐧 𝜽′)
𝑨−𝟐𝑩 𝐜𝐨𝐬 𝜽+𝑪 𝑨′−𝟐𝑩′ 𝐜𝐨𝐬 𝜽′ +𝑪′ . (BOOLE, 1841a, p. 11, tradução
=
(𝐬𝐢𝐧 𝜽)𝟐 (𝐬𝐢𝐧 𝜽′)𝟐

nossa)

Logo, desde a primeira parte de seu trabalho sobre transformações lineares,


Boole se utiliza do fato geométrico dessas transformações poderem ser
interpretados como uma mudança dos eixos coordenados. Isso ainda foi destacado
em outro exemplo, no mesmo artigo, em que:
𝒂𝒙𝟐 + 𝒃𝒚𝟐 + 𝒄𝒛𝟐 + 𝟐𝒅𝒚𝒛 + 𝟐𝒆𝒙𝒛 + 𝟐𝒇𝒙𝒚
𝟐 𝟐 𝟐
= 𝒂′𝒙′ + 𝒃′𝒚′ + 𝒄′𝒛′ + 𝟐𝒅′𝒚′𝒛′ + 𝟐𝒆′𝒙′𝒛′ + 𝟐𝒇′𝒙′𝒚′,
pelo mesmo processo, corresponde a uma mudança do sistema de eixos 𝒙, 𝒚, 𝒛
para o 𝒙′ , 𝒚′ , 𝒛′ ; onde se as inclinações entre 𝒙 𝒆 𝒚 , 𝒚 𝒆 𝒛 , 𝒙 𝒆 𝒛 são,
respectivamente, iguais a 𝝌, 𝝓, 𝝍, e as inclinações para o outro sistema de eixos,
𝒙′ 𝒆 𝒚′, 𝒚′ 𝒆 𝒛′, 𝒙′ 𝒆 𝒛′, sendo, respectivamente, iguais a 𝝌′, 𝝓′, 𝝍′, então:
𝒙𝟐 + 𝒚𝟐 + 𝒛𝟐 + 𝟐𝒚𝒛 𝐜𝐨𝐬 𝝓 + 𝟐𝒙𝒛 𝐜𝐨𝐬 𝝍 + 𝟐𝒙𝒚 𝐜𝐨𝐬 𝝌
= 𝒙′𝟐 + 𝒚′𝟐 + 𝒛′𝟐 + 𝟐𝒚′𝒛′ 𝐜𝐨𝐬 𝝓′ + 𝟐𝒙′𝒛′ 𝐜𝐨𝐬 𝝍′ + 𝟐𝒙′𝒚′ 𝐜𝐨𝐬 𝝌′.
Após estas considerações, chega ao seu mais importante resultado, o
seguinte teorema:

411
Se 𝑸𝒏 é uma função homogênea de grau 𝒏, com 𝒎 variáveis que,
pelos teoremas lineares (80)135 é transformado em 𝑹𝒏 , uma similar
função homogênea; e se 𝜸 representa o grau de 𝜽(𝑸𝒏 ) e 𝜽(𝑹𝒏 ) ,
então
𝜽(𝑹𝒏 ) ,
𝜽(𝑸 ) = 𝒏 𝜸𝒏
𝑬𝒎
𝑬 sendo o resultado obtido pela eliminação das variáveis dos
segundos membros dos teoremas lineares (80), igualado a 0.
(BOOLE, 1841a, p. 19, tradução nossa)

Parshall (1989, p. 162) afirma que Boole acerta nesse teorema aquilo que
se tornaria a definição de invariante. Pode se constatar que Boole disse, em outras
palavras, que 𝜽(𝑸𝒏 ) e 𝜽(𝑹𝒏 ) são iguais a menos de uma potência do determinante
formado pelos coeficientes da transformação linear.
A segunda parte do artigo destina-se a exibir novos resultados, exemplos
que ilustram a efetividade de suas técnicas, além da aplicabilidade dos teoremas.
Boole novamente utiliza o fato de essas transformações serem interpretadas
geometricamente como uma mudança do sistema de eixos coordenados. Aplica
inclusive o caso de coordenadas ortogonais (ele chama de “retangulares”) que
reduz a equações mais simples (BOOLE, 1841b, p. 118).
Ainda na segunda parte de seu artigo, aplica seus métodos à solução de
equações algébricas, dando um claro exemplo da forma cúbica (BOOLE, 1841b, p.
118).
No final da segunda parte de seu artigo, faz duas considerações
importantes. A primeira, que considera importante a conexão entre transformações
lineares e extensivas classes de teoremas, dependendo de equações diferenciais
parciais, particularmente aquelas que são encontradas em geometria analítica. A
segunda consideração ele encoraja futuras investigações, dizendo acreditar ser um
amplo campo de pesquisa e descoberta (BOOLE, 1841b, p. 119).
Essas considerações nos mostram dois fatores importantes e claramente
percebíveis em nossa leitura dos artigos de Boole. Primeiro, seu forte caráter

135 O item (80) trata da substituição linear das variáveis.


.

412
geométrico que não foi apenas acidental, mas sim uma visão clara desde os seus
artigos anteriores. Segundo, ele abre um novo campo de pesquisa grandioso, algo
que o próprio matemático considera e, apesar de dizer que não pretende explorar,
escreve outros artigos neste campo de pesquisa, principalmente em 1851.

Considerações finais

O crescente uso da álgebra aplicada à geometria pode ser verificado a


partir de trabalhos como os de Hamilton, De Morgan, Cayley e Boole. O interesse
inicial está na investigação das substituições lineares que foi alvo principalmente
de De Morgan, Boole e Cayley.
O artigo de 1841 de Boole, escrito em duas partes, além de marcar o início
da teoria dos invariantes, nos mostra o quanto essa teoria já possuía relações
geométricas desde os seus desenvolvimentos iniciais. Boole continua utilizando a
interpretação da mudança dos eixos coordenados e destaca que a nova teoria seria
frutífera, utilizando o cálculo diferencial aplicado à geometria analítica.
Cayley, antes de se comunicar com Boole, interessa-se por pesquisar as
curvas algébricas, pode-se perceber a influência de Chasles e Plücker sobre seus
desenvolvimentos. Em 1844, ele demonstra seu interesse na nova teoria de Boole
e comunica alguns desenvolvimentos inspirados pelo já citado artigo de 1841.
Com isso, percebemos uma forte relação entre álgebra e geometria na
primeira metade do século XIX que vai se estender para a geometria projetiva, além
de favorecer o surgimento de modelos para as geometrias não euclidianas, a partir
de 1859 com a sexta memória sobre os quantics de Cayley.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BALL, W. W. R. A History of the Study of Mathematics at Cambridge. [S.l.]: University
Press, 1889.

BOOLE, G. Exposition of a General Theory of Linear Transformations – Part I. The


Cambridge Mathematical Journal, v. 3, n. 13, p. 1-20, 1841a.

______. Exposition of a General Theory of Linear Transformations – Part II. The


Cambridge Mathematical Journal, v. 3, n. 15, p. 106-118, 1841b.

413
CAYLEY, A. On a theorem in the geometry of position. Cambridge Mathematical
Journal, v. 2, p. 267–271, 1841.

CRILLY, T. Arthur Cayley Mathematician Laureate of the Victorian Age. Baltimore,


MD: Johns Hopkins University Press, 2006. 609 p.

DE MORGAN, A. On the general equation of curves of second degree. Transactions of


The Cambridge Philosophical Society, v. 4, p. 71–78, 1833.

DE MORGAN, A. On the general equation of curves of second degree. Transactions of


The Cambridge Philosophical Society, v. 5, p. 77–94, 1835.

GUICCIARDINI, N. The development of Newtonian calculus in Britain, 1700-1800.


[S.l.]: Cam- bridge University Press, 1989.

HAMILTON, H. P. The Principles of Analytical Geometry Designed for use of


students in the University. [S.l.]: Cambridge University Press, 1826.

PARSHALL, K. H. Toward a History of Nineteenth-Century Invariant Theory. In: ROWE,


D. E.; MCCLEARY, J. The History of Modern Mathematics. California, San Diego:
Academic Press, v. 1, p. 157-206, 1989.

414
ALGUNS BREVES APONTAMENTOS SOBRE A NOÇÃO DE FRAÇÃO
EM THE GROUND OF ARTES, DE ROBERT RECORDE

Isabelle Coelho da Silva136


Fumikazu Saito137

RESUMO
Este trabalho faz parte de uma pesquisa de doutorado em desenvolvimento, que está
estudando a obra The Ground of Artes, de Robert Recorde. Apresentamos aqui alguns
apontamentos sobre a noção de fração, abordada na segunda parte do tratado. Publicado
pela primeira vez em 1543, esse tratado aborda os conhecimentos relacionados à
aritmética prática, que transitavam em território inglês no período renascentista. Para este
estudo, foi utilizada a edição de 1648. Nela, Recorde não só apresenta a noção de fração,
relacionando-a a questões de ordem prática, voltadas para a conversão de moedas, pesos
e medidas, como também discorre sobre a redução de frações, que é uma operação que
visa representar diferentes frações de uma unidade em uma mesma denominação,
facilitando a expressão da proporção da unidade que elas representam. Por meio deste
estudo, pôde-se apresentar, brevemente, a noção de fração apresentada por Recorde,
assim como alguns de seus termos e operações, norteando futuras investigações sobre a
segunda parte dessa obra.

Palavras-chave: The Ground of Artes. Robert Recorde. Adição de frações.


Denominador. Numerador.

INTRODUÇÃO

The Ground of Artes, de Robert Recorde (1510-1558), é um tratado que


versa sobre aritmética prática e recebeu grande atenção dos ingleses no século
XVI. Publicada pela primeira vez em 1543, ela é uma das muitas obras que
circularam no período renascentista, que objetivavam disseminar e ensinar o
conhecimento matemático.

136 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). isabellecoelhods@gmail.com


137 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). fsaito@pucsp.br

415
Esse tratado teve ampla repercussão, visto que, segundo Easton (1967),
até o ano de 1600, sobreviveram 15 edições. A sua notoriedade estava relacionada
não só ao idioma em que o tratado foi escrito, mas também ao prestígio de seu
autor e ao círculo de pessoas interessadas no conteúdo por ele expresso. The
Ground of Artes foi um dos primeiros textos sobre aritmética publicado na Inglaterra
em língua vernácula e recebeu grande atenção de figuras renomadas daquela
época, como, por exemplo, John Dee (1527-1608).
No que diz respeito aos assuntos contemplados no tratado, originalmente,
The Ground of Artes tratava apenas de aritmética com números inteiros. De acordo
com Easton (1967), a primeira versão, publicada em 1543, apresentava a aritmética
a partir de operações e regras que continham exemplos e aplicações usuais com
números inteiros. Foi somente, na edição de 1552, que Recorde adicionou uma
segunda parte que incluía o estudo das frações. Essa versão composta de duas
partes foi, posteriormente, corrigida e editada diversas vezes por diferentes
estudiosos, recebendo ainda uma terceira parte, em que trazia um conjunto de
regras práticas para o comércio de mercadorias, acrescentada por John Mellis138
em 1582139.
Para este trabalho, consultamos a edição de 1648, que foi corrigida e
ampliada por Robert Hartwell 140 (fl. 1636), tendo por base a versão publicada
anteriormente por Dee e Mellis. Apresentamos aqui alguns apontamentos sobre a
noção de fração, abordada na segunda parte do tratado. Para tanto, discorremos,
inicialmente, sobre a noção de fração e denominação e, em seguida, sobre a adição
de frações e a redução à mesma denominação.

138 Não temos muitas notícias sobre John Mellis. Segundo Harkness (2007, p. 120-122), Mellis foi
contemporâneo de John Dee e era diretor de uma escola em Southwark. Tinha uma visão mais
pragmática do conhecimento e interessava-se pela aplicação prática das matemáticas,
notoriamente, da aritmética e da geometria.
139 Vide Silva e Saito (2020) para mais informações sobre a obra e sua organização.
140 Não temos muitas notícias sobre Robert Hartwell. Segundo Taylor (1954, p. 218), Hartwell estava

vivo e ativo por volta de 1636. Lecionava em sua residência e dava aulas particulares de aritmética,
geometria, astronomia, cosmografia, geografia, navegação, arquitetura, fortificação, horologiografia,
agrimensura, trigonometria e logaritmos.

416
FRAÇÃO E DENOMINAÇÃO

O estudo das frações é muito antigo e foi considerado em diversas obras


que envolviam questões comerciais, uma vez que eram utilizadas com frequência
nos negócios. Em território inglês, segundo Smith (1932), elas aparecem em
tratados que circularam antes de The Ground of Artes, tais como: De Arte
Supputandi (1522), escrito em latim por Cuthbert Tonstall 141 (1474-1559); e An
introduction for to lerne to recken with the pen or with the counters... (1537), redigido
em inglês, mas de autoria desconhecida.
Como já mencionamos, as frações foram abordadas por Recorde a partir da
edição de 1552. Isso se deve ao fato de que ele tinha, provavelmente, a intenção
de escrever um tratado separado sobre esse assunto, como podemos constatar no
seguinte trecho:

Embora eu perceba que seus diversos negócios ocupam, ou


melhor, atormentam você, de modo que você ainda não possa
finalizar completamente o Tratado de Frações Aritméticas (Treatise
of Fractions Arithmeticall) que você preparou [...] No entanto, [...]
não posso conter meu desejo mais sincero, e imploro
importunamente por uma breve introdução sobre o uso de Frações,
por meio da qual eu possa pelo menos ser capaz de compreender
perfeitamente as suas operações comuns e o uso vulgar142 de suas
regras sem as quais não podem ser bem utilizadas (RECORDE,
1648, p. 261-262, tradução nossa143).

Embora não seja possível saber quando Recorde começou a escrever o


Tratado de Frações Aritméticas, podemos presumir que estava em elaboração. A
demora em publicar esse tratado, possivelmente, estava relacionada à sua
nomeação aos cargos de controlador da Casa da Moeda de Bistrol, em 1549, e de

141 Também conhecido por Tunstall ou Tonstalli.


142 O termo vulgar é bastante usado no tratado para se referir a algo comum. Por exemplo, Smith
(1925) afirma que a expressão common fraction ou vulgar fraction foi, inicialmente, utilizada para
diferenciar as frações empregadas no comércio daquelas sexagesimais utilizadas na astronomia.
143 “Albeit I perceive your manifold businesses doth so occupie, or rather oppresse you, that you

cannot as yet completely end the Treatise of Fractions Arithmeticall, which you have prepared […]
Yet in the mean season, I cannot stay my most earnest desire, but importunely crave of you some
briefe preparation toward the use of Fractions, whereby at the least I may be able perfectly to
understand the common works of them, and the vulgar use of those rules, which without them cannot
well be wrought” (RECORDE, 1648, p. 261-262).

417
supervisor das minas na Irlanda, em 1551 144 . Essas ocupações e os diversos
negócios teriam levado Recorde a cancelar a publicação de um tratado,
exclusivamente, dedicado às frações e a adicionar uma versão resumida dele ao
seu tratado de aritmética, compondo, assim, a segunda parte de The Ground of
Artes.
Organizada em onze seções, essa segunda parte trata da noção de fração
e de suas operações orientadas para aplicações práticas. As operações de adição,
subtração, multiplicação e divisão são apresentadas por meio de problemas que
lidam com questões de ordem prática, especialmente, aqueles ligados a pesos e
medidas. Assim, da mesma forma que é tratada na primeira parte, isto é, sobre as
operações com números inteiros, essa segunda parte introduz primeiro a operação
de adição, que é seguida das outras três: subtração, multiplicação e divisão.
Contudo, diferentemente da primeira parte, em que a redução é tratada depois da
operação de divisão, nesta segunda parte, ela é abordada primeiro, antes de
introduzir a adição de frações.
A redução é tratada primeiro porque, antes de proceder à adição de
frações, é necessário, conforme Recorde, saber se as frações a serem adicionadas
pertencem a uma mesma denominação: “Sempre que você tiver quaisquer frações
a serem adicionadas, você deve considerar se elas são de uma denominação ou
não [...]” (RECORDE, 1648, p. 293, tradução nossa145).
Por denominação, Recorde quer significar aquilo que é designado, isto é, a
coisa designada. Isso é notório na primeira parte do tratado em que Recorde, na
voz do master, explica, ao scholar, que tentava adicionar um número de ovelhas a
um número de outros animais diversos, que não se pode adicionar duas coisas com
denominações diferentes, pois, nesse caso, o resultado não seria expresso nem
em número de ovelhas, nem de outros animais diversos 146 . Ou seja, não era
possível adicionar, por exemplo, quatro ovelhas a sete bois, uma vez que o
resultado não poderia ser expresso nem em número de ovelhas, nem de bois.

144 Para mais informações sobre isso, vide Williams (2012).


145 “Whensoever you have any Fractions to be added, you must consider whether they be of one
denomination or not […]” (RECORDE, 1648, p. 293).
146 Vide: Recorde (1648, p. 28).

418
De acordo com Recorde, só é possível adicionar quantidades com
diferentes denominações no caso em que “[...] uma denominação é tal que contém
a outra certas [quantidades de] vezes [...]” (RECORDE, 1648, p. 38, tradução
nossa 147 ). Em outras palavras, isso é possível quando a denominação de uma
quantidade é um múltiplo da outra, como, por exemplo, proceder-se-ia na contagem
de moedas, em que o pound (li) pode ser expresso em shillings (s) e pence148 (d),
como na seguinte situação: “Primeiro, um homem me deve 22l. 6s. 8d. e outro me
deve 5l. 16s. 6d. e um outro me deve 4l. 3s. Eu queria saber o que isso é junto [...]”
(RECORDE, 1648, p. 39, tradução nossa149).
Nesse exemplo, Recorde quer saber qual é o valor total da dívida de três
homens, sabendo-se que eles lhe devem, respectivamente, 22 pounds 6 shillings
e 8 pence; 5 pounds 16 shillings e 6 pence; e 16 shillings e 6 pence.
Notemos aqui que há três denominações: pounds, shillings e pence. Cada
uma dessas denominações pode ser reduzida a uma ou a outra, uma vez que 12
pence equivalem a 1 shilling, e 20 shillings, a 1 pound. Desse modo, para somar o
total da dívida, Recorde observa que é necessário que as quantidades referentes
a cada denominação sejam escritas uma abaixo da outra da seguinte forma (Figura
01):

Figura 01: Cálculo de adição com diferentes denominações

Fonte: Recorde, 1648, p. 39.

147 “[...] the one Denomination is such that it containeth the other certain times […]” (RECORDE,
1648, p. 38).
148 Pence é o plural de penny.
149 “First, one man oweth me 22l. 6s. 8d. and other oweth me 5l. 16s. 6d. and another oweth me 4l.

3s. I would know what this is all together [...]” (RECORDE, 1648, p. 39).

419
Dessa forma, seguindo as regras de adição de números inteiros,
previamente estabelecidas no tratado, a soma é feita por colunas seguindo uma
ordem que vai da direita para a esquerda. Primeiro, somam-se as quantidades de
pence, depois as de shillings e, em seguida, as de pounds. Assim, o resultado da
terceira coluna será 14 pence (8d+6d =14d), mas, como 12 pence equivalem a 1
shilling, a soma encontrada é reduzida à denominação de 1 shilling e 2 pence
(1s.2d.). Operando do mesmo modo, o resultado da segunda coluna será 25
shillings (6s+16s+3s=25s), porém, como 20 shillings equivalem a 1 pound, o
resultado será reduzido à denominação de 1 pound e 5 shillings, aos quais deve
ainda ser adicionado 1 shilling e 2 pence (resultado da terceira coluna), perfazendo,
portanto, 1 pound 6 shillings e 2 pence (1li. 6s. 2d.). Novamente, da mesma
maneira, o resultado da primeira coluna será 31 pounds (22li+5li+4li=31li), aos
quais deve ser adicionado 1 pound 6 shillings e 2 pence (resultado da segunda
coluna), dando o resultado final: 32 pounds 6 shillings e 2 pence (32li. 6s. 2d.).
Notemos que, nesse caso, o pence é “parte” do shilling e o shilling, do
pound, de tal modo que 1 pound equivale a 20 shillings e 1 shilling, a 12 pence.
Essa mesma ideia, em que uma quantidade pode ser dividida em outras partes, é
encontrada na noção de fração que expressa a parte de algo.
Recorde definiu fração como “[...] um número quebrado e, desse modo,
consequentemente, [como] a parte de outro número”, observando, entretanto, que
“[...] isso deve ser entendido tal como um outro número que não pode ser dividido
em nenhuma outra parte além das Frações” (RECORDE, 1648, p. 262, tradução
nossa150). Por essa definição, a fração expressa a “partição” de uma quantidade
(que é compreendida como uma unidade).
Em outros termos, uma fração não é uma operação de divisão de
quantidades, mas de partição de uma quantidade. Para elucidar a esse respeito,
Recorde propõe um problema que consiste em dividir o número de dias do ano (isto
é, 365 dias) pelo número de dias de um mês comum (isto é, 28 dias). Recorde
observa que o resultado dessa operação corresponde a 13, com resto (remainer)

150“A Fraction indeed is a broken number, and so consequently the part of another number: but that
must be understood as such another number as cannot be divided into any other parts then
Fractions” (RECORDE, 1648, p. 262).

420
1. Ele explica que, na divisão de 365 por 28, o resto (remainer) 1 não poderia ser
dividido por 28, visto que não resulta em um número inteiro. Entretanto, 1 poderia
ser fracionado em 28 partes, ou seja, caso fosse utilizada uma partição de 1
quantidade. À vista disso, Recorde observa que a quantidade restante (remainer)
não pode ser dividida em nenhuma outra parte, todavia pode ser fracionada em
quantas partes se queira.
Desse modo, a fração é expressa por um numerador e um denominador.
Recorde afirma, assim, que "[...] o Denominador declara o número de partes, em
que a unidade é dividida [...]”(1648, p. 265, tradução nossa 151 ) e o numerador
expressa a numeração da fração, ou seja, ele é a “[...] expressão de uma fração
[...]“ (1648, p. 264, tradução nossa152). O numerador, portanto, expressa quantas
partes daquela denominação estão sendo consideradas naquela fração, de
maneira que o numerador numera e o denominador denomina o que está sendo
numerado. Isso significa que, quando uma unidade é dividida, o número de
partições que são realizadas é representado pelo denominador. Por exemplo, na
fração 1/3, foram realizadas 3 partições, de forma que a fração 𝟐 expressa 2 dessas
𝟑
3 partes.
Para que seja esclarecida a diferença entre os termos da fração (o
numerador e o denominador), bem como a relação entre eles, Recorde (1648)
apresenta um problema que consiste em dividir uma quantidade de ouro, expressa
em pounds, entre quatro homens, tal que o primeiro receba 𝟐 desse ouro, o
𝟏𝟓
segundo 𝟑 , o terceiro 𝟒 e o quarto 𝟔 . A solução, para esse problema, é dada por
𝟏𝟓 𝟏𝟓 𝟏𝟓
ele da seguinte forma:

Agora você percebe que, se se pretende que o peso em pounds


seja dividido em muitas partes, quero dizer, 15, pelo Denominador
(que é um em todas as quatro frações) e pelos quatro
Numeradores, as diversas partes que cada homem deve ter são
limitadas, isto é, quando o todo é dividido em 15, o primeiro homem
terá duas dessas 15 partes; o segundo homem, três delas; o
terceiro homem, quatro; e o quarto homem, seis. E, assim, você

151 "[...] the Denominator doth declare the number of parts, into which the unite is divided [...]”
(RECORDE, 1648, p. 265).
152 “[...] expressing of a Fraction [...]” (RECORDE, 1648, p. 264).

421
pode ver os vários papéis (por assim dizer) desses dois números,
quero dizer, do Numerador e do Denominador (RECORDE, 1648,
p. 265-266, tradução nossa153).

Em outras palavras, isso significa que existe um peso em pounds de ouro


e ele deve ser dividido entre 4 homens. Para isso, esse peso foi, inicialmente,
particionado em 15 partes e cada homem recebeu 2, 3, 4 e 6 partes,
respectivamente. Note que, adicionando esses valores, tem-se exatamente 15
partes, ou seja, o ouro foi completamente dividido. A partir desse exemplo, Recorde
(1648) mostra que o numerador e o denominador são dois números com diferentes
papéis, portanto, com diferentes significados e que juntos expressam o valor de
uma fração: o denominador denomina o número de partições em que o peso de
ouro deve ser dividido; já o numerador expressa ou numera a quantidade de partes
que devem ser tomadas para cada homem.

A ADIÇÃO DE FRAÇÕES E A REDUÇÃO À MESMA DENOMINAÇÃO

Após identificar se os denominadores das frações a serem adicionadas são


de uma mesma denominação, Recorde (1648) apresenta duas regras para realizar
a adição de frações: uma para o caso em que os denominadores são iguais e outra,
em que os denominadores são distintos ou em que a operação apresenta um
número misto.
Em relação ao primeiro caso, ele explica que basta apenas adicionar os
numeradores das frações, mantendo o mesmo denominador. Isso porque, segundo
Recorde (1648), a operação de adição e subtração de frações, nesse caso, “[...]
pouco difere das denominações vulgares, nas quais os denominadores são de um

153”Now do you perceive that by the Denominator (which is one in all foure fractions) it is intended
that the pound weight should be divided into so many parts, I meane 15, and by the foure several
Numerators, is limited the divers portion that each man should have, that is, that when the whole is
parted into 15, the first man shall have two of those 15 parts: the second man three of them: the third
man foure: and the fourth man six. And so may you see the severall offices (as it were) of those two
numbers, I meane of the Numerator and the Denominator” (RECORDE, 1648, p. 265-266).

422
número cuja denominação não é alterada, tal como 3 pence e 5 pence fazem 8
pence” (p. 293, tradução nossa154).
Como mencionamos anteriormente, pence é parte de shilling, de modo que
12 pence equivalem a 1 shilling. Isso significa que o shilling pode ser dividido em
12 partes, de tal modo que um penny equivale a 𝟏 de shilling. À vista disso, quando
𝟏𝟐
somamos 3 pence e 5 pence, estamos somando as frações 𝟑 e 𝟓 . O resultado
𝟏𝟐 𝟏𝟐
dessa adição expressa quantas partes das 12, em que o shilling foi, inicialmente,
dividido, estão sendo tomadas. Dessa forma, o resultado representa 8 das 12
partes em que o shilling foi particionado, ou seja, 𝟖 de shilling e, quando escrito na
𝟏𝟐
denominação pence, equivale a 8 pence.
Em outros termos, Recorde observa que, nessa situação, a denominação
não é alterada, porque 3 e 5 possuem o mesmo denominador, que representa o
número de partições em que o todo (shilling) foi dividido. Assim, o denominador não
precisa ser alterado, bastando apenas somar as duas quantidades dessas partes.
Entretanto, no segundo caso da adição, Recorde (1648) observa que

Mas se as frações não são de uma denominação, ou qualquer uma


delas é uma mistura de números inteiros e frações, então você deve
primeiro reduzi-las a uma denominação, e depois adicioná-las. E se
elas forem muitas, então adicione primeiro duas delas, e, então, a
soma que dá o valor da adição, e o terceiro, e então o quarto, etc.
se você tiver vários (p. 293, tradução nossa155).

Diante disso, Recorde constata que, antes de proceder à adição das


frações, é necessário reduzir as frações à mesma denominação. Recorde (1648)
observa que a redução é necessária devido à dificuldade de expressar a proporção
de uma unidade representada por duas frações com diferentes denominações,
como, por exemplo, no caso da adição das frações 𝟑 e 𝟒 . Como é difícil indicar
𝟏𝟔 𝟔

154 “The reason is, because that such differ little in the Addition or Subtraction from the worke of
vulgar denominations, where the denominators be of one number, as 3 pence and 5 pence, make 8
pence, where the denomination is not altered” (RECORDE, 1648, p. 293).
155 ”But if the fractions be not of one denomination, or any of them be mixt of whole numbers and

fractions, then must you first reduce them to one denomination, and after adde them. And if they be
many, then adde first two of them, and so the summe that doth amount of the Addition, and the third,
and then the fourth, & c. if you have so many” (RECORDE, p. 1648, p. 293).

423
qual a proporção da unidade que elas expressam, Recorde recomenda que elas
sejam reduzidas da seguinte maneira:

Primeiro, multiplique os denominadores, e o total assim obtido você


deve colocá-lo duas vezes embaixo de duas linhas diferentes para
os dois novos denominadores, ou melhor, para um denominador
comum. Em seguida, multiplique o numerador da primeira fração
pelo denominador da segunda e coloque esse total para o
Numerador sobre a primeira linha. Da mesma forma, multiplique o
Numerador da segunda fração pelo denominador da primeira e
coloque esse total sobre a segunda linha para o Numerador dessa
fração [...] (RECORDE, 1648, p. 273-274, tradução nossa156).

A multiplicação dos denominadores (16x6=96) permite expressar as


frações originais por outras, proporcionalmente. Com essa redução, as frações
podem ser expressas em partes de 96 (que contêm as partições 16 e 6), de tal
maneira que 𝟏𝟖 passe a representar, proporcionalmente, 𝟑 e a fração 𝟔𝟒, 𝟒.
𝟗𝟔 𝟏𝟔 𝟗𝟔 𝟔
Logo, as duas frações mencionadas, 𝟑 e 𝟒 , que tinham diferentes
𝟏𝟔 𝟔
denominações, são reduzidas à mesma denominação: 𝟏𝟖 e 𝟔𝟒 . Uma vez assim
𝟗𝟔 𝟗𝟔
reduzidas, efetuamos a adição do mesmo modo que foi feito no primeiro caso, isto
é, somando os numeradores, resultando em 𝟖𝟐, que expressa 82 das 96 partes em
𝟗𝟔
que a unidade foi dividida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir desse breve apontamento, podemos notar que The Ground of Artes
trata da redução e da adição de frações como duas operações distintas. Isso pode
ser notado quando ele indica que primeiro deve ser realizada uma redução e, em

156
”Multiply first the denominators together, and the totall thereof you shall set twice down under two
severall lines for two new denominators, or rather for one common denominator. Then multiply the
numerator of the first fraction, by the denominator of the second, and set the totall thereof for the
Numerator over the first line. Likewise multiply the Numerator of the second fraction by the
denominator of the first, and set that totall over the second line for the Numerator of that fraction […]”
(RECORDE, 1648, p. 273-274).

424
seguida, que se proceda com a adição. Além disso, ele afirma que há seis
operações referentes a frações, que devem ser ensinadas na seguinte ordem:
numeração; redução; adição; subtração; multiplicação e divisão. Ou seja, a redução
pode ser operada sem a necessidade de uma adição, uma vez que elas são duas
operações distintas. Isso é diferente daquilo que é ensinado atualmente, em que
encontrar um denominador comum para duas frações é uma etapa da operação de
adição. Assim, Recorde mostra que a redução está relacionada com a
representação de diferentes frações de uma unidade em uma mesma
denominação, de tal forma a facilitar a expressão da proporção da unidade que elas
representam.
Por fim, ainda, há alguns pontos que precisam ser discutidos nessa seção
da obra, como os números mistos e a abreviação da fração. Essas e outras
questões integram uma pesquisa de doutorado, que está sendo realizada sobre a
segunda parte de The Ground of Artes, que visa tratar do ensino de frações.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Chicago, v. 58, n. 4, p.515-532, 1967. Disponível em:
<www.jstor.org/stable/228426>. Acesso em: 11 nov. 20194

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Revolution. New Haven & London: Yale University Press, 2007. 349 p.

RECORDE, R. Records Arithmetick or, The Ground of Arts. Londres: Miles


Flesher, 1648.

SILVA, I. C. da; SAITO, F. Algumas considerações iniciais sobre a obra The


Ground of Artes, de Robert Recorde. Boletim Cearense de Educação e História
da Matemática, Fortaleza, v. 7, n. 20, p. 312-322, 12 jul. 2020.
http://dx.doi.org/10.30938/bocehm.v7i20.2816.

SMITH, D. E. History of Mathematics: special topics of elementary mathematics.


Boston: Ginn And Company, 1925. Vol. 2.

SMITH, D. E. The influence of the Mathematical works of the fifteenth century


upon those of later times. The Papers of the Bibliographical Society of

425
America, Chicago, v. 26, n. 1/2, p. 143-171, 1932. Disponível em:
http://www.jstor.org/stable/24293008. Acesso em: 04 jan. 2021.

TAYLOR, E. G. R. The Mathematical Practitioners of Tudor & Stuart England.


Cambridge: Cambridge University Press, 1952.

WILLIAMS, J. The lives and works of Robert Recorde. In: ROBERTS, G.; SMITH,
F. (ed.). Robert Recorde: the life and times of a tutor Mathematician. Cardiff:
University of Wales Press, 2012. Cap. 1. p. 8-24.

426
AL-KHWARIZMI E OMAR KHAYYAM:
similaridades e diferenças entre álgebra e geometria

Rosângela Araújo da Silva157


Severino Carlos Gomes158
Bernadete Barbosa Morey159

RESUMO
A época do império islâmico medieval entre os séculos IX e XV marcou a história da álgebra
com diversos expoentes fundamentais para o futuro da matemática. Entre eles, destacam-
se os tratados: O livro sobre o cálculo de álgebra e al-muqabala de al-Khwarizmi e o
Tratado sobre as Demonstrações dos Problemas de Álgebra e al-Muqabala de Omar
Khayyam. Neste sentido, o presente trabalho visa realizar um estudo preliminar entre os
dois tratados algébricos buscando similaridades e diferenças entre eles e, se possível,
estabelecer comparações entre os tratamentos algébricos e geométricos na resolução de
equações polinomiais de segundo grau. Para a realização do estudo investigativo
tomaremos as ideias de Gil (2008) usando o método comparativo dentro da perspectiva de
pesquisa documental e bibliográfica. Utilizamos para comparação um exemplo, que apesar
das similaridades na resolução da equação apresentada, as diferenças apontam que
enquanto al-Khwarizmi apresenta a resolução para o caso particular, Omar Khayyam se
concentra na forma geral de resolução.

Palavras-chave: História da Álgebra. Matemática Islâmica Medieval. Al-Khwarizmi. Omar


Khayyam. Geometria Algébrica.

INTRODUÇÃO

157
Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN) / Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN):
rosangela.silva@ifrn.edu.br.
158
Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN): severocarlosgomes@gmail.com.
159
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN): bernadetemorey@gmail.com.

427
A matemática islâmica durante a idade média propiciou diversos avanços
em várias áreas do conhecimento, e em particular o desenvolvimento da álgebra.
Em se tratando de álgebra, é imprescindível registrar os estudos de al-Khwarizmi
(780-850) com seu tratado algébrico intitulado Al-Kitab al-muhtasar fi hisab al-jabr
wa-l-muqabala (O livro sobre o cálculo de álgebra e al-muqabala) que nomeou a
álgebra. Ainda no tocante aos primórdios da álgebra convém destacar os estudos
de Omar Khayyam (1048-1131), que em seu tratado algébrico intitulado Al-Risala
fi-l-barahin ‘ala masa’il al-jabr wa-l-muqabala (Tratado sobre as Demonstrações dos
Problemas de Álgebra e al-Muqabala) classifica por tipos equações polinomiais e
desenvolve novas contribuições principalmente com relação às equações de
terceiro grau.
Nesse contexto, faz-se relevante algumas questões decorrentes dos
estudos dos dois tratados mencionados, tais como: Quais as similaridades e as
diferenças entre os estudos algébricos de al-Khwarizmi e de Omar Khayyam? É
possível estabelecer comparações entre esses estudos?
Dessa forma, o presente trabalho tem o objetivo de realizar um estudo
preliminar entre os tratados algébricos de al-Khwarizmi e de Omar Khayyam,
evidenciando similaridades e diferenças entre seus estudos algébricos. O tratado
algébrico de Omar Khayyam é objeto de trabalho doutoral, na qual estudos
preliminares sugerem uma averiguação das similaridades e diferenças com o
trabalho algébrico de al-Khwarizmi.
Assim, esse texto se apresenta, além dessa breve introdução, com uma
fundamentação teórica delineando a investigação, os aspectos metodológicos da
pesquisa, alguns aspectos relevantes dos estudos de al-Khwarizmi e Omar
Khayyam com apresentação de caso particular para ilustrar os resultados
preliminares.

FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

428
No início do século VII, na península arábica teve início um movimento
religioso, que envolveu os judeus, os cristãos e as vilas tradicionais beduínas.
Surgia com o profeta Maomé o Islã, como nova religião, que em árabe significa
submissão. Após a morte do profeta, inicia-se as conquistas e forma-se um império.
Os árabes eram povos conquistadores que se interessavam pela cultura dos povos
conquistados, com o intuito de assimilar, transmitir e ensinar. Um dos notáveis
interesses foi sobre o sistema de numeração posicional de base dez e as equações
algébricas que trouxeram da Índia (CASTILLO, 2009).
No início do império islâmico o centro político era Damasco, cujos líderes
após a morte de Maomé foram os califas (sucessores), esse primeiro califado
pertencia a família Omíada. Entretanto, o califado em 750 foi passado para uma
nova família os Abássidas. Durante o califado abássida de al-Mansur, ele ordenou
a construção de Bagdá como sua nova capital, sob os auspícios de seus astrólogos,
o trabalho começou em 30 de julho de 762. E realmente Bagdá prosperou. Entre
813 e 833 aconteceu o reinado do califa al-Mamun. Ele fundou ‘A Casa de
Sabedoria’ em Bagdá, uma instituição de tradução e estudos que reunia diversos
sábios da época (BERGREN, 2003).
Na efervescência cultural de Bagdá de al-Mamun surgiram os estudos de
al-Khwarizmi (780-850). De acordo com Youschkevitch (1976), o seu tratado
algébrico intitulado Al-Kitab al-muhtasar fi hisab al-jabr wa-l-muqabala, foi o
precursor e nomeou a álgebra, tornando-a uma disciplina autônoma. O arabista
russo ainda afirma que

As obras de al-Khwarizmi, em particular seus tratados sobre


aritmética e álgebra, exerceram uma influência preponderante no
desenvolvimento posterior da matemática. Eles foram o ponto de
partida para muitos trabalhos posteriores e partes deles foram
retomadas em outras obras. (YOUSCHKEVITCH, 1976, p. 14,
tradução nossa).

Não se trata de exagero, segundo Rashed (1994), atribuir a originalidade


de conceber a álgebra ao sábio al-Khwarizmi. Em seu tratado algébrico há termos

429
que são puramente algébricos, sejam eles: o desconhecido, designado sem
distinção: raiz, coisa, e seu quadrado: mal.
Nesse trabalho usaremos como texto principal do tratado de al-Khwarizmi,
uma tradução para o espanhol feita por Ricardo Moreno Castillo, intitulada El libro
del Álgebra. Na introdução da obra Castillo expõe o título completo do tratado al-
Mujtasar fi hisab al-jabr wa-l-muqabala e continua descrevendo-o dividido em três
partes

Uma propriamente algébrica que trata da resolução de equações,


outra sobre alguns temas de geometria elementar, e a terceira
sobre questões testamentárias. A palavra jabr quer dizer restaurar,
no sentido médico de colocar um membro deslocado em seu lugar.
No contexto das equações algébricas significa a transposição de
termos: quando se elimina um elemento em um dos lados de uma
equação, este tem que ser restaurado, colocando-o no outro lado,
[...] (CASTILLO, 2009, p. 11-12, tradução nossa).

Dois séculos depois da morte de al-Khwarizmi, nasce o poeta, astrônomo


e matemático Omar Khayyam (1048-1131), nome pelo qual é conhecido no
Ocidente. Ele foi para Samarcanda no Uzbequistão em 1070, onde foi apoiado pelo
jurista Abu Tahir, momento que lhe propiciou escrever sua obra de álgebra mais
famosa, o Tratado sobre Demonstração de Problemas de Álgebra. (ROSENFELD;
YOUSCHKEVITCH, 2008)
Para este trabalho usaremos duas traduções do tratado algébrico de Omar
Khayyam, quais sejam: a tradução para o russo, feita em 1953, por Boris Rosenfeld
e a tradução para o inglês, feita em 2008, por Roshid Khalil. O tratado foi escrito
por volta de 1070-1075 e afirma que

[...] a arte da álgebra e almuqabala é uma arte científica, cujo


assunto é o número absoluto e as quantidades mensuráveis, que
são desconhecidos, mas atribuídos a alguma coisa conhecida, pela
qual podem ser determinados. [...] A excelência desta arte reside
no conhecimento dos métodos de estudo, através dos quais é
possível compreender a forma de determinar os desconhecidos
acima referidos, tanto numéricos quanto geométricos. (KHAYYAM,
1953, p. 17, tradução nossa).

430
Para desenvolvermos este estudo usaremos o método comparativo, que
segundo Gil (2008) investiga indivíduos, classes, fenômenos ou fatos, com o intuito
de ressaltar as diferenças e similaridades entre eles. Dessa forma, esse método irá
possibilitar o estudo comparativo de fatos, separados pelo espaço e pelo tempo.
Para tanto iremos usar também a pesquisa bibliográfica e a pesquisa documental.
Nesse contexto, Gil (2008, p. 50) afirma que a “pesquisa bibliográfica é
desenvolvida a partir de material já elaborado, constituído principalmente de livros
e artigos científicos.” E “a pesquisa documental vale-se de materiais que não
receberam ainda um tratamento analítico, ou que ainda podem ser reelaborados de
acordo com os objetivos da pesquisa.”

Os estudos de al-Khwarizmi

Relatos modernos de álgebra árabe, especialmente aqueles que descrevem


o estudo algébrico de al- Khwarizmi no início do século IX, tendem a se concentrar
nas soluções para seis equações quadráticas e lineares simplificadas e suas provas
geométricas na perspectiva da resolução prática de problemas algébricos. As
medidas de comprimento, área, peso ou tempo eram sempre numéricas. Não havia
preocupação com análise dimensional.
O tratamento algébrico de al-Khwarizmi em Kitāb al-jabr wa’l-muqābala
(Livro de Álgebra) passou a ser referência em se tratando da classificação e
solução de seis tipos de equações quadráticas simplificadas e de regras para
operar com raízes e polinômios. Ao tratamento teórico se segue uma coleção de
trinta e nove problemas resolvidos. (OAKS, 2011)
Assim como na Europa Medieval, os números negativos e o zero ainda não
eram reconhecidos na matemática islâmica. Com isso, al-Khwarizmi reduzia os
problemas a seis tipos de equações, conforme Quadro 1. Para cada um desses
tipos de equações havia uma regra, um método algébrico (ou geométrico) de
resolução.

QUADRO 1: Tipos de equações de al-Khwarizmi

431
TIPO LINGUAGEM RETÓRICA NOTAÇÃO MODERNA
1 Quadrados equivalem a raízes ax2 = bx
2 Quadrados equivalem a números ax2 = c
3 Raízes equivalem a números bx = c
2
4 Quadrados e raízes equivalem a números ax + bx = c
5 Quadrados e números equivalem a raízes ax2 + c = bx
6 Raízes e números equivalem a bx + c = ax2
quadrados
Fonte: Castillo (2009).

Os estudos de Omar Khayyam

Nos tempos de Omar Khayyam (1048-1131) a álgebra islâmica não mais


era somente vista como um método prático para resolução de problemas
aritméticos. As técnicas algébricas também se mostravam eficazes para resolver
problemas da geometria que não podiam ser resolvidos com régua e compasso
(OAKS, 2011).
O estudo sistemático das equações lineares e quadráticas para resolução
de problemas práticos era ferramenta conhecida desde os tempos de al-Khwarizmi.
O mesmo não se pode afirmar sobre o estudo das equações cúbicas. Somente no
século X, os algebristas do império islâmico passaram a estabelecer parâmetros
para simplificar o estudo de alguns tipos de equações cúbicas recorrendo a
artifícios para reclassificá-las em equações de grau inferior.
Por outro lado, para outros tipos de equações cúbicas, havia uma
reinterpretação dos termos da equação em função de duas seções cônicas que se
cruzam (ou não), e a solução para o problema está diretamente ligada a essa
intersecção. Para Oaks (2011), esta técnica já estava bem estabelecida quando al-
Khayyam concebeu sua ideia para sistematizá-la.

432
Nesse sentido, afirma Van Der Warden (1985), a álgebra de Omar
Khayyam é estritamente geométrica. Ele primeiro resolve equações lineares e
quadráticas pelos métodos geométricos explicados nos Elementos de Euclides, e
a seguir mostra que as equações cúbicas podem ser resolvidas por meio de
interseções de cônicas. Porém, o estudo de equações cúbicas foge
momentaneamente do escopo do nosso trabalho. Ele será explorado em futuras
oportunidades.
Voltemos nossos esforços para as equações quadráticas e para efeito de
melhor compreensão, iremos exemplificar a resolução de equações do tipo 5 do
Quadro 1.

Estudo de caso particular

Para esse caso particular, vamos usar o tipo quadrados e números iguais
a raízes, e apresentar as propostas de resolução de al-Khwarizmi e Omar
Khayyam.
Consideraremos primeiro o problema como listado em Al-Jwarizmi160
(2009, p. 29): “un cuadrado más veintiún dirhams es igual a diez de sus raíces”, em
notação moderna, x2 + 21 = 10x. Vale salientar que à época somente raízes
positivas da equação eram consideradas, pois os matemáticos islâmicos não
conheciam números negativos nem o zero.

La solución está em dividir por dos las raíces, y resulta cinco, lo


multiplicas por sí mesmo y da veinticinco, restas el veintiuno que está
com el cuadrado e da cuatro, calculas su raíz cuadrada e da dos, y
los resta de la mitad del número de raíces (que es cinco) y da tres, y
ésa es la raíz del cuadrado sobre el cual se suma, y el cuadrado es
nueve. Y si quieres, sumas la raíz cuadrada sobre lá mitad del número

160 Esta é a grafia em língua espanhola.

433
de raíces (que es cinco) y da siete, y ésa es la raíz del cuadrado sobre
el cual se suma, y el cuadrado es cuarnta y nueve. (AL-JWARIZMI,
2009, p. 29)

Reescrevendo essa descrição da resolução para a notação moderna,


conforme Quadro 2.

QUADRO 2: Descrição do método de al-Khwarizmi


NOTAÇÃO
PASSO LINGUAGEM RETÓRICA
MODERNA
1° Dividir dez por dois é igual a cinco 𝟏𝟎 ÷ 𝟐 = 𝟓
2° Multiplicar cinco por ele mesmo é igual a vinte 𝟓 ∗ 𝟓 = 𝟓𝟐 = 𝟐𝟓
e cinco
3° Subtrair vinte e um de vinte e cinco é igual a 𝟐𝟓 − 𝟐𝟏 = 𝟒
quatro
4° Extrair a raiz quadrada de quatro é igual a dois √𝟒 = 𝟐
5° Subtrair dois de cinco é igual a três 𝟓−𝟐=𝟑
6° Essa é uma raiz 𝒙=𝟑
7° Para a outra raiz 𝟐+𝟓
8° Essa é outra raiz 𝒙=𝟕
Fonte: Al-Jwarizmi (2009).

Seguido do método algébrico, al-Jwarizmi (2009) apresenta


geometricamente a resolução da equação. Vejamos a resolução do caso x < 5 com
as devidas adaptações. Considera-se primeiramente, um retângulo de área 10x
dividindo-se em um quadrado de área x2 e um retângulo representando o número
21 conforme Figura 1.

FIGURA 1: RETÂNGULO DE ÁREA 10X

434
Fonte: Adaptado de Al-Jwarizmi (2009).

Portanto, a Figura 1 representa a equação x2 + 21 = 10x. Em seguida,


toma-se o ponto médio do lado 10 do retângulo e constrói-se um quadrado de lado
5. Observe a Figura 2.

FIGURA 2: CONSTRUÇÃO DO QUADRADO DE LADO 5

Fonte: Adaptado de Al-Jwarizmi (2009).

Observe que o retângulo correspondente ao número 21 da Figura 1 está


subdividido em dois outros retângulos. Um de área x(5 – x) e outro com 5x. Ou seja,
na Figura 2, o número 21 = x(5 – x) + 5x. Ainda, surgiu um retângulo de área 5(5 –
x). Neste retângulo, constrói-se um quadrado de lado 5 – x, conforme Figura 3.

FIGURA 3: SUBDIVISÃO DO QUADRADO DE LADO 5

435
Fonte: Adaptado de Al-Jwarizmi (2009).

Portanto, o quadrado de lado 5 na Figura 3 está subdividido tal que sua


área vale 25 = 5x + x(5 – x) + (5 – x)2. Como 21 = x(5 – x) + 5x na Figura 2, então
25 – 21 = (5 – x)2 e 5 – x = 2. De onde segue x = 3.
Para a mesma equação: x2 + 21 = 10x, na ótica de Omar Khayyam,

[…] subtraia o número do quadrado da metade do número das


raízes e tire a raiz do resultado. Adicione (ou subtraia) o resultado
à metade do número de raízes. O que obtemos depois de adicionar
ou subtrair é a raiz [lado] do quadrado. (AL-KHAYYAM, 2008, p. 10,
Tradução nossa)

Aqui se observa que o processo é semelhante ao apresentado por al-


Khwarizmi (Quadro 2), no entanto Khayyam trabalha de forma generalizada. A
semelhança também se observa na resolução geométrica conforme apresentada
em al-Khayyam (2008). A única diferença apresentada é na posição do quadrado
de lado (5 – x) (observe a Figura 3 e a Figura 4), o que praticamente nada diferencia
da resolução de al-Khwarizmi.

FIGURA 4: SUBDIVISÃO FEITA POR KHAYYAM DO QUADRADO DE LADO 5

436
Fonte: Adaptado de Al-Khayyam (2008).

Portanto, finalizamos o estudo do caso x < 5 para a resolução da equação


em foco. Agora vejamos o caso em que o lado do quadrado desconhecido é maior
que a metade de 10 de suas raízes com base nas informações de Henderson
(2001). Ou seja, na Figura 5, tem-se x > 5.

FIGURA 5: RESOLUÇÃO GEOMÉTRICA PARA X > 5

Fonte: Adaptado de Henderson (2001).

437
Utilizando o mesmo procedimento como ilustrado da Figura 1 a Figura 3,
observa-se agora que o quadrado de lado 5 encontra-se no interior do retângulo
área 10x. Além disso, na Figura 5, de x2 + 21 = 10x, tem-se que 21 = x(10 – x) =
5(10 – x) + (x – 5)(10 – x). Segue então, 52 = (x – 5)2 + 5(10 – x) + (x – 5)(10 – x).
Ou seja, 25 = (x – 5)2 + 21. De onde surge x = 7.
É importante ressaltar que há diferenças nas maneiras de al-Khwarizmi e
Omar Khayyam apresentarem as resoluções algébricas para o tipo quadrados e
números iguais a raízes. Al-Khwarizmi mostra o exemplo/método e afirma que pode
ser usado para casos semelhantes, e posteriormente, ele informa:

E você deve saber que se, neste caso, ao dividir o número de raízes
por dois e multiplicá-lo por si mesmo resultar em um número menor
do que o de dirhams que estão com o quadrado, então o problema é
impossível, e se for o mesmo para o número de dirhans, então a raiz
quadrada é igual a metade do número de raízes, sem adicionar ou
subtrair nada (AL-JWARIZMI, 2009, p. 29, tradução nossa).

Por outro lado, al-Khayyam (2008, p. 10, tradução nossa) começa a


resolução do tipo em questão, afirmando que: “Neste caso, o número não deve
exceder o quadrado da metade do número de raízes; caso contrário, o problema
não tem solução.” E segue mostrando a forma geral de resolução, cuja sequência
seguimos para solucionar a equação do caso particular.
Portanto, após mostrarmos as resoluções de al-Khwarizmi e Khayyam
vejamos algumas considerações sobre esse trabalho.

RESULTADOS PRELIMINARES

Não é de espantar a similaridade do método algébrico/geométrico de


resolução de al-Khwarizmi e de Omar Khayyam. A influência de Euclides e outros
geômetras gregos conduziu os estudiosos islâmicos por esse caminho, tanto que

438
Khayyam (1953) afirma que seu tratado somente será entendido pelos que
conhecem os Elementos e os dois primeiros livros de Dados161 de Euclides.
Ainda, sobre a importância dos Elementos de Euclides para os
matemáticos islâmicos medievais, segundo Katz (2010), o processo geométrico
dos primeiros algebristas árabes medievais é devido exclusivamente a Euclides.
Neste sentido, vale ressaltar que Abd al-Hamid Ibn Turk, contemporâneo de al-
Khwarizmi, fazia uso de fatos geométricos euclidianos em estudos algébricos
(OAKS, 2011). Em resultado de pesquisa, Muniz (2020, p. 49) afirma que

Ibn Turk representava, por exemplo, casos particulares de


equações polinomiais de 2o grau utilizando a geometria. O interesse
pelo tema se justifica pelo espírito de época, em que outros
estudiosos trabalhavam com álgebra também nessa
perspectiva[...]”

Em outras palavras, Ibn Turk buscava soluções para equações polinomiais


de 2° grau a partir de figuras geométricas que as justificassem. Muniz (2020)
destaca que essa característica usando recursos geométricos estava presente nos
trabalhos de outros algebristas como Al-Khwarizmi, Al-Mahani (820-880), Thabit Ibn
Qurra (836-901) e Abu-Kamil (850-930).
Neste sentido, evidenciamos o trabalho de Omar Khayyam classificando
equações lineares e quadráticas por tipos e mostrando as resoluções. Uma
sistematização dos conhecimentos necessários para a continuidade dos seus
estudos com equações cúbicas, visto que Khayyam apresentou como reduzir
equações cúbicas para quadráticas e lineares de resoluções já conhecidas e
mostrou soluções por meio da interseção de seções cônicas para equações cúbicas
não redutíveis, sendo um avanço importante para a álgebra. O estudo do tratado
algébrico de Khayyam está em sua fase inicial como parte de um projeto de
pesquisa de doutoramento.
Por fim, no presente trabalho ressaltamos um caso particular de equação
quadrática para analisar o desenvolvimento dos procedimentos
algébricos/geométricos de Al-Khwarizmi e Omar Khayyam evidenciando as

161
Escrito como um suplemento aos Livros I ao VI dos Elementos (KATZ, 2010).

439
similaridades ao aplicar o processo de resolução da equação proposta, e as
diferenças ao mostrar que Al-Khwarizmi apresenta o exemplo ou o método de
resolução enquanto Omar Khayyam apresenta a forma genérica de resolução.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AL-JWARIZMI. M. M. El libro del Álgebra. Tradução de Ricardo Moreno Castillo.


Três Cantos: Nivola, 2009.

AL-KHAYYAM, O. An Essay by the Uniquely Wise ‘Abel Fath Omar Bin Al-
Khayyam on Algebra and Equations: Algebra wa Al-Muqabala. Tradução de
Roshdi Khalil. Lebanon: Garnet Publishing Limited, 2008.

BERGGREN, J.L. Episodes in the mathematics of medieval islam. New York:


Springer-Verlag Inc., 2003.

CASTILLO, R. M. Introducción. In: AL-JWARIZMI. M. M. El libro del Álgebra.


Tradução de Ricardo Moreno Castillo. Três Cantos: Nivola, 2009.

GIL. A. C. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6. ed. São Paulo: Atlas,


2008.

HENDERSON, David W. Experiencing Geometry: in Euclidean, Spherical, and


Hyperbolic Spaces. 2. ed. New York: Prentice Hall, 2001

KATZ, V. J. História da Matemática. Revisão de Jorge Nuno Silva. Lisboa:


Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.

KHAYYAM, O. Математическиe Tpaktatы Омара Хайяма. Tradução de Boris


Abramovitch Rosenfeld. Moscou, 1953, p. 11-66.

MUNIZ. J. T. Soluções de equações quadráticas por ‘Abd al-Hamid Ibn Turk


na formação inicial do professor de matemática: uma perspectiva orientada
pela história da matemática. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do
Rio Grande do Norte (UFRN), 2020.

OAKS. J. A. Al-Khayyām’s Scientific Revision of Algebra. Suhayl, n. 10, 2011, p.


47-75

RASHED, R. The development of Arabic mathematics: between arithmetic and


algebra. Trad.: Angela Armstrong. Boston: Springer, 1994.

440
ROSENFELD, B. A.; YOUSCHKEVITCH, A. P. Al-Khayyām - Complete
Dictionary of Scientific Biography. 2008. Disponível em: https://mathshistory.st-
andrews.ac.uk/DSB/Khayyam.pdf. Acesso em: 16 out. 2020.

VAN DER WARDEN, B. L. A History of Algebra: From al-Khwarizmi to Emmy


Noether. Berlin: Springer-Verlag, 1985

YOUSCHKEVITCH, A. P. Les Mathématiques Arabes: VIIIe-XVe siècles. Trad.:


M. Cazenazeet K. Jaouiche. Paris: VRIN, 1976.

441
BENTO DE JESUS CARAÇA (1901-1948) –
HUMANISTA, MATEMÁTICO E PEDAGOGO

Luis Saraiva
(CIUHCT/CMAFCIO/DM da FCUL)
lmsaraiva@fc.ul.pt

RESUMO
Neste artigo daremos uma visão de conjunto sobre a actuação e obra de Bento de Jesus
Caraça no contexto da situação política e social vivida em Portugal e no mundo na primeira
metade do século XX, e muito em particular durante a Ditadura instaurada em Portugal em
1926. Salientaremos a importância do 2º Congresso Internacional de História da Ciência,
realizado em 1931, na consciencialização da comunidade científica da dimensão social do
cientista, dando alguns exemplos de cientistas influenciados por estes acontecimentos.
Entre as publicações de Bento de Jesus Caraça daremos especial relevo à sua conferência
“A Cultura Integral do Indivíduo, problema central do nosso tempo”, que ainda hoje mantém
a sua actualidade, e da qual analisaremos aspetos importantes. Será igualmente salientado
o marco que significou a publicação entre 1941 e 1948 da Biblioteca Cosmos, uma obra
ímpar na divulgação científica e cultural em Portugal, por contraponto à política
obscurantista da Ditadura. A abordagem metodológica é a que é usual em qualquer artigo
de pesquisa de História da Matemática, utilizando fontes primárias sempre que possível.
Foram também consultadas fontes secundárias sobre esta época difícil do século XX.

Palavras-chave: Bento de Jesus Caraça. Século XX. Estado Novo em Portugal.


Matemática Portuguesa. A Cultura Integral.

INTRODUÇÃO: A SITUAÇÃO POLÌTICA NA 1º METADE DO SÉCULO XX


A primeira metade do século XX foi lugar de grandes convulsões sociais e
políticas, com duas guerras mundiais:1914-1918 e 1939-1945, que semearam a
destruição a níveis nunca então verificados, com dezenas de milhões de mortos,
muitos deles civis. A um ano do fim da 1ª Guerra Mundial tem lugar a revolução
comunista na Rússia. Ela vai marcar indelevelmente a história política do século
XX. A Primeira Guerra Mundial termina em 1918, mas a leste, com a destruição dos

442
impérios russo, alemão, austro-húngaro e otomano, vai continuar a instabilidade e
a luta armada até 1923. O Tratado de Versalhes, em 1919, que formalmente coloca
um termo à 1ª Guerra Mundial, estabelece condições duríssimas de exigência de
reparações aos vencidos, que são impossíveis de satisfazer. A Sociedade das
Nações é criada em Janeiro de 1920, tendo como um dos seus principais objetivos
manter a paz mundial, propondo-se evitar as guerras entre nações por arbitragen
sua. Contudo a sua eficácia foi quase nula, indo sucessivamente acontecendo
guerras entre países, e culminando no início da 2ª Guerra Mundial em 1939.

Surgem movimentos de extrema direita que vão tomar o poder na Itália, em


1922, em Portugal, em 1926 e na Alemanha em 1933. Começa a guerra civil na
China em 1927, só terminando em1950. Em 1929 dá-se a quebra dos mercados de
Wall Street, que lança uma onda de falências e de miséria sobre os Estados Unidos,
e que alastra pouco depois à Europa, com consequências análogas. Em 1935 a
Itália invade a Etiópia, perante a indiferença da Sociedade das Nações. Devido ao
crescimento dos movimentos fascistas, formam-se em 1935 as Frentes Populares
para os combater. Têm êxito eleitoral em Espanha, nas eleições de Fevereiro de
1936, e em França, nas eleições de Maio do mesmo ano. Em Espanha, os fascistas,
agrupados em torno do General Franco (1892-1975), desencadeiam em Julho de
1936 uma insurreição armada no Marrocos espanhol, começando a guerra civil
espanhola, que vai durar quase 3 anos. Com o importante apoio de soldados,
armas e aviões da Alemanha nazista e da Itália fascista, os insurrectos vencem a
guerra, que termina em Abril de 1939. Este conflito foi uma antecâmara da 2ª guerra
mundial, que começa apenas cinco meses após o fim da guerra de Espanha, com
a invasão da Polónia pelos exércitos alemães. Vai durar quase seis anos,
terminando com a derrota das forças nazi-fascistas na Europa a 8 de Maio de 1945,
e, quase quatro meses depois, com a rendição do Japão a 2 de Setembro.

Em Portugal, o regime, para além das forças repressivas que tinha a seu
dispor para tentar silenciar as vozes discordantes, criou instrumentos legais para
instituir a arbitrariedade e a subjetividade como critérios das suas decisões,
elaborando articulados que impediam qualquer arbítrio imparcial de situações

443
contenciosas. O Decreto 25317, de 13 de Maio de 1935, por exemplo, nos seus
artigos 1, 2 e 4, afirma (sublinhados nossos):

Artigo 1. Os funcionários ou empregados, civis ou militares que


tenham revelado ou revelem espírito de oposição aos princípios
fundamentais da Constituição Política ou não dêem garantias de
cooperar na realização dos fins superiores do Estado serão
aposentados ou reformados, se a isso tiverem direito, ou demitidos
em caso contrário.

Artigo 2. Os indivíduos que se encontrem nas condições do artigo


anterior não poderão ser nomeados ou contratados para quaisquer
cargos públicos nem admitidos a concurso para provimento nêles.

Artigo 4. A demissão, reforma ou aposentação e a exclusão dos


concursos ou escolas é sempre da competência do Conselho de
Ministros

Nota. Das decisões do Conselho de Ministros só há recurso para o


próprio Conselho (DIÁRIO DO GOVÊRNO, 108, pp.649-650)

Com base neste decreto, três dias após a sua publicação, são afastadas do
serviço público 33 personalidades civis e militares, entre os quais seis docentes
universitários, três deles professores catedráticos.

O estabelecimento em Espanha de um governo da Frente Popular fez com


que o regime português se sentisse ameaçado e impelido a criar mais instrumentos
legais para um melhor controle da população. Fez então publicar o decreto 27.003,
de 14 de Setembro de 1936 (já tinha começado a guerra civil em Espanha) que
obrigava quem quisesse ter emprego público a assinar a seguinte declaração:

Declaro por minha honra que estou integrado na ordem social


estabelecida pela Constituição Política de 1933 com activo repúdio
do comunismo e de todas as ideias subversivas. (DIÁRIO DO
GOVÊRNO, 216, p. 1097)

444
Entre o articulado do Decreto, merece especial referência o artigo 4, que
estimula a delação com a ameaça de consequências para quem não o fizer:

Os directores e chefes dos serviços serão demitidos, reformados


ou aposentados sempre que algum dos respectivos funcionários ou
empregados professe doutrinas subversivas, e se verifique que não
usaram da sua autoridade ou não informaram superiormente.(idem,
p. 1097)

Estes dois decretos serão utilizados na vaga de expulsões que se verificou


após o fim da 2ª guerra mundial, em 1946 e 1947, e que vitimou 29 docentes
universitários. Sobre a situação dos matemáticos vivendo sob ditaduras ocidentais
no século XX, ver (SARAIVA, 2018). Sobre as depurações políticas das
Universidades Portuguesas feitas pela Ditadura, ver (ROSAS e SIZIFREDO, 2011).

ENVOLVIMENTO DA COMUNIDADE CIENTÍFICA NOS PROBLEMAS SOCIAIS

Devido ao clima geral de grande agitação política e social, com grandes


movimentações de massas, era natural que a comunidade científica não ficasse
indiferente aos importantes acontecimentos que então se desenrolavam. De um
lado as forças revolucionárias, comunistas, socialistas, e outras, do outro os
movimentos de extrema-direita, entre os quais as organizações fascistas e nazista,
tudo isso implicava uma posição da população dos países afetados.

Em 1931 dá-se um acontecimento importante na comunidade científica: o


2º Congresso Internacional de História da Ciência e da Técnica, realizado em
Londres, que teve, pela primeira vez, a participação de uma delegação soviética,
chefiada por Nicolai Bukharin, um dos intelectuais soviéticos mais brilhantes do seu
tempo e uma das personalidade soviéticas mais marcantes na década de 20. As
intervenções dos membros desta delegação, em particular a de Boris Hessen, “As

445
raízes sociais e económicas dos Principia de Newton” (HESSEN, 1971), incidindo
sobre as ligações entre ciência e sociedade, tiveram um enorme impacto.

Uma consequência deste Congresso foi um maior alinhamento à esquerda


de parte significativa da comunidade científica. Citamos três importantes exemplos:

Joseph Needham (1900-1995) - bioquímico, historiador e sinólogo inglês. Foi


um dos fundadores da UNESCO (United Nations Educational, Scientific and
Cultural Organization) em 1945, criada com o apoio dos governos dos Aliados, e
destinada então a proporcionar uma re-educação a zonas afectadas pela ocupação
nazista. Needham preconizava o aumento da educação científica como meio de
ultrapassar os conflitos politicos. Foi o iniciador da monumental obra “Science and
Civilisation in China”. Começada em 1954, esteve envolvido na sua publicação até
à sua morte, em 1995, quando já estavam publicados 15 volumes.

James Gerald Crowther (1899-1983)– teve formação de matemática e física


em Cambridge. Foi reporter científico do Manchester Guardian. Teve papel
importante na criação da UNESCO, pensando-se que sem a sua acção a ciência
teria sido excluída da Organização. Foi membro da Federação Mundial dos
Trabalhadores Científicos. Escreveu The Social Relations of Science (1941), onde
defende que a comunidade científica deve participar na definição da política social.

John Desmond Bernal (1901-1971)- Foi um precursor irlandês da utilização


da cristalografia dos raios X na biologia molecular. Durante a 2ª Guerra Mundial
trabalhou no Ministério da Defesa, contribuindo activamente para o triunfo dos
aliados. Escreveu The Social Function of Science (1939) um dos primeiros textos
de sociologia da ciência, onde defende que a ciência não deve ser uma pesquisa
individual do conhecimento em abstracto.

Em Portugal temos múltiplos exemplos de cientistas que não esqueceram


os problemas sociais na sua actividade de investigadores, como Bento de Jesus
Caraça, Abel Salazar (1889-1946), que em 1933 escreve “A Socialização da
Ciência”, e António Aniceto Monteiro (1907-1980) que em 1944, num artigo sobre
os objetivos da Junta de Investigação Matemática, afirma o seguinte:

446
Ser investigador é um dever de todo o cidadão consciente das suas
responsabilidades perante a sociedade, porque ser investigador é
adoptar uma attitude crítica, perante a vida e o conhecimento, para
chegar a novas conclusões. (MONTEIRO, 1944; p. 82)

BENTO DE JESUS CARAÇA E A GERAÇÃO DE 40

Nas décadas de 30 e 40 do século XX surgiu uma geração de distintos


cientistas e intelectuais portugueses que, no contexto da ditadura do chamado
Estado Novo (1926-1974), desenvolveram acções no sentido de divulgar entre o
povo português uma cultura que não estava nos limites estreitos da Ditadura, e se
propuseram melhorar o nível científico existente em Portugal, rompendo com a
estagnação então existente. Esta geração ficou conhecida por Geração de 40, por
nesta década terem deixado uma marca indelével da sua actividade. Para falarmos
só dos matemáticos e físicos, podemos dizer que estavam na sua maioria
localizados em Lisboa e no Porto, sendo que as três principais instituições
universitárias onde se formaram foram a Faculdade de Ciências de Lisboa - Manuel
Valadares (1904-1982), José da Silva Paulo (1905-1976), Manuel Zaluar Nunes
(1907-1967), António Aniceto Monteiro, Hugo Ribeiro (1910-1980), José Sebastião
e Silva (1914-1972) e Armando Gibert (1914-1985)-, o Instituto Superior de
Ciências Económicas e Financeiras – Bento de Jesus Caraça, José Ribeiro de
Albuquerque (1910-1991), Augusto Sá da Costa (1913-2001) e João Remy Freire
(1917-1992)- e o Instituto Superior Técnico – Aureliano da Mira Fernandes (1884-
1958), mais velho, mas adoptado pela geração de 40 como uma excepção no
panorama matemático português da geração anterior e um exemplo a seguir, e
António da Silveira (1904-1985)-. No Porto, Ruy Luis Gomes (1905-1984) liderava
um pequeno núcleo de matemáticos e físicos centrados na Faculdade de Ciências
do Porto. A acção desta geração fez-se sentir principalmente a partir de 1936, ano
do regresso de António Aniceto Monteiro de Paris, onde fizera o doutorado com

447
Maurice Fréchet, com várias tentativas de dinamizar a pesquisa e estudo da ciência
em Portugal, e simultaneamente procurando criar condições para que pudesse
haver actividade de pesquisa estruturada e contínua em Portugal.

Bento de Jesus Caraça foi um dos mais notáveis expoentes deste grupo de
intelectuais. A sua influência esteve muito para além da ciência e do ensino, marcou
profundamente todos o que com ele contactaram e a sua memória passou para as
gerações seguintes.

Como um exemplo simples, menciono um depoimento recolhido no verão de


2018 numa entrevista a Maria Lucília Estanco Louro (1922-2018), professora
aposentada do Liceu Pedro Nunes, activa militante anti-fascista, que participou
nalguns dos movimentos mais importantes contra a ditadura, como a campanha de
Humberto Delgado para as eleições presidenciais de 1958, e a formação da
Oposição Democrática em finais dos anos 60. A Professora Maria Lucília trabalhou
na Associação Feminina Portuguesa para a Paz (AFPP), uma associação pacifista
feminina criada em 1935, onde militavam muitas anti-fascistas, devida à ameaça
crescente de uma guerra mundial. A AFPP tinha ligação com o secção portuguesa
do Socorro Vermelho, organização internacional criada em 1922 para apoiar
perseguidos políticos, e por meio desta ligação enviava mantimentos, roupas e
medicamentos para os republicanos fugidos de Espanha para França, no fim da
Guerra Civil Espanhola, e que aí ficaram detidos em campos de refugiados, em
muito más condições. Foi aí que conheceu Caraça. Ouçamos Maria Lucília:

A fama que aquele senhor tinha como professor, como


comunicador, como pessoa fora de todo o vulgar era mesmo muito
espalhada [...] A ideia era sempre a mesma, que era uma pessoa
muito especial [...] era uma espécie de quase mito, mas um mito
muito cheio de fundamentação.(LOURO, 2018)

A aura de Bento Caraça era tal que às suas aulas no ISCEF vinham assistir
alunos de outras faculdades, sabendo que o que iriam ouvir não era apenas uma
exposição de matéria relativa ao curso que Caraça leccionava, mas tinha

448
implicações que transcendiam esse âmbito e se reflectiam no modo de encarar a
vida, a cidadania, e a cultura.

Uma forma que os intelectuais oposicionistas ao regime encontraram para


se poderem reunir e falar livremente, sem receio de estarem a ser escutados pela
polícia política do regime (de 1933 a 1945 a PVDE, Polícia de Vigilância e Defesa
do Estado, depois, de 1945 a 1969, a PIDE, Polícia Internacional e de Defesa do
Estado,e , na sua fase final, a DGS, Direção-Geral de Segurança, de 1969 a 1974)
e sem levantarem suspeitas, era organizando passeios de barco no Tejo, com
partida em Vila Franca de Xira. Era um grupo muito diversificado de intelectuais,
incluindo escritores, poetas, pintores e cientistas. Durante horas havia convívio e
debate livre. Maria Lucília esteve em dois desses passeios, e sobre eles disse:

Eu nunca fui tão feliz na minha vida como quando estava com
aquelas pessoas, a ouvir o que elas diziam. Quero dizer, quando o
Bento Caraça falava, mas depois outros, o Manuel da Fonseca, por
exemplo, o Sidónio Muralha [...] (idem)

Há muito escrito sobre Bento de Jesus Caraça. Saliento (PEDROSO,


2007), onde vem igualmente indicada uma extensa bibliografia activa e passiva
deste notável cidadão (PEDROSO, 2007; pp. 633-732).

ALGUNS DADOS SOBRE BENTO DE JESUS CARAÇA: PERÍODO 1901-


1932

Nasceu em Vila Viçosa, a 18 de Abril de 1901, filho de trabalhadores rurais.


Dois meses após o seu nascimento o seu pai foi contratado como feitor de uma
herdade. Quando Bento tinha cinco anos a esposa do proprietário da herdade,
admirada com as capacidades intelectuais do filho do seu feitor, propôs-lhe tomar
conta da criança, garantindo o seu sustento e educação. Bento Caraça concluiu os
estudos primários em 1911, e em seguida os estudos secundários em 1918 no
Liceu Pedro Nunes, em Lisboa, depois de ter estado, até 1914, no Liceu Central Sá

449
da Bandeira, em Santarém. A sua protetora faleceu quando estava prestes a
terminar o ensino secundário, pelo que, para continuar os seus estudos, teve de
aumentar o número de explicações particulares que dava para complementar a sua
mesada.

De 1918 a 1923 frequenta o Instituto Superior de Comércio (ISC), o qual a


partir de 1930 passou a denominar-se Instituto Superior de Ciências Económicas e
Financeiras (ISCEF). Em 1919, sendo aluno do 2º ano, é nomeado 2º Assistente
Temporário. No mesmo ano é fundada a Universidade Popular Portuguesa (UPP),
com a finalidade de contribuir para a educação do povo português. Será extinta
pela Ditadura em 1945. Caraça é eleito vogal efectivo do Conselho Administrativo
em dois mandatos, 1919-1923 (quando tinha 18 anos) e 1926-1928. Depois de
concluir o curso, em 1924 é nomeado Primeiro Assistente Temporário do ISC,
regendo a 2ª Cadeira, Matemáticas Superiores: Análise Infinitesimal. Cálculo das
Probabilidades e suas Aplicações, passando a 1º Assistente Definitivo em 1927. De
1925 a 1946 rege a 1ª Cadeira: Matemáticas Superiores: Álgebra Superior.
Princípios de Análise. Geometria Analítica. Em 1928 é eleito Presidente do
Conselho Administrativo da UPP, e é aqui onde vai esboçar o seu primeiro projecto
de educação popular. No ano seguinte é Professor Catedrático do ISC. Em 1931
lecciona o Curso de Iniciação Matemática na UPP, um extenso curso de 53 lições.

Em 1932 faz no ISCEF a conferência Vida e Obra de Evariste Galois,


(CARAÇA, 70; pp. 13-28) a convite da sua Associação Académica.

Em 1933 salientam-se duas conferências, ambas realizadas na sede da


UPP: A Cultura Integral do Indivíduo, Problema Central do Nosso Tempo e Galileo
Galilei, valor científico e moral da sua obra. Ambas estão incluídas em (CARAÇA,
70), respectivamente pp. 31-58 e pp. 61-99.

A CONFERÊNCIA “A CULTURA INTEGRAL DO INDIVÍDUO: PROBLEMA


CENTRAL DO NOSSO TEMPO”

450
Esta conferência foi feita em 1933, a convite da colectividade União
Cultural “Mocidade Livre”, para marcar o início da sua actividade, e realizou-se na
sede da UPP, com uma assistência de 192 pessoas, largamente ultrapassando a
capacidade da sala. É talvez o escrito mais conhecido e falado de Bento Caraça,
pela actualidade permanente do seu tema e pela análise que dele faz. Nessa altura
– a conferência foi proferida em Maio- havia meses que os nazistas tinham
assumido o poder na Alemanha e a Europa estava num impasse bastante
inquietante. Em Portugal a Ditadura controlava os meios de comunicação e utilizava
a censura para limitar ao máximo a liberdade de expressão. Para poder fazer
passar a sua mensagem, sem cortes de censura, Caraça tinha de seguir um modo
não explícito. Faz uma análise de tipo marxista do desenvolvimento da história, mas
sem nunca mencionar fontes, apenas exprime o seu discurso como um
pensamento lógico. Certamente como meio de tentar rodear a censura, cita um
discurso do ditador António Oliveira Salazar (1889-1970) pronunciado dois meses
antes e transcrito no jornal O Século de 13 de Março de 1933 para defender uma
conclusão que lhe poderia levantar problemas de censura se não fosse
fundamentada nas palavras do ditador. Vejamos as palavras de Salazar citadas por
Caraça:

Nós adulterámos o conceito de riqueza, desprendemo-la do seu fim


próprio de sustentar com dignidade a vida humana, fizemos dela
uma categoria independente que nada tem a ver com o interesse
colectivo nem com a moral e suposemos que podia ser finalidade
dos indivíduos, dos Estados ou das Nações amontoar bens sem
utilidade social, sem regras de justiça na sua aquisição e no seu
uso. Nós adulterámos a noção de trabalho e a pessoa do
trabalhador. (CARAÇA, 1970; p. 46).

Conclusão de Caraça:

Pois muito bem. É para sustentar isto que se cria e desenvolve, por
toda a parte, um aparelho repressivo de cuja actuação brutal todos
os dias temos novas afirmações. (idem, p. 46)

451
Vê-se o cuidado nas palavras que utiliza logo desde o início desta
conferência, quando elogia os organizadores da sessão: ao referir o nome da
colectividade, omite voluntariamente a palavra “livre”, uma palavra problemática
para o regime, apenas mencionando “mocidade” e “cultura”, passando a
mensagem da necessidade de uma renovação espiritual na nova geração (que não
era a do poder) para se poderem ultrapassar os dias “menos bons” que estão a
viver, e poder realizar as ideias (e ideais) para uma vida melhor:

[...] a junção feliz, no seu próprio nome, das duas palavras “cultura”
e “mocidade” abre horizontes rasgados para a esperança daqueles
que, não tendo desesperado de viver melhores dias, vêem
precisamente numa renovação espiritual da geração nova a
condição indispensável para a realização das ideias que lhe são
caras. (idem, p.33)

A conferência é muito rica de temas tratados, aqui vamos apenas referir


alguns pontos importantes. Caraça sublinha que o futuro tem de ser um projeto
colectivo. E para se ter êxito é necessário um estudo prévio da situação, tem de se
determinar quais as questões principais e como as resolver. Mas lembra que a
situação que então se vivia no mundo implicava rapidez na acção:

O que o mundo for amanhã é o esforço de todos nós que o


determinará. Há que resolver os problemas que estão postos à
nossa geração e essa resolução não a poderemos fazer sem que,
por um prévio esforço de pensamento, procuremos saber, por uma
análise mais fria e raciocinada, quais são esses problemas, quais
as soluções que importa dar-lhes – saber donde vimos, onde
estamos, para onde vamos. E pensemos que agora ainda o
podemos fazer. Amanhã pode ser tarde, porque a tempestade que
tem vindo a acumular-se sobre as nossas cabeças pode
desencadear-se [...] (idem, pp.33-34)

Adverte que o caminho não é fácil, não é apenas a sua geração que está
implicada, é necessário que a nova geração tenha fidelidade em relação aos
princípios que se defendem:

452
[...] o seu labor [ da geração nova] será fecundo na medida da força
e poder de sinceridade que puserem, através ainda das maiores
dificuldades, em que se conservarem iguais a si mesmos, fiéis a si
mesmos.(idem, p.33)

Vivia-se um período da história em que coexistiam os grandes progressos


da ciência com acções altamente regressivas, desorganizadoras e destruidoras:

Época singular! Em que podemos assistir às manifestações do mais


alto poder criador e do mais persistente esforço de sistematização
– Einstein e Broglie - e, paralelamente, à desorganização total da
vida económica e à destruição deliberada daquilo que a maioria
carece. (idem, p. 34)

Numa nota à segunda edição desta conferência, em 1939, já os


republicanos tinham perdido a guerra civil em Espanha, a Alemanha começara a
sua política expansionista, e uma guerra mundial parecia inevitável, Caraça afirma
o valor em si dos ideais e do esforço e trabalho para os realizar, são eles que fazem
os seres humanos transcenderem-se e realizarem obras imortais162.

As ilusões nunca são perdidas. Elas significam o que há de melhor


na vida dos homens e dos povos. Perdidos são os cépticos que
escondem sob uma ironia fácil a sua impotência para compreender
e agir; perdidos são aqueles períodos da história em que os
melhores, gastos e cansados, se retiram da luta, se enxergarem no
horizonte nada a que se entreguem [...] Benditas as ilusões, a
adesão firme e total a qualquer coisa de grande, que nos ultrapassa
e requer. Sem ilusão nada de sublime teria sido realizado, nem a
catedral de Estrasburgo nem as sinfonias de Beethoven. Nem a
obra imortal de Galileu. (idem, pp.31-32)

Para Caraça o problema central que vai determinar o caminho da


sociedade é o da cultura. Define o que entende por uma pessoa culta:

162 Todos os sublinhados nas citações são nossos.

453
1º Tem consciência da sua posição no cosmos e, em particular, na
sociedade a que pertence;

2º Tem consciência da sua personalidade e da dignidade que é


inerente à existência como ser humano;

3º Faz do aperfeiçoamento do seu ser interior a preocupação


máxima e o fim último da sua vida. (idem, p.51)

Lembra que não há qualquer equivalência entre ser culto e ser sábio, pode
ser-se culto sem ser sábio e vice-versa, mas acrescenta que ser culto implica algum
saber, um mínimo para garantir os três requisitos que enunciou.

Acentua ainda a importância da cultura e a sua dependência da resolução


do problema económico:

A aquisição da cultura significa uma elevação constante [...]


significa numa palavra a conquista da liberdade.[...] Condição
indispensável para que o homem possa trilhar a senda da cultura-
que ele seja economicamente independente. Consequência – o
problema económico é, de todos os problemas sociais, aquele que
tem de ser resolvido em primeiro lugar. (idem, p. 51)

Caraça explica a aparente contradição entre o desenvolvimento da


civilização e o piorar das condições de vida de quem trabalha pelo baixo nível de
cultura que permite um desvio do que deviam ser os objetivos da colectividade. Só
pela melhoria do nível cultural (no sentido que lhe deu) será possível evitar este
desenvolvimento; a cultura surge como um complemento necessário da civilização:

Se o desenvolvimento da civilização [...] pode conduzir ao


automatismo e a consequente escravização do homem,[...] é isso
devido, não a um alto mas a um baixo grau de cultura que permite
que os meios de progresso sejam utilizados num ambiente de
completo abandono dos objectivos superiores da vida. E esse
abandono, e a adulteração que se lhe segue, só podem ser
evitados pelo reforçamento intenso da cultura; esta aparece-nos

454
assim como um condicionador e correctivo da marcha da
civilização. (idem, pp. 52-53)

Equaciona o problema das elites: elas são necessárias, mas não podem
monopolizar a cultura: esta é de toda a colectividade, é pela cultura que a
humanidade há-de chegar a um estado superior. Para Caraça, de outra forma, o
problema central que se coloca é o despertar a alma colectiva das massas:

Evidentemente que o cultivo e progresso da ciência, bem como a


sua aplicação à vida corrente da sociedade, hão-de ser sempre
obra de grupos especializados [...] Mas o que não deve nem pode
ser monopólio de uma elite é a cultura; essa tem de reinvindicar-se
para a colectividade inteira porque só com ela pode a humanidade
tomar consciência de si própria ditando a todo o momento a
tonalidade geral da orientação às elites parciais. Só deste modo
poderá levar-se a bom termo a realização daquela tarefa essencial
que [é] o problema central posto às gerações de hoje- despertar a
alma colectiva das massas, (idem, p. 53).

Em todo o texto vemos que há em Bento de Jesus Caraça um forte


comprometimento perante a sociedade, uma intensa noção de missão, bem
expresso no modo como termina a sua conferência:

Houve quem dissesse um dia que as gerações dos homens são


como as das folhas, passam umas e vêm outras. Está na nossa
mão o desmentir o significado pessimista desta frase. Só figuram
de folhas caídas, para uma geração, aquelas gerações anteriores
cujo ideal de vida se concentrou egoisticamente em si e que não
cuidaram de construir para o futuro pela resolução em bases largas
de problemas que lhes estavam postos [...] Esta concentração
egoista tem um nome – traição, e, se hoje trairmos, será esse o
nosso destino, ser arredados com o pé, como se arreda um monte
de folhas mortas [...] (idem, p. 53)

455
ALGUNS DADOS SOBRE BENTO DE JESUS CARAÇA: PERÍODO
1934—1948

Em 1934 participa na criação da Liga contra a Guerra e contra o Fascismo.


No ano seguinte sai o primeiro volume das suas Lições de Álgebra e Análise,
correspondendo ao Curso que leccionava no ISCEF. Este livro teve três reedições,
em 1945, 1956 e 1959, sendo que a de 1945 (e portanto as seguintes, que sairam
já após o falecimento de Caraça) foi muito modificada, sendo o texto quase
completamente reescrito. No Prefácio exprime o seu reconhecimento a Mira
Fernandes, tal como aliás o fazem os restantes elementos da geração de 40:

Quero agradecer àquelas pessoas a quem devo o este livro ver a


luz do dia. Em primeiro lugar ao meu querido amigo e Mestre,
professor Mira Fernandes. Apraz-me patentear aqui o quanto lhe
deve a minha formação de professor, já pelo valor dos seus
conselhos, já, e sobretudo, pela qualidade do exemplo vivo que
constituem a sua vida profissional e a sua atitude moral face à ciência
(CARAÇA, 1935; p.iii)

Em 1936, conjuntamente com António Monteiro, Arnaldo Peres de Carvalho


(1904-1989), engenheiro químico industrial, Herculano Amorim Ferreira (1895-
1974), engenheiro militar licenciado em Ciências Físico-Químicas (nessa altura em
Portugal não havia licenciaturas separadas da Química e da Física), Manuel
Valadares e António da Silveira, ambos físicos, criam o Núcleo de Matemática,
Física e Química, cuja actividade principal vai ser leccionar cursos onde se davam
a bases consideradas indispensáveis para futuros investigadores. Este Núcleo, o
primeiro grupo de investigação criado por esta geração, vai durar apenas até 1939.
Sobre a actividade da geração de 40 na época 1936-1945, principalmente no que
diz respeito à Matemática, ver (SARAIVA, 2016). Em 1937 surge o seu Cálculo
Vectorial, a primeira das publicações do Núcleo. Apesar de prevista a publicação
dos cursos leccionados pelos elementos do Núcleo, só três foram publicados.

Em 1938 cria, com Mira Fernandes e Caetano Beirão da Veiga (1884-


1962), professor do ISCEF, o Centro de Estudos de Matemáticas Aplicadas à

456
Economia. É o único centro que não tem a participação de António Monteiro. O
Centro, por decisão governamental, foi extinto no início do ano lectivo de 1946/47.
Em 1940 há uma intensa actividade: é elemento fundador da Gazeta de
Matemática, com António Monteiro, Hugo Ribeiro, Manuel Zaluar Nunes e José da
Silva Paulo, participa na criação da Sociedade Portuguesa de Matemática (SPM),
e sai o segundo volume das suas Lições de Álgebra e Análise.

Em 1941 funda a Biblioteca Cosmos, uma realização única em Portugal a


nível de divulgação científica e cultural. Sobre a Biblioteca Cosmos, que aqui não
vamos aprofundar, ver (NEVES, 2006), (ARAÚJO, 2001) e (ANDRADE, 2019). Foi
um empreendimento de uma grande dimensão, em sete anos, entre 1941 e 1948
publicam-se com regularidade 107 títulos em 145 volumes, dos quais só 19 são
traduções, e com uma tiragem total de 793.500 exemplares, uma tiragem média
superior a 7.000 exemplares por título, o que tem de se considerar excepcional num
país com grande taxa de analfabetismo. Para termos um termo de comparação, os
romances de autores consagrados não ultrapassavam nessa época tiragens entre
os 2000 e os 3000 exemplares. Organizou-se a Biblioteca Cosmos em sete
secções temáticas: 1ª. Ciências e Técnicas; 2ª Artes e Letras; 3ª Filosofia e
Religiões; 4ª. Povos e Civilizações; 5ª Biografias; 6ª Epopeias Humanas; e 7ª.
Problemas do Nosso Tempo. Dos 107 títulos, 49 estão na 1ª Secção, 20 estão na
2ª. e 23 na 7ª. Os restantes 15 títulos distribuiem-se pelas quatro restantes secções.

Caraça explica a intenção da Biblioteca na nota introdutória do primeiro


volume da Cosmos. A citação é extensa, mas permite ter uma ideia global e precisa
dos motivos que a originaram:

[...] os seus intuitos- dar ao maior número o máximo possível de


cultura geral [...] uma visão geral do mundo, mundo físico e mundo
social, da sua construção, da sua vida e dos seus problemas.
Quando falamos em tornar acessível, entendemo-lo de duas
maneiras- pelo preço dos volumes, o qual será tão baixo quanto
possível, e pela forma de tratar os problemas, que será simples,
concisa, em linguagem ao alcance de todos. Procurará realizar a
síntese destas duas exigências – simplicidade máxima na forma de

457
exprimir, rigor máximo na forma de expor. Obra de vulgarização,
[...] aquela vulgarização que não abaixa nem deturpa, que traz ao
nível do homem comum o património cultural comum [...] Em cada
ramo do conhecimento há o que é do domínio do especialista e o
que é do domínio geral [...] O que se pretende vulgarizar é,
precisamente, o que pertence ao domínio comum, e aí não há nada
que não possa ser aprendido pelo comum dos homens. É a eles
que é dirigida esta Biblioteca. [...] Há, em suma, que dar ao homem
uma visão optimista de si próprio; [...] e derrotas só existem aquelas
que se aceitam [... ] que o homem, sentindo que a cultura é de
todos, participe, por ela, no conjunto de valores colectivos que há-
de levar à criação da Cidade Nova. A Biblioteca Cosmos pretende
ser uma pequena pedra desse edifício luminoso por
construir.(ILINE, 1941; Prefácio)

Na Biblioteca Cosmos saiem os dois primeiros volumes dos Conceitos


Fundamentais da Matemática, respectivamente o número 2, em 1941 e o número
18, em 1942. O primeiro foi o volume de maior tiragem da Cosmos, com 17.500
exemplares. Um terceiro volume que concluía o livro fica inédito e só vem a ser
publicado postumamente numa edição que inclui os três volumes, em 1951. Trata-
se de uma excelente obra de divulgação sobre matemática elementar que segue
uma concepção dialéctica da história. Pelas condicionantes de espaço não vou aqui
analisar este texto. Um estudo breve sobre ele por Paulo Almeida encontra-se na
introdução à reedição feita em 1998. No seu Prefácio, Caraça mostra estar
concordante com as ideias expressas por Bernal, Needham, Crowther e outros
quanto à atitude a tomar face à ciência:

[Procurar acompanhar a Ciência] no seu desenvolvimento


progressivo, assistir à maneira como foi sendo elaborada [...] vê-se
toda a influência que o ambiente da vida social exerce sobre a
criação da Ciência [...] aparece-nos, enfim, como um grande
capítulo da vida humana social. [...].Sem dúvida a Matemática
possui problemas próprios, que não têm ligação imediata com os
outros problemas da vida social. Mas não há dúvida também que

458
os seus fundamentos mergulham tanto como os de outro qualquer
ramo da ciência, na vida real [...] (CARAÇA, 1941)

É eleito delegado da SPM aos Congressos do Porto (1942) e de Córdova


(1944) das Associações Espanhola e Portuguesa para o Progresso das Ciências.
Em 1943 intregra a Comissão Executiva do MUNAF, Movimento de Unidade
Nacional Anti-Fascista. É eleito Presidente da SPM para o biénio 1943/44.

Em Maio de 1945, com a vitória dos aliados na Europa, renascem as


esperanças do derrube da Ditadura, aumentadas quando o Governo em Agosto
dissolve a Assembleia Nacional e marca novas eleições para Novembro, afirmando
poderem ser eleitos deputados que estivessem “contra a situação”. A 8 de Outubro
é criado o Movimento de Unidade Democática- MUD, directamente resultante da
grave crise interna do regime e do seu isolamento internacional. O regime tolerou
a sua existência até 1948, e foi obrigado inicialmente a simular uma “abertura
política”, dando a ideia errada que a democratização do país era possível.

A 10 de Novembro o MUD considerou não haver condições para eleições


sérias e desistiu de concorrer, mantendo-se contudo em funcionamento.
Em 1946, a Comissão Central do MUD fez circular o manifesto O MUD
perante a admissão de Portugal à ONU, (CARAÇA e GOMES, 1946; pp.5-9) em
que é afirmado que Portugal não preenche as condições necessárias para entrar
na ONU visto não ser um país democrático. Em consequência o regime institui
processos disciplinares a Caraça e a Mário de Azevedo Gomes (1885-1965),
catedrático do Instituto Superior de Agronomia, ambos signatários do manifesto e
os únicos que dependiam do Ministério de Educação Nacional, os quais levam à
expulsão de ambos da Universidade, por determinação do Conselho de Ministros.
Poucos dias após a sua demissão é preso durante cinco dias pela PIDE.

A 18 de Junho de 1947, ao abrigo do decreto de 1935, o Governo ordena a


demissão ou a aposentação de 21 professores universitários, que são visados
pelas suas posições políticas pois a maioria não tinha actividade na oposição.

Em Janeiro de 1948 o Governo ilegaliza o MUD, sob acusação de ter fortes


ligações ao Partido Comunista, e prende todos os membros da Comissão Central

459
e da Comissão Distrital de Lisboa. Caraça é colocado em prisão domiciliária pela
PIDE, pois não podia sair de casa por se encontrar já bastante doente.

Falece a 25 de Junho de 1948, em consequência de doença que já tinha há


muito - aperto mitral- e que se agravara bastante nos últimos anos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Bento de Jesus Caraça foi uma das luzes brilhantes que teimosamente
brilhou na noite escura da ditadura que durante 48 anos controlou Portugal. A sua
firme atitude moral foi sempre o guia das suas acções. Considerou que a cultura
era um elemento essencial para a democracia e o progresso para uma sociedade
melhor, mais justa e mais rica, e por ela batalhou durante toda a sua vida, desde a
sua acção na UPP, no ISC, e depois no ISCEF, e nas múltiplas acções culturais em
que se envolveu, e que aqui apenas aflorámos, onde se destaca a obra única que
foi a Biblioteca Cosmos. Teve papel importante na matemática portuguesa: foi um
dos fundadores da SPM e promoveu a investigação na matemática ligada à
economia. Foi uma pessoa que abriu perspectivas novas e transformou o destino
de quem com ele conviveu e com ele privou. Pelo seu exemplo e palavra, formou
gerações, mostrando como se pode agir com retidão sob um regime ditatorial.

AGRADECIMENTOS

Quero agradecer ao CIUHCT, que subsidiou a investigação que produziu este


artigo, ao abrigo da rúbrica UIDB/00286/2020, bem como ao Departamento de
Matemática da FCUL, que também me apoiou nesta investigação.

460
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Luis Crespo de. Biblioteca Cosmos. Política e Cultura, in Nova Síntese.
Cultura Científica e Neo Realismo (coordenação: FITAS, Augusto), pp. 75-107.
Lisboa: Edições Colibri, 2019.

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Bento de Jesus Caraça. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

BERNAL, John Desmond. The Social Function of Science. London: George


Routledge & Sons Ltd, 1939.

CARAÇA, Bento de Jesus.Lições de Álgebra e Análise. Volume I. Lisboa: Livraria


Sá da Costa, 1935.

CARAÇA, Bento de Jesus. Cálculo Vectorial. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1937.

CARAÇA, Bento de Jesus. Lições de Álgebra e Análise. Volume II. Lisboa:


Livraria Sá da Costa, 1940.

CARAÇA, Bento de Jesus. Conceitos Fundamentais da Matemática, volume 1.


Biblioteca Cosmos, 2. Lisboa: Edições Cosmos, 1941.

CARAÇA, Bento de Jesus. Conceitos Fundamentais da Matemática, volume 2.


Biblioteca Cosmos, 18. Lisboa: Edições Cosmos, 1942.

CARAÇA, Bento de Jesus. Conceitos Fundamentais da Matemática. Lisboa:


Tipografia Matemática, 1951.

CARAÇA, Bento de Jesus. Conferências e Outros Escritos. Lisboa: Editorial


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CARAÇA, Bento de Jesus. Conceitos Fundamentais da Matemática. Lisboa:


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CARAÇA, Bento de Jesus, e GOMES, Mário Azevedo. Duas Defesas. Lisboa:


Edição dos Autores, 1946.

461
CROWTHER, James Gerald. The Social Relations of Science. London: The
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Limited, 1971.

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1941.

LOURO, Maria Lucília Estanco. Entrevista por Luis Saraiva (não publicada), 2018.

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NEEDHAM, Joseph. Science and Civilization in China. Cambridge: Cambridge


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Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006.

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SALAZAR, Abel. A Socialização da Ciência. Separata do semanário Liberdade.


Lisboa: Editorial Liberdade, 1933.

462
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(1936-1945), Archives Internationales d’Histoire des Sciences, 66, nº 175, pp.
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SARAIVA, Luis M. R. (editor). Proceedings of the International Conference


“Mathematical Sciences and 20th Century Dictatorships – Western Europe,
Portugal, and its Atlantic Connections. Lisboa: SPM, 2018.

463
BREVE APONTAMENTO SOBRE THE METHOD OF FLUXIONS AND
INFINITE SERIES, DE ISAAC NEWTON

Jorge Luiz de Almeida Zeferino Junior163


Fumikazu Saito164

RESUMO
Este trabalho apresenta alguns breves apontamentos preliminares que pertencem a uma
pesquisa de mestrado em Educação Matemática que está em andamento cujo objetivo é
estudar o cálculo de fluxões de Isaac Newton. A obra de Newton escolhida para este
trabalho é intitulada The Method of Fluxions and Infinite Series; with its Application to the
Geometry of Curve-Lines, que foi publicada em 1736. O presente tratado traz consigo
registros de aplicações do Cálculo de Séries Infinitas e do seu Cálculo de Fluxões em
problemas referentes a curvaturas e quadraturas, assuntos que estavam presentes em
debates no século XVII. Uma análise mais delineada do conteúdo dessa obra e
considerando o contexto matemático de sua época, identificamos que o cálculo de fluxões
se mostrava presente em um grupo com conotações de físico-matemática. Dessa forma,
expomos aqui a organização da obra, cujo entendimento foi importante para termos uma
compreensão mais clara dos assuntos e temas abordados por Newton para dar seguimento
à nossa pesquisa.

Palavras-chave: Método das Fluxões; Cálculo; Quadraturas.

INTRODUÇÃO

As investigações envolvendo curvas e quadraturas receberam grande


atenção de estudiosos de matemática no século XVII. Essas investigações foram
acompanhadas por um interesse renovado pela determinação de suas tangentes,
que passaram a ser vistas não só como resultados da especulação geométrica,
mas também física ou técnica.

163
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). jorgeluiz.edu@hotmail.com.
164
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). fsaito@pucsp.br.

464
Um dos estudiosos que se debruçou sobre esse assunto foi Isaac Newton
(1642-1727) que elaborou, a partir daí, o cálculo de fluxões. Foi provavelmente
depois de se dedicar ao estudo das séries infinitas em 1664, época em que também
investigava o desenvolvimento do binômio, que Newton teve as primeiras ideias
sobre as fluxões e as utilizou para encontrar a tangente e o raio da curvatura de um
ponto numa curva por volta de 1665.
A aplicação mais sistemática da ideia de fluxões aparece enunciada,
implicitamente, em Philosophiae naturalis principia mathematica165 de 1687, e de
forma muito mais explícita em seus ensaios e estudos sobre equações, De analysi
per aequationes numero terminorum infinitas166, escrito em 1669, mas publicado
em 1711, The Method of Fluxions and Infinite Series; with its Application to the
Geometry of Curve-Lines167, redigido em latim em 1671, porém traduzido para a
língua inglesa e impresso neste idioma em 1736, e em Tractatus de quadratura
curvarum, elaborado por volta de 1676, mas publicado em 1704 como apêndice do
seu tratado de óptica, intitulado Opticks.168
Neste trabalho apresentamos alguns apontamentos sobre a obra intitulada
The Method of Fluxions and Infinite Series de 1736 onde Isaac Newton apresenta
seu cálculo de fluxões dando especial ênfase na sua organização com o foco nos
problemas de curvatura e quadratura.

A obra e suas partes

Nem todos os escritos de Newton, dedicados à matemática, foram


publicados em sua época. Muitos deles circularam em forma manuscrita, ou foram

165
Vide, especialmente: Seção I e II, Livro I, em Newton (2008, p. 71-99).
166
Doravante indicada neste texto por De analysi per aequationes infinitas.
167
A versão em latim foi intitulada Methodus fluxionum et serierum initinitarum. Para este
trabalho utilizamos a tradução inglesa que, doravante, será indicada por The Methods of
Fluxions.
168
A esse respeito, consulte Guicciardini (2016, p. 389-394), outras considerações a respeito deste
recorte temporal, podem ser consultadas em Smith (1923, v. I, p. 398-404); sobre a relação
entre as investigações sobre o cálculo de fluxões e a filosofia natural, vide: Westfall (1995, p. 37-
84) e Cohen (2007, p. 1986-2021).

465
parcialmente resumidos em correspondências, e só foram publicados tardiamente.
Dos escritos relacionados ao cálculo de fluxões encontram-se dois que ganham
destaque: De analysi per aequationes infinitas, e The Method of Fluxions.
O primeiro deles foi enviado, em 1699, a Isaac Barrow (1630-1677), que o
encaminhou a John Collins (1625-1683), que lhe deu ampla divulgação. Segundo
Panza (2010), o manuscrito foi composto, provavelmente, com o propósito de
assegurar a sua prioridade sobre a invenção de um método geral de séries infinitas.
De acordo com Whiteside (1968), De analysi per aequationes infinitas foi
impresso tardiamente em 1711 por William Jones (1675-1749) de modo que ele
circulou em forma manuscrita entre um seleto grupo de estudiosos de matemática.
A esse respeito, Cohen (2007) observa que, naquela época, Newton não teve
interesse de imprimi-lo e incorporou as principais partes dele em outro escrito,
intitulado Methodus fluxionum et serierum initinitarum. Compilado por volta de 1671,
esse segundo tratado também não foi impresso até ser traduzido para a língua
inglesa por John Colson (1680-1760) e ser publicado em 1736.
Como podemos depreender pelo frontispício de The Method of Fluxions
and Infinite Series (Figura 1), este tratado foi organizado e publicado por Colson
com o objetivo de utilizá-lo para instruir não só jovens estudantes, mas também
estudiosos de matemática que se dedicavam ao estudo de curvaturas.

466
FIGURA 1: The Method of Fluxions

Fonte: Colson (1736)


O tratado é composto de duas grandes partes, precedidas por uma
dedicatória a Jones e um prefácio. Na primeira parte, Colson publica a tradução
inglesa do manuscrito Methodus fluxionum et serierum initinitarum e, na segunda,
explica cada problema por meio de comentários que são anexados no final da obra
com vistas a esclarecer as dificuldades que possam surgir169. O quadro a seguir
expressa a forma como está composta a obra com mais detalhes.

QUADRO 1 – The Method of Fluxions (1736)

The Method of Fluxions and Infinite Series


Dedication to William Jones Esq; F.R.S. p. iii
PREFACE p. iv
CONTENTS p. xxiv

169
Apenas a primeira parte de The Methods of Fluxions é de autoria de Newton. Desse modo, para evitar
confusões, referenciamos o conteúdo expresso da primeira parte por Newton (1736) e a dedicatória a
William Jones, o prefácio e a segunda parte por Colson (1736).

467
The Introduction, or the Method of refolding complex Quantities p. 1
into Infinite Series of Simple Terms.
Prob. 1 From the given Fluents to find the Fluxions. p. 21
Prob. 2 From the given Fluxions to find the Fluents. p. 25
Prob. 3 To determine the Maxima and Minima of Quantities p. 44
Prob. 4 To draw Tangents to Curves. p. 46
Prob. 5 To find the Quantity of Curvature in any Curve. p. 59
Prob. 6 To find the Quality of Curvature in any Curve. p. 75
Prob. 7 To find any number of Quadrable Curves. p. 80
Prob. 8 To find Curves whose Areas may be compared to those p. 81
of the Conic Sections.
Prob. 9 To find the Quadrature of any Curve affing’d. p. 86
Prob. 10 To find any number of rectifiable Curves. p. 124
Prob. 11 To find Curves whose Lines may be compared with any p. 129
Curve-lines affign’d.
Prob. 12 To rectify any Curve-lines affign’d. p. 134
A PERPETUAL COMMENT upon the foregoing TREATISE. p. 141
I. Annotations on the Introduction; or the Resolution of Equations p. 143
by Infinite Series. (Sect I, Sect II, Sect III, Sect IV, Sect V, Sect VI)
II. Annotations on Prob. 1. or, the Relation of the flowing p. 241
Quantities being given, to determine the Relation of their
Fluxions.
(Sect I, Sect II, Sect III)
III. Annotations on Prob. 2. or, the Relation of the Fluxions being p. 277
given, to determine the Relation of the Fluents.
(Sect I, Sect II, Sect III, Sect IV, Sect V, Sect VI, Sect VII)
Fonte: Colson (1736)

No que diz respeito à primeira parte, Newton apresenta uma introdução


seguida de doze problemas. A esse respeito, Colson observa no prefácio que
podemos convenientemente agrupar esses problemas e dividir o The Methods of
Fluxions em três partes, de tal modo a termos uma visão mais geral da abordagem
matemática dada por Newton:

[...] A primeira será a Introdução, ou o Método de Séries Infinitas. A


segunda é o Método dos Fluxos, propriamente chamado. A terceira
é a aplicação de ambos os métodos a algumas especulações muito
gerais e curiosas, principalmente na geometria das linhas curvas.
(COLSON, 1736, p. xx, tradução nossa)

468
Na primeira parte, Newton apresenta e desenvolve a técnica das séries
infinitas. 170 Na segunda, introduz o conceito de fluxão, resolve problemas dos
máximos e mínimos de uma dada curva e da tangente a uma curva, e outros
relativos à curvatura de uma linha.171 E, na terceira, trata do cálculo de áreas das
regiões planas de uma curva e da medida do comprimento de uma curva.172
Colson (1736) observa, em suas anotações ao Problema 2, que Newton
considerava que a aritmética e a álgebra eram a mesma ciência, “possuindo uma
estrita analogia entre si, tanto em anotações quanto nas operações” (COLSON,
1736, p. 330), de tal modo que a (aritmética) designava o cálculo de uma maneira
definida e particular, e a (álgebra), geral e indefinida, assim juntas, compunham
uma única ciência do cálculo. Em outros termos, para Newton, segundo Colson
(1736), a aritmética e álgebra possuíam forte conexão:

Pois, como na aritmética comum, calculamos pela raiz dez e pelas


várias potências dessa raiz. Assim, em álgebra ou análise, quando
os termos são dispostos em ordem, conforme prescrito, calculamos
por qualquer outra raiz e suas potências, ou podemos usar qualquer
número geral para a raiz de nossa escala aritmética, pela qual
expressar e calcular quaisquer números requeridos. (COLSON,
1736, p. 330, tradução nossa)

Desse modo, na primeira parte, em que Newton trata de séries infinitas, a


aritmética e a álgebra desempenham um papel mútuo, em razão do uso de
polinômios, binômios, extração de raiz e divisão infinita. Assim, a primeira parte,
intitulada “The Introduction, or the Method of refolding complex Quantities into
Infinite Series of Simple Terms”, trata de curvas, expressas algebricamente, que
podem ser reduzidas a séries infinitas. Neste estudo inicial, Newton propõe reduzir
uma expressão algébrica por meio de divisão infinita, polinômios, binômios e
extração de raiz.
Essa parte é finalizada fazendo a passagem do Método das Séries Infinitas
para o Método das Fluxões a partir de uma nova abordagem dada ao cálculo de

170
Vide: “Introduction”, Newton (1736, p. 1-21).
171
Vide: Prob. I a Prob. VI, em Newton (1736, p. 21-80).
172
Vide: Prob. VII a Prob. XII, em Newton (1736, p. 80-140).

469
curvaturas e quadraturas. Denominada de “Transição para o Método de Fluxos”,
essa passagem foi expressa por Newton da seguinte maneira:

Agora resta que, para uma ilustração da Arte Analítica, forneça


algumas amostras de problemas, especialmente como a natureza
das curvas. Mas, primeiro, pode-se observar que todas as
dificuldades destes tipos podem ser reduzidas apenas a esses dois
problemas que proponho, a respeito do espaço descrito por
qualquer movimento local, por mais acelerado ou retardado que
seja. (NEWTON, 1736, p. 19, tradução nossa)

Ou seja, Newton propõe mostrar que os estudos de curvaturas e


quadraturas, que vinham sendo resolvidos por meio de séries infinitas, ganhariam
uma forma mais simples de se resolver. E que os problemas até agora encontrados
sobre curvas e áreas pudessem ser reduzidos a dois problemas do movimento
local. Em outros termos, Newton faz a transição para o método dos fluxos,
apresentando, de forma geral, que o seu princípio fora extraído da mecânica
racional, isto é, da “ciência dos movimentos que resultam de quaisquer forças, e
das forças exigidas para produzir quaisquer movimentos, rigorosamente propostas
e demonstradas” (NEWTON, 2008, p. 14).
Assim, após tratar do método das séries infinitas, Newton propõe dois
problemas (Prob. I e Prob. II) que introduzem o conceito de fluxões abordado na
segunda parte. O primeiro problema é proposto para encontrar a fluxão de uma
dada quantidade, ou, como ele enunciou: “Sendo dada a relação dos fluentes,
encontrar as relações de suas fluxões” (NEWTON, 1736, p. 21, tradução nossa). E,
o segundo, inverso deste, é o método das fluxões, em que propõe determinar o
fluente a partir da fluxão ou de algumas relações que a envolvem. Ou seja, “Sendo
proposta uma equação que exibe a relação das fluxões de quantidade, encontrar
as relações dessas quantidades ou fluentes” (NEWTON, 1736, p. 25, tradução
nossa).
Conforme observa Smith (1923), o primeiro problema se refere à
diferenciação e, o segundo, à integração (o qual Newton denominou de “método da
quadratura”), ou à solução de uma equação diferencial (chamada de “método
inverso das tangentes” por Newton). Com efeito, no primeiro problema, Newton
estabelece que os fluentes são quantidades que sofrem variações de acordo com

470
seu movimento ou fluxo. Assim, as fluxões são as velocidades que são adquiridas
por um corpo através de seu movimento. 173 A relação entre fluentes e fluxões
possibilita, dessa maneira, expressar a natureza de uma curvatura:

[...] Uma linha certa (reta), ou uma linha curva, é descrita pelo
movimento de um ponto, uma superfície pelo movimento de uma
linha, um sólido pelo movimento de uma superfície, um ângulo pela
rotação de um raio; todos os movimentos que podemos conceber
que sejam executados de acordo com qualquer lei declarada,
conforme a ocasião exigir. (COLSON, 1736, p. 235, tradução
nossa)

Em outras palavras, geometricamente, a trajetória é representada por uma


linha e o corpo, por um ponto.174 Entretanto, o movimento de um corpo, além de
descrever uma linha, possui velocidade. Desse modo, a essas velocidades, que
são “quantidades matemáticas”175 adquiridas através dos movimentos dos corpos,
Newton as denominou Fluxões.
No segundo problema, Newton (1736, p. 18) observa que “como este
problema é o inverso do anterior, deve ser resolvido procedendo de forma
contrária”. Assim, ele trata do processo inverso ao primeiro, utilizando as relações
das fluxões para encontrar os fluentes. Estabelece que, ao se obter a relação que
expressa a natureza da curvatura, pode-se obter também a área abaixo dessa
curva. A esse respeito, Boyer (1992) ressalta que:

Os fluentes de Newton, análogos da moderna “integral indefinida”,


eram o que hoje chamaríamos de antiderivadas em relação ao
tempo. Inicialmente Newton usou um pequeno quadrado como seu
símbolo de integração (presumivelmente porque percebia que a
integral determinava uma área), (BOYER, 1992, p. 22).

Isto é, o segundo problema propõe encontrar a área abaixo de uma curva.


Esse método utilizado para encontrar áreas abaixo de curvas é conhecido por
método da quadratura de curvas.176

173
A esse respeito, consulte também: M. E. Baron, H. J. M. Bos (1985, p. 28).
174
A esse respeito, vide também: Roque (2012, p. 337).
175
Newton considera a velocidade como (quantidades matemáticas), isso porque, alguns estudiosos da
época consideravam a velocidade como qualidade relativa ao espaço tempo. A esse respeito vide: Roque
(2012, p. 287-288).
176
A esse respeito vide: M. E. Baron, H. J. M. Bos (1985, p. 34).

471
Uma vez posto e explicitado o método, como podemos observar no quadro
1, os dez problemas subsequentes tratam de sua aplicação ao estudo de
curvaturas, com vistas a determinar os máximos e mínimos, a traçar a tangente e
retificar curvas e quadraturas de curvas. Enfim, as sete seções, distribuídas em três
partes, apresentam anotações em que Colson tece comentários à introdução e aos
dois primeiros problemas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Podemos dizer que The Methods of Fluxions encontra-se organizado de tal


forma a favorecer o ensino da aplicação do método das fluxões para resolver
problemas. A forma em que se encontra sintetizado o método reflete a abordagem
físico-matemática de Newton177, em que fez uso de seu cálculo de fluxões para
estudar fenômenos naturais, que mais tarde serviram também como base para
elaboração de seu tratado de óptica, intitulado Opticks, bem como dos Philosophiae
naturalis principia mathematica de 1687.
Com base nessa primeira leitura, estamos, no momento, investigando
sobre a parte intitulada “Transição para o Método de Fluxos” em que Newton
apresenta uma nova notação matemática a que ele denominou “momento”. Essa
transição parece ser reflexo de um contexto matemático mais amplo, estreitamente
ligado às matemáticas-mistas e à físico-matemática.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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desenvolvimento do cálculo (Unidade 3. Newton e Leibniz). Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1985.

BOYER, C. B. Cálculo - tópicos de história da matemática para uso em sala de


aula. Tradução de Higino H. Domingues. São Paulo: Atual Editora Ltda, 1992, v.
6.

177
A esse respeito vide: (DEAR, 2001, p. 162).

472
COHEN, I. B. Newton, Isaac. In: GILLIESPIE, C. C. (ed.). Dicionário de
biografias científicas. Trad. De C. A. P. et al. Rio de Janeiro: Contraponto, 2007.
v. III, p. 1983-2044.

DEAR, P. Revolutionizing the Sciences: European Knowledge and Its


Ambitions, 1500-1700. 3ª ed, 2001.

GUICCIARDINI, N. A brief introduction to the mathematical work of Isaac Newton.


In: ILLIFIE, R.; SMITH, G. E. (eds.). The Cambridge Companion to Newton. 2ª.
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Paulo: Edusp, 2008, 2 vols.

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the geometry of curve-lines. Tradução de JOHN COLSON. Londres: Cambridge,
1736. Disponivel em:
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em: 7 mar. 2021.

PANZA, M. Das velocidades às fluxões. Scientiae Studia, v. 8, n. 4, 2010, p.


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ROQUE, T. História da matemática: Uma visão crítica, desfazendo mitos e


lendas. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

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and Company, 1923, 2 vol.

WESTFALL, R. S. A vida de Isaac Newton. Trad. V. Ribeiro. Rio de Janeiro:


Nova Fronteira, 1995.

WHITESIDE, D. T. (Ed.) The Mathematical Papers of Isaac Newton.


Cambridge: Cambridge University Press, 1667-1670. 2 v.

473
CONCEPÇÕES FUNDAMENTAIS SOBRE OS QUATERNIONS
HAMILTONIANOS

Rannyelly Rodrigues de Oliveira178


Maria Helena de Andrade179

RESUMO
Este trabalho tem, em seu escopo, a descrição das concepções fundamentais dos
quaternions hamiltonianos. Dessa forma, foi desenvolvida uma historiografia dos
quaternions numa abordagem atualizada da História da Matemática. Essa história foi
derivada de um contexto e uma temporalidade marcada pela discussão da estabilidade dos
fundamentos da Álgebra Clássica e da conceituação dos números negativo e imaginário
considerando, nesse processo, elementos de ordem epistemológica, axiológica, filosófica,
social, dentre outros aspectos. Para isso, foi assumida a seguinte questão norteadora:
quais aspectos preliminares e heurísticos influenciaram o desenvolvimento dos
quaternions hamiltonianos? Diante disso, primeiramente, foram apresentados os aspectos
preliminares pertinentes ao desenvolvimento histórico dos quaternions. Em seguida, foi
feita uma descrição do percurso heurístico realizado por Hamilton durante a construção
dos quaternions. E, finalmente, foi discutida sobre a constituição algébrica quaterniônica e
sua representação institucionalizada. Portanto, compreende-se que os aspectos
contextuais e temporais influenciam na formação do perfil heurístico de um matemático e
no sentido que o corpo científico se institucionaliza. Embora, os tripletos não tenham
alcançado sucesso na tradição extensiva algébrica, a criação dos quaternions traduziu um
estágio de transição na Álgebra possibilitando, assim, o desenvolvimento de outras
álgebras como a não-comutativa. E, a investigação histórica dos quaternions, por meio de
uma releitura e reinterpretação numa perspectiva historiográfica atualizada, oportunizou
explorar os campos epistêmicos do seu desenvolvimento histórico, até então,
desvalorizados.

Palavras-chave: Quaternions. Hamilton. História da Matemática. Historiografia da


História da Matemática.

INTRODUÇÃO

178
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). E-mail: ranny.math.06@gmail.com
179
Secretaria Municipal de Educação de Fortaleza (SME). E-mail: helenaeducadoramat@gmail.com

474
Este trabalho tem o propósito de descrever as concepções fundamentais
dos quaternions hamiltonianos. Para isso, buscou-se aqui discorrer sobre os
quaternions numa abordagem historiográfica atualizada da História da Matemática.
Baseado em Saito (2018), essa perspectiva metodológica-historiográfica atualizada
tem o objetivo de destacar os cenários e contextos, nos quais, ocorreu o
desenvolvimento e a expansão do conhecimento matemático. Assim, será
apresentada uma história dos quaternions oriunda de um contexto e uma
temporalidade evidenciada pela discussão da estabilidade dos fundamentos da
Álgebra Clássica e da conceituação dos números negativo e imaginário
considerando, nesse processo, elementos de ordem epistemológica, axiológica,
filosófica, social, dentre outros aspectos.
Para isso, foi assumida a seguinte questão norteadora: quais aspectos
preliminares e heurísticos influenciaram o desenvolvimento dos quaternions
hamiltonianos? Nesse sentido, vale salientar que, neste artigo, a descrição do
percurso heurístico hamiltoniano foi feita a partir da análise biográfica de William
Rowan Hamilton (1805-1865) baseada no estudo do Dicionário de Biografias
Científicas de Pereira (2007). A realização da historiografia descritiva e
representacional dos quaternions teve como fundamentação os estudos das obras
de Hamilton (1837) e Smith (1929).
Isto posto, este trabalho foi organizado em três seções intermediárias. A
primeira seção versará sobre os aspectos preliminares pertinentes ao
desenvolvimento histórico dos quaternions, marcado pelas ideias revolucionárias
que questionavam a base da Álgebra Clássica estabelecida como única e
verdadeira naquele período. A segunda seção abrangerá a descrição do percurso
heurístico realizado por Hamilton durante a construção dos quaternions. E, a
terceira seção discutirá sobre a constituição algébrica quaterniônica até sua
institucionalização representacional como é conhecida atualmente.

ASPECTOS PRELIMINARES

475
Nesta seção, serão apresentados alguns aspectos preliminares pertinentes
ao contexto relacionado ao surgimento dos quaternions. Vale salientar que
Hamilton, ao desenvolver os quaternions, pretendia romper com os fundamentos
da Álgebra Clássica, para isso, realizando uma extensão algébrica dos números
complexos bidimensionais a dimensões superiores. Esse processo extensivo
causou uma perda das propriedades da Álgebra Clássica oportunizando, assim, a
constituição de outras álgebras. Vale apontar também que, de acordo com Pereira
(2007), o matemático Gauss estudou as estruturas quaterniônicas muito antes de
Hamilton, mas não publicou essas pesquisas. Diferentemente de Gauss, Hamilton
compartilhou seus cálculos quaterniônicos e, por isso, a Álgebra dos Quaternions
faz referência ao seu nome.
No final do século XVIII, a Álgebra era vista como uma aritmética simbólica
que, assim como uma tipologia de linguagem, representava números e suas
operações. Assim sendo, era considerada como uma ciência das magnitudes (das
quantidades). Dessa forma, acreditava-se que a Álgebra era a ciência que
investigava a solução de equações algébricas numa perspectiva de universalidade
aritmética. Além disso, predominava a tradição euclidiana de se diferenciar número
de razão entre grandezas. Não tinha uma definição fechada para os números
negativos e os números imaginários. Numa abordagem resolutiva das equações
algébricas, esses tipos de números geraram resultados relevantes para a ciência,
contudo, representavam um entrave epistemológico na Álgebra surgido a partir da
reflexão: como justificar a existência de objetos algébricos menores do que nada
e/ou que assumam um quadrado algébrico negativo?! (NEVES, 2008).
A extensão conceitual de número foi bastante discutida durante a
construção do corpo teórico da Matemática Pura na Alemanha. Na França, durante
os séculos XVIII e XIX, somente os números absolutos eram entendidos como
objetos matemáticos, todavia, já se vislumbrava a constituição de números
negativos e complexos. Cauchy assumia um conceito de número fundamentado na
diferenciação entre essa conceituação de número e a noção de quantidade. E
Ampère defendia que os números negativos não são essencialmente números
(com significados próprios) e sim quantidades, dessa maneira, quando se associa

476
um sinal a um número absoluto, ele deve ser compreendido como uma quantidade,
de modo que as duas quantidades são iguais quando possuem sinais e valores
numéricos iguais. E as quantidades são opostas quando possuem mesmo valor
numérico e sinais diferentes. (ROQUE, 2012).
Nesse viés, no início do século XIX na Alemanha, alguns matemáticos
acreditavam que o conceito de número deveria ser avaliado sob duas vertentes:
uma relacionada à natureza de número e outra referente à noção de quantidade.
Nesse contexto, destacou-se o astrônomo Gauss que defendia que os números
negativos só podiam ser corretamente interpretados quando se considerava que os
objetos contados podiam ser opostos. O astrônomo explicava que os números não
devem ser estudados apenas pela sua natureza, mas também por estarem
relacionados a outros objetos. (ROQUE, 2012).
Diante do exposto, vale esclarecer que o matemático Gauss foi um dos
principais colaboradores do desenvolvimento da Geometria não-euclidiana e da
Álgebra não-comutativa, as quais marcaram o século XIX como sendo duas
concepções matemáticas revolucionárias, pois questionavam a veracidade dos
fundamentos da Álgebra e Geometria. Contudo, não se pode ignorar a contribuição,
nesse sentido, de Hamilton que, posteriormente a Gauss, defendeu que a
conceituação dos números negativo e imaginário assumiu, a priori, como parâmetro
a concepção da Ciência de Ordem (temporal e espacial) e, portanto, não se
restringiu à Ciência da Magnitude. Essa concepção hamiltoniana impulsionou o
desenvolvimento dos quaternions. (HAMILTON, 1837 & SMITH, 1929).

PERCURSO HEURÍSTICO DE HAMILTON


Os quaternions foram definidos e desenvolvidos, em outubro de 1843, pelo
Matemático e Astrônomo irlandês William Rowan Hamilton que, desde então,
dedicou os últimos 22 anos de sua vida à pesquisa quaterniônica. Por volta de 1820,
Hamilton começou a estudar a obra (os Principia) de Newton o que instigou seu
interesse pela Astronomia. Em 1822, concentrou seus estudos na área da
Matemática, especificamente, sobre propriedades de curvas e superfícies

477
desencadeando, assim, um conjunto de pesquisas sobre sistemas de linhas retas
em um plano. Hamilton ingressou no Trinity College de Dublin em 1823. Em 1827,
foi nomeado Astrônomo Real do Observatório de Dunsink e Professor de
Astronomia da Trinity College.
As duas principais contribuições de Hamilton para a comunidade científica
foram a determinação da função característica, no âmbito da Física com
aplicabilidade na óptica e dinâmica, e a definição dos números hipercomplexos
quaterniônicos que tiveram grande repercussão no contexto da Matemática
Acadêmica. Em 1828, em diversos diálogos com seu amigo John T. Graves,
Hamilton questionava a estabilidade dos fundamentos da Álgebra, em particular, o
que diz respeitava à concepção dos números negativos e imaginários considerados
como elementos essenciais para Álgebra. Contudo, Hamilton defendia a
necessidade de reescrever os princípios lógicos da Álgebra.
Em 1828, foi publicado um trabalho (Treatise on the Geometrical
Representation of the Square Roots of Negative Quantities) de John Warren sobre
quantidades negativas a partir de representações geométricas de raízes
quadradas. Incentivado por Graves, em 1829, Hamilton estudou essa obra, na qual
havia uma descrição do diagrama de Argand, que consistia em um sistema de dois
eixos retangulares, de maneira que, um eixo representava a parte real do número
complexo e outro eixo sua parte imaginária.
Essa representação gráfica designou Hamilton a dois questionamentos: (i)
Seria possível conceber outra representação algébrica de números complexos que
explicitasse todas as suas operações válidas? (ii) Seria possível definir um número
hipercomplexo que esteja associado ao espaço tridimensional assim como o
número complexo usual se relaciona com o plano bidimensional? Hamilton
imaginava que se isso fosse possível, esse número complexo tridimensional
deveria ser uma representação algébrica natural do espaço, em contraposição à
representação arbitrária de coordenadas. (PEREIRA, 2007).
Em busca de respostas, em novembro de 1833, Hamilton desenvolveu na
Real Academia Irlandesa estudos sobre pares algébricos, onde obteve resposta a
sua primeira interrogativa. Esses pares algébricos eram, de fato, pares de números

478
reais, para os quais ele definiu as operações de adição e multiplicação.
Posteriormente, Hamilton demonstrou que esses pares numéricos permitiam a
composição de uma álgebra de divisão associativa e comutativa que obedecia às
regras operacionais dos números complexos.
Em junho de 1835, foi divulgado o segundo trabalho de Hamilton que
também discursava sobre os pares algébricos. Esse trabalho (Preliminary and
elementary essay on álgebra as the Science of pure time) apresentava noções
preliminares e elementares inerentes à álgebra, considerando-a como uma ciência
do “tempo puro”, de modo que os pares eram reconhecidos como as etapas no
tempo. Em 1837, Hamilton reuniu os seus dois primeiros trabalhos em uma única
obra, acrescentando-lhes comentários pormenorizados e a publicou nos
Proceedings of the Royal Irish Academy.
A concepção dos complexos sofreu uma influência filosófica kantiana. Isso
pode ser percebido nas pesquisas gaussianas em 1800, quando Gauss assumiu
um conceito mais independente de número, de maneira que definiu os números
negativos e complexos a partir dos pressupostos defendidos pelo professor
Förstemann, o qual norteava-se pelas ideias propostas por Kant em 1763.
(ROQUE, 2012). De modo semelhante, a concepção hamiltoniana de número
também apresentava traços kantianos. Contudo, em 1830 e 1831, antes de estudar
a ideias de Kant, Hamilton já defendia que a base algébrica deveria estar firmada
no aspecto ordinal dos números e essa ordenação assumia uma fundamentação
intuitiva no tempo. Em 1837, Hamilton concentrou seus estudos na álgebra dos
pares numéricos e na filosofia idealista de Kant. Acredita-se que essa vertente
filosófica reforçou as concepções de Hamilton. (PEREIRA, 2007).
Hamilton pretendia corrigir a instabilidade dos fundamentos lógicos da
Álgebra através do conceito de tempo. Para isso, ele destacava a existência de três
escolas algébricas: prática, filológica e teórica. A primeira compreendia a álgebra
como uma ferramenta para a solução de problemas desenvolvendo, assim, uma
Matemática Aplicada. A segunda tratava a álgebra como uma linguagem peculiar
expressa sob a forma de símbolos matemáticos, sendo assim, uma tipologia de
Lógica Matemática. A terceira escola entendia a álgebra como um conjunto de

479
definições e teoremas sobre os quais se podia refletir e, assim, constituindo a
Matemática Acadêmica.
Hamilton trabalhava no viés da Escola Algébrica Teórica, pois acreditava
que era necessário compreender os significados dos objetos matemáticos e, para
isso, devia analisar além dos signos do formalismo. Assim sendo, usar a intuição
para compreender os números permitiria à Álgebra conquistar um status de ciência.
Numa perspectiva crítica da razão pura, Kant declarou que a ordenação dos
fenômenos no espaço era uma função da mente e, portanto, devia fazer parte do
modo como se percebe os objetos. Todavia, a Geometria era vista como uma
ciência que enxergava a percepção sendo chamada de “ciência do espaço puro”.
Além disso, Hamilton defendia que a intuição da ordem no tempo é muito mais
evidente na mente humana do que a intuição da ordem no espaço. (PEREIRA,
2007).
Pode-se entender que há um conceito intuitivo de tempo puro (matemático),
que é mais significativo do que a organização cronológica de fenômenos
específicos. Essa intuição de tempo matemático é o paradigma do simbolismo
algébrico. Essa concepção intuitiva é extensiva e idêntica à álgebra, conforme a
álgebra se constitui como uma ciência. Hamilton compartilhou essas suas acepções
filosóficas, de que a intuição do tempo era a base da álgebra, com Graves e De
Morgan, porém, recebeu uma reação adversativa. Assim, em 1835, através de uma
carta. Continuou defendendo sua convicção.
Retornando ao segundo questionamento referente à concepção dos
números complexos tridimensionais também chamados de ternos, Hamilton não
obteve sucesso. Pois, ele conseguiu escrever uma representação algébrica para
os números complexos tridimensionais e realizar a operação de adição com eles,
porém, não conseguiu definir a operação de multiplicação entre eles. Com efeito,
13 anos depois que Hamilton morreu, G. Frobenius provou essa impossibilidade
verificando que a álgebra de divisão associativa somente era possível sobre os
números reais, como por exemplo, os próprios números reais, os números
complexos reais e os quaternions reais.

480
Contudo, Hamilton tentou provar que os tripletos satisfaziam à lei dos
módulos, pois para ser considerada como uma álgebra de divisão, os tripletos
deveriam satisfazer a essa lei modular. Hamilton explicava que o módulo de um
número complexo era gerado pela multiplicação entre o número complexo e seu
conjugado. Semelhante à representação algébrica dos números complexos
bidimensionais, os tripletos foram escritos na seguinte forma: x + iy + jz com i² = j²
= –1 e seu módulo como sendo x² + y² + z². Porém, como Hamilton encontrou em
seus cálculos, referentes ao módulo do produto, a soma de quatro quadrados,
então, ele decidiu explorar as propriedades algébricas com representações
quaterniônicas (a + bi + cj + kd) verificando se elas satisfaziam à lei modular.
Nos cálculos dos quaternions, foi constatado que eles não conservam a
propriedade comutativa. Hamilton definiu um produto quaterniônico da seguinte
maneira ij = - ji e, mesmo assim, conseguiu constituir uma Álgebra. O quaternion é
compreendido como uma composição de duas partes: uma real e outra complexa
(vetorial). A multiplicação de dois vetores gera outro número hipercomplexo
composto, também, por duas partes: uma escalar e outra complexa. A parte escalar
do quaternion dificultava a sua representação geométrica, pois necessitava de uma
visualização quadrimensional que assumisse a quarta dimensão como uma
unidade imaginária espacial.

REPRESENTAÇÃO ALGÉBRICA DOS QUATERNIONS


Diante da descrição quaterniônica proposta por Hamilton, existem
trabalhos que universalizaram a representação algébrica dos quaternions. Nesse
sentido, esta seção versa sobre essa representatividade e sua composição
algébrica como uma extensão dos números complexos bidimensionais. Iniciando
com Sangwine, Ell & Biham (2011, p. 608), que apontam os quaternions como
objetos estudados na Álgebra Linear e, por isso, permitem o uso de suas operações
fundamentais: existência das partes vetorial e escalar, representações conjugadas,
semi-normas, produtos internos, dentre outras relações. Os autores organizaram
duas categorias quaterniônicas: os Quaternions, que possuem números reais,

481
como uma extensão ao conjunto dos números Reais e os Biquaternions, com
números complexos, como uma ampliação do conjunto dos números Complexos.
Isto é, o conjunto dos Quaternions é um subconjunto dos Biquaternions
(quaternions complexificados).
A representação inicial de Hamilton para os quaternions era de pares
ordenados de números reais que podiam ser representados geometricamente.
Essa ideia foi inspirada no fato de que os números complexos bidimensionais
podem ser estudados geometricamente com aporte no plano de Argand-Gauss.
Seguindo esse raciocínio de extensão algébrica, Menon (2009, p. 2305-4) explicou
que Hamilton tentou generalizar os números complexos (z=a+bi) em três
dimensões através dos tripletos, porém, não obteve êxito. Os tripletos
complexificados, conhecidos como hipercomplexos, possuem a seguinte forma
algébrica: t=a+bi+cj com a, b, c sendo números reais, sendo i e j as unidades
imaginárias, de modo que satisfazem: i ² = j ² = –1.
O fracasso de Hamilton com os tripletos surgiu diante de um obstáculo
epistemológico oriundo das condições essenciais que fundamentam a Álgebra
Clássica. Nesse caso, essa barreira surgiu no fato de os tripletos não possuírem a
propriedade de fechamento na operação de multiplicação. Diante disso, Hamilton
inseriu uma terceira unidade imaginária em seus cálculos e obteve uma estrutura
matemática com quatro componentes deixando, dessa forma, de ser uma
representação tridimensional para vislumbrar uma representação quadrimensional.
Essa nova estrutura foi denominada por Hamilton de quaternions, os quais
admitiam uma estrutura algébrica fechada (MENON, 2009, p. 2305-4). Pode-se
compreender que os tripletos foram, praticamente, esquecidos durante o processo
de generalização e complexificação algébrica.
Nessa perspectiva de generalização em dimensões superiores, vale saber
que os números complexos bidimensionais são escritos na seguinte forma z=a+bi
onde a, b são números reais. Além disso, eles podem ser organizados em duas
porções: parte real Re(z)= a e parte imaginária Im(z)=b. O conjugado do número
complexo é definido como Zc= a–bi. De modo análogo, para o tripleto t=a+bi+cj
tem-se: parte escalar S(t)=a e parte vetorial V(t)=bi+cj. Seu conjugado seria Tc=a–

482
bi–cj. De acordo com Horadam (1963, 1993) e Sangwine, Ell & Biham (2011), um
quaternion do tipo q=q0.1+q1.i+q2.j+q3.k, onde i, j, k são as unidades imaginárias,
também, pode ser estruturado em dois conjuntos: parte escalar S(q)=q0.1 e parte
vetorial V(q)= q1.i+q2.j+q3.k. Seu conjugado é Qc=q0.1–q1.i–q2.j–q3.k.
Pode-se ver que os números complexos são estudados considerando
sempre suas duas partes (real e imaginária). De modo semelhante, os quaternions
também recebem um tratamento nesse sentido. Halici (2012, 2013) e Oliveira &
Alves (2018) destacam essa descrição reconhecendo essas duas partes como
parte escalar (real) composta por (q0, q1, q2, q3) e parte vetorial constituída pela
base (1, i, j, k) onde i, j, k pertencem ao conjunto dos números Complexos e
satisfazem à (i)²=(j)²=(k)² = i.j.k = –1. Ninahuanca (2015, p.19) explicou que um
quaternion é gerado a partir da soma direta de dois subespaços, ou seja, o
quaternion é a soma de dois conjuntos: conjunto real mais o conjunto vetorial (com
três dimensões). Ou ainda, pode-se compreender que um quaternion é gerado pela
base canônica (1, i, j, k), onde 1=(1,0,0,0), i=(0,1,0,0), j=(0,0,1,0) e k=(0,0,0,1).

QUADRO 1: PRODUTO QUATERNIÔNICO HAMILTONIANO

PRODUTO QUATERNIÔNICO HAMILTONIANO


Vetores 1 i j k
1 1² = 1 1i = i 1j = j 1k = k
i i1 = i i² = – 1 ij = k ik = – j
j j1 = j ji = – k j² = – 1 jk = i
k k1 = k ki = j kj = – i k² = – 1
Fonte: Elaboração dos autores.

No quadro 1, tem-se o produto quaterniônico hamiltoniano descrito por


Horadam (1993), assim, vale evidenciar que: i²=j²=k² = –1, i.j=k=–j.i, j.k=i=–k.j e
k.i=j=–i.k. Ademais, entender a composição algébrica dos quaternions permite
classificá-lo em escalar puro ou vetorial puro. Assim sendo, um quaternion é
puramente escalar quando tem parte vetorial nula, isto é, tem apenas um
subespaço unidimensional. E o quaternion vetorial puro possui somente a parte

483
vetorial, ou seja, com um subespaço vetorial com três dimensões. De modo geral,
os quaternions são somas obtidas entre escalares e vetores usuais de um
subespaço tridimensional. Nesse viés, pode-se imaginar uma representação
quadrimensional para os quaternions, de maneira que, a parte escalar seria uma
quarta dimensão (auxiliar).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pode-se compreender que este trabalho apresentou as principais acepções
que fundamentou o desenvolvimento dos quaternions. Nesse sentido, foram
destacados os aspectos preliminares referentes ao campo da Matemática, marcado
pelas ideias revolucionárias que contestavam os fundamentados da Álgebra
Clássica estabelecida como única e verdadeira naquele período. Além disso, foi
descrito o percurso heurístico de Hamilton em busca dos quaternions. E, por último,
foi descrita a constituição da representação algébrica dos quaternions. Hamilton
pretendia ultrapassar os limites da álgebra clássica e isso efetivou-se quando ele
concentrou suas pesquisas em generalizar a dimensões superiores os números
complexos bidimensionais.
Ademais, pode-se salientar que os aspectos contextuais e temporais
influenciam na formação do perfil heurístico de um matemático e no sentido que o
corpo científico se institucionaliza. Apesar dos números tridimensionais não terem
obtido sucesso na tradição extensiva algébrica, a concepção dos quaternions
representou uma fase transitiva na Álgebra permitindo, assim, o desenvolvimento
de outras álgebras como, por exemplo, a não-comutativa. E, a investigação da
história dos quaternions, através de uma releitura e reinterpretação numa
perspectiva historiográfica atualizada, possibilitou explorar os campos epistêmicos
de seu desenvolvimento histórico, até então, desvalorizados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

484
HALICI, S. On Fibonacci Quaternions. Adv. Appl. Clifford Algebras, 22(2), p.
321-327, 2012.

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Especial Temática: História, Filosofia e Educação Matemática Sinop. Revista
Even. Pedagóg.: v. 9, n. 2 (24. ed.), p. 604-618, 2018.

485
SANGWINE, S. J.; ELL, T. A.; BIHAN, N. L. Fundamental Represantations and
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SMITH, D. E. A Source Book in Mathematics. New York: Dover Publications,


Inc., 1929.

486
CONTRIBUIÇÕES DA ÁLGEBRA DE AL-KHWARIZMI PARA O
ENSINO: um produto educacional

Marlene Gorete de Araújo180


Maria da Conceição Alves Bezerra 181

RESUMO
A Matemática Islâmica vem ganhando destaque, nos últimos tempos, em pesquisas
acadêmicas. Nesta perspectiva, a Álgebra de Al-Khwarizmi enquadra-se como objeto de
pesquisa. Este trabalho tem a pretensão de apresentar um produto educacional
desenvolvido em um Mestrado em Ensino de Ciências Naturais e Matemática, intitulado
por E se o berço da Álgebra fosse islâmico, ela seria terrorista? Este artigo enquadra-se
em uma pesquisa bibliográfica e documental, de caráter qualitativo. Para tanto, são
expostos, ao longo do artigo, os aspectos teóricos que fundamentaram a escrita desse
produto educacional, a descrição das atividades que o compõe, bem como algumas
considerações e orientações acerca da aplicação desse produto educacional. Desse modo,
pode-se constatar o importante papel que o estudo da História da Matemática, bem como
do entendimento que a Álgebra de al-Khwarizmi, traz para o ensino de nível básico e
superior. Por fim, considera-se que o produto educacional ofertou elementos para novas
reflexões acerca da matemática islâmica medieval e da Álgebra de al-Khwarizmi. Além
disso, contribuiu para a discussão e divulgação da Teoria da Objetivação por meio do
princípio do Labor conjunto.

Palavras-chave: Al-Khwarizmi. Álgebra. Matemática Islâmica. Produto


Educacional.

INTRODUÇÃO

As pesquisas na área da educação vêm crescendo no Brasil,


especialmente, nos últimos trinta anos por meio de agências que fomentam à
pesquisa e à formação, como a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de

180
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). marllenearaujo@hotmail.com.
181
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). mcabst@hotmail.com

487
Nível Superior (CAPES). No entanto, pode-se dizer que esse corpo de
conhecimento produzido nessas pesquisas ainda não chegou ao chão da escola,
nem tão pouco impactou, significativamente, o sistema escolar (MOREIRA, 2004).
Uma das ações da CAPES que oportunizou a evolução da pesquisa em
educação no Brasil foi a criação dos Mestrados Profissionais, na modalidade stricto
sensu, em 1995, por meio da Portaria n° 47 que fora, posteriormente,
regulamentada pela Portaria n° 80, do ano de 1998, pelo Ministério da Educação
(LEITE, 2018).
Os Mestrados Profissionais em Ensino surgiram no início dos anos 2000 e
tinham como objetivo preparar o profissional da área docente para o ensino, a
aprendizagem, o currículo e a avaliação, ou seja, para a atuação na escola e no
sistema escolar como um todo, oportunizando, assim, uma evolução do sistema de
ensino, nos diversos níveis de educação do país (MOREIRA, 2004). Desse modo,
a principal característica do Mestrado Profissional em Ensino é capacitar o
profissional da educação para atuar em sala de aula e no sistema educacional,
priorizando os altos padrões técnicos e científicos (MOREIRA, 2004).
Para tanto, ao final do curso de Mestrado Profissional em Ensino, o
mestrando deve apresentar um produto educacional (mídia educacional,
material/protótipo para atividades experimentais, material textual, material interativo
e atividade de extensão) para uso em escolas, preferencialmente públicas, do país,
além de dissertações e artigos de todas as produções ao longo do mestrado.
Ante o exposto, o presente artigo tem como objetivo apresentar um produto
educacional desenvolvido em um Mestrado em Ensino de Ciências Naturais e
Matemática e enquadra-se em uma pesquisa qualitativa, uma vez que busca
priorizar procedimentos descritivos (BORBA, 2004). Para tanto, durante o percurso
metodológico, a pesquisa bibliográfica e a pesquisa documental foram adotadas,
tendo em vista se adequam perfeitamente ao objetivo a ser alcançado.
Destarte, no âmbito das pesquisas com a temática voltada à produtos
educacionais e à Álgebra de al-Khwarizmi, será exposto, no decorrer desse artigo,
os aspectos teóricos que fundamentaram a escrita desse produto educacional, bem

488
como a descrição das atividades que o compõe. Por fim, serão dadas algumas
considerações e orientações acerca da aplicação deste produto educacional.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA DO PRODUTO EDUCACIONAL

Como o produto educacional foi desenvolvido em um mestrado em ensino,


considera-se necessário que este material seja desenvolvido à luz de uma teoria
de ensino e aprendizagem. Desse modo, optou-se pela Teoria da Objetivação (TO),
uma teoria da corrente sociocultural com abordagem semiótica, para o alicerce
teórico desse produto.
De acordo com Radford (2014), a Teoria da Objetivação, que a partir de
agora será chamada apenas de TO, surgiu como uma resposta à necessidade de
(re)pensar o ensino e à aprendizagem de matemática em termos diferentes dos
propostos pelas correntes individualistas, cujo propósito principal era a transmissão
do conhecimento. De acordo com Mogollón (2014), com o surgimento da TO novas
possibilidades de pensar o ensino e a aprendizagem da matemática, bem como o
objetivo da Educação Matemática, foram surgindo (ARAÚJO, 2019).
A TO é considerada uma teoria de ensino e aprendizagem sociocultural,
possuindo uma abordagem semiótica, tendo em vista que os conceitos ontológicos
e epistemológicos que sustentam a teoria podem ser moldados ou transformados
por construções semióticas e conceitos (ARAÚJO, 2019).
A TO possui, como principais categorias, o saber e o conhecimento, a
atividade e o Labor conjunto, o objetivo, objeto e tarefa. O saber, para TO é
teorizado como formas de pensar e agir que foram codificados culturalmente.
Radford (2017a, p. 103) propõe que o saber seja concebido

como un sistema de acciones codificadas culturalmente. Que el


saber sea una codificación cultural de maneras de actuar y hacer
significa que es algo general: no puede reducirse a esta o aquella
secuencia particular de acciones coordinadas con estas o aquellas
piedras. Otra manera de decir esto es que el saber es labor
cristalizada. Podemos pensar en el saber como una forma ideal de
acciones, en oposición a las acciones mismas. El saber como labor
cristalizada o forma ideal va más allá de cada una de sus instancias
o realizaciones concretas (RADFORD, 2017a, p. 103).

489
O saber como definido anteriormente, não se dá a perceber. É uma forma,
uma entidade geral, com formato ideal que habita a esfera da cultura. O saber se
atualiza e se torna perceptível por meio da atividade humana, ou seja, é por meio
da atividade que se produzem subjetividades. Já o conhecimento é o saber que foi
atualizado e que adquiriu uma de suas realizações específicas (ARAÚJO, 2019).
Uma das peculiaridades da TO é que o saber (knowledge) e conhecimento
(knowing) são categorias distintas e não devem ser confundidas, uma vez que
possuem definições diferentes. O saber é uma forma ideal que habita na esfera da
cultura, enquanto que o conhecimento é o saber atualizado que, mediado pela
atividade, assumiu a forma de uma de suas realizações. Radford (2017b) chamou
a atividade em sala de Labor conjunto (ARAÚJO, 2019).
Durante o Labor conjunto o saber se materializa e é apresentado à
consciência. A esse processo de dar-se conta, de tornar-se consciente do saber
em sua forma materializada (conhecimento) é que chamamos de objetivação. O
aprendizado na TO é teorizado em termos de processos de objetivação (ARAÚJO,
2019).
O Labor conjunto é potencializado no trabalho de sala de aula com alunos
em pequenos grupos, nos quais se respeita a ética comunitária e a(o) professora(o)
percorre os grupos e dialoga com aqueles que sentirem ou apresentarem
dificuldade.
Diferente de outras teorias, na Teoria da Objetivação, a aprendizagem
inclui o componente afetivo e emocional. Como posto por Radford (2018, p. 9),

Em TO, as emoções, por exemplo, não são vistas como um


componente adicional do pensamento. Ao contrário, seguindo a
ideia de Vygotsky, consideramos as emoções como uma parte
onipresente do pensamento. Nessa linha de pensamento, as
emoções não são relíquias de nosso passado filogenético que
precisam ser dominadas para pensar corretamente. Emoções são
componentes ontológicos constitutivos de nós, humanos, como
parte da natureza. O afeto, isto é, a capacidade de ser afetado pelas
coisas do nosso ambiente, por outro lado, também faz parte da
nossa constituição humana. (RADFORD, 2018, p. 9)

490
Isso implica que, em vez de considerar o aprendizado como, puramente,
um esforço mental, a TO enxerga que o aprendizado envolve afeições e emoções
de maneiras que afetam profundamente os indivíduos, como seres humanos.
Desse modo, Radford (2018, p. 9) afirma que “é por isso que as salas de aula não
apenas produzem conhecimento, mas também subjetividades”.
A subjetividade, para Radford (2017c), é a atualização ou materialização
em progresso do ser. Por meio da atualização ou materialização, sempre em
andamento, o sujeito torna-se único, concreto, cuja especificidade resulta em um
sujeito reflexivo, que sente e age, sempre tornando-se; um projeto inacabado e sem
fim de vida (ARAÚJO, 2019).
Para a investigação da produção da subjetividade dos alunos em sala de
aula, “a TO recorre à construção teórica de processos de subjetivação: os
processos em que, coproduzindo-se no contexto da cultura e da história,
professores e alunos tornam-se presenças no mundo” (RADFORD, p. 143, 2017c).
Em outras palavras, é por meio da subjetivação que nos afirmamos “como projetos
únicos de vida, como subjetividades em curso (subjects in the making)”
(RADFORD, p. 147, 2017c).
O ser que é enfatizado na TO gira em torno de uma Ética Comunitária, que
é direcionada pela responsabilidade, compromisso e cuidado com o outro. As
formas éticas de colaboração humana

[...] são motivadas por uma atitude geral em relação ao mundo e


servem para configurar o trabalho conjunto entre professores e
alunos em sala de aula (Radford, 2014). Essas formas críticas e
ético-comunitárias de se relacionar com os outros apagam os
limites que separam os professores dos alunos. Professores e
alunos trabalham juntos como um. A sala de aula é apresentada
como um espaço público para debates em que os alunos são
incentivados a mostrar abertura para com os outros,
responsabilidade, solidariedade, cuidado e consciência crítica.
(RADFORD, 2018, p. 19)

De fato, a sala de aula é um espaço em que professores e alunos podem


fazer-se e tornar-se presentes no mundo. Ou melhor, é na sala de aula que se dá
o encontro, a dissidência e subversão, onde professores e alunos tornam-se

491
indivíduos particulares no mundo, que se preocupam uns com os outros, que se
envolvem e mutuamente se transformam, sonham, aprendem, sofrem e esperam
juntos (RADFORD, 2018).
A responsabilidade, o compromisso e o cuidado com o outro são três
atributos indispensáveis para a Ética Comunitária; tais atributos moldam o Labor
conjunto no qual a aprendizagem acontece e delineia o modo de ser que tenta “se
opor à forma utilitarista em que o indivíduo é promovido nas formas capitalistas de
produção transpostas para a escola, que concebe o estudante como proprietário
privado e produtor de seu próprio conhecimento” (RADFORD, 2017c, p. 160-161).
Para organização do Labor conjunto, os alunos trabalham em pequenos grupos de
três.
Em síntese, a TO baseia-se na ideia fundamental de que o aprendizado é
conhecer (objetivação) e tornar-se (subjetivação). Por isso, o aprendizado não pode
ser limitado ao eixo do conhecimento, devendo abordar o eixo do ser: o eixo dos
sujeitos. A Teoria da Objetivação considera o objetivo da Educação Matemática
como um esforço dinâmico, histórico, social, político e cultural que busca a criação
dialética de assuntos reflexivos e éticos que estão, criticamente, posicionados em
discursos e práticas matemáticas constituídas historicamente e culturalmente,
discursos e práticas que estão em constante evolução (ARAÚJO, 2019).

DESCREVENDO O PRODUTO EDUCACIONAL

Com o título E se o berço da Álgebra fosse islâmico, ela seria terrorista? O


produto educacional em questão foi elaborado pela primeira autora, com o objetivo
de apresentar ao professor em formação inicial e/ou continuada o personagem
histórico islâmico al-Khwarizmi, que viveu na transição dos séculos VIII-IX d. C, sua
obra mais conhecida, a Álgebra, e o contexto histórico e cultural em que ele viveu
e produziu sua obra. Embora seja relativamente fácil encontrar textos na internet
que falem sobre essa temática, muitas vezes, tais informações apresentam-se de
forma superficial. Desse modo, este produto educacional pretende tornar acessível

492
ao professor um texto mais circunstanciado que dê cabo das informações sobre o
contexto histórico, político e social em que viveu al-Khwarizmi, sobre o lugar onde
ele produziu suas obras, assim como sobre sua obra matemática propriamente dita.
O produto educacional é uma proposta interativa e por isso, foi elaborado
em formato de e-book. Nessa perspectiva, o e-book foi dividido em três capítulos.
A primeira parte destina-se a apresentação do contexto histórico, político e social
do mundo islâmico. A segunda parte propõe-se a apresentar aos leitores o
estudioso islâmico al-Khwarizmi. Por fim, a terceira parte refere-se à descrição da
Álgebra de al-Khwarizmi.
O e-book possui 29 páginas, as quais estão distribuídas entre textos sobre
a temática, mapas, figuras, atividades, tarefas e sugestões de leituras
complementares. A configuração do material está organizada dessa forma com
intuito de promover a interatividade almejada.
De modo geral, o quadro 1 apresenta uma síntese da estrutura desse
produto educacional em uma abordagem histórica.

QUADRO 1 – ESTRUTURA DO PRODUTO EDUCACIONAL E OBJETIVOS DAS


TAREFAS

493
Fonte: Elaborado pelas autoras (2020).

Partindo para o detalhamento do conteúdo propriamente dito desse produto


educacional, a atividade presente no primeiro capítulo consiste na realização da
leitura e interpretação de dois textos e dois mapas. Desse modo, o primeiro texto,
intitulado Árabes, islâmicos e muçulmanos tem o objetivo de explicar e diferenciar
esses três termos que, em diversas ocasiões, são confundidos e mal

Quantidade Objetivos das tarefas para o


Título do capítulo
de tarefas aluno/leitor

Compreender o contexto histórico,


O contexto islâmico político e social em que se
2
medieval desenvolveu a Álgebra de Al-
Khwarizmi.
Conhecer o estudioso islâmico
medieval, Abu Jafar Muhammad ibn
Musa al-Khwarizmi bem como suas
O estudioso islâmico al-
1 contribuições para o
Khwarizmi
desenvolvimento dos conhecimentos
científicos ao longo de sua
existência.
Conhecer, de modo geral, a Álgebra
de al-Khwarizmi. Compreender por
qual motivo al-Khwarizmi escreveu
esse trabalho. Conhecer o conteúdo
Folheando o livro
2 matemático que é abordado ao longo
Álgebra de al-Khwarizmi
desse tratado. Identificar algumas
características importantes e
peculiares da Álgebra de al-
Khwarizmi.
compreendidos. Como tarefa para essa atividade, é pedido que o aluno/leitor
explique o sentido dos termos islã, islâmico, islamismo e a faça diferenciação dos
termos árabe, islâmico e muçulmano. Para finalização dessa tarefa, é apresentado
um exemplo local da utilização de termos semelhantes a estes.
O texto dois da primeira atividade, com o título O mundo islâmico medieval
e a ciência nele produzida tem por objetivo apresentar o mundo islâmico, dando

494
ênfase a Maomé, aos três primeiros califados – o Califado Ortodoxo, o Califado
Omíada e o Califado Abássida – e as principais produções intelectuais
desenvolvidas durante esses três califados. Para a realização das tarefas
relacionadas a esse texto, dois mapas são necessários. O primeiro mapa diagrama
a expansão do Islã entre os anos de 632 a 750 e segundo retrata a expansão do
Islã durante os anos de 750 a 1700. Desse modo, a segunda tarefa do capítulo
consiste em localizar, nos mapas apresentados, os lugares expostos ao longo do
texto dois, usar o Google Maps para encontrar as coordenadas geográficas dos
lugares descritos do texto e conhecer melhor a cidade de Meca a partir da sua
coordenada (21° 25' 35 N 39° 49' 32 E), cidade esta que é considerada sagrada do
Islã.
A atividade do segundo capítulo consiste na realização da leitura do texto
três, O sábio islâmico al-Khwarizmi. Este texto objetiva apresentar al-Khwarizmi e
suas duas principais obras. A tarefa três, referente a esse texto, busca explicar os
termos abu, ibn e al que estão presentes no nome de al-Khwarizmi (Abu Jafar
Muhammad ibn Musa al-Khwarizmi). Além disso, a tarefa busca fazer uma reflexão
a partir do termo estudioso árabe empregado à al-Khwarizmi, objetivando fechar a
conclusão de que esse termo é empregado de forma incorreta uma vez que esse
estudioso não é árabe e sim islâmico. Por fim, a última parte dessa terceira tarefa
abarca uma reflexão sobre as diferentes formas de se escrever o nome al-
Khwarizmi.
Para finalizar, a terceira atividade, referente ao capítulo três refere-se a
leitura de mais dois textos e recortes do livro Álgebra de al-Khwarizmi. Destarte, o
texto quatro, a Álgebra de al-Khwarizmi, objetiva expor o conteúdo apresentado
nesse tratado algébrico. Como forma de exercitar o exposto nesse texto, a tarefa
quatro foi idealizada. Desse modo, essa tarefa busca fazer uma reflexão a respeito
do motivo pelo qual al-Khwarizmi escreveu esse tratado e o termo al-jabr presente
ao longo dele. Além disso, essa tarefa tem o intuito de descobrir se o leitor/aluno já
havia estudado ou ouvido falar sobre essa obra matemática.
O texto cinco, intitulado Um exemplar do livro Álgebra de al-Khwarizmi,
presente na terceira atividade, tem por objetivo apresentar o exemplar, El libro de

495
Álgebra de Mohammed Ibn-Musa al-Jwarizmi, que foi utilizado para produção desse
produto educacional. Esse livro apresenta uma tradução da Álgebra de al-
Khwarizmi e fora traduzido por Ricardo Moreno Castillo (2009). A última parte dessa
atividade destina-se a leitura de algumas páginas da Álgebra de al-Khwarizmi
traduzida por Castillo (2009). O objetivo dessa leitura é identificar algumas
características e particularidades da escrita de al-Khwarizmi.
Como forma de conclusão à atividade três, a quinta e última tarefa é
lançada. Para realização dessa tarefa, a leitura das páginas 23, 25, 27, 29 e 31 do
livro de Castillo (2009) é imprescindível. Desse modo, a quinta tarefa pretende fazer
com que o leitor/aluno identifique os motivos pelos quais al-Khwarizmi escreveu
esse tratado, quais as principais características apresentadas na escrita de al-
Khwarizmi, como era a linguagem utilizada naquela época e como as ideias eram
expressadas por esse autor.
Diante do exposto, se faz necessário ressaltar que no início de todas as
atividades são apresentadas leituras complementares. Além disso, é informado que
os leitores/alunos estão livres para buscarem fontes de referências como internet,
livros e dicionários.

RECOMENDAÇÕES DIDÁTICAS PARA APLICAÇÃO DO PRODUTO


EDUCACIONAL

O e-book foi elaborado, como posto anteriormente, para ser uma proposta
interativa, permitindo uma leitura individualizada desse material. Todavia, ao ser
usado em uma sala de aula, seria mais recomendável sua leitura e discussão sob
a forma de Labor conjunto, que é a proposta didática da Teoria da Objetivação,
teoria essa que defende a ruptura do ensino individualista.
Para aplicação desse produto o Labor conjunto se faz necessário pois, por
meio dessa metodologia, os indivíduos produzem conhecimento e se coproduzem,
de maneira que não há uma hierarquia entre alunos e professores (RADFORD,

496
2014). Sendo assim, os alunos e professores trabalham em conjunto, com a
finalidade de conseguirem produzir e reproduzir conhecimento.
Objetivando que o Labor conjunto aconteça de forma eficaz, quando o
produto for aplicado em sala de aula, algumas orientações fazem-se necessárias:
1 – As atividades e tarefas devem ser, preferencialmente, desenvolvidas em
pequenos grupos, para que todos os integrantes participar dos debates/discussões
que possam gerar, evitando assim o individualismo;
2 – Os textos devem ser lidos em grupo, incentivando o trabalho colaborativo
e a ajuda mútua entre seus integrantes;
3 – Primeiramente, as tarefas devem ser discutidas em seus pequenos
grupos. Depois disso, é orientado que a discussão seja aberta para o grande grupo,
com a intenção de que todas as ideias extraídas dos textos, mapas e figuras sejam
conhecidas; e
4 – Antes de iniciar a aplicação do produto é importante que o professor
mediador dessa aplicação oriente que todos os integrantes, em todos os momentos
das atividades e tarefas, respeitem a ética comunitária, de modo que todos se
escutem e se respeitem, independentemente da ocorrência de divergência de
ideias.
Dadas as recomendações, é importante frisar que o produto educacional E
se o berço da Álgebra fosse islâmico, ela seria terrorista? está disponível no site do
Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências Naturais e Matemática,
podendo ser acessado através do seguinte endereço eletrônico:
http://www.posgraduacao.ufrn.br/ppgecnm. Por meio desse acesso, o interessado
tem a opção de fazer o download do e-book ou realizar a impressão do mesmo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O produto educacional aqui apresentado, como posto anteriormente, foi


elaborado durante o Mestrado Profissional em Ensino de Ciências Naturais e
Matemática, ofertado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

497
desde 2002. Programa esse, que por sinal, foi o primeiro programa em ensino do
Nordeste do Brasil.
Os resultados obtidos ao longo do estudo para elaboração deste produto
educacional e da dissertação ao qual ele está vinculado mostram o importante
papel que o estudo da História da Matemática, bem como do entendimento que a
Álgebra de al-Khwarizmi, traz para o ensino de nível básico e superior.
Por conseguinte, o produto educacional aqui apresentado possui o
potencial de disseminar a história islâmica medieval, estando centrado no
personagem islâmico al-Khwarizmi e em seu trabalho, importantíssimo, para o
desenvolvimento algébrico, a Álgebra de al-Khwarizmi (ARAÚJO, 2019).
Por meio desse produto, pôde-se desconstruir algumas ideias a respeito da
utilização da História da Matemática em cursos de formação inicial e continuada,
uma vez que, alguns cursos sobre essa temática, focam, apenas, na matemática
propriamente dita. No entanto, de acordo com a historiografia atualizada e com as
ideias de Radford (2008, 2016), o contexto em que a matemática estava inserida
deve ser valorizado (ARAÚJO, 2019).
Considera-se que o produto educacional ofertou elementos para novas
reflexões acerca da matemática islâmica medieval e da Álgebra de al-Khwarizmi.
Além disso, contribuiu para a discussão e divulgação da Teoria da Objetivação por
meio do princípio do Labor conjunto, prática educativa essa que considera a
participação ativa do estudante, por meio de debates e discussões (ARAÚJO,
2019).

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KHWARIZMI: contribuições da álgebra para o ensino. 2019. 141 f. Dissertação
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mathematics: Approaches and issues. Switzerland: Springer, 2016. p. 31-41.

500
INSTRUMENTOS MATEMÁTICOS CONTIDOS NO TRATADO DE EDMUND
GUNTER (1623)182

Andressa Gomes dos Santos183

RESUMO
No século XVII, na Inglaterra, foram elaborados diversos tratados que continham
instrumentos matemáticos. Um dos tratados produzidos, nessa época, foi intitulado como
The description and vse of the Sector, the Crosse-staffe, and other instruments…, de
autoria de Edmund Gunter (1581 - 1626), publicado, em sua primeira versão, em 1623, em
Londres. Este estudo contém quatro instrumentos: o Setor, o Cross-staff, o Cross-bow e o
Quadrante, em que o autor descreve sobre suas construções e usos. Assim, este artigo
toma como foco esse documento original de Edmund Gunter e objetiva apresentar o tratado
no que se refere à sua constituição e os instrumentos que estão inseridos nele. Dessa
maneira, como base metodológica, o artigo se sustenta em uma pesquisa documental. O
corpo deste estudo está dividido em duas partes: a primeira retrata a estrutura do tratado
e a segunda aborda os instrumentos que estão contidos nele. Desse modo, são expostos
os aspectos da obra, no que diz respeito à sua estrutura e uma breve descrição sobre os
instrumentos que estão dispostos nela.

Palavras-chave: Instrumentos matemáticos. Edmund Gunter. História da


matemática.

INTRODUÇÃO
O estudo de tratados matemáticos está presente em diversas pesquisas
nos últimos anos184. Isso decorre de pesquisas realizadas no âmbito de interface
entre história e ensino, em uma perspectiva historiográfica atualizada, que tem

182
Estudo orientado pela professora doutora Ana Carolina Costa Pereira, docente da Universidade
Estadual do Ceará (UECE).
183 Instituo Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE).

andressa.gomes.santos06@aluno.ifce.edu.br.
184Batista (2018); Pereira e Saito (2019); Alves (2019); Albuquerque (2019) e Santos e Pereira
(2020).

501
como opção utilizar um documento histórico para estudar possibilidades que
possam ser incorporadas ao ensino de matemática.
Vistas a importância e a expressividade de pesquisas no âmbito de aliança
entre história e ensino de matemática, por meio de um documento histórico, é
abordado, neste artigo, o tratado The description and vse of the Sector, the Crosse-
staffe, and other instruments…, de autoria de Edmund Gunter185, publicado no ano
de 1623, em Londres.
Esse tratado é voltado para os estudiosos de matemática prática do século
XVII. Dessa forma, conta com quatro instrumentos: Setor, Cross-staff, Cross-bow e
Quadrante, os quais serão abordados neste estudo, assim como a estrutura do
documento histórico.
Assim, neste trabalho, objetiva-se apresentar o tratado no que se refere à
sua constituição e os instrumentos que estão inseridos nele. Para isso, utiliza-se
uma pesquisa documental que se apropria de “[...] documentos que não sofreram
tratamento analítico, ou seja, que não foram analisados ou sistematizados”
(KRIPKA; SCHELLER; BONOTTO, 2015, p.57).
Destarte, a próxima sessão apresenta o tratado que está sendo estudado,
suas partes e uma breve descrição delas. Em seguida, são expostos os
instrumentos contidos na obra e é feito um breve panorama sobre eles.

O TRATADO THE DESCRIPTION AND VSE OF THE SECTOR, THE CROSSE-


STAFFE, AND OTHER INSTRUMENTS…

O tratado de Edmund Gunter, The description and vse of the Sector, the
Crosse-Staffe, and other instruments, for such as are studious of Mathematicall
practise, teve sua primeira edição publicada em Londres, no início do século XVII,
especificamente, no ano de 1623, impresso por William Jones e vendido por
Edmund Weaver. Outras edições foram publicadas em 1624 e 1636, por exemplo.

185
Para mais informações sobre o autor, consulte os estudos de Pepper (1981) e Ward (1740).

502
Entretanto, manuscritos, em latim, sobre o Setor já circulavam na Inglaterra 16 anos
antes da publicação de 1623186.
Nesse tratado, Gunter (1623) traz a descrição de quatro instrumentos: o
Setor, o Cross-staff, o Cross-bow e o Quadrante, que incorporam conceitos
matemáticos e eram utilizados para resolução de problemas práticos. Esse fato
pode ser notoriamente observado no frontispício (Figura 1) do documento, no qual
encontram-se os instrumentos estudados e a indicação do público-alvo, ou seja,
“para aqueles que são estudiosos de matemática prática” (GUNTER, 1623,
Frontispício).

FIGURA 1: FRONTISPÍCIO ADAPTADO GUNTER (1623)

CROSS-STAFF
SETOR

CROSS-BOW
QUADRANTE

Fonte: Adaptado de Gunter, 1623, frontispício.

A edição de 1623 do tratado está dividida em duas partes, em que Gunter


traz, na primeira, a descrição e o uso do instrumento Setor e, na segunda parte, o
autor se atenta à descrição e ao uso do Cross-staff. Além disso, em dois apêndices
dessa parte, Gunter (1623) trata sobre mais dois instrumentos, o Cross-bow e o
Quadrante.

186 Vide: Hudson (1946) e Cotter (1981).

503
A primeira parte do tratado está dividida em três livros, cujo primeiro livro
trata da descrição do Setor, da fabricação e do uso geral do instrumento. No
segundo livro do Setor, é apresentado o uso de algumas escalas específicas,
chamadas de escalas circulares. No último livro desse instrumento, o autor traz o
uso das escalas particulares do Setor.
A segunda parte do tratado está dividida em três livros, a qual trata do
instrumento Cross-staff. No primeiro livro, Gunter (1623) descreve as partes que
compõem o Cross-staff, a construção das escalas que estão inscritas no
instrumento e seus usos. No segundo livro, são apresentados usos diversos para
as escalas das proporções e o autor traz um apêndice com outro instrumento
chamado Cross-bow. No último livro, o autor faz um aprofundamento do uso das
escalas das proporções para desenhar as linhas das horas em todo tipo de plano.
Nesse livro, também é mostrado outro instrumento, o Quadrante, trazido como
apêndice.
A seguir, é apresentada uma breve descrição dos quatro instrumentos
contidos no tradado: o Setor; o Cross-Staff; o Cross-bow e o Quadrante. O intuito é
mostrar um estudo preliminar sobre esses instrumentos.

UMA BREVE DESCRIÇÃO DOS INSTRUMENTOS MATEMÁTICOS CONTIDOS


NO TRATADO

No tratado, encontra-se quatro instrumentos, conforme foi mencionado


anteriormente, em que Gunter (1623) apresenta a descrição e o manuseio de cada
um. Esses aparatos eram utilizados para diversos fins, dentre eles, a realização de
cálculos como multiplicação e divisão, a obtenção de ângulos, medida de
distâncias, alturas e para a localização no mar a partir das estrelas.

Setor

504
O primeiro instrumento matemático, apresentado por Gunter (1623), é o
Setor, cujo autor traz sua descrição e seu uso em três livros da primeira parte,
estando localizado nas páginas 1 a 143. Por definição,

O Setor, em geometria, é uma figura composta por duas linhas retas


contendo um ângulo no centro e a circunferência assumida por eles.
Este instrumento geométrico com duas pernas, contendo toda a
variedade de ângulos, e a distância dos pés, representando as
subtensas da circunferência, é, portanto, chamado pelo mesmo nome
(GUNTER, 1623, p. 1, tradução nossa).

Dessa maneira, o autor define o que é o instrumento, o qual é composto


por pernas (legs), que são as hastes móveis e a distância entre elas corresponde
às subtensas da circunferência, que fica na extremidade do instrumento, para que
haja essa movimentação com as partes para obtenção de ângulos. Na Figura 2,
que se encontra na folha posterior ao frontispício do tratado da versão de 1623, é
informado que o Setor foi confeccionado, em latão, por Elias Allen (1588 – 1653) e,
em madeira, por John Thompson (?), trazendo os endereços de suas oficinas187.

FIGURA 2: SETOR DE GUNTER

Fonte: Gunter, 1623, s/p.

“These instruments are wrought in brasse by Elias Allen dwelling without Tempel barre over
187

against St Claments Church:and in wood by John Thompson dwelling in Hosiar lane” (GUNTER,
1623, s/p).

505
No primeiro livro, Gunter (1623) traz a descrição do Setor, composto por 12
escalas dispostas nas hastes móveis, das quais sete são escalas gerais e as outras
cinco são particulares (Quadro 1).

Quadro 1: Síntese das 12 escalas inscritas no Setor


AS 12 ESCALAS
Escala de linha
Escala de superfícies
Escala de sólidos
SETE ESCALAS
Escala de senos e cordas
GERAIS
Escala de tangentes
Escala de secantes
Escala meridiana
Escala de quadratura
Escala de segmentos
CINCO ESCALAS Escala de corpos inscritos na mesma
PARTICULARES esfera
Escala dos corpos equacionados
Escala de metais
Fonte: Elaborado pela autora (2020).

As sete escalas, denominadas por Gunter (1623) como gerais, envolvem a


escala de linha, superfície, sólidos, senos e acordes, tangentes, secantes e
meridiana. As quatro primeiras são traçadas a partir do centro até o fim das pernas
do instrumento, que não tem um comprimento padrão e são inscritas em ambas as
pernas do instrumento. As outras três escalas são inscritas no lado do Setor por
serem linhas infinitas.
No que se refere às cinco escalas particulares inscritas no Setor, Gunter
(1623) as denomina de escala de quadratura, segmentos, corpos inscritos na
mesma esfera, corpos equacionados e metais. Elas ficam inscritas entre as escalas
gerais no instrumento e o autor adiciona mais uma escala nele, como “restam as

506
arestas no Setor, em uma coloquei uma escala de polegadas, que corresponde a
doze partes de um pé inglês. Na outra, uma escala menor de tangentes, na qual o
gnômon é raio” (GUNTER, 1623, p. 3, tradução nossa).
É importante mencionar que Gunter (1623) somente indica o material
utilizado para a confecção do Setor, ou seja, de latão ou de madeira, ele não
esclarece as medidas do Setor, entretanto, o texto deixa subtendido, pois afirma
que “[...] isso é bem conhecido do artesão” (GUNTER, 1623, p. 3, tradução nossa).
Em seguida, ainda, no primeiro livro sobre o Setor, ele faz um apanhado de
como desenhar cada escala que compõe o instrumento e como utilizá-lo de acordo
com algumas escalas. Ressalta-se que o manuseio do Setor requer o uso do
compasso para a efetuação das operações matemáticas envolvidas.
No segundo e terceiro livro sobre esse instrumento, Gunter (1623) descreve
o manuseio de todas as escalas distribuídas no Setor e especifica o uso de cada
uma, trazendo exemplos de situações para a utilização de todas as escalas. Logo
depois, Gunter (1623) apresenta outro instrumento, denominado Cross-Staff.

Cross-staff

A parte que trata do Cross-staff começa na página 1 e termina na página


206. No primeiro livro que trata sobre o Cross-staff (Figura 3), Gunter (1623)
descreve as partes do instrumento, a construção das escalas e traz uma breve
utilização de cada uma delas. Ele começa ressaltando que as partes do instrumento
são cinco: o cross; o staff e três miras que correspondem a pedaços finos de latão
no extremo e no meio do cross.

FIGURA 3: CROSS-STAFF

507
Fonte: Gunter, 1623, p. 9.

Gunter (1623) fez um staff para seu próprio uso com o comprimento de uma
jarda completa, para que esta possa servir de medida. E o cross, desse staff, ele
construiu com o comprimento de 26 polegadas e um quinto entre as duas miras
externas.
Já no que se refere às escalas, as que estão inscritas no staff são de quatro
tipos (Quadro 2): “uma delas serve para medir e prolongar, uma para observação
de ângulos, uma para o mapa do mar e as quatro outras para trabalhar proporções
de vários tipos” (GUNTER, 1623, p.1, tradução nossa). O autor divide cada escala
de acordo com sua finalidade e construção no staff.

508
Quadro 2: Escalas inscritas no staff
Local de
Tipo de escala Escalas inscrição no
instrumento
Medir e prolongar Escala das polegadas Staff
Observação de
Escala das tangentes Staff
ângulos
Mapa do mar Escala do meridiano Staff
Escala dos números
Escala das tangentes
Proporções artificiais Staff
Escala dos senos artificiais
Escala dos senos versados
Fonte: Elaborado pela autora (2020).

Gunter (1623) não classifica as escalas que são inscritas no cross, ele
apenas ressalta que são cinco escalas, algumas usadas juntamente com as
escalas que estão inscritas no staff (Quadro 3).

Quadro 3: Escalas inscritas no cross


Local de inscrição no
Escalas
instrumento
Escala das polegadas Cross
Escala da tangente de 20 Cross
Escala da tangente de 30 Cross
Continuação da escala meridiana Cross
Escala das cordas Cross
Fonte: Elaborado pela autora (2020).

Percebe-se que algumas escalas são inscritas somente no cross e outras


somente no staff. Em particular, as escalas das proporções desenvolvidas por

509
Gunter, inscritas no staff, posteriormente, passaram a ser chamadas de escalas de
Gunter, muito abordadas em tratados do século XVII.
Depois da descrição das escalas, ainda no primeiro livro, Gunter (1623)
relata como utilizar cada uma delas. Já no segundo livro do Cross-staff, o autor
enfatiza a manipulação das escalas das proporções, focando em usos específicos.
O autor também traz um apêndice, nesse livro, que descreve outro instrumento,
chamado de Cross-bow e indica como fazer a utilização desse artefato.

Cross-bow

No apêndice do segundo livro do Cross-staff, que apresenta alguns usos


para as escalas das proporções, Gunter (1623) apresenta um instrumento chamado
Cross-bow (Figura 4), que tem a forma de um arco cruzado e era utilizado na
navegação para encontrar latitudes.

FIGURA 4: CROSS-BOW

Fonte: Gunter, 1623, p. 79.

Nesse apêndice, o autor mostra como construir as escalas do instrumento


e como fazer a manipulação do mesmo. Na parte da construção das escalas, o
texto não especifica o tamanho do semidiâmetro (raio) para a construção do
instrumento, em que Gunter (1623, p. 79, tradução nossa) descreve:

No centro A e no semidiâmetro AB, descreva um arco de um círculo


SBN. O mesmo semidiâmetro detonará 60 graus de B a S para o
extremo sul e outros 60 graus de B a N para o extremo norte do

510
arco, então todo o arco conterá 120 graus a terceira parte de um
círculo. Portanto, seja dividido em tantos graus e cada grau
subdividido em seis partes, para que cada parte possa durar 10
minutos, mas deixe que os números definidos sejam de 5, 10, 15 a
90 graus e então seja novamente de 5, 10, 15 a 25, para que 55
caiam no meio, como na Figura [4].

Assim, o instrumento é composto pela terceira parte de um círculo de raio


AB e marcado em 120 graus. Cada grau é dividido em 6 partes, para que cada uma
dessas divisões tenha 10 minutos. A metade dessa terça parte de círculo é marcada
com o grau 55. Gunter (1623) afirma que, além da marcação dos graus, pode-se
marcar, no instrumento, os dias do ano a partir da inclinação do sol. Isso é possível
associando a inclinação do sol com o dia do ano.
É concebível fazer essa mesma associação da inclinação com os graus do
instrumento e com as estrelas, mas Gunter (1623) cita que só é possível até o ano
de 1670. Em seguida, ele traz diversas inclinações de estrelas em uma tabela e a
correspondência em graus no instrumento.
Depois de apresentar vários graus no instrumento para encontrar uma
determinada estrela, Gunter (1623) apresenta o manuseio desse instrumento em
situação diferente: como o dia do mês sendo conhecido para encontrar a declinação
do sol ou com a inclinação sendo dada para encontrar os dias do mês.
Após a descrição e uso desse instrumento, o autor dispõe o terceiro livro
do Cross-staff, em que ele mostra o uso da escala dos números, seno e tangentes
para o desenho da linha das horas em todos os tipos de planos e traz um apêndice
com outro instrumento, denominado Quadrante.

Quadrante

O último instrumento descrito por Gunter, em The description and vse of


the Sector, the Crosse-staffe, and other instruments…, é apresentado em um
apêndice no último livro do Cross-staff e é o chamado de Quadrante (Figura 5).

511
FIGURA 5: QUADRANTE

Fonte: Gunter, 1623, p. 188.

Gunter (1623), depois de apresentar 10 diferentes planos no começo do


terceiro livro, que contempla vários usos para as linhas dos números, senos e
tangentes, traz, no apêndice desse livro, algumas conclusões para esses planos
com o auxílio do Quadrante.
Esse instrumento é composto por um quarto de círculo, em que Gunter
(1623) justifica o nome do instrumento a partir da sua construção e descreve as
escalas que são inscritas no instrumento. Ele divide o Quadrante em vários
semidiâmetros (raios) para a construção de outras linhas.
Após a descrição de todas as escalas do Quadrante, Gunter (1623) explora
a manipulação desse instrumento, por exemplo, como posicioná-lo para saber a
altitude do sol, da lua e das estrelas. Ele destaca que, para o manuseio do
Quadrante, é necessária a utilização de um prumo.
Assim, Gunter (1623) finaliza o tratado com a exposição dos quatro
instrumentos, suas respectivas escalas, suas descrições e como fazer o manuseio
de cada um desses artefatos.

CONCLUSÕES

Conclui-se que, diante da temática envolvendo instrumentos matemáticos


em pesquisas sobre esse assunto, o estudo do tratado, intitulado The description

512
and vse of the Sector, the Crosse-staffe, and other instruments…, de Edmund
Gunter, publicado em 1623, torna-se importante para ser uma opção a ser inserida
no ensino de matemática, mediante um estudo mais aprofundado no que se refere
aos instrumentos e aos conhecimentos que eles mobilizam.
Dessa maneira, foi apresentada a estrutura do tratado quanto às partes que
o compõem e um panorama a respeito dos instrumentos Setor, Cross-staff, Cross-
bow e Quadrante, que estão inseridos na obra.
Assim, os documentos provenientes da história podem carregar muitos
conhecimentos matemáticos que, se explorados em seus aspectos contextuais,
historiográficos e epistemológicos, podem ser aliados ao ensino. Para isso, é
preciso fazer um estudo geral sobre esses tratados, como o realizado neste artigo.

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Oughtred. 2019. 155 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Mestrado em Ensino
de Ciências e Matemática, Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
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514
NOTAS BIOGRÁFICAS DO PROFESSOR DOUTOR TIBIRIÇÁ

Marger da Conceição Ventura Viana188


Davidson Paulo Azevedo Oliveira189
Lázaro Santos Gil190

RESUMO
Este trabalho biográfico está inserido dentro de um projeto de pesquisa iniciado em 2015
no qual se investiga a História da (Educação) Matemática na Escola de Minas de Ouro
Preto. A vida e as obras do professor Doutor Altamiro Tibiriçá Dias que é ex-aluno, da turma
de 1937, e foi professor da instituição nas décadas de 1950 a 1990. As fontes utilizadas
são provenientes de notícias de jornais disponíveis na Hemeroteca Digital e do acervo da
família do professor. Além de professor ele é autor de diversos livros e materiais de
matemática. Dentre eles, o livro de Cálculo Infinitesimal considerado o primeiro dessa
natureza escrito no Brasil, por brasileiro, que não é cópia de livros estrangeiros. Organizou,
também, o Boletim de Matemática do Departamento de Matemática no qual diversos
tópicos de cálculo eram disponíveis aos estudantes. Podemos notar o importante papel do
Dr. Tibiriçá na cidade de Ouro Preto e no restante Brasil. No entanto, mais questões devem
ser aprofundadas, como os depoimentos dos familiares e de outras pessoas que
conviveram com o biografado que ainda não foram analisados e acrescentados para
compor a escrita biográfica. Além disso, uma análise do material produzido por ele não foi
publicada, mas está sendo realizada.

Palavras-chave: Biografia. História da Matemática. Escola de Minas.

INTRODUÇÃO

Este trabalho está inserido dentro de um projeto de pesquisa maior iniciado


em 2015 e intitulado a História da (Educação) Matemática na Escola de Minas de
Ouro Preto (EMOP) que visa um estudo histórico dessa instituição desde a sua
fundação em 1876 até os primeiros anos do século XXI. O enfoque do texto atual
é apresentar os primeiros resultados de uma investigação referente ao estudo da

1.Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). margerv@ufop.edu.br


189 Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais. davidson@cefetmg.br
190
IFMG – Campus Ouro Preto (IFMG). lazaro.gil@ifmg.edu.br

515
vida e das obras do ex aluno e professor da EMOP, Dr. Altamiro Tibiriçá Dias (1911
– 1993), engenheiro, professor de matemática e autor de textos de matemática nas
décadas de 1950 a 1990 no Brasil.
Iniciamos esta pesquisa com a mesma questão que Borges (2019, p.212)
levantou para estudos biográficos e que ele mesmo direciona como pode ser
investigada a vida de uma pessoa.

Como se pesquisa a vida de um indivíduo? Por intermédio das


“vozes” que nos chegam do passado, dos fragmentos de sua
existência que ficaram registrados, ou seja, por meio das chamadas
fontes documentais. Como “sem documentos não há História”, os
vestígios que encontramos em boa medida condicionam nossa
ambição de investigação.

Sobre o Professor Tibiriçá temos vozes presentes em diversos lugares,


especificamente para este artigo inicial procuramos ouvir as vozes, as fontes
documentais em dois lugares: (a) por meio de notícias em jornais de 1911 a 1993
registradas e disponíveis na Hemeroteca Digital – Fundação Biblioteca Nacional e
que citam o nome do biografado; (b) por livros e materiais do acervo pessoal da
família do Dr. Tibiriçá, os filhos dele, a Senhora Gilda Dias e o Senhor Tibi Dias, a
quem agradecemos a disponibilidade de nos receber e apresentar os materiais
permitindo reproduções.
As fontes documentais nos auxiliam na escrita da biografia que, em nosso
caso, se considerarmos as categorias de biografias descritas por Phillippe Lejeune
e elencadas por Borges (2019) podemos dizer que estamos em dois modelos: a
biografia pura e o testemunho puro. Na primeira o pesquisador/narrador não
conheceu o biografado (o segundo autor deste artigo) e na segunda na qual o
narrador conheceu o biografado e participou de momentos de sua vida (a primeira
autora deste artigo que conviveu com o Dr. Tibiriçá enquanto professora da
universidade).
Embora não tenha convivido diretamente com o professor biografado, o
segundo autor deste artigo leciona na cidade de Ouro Preto e já ouviu por diversas

516
ocasiões algumas historietas do Dr. Tibiriçá, bem como a importância acadêmica
que ele representa para a Região dos Inconfidentes e para o Brasil.

POR QUE UM ESTUDO DO DR TIBIRIÇÁ?

Ao conversar e pesquisar sobre a EMOP é comum ouvir diversos “causos”


sobre o professor Dr. Tibiriçá. Por exemplo, sobre a construção do estádio de
futebol do Mineirão que começou a ser construído em 1959 e teve sua primeira
partida de futebol oficial em 1965. Na cidade de Ouro Preto existe uma “história” de
que só de olhar o estádio finalizado ele soube falar com exatidão o número de sacos
de cimento necessários para a construção dele. Além disso, sabem que ele é autor
do melhor livro de Cálculo Infinitesimal do Brasil.
Enfim, entre tantas histórias que envolvem o professor nos questionamos
quais são fatos históricos e quais são lendas em torno de uma figura das mais
conhecidas da década de 1950 a 1990 na cidade de Ouro Preto? Nosso trabalho
investiga a vida e obra do Dr. Tibiriçá por meio de entrevistas com pessoas que
conviveram com ele e cotejamento com fontes documentais escritas. Na figura 1 o
leitor poderá conhecer o professor por meio da cópia de um quadro que se encontra
no acervo da família.

FIGURA 1: QUADRO DO PROFESSOR DOUTOR TIBIRIÇÁ

517
Fonte: Acervo da família

Mesmo em outras regiões do Brasil ele é reconhecido e famoso. Em um


depoimento o professor Orlando Ferreira de Castro ao falar sobre a fundação da
Universidade Federal de Goiás cita a contratação do professor Jaime Marcos
Cohen. Nesse comentário ele menciona o nome de Tibiriçá e como ele era
reconhecido não só no Estado de Minas Gerais. Segundo ele:

[...] o professor Jaime Marcos Cohen, que era engenheiro formado


em Ouro Preto, e lá ele foi monitor ou assistente de um professor
muito famoso de Matemática no Brasil que se chamava Altamiro
Tibiriçá Dias (CURY, 2007, p.55).

Além disso, quanto a segunda “história” envolvendo o professor Tibiriçá e


que mencionamos anteriormente apresentamos um relato científico de Schubring
(2015, p.123). Segundo o historiador o Dr. Tibiriçá escreveu um dos mais
importantes livros de Cálculo Infinitesimal do Brasil que causou um impacto no país.
Segundo o pesquisador:

Pode-se estimá-lo [livro Cálculo Infinitesimal] como sendo o primeiro


livro texto de cálculo de produção própria no Brasil, e não mais cópias
ou adaptações de livros textos franceses. De fato, o autor começa o
curso por uma parte extensa “Definições de números reais”,
continuando com uma revisão de álgebra, expondo variáveis reais e

518
funções de uma variável, antes de entrar no segundo livro com o
cálculo diferencial (SCHUBRING, 2015, p.123).

Mas as publicações em matemática do Dr. Tibiriçá não se restringem ao livro


de Cálculo Infinitesimal. Assim, podemos conhecer um pouco mais sobre o
biografado e suas obras nas próximas seções.

SOBRE NASCIMENTO E VIDA PROFISSIONAL

Nasce em Nova Friburgo, município do Rio de Janeiro, em 22 de fevereiro


de 1911 o garoto Altamiro Tibiriçá Dias. Logo foi para Campos onde cursou a
educação básica e, depois disso, ele vai para Ouro Preto com o objetivo de realizar
o exame de seleção para a Escola de Minas de Ouro Preto. É aprovado na seleção
e se forma na turma em 1937 como Engenheiro de Minas e Civil.
Depois de trabalhar como Engenheiro no Rio de Janeiro ele retorna á EMOP
e assume a cadeira de Cálculo Infinitesimal, onde se aposenta compulsoriamente,
contra a sua vontade. Na EMOP foi ainda um dos fundadores do Departamento de
Matemática em 1947 sendo Chefe suplente em 1949. Além disso, foi o 25º diretor
da Escola de Minas de junho a outubro de 1989.
As experiências de magistério dele não se restringem à EMOP, ele leciona,
também, Resistência de Materiais em algumas escolas de engenharia, Escola de
Engenharia de São Carlos, pertencente à Universidade de São Paulo.
No entanto podemos ver que ele retorna a Escola de Minas como professor. No
anúncio de 23 de novembro de 1954 podemos ver que ele, junto com “Achile Bassi”,
participa da banca de seleção para professor de Mecânica Nacional da Escola
Nacional de Minas e Metalurgia da Universidade do Brasil sediada em Ouro “Prêto”.
Esta notícia se encontra na figura 2, a seguir.

FIGURA 2: TIBIRIÇÁ RETORNA A OURO PRETO

519
Fonte: Correio da Manhã (1954)

Além do ensino superior, o Dr. Tibiriçá também atuou no ensino técnico


sendo professor de Resistência de Materiais para o Curso Técnico de Mineração e
Metalurgia na Escola Técnica. Na figura 3 é possível ver uma foto com a Turma de
Metalurgia de 1971. Para esta disciplina ele publica algumas notas de aula que
utiliza com os estudantes. A instituição atualmente é um campus do Instituto
Federal de Minas Gerais e começou em 1944 com professores da Escola de Minas
no prédio desta onde permaneceu por vinte anos.

FIGURA 3: DR. TIBIRIÇÁ NA ESCOLA TÉCNICA

520
Fonte: Grupo de Facebook de ex-alunos da ETFOP

Além disso, prestou consultoria a várias empresas entre elas a canadense


ALCAN Alumínio do Brasil, com cálculos estruturais e sobre os filtros da fuligem
emitida pelos fornos da fábrica. Foi, também, Engenheiro do serviço geológico
nacional do Departamento Nacional de Estradas e Rodagem DNER.

ALGUMAS OBRAS

Mais voltado para o ensino, o Professor Tibiriçá, preocupado com a


qualidade do ensino de matemática na Escola de Minas organiza, em parceria com
o também professor da EMOP e chefe do Departamento de Matemática, Antonio
Calaes, a partir de 1951 o Boletim do Departamento de Matemática da Escola de
Minas. Os objetivos da publicação são expostos no primeiro exemplar por meio da
apresentação realizada pelo Prof. Calaes:

Auspiciando a publicação deste pequeno trabalho, o Departamento


de Matemática visa a atingir mais alto escopo do que possa
significar o que aqui se contem de valioso e interessante para o
desenvolvimento da ciência. Realmente, logrando incentivar a
produção intelectual – no campo da ciência, da técnica e da didática
– dos dignos professores da Escola Nacional de Minas e Metalurgia

521
– seja por incutir-lhes entusiasmo pelo penoso porém atraente
trabalho de pesquisa, seja por anular-lhes inatos sentimentos de
modéstia e timidez – tanto bastará para que se justifique
plenamente o sentido exato desta iniciativa (CALAES, DIAS, 1951,
s p).

Na figura 4 o leitor poderá ver a capa de dois boletins publicados em 1951.


“Notas sôbre um problema célebre” (figura 4a) é o primeiro número do Boletim,
publicado em 20 de setembro e foi escrito juntamente com o professor A. Moreira
Calaes. Apresentam o problema e justificam ser célebre por estar presente na
História da Matemática, segundo os autores informaram. Além disso, eles
comparam este problema com uma questão do Exame de Admissão à Escola
Politécnica de Paris de 1849. Resolvem do método clássico e apresentam uma
segunda resolução que acreditam que tem possibilidades de ineditismo. O
problema é (CALAES, DIAS, 1951, p.1):

Demonstrar que o produto de binômios


𝒑−𝟏

𝑷 ≡ ( 𝒙𝒎 − 𝟏)(𝒙𝒎−𝟏 − 𝟏) … (𝒙 𝒎−𝒑+𝟏
− 𝟏) ≡ ∏(𝒙𝒎−𝟏 − 𝟏)

é sempre divisível pelo produto análogo,


𝟏
𝒑 𝒑−𝟏 𝟐
𝑸 ≡ (𝒙 − 𝟏)(𝒙 − 𝟏) … (𝒙 − 𝟏)(𝒙 − 𝟏) ≡ ∏(𝒙𝒊 − 𝟏)
𝒊=𝒑

O segundo número do Boletim de 1951 (figura 4b), publicado em outubro do


mesmo ano denominado “Classificação das Formas Quadráticas” é escrito
somente pelo Dr. Tibiriçá também trata da resolução de um problema e a solução
também é original, na visão do professor. Segundo o professor “O presente trabalho
visa, unicamente, a tornar simples a discussão dos extremados das funções de
várias variáveis” (DIAS, 1951, sp.). O professor inicia com a definição de polinômios
homogêneos e continua com o uso de teoremas e corolários.

522
FIGURA 4: CAPA DE BOLETINS DE MATEMÁTICA
(a) (b)

Fonte: Arquivo pessoal dos pesquisadores

Um terceiro artigo publicado no Boletim de Matemática trata das Funções


Hiperbólicas, possui 75 páginas e foi publicado em 1959. No entanto, infelizmente
ainda não tivemos acesso a este documento.
O Dr. Tibiriçá publica, também, um artigo intitulado Três Integrais Indefinidas
no número 31 de 1958 dos Annaes da Escola de Minas de Ouro Preto, um periódico
da EMOP fundado em 1881 por Henry Gorceix.
Além disso, ele escreve diversas outras obras baseadas em suas notas de
aulas e apostilas, dentre elas o já mencionado, “Curso de Cálculo Infinitesimal”
sendo a primeira edição de 1952 (figura 5). A segunda edição foi editada pela
Fundação Gorceix em 1962, em dois volumes. No Arquivo Permanente da Escola
de Minas de Ouro Preto também podem ser encontradas diversas fontes para
estudo tanto do professor Tibiriçá quanto de outros professores. Em Oliveira e

523
Nobre (2020) o leitor pode ver uma descrição de parte da documentação referente
à Matemática no final do século XIX.

FIGURA 5: CAPA DO LIVRO DE CÁLCULO INFINITESIMAL TOMO I e II

Fonte: Arquivo Pessoal dos pesquisadores

De acordo com Pereira (2017) esta obra tem uma abordagem moderna e
apresenta a construção dos números reais por cortes de Dedekind, são
apresentados também o método dos limites e teoria dos infinitésimos tratando de
Cálculo Diferencial e Integral.
A importância deste livro também pode ser notada no anúncio do Correio
da Manhã de 1953. Ele anuncia a ida do professor Tibiriçá para a Escola de
Engenharia de São Carlos e destaca que é autor da obra de cálculo infinitesimal.
Uma cópia desta noticia encontra-se na figura 6, a seguir.

524
FIGURA 6: TIBIRIÇÁ VAI A SÃO CARLOS

Fonte: Correio da Manhã (1953)

O último livro escrito pelo professor Dr. Tibiriçá foi Funções Circulares
editado pela Editora da UFOP em 1993, ano de seu falecimento. O livro é composto
por 153 páginas e tem uma capa preta com o título escrito em branco e colorido em
forma de círculo. O lançamento do livro foi realizado no salão nobre da UFOP e
uma foto do autor escrevendo uma dedicatória pode ser vista na figura 7, a seguir.

FIGURA 7: FOTO DO LANÇAMENTO DO LIVRO FUNÇÕES CIRCULARES

Fonte: Acervo da Família

525
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apresentamos um pouco a vida e obras de um dos professores da Escola


de Minas de Ouro Preto que se destacou tanto pelas aulas quanto pela produção
bibliográfica. O artigo atual está restrito às fontes documentais escritas do Professor
Doutor Altamiro Tibiriçá Dias, embora consideramos como fonte histórica também
os depoimentos de pessoas que conviveram com o professor. O trabalho deve ser
aprofundado nesse sentido, bem como em relação a uma análise aprofundada de
suas obras, especialmente o Cálculo Infinitesimal.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BORGES, Vavy Pacheco. Fontes Biográficas. Grandezas e misérias da biografia.


In: PINSKY, Carla Bassanezi. Fontes Históricas. 3. ed. 4ª. Reimpressão. São Paulo:
Contexto, p.203 – 233. 2019.

CALAES, Antonio Moreira. DIAS, Altamiro Tibiriçá. Notas sobre um problema


célebre. Boletim n.1. Departamento de Matemática, Universidade do Brasil. 16p.
1951.

CORREIO DA MANHÃ, 16 de junho de 1953. 23 de novembro de 1954. Fonte


Hemeroteca Digital.

CORREIO DA MANHÃ, 16 de junho de 1953. 23 de novembro de 1954. Fonte


Hemeroteca Digital

CURY, Fernando Guedes. Uma narrativa sobre a formação de professores de


Matemática em Goiás. (Dissertação de Mestrado). Unesp – Rio Claro. Rio Claro.
201 p. 2007.

DIAS, Altamiro Tibiriçá. Classificação das Formas Quadráticas. Boletim n.2.


Departamento de Matemática. Universidade do Brasil. 11p. 1951.

OLIVEIRA, Davidson Paulo Azevedo. NOBRE, Sergio Roberto. Arquivo


Permanente da Escola de Minas de Ouro Preto: documentação para pesquisa em
História da (Educação) Matemática no Brasil. INTERMATHS. V.1. n.1. p. 20-33.
2020.

PEREIRA, Vinicius Mendes Couto. O desenvolvimento da Análise no Brasil – Um


caminho sobre o surgimento de uma Comunidade Matemática. (Tese de
Doutorado). UFRJ. Rio de Janeiro. 443p. 2017.

526
SCHUBRING, Gert. Tentativas de estabelecer o conceito de número como
fundamento para cursos de Análise. Caminhos da Educação Matemática em
Revista/On line – v.3, n.1, p.111- 125. 2015.

VIANA, Marger da Conceição Ventura. Da primeira metade do século XX ao século


XXI: a formação de professores de Matemática na UFOP. In: III Congresso Ibero-
Americano de História da Educação Matemática, 2016, Belém-Pará-Brasil. Anais
do III CONGRESSO IBERO- AMERICANO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO
MATEMÁTICA. Belém- Pa: SBHmat, 2016. p.866 – 878.

527
SOBRE OS CONHECIMENTOS INCORPORADOS NOS
REPORTÓRIOS DOS TEMPOS ENTRE OS SÉCULOS XVI E XVII191

Antonia Naiara de Sousa Batista192

RESUMO
Durante a antiguidade muitos documentos foram constituídos mediante diferentes
contingências e passaram a ser produzidos como forma de registrar e disseminar
determinados conhecimentos que estavam em destaque em uma época, visando que eles
não fossem esquecidos. Algumas dessas obras são chamadas de Reportório dos tempos
que se tornaram importantes para seu período de propagação, porque congregavam
distintos conhecimentos ligados a vários setores que estavam em pleno desenvolvimento
no século XVI e XVII. Desta forma busca-se responder quais conhecimentos emergem
desses Reportórios dos tempos? E qual a relação entre esses Reportórios dos Tempos e
os instrumentos históricos contido em alguns deles? Assim, esse estudo visa conhecer
quais aspectos do conhecimento relacionados as matemáticas estavam incorporadas no
uso desses Reportórios dos tempos e sua relação com os instrumentos históricos. Esses
instrumentos estiveram presentes entre os séculos XVI e XVIII, e eram destinados para
medir distâncias angulares ou lineares em diferentes campos, como, na astronomia, na
navegação ou na agrimensura. Assim, esse estudo se caracteriza como uma pesquisa
qualitativa, de caráter exploratório, fundamentada em um estudo bibliográfico e
documental. Essa investigação partiu de um levantamento realizado em três locais, na
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, na Biblioteca Nacional de Portugal, e no
repositório da Universidade de Évora, no qual encontramos cinco documentos, sendo eles,
Reportórios dos tempos, publicados entre os séculos XVI e XVII. Todos tratando de
assuntos semelhantes, reunindo aspectos da astronomia, astrologia, medicina, navegação,
geografia, entre outras. Mas somente alguns trazem aspectos do conhecimento
matemático e, a produção e uso de instrumentos matemáticos.

Palavras-chave: Instrumentos históricos. Reportórios dos tempos. História da


Matemática.

INTRODUÇÃO
Durante os séculos XV e XVI viu-se o renascimento de diferentes
interesses na Europa, entre eles, nas artes, no ensino, entre outros. Dentre vários
aspectos que marcaram esse período, tem-se o movimento humanístico, que

191
Pesquisa orientada pela professora e doutora Ana Carolina Costa Pereira. Universidade Estadual do
Ceará (UECE). carolina.pereira@uece.br
192
Universidade Estadual do Ceará (UECE). antonia.naiara@aluno.uece.br

528
procurou venerar e recuperar antigos textos como forma de confrontar as traduções
e comentários realizados sobre eles (SAITO, 2015).
Esses textos ou tratados, em especial, aqueles que traziam em sua
composição astrolábios, esfera armilar, quadrante, estavam sendo produzidos por
volta do século XVI e XVII, período no qual muitas oficinas de instrumentos
matemáticos estavam em ascensão em distintas regiões, entre elas, em Louvain,
Nuremberg, Florença e Londres (SAITO, 2015). De acordo com o autor, parte
desses tratados eram compilações sobre instrumentos que teriam sido abordados
em outras obras ou comentários de aulas.
Esses tratados, são denominados de materiais originais, pois segundo
Beltran, Saito e Trindade (2014, p. 18), “podem ser textos, imagens ou documentos
da cultura material (objetos físicos) que chegaram a nossos dias trazendo registros
de conhecimentos elaborados, transmitidos, adaptados em outros tempos e
culturas”. Esses documentos originais se tornam ricos porque nos apresentam
diferentes conhecimentos que estavam sendo mobilizados em distintas épocas.
Dentre esses documentos originais pode-se encontrar os Reportórios dos
tempos, que estavam sendo propagados na segunda metade do século XVI até por
volta do século XVII, pois representavam o modelo geocêntrico do universo que
aos poucos foi assumindo o modelo heliocêntrico (VALÁZQUEZ, 2012). Embora
alguns documentos venham acompanhados com a palavra “chronographia” no
início e outros não, ambos não se diferenciam entre sim, tendo a mesma finalidade
para o período.
Essa palavra “chronographia” passa a ser inserida mais nos tratados que
estão sendo publicados a partir da segunda metade do século XVI. Segundo
Figueiredo (1913), a palavra Chronographia significa um substantivo feminino que
se deriva da palavra chronologia, que designa “tratado das divisões do tempo” ou
“tratado das datas históricas”.
Esses tratados ao serem contemplados a luz de uma rede de
conhecimentos reunidos no passado possibilitam a compreensão do contexto em
que estavam inseridos, além de permitir o acesso a diferentes conhecimentos que

529
estavam sendo produzidos e disseminados por meio deles. De acordo com Martín
(2012, p. 330),
Este conjunto homogêneo de Repertorios coleta o conhecimento refletido
nas enciclopédias medievais, fontes que são repetidamente citadas na
exposição descritiva dos conteúdos de que tratam. Portanto, a
conceituação do tempo e sua divisão verificável nos autores
renascentistas dá continuidade ao sistema estabelecido e transmitido por
essas fontes medievais. Este fato acarreta necessariamente uma
distribuição idêntica dos conteúdos em todas as obras analisadas, e
mesmo a cópia literal de trechos completos no caso de um dos
Repertórios, conforme pode verificado.

Na visão do autor esses documentos originais eram apenas compilações


de fontes do período medieval, que reproduziam conhecimentos iguais entre si.
Todavia se eram disseminados, mesmo contendo assuntos idênticos, é porque
expressavam uma importância utilitária para a sociedade renascentista e para
diversos setores que estavam em pleno desenvolvimento nos séculos XVI e XVII.
Assim, partindo de um trabalho realizado por Batista (2018), percebeu-se
em sua pesquisa o estudo de uma Chronographia, Reportorio dos tempos..., escrita
por Manoel de Figueiredo e publicada em Lisboa, no ano de 1603, que carregava
consigo conhecimentos e instrumentos históricos que foram importantes para o
período no qual estava sendo difundida.
Diante desse aspecto surgiu a inquietação sobre a possível existência de
outros Reportorios dos tempos que compartilhassem dos mesmos conteúdos e
instrumentos. Desta forma, busca-se responder quais conhecimentos emergem
desses Reportórios dos tempos? E qual a relação entre esses Reportórios dos
Tempos e os instrumentos históricos contido em alguns deles? Assim, esse estudo
visa conhecer quais aspectos do conhecimento relacionados as matemáticas 193
estavam incorporadas no uso desses Reportórios dos tempos e sua relação com
os instrumentos históricos.
Esses instrumentos são relevantes para o período porque na maioria das
vezes carregam características que levam em consideração o local, o processo de
desenvolvimento e a construção em determinada época, podendo eles serem

193Na antiguidade, não se tinha um corpo unificado denominado por matemática como temos no
século XXI. Conhecimentos como, a geometria, a música, a astronomia, a aritmética, entre outros,
eram denominados por matemáticas. Para mais informações vide Saito (2015).

530
voltados para diferentes setores como, a agrimensura, a navegação ou a
astronomia (ALVES; BATISTA, 2016). Parte deles permearam diferentes campos
como citado anteriormente e tinham a finalidade de medir distância, lineares ou
angulares, dependendo do contexto no qual estavam inseridos e para qual
finalidade eram destinados. Assim, no próximo tópico irá-se-a tratar sobre o
desenvolvimento desse estudo.

METODOLOGIA E PERCURSO DA PESQUISA


Essa pesquisa é de caráter qualitativa porque em nenhum momento visou-
se ter como foco a quantificação fazendo uso de métodos estatísticos, mas usou o
ambiente natural como fonte de pesquisa para a coleta de dados e sua
interpretação e análise de modo intuitivamente (PRODANOV; FREITAS, 2013). Do
ponto de vista da natureza essa pesquisa se caracteriza como básica pois “objetiva
gerar conhecimentos novos úteis para o avanço da ciência sem aplicação prática
prevista”. (PRODANOV; FREITAS, 2013, p. 51).
Quanto ao objetivo, se descreve como exploratória pois tem o intuito de
divulgar e tornar mais claro algo sobre um determinado assunto ou problema, com
vista a possibilitar outras descobertas (GIL, 2002). Enquanto, a abordagem se
identifica como uma pesquisa bibliográfica, pois se apoia em fontes secundárias,
como livros, periódicos, impressos diversos etc., mas também assume o caráter de
uma pesquisa documental, fazendo uso de fontes primárias que ainda não
passaram por nenhum tratamento de análise (GIL, 2002).
Inicialmente realizou-se uma busca em três locais, na Biblioteca Geral da
Universidade de Coimbra, na Biblioteca Nacional de Portugal, e no repositório da
Universidade de Évora, no dia 17 de janeiro de 2021. Em todos eles se utilizou para
a busca as seguintes palavras-chave: “chronographia”; “reportorio dos tempos”;
“reportorio de los tiempos”; “repertorio dos tempos”; “repertorio de los tiempos”. É
importante ressaltar que utilizamos algumas variações de palavras, como por
exemplo, “reportório” e “repertório”, mas que correspondem ao mesmo conteúdo
dentro desses documentos.

531
Nesse levantamento não delimitamos um intervalo de tempo para a busca.
Ela foi realizada em bibliotecas e repositórios de Portugal devido o estudo inicial ter
partido da pesquisa de Batista (2018), com a Chronographia, Reportorio dos
tempos..., de Figueiredo, publicada nessa localidade. Ao final reunimos no total
cinco Reportórios dos tempos, como pode-se ver a seguir.

SOBRE OS REPORTORIOS DOS TEMPOS QUE FORAM DISSEMINADOS


ENTRE OS SÉCULOS XVI E XVII
Entre os séculos XVI e XVII esses documentos originais tiveram grande
disseminação em Portugal, pois se destinavam não apenas aqueles que tratavam
da divisão do tempo e dos astros, mas continham regimentos voltados para
navegantes, e conteúdos sobre sangrias e purgas voltadas para a medicina.
Entre elas podemos destacar, o Reportorio dos tempos em lingoagem
Portugues com as estrellas dos signos, de André de Ly. Na Figura 1 temos duas
edições, a esquerda temos a edição de 1528 e a direita temos a de 1552, sendo
ambas iguais, distinguindo entre si apenas pela capa. Na contracapa de ambas é
ressaltado que foram traduzidas do castelhano para o português por Valentim
Fernandez Alemão, ou seja, ela teve suas edições inicialmente em espanhol e só
depois ocorreu as traduções para o português, porém, não foi encontrada a versão
em espanhol.

FIGURA 1: REPORTORIO DOS TEMPOS EM LINGOAGEM PORTUGUES COM


AS ESTRELLAS DOS SIGNOS

532
Fonte: Ly (1528, 1552, frontispícios).
As obras são acompanhadas por um prólogo, não possuindo sumário e
adentrando diretamente ao conteúdo de que tratam sobre: as partes que contém
um dia; repartições do ano (meses); dos tipos de céus; dos céus e dos planetas
regem eles; os signos do Zodíaco; regimento da declinação do sol; dos polos do
céu; regimento da estrela do Norte; linhas equinociais (trópico de câncer; trópico de
capricórnio; etc.); as quatro compreensões gerais do ser humano relacionadas ao
seu humor (sanguínea, colerica, flemarica, melancólica); regras astronômicas e
medicinais para a sangria; a relação dos signos com as partes do corpo; uma
tabuada com as cidades de Portugal; das fases da lua; coisas para se saber sobre
um ano bissexto; segue se o regimento para se puder encontrar pelo quadrante ou
astrolábio a altura do Norte. São amplos os conteúdos abrangentes por elas,
porém, outros documentos originais nesse século compartilham dessas mesmas
características.
A Chronographia, o reportório de los tiempos, el mas copioso y preciso
que hasta agra a salido a luz foi escrita por Hieronymo de Chaves (1523-1574),
sendo publicada em 1576, porém não tendo o registro do local de sua publicação,
constando apenas que teve suas liberações para a impressão realizada em Lisboa,
todavia está escrita em espanhol (FIGURA 2).
Em alguns documentos encontramos a variação entre Hieronymo
Chaves ou Jerônimo de Chaves, sendo ambos a mesma pessoa. Hieronymo foi

533
astrólogo e cosmógrafo nesse período. Essa versão é mais nova, todavia existe
outras duas edições de 1580 e 1584, sendo as três publicadas após sua morte.

FIGURA 2: CHRONOGRAPHIA O REPORTORIO DOS TEMPOS....

Fonte: Chaves (1576, frontispício).


Essa chronoraphia é dívida em quatro tratados, o primeiro voltado para
questões do tempo e suas divisões, o segundo trata sobre os elementos que
compõem o mundo, a terra, a água, o ar e o fogo, da posição do céu e dos planetas
e dos doze signos do zodíaco.
No terceiro tratado, é abordado sobre os diferentes céus e o calendário,
juntamente com a festa da Pascoa e um lunário com todos os eclipses verificados
em um ano bissexto. E por fim, no quarto tratado fala-se da relação da astrologia
com a medicina e de sua influência sobre partes do corpo, assim como também da
sua atuação nas mudanças dos tempos. Diferente da passada possui uma
organização mais adequada, trazendo logo no início uma taboa alfabética com os
conteúdos de cada capítulo.
Ainda no século XVI, encontra-se outro documento intitulado por
Chronographia, Repertorio de los tiempos, a lo moderno, el qual trata varias y
diversas cosas (Figura 3), publicada em 1585 e redigida por Francisco Vicente de
Tornamira (1534-1597). No frontispício consta que foi impressa na cidade de

534
Pamplona, por Thomas Porràlis de Sauoya, sendo esse lugar localizado na
Espanha, cuja língua é a que prevalece no documento.

FIGURA 3: CHRONOGRAPHIA, REPERTORIO DE LOS TIEMPOS....

Fonte: Tornamira (1585, frontispício).


Nessa Chronographia, Repertorio de los tiempos..., de Tornamira, é
composto pela capa, frontispício, páginas contendo as aprovações e licenças para
sua publicação e a dedicatória, pois como era de costume segundo Tornamira
(1585) todos os autores quando finalizavam suas obras dedicavam a grandes
príncipes, pois esses com elas em suas mãos, supriam por meio desta arte dos
reportórios a fragilidade e rudeza daqueles que a tinham escrito.
Em seguida, surge um tópico intitulado, primeira parte de la
Chronographia, y Repertorio de los Tiempos, que tracta del movimento de los
cielos, todavia até o final do documento não aparece nenhuma segunda ou terceira
parte, restando apenas a primeira composta por 156 capítulos, que tratam de
conhecimentos relacionados ao Trivium e Quadrivium, Philosophia, a astrologia e
sua relação com os médicos, definição e divisão da Sphera, com seus planetas,
estrelas, signos e eclipses.
Além disso, aborda sobre a divisão do ano, dos meses e dias da semana,
as festas Corpus Christi e o Advento, Calendário Gregoriano e uma lista de reis de
Portugal, Espanha, Sicília, entre outras. É interessante esse documento porque

535
diferentes dos demais faz menção as setes artes liberais, a filosofia e a outras
ciências, como a medicina e sua intensa relação com a astrologia.
Se encaminhado para século XVII, encontramos a Chronographia
Reportorio dos tempos...., de Manoel de Figueiredo (1568-1622), publicada em
1603, e impressa por Jorge Rodriguez em Lisboa (Figura 4). Figueiredo foi mestre
de matemáticas, cosmografia, e navegação, tendo assim, o domínio não só da
matemática, mas da física, química, da hidrostática, entre outras que subsidiavam
essas classes mais específicas.
Além disso, foi autor de diversas obras que dentre elas pode-se citar:
Roteiro e navegação das Indias Occidentais, ilhas, Antilhas do mar, oceano
occidental, com suas derrotas, sondas, fundos, & conhecenças, publicada em 1609;
Hidrographia, exame de pilotos no qual se contém as regras que todo piloto deve
guardar em suas navegações..., que foi divulgada em 1614; prognostico do cometa
de Septembro, de 1604; tratado da prática da Arismetica, de Gaspar Nicolas
(SILVA, 1860).
FIGURA 4: CHRONOGRAPHIA, REPORTORIO DOS TEMPOS....

Fonte: Figueiredo (1603, frontispício).


Esse documento é composto pela capa, o frontispício com todos os
dados iniciais da obra, seguido de uma apresentação juntamente com as licenças
para sua impressão e a dedicatória a Dom Manoel de Moura Corte Real, uma

536
autoridade no Reino da Espanha, que era um interessado e apoiador, como outros
soberanos do seu período, no desenvolvimento da ciência da esfera e dos diversos
tipos de matemáticas presentes na época.
Dando sequência temos o prefacio e a Taboa com todos os capítulos,
que é constituída por seis partes, reunindo diferentes campos do saber, dentre eles,
a astronomia, a geografia, a astrologia, cosmografia, entre outros. Sendo a sexta
parte, denominada de Livro Sexto, que apresenta dois instrumentos a balhestilha
ou radio astronômico, voltado para o campo da navegação e da astronomia,
respectivamente, e o quadrante geométrico destinado para o uso na agrimensura.
Além disso, no Livro Sexto, está inserido um Tratado dos Relógios
horizontais, verticais, laterais, declinantes e universais ou polares, que tratam da
construção de diversos tipos de relógios baseados nos meridianos, nos equinócios,
no zênite, nos círculos máximos, no círculo polar etc.
Ademais, é exposto algumas definições, que o autor chama de
proposições, como exemplo, o que é um ponto, uma linha, uma superfície, um
corpo, entre outras. Também aparecem outras “proposições” assim denominadas
pelo autor, que no século XXI, chamamos de construções geométricas, por
exemplo, como traçar uma reta perpendicular formando um ângulo de 90° graus
sobre um ponto dado em outra reta, ou como dividir um círculo em dois
semicírculos, ou dividir um quarto de círculo em 90 partes iguais, entre outras.
Para fechar esse ciclo, uma outra obra permeou os séculos XVI e XVII
foi a Chronographia ou Reportorio dos Tempos o mais copioso que te agora sayo
a luz.., de André de Avellar (1546 – 16[?]), publicada em duas edições, a esquerda
a edição de 1594 e a direita a de 1602 (FIGURA 5). Ambos os documentos
possuem os mesmos conteúdos e quantidades de capítulos, sendo divididos em
seis partes, no entanto, mudam apenas a imagem que consta no frontispício.

FIGURA 5: CHRONOGRAPHIA OU REPORTORIO DOS TEMPOS...

537
Fonte: Avellar (1594, 1602, frontispícios).
Os documentos possuem uma capa, frontispício, licença para a
impressão, uma apresentação sobre a obra, a dedicatória ao excelentíssimo Dom
Álvaro de Lencastre duque de Aveiro, uma carta ao leitor, o proemio (prefácio),
seguido da taboa de capítulos. Assim, como os demais também aborda questões
voltadas para a divisão do tempo, ano, meses e dias, envolvendo aspectos da
astronomia, astrologia, medicina voltados para a saúde humana.
Além disso, traz partes tratando sobre os eclypses e calendários, e
catálogo dos reis de Portugal. Nessa parte tentou-se ao máximo preservar a forma
de escrita presente em cada Reportório dos tempos, inclusive preservando os
títulos e descrições, pois fazem parte da linguagem da própria época em que foram
redigidos.

UMA BREVE DISCUSSÃO A RESPEITO DOS INSTRUMENTOS HISTÓRICOS


NOS REPORTÓRIO DOS TEMPOS
Esses Reportório dos tempos fazem parte da produção de conhecimento
de uma época que envolve crenças e tradições incorporadas em diferentes setores,
sendo eles, a astronomia, a geografia, a filosofia, a astrologia e sua relação com a
medicina, assim como, a tentativa de compreender o tempo e usá-lo para a
produção de calendários.
Todavia alguns aspectos ressaltam a distinção entre documentos e os
direcionam para outros setores que estão de modo implícito, como é o caso da

538
presença de regimentos da declinação do sol e da estrela do Norte, como uma
forma de possível orientação para localização, voltando-se para a navegação
astronômica. Um outro aspecto importante é que parte deles contêm instrumentos
históricos, acompanhados de orientações para sua fabricação e uso, voltado para
diferentes finalidades.
Um exemplo desse pode-se encontrar no Reportorio dos tempos em
lingoagem Portugues com as estrellas dos signos, de André de Ly, em ambas as
versões se encontra um tópico que contém o regimento que pode ser utilizado junto
ao quadrante ou astrolábio para medir a altura do polo Norte, nessa parte encontra-
se exemplos de uso de ambos os instrumentos para a navegação em Lisboa.
FIGURA 6: QUADRANTE

Fonte: Li (1528, s/p).


Todavia a imagem do quadrante (Figura 6) só aparece no documento
mais recente, de 1528. Nesse tópico é considerado as estrelas e sua localização,
como forma de auxiliar nesse processo de deslocamento do navio. Partindo do
mesmo ponto de vista dessa, a Chronographia, Reportorio de los tempos, a lo
moderno, el qual trata varias y diversas cosas (1585), de Francisco Vicente de
Tornamira também possui um capítulo destinado ao uso do instrumento para tomar
a elevação do Polo, entre eles é citado, astrolábios e balhestilhas. No entanto,
somente a imagem do astrolábio aparece no documento (FIGURA 7).

FIGURA 7: ASTROLÁBIO

539
Fonte: Tornamira (1585, p. 77).
Nesse tópico o autor descreve alguns passos para a confecção do
astrolábio e seu uso tomando como orientação as estrelas e os raios do sol para
tomar a altura do polo. Mais à frente trata de algumas dificuldades enfrentadas para
se utilizar a balhestilha, mas explica de maneira breve como ela pode ser utilizada
nessas medições durante a noite.
Um outro documento é a Chronographia, Reportorio dos tempos...
(1603), de Manoel de Figueiredo, na qual aparecem os seguintes instrumentos, a
balhestilha, o radio astronômico e o quadrante geométrico, voltados para a
navegação, astronomia e agrimensura, respectivamente. Além disso, contém um
tratado para a construção de diferentes tipos de relógios com base em aspectos da
geografia.

FIGURA 8: BALHESTILHA, QUADRANTE GEOMÉTRICO E O RELÓGIO

540
Fonte: Figueiredo (1603, f. 268 - 279).
De acordo com a Figura 8 temos o radio astronômico voltado para a
medição da distância angular entre dois astros, abaixo temos um relógio horizontal
e no lado direito temos o quadrante geométrico (no quarto de círculo) que realiza
medições de altura, e que no próprio documento é acompanhado por regras que
orientam a usá-lo em diferentes ambientes com obstáculos ou não.
Um outro aspecto interessante nessa Chronographia Reportorio dos
tempos, e a presença no Livro Sexto, com definições e proposições realizadas por
meio de régua e compasso, que são de fundamental importância para a construção
não só dos relógios, mas dos instrumentos apresentados anteriormente.
Todavia é importante ressaltar que esses documentos não eram
manuais de construções ou de uso desses instrumentos, eram na verdade,
destinados para aqueles que estava inseridos no ofício e tinha conhecimentos tanto
prático como matemático para executá-los.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Assim esses Reportório dos tempos reúnem conhecimentos não só
voltados a contagem do tempo e o regimento do universo, mas alguns deles voltam-
se para as grandes navegações, produzindo conteúdos que envolvem a construção
e/ou uso de instrumentos históricos. Esses instrumentos históricos são
fundamentais para esse período, pois como estavam em destaque as grandes
navegações e a conquista por novas terras, a necessidade de se lançar em alto

541
mar exprimiam o quanto esses campos precisavam se desenvolver auxiliados por
esses instrumentos.
Esses instrumentos históricos são de extrema relevância, pois para
manuseá-los era necessário ter incorporado o saber-fazer dessa época, que
envolve não só conhecimentos matemáticos, mas as práticas desse ofício, para
que as construções e as medições fossem realizadas com êxito nas diferentes
situações renascentista. Outros instrumentos, como os relógios voltavam-se para
outras finalidades, como, medir o tempo de modo a registrá-lo por exemplo, por
meio da confecção de calendários, entre outros, com vista a manter informado
aqueles que viajavam em alto mar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVES, Verusca Batista; BATISTA, Antonia Naiara de Sousa. Uma breve
discussão teórica acerca do uso de instrumentos matemáticos históricos no ensino
da matemática. Boletim Cearense de Educação e História da Matemática,
Fortaleza, v. 9, n. 3, p. 47-58, 2016.

AVELLAR, Andre de. Chronographia ou reportorio dos tempos o mais copioso


que te agora sayo a luz conforme a noua reformação do sancto Papa Gregorio
XIII. Lisboa: impresso por Simão Lopez, 1594.

AVELLAR, Andre de. Chronographia ou reportorio dos tempos o mais copioso


que te agora sayo a luz conforme a noua reformação do sancto Papa Gregorio
XIII. Lisboa: impresso por Jorge Rodriguez, 1602.

BATISTA, Antonia Naiara de Sousa. Um estudo sobre os conhecimentos


matemáticos incorporados e mobilizados na construção e no uso da
balhestilha, inserida no documento Chronographia, Reportorio dos
Tempos..., aplicado na formação de professores. 2018. 114 f. Dissertação
(Mestrado) - Curso de Pós-graduação em Ensino de Ciências e Matemática,
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará, Fortaleza, 2018.

BELTRAN, Maria Helena Roxo; SAITO, Fumikazu; TRINDADE, Lais dos Santos
Pinto. História da Ciência para formação de professores. São Paulo: Livraria da
Física, 2014.

CHAVES, Hieronymo de. Chronografia o Reportorio de los tiempos, el mas


copioso y preciso que hasta ahora ha salido a luz. Lisboa, 1576.

FIGUEIREDO, Manoel de. Chronographia Reportorio dos tempos, no qual se


contem VI. partes, f. dos tempos: esphera, cosmographia, e arte da navegação,

542
astrologia rustica, e dos tempos, e pronosticação dos eclipses, cometas, e
sementeiras. O calendario Romano, com os eclypses ate 630. E no fim o uso, a
fabrica da balhestilha, e quadrante gyometrico, com hum tratado dos relogios.
Lisboa. 1603.

FIGUEIREDO, Candido de. Novo diccionário da língua portuguesa. 1913.

GIL, Antonia Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo:
Atlas, 2002.

LY, Andre de. Reportorio dos tempos em lingoagem Portugues com as


estrellas dos signos. E com as condições do que for nascido em cada signo. E o
crecer & mingoar do dia & da noite. E das quatro compreições & suas condições. E
a declinaçam do sol com seu regimento. E ho regimento da estrella do norte. E
também para saber quantas horas a luna luze de noite. com outras muitas adições.
1528.

LY, Andre de. Reportorio dos tempos em lingoagem Portugues com as


estrellas dos signos. E com as condições do que for nascido em cada signo. E o
crecer & mingoar do dia & da noite. E das quatro compreições & suas condições. E
a declinaçam do sol com seu regimento. E ho regimento da estrella do norte. Com
outras muytas cousas acrecentadas de nouo.... Lisboa: impresso por Germão
Galharde, 1552.

MARTÍN, Francisco Javier Sánchez. Las divisiones menores del tiempo: aspectos
terminológicos y lexicográficos. Verba, Espanha, v. XX, n. 1, p. 325-345, 2012.

PRODANOV, Cleber Cristiano; FREITAS, Ernani Cesar de. Metodologia do


trabalho científico: Métodos e técnicas da pesquisa e do trabalho acadêmico. 2.
ed. Rio Grande do Sul: Universidade Feevale, 2013. 277 p.

SAITO, Fumikazu. História da matemática e suas (re)construções contextuais.


São Paulo: Livraria da Física, 2015.

SILVA, Innocencio Francisco da. Diccionario Bibliographico Portuguez. 5. ed.


Lisboa: Imprensa Nacional, 1860. 487 p.

TORNAMIRA, Francisco Vicente de. Chronographia, y Repertorio de los


tiempos, a lo moderno, el qual trata varias y diversas cosas: de Cosmographia,
Sphera, Theorica, de Planetas, Philosophia, Computo y Astronomia, donde se
conforma la Astrologia com la Medicina y se hallaran los motiuos y causas que ha
auido para reformar el año y se corrigen muitos passos da Astrologia que por la
dicha reformacion quedauan atrasados. Pamplona: impresso por Thomas Porràlis
de Sauoya, 1585.

543
VELÁZQUEZ, Martha Tappan. La representación del tiempo en un género de
escritura del siglo XVI: los repertorios de los tiempos. Fuentes Humanísticas,
México, v. 24, n. 45, p. 33-49, 2012.

544
TEMAS PARA ATIVIDADES-HISTÓRICAS-COM-TECNOLOGIAS

Anna Beatriz de Andrade Gomes194

RESUMO
Esse trabalho é resultado parcial de uma pesquisa de iniciação científica, fruto de um
projeto intitulado “Conexões potenciais entre HM e TDIC para o Ensino da Matemática”, e
busca realizar levantamento de temas a serem tratados em atividades-históricas-com-
tecnologias, definidas como atividades que estudam problemas históricos investigados
com o apoio de tecnologias digitais, baseado na ideia da aliança entre História da
Matemática (HM) e Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC) via
Investigação Matemática (IM). Para tanto, fundamentando-se nos trabalhos de Miguel e
Miorim (2008); Ponte, Brocado e Oliveira (2009), bem como, Borba e Penteado (2007) e
utiliza metodologia qualitativa bibliográfica para fazer uma seleção de tópicos de História
da Matemática focados em Geometria. Tal campo da matemática consiste em foco dos
temas investigados tendo em vista resultados de pesquisas anteriores do referido projeto
de IC e que apontam para a Geometria como tema histórico mais frequente entre trabalhos
que tratam de HM e TDIC. Para isto, foi realizada uma busca utilizando, inicialmente, o site
Mactutor History of Mathematics como base e ainda apoiando-se em livros de História da
Matemática e História da Ciência, entre outras fontes, de modo que os dados coletados
foram organizados em quadros/planilhas que apresentam as seguintes informações: nome
do personagem da história, período em que viveram, nome das principais obras
relacionadas a temas de Geometria e onde tais documentos podem ser encontrados ou
estão disponíveis. De posso de tais informações almeja-se dar continuidade ao aporte e
fomento das atividades supracitadas compilando tal levantamento em uma plataforma
como linha do tempo interativa.

Palavras-chave: Atividades-históricas-com-tecnologias. História da Matemática.


Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação. Investigação Matemática.
Geometria.

INTRODUÇÃO

194
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). gomesbeatriz.anna@gmail.com.

545
O presente trabalho é fruto de uma pesquisa de iniciação científica (IC) em
andamento, estando vinculado ao projeto CONEXÕES POTENCIAIS ENTRE
HISTÓRIA DA MATEMÁTICA E TDIC: APORTE PARA FOMENTO DE
ATIVIDADES-HISTÓRICAS-COM-TECNOLOGIAS (PROPESQ/UFRN) que
respalda a possibilidade da aliança entre História da Matemática (HM) e
Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC) por meio da
Investigação Matemática (IM), fundamentando-se nas propostas de Miguel e
Miorim (2008) para o uso de HM em sala de aula, Borba e Penteado (2007) na
inserção de tecnologias no ensino de Matemática, e Ponte, Brocado e Oliveira
(2009) nas ponderações sobre a IM como agente auxiliador no processo de ensino-
aprendizagem. Além disso, toma como base as pesquisas de Sousa (2020a e
2020b) quanto a aliança.
Em uma das edições anteriores do projeto de pesquisa, o artigo Investigando
a Conjunção entre História da Matemática e Tecnologias de Informação e
Comunicação, por meio de um Levantamento Bibliográfico em Eventos
Internacionais de Educação Matemática (COSTA; SOUSA, 2017), realizou busca
por trabalhos presentes em Anais de eventos de Educação Matemática nacionais
e internacionais a fim de catalogar estudos que apresentassem a aliança entre HM
e TDIC. Como resultado, percebeu-se que existem trabalhos nessa temática,
entretanto, mesmo apontando resultados relevantes, ainda haviam poucos estudos
que apresentem essa aliança. Desse modo, com intuito inicial de apresentar um
aporte para o fomento de atividades como essa foram definidos critérios em comum
em cada estudo obtido e estabelecidos parâmetros que se fizeram presentes com
mais frequência nos trabalhos analisados. No parâmetro metodologia, a mais
utilizada foi a qualitativa, o parâmetro tema mais frequente na aliança revelou ser
Geometria, o software mais utilizado foi o GeoGebra e o cunho educacional
presente nos trabalhos que aliavam HM e TDIC apontou para produtos
educacionais do tipo sequências didáticas, de atividades ou tarefas.
A fim de melhor compreender a proposta de aliança entre HM, TDIC via IM em
prol do ensino de matemática e fomentar trabalhos nessa direção, posteriormente,
numa pesquisa qualitativa de cunho bibliográfico intitulada Aporte para a promoção

546
de atividades-históricas-com-tecnologias (SOUSA; GOMES, 2019), foi feito um
estudo de dissertações orientados pela professora Giselle Costa de Sousa no
período de 2011 a 2019, considerando os parâmetros estabelecido em pesquisas
anteriores, com o objetivo de definir o que são atividades-históricas-com-
tecnologias e quais são os elementos que as compõem. Em consequência, definiu-
se atividades-históricas-com-tecnologias como sendo as que trabalham problemas
históricos apoiando-se nas tecnologias por meio da Investigação Matemática sendo
composta pelos elementos estruturantes: Elementos pré-textuais, Informações
básicas, Desenvolvimento e Avaliação.
Prosseguindo com o objetivo dar o aporte para produção de atividades que
propõem a aliança entre HM e TDIC, procurou-se apontar possibilidades de
temáticas voltadas para o campo da Geometria de modo a propiciar estudos no
tocante a referida conjunção. Nesse sentido, observou-se uma linha do tempo posta
no site MacTutor e foi iniciada uma varredura por tais assuntos da História da
Matemática ligados a referida temática. Assim, a pesquisa Aporte para fomento de
atividades-históricas-com-tecnologia: essência e encaminhamentos para produção
da linha do tempo em geometria (GOMES; SOUSA, 2019) fez uma seleção
preliminar de alguns tópicos de história da Geometria, tendo como base o primeiro
período do MacTutor (grego – conforme o site) de modo a produzir um protótipo de
linha do tempo parcial com matemáticos/estudiosos que produziram trabalhos em
Geometria no período selecionado. Contudo, constatou-se a necessidade de
ampliar esse levantamento inicial e ainda reformular a disposição dos períodos
históricos tendo em vista a incorporação de novas fontes, bem como, e extensão
de espectro historiográfico.
Decorrente disso, o presente trabalho busca continuar o fomento proposto
objetivando retomar a seleção de tópicos de História da Matemática focado na
Geometria, organizando temas potenciais para a aliança entre HM e TDIC, em
quadros que apresentam informações relevantes para estudos futuros e que podem
alimentar uma linha do tempo interativa posterior a ser elaborada com base na
coleta e organização dos dados obtidos. Desse modo, a pesquisa agora se
estendeu para além do que o Mactutor chama de período grego e compilou as

547
informações cronológicas tomando como referência o período da antiguidade,
idade média e período moderno com contribuições de diferentes civilizações. Os
quadros propostos trazem as seguintes informações: o período, anos em que o
personagem viveu, nome do personagem histórico, tópico de história referente a
contribuição para Geometria, suas obras e onde ela está disponível. Além disso,
outras informações relevantes tem sido catalogadas, contudo, não serão objeto de
apreciação no presente artigo.
Além da seleção dos tópicos de HM, que consiste em resultados parciais da
pesquisa IC em andamento, como dito, também pretende-se produzir uma linha do
tempo interativa, por meio de recursos tecnológicos. Esta, por sua vez, pretende
ser alimentada pelo referido levantamento a partir das informações presentes nos
quadros ora apresentados, permitindo, posteriormente, a realização de ensaio de
atividade-histórica-com-tecnologia, baseando-se nos parâmetros já apreciados,
elementos estruturantes e tópicos de HM da Geometria analisados durante todo o
projeto.
A fim de apresentar os caminhos trilhados por esta investigação tecemos,
adiante, ponderações quanto aos aspectos metodológicos da pesquisa.

METODOLOGIA

A metodologia de pesquisa utilizada é a qualitativa de cunho bibliográfico,


segundo Godoy (1995):
[...] a pesquisa qualitativa não procura enumerar
e/ ou medir os eventos estudados, nem emprega
instrumental estatístico na análise dos dados. [...]
Envolve a obtenção de dados descritivos sobre
pessoas, lugares e processos interativos pelo
contato direto do pesquisador com a situação
estudada [...] (GODOY, 1995, p. 58)

Logo, a pesquisa qualitativa objetiva reunir documentos sobre determinado


assunto visando manter o pesquisador em contato direto com seu objeto de

548
pesquisa, permitindo que ele analise a fundo sobre o tema estudado e confronte
resultados, a fim de chegar a suas próprias conclusões.
No artigo Pesquisa documental: considerações sobre conceitos e
características na pesquisa qualitativa, as autoras afirmam que:

As informações ou dados coletados podem ser


obtidos e analisados de várias maneiras
dependendo do objetivo que se deseja atingir.
Num estudo qualitativo a busca por dados na
investigação leva o pesquisador a percorrer
caminhos diversos, isto é, utiliza uma
variedade de procedimentos e instrumentos de
constituição e análise de dados. (KRIPKA;
SCHELLER; BONOTTO, 2015)

Posto isso, essa pesquisa utiliza como instrumento de investigação inicial o


site MacTutor History of Mathematics Archive (O'CONNOR; ROBERTSON, 2019),
que, como posto, possui uma linha do tempo com vários matemáticos/estudiosos
conhecidos e já registrados na história com suas respectivas biografias. A partir
dessa fonte começamos a seleção dos tópicos de HM e a produção dos quadros.
Contudo, como já relatado, no decorrer da pesquisa não nos limitamos ao referido
site, pois sentimos necessidade de ampliar para fontes além da HM, como de
História da Ciência, tendo em vista inclusive, a observação que nem sempre os
temas que podemos identificar como geométricos podem ser encontrados
exclusivamente em tratados matemáticos. Desse modo, no levantamento trazido
nesse artigo e ao ampliar as fontes de busca incorporamos outros nomes/trabalhos
que não constavam no MacTutor.
Assim sendo, como uma maneira de confrontar e acrescentar informações,
também utilizamos outros sites de biografias, livros de História da Matemática e
História das Ciências, tendo em vista que muitos personagens eram estudiosos
cujos trabalhos podem se enquadrar em contribuições para além da matemática,
ou seja, poderíamos dizer com parâmetros modernos que também foram físicos,
engenheiros, mecânicos e entre outros. Dos livros usados, tomamos como
exemplo: História da Matemática, do Carl B. Boyer (2012); História da Matemática:

549
Uma visão crítica, desfazendo mitos e lendas, da Tatiana Roque (2012); História
da Matemática e suas (re)construções conceituais, do Fumikazu Saito (2015), A
Concise History of Mathematics, do D. J. Struik (1954), Lecciones de Historia de las
Matemáticas, de Hans Wussing (1998), Companion Encyclopedia of the History and
Philosophy of the Mathematical Sciences, de Ivor Grattan-Guinnes (1994), a
coleção de livros História da Ciências, de Carlos Augusto Rosa (2012), e entre
outros.
Diante dessas informações trazemos na sequência os resultados até o
momento.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Para a produção dos quadros com os tópicos de HM, resultado de nosso


levantamento, como mencionado, iniciamos a coleta de informações pelo Mactutor,
analisando todos os nomes presentes nas linhas do tempo do período grego,
período árabe e uma parte do período entre o século XVI e XVII. Como mencionado,
para a ampliação do levantamento posto nesse artigo, optamos por reconfigurar a
divisão do Mactutor e apontar para configuração de partes da história geral de modo
que temos quadros para a Idade Antiga, Idade Média e Idade Moderna.
Ressaltamos que, por ser uma pesquisa em andamento, o quadro do período
moderno ainda não está completo, indo até René Descartes, porém, ao longo do
desenvolvimento do trabalho, planejamos alimentar esse quadro e abranger mais
personagens que estudaram Geometria de todos os períodos.
Na Idade Antiga, consideramos o primeiro matemático registrado na linha do
tempo do Mactutor e que trabalhou com Geometria, Baudhayan, que viveu em
aproximadamente 800 a.C. e termina em Antêmio de Tralles, que viveu de 474 d.C.
até 534 d.C.. Segundo Vázquez, Rey e Boubée (2008), a Idade Média tem início
com a queda de Roma, em 476 e finaliza em 1453, com a queda de Constantinopla,
logo, o quadro referente a Idade Média começa com o matemático Aryabatha (476-
550) e termina com o Leonardo da Vincii (1452–1519). Já o último quadro, referente

550
a Idade Moderna, começa com o matemático Scipione del Ferro (1465-1526) e, não
concluído, pausa em René Descartes (1595-1650). Vale salientar que temos
consciência que as possibilidades de nomes e trabalhos nos referidos períodos,
aqui apresentada, não se esgota com este levantamento e, além disso, que fizemos
escolhas apontar um inicial e final de cada período, mas que podem haver outros
anteriores e posteriores, sobretudo, a depender de novos parâmetros de escolhas.
Como uma forma de tratamento dos resultados para apresentação no artigo,
tendo em vista as limitações de formatação do documento, foram selecionados
alguns fragmentos dos quadros a fim de mostrar partes do trabalho realizado
restringindo-os apenas informações como: o período, o personagem, suas
principais obras e onde é possível localizá-las. Entretanto, os quadros com mais
informações poderão ser consultados pelo link195 apresentado. O link permite
acesso a uma pasta que contém um documento em formato de planilha eletrônica
com mais informações catalogadas, este por sua vez, se pretende usar para
alimentar a linha do tempo interativa posterior. Inicialmente será aberto o primeiro
período, porém, abaixo do quadro terão mais duas abas referentes ao que tem sido
produzido até agora.
Para a seleção dos seguintes estudiosos, procuramos opções para um futuro
ensaio de material didático e estudo de um personagem histórico para ser
trabalhado em pesquisas seguintes de mestrado e/ou doutorado, baseando-se na
proposta do não-acontecimental, como coloca Saito (2015).
No primeiro quadro 1, denominado de Recortes do quadro da Idade Antiga,
foram selecionados, para o presente texto, uma amostra de quatro estudiosos
dentre os postos no levantamento.

Quadro 1: Recortes do quadro da Idade Antiga

PERÍODO NOME OBRAS DISPONIBILIDADE

195 Link de acesso aos quadros: https://bit.ly/3nfEJ4n

551
Manava's
750 a.C. -
Manava Sulbasutra (data Obra perdida.
690 a.C.
desconhecida)
135 A.C. - 51 Posidónio de
Nome desconhecido. Obra perdida.
A.C Rodes
Metrica (data
desconhecida)
10 d.C. - 75 Heron de Definitiones (data
Não encontrado.
d.C. Alexandria desconhecida)
Stereometrica (data
desconhecida)
Pappus de Mathematicae
290 – 350 https://bit.ly/35mpP5b
Alexandria collectiones (1609)
Fonte: Elaborado pelas autoras em word, 2020.

O Manava (750 a.C. – 690 a.C) produziu a obra Manava's Sulbasutra (data
desconhecida) que apresenta construções aproximadas de círculos de retângulos
e quadrados de círculos usando um número aproximado para pi. Sua obra
encontra-se perdida. Já Posidónio de Rodes (135 a.C. - 51 a.C) usou Geometria
para calcular o tamanho da circunferência terrestre, lua, sol e suas distâncias. O
nome da sua obra é desconhecida e encontra-se perdida. Nos casos em que não
se sabe o nome da obra e/ou está perdida, têm-se conhecimento sobre ela a partir
de citações feitas em trabalhos e documentos de outros estudiosos.
O terceiro estudioso apresentado é Heron de Alexandria (10 d.C – 75 d.C.).
Sua contribuição mais famosa é a fórmula para a área de um triângulo em termos
de comprimentos dos seus lados. Há registros de três obras que tratam de
Geometria: Metricam, Definitiones e Stereometria (datas desconhecidas). No
quadro, é citado que a obra não foi encontrada visto que não se tem certeza se a
obra está perdida, mas também não foram encontrados registros delas pelas
pesquisas até o momento. Planejamos refinar mais a busca no decorrer deste
projeto, tanto com este como com outros personagens. O último estudioso presente

552
nesse recorte é Pappus de Alexandria (290 – 350) que estudou sobre como
inscrever uma esfera em cinco poliedros regulares. Sua obra se chama
Mathematicae collectiones (1609).
No quadro referente a Idade Antiga, nota-se que não se sabe a maioria dos
nomes ou a localização das obras, visto que, por ser uma época mais distante,
muitos textos e documentos foram perdidos. Há poucas obras que podem ser
encontradas online e algumas só são encontradas numa versão já traduzida e/ou
comentada, e não a original.
O segundo quadro 2, Recortes do quadro da Idade Média, contém mais
quatro estudiosos que viveram nesta época.

Quadro 2: Recortes do quadro da Idade Média


PERÍOD
O NOME OBRAS DISPONIBILIDADE
On the sphere (data
720 - 780 Lalla Não encontrado.
desconhecida)
Taḥrīr Kitāb al-mafrūḍāt
(data desconhecida)
Taḥrīr Kitāb al-
Kitāb al-mafrūḍāt (thābit
Al-Sabi Thabit mafrūḍāt:
ibn qurrah) (data
836 - 901 ibn Qurra al- https://ismi.mpiwg-
desconhecida)
Harrani berlin.mpg.de/digital
Kitāb arshimīdis fī al-
ization/281160
dawāʾīr al-mutamāssah
(data desconhecida)
Cópia disponível
para compra na
Leonardo versão traduzida e
1170 - Practica geometriae
Pisano comentada
1250 (1219)
Fibonacci publicado pela
editora Springer-
Verlag New York.

553
https://ismi.mpiwg-
1364 - Qadi Zada al- Tuḥfat al-Raʾīs Sharḥ
berlin.mpg.de/digital
1436 Rumi ashkāl al-tasīs (1413)
ization/285613
Fonte: Elaborado pelas autoras em word, 2020.

O primeiro personagem presente neste recorte é Lalla (720 - 780). Em seu


tratado On the sphere (data desconhecida) ele aborda tópicos como representação
gráfica, esfera celeste e outros problemas matemáticos, contudo, tal trabalho não
foi encontrado até então. Seguindo a linha do quadro, temos Al-Sabi Thabit ibn
Qurra al-Harrani (836 – 901). Estudou a generalização do teorema de Pitágoras
aplicado não só no triângulo retângulo. Das suas obras, a única encontrada online
foi Taḥrīr Kitāb al-mafrūḍāt (data desconhecida). O terceiro estudioso selecionado
foi Leonardo Pisano Fibonacci (1170 – 1250). Na sua obra Pratica geometriae
(1219) ele trabalhou com problemas com teoremas baseados no trabalho de
Euclides. Por fim, trazemos como representante da idade média, Qadi Zada al-
Rumi (1364 – 1436) que produziu tabelas de calendários astronômicos que
continham cálculos trigonométricos. Sua obra Tuḥfat al-Raʾīs Sharḥ ashkāl al-tasīs
(1413) encontra-se disponível online.
Na maioria dos personagens presentes no segundo quadro completo, há
uma predominância de árabes, logo, a maioria de suas obras encontram-se na sua
língua de origem. Portanto, para a seleção de obras que contém apenas Geometria,
levamos em consideração os dados encontrados por estudiosos da área que
afirmam que os trabalhos apresentados pertencem a área de Geometria, de modo
que lançamos mão de literatura secundária.
O terceiro e último quadro 3 deste artigo é nomeado por Recortes do quadro
da Idade Moderna. Nele trazemos amostragem para o presente artigo do período
em questão.

Quadro 3: Recortes do quadro da Idade Moderna


PERÍODO NOME OBRAS DISPONIBILIDADE

554
Libro de algebra en
1502 - Pedro
Nunes arithmetica y https://bit.ly/37wvCHV
1578
Salaciense geometria (1567)
1546 - Thomas
Obra desconhecida Não encontrado
1595 Digges
Gregorius Opus geometricum
1584 -
Saint- quadraturae circuli https://bit.ly/2ISkr25
1667
Vincent sectionum coni (1647)
versão comentada:
1595 - René
La géométrie (1637) http://www.gutenberg.org/ebook
1650 Descartes
s/26400

Fonte: Elaborado pelas autoras em word, 2020.

No quadro 3, selecionamos inicialmente para apresentar Pedro Nunes


Salaciense (1502 – 1578). Trabalhou com Geometria, trigonometria esférica e
estudou problemas como quadratura do círculo, trisseção de um ângulo arbitrário
e duplicação do cubo. Sua obra, relativa a nosso tema de estudo, se chama Libro
de algebra en arithmetica y geometria (1567). Em seguida, Thomas Digges (1546
– 1595) que pesquisou aplicações trigonométricas para encontrar estrelas e
resolver problemas astronômicos. O nome de sua obra é desconhecido. O terceiro
personagem do quadro é Gregorius Saint-Vincent (1584 – 1667). A sua obra, Opus
geometicum quadraturae circuli sectionum coni (1647) apresenta um estudo de
círculos, triângulos, séries geométricas, elipses, parábolas e hipérboles. Como
último estudioso do referido quadro, até o momento, têm-se René Descartes (1595
– 1650). Em sua obra, La Gétométrie (1637), utilizou o plano cartesiano com o
intuito de representar planos, retas, curvas e círculos por meio de equações
matemáticas.
Fazendo uma apreciação do terceiro quadro, nota-se, além de mais
informações sobre a biografia dos estudiosos, uma facilidade maior de encontrar
acesso as obras do que nos outros dois quadros, tendo em vista que, por ser um

555
período mais próximo, já havia certas preocupações com a conservação desses
documentos e até mesmo quanto ao tipo de materiais desenvolvido para registro e
que apresenta mais resistência ao tempo.
Além da finalização dos quadros, como desdobramento deste projeto, com
já mencionado, planeja-se também produzir uma linha do tempo interativa por meio
de um site alimentado por esse levantamento. A ideia é que ao entrar na aba do
personagem histórico selecionado, possa ser visualizado o período em que viveu,
o tópico histórico referente ao seu trabalho, suas obras particularmente ligadas a
assuntos de Geometria, onde podem ser encontradas tais obras e ainda imagens
que tenham relação com o mesmo (documento/personagem).
Tendo em vista o exposto até então, proferimos adiante nossas
considerações finais do presente trabalho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As pesquisas do projeto Conexões potenciais entre História da Matemática


e TDIC: aporte para fomento de atividades-históricas-com-tecnologias delineiam a
aliança entre HM e TDIC por meio da IM e apresentam parâmetros para produção
de trabalhos com a mesma vertente. Como desdobramento destas pesquisas, a
proposta deste artigo é contribuir para o fomento de atividades-históricas-com-
tecnologias por meio de uma seleção e organização de tópicos de HM voltados
para a Geometria.
Consideramos que para a produção de atividades investigativas que
apresentem problemas históricos apoiados com tecnologias, as atividades-
históricas-com-tecnologias, sejam necessários seus elementos estruturantes
como: Elementos Pré-textuais, Informações Básicas, Desenvolvimento e
Avaliação, assim como, é fundamental ter tema histórico a ser abordado e um
documento a ser analisado. Para tanto, consideramos que os quadros com a
seleção de tópicos de HM em Geometria são relevantes, pois podem constituir guia
para trabalhos na direção da aliança supracitada.

556
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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WUSSING, Hans. Lecciones de Historia de las Matemáticas. 1998.

558
THABIT IBN QURRA (836-901) E A GENERALIZAÇÃO DO TEOREMA DE
PITÁGORAS
Pesquisa histórica para uma proposta de aliança entre a História da
Matemática e as Tecnologias Digitais para o ensino de Matemática

Allyson Emanuel Januário da Costa 196


Giselle Costa de Sousa 197
Marta Figueredo dos Anjos198

RESUMO
Tomando como base os resultados obtidos em pesquisa de Iniciação Científica (IC), o
presente trabalho é um desdobramento das atividades de IC que culminam numa pesquisa
de mestrado em andamento vinculada ao Programa de Pós-graduação em Ensino de
Ciências Naturais e Matemática da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Este
trabalho se concentra na área de História da Matemática (HM), mais precisamente sobrea
Matemática Islâmica Medieval, e no apoio que as Tecnologias Digitais de Informação e
Comunicação (TDIC) podem fornecer à compreensão dessa História, via Investigação
Matemática (IM) em prol do ensino de Matemática. A contribuição islâmica para
Matemática é fundamental para se compreender os percursos tomados por essa ciência
ao longo da história, assim como a sua influência no desenvolvimento da Matemática
Ocidental, na qual estão inseridos nossos estudantes. Sendo assim, esse trabalho se
configura com a apresentação de texto histórico bibliográfico que será usado na elaboração
de uma proposta de aliança entre HM e TDIC, tomando-se como referência o matemático
Thabit ibn Qurra e sua contribuição para Matemática, particularmente com a Generalização
do Teorema de Pitágoras desenvolvida por ele no século IX. Essa proposta se desdobrará
no desenvolvimento de um produto educacional composto de sequências de atividades,
que efetive essa aliança entre HM e TDIC. Para tanto, o referido artigo se apoia na
metodologia de pesquisa qualitativa bibliográfica gerando como fruto discussões sobre uso
da HM aliada às TDIC via IM em favor do ensino de Matemática. Consideramos relevante
o estudo histórico realizado, pois, além de disponibilizar literatura em português sobre o
assunto, pudemos vislumbrar possibilidades que este estudo pode trazer para o ensino de
Matemática, mais precisamente a partir da Generalização do Teorema de Pitágoras
produzindo Thabit em seu contexto, culminando na aliança que almejamos.

Palavras-chave: História da Matemática. Aliança. Thabit. Matemática Islâmica


Medieval.

INTRODUÇÃO

196 UFRN. allysonecosta@gmail.com


197 UFRN. gisellecsousa@hotmail.com
198 UFRN. martafigueredo@yahoo.com.br

559
Este trabalho é um desdobramento de minhas atividades como bolsista de
Iniciação Científica (IC), desenvolvidas na graduação, do ano de 2016 a 2018.
Considerando o estudo realizado, a pesquisa de IC apontou que a conexão entre
HM e TDIC ocorre via investigação de problemas históricos frequentemente ligados
ao tema Geometria usando como recurso tecnológico mais recorrente o GeoGebra
e com cunho educacional mais marcado por sequências de atividades. Tendo em
vista tais aspectos, foi delineada uma pesquisa de mestrado que se concentra na
área de História da Matemática, mais precisamente sobre a Matemática Islâmica
medieval, particularmente mediante o estudo da Generalização do Teorema de
Pitágoras proposto por Thabit ibn Qurra (836-901), bem como no apoio que as
Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC) podem fornecer a
compreenção deste tema e da própria Matemática no contexto atual da sala de aula
à luz da Investigação Matemática (IM).
O interesse por investigar sobre a Matemática Islâmica Medieval se iniciou
a partir da minha participação no III Seminário Cearense de História da Matemática,
que ocorreu entre os dias 26 e 28 de março de 2018, na cidade de Juazeiro do
Norte – CE. Neste evento pude assistir à palestra de abertura da Profª. Drª.
Bernadete Barbosa Morey, intitulada História da Matemática Islâmica Medieval,
questões abertas para estudos, disponível publicamente na plataforma YouTube,
através do canal de veiculação GPEHM UECE. Desse modo, ao observar as
colocações da palestrante quanto ao pouco estudo que se tem sobre a Matemática
Islâmica deste período e ainda que, quando se encontra, não há muitas produções
destinadas a professores, licenciandos em Matemática ou até mesmo para alunos
de pós-graduação, pude notar um campo profícuo para pesquisa. Assim,
procurando articular esta observação aos resultados da pesquisa de IC, partimos
para pesquisar possíveis temas/trabalhos/obras de Geometria inerentes a
Matemática Islâmica Medieval até encontrar o trabalho supracitado de Thabit.
De acordo com Berggren (1986), é importante trazer a Matemática Islâmica
Medieval para os dias atuais, pois a contribuição islâmica para Matemática é
fundamental para se compreender os percursos tomados pela Matemática ao longo

560
da história, bem como a sua influência no desenvolvimento da Matemática
ocidental.
Desde a sua primeira edição, o projeto de pesquisa de IC, buscou a
possível conjunção entre HM e TDIC, em prol do ensino de Matemática. Costa e
Sousa (2018) determinam a partir disso parâmetros que consideramos serem os
norteadores para quando se quer pesquisar a conjunção entre HM e TDIC. Vale
ressaltar que os usamos para o desenvolvimento desse artigo, por exemplo, o
resultado, presente em Costa e Sousa (2018), do parâmetro Tema Histórico que
apontou como mais recorrente o tema Geometria e ainda que no parâmetro Cunho
Educacional obtivemos maior frequência a sequência de atividades, como
destacam. Mediante pesquisa bibliográfica chegamos à Generalização do Teorema
de Pitágoras, desenvolvida por Thabit ibn Qurra, no século IX. De fato, percebemos
que podemos usar o parâmetro metodológico qualitativo, com tema histórico ligado
à Geometria sendo a referida Generalização visualizada e compreendida, no
contexto da Educação Básica, com o apoio de softwares de matemática dinâmica
como o GeoGebra, via produto educacional composto de sequências de atividades.
Na intenção de usar posteriormente esse tema histórico articulado com as
TDIC via IM em prol do ensino para desenvolver proposta futura de aliança de modo
a atender aos parâmetros supracitados, produzimos o presente artigo que adentrou
numa pesquisa bibliográfica cujo percurso segue.

PERCURSO METODOLÓGICO

A pesquisa de IC supracitada apontou ainda o aspecto metodológico


qualitativo como a mais recorrente nos trabalhos desenvolvidos numa proposta da
aliança almejada. Desse modo, a produção da pesquisa de mestrado, em
andamento, adota a abordagem qualitativa e se divide em dois momentos: a
pesquisa bibliográfica e a pesquisa-ação. Contudo, o primeiro momento é o foco do
presente artigo e que, portanto, nos deteremos no presente texto.
O momento da pesquisa bibliográfica é caracterizado ao se buscar delinear
as informações históricas do trabalho aliadas aos demais fundamentos da

561
pesquisa. Para este momento, destacamos, dentro desse levantamento inicial, o
artigo Thabit ibn Qurra’s generalization of the Pythagorean theorem (que
traduzimos como: A Generalização do Teorema de Pitágoras de Thabit ibn Qurra),
de Aydin Sayili, 1960. Tomamos como base Sayili (1960), considerando as
motivações explicadas inicialmente e os resultados da pesquisa de IC, já que nesse
trabalho Sayili (1960) aborda a Generalização do Teorema de Pitágoras
desenvolvida por Thabit, apresentando brevemente algumas notas biográficas e
históricas sobre o referido personagem islâmico, mas trazendo com mais afinco o
conhecimento epistemológico que deriva dessa generalização, inclusive a
demonstração dessa generalização, mas sem muitos detalhes e aprofundamento.
Com a continuação do levantamento, destacamos o artigo: Thabit ibn Qurra and
the Pythagorean Theorem (que traduzimos como: Thabit ibn Qurra e o Teorema de
Pitágoras), de Shloming (1970). Consideramos este trabalho importante para o
entendimento da relação de Thabit com o Teorema de Pitágoras, complementando
inclusive Sayili (1960).
Observamos uma nota de rodapé no artigo de Sayili (1960) e
redirecionamos nossa pesquisa a fim de identificar outras fontes sobre o tema, ou
até mesmo alguma relação deste trabalho citado com o manuscrito a que Sayili
(1960) faz referência. Neste sentido chegamos ao trabalho Sâbit ibn
Kurra'nin Pitagor Teoremini Tamimi (que traduzimos como: O Completo Teorema
de Pitágoras feito por Thabit ibn Qurra), de Thabit (1958) e Sayili (1958). De acordo
com Sayili (1960), o texto traz o manuscrito de Thabit em árabe juntamente com a
tradução turca do documento, feita por Sayili (1958). Indícios de que esse
documento é a fonte que procurávamos podem ser constatados a partir da tradução
de um trecho que traz a seguinte afirmação: “o manuscrito, cujo texto e tradução
são apresentados abaixo[...]”, o que de fato remete que Sayili (1958, p. 527,
tradução nossa) se refere à apresentação do texto original e sua respectiva
tradução em turco, tomamos este artigo então como base de nossa pesquisa. No
trabalho Sâbit ibn Kurra'nin Pitagor Teoremini Tamimi há comentários de Sayili,
além da tradução. Então, a título de esclarecimento, quando estivermos citando os
comentários de Sayili, usaremos Sayili (1958), porém quando apresentarmos o

562
texto de Thabit traduzido por Sayili, usaremos Thabit (1958). Tanto Sayili (1958),
Sayili (1960) quanto Shloming (1970) trazem que o Tratado da Prova atribuída a
Sócrates sobre o Quadrado e suas Diagonais, feito por Thabit ibn Qurra, que
tomamos como documento de análise, está muito bem preservado na Biblioteca
Museu de AyaSofya 199 , em Istambul na Turquia, em um Codex 200 AyaSofya,
registrado sob o número 4832. Este codex reúne manuscritos sobre Matemática,
Astronomia, Meteorologia e Filosofia, escritos por vários estudiosos, além de
Thabit, como al-Kindi (801 d. C. – 873), al-Qabisi (falecido em 967 d. C.), al-Kuhi
(940 d. C. – 1000), entre outros, sob a responsabilidade do Instituto de História das
Ciências Árabes e Islâmicas201, da Universidade de Frankfurt, na Alemanha, sob a
edição de Fuat Sezgin, 2010. Com esse documento, em conjunto com demais
fontes supracitadas, delineamos a investigação histórica posta no presente artigo
de modo a evidenciar Thabit e sua produção (com) o texto.
Tendo em vista esse conjunto de fontes, dados e possibilidades de análise
historiográfica, Gil (2008) reforça o quanto é indispensável a pesquisa bibliográfica
em estudos históricos porque, em boa parte dos casos, a busca por fatos do
passado necessita da análise de documentos secundários, isto é, de documentos
que já tiveram um tratamento analítico anterior. Contudo, sem deixar de lado a
importância das fontes primárias. Nesse sentido, lançamos mão de ambas as
fontes. Consideramos que a pesquisa bibliográfica contribui para estudos futuros,
inclusive para o desenvolvimento de outras pesquisas, como destacam Lima e
Mioto (2007). No nosso caso, tal pesquisa delineará a produção de texto histórico
usado num produto educacional no formato de sequência de atividades pautadas
na aliança entre HM e TDIC via IM e aplicado na formação inicial de professores de
Matemática na disciplina de Tópicos de História da Matemática.

199 Não foi encontrado o site oficial do Museu, mas veja mais em: https://kvmgm.ktb.gov.tr/TR-
44094/istanbul-ayasofya-muze-mudurlugu.html
200 Em português, Códices, eram coleção de manuscritos antigos, mais informações:

https://conceitos.com/codice/
201
https://www.uni-
frankfurt.de/58601604/Institut_f%C3%BCr_Geschichte_der_Arabisch_Islamischen_Wissenschafte
n

563
Como fruto do estudo histórico posto, trazemos na próxima seção um
ensaio dos resultados obtidos.

RESULTADOS E ANÁLISE: THABIT IBN QURRA (836-901) E A


GENERALIZAÇÃO DO TEOREMA DE PITÁGORAS

Para realizar o estudo histórico proposto e compreender a contribuição de


Thabit com sua Generalização do Teorema de Pitágoras buscamos o documento
sobre o Tratado, mas que tivemos acesso apenas ao tratado de Thabit, e não ao
codex completo, sendo disponibilizado uma versão digitalizada desse documento
Entramos em contato inicialmente com a Biblioteca Nacional da França 202, por e-
mail, que prontamente responderam, alegando que não poderiam me fornecer as
fotocópias deste tratado por estar de posse do Instituto de História das Ciências
Árabes e Islâmicas, da Universidade de Frankfurt, que retornaram, inclusive com o
documento digitalizado, que estamos fazendo uso na pesquisa.
De posse deste documento (ver figura 01), fizemos uso da versão
digitalizada a título de comparação e confrotamento com a tradução turca e o texto
árabe de Thabit (1958).

FIGURA 01: Capa do Codex AyaSofya 4832 em árabe

202
https://www.bnf.fr/fr/francois-mitterrand

564
Fonte: Sezgin (2010)

De acordo com Sayili (1960), Thabit analisa a prova socrática e, então, apresenta
duas provas para o caso geral desse teorema. De nosso estudo histórico
observamos que a prova socrática mencionada é a descrita por Platão no livro
Menon do teorema de Pitágoras para um triângulo retângulo isósceles, justamente
derivado do quadrado e suas diagonais. Contudo, da análise do documento de
Thabit observamos que ele não menciona especificamente essa obra de Platão em
seu tratado. Com relação a menção de Sayili (1960) da apresentação de Thabit de
duas provas para o caso geral do teorema, a análise do documento nos permite
constatar que há um forte indicativo de que essas provas sejam geométricas,
inclusive pela presença dos desenhos que Thabit utilizou (como observado na
Figura 02), mas também sejam retóricas, ao passo que Thabit descreve a prova.

FIGURA 02: Parte do manuscrito registrado sob o número 4832, no Códex de


AyaSofya, sobre o Tratado da Prova atribuída a Sócrates sobre o Quadrado e
suas Diagonais, feito por Thabit ibn Qurra

565
Fonte: Sezgin (2010)

Essas provas se configuram na relação entre quadrados construídos nos


lados de quaisquer triângulos retângulos e, muito embora sejam diferentes, o
método que Thabit utiliza nelas é um exemplo, segundo Sayili (1960) do método da
redução e composição.
A Generalização do Teorema de Pitágoras foi solicitada por um amigo de
Thabit a ele, visto que este estava insatisfeito com a Prova Socrática do referido
teorema, já que era aplicada em caso especial: o de um triângulo retângulo
isósceles, e este amigo gostaria de uma prova mais geral. Nessa direção, temos:

Que Allah lhe agrade, você diz que acha esta prova falha [a Prova
Socrática] por causa de sua natureza, que não deveria ser
admirada, uma vez que representa um estado especial e só é
essencialmente verdadeira para um triângulo isósceles e não
contém triângulos retângulos além de isósceles que deveriam ser
incluídos neste teorema, e esta prova não o satisfaz, e você quer
que eu informe se eu fiz uma prova geral disso. (THABIT,1958, p.
543, tradução nossa)

566
Sayili (1958) apresenta desenhos semelhantes aos observados na Figura 02 que
estão presentes no Codex de AyaSofya, sob o número 4832 em que o trabalho de
Thabit está conservado.
Analisando o tratado, pode-se observar ainda indícios da estreita relação
de Thabit com o conhecimento grego, inclusive quando apresenta as provas para
o Teorema de Pitágoras, mas também quando baseia a Generalização do Teorema
de Pitágoras nos Elementos de Euclides, quando Thabit (1958) afirma que a prova
pode ser facilmente obtida com o auxílio da obra fundamental de Geometria de
Euclides. Essa relação de Thabit com a cultura helenística vai ser de suma
importância para nortear o entendimento do contexto, inclusive pelo fato de Thabit
está inserido no Califado Abássida (751 – 1258). Para Doak (1963), os abássidas
reforçaram essa relação da produção científica islâmica com o conhecimento grego
na época. De acordo com Giordani (1976), o califa al-Mamun promoveu em seu
reinado o apogeu da civilização abássida e favoreceu, fortemente, o progresso das
atividades intelectuais, nesse contexto, surge, no século IX, Thabit ibn Qurra (ver a
caricatura dele na Figura 03). Thabit ibn Qurra nasceu em Harran, antiga e
importante cidade da Mesopotâmia e que atualmente está localizada no sul da
Turquia com fronteira com a Síria (ver Figura 03), no ano de 836 d. C. e faleceu em
901 d. C.

FIGURA 03: Thabit ibn Qurra (836-901) e a localização atual de Harran (Turquia)

Fonte: O'Connor e Robertson (2015)

567
Os três irmãos, conhecidos em árabe como Banu Musa, se tornaram os
patronos de Thabit, sobretudo ao reconhecerem sua habilidade linguística.
Segundo Sarton (1927), Banu Musa são: Jafar Muhammad Banu Musa (800 d.C.
- 873); Ahmad Banu Musa (805 d.C. - 873) e al-Hasan Banu Musa (810 d.C. - 873),
grandes patronos da ciência, pois possuiam grandes riquezas, além de desenvolver
também estudos nas áreas da Matemática e Astronomia, por exemplo. Os Banu
Musa destinaram boa parte de sua riqueza na obtenção de manuscritos gregos,
investindo assim em tradutores, como Thabit, que, por sua vez, era fluente em
Grego, Síriaco e Árabe.Thabit ao ser levado para Bagdá começou a traduzir, revisar
e restaurar obras gregas para o Árabe e Síriaco, a fim de contribuir para o
desenvolvimento de estudos dos Banu Musa. Como alguns desses trabalhos de
Thabit, destacamos: Almagesto de Ptolomeu; Cônicas de Apolônio; Data e Os
Elementos de Euclides; Sobre as Medidas do Círculo de Arquimedes, entre outros
(SHLOMING, 1970). A relação de Thabit com o conhecimento grego, seja na
tradução ou até mesmo na complementação da obra grega, como ocorreu na
restauração do Livro Data de Euclides, reforça ainda mais o quanto os estudiosos
islâmicos estavam voltados para produção científica dos gregos, seja com o intuito
de melhorar o que se tinha até o momento, seja com o intuito de resgatar e
conservar os estudos produzidos anteriormentes pelos gregos.
Encontramos fortes indícios dessa relação na religião de Thabit: Sabians.
Esta teve, para nós, um papel fundamental no reconhecimento de Thabit, seja no
campo científico, como no campo político. Quanto à religião de Thabit, temos:

Ele [Thabit] era membro da seita de adoradores de estrelas que se


autodenominavam Sabians (depois de uma seita sancionada no
Livro 2, versículo 63 do Alcorão) para escapar da conversão
forçada ao Islã, pois como politeístas, suas crenças religiosas
teriam sido abomináveis para Muçulmanos. BERGGREN (1986,
p. 4, tradução nossa)

Nessa direção, de acordo com Rashed (2009), os Sabians de Harran


tinham como base a fé helenística, uma possível explicação para a relação de
Thabit com o idioma grego e sua fluência, cuja característica também já foi

568
mencionada em califados anteriores a sua existência e vigentes em sua região.
Fauzan e Fata (2018) destacam que os califas abássidas travaram diálogos,
inclusive com não mulçumanos, com o intuito de obter contribuições reais da cultura
grega e utilizá-la nas mais variadas áreas, inclusive no que se refere à
administração, finanças e organização governamental.
Thabit apresenta a Generalização do Teorema de Pitágoras, que segundo
Sayili (1960), configura-se como uma das contribuições mais importantes de Thabit.
Sayili (1958) menciona que, no manuscrito presente no Codex AyaSofya, em
Sezgin (2010), há oito desenhos que Thabit se utilizou para estudar os casos
específicos para Generalização do Teorema de Pitágoras (Figura 04).

FIGURA 04: Recorte dos 8 desenhos presentes no tratado em que Thabit aborda
a Generalização do Teorema de Pitágoras e os casos especiais a ela vinculados

Fonte: Sezgin (2010)

Ainda de acordo com Sayili (1960), há referência de vários casos especiais que
Thabit explora no tratado, inclusive quando traz os oito desenhos em Sezgin (2010).
São os casos especiais: a) quando B é ângulo reto; b) quando o ângulo B é menor
que 60º e c) o caso em que o ângulo B é maior que 90º. Vale salientar que estes
casos especiais notados por Thabit e com evidências pelos desenhos apresentados
em Sezgin (2010), não foram tratados diretamente e nem assim chamados por
Thabit (1958), sobre os tais casos, estamos partindo de Sayili (1960).
Importante destacar que quando Thabit faz referência aos desenhos da
Figura 04 (primeiro desenho e desenhos restantes), é preciso visualizar o desenho
com os oito triângulos presentes na Figura 04, considerando a ordem de
visualização sendo da direita para a esquerda. Para acompanhar a Generalização

569
do Teorema de Pitágoras como descrita por Thabit, tomemos a tradução turca feita
do tratado que é nosso objeto de estudo:

Este é o triângulo ABC. Vamos desenhar uma ou duas linhas que


do vértice B interceptam AC deste triângulo e fazer com isso um
ângulo igual ao ângulo ABC. Esta linha é uma linha qualquer BD,
como na primeira figura da imagem[...], caso em que esta linha se
cruza com a base para formar dois ângulos iguais a ABC e isso
corresponde ao ângulo ABC ser um ângulo reto; A linha BD é
perpendicular a AC aqui. Ou, como visto na segunda figura [...],
ocorrem duas linhas como BA' e BC'. Neste segundo caso, o ângulo
ABC não é perpendicular e é igual aos ângulos AA'B e CC'B.
(THABIT, 1958, p.546, tradução nossa)

De acordo com Thabit (1958, p.546, tradução nossa), temos que “assim, a soma
dos quadrados dos lados AB e BC é a área retangular de AC multiplicada pela soma
de AD e DC no caso que o primeiro desenho representa, e a soma de AA’ e CC’ no
caso dos desenhos restantes.”. Investigaremos a Generalização feita por Thabit
para os casos diferentes do primeiro desenho da Figura 04, isto é, quando traçamos
dois segmentos BA’ e BC’, os ângulos formados entre os segmentos BA’ e BC’ com
o segmento AC são diferentes de 90 graus, justamente porque o primeiro desenho
da Figura 04, quando o ângulo formado pelo segmento de reta BD com o segmento
AC for reto, resulta no caso particular do Teorema de Pitágoras. A partir disso,
Thabit discorre sobre a Generalização do Teorema de Pitágoras, concluindo que:

A soma de duas figuras semelhantes, além do quadrado ou


retângulo desenhadas em dois dos lados de qualquer triângulo,
perpendicular ou não, é igual à área de qualquer forma cuja
proporção está para a figura semelhante desenhada no terceiro
lado de acordo com as condições no exemplo dado acima.
(THABIT, 1958, p. 547, tradução nossa)

Em consonância a isso, Sayili (1960) destaca que Thabit afirma que na instrução a
abrangência deve caminhar com o particular. De fato, Thabit, após mencionar a
Generalização do Teorema de Pitágoras, faz algumas discussões sobre a relação
do geral e do particular. Inclusive, Thabit elogia seu amigo por buscar uma
generalização, por estar insatisfeito com casos particulares. Desse modo, segundo

570
Thabit (1958), muito possivelmente, Sócrates trouxe um caso particular (o Teorema
de Pitágoras aplicado a triângulos retângulos isósceles, partindo do quadrado e
suas diagonais) justamente pelo fato de a quem Sócrates ensinava, segundo o
relato de Platão, ser alguém iniciante no assunto, não um aluno avançado. Neste
sentido, Thabit afirma que:

Na verdade, o conhecimento aumenta o poder da alma e o reforça.


No entanto, assim como um alimento forte é dado a um corpo fraco
de uma vez, o corpo não pode lidar com ele e este alimento causa
um efeito prejudicial nele ao invés de fortalecê-lo, da mesma forma,
ele permanece em um estado de poder e desamparo quando algo
é previsto que ele não pode suportar. Mas se esse trabalho for feito
de forma gradual e precisa, então sua força é tremendamente
aumentada sem nenhum dano a ele. (THABIT, 1958, p. 548,
tradução nossa)

É importante a reflexão que Thabit faz, inclusive porque ele compara a relação do
alimento para o corpo com o conhecimento para a alma. Ele não só compara a título
de um melhor entendimento do seu amigo, incomodado com o caso particular, mas
também por estabelecer uma relação direta: conhecimento e alimento; alma e
corpo.
Tomaremos as reflexões feitas aqui para estruturar o Produto Educacional,
que será aplicado com intuito de compor uma proposta de aliança entre HM e TDIC,
à luz da IM em prol do ensino de Matemática.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como posto, esta pesquisa se vincula a possibilidade da aliança entre HM


e TDIC via IM para o ensino de Matemática, por meio da Generalização do Teorema
de Pitágoras, desenvolvida por Thabit ibn Qurra no século IX. Para tanto,
fundamenta-se de acordo com os argumentos favoráveis ao uso de História na
Educação Matemática de Miguel e Miorim (2008) e do uso da História da
Matemática como recurso pedagógico de Mendes (2009), com o processo de
Investigação Matemática (IM) de Ponte, Brocado e Oliveira (2009), bem como, as

571
considerações de Borba e Penteado (2007) acerca da Informática e Educação
Matemática.
Na compreensão e utilização da História da Matemática como recurso
pedagógico, faz-se necessário destacar que ao longo dos tempos e em diferentes
sociedades, o conhecimento matemático ganha uma reorganização das
informações, assim como uma ressignificação do que essa Matemática
representou no passado e o que representa no presente (MENDES, 2009).
Por pensarmos numa aproximação com a escrita histórica mais atualizada
e levando isso ao nosso Produto Educacional, torna-se fundamental a reflexão
sobre o papel da HM no ensino de Matemática, inclusive porque essas reflexões
estão cada vez mais crescentes nas discussões entre historiadores e educadores
da Matemática. Saito e Dias (2013) entendem essa articulação dá maior destaque
ao contexto em que esses conhecimentos matemáticos foram desenvolvidos, tendo
em vista que o processo histórico de desenvolvimento da Matemática dá suporte
ao processo de ensino e aprendizagem dessa ciência.
Segundo Miguel e Miorim (2008), há desvantagens no uso da História no
ensino de Matemática, como a ausência de literatura adequada, já que a maior
parte da literatura de HM é dos últimos dois séculos. Nesse sentido, essa
desvantagem do uso dessa tendência isoladamente também pode consequências
na aliança, inclusive nesta pesquisa, que estamos nos aproximando de uma
vertente historiográfica mais atualizada e a HM apresentada nos livros geralmente
se referem a uma Matemática linear e progressista, dificultando ainda a análise, na
perspectiva mais atualizada, de documentos mais antigos (até por não ter acesso)
e restringindo as potencialidades didáticas destes documentos. Ainda dentro
dessas reflexões quanto às desvantagens, mesmo de forma isolada das
tendências, quanto as TDIC, podemos observar a dificuldade de se encontrar temas
históricos que podem ser tratados por meio de softwares, por exemplo, ou até
mesmo o uso das tecnologias digitais como reprodução de passos, preocupado
com o produto, com o resultado e não com o processo, como destacam Borba e
Penteado (2007)

572
Tendo em vista o documento analisado, percebe-se que Thabit propôs a
Generalização, complementando o estudo grego que ele tinha acesso, mas usando
provas (usando desenhos e descrevendo retoricamente) que se baseiam ainda no
conhecimento grego, como dito, que por sua vez ele acessou e se apropriou devido,
em nosso entendimento, a sua relação com a cultura helenística imersa em seu
aspecto teológico. Embora este trabalho se configure pela apresentação dos
resultados parciais de uma pesquisa de mestrado em andamento, seja sobre os
traços biográficos de Thabit ibn Qurra e suas contribuições para Matemática no
século IX, seja sobre a inclusão da História da Matemática Islâmica na Formação
de Professores, consideramos relevante o estudo histórico realizado, pois, além de
disponibilizar literatura em português sobre o assunto, pudemos vislumbrar
possibilidades que este estudo pode trazer para o ensino de Matemática, mais
precisamente a partir da Generalização do Teorema de Pitágoras produzindo
Thabit em seu contexto, culminando na aliança que almejamos.

REFERÊNCIAS

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575
UM BREVE PERCURSO HISTÓRICO DESDE A GEOMETRIA EUCLIDIANA
ATÉ AS GEOMETRIAS NÃO-EUCLIDIANAS

Anna Karla Silva do Nascimento203

RESUMO
Este trabalho traz uma narrativa acerca da geometria euclidiana, cuja sistematização foi
atribuída a Euclides de Alexandria, na Grécia Antiga e alguns questionamentos advindos
relativos ao quinto postulado que está descrito em sua obra Os Elementos e, além disso,
enfatizamos, sobretudo às dificuldades (que perduraram vários séculos) que os
matemáticos e/ou estudiosos tinham em compreendê-lo. Até que, no século XIX, três
matemáticos: Lobachevsky (1793 – 1856), Bolyai (1775 – 1856) e Gauss (1777-1855)
mostraram que tal axioma era correto e que existia uma outra geometria tão consistente
quanto a de Euclides, mas que não se enquadrava em seus parâmetros. É atribuída a
esses três o advento da geometria não-euclidiana. O objetivo deste artigo é apresentar
uma breve cronologia desde a possibilidade da existência de Euclides de Alexandria
perpassando pelos questionamentos gerados pelo quinto postulado enunciado em sua
obra Os Elementos, que contribuíram com o surgimento das geometrias não-euclidianas
respondendo assim, o problema que parecia estar em aberto. Para o percurso
metodológico foi feita uma revisão de literatura em que pontuaram algumas definições e
conceitos sobre as geometrias euclidiana e não-euclidianas (Geometria Hiperbólica e
Geometria Esférica) para que as similaridades e diferenças sejam evidenciadas.

Palavras-chave: Euclides. Geometria. Geometria não-euclidiana. História da


Matemática.

INTRODUÇÃO

Este artigo aborda um recorte histórico sobre Euclides (por volta do século
IV a.C.) e a sistematização de sua geometria com a publicação de Os elementos,
enfatizando os cinco postulados. Dos cinco, evidenciou-se o quinto (equivalente ao
axioma das paralelas) que foi motivação para discussões entre matemáticos de

203
Universidade Federal do Cariri (UFCA). E-mail do autor: karla.nascimento@ufca.edu.br

576
diversos séculos por não possuir o mesmo grau de evidência que os outros
axiomas.
Em seguida, serão apresentadas as geometrias não-euclidianas (GNE)
cuja descoberta foi atribuída a Lobachevsky (1793 – 1856), Bolyai (1775 – 1856)
e Gauss (1777-1855) que concluíram definições e propriedades lógicas e
analíticas.
Posteriormente, serão mostradas algumas geometrias não-euclidianas e
as especificações que as caracterizam, além da apreciação histórica com o
intuito da apropriação dessas discussões que ampliam conceitos de geometria.
Temos, neste trabalho o intuito de apresentar uma breve cronologia desde
a possibilidade da existência de Euclides de Alexandria perpassando pelos
questionamentos gerados pelo quinto postulado enunciado em sua obra Os
Elementos, que contribuíram com o surgimento das geometrias não-euclidianas
que responderam esses problemas que pareciam estar em aberto.
O percurso metodológico foi realizada uma revisão de literatura em que
pontuaram algumas definições e conceitos sobre as geometrias euclidiana e
não- euclidianas (Geometria Hiperbólica e Geometria Esférica) para que as
similaridades e diferenças sejam evidenciadas.
A seguir será detalhado um pouco sobre Euclides e sua obra os
Elementos.

1 UM POUCO SOBRE EUCLIDES E OS ELEMENTOS

É curioso mencionar que não se sabe bem ao certo a origem de Euclides,


alguns estudos até questionam sua existência. Diversos pesquisadores, como
Tomei (2006), por exemplo, defendem a tese que esse nome está relacionado
a uma entidade que existiu na antiguidade. Já Eves (2004) afirma
veementemente que Euclides de Alexandria foi professor da Biblioteca e Museu
de Alexandria − construída e fundada durante o governo de Ptolomeu II (309 -
246 a.C.). Essa biblioteca tornou-se o maior centro de matemática, ciência e
filosofia da época, sendo local de trabalho e de estudo dos principais sábios e

577
estudiosos do período e sendo considerada o primeiro instituto estatal de
pesquisas do mundo, como afirma Mlodinow (2004).

Considerando a existência desse pensador, Euclides formou-se,


possivelmente, pela Escola Platônica de Atenas. Contudo, mesmo com todas
essas dúvidas, é considerado um dos principais nomes da História da
Matemática de todos os tempos.
Uma das traduções de Os Elementos204 faz um breve relato sobre a
Grécia Antiga, os filósofos e matemáticos da época e traz, também,
considerações sobre a falta de informações acerca da vida de Euclides. Do que
consta na referida obra tem-se que “para testemunhos de como se constituiu e
como se desenvolveu a geometria grega, ficamos extremamente dependentes
da escassez de notícias espalhadas em escritores antigos.” (EUCLIDES, 2009,
p. 57).
Por sua vez, Eves (2011, p.167) relata que “é desapontador, mas muito
pouco se sabe sobre a vida e a personalidade de Euclides”. Esses comentários
comprovam o quanto é frustrante ter poucas informações sobre um dos grandes
nomes da matemática desde a Antiguidade aos dias atuais.
Compartilhando da ideia de sua existência, autores como Ávila (2001)
afirmam que Euclides de Alexandria viveu por volta de 300 a.C. sendo,
possivelmente, grego uma vez que viveu boa parte da sua vida em Alexandria
no Egito, ensinando e pesquisando sobre Geometria.
Reiterando o mencionado no início desta seção, devido à questão de
insuficiência de documentos sobre a carreira de Euclides, não se pode precisar
ao certo em que ano nasceu. No entanto, através de deduções feitas por Proclus
– primeiro comentador crítico sobre Euclides − (cerca de 300 d.C.), este
pesquisador, do mesmo modo sustenta que Euclides era da escola platônica e
que mantinha um forte relacionamento com sua filosofia, menciona que Euclides
seria oriundo de tal escola se dá por causa da construção das figuras platônicas,

204
Obra publicada originalmente por Euclides, por volta do século IV, importante para o estudo da geometria
euclidiana e que foi traduzida por diversos séculos e discorreremos sobre suas versões e seu conteúdo,
sucintamente, neste capítulo

578
ou seja, poliedros regulares, em sua obra Os Elementos (EUCLIDES, 2009).
Foi nesse período, segundo a história, o Período Helenístico (século IV
a.C.), que Alexandre Magno, conhecido também como Alexandre O Grande, foi
Imperador por parte dessa época e seu exército invadiu a Ásia Menor, a Fenícia,
o Egito e derrotou os Persas. De fato, Alexandre constituiu um império muito
grande conhecido como o Império de Alexandre. De acordo com Ferreira (2010),
Alexandre, quando criança, fora aluno de Aristóteles, nesse período helenístico
houve uma aproximação do Ocidente com o Oriente, contribuindo para um
avanço cultural, crescimento tecnológico e descobertas científicas dos povos
orientais. O imperador iniciou a construção da cidade de Alexandria, no Egito,
uma cidade com estrutura para tornar-se “centro cultural, comercial e
governamental”, como afirma Mlodinow (2004, p.49), anos depois, Alexandre
faleceu e a cidade foi fundada por Ptolomeu I (cerca de 305 a. C.).
Euclides, como professor da Biblioteca e pesquisador, foi o autor do texto
matemático mais bem-sucedido de toda geração que continua sendo estudado
até os dias de hoje, chamado de Os Elementos, esta coleção é considerada,
atualmente, como uma obra especialmente de valor histórico já que foi escrita
durante a Antiguidade em um período muito rico para o progresso da cultura
grega e antiga em geral. Em Euclides (2009, p.16) tem-se que “a história de Os
Elementos confunde-se, em larga escala, com a história da matemática grega”.
De fato, a ênfase dada a esta obra foi muito grande uma vez que continha todo
o arcabouço grego da época.
Não há registros que sejam capazes de datar a verdadeira época que Os
Elementos foram escritos, porém creditamos a sua escrita no século IV a.C. pois
foi o presumível período vivido por Euclides, o responsável por sua publicação.
Esta obra foi publicada em várias versões e a mais antiga a ser noticiada teria
sido publicada por Théon de Alexandria − um estudioso do século IV que traduziu
a obra e editou a proposição XXXIII do livro VI. Todas as traduções anteriores as
de 1814 eram baseadas pela tradução de Théon, afirma Euclides (2009). Porém,
no século XIX, segundo Eves (2004), quando Napoleão Bonaparte ordenou que
fossem tomadas as bibliotecas italianas e enviadas à Paris os manuscritos de

579
valor, encontraram uma edição anterior àquela obra publicada por Théon.
Antes da publicação de Os Elementos, existiram outras publicações
parecidas com a obra de Euclides, mas não tiveram tanto êxito quanto o célebre
Os Elementos. Segundo Eves (2004), a primeira obra escrita com o mesmo
objetivo foi publicada por Hipócrates de Quio. Conforme o mesmo autor, Lêon
também escreveu uma obra similar à de Hipócrates, porém considerada mais
completa, uma vez que possuía mais proposições a serem analisadas. Teúdio
também escreveu suas proposições e alguns autores consideram-no como o
precursor de Os Elementos de Euclides.
Além de Os Elementos também foi atribuída a Euclides a publicação de
outras obras com conteúdo matemático, como Os dados, Divisão de figuras,
Pseudaria, Porísmas, Cônicas além da escrita de livros sobre matemática
aplicada como Os Fenômenos e a Óptica, dentre outros trabalhos.
Embora muitos pensem que nesta coleção, Os Elementos, a produção seja
apenas Geometria, estão enganados, pois os 13 volumes, contemplam também
Álgebra e Aritmética, contudo, dentre eles, a geometria contida é maioria e foi
capaz de ajustar todo o estudo matemático para aquela época. Esclarecendo,
esta coleção é composta por 465 proposições e treze volumes divididos da
seguinte forma:
• os volumes I, III, IV, VI, XI, XII e XIII tratam sobre a geometria plana e
espacial;
• o volume II traz algumas transformações de áreas e a álgebra
geométrica da escola pitagórica;
• o volume V, segundo Eves (2004, p.173) “é uma exposição magistral da
teoria das proporções de Eudoxo” e essa teoria das proporções
cooperou com a descoberta dos números irracionais pelos pitagóricos;
• os volumes VII e VIII têm uma abordagem focada na Teoria dos
Números, traz o conhecido algoritmo euclidiano, progressões
geométricas e o importante Teorema Fundamental da Aritmética;
• no volume IX, Euclides provou, elegantemente, a infinitude dos
números primos por meio da redução ao absurdo e

580
• o volume X trata dos irracionais com os créditos dados a Teteeto, mas
com uma considerável colaboração de Euclides.
Como pode ser observada nessa síntese, a obra de Euclides de Alexandria
era muito mais que geometria em si, já que, conforme posto, aborda vários
assuntos voltados à Matemática, como a álgebra e a aritmética. Tal produção
fez com que Euclides se transformasse em uma das pessoas mais influentes
da história, pois axiomatizou a geometria e formulou os famosos cinco
postulados que serão citados na seção seguinte.
Desse modo, Euclides deu a base para o desenvolvimento da geometria que
temos hoje, e, nesse sentido, sua obra perdurou e/ou perdura como referência
ao longo dos tempos como espécie de Bíblia que, inclusive, dita o conhecimento
geométrico escolar, uma vez que os livros didáticos remetem-se,
exclusivamente, a geometria euclidiana.
Euclides e seus predecessores reconheceram o que, nos dias de
hoje, todo estudante de Filosofia sabe: que não se pode provar
tudo. Na construção de uma estrutura lógica, uma ou mais
proposições devem sempre ser admitidas como axiomas a partir
dos quais todas as outras são deduzidas (CASTRO, 2011, p. 302).

Alguns autores como Eves (2004) enfatizam a formalidade com que Os


elementos foram elaborados e credita-os como protótipo da formalidade da
Matemática Moderna.

2 SOBRE A GEOMETRIA EUCLIDIANA E OS CINCO POSTULADOS

Como ressaltado, a geometria teve maior espaço no mundo quando


Euclides de Alexandria publicou sua coleção chamada Os Elementos, que possui
treze volumes dos quais seis são dedicados à geometria plana. Tais volumes
enfatizam a axiomatização da geometria, dedução de sequências lógicas e a
formulação de deduções precisas garantindo uma compreensão de
reciprocidade entre palavras e símbolos. De fato, nesta obra, Euclides
esquematiza a geometria com uma estrutura lógica e um rigor muito bem
elaborados, sendo tal estruturação considerada muito importante para a
Matemática.

581
Vale destacar que as demonstrações matemáticas deste período grego não
eram aritmetizadas como temos atualmente, eram totalmente geométricas. Por
exemplo, a demonstração do Teorema de Pitágoras, antes da álgebra era toda
geometrizada.
Assim, diante da força euclidiana, toda essa geometrização perdurou no
ocidente por mais de um milênio após o declínio da civilização helenística.
Dentro dessa estruturação lógica, Euclides escreveu cinco postulados e
diferentemente de Aristóteles que tinha definições distintas para axiomas e
postulados, não via variação e tratando-os como se fossem a mesma coisa. Desses
cinco axiomas, quatro eram diretos e claros, tanto é que não eram questionados e
nem questionáveis dentro da “comunidade científica” da época, entretanto o quinto
postulado foi motivo de muitas inquietações e dúvidas que perduraram por diversos
séculos da história porque não era compreensível e nem simples de ser verificado.
Mlodinow (2004, p.46) diz que o postulado “não era suficientemente simples para
um postulado, e deveria ser demonstrável como um teorema”, essa falta de
simplicidade incomodou estudiosos por diversos séculos, e falaremos sobre isto
mais à frente.
A seguir, estão descritos os cinco postulados de Euclides (2009, p. 98):
1. Fique postulado traçar uma reta a partir de todo ponto até todo ponto.
2. Também prolongar uma reta limitada, continuamente, sobre uma reta.
3. E, com todo centro e distância, descrever um círculo.
4. E serem iguais entre si todos os ângulos retos.
5. E, caso uma reta, caindo sobre duas retas, faça os ângulos interiores
e do mesmo lado menores do que dois retos, sendo prolongadas as duas
retas, ilimitadamente, encontrarem-se no lado no qual estão os menores do
que dois retos.
Os matemáticos/geômetras e filósofos não aceitavam que o postulado das
paralelas não fosse passível de prova, eles queriam e tentavam, de qualquer
forma, mostrar que se tratava de um teorema e não um postulado205, como

205
De acordo com o Dicionário: Postulado ˗ “S.m. (1813)1 o que se considera como fato reconhecido e

582
afirmara Euclides em sua obra. Neste sentido, queriam mostrar que havia um
equívoco em um dos volumes de Os Elementos. Um exemplo deste
questionamento foi feito por Saccheri (1667- 1733), que será discutido
posteriormente e que culminaram no surgimento de uma nova geometria.

3 UM RECORTE HISTÓRICO SOBRE A GEOMETRIA NÃO-EUCLIDIANA

Nesta seção discorrerá sobre as formas mais abrangentes da geometria não-


euclidiana, destacando desde alguns questionamentos ocorridos na Grécia Antiga
até os que provocaram o descobrimento desta geometria tão influente para os dias
atuais.
Desde a Antiguidade, quando Euclides apresentou seus postulados, o
quinto sempre foi analisado de forma cautelosa por seus contemporâneos, pois
não é tão evidente e direto quanto os quatro anteriores. Muitos pensadores
davam por certo que se tratava de uma proposição ao invés de um axioma,
porém não obtendo êxito em suas pesquisas. Mas foi a partir desses
questionamentos sobre a demonstrabilidade desse axioma que surgiu uma nova
geometria, a não-euclidiana.
O surgimento da geometria não-euclidiana foi visto como um
desenvolvimento revolucionário e notável ocorrido durante a primeira metade do
século XIX, auto consistente e diferente da usual geometria euclidiana.
Os filósofos tentavam demonstrar o postulado das paralelas desde a
antiguidade, porém não obtendo êxito, como Ptolomeu, século II, que tentou
demonstrá-lo baseados nos outros axiomas da própria obra de Euclides. Esses
questionamentos duraram vários séculos, alguns pesquisadores tentaram
provar tal postulado, mas de acordo com Eves (2011, p. 540), “a primeira
investigação realmente científica do postulado das paralelas só foi publicada
em 1773 e seu autor é o jesuíta italiano Girolamo Saccheri (1667-1733)”.
Girolamo Saccheri foi um professor da universidade de Pavia que nasceu

ponto de partida, implícito ou explícito, de uma argumentação; premissa; 2 afirmação ou fato admitido
sem necessidade de demonstração” (HOUAISS, 2001, p. 1532). Teorema ˗ “S.m. (1685) proposição que
procede ser demonstrada por meio de um processo lógico [...]” (HOUAISS, 2001, p. 1829).

583
no século XVII, e teve a oportunidade de ler Os Elementos, de Euclides. A partir
dessa leitura ele se interessou pelo método da redução ao absurdo e, com isso,
começou a escrever sobre lógica. Saccheri escrevia textos matemáticos voltados
para o método de redução ao absurdo até que, em um determinado período de
sua carreira acadêmica, decidiu aplicar este método ao 5º Postulado, sendo mais
um a querer demonstrá-lo, porém não obtendo o sucesso esperado. Mas, de
acordo com Eves (2004, p. 540), sua hipótese era válida e consistente para
provar a existência da geometria não-euclidiana, contudo, por algum motivo não
conseguiu verificar tal feito.
O suíço Joahnn Heinrich Lambert (1729-1777) também usou o método da
redução ao absurdo e escreveu algo parecido com o que seu antecessor
Saccheri. De acordo com Eves (2004) sua investigação foi intitulada Die Theorie
Parallellinien que só veio a ser publicada após sua morte. Lambert não obteve
êxito, pois suas conclusões foram imprecisas e insatisfatórias.
Legendre (1752-1833) foi outro que tentou demonstrar, também sem
sucesso, na sua pesquisa. Dados históricos contidos em Eves (2004) afirmam
que este francês foi o último a tentar demonstrar o 5º postulado crendo que
poderia conseguir provar que se tratava de uma proposição, pois no mesmo
século nasceram os matemáticos, os quais aceitaram em suas hipóteses
concordaram com a veracidade do axioma e chegaram a um resultado
revolucionário e de extrema valia ao descobrimento e desenvolvimento desta
nova geometria, a geometria não-euclidiana.
Os créditos para o seu surgimento foram dados a três respeitados
pesquisadores, são eles: Bolyai (1802-1860), Lobachevsky (1793-1856) e Gauss
(1777-1855). A seguir, serão detalhadas as contribuições desses pensadores
sobre só terem questionado o 5º postulado, mas a partir de tal questionamento
terem visto que existia uma nova geometria.
Janos Bolyai foi um oficial do exército húngaro, filho do matemático Farkas
Bolyai (professor universitário e contemporâneo de Gauss). Conta-se que
Farkas, passou tanto tempo tentando demonstrar esse postulado, que ao ver o
seu filho trabalhar sobre a mesma coisa, decidiu escrever-lhe uma carta (em

584
1820) pedindo-lhe que não continuasse a trabalhar sobre esse assunto e fosse
pesquisar outros temas. Um trecho da carta é citado por Struik (1989, p.270).
Devias detestar tanto isso como as coisas perversas, que te podem
privar de todo lazer, da tua saúde, do teu descanso e de toda a
alegria da tua vida. Esta escuridão insondável podia talvez destruir
um milhar de poderosos Newtons, sem nunca haver luz na Terra
[...]. (Carta de 1820) (STRUIK, 1989, p. 270).

Eves (2004, p.542), afirma que Janos entendeu a coerência que havia no
axioma e ficou entusiasmado comentando, em 1829, ao pai que havia criado um
“universo novo e estranho”. Após isso, Farkas insistiu para que seu trabalho
fosse publicado como um apêndice de sua obra, enfim, no ano de 1832 o
trabalho foi publicado com sucesso. Esse foi o único trabalho notório de Janos,
embora tivesse escrito diversos manuscritos que caracterizavam a GNE
(geometria não-euclidiana).
Outro matemático que, por sinal, era contemporâneo de Janos, foi Nicolai
Lobachevski, um professor universitário russo que se tornou reitor da Universidade
de Kazan. Lobachevsky publicou seu primeiro artigo sobre GNE em 1829, antes de
Bolyai, que só conseguiu três anos depois. Segundo Eves (2004), seu trabalho não
teve a atenção que lhe era merecida, talvez por causa do idioma em que fora escrito,
o russo. Onze anos mais tarde, após sua primeira publicação sobre as GNE,
Lobachevski publicou um livro, esta feita escrito em alemão, cujo título traduzido
para o português é Investigações Geométricas Sobre a Teoria das Paralelas.
Depois, em 1855, antes do seu falecimento, escreveu outro em francês, chamado
de Pangeometria.
As informações existentes naquele século sobre as GNE eram poucas e
seu conhecimento se espalhava lentamente, por isso, Lobachevsky não
conseguiu usufruir dos méritos de suas descobertas, cujo reconhecimento veio
depois de sua morte.
O terceiro matemático a quem foi atribuída a descoberta das GNE foi Carl
Friederich Gauss, um alemão que desde criança considerado inteligente, Eves
(2004), devido seus feitos, professor Universitário, escreveu aos mais diversos
ramos da Matemática como a geometria, a álgebra e aritmética. Quando Bolyai

585
descobriu que tinha criado uma nova geometria, seu pai, Farkas que era amigo
de Gauss, enviou-lhe uma carta falando sobre o grande feito de seu filho, mas
Gauss lhe respondera informando que já tinha pesquisado sobre o assunto,
porém não havia publicado por causa do pensamento de Kant que ia de encontro
com a ideia da geometria não-euclidiana para sua época.
Vale ressaltar que, qualquer geometria que não satisfaça o axioma das
paralelas é considerada geometria não-euclidiana, por isso alguns não a
chamam de geometria não-euclidiana e sim as geometrias não-euclidianas.
A descoberta das geometrias não-euclidianas é um capítulo
fascinante da história da Matemática, que se inicia no próprio
momento em que Euclides trouxe a público os Elementos, em que
apresentava a Geometria Euclidiana numa forma axiomática. As
tentativas de provar o quinto postulado a partir dos outros, ao longo
dos outros, ao longo de tantos séculos, transformaram-se, ao final,
no estudo da Geometria e permitiram o entendimento de que havia
de fato da uma família de proposições equivalentes ao quinto
postulado (CASTRO, 2011, p. 2).

Com a publicação dessa nova geometria de Lobachevsky, em 1829, e


Bolyai, em 1831, ficou provado que o postulado das paralelas era verdadeiro em
outro referencial e que, além disso, existia uma geometria diferente da que era
conhecida, a geometria não-euclidiana que quebrava alguns padrões da euclidiana,
mas a respeitava.
Com o surgimento das geometrias não-euclidianas foi solucionada a
interminável dúvida que se alastrou durante séculos sobre o postulado das
paralelas, mostrou sua independência em relação aos quatro axiomas
anteriores, solucionou o questionamento que havia acerca do axioma ou da
proposição, extinguiu a ideia de que existia apenas a geometria plana,
libertando-a para que surgissem outras tão relevantes quanto à inicialmente
conhecida e perfeitamente axiomatizada por Euclides.
Eves (2004, p. 544) cita que:
Com a possibilidade de inventar geometrias puramente “artificiais”,
tornou-se evidente que o espaço físico devia ser visto como um
conceito empírico derivado de nossas experiências exteriores e que
os postulados da geometria, formulados para descrever o espaço
físico, são simplesmente expressões dessas experiências, com leis
de uma ciência física. (EVES, 2004, p. 544)

586
De modo geral, os conceitos na nova geometria são mantidos como o de
circunferência e triângulo, mas o referencial é outro e as formas mudam
(deformação). Ao observar a história, nota-se que a geometria desenvolvida por
Euclides não era única.

3.1 Algumas geometrias não-euclidianas sob enfoque histórico

Depois que a Geometria não-euclidiana foi descoberta, as portas foram


abertas para os mais diversificados ramos da matemática, fazendo com que essa
geometria tivesse ramificações e ficasse conhecida no mundo matemático. Logo,
surgiram algumas geometrias não-euclidianas que destacaremos a seguir.

3.1.1 A geometria hiperbólica

Quando falamos sobre a origem da geometria não-euclidiana também nos


referimos ao início da Geometria Hiperbólica. A primeira publicação sobre a
Geometria Hiperbólica é atribuída a Nicolai Lobachevsky, no ano de 1929, um
dos matemáticos mais importantes da Rússia. Boyer (1974, p.396) afirma que
Lobachevsky foi “o homem que revolucionou o assunto [geometria euclidiana]
pela criação de todo um ramo novo [o da geometria não-euclidiana]”.
Janos Bolyai, também publicou sobre a geometria hiperbólica três anos
mais tarde de Lobachevsky, aceitando a hipótese da veracidade do 5º postulado
e, também, negando sua unicidade.
Começou a aceitar o postulado de Euclides como um axioma
independente e descobriu que era possível construir uma
geometria, baseada noutro axioma, na qual, através de um ponto do
plano, se pudesse traçar uma infinidade de rectas que não
intersectam uma linha nesse plano [...] (STRUIK, 1989, p.270).

Na geometria hiperbólica assumem-se todos os axiomas da geometria


euclidiana, mas substitui o postulado das paralelas pelo axioma hiperbólico que
é a negação de sua unicidade. Observe a definição do axioma hiperbólico,
segundo Greenberg (2003, p. 187), “In the hyperbolic geometry there exist a line
/ and a point P not on / such that at least two distinct lines parallel to / pass through

587
P.”206
Figura 01‒ Axioma hiperbólico

Fonte: (O autor)

Assim, esclarecendo, vejamos algumas características da geometria


hiperbólica, tomando como base as características dadas por Rocha (2012):
• Num triângulo hiperbólico, temos que a soma das amplitudes dos
ângulos internos de um triângulo qualquer é menor que 1800;
• Representada por uma superfície com curvatura negativa;
• Por um ponto P podem passar infinitas retas paralelas a outra reta.
A próxima imagem é de triângulo hiperbólico cuja soma de seus ângulos
internos é menor que 180°.

Figura 02‒ Plano hiperbólico1

Fonte: Queiroz; Santos e Augustini (2006,


p.1)

Como descritos anteriormente, na geometria hiperbólica entre dois pontos


distintos pode passar mais de uma reta paralela, claro que isto agora no espaço
não-euclidiano, fato que não era aceito e nem se havia verificado antes de
Lobachevsky e Bolyai. Diferente do que ocorre na euclidiana que entre dois
pontos distintos, passasse uma e somente uma reta.

206
“Na geometria hiperbólica existe uma reta r e um ponto P fora da reta, tal que, pelo menos duas retas
paralelas a r distintas passam por P” (GREENBERG, 2003, p. 187, tradução nossa ).

588
3.1.2 A geometria elíptica e a geometria esférica

Conhecida como geometria riemanniana, a geometria elíptica na qual


a reta não é infinita e substitui-se o postulado das paralelas pelo de Riemann,
diz que quaisquer duas retas em um plano têm um ponto de encontro. Portanto,
na geometria elíptica considera-se como modelo a esfera, ou melhor, a
superfície esférica, onde retas seriam os círculos máximos ou geodésicas dessa
superfície.
A geometria elíptica foi divulgada pela primeira vez em uma aula inaugural
ministrada em 1851 por Riemann para sua admissão como professor-adjunto na
Universidade de Göttingen. Georg Friedrich Bernhard Riemann (1826 - 1866) foi
um matemático alemão que contribuiu na geometria e na análise matemática.
Thomaz e Franco (2007, p. 5) define geometria elíptica como “uma
geometria tal que, dada uma reta L e um ponto P não pertencente a L, não existe
reta paralela a L passando por P.” Logo, afirma nessa definição que na geometria
elíptica não há retas paralelas entre si, dados dois pontos. Alguns modelos da
geometria elíptica são a Geometria Projetiva, a geometria estereográfica e a
geometria hiperesférica.
Vejamos algumas características da geometria elíptica:
• A soma dos ângulos internos de um triângulo é maior do que dois retos;

• O plano é uma superfície esférica, e a reta uma geodésica, ou


circunferência do círculo máximo;
• Duas retas distintas perpendiculares a uma terceira se interceptam;
• Uma reta não é dividida em duas por um ponto;
• A área de um triângulo é proporcional ao excesso da soma dos seus
ângulos;
• Dois triângulos com ângulos correspondentes iguais são congruentes.
As figuras que seguem trazem um pouco da geometria esférica, a figura 07 traz
a imagem de um triângulo na esfera, onde mostra claramente que a soma de
seus ângulos internos é maior que 180°.

589
Figura 19 - Esfera1 Figura 20 ‒ Esfera 2

Fonte: ESFERA... (2012) Fonte: ESFERA... (2012)

Com a descoberta desta outra geometria ficou evidente que o Postulado


das Paralelas não podia ser generalizado e usado para todos os referenciais
possíveis, uma vez que, para a geometria elíptica não existem duas retas
paralelas, dado um ponto e uma reta.

CONCLUSÃO

As literaturas apresentadas explicitaram a importância do trabalho de


Euclides com a sistematização do que existia de matemática na Grécia Antiga,
pois provocou a apreciação do quinto postulado.
Tal contemplação gerou diversas observações provocadoras de
questionamentos que perduraram por muitos séculos, dos quais, em alguns
momentos quase eram elucidados, porém no século XIX, com a descoberta das
geometrias não-euclidianas, três matemáticos apresentaram os estudos que
provaram uma geometria considerada nova e com propriedades
particularizadas, as geometrias não-euclidianas que colaboram
com desenvolvimento matemático dos anos posteriores.

REFERÊNCIAS

ÁVILA, Geraldo. Euclides, Geometria e os Fundamentos. Revista


do Professor de Matemática, Rio de Janeiro, v. 45, p. 1-6, 2001.

CASTRO, Karina Aparecida de. A Geomeria Hiperbólica como um


exemplo das Geometrias Não-euclidianas. 2011. Disponível em:
<http://www.facef.br/novo/3fem/Inic%20Cientifica/Arquivos/Karina.pdf>. Acesso

590
em: 23 nov. 2011.

ESFERA. 2012. Disponível em: <www.google.com.br >. Acesso em: 15 mar.


2012.

EUCLIDES. Os Elementos. São Paulo: UNESP, 2009.

EVES, Howard. Introdução à História da Matemática. Campinas: Editora


da Unicamp, 2004.

EVES, Howard. Introdução à História da Matemática. 5. ed.


Campinas: Editora da Unicamp, 2011.

FERREIRA, João Paulo Mesquita Hidalgo. Nova História Integrada.


Curitiba: Módulo, 2010.

GREENBERG, Marvin J. Euclidean and Non Euclidean Geometries:


development and history. New York: W. H, Freeman and Company, 2003.

MLODINOW, Leonard. A janela de Euclides: a história da geometria: das


linhas paralelas ao hiperespaço. São Paulo : Geração Editorial, 2004.

QUEIROZ, Flávia Cristina Martins; SANTOS, Patrícia Borges dos;


AUGUSTINI, Edson. Tópicos de Geometria Hiperbólica. 2006. Disponível
em: < https://www.ime.ufg.br/bienal/2006/poster/flavia.pdf >. Acesso em: 29
jan. 2021.

STRUIK, Dirk J. História Concisa das Matemáticas. Lisboa: Gradiva, 1989.

THOMAZ, Mara Lucia; FRANCO, Valdeni Soliani. Geometria Não-


Euclidiana/ Geometria Esférica. 2007. Disponível em: <
http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/pde/arquivos/233-4.pdf>.
Acesso em: 20 nov. 2011.

TOMEI, Carlos. Euclides : a conquista do espaço. 2. Ed. São Paulo:


Odysseus, 2006.

591
UM ESTUDO SOBRE OS CONHECIMENTOS MATEMÁTICOS
INCORPORADOS NA ESTRUTURA DO ÁBACO DE GERBERT207

Suziê Maria de Albuquerque208

RESUMO
O presente trabalho traz um estudo histórico sobre o Ábaco de Gerbert instrumento de
cálculo para a multiplicação e divisão dos números em uso na transição entre os séculos
X e XI no Ocidente Latino no Reino da França. Nesse sentido, delineou-se como objetivo
geral conhecer os conhecimentos matemáticos sintetizados na estrutura física do referido
aparato. Para tanto, foram acessados documentos históricos, sendo a fonte primária o
Traité de Gerbert na versão de 1843, na qual o texto original data da segunda metade do
ségulo X. A partir da obra de Gerbert foram acessados escritos de contemporâneos desse
intelectual, como do seu discípulo Richer de Reims e uma imagem em pergaminho de um
ábaco semelhante ao descrito por esses textos. Essas fontes forneceram subsídios para a
reconstrução do instrumento realizada nessa pesquisa. Fato que tornou possível,
considerando as regras para uso do instrumento, compreender que a estrutura do ábaco
incorpora em si as propriedades do sistema decimal, em destaque para a característica do
valor posicional dos números explicitada pela disposição das colunas do ábaco, dentre
outras.

Palavras-chave: Ábaco de Gerbert. Estrutura do instrumento. Conhecimentos


Matemáticos.

INTRODUÇÃO:
A inserção de elementos da história no ensino de matemática conduz à
articulação entre essas duas áreas de conhecimentos, tendo em vista que as
mesmas possuem objetos de pesquisa diferente. Enquanto a história se volta para
o estudo das formas de elaboração, transmissão e transformação do conhecimento
matemático, a Educação Matemática, por sua vez, se interessa pelas questões
voltadas ao ensino e à aprendizagem (SAITO, 2015; KILPATRICK, 1996).

207
Este estudo é um recorte da dissertação de mestrado da autora, orientada pela professora Dra.
Ana Carolina Costa Pereira (UECE), defendida no ano de 2019 no Instituto Federal de Educação
Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE).
208
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). E-mail: suziealbuquerque@ufrn.edu.br.

592
Diante dessa especificidade de cada um desses campos, qual o ponto de
partida para uma investigação na interação entre a história e o ensino de
matemática? Segundo Pereira e Saito (2019), essa partida se dá com a escolha de
um documento histórico. Vale considerar que por documento histórico se tem textos
escritos, imagens, esculturas, instrumentos ou qualquer outro objeto que forneça
informações sobre o conjunto de conhecimentos matemáticos em vigor em uma
determinada sociedade do passado (SAITO, 2015).
Nessa perspectiva, selecionou-se o Traité de Gerbert na versão traduzida
por Michael Chasles209 no ano de 1843, um texto original do século X, no ocidente
latino, que contém regras de multiplicação e divisão para o uso do Ábaco de
Gerbert. Considerando que este tratado remetia ao uso dos símbolos hindu-
arábicos, representando uma inovação para o ocidente cristão, tendo em vista que
o sistema para representação dos números em vigor era o romano.
A compreensão do contexto em que essas operações aritméticas foram
desenvolvidas demandou um estudo histórico inicial sobre a atuação de Gerbert
(946-1003) na comunidade de intelectuais nesse período, suas contribuições.
Conhecer a sua influência como monge beneditino responsável pela reestruturação
do quadrivium210 na escola de Reimes (989-999) e posteriormente como Pontífice
da Igreja Católica, recebendo o nome de Papa Silvester II, aliados ao seu interesse
pelas artes liberais justifica o investimento em aquisição e produção de cópias de
textos antigos gregos que são citados no Traité de Gerbert.
Esse movimento de recuperação de textos antigos foi responsável por
preservar textos que poderiam ter sido perdidos, contrariando a ideia de que não
houve circulação de conhecimentos na idade das trevas (ALBUQUERQUE, 2019).
Outra característica marcante nessa época é o uso de instrumentos para
demonstração de fenômenos astronômicos (astrolábio, esferas para simulação dos
movimentos celestes), instrumentos musicais (monocórdio), medidas de longas
distâncias (bastão geométrico) e cálculo aritmético, para auxílio no uso do bastão
geométrico (ábaco de Gerbert).

209 Professor da École Polytechnique em Paris e membro da Royal Societyem Londres, estudioso
de temas em história da matemática (ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA, 2018).
210 Conjunto das artes liberais composto pelas áreas da aritmética, astronomia, geometria e música.

593
Esses instrumentos foram citados por um dos discípulos de Gerbert, Richer
de Reims 211 (940-998) como facilitadores da compreensão dos fenômenos
estudados, pois sabendo utilizar os mesmos não havia necessidade da presença
do mestre (quem ensina). De fato, tais objetos são mencionados em tratados com
as regras de uso e em alguns casos, descrição da estrutura física desses
instrumentos, revelando assim indícios dos conhecimentos matemáticos
(especialmente astronômicos, aritméticos, geométricos e da música) incorporados
nesses instrumentos (RICHER, 1847).
Ao que cabe no presente estudo, partindo desta breve introdução, se
voltará à exploração minuciosa do ábaco de Gerbert inicialmente com o esboço do
contexto histórico da existência desse instrumento e posteriormente com a
identificação dos conceitos matemáticos do passado com o intuito de desvelar a
seguinte questão de pesquisa: quais os conhecimentos matemáticos estão
sintetizados na estrutura física do ábaco de Gerbert?

O ÁBACO DE GERBERT: Traços históricos da composição do instrumento no


contexto do século X
Gerbert (1843), na dedicatória do seu tratado direciona ao seu aprendiz
Constantino as regras para o uso de um instrumento conhecido como ábaco. O
erudito dispensa maiores informações sobre a estrutura física do aparato utilizado
para a realização de cálculos com os números. Entretanto, em alguns textos
contemporâneos a Gerbert, foram encontrados indícios mais detalhados sobre a
constituição do ábaco.
Apesar de não ter sido identificada a existência de exemplares do ábaco em
museus, a partir da descrição da sua construção, apresentada por Richer (1847), é
possível ter uma visão geral dos elementos que compõem os ensinamentos
geométricos, tendo em vista que o ábaco se constituía desde a antiguidade como
uma tábua geométrica.

594
A caracterização de um instrumento da geometria, utilizado para a realização
de cálculos aritméticos, pode ser melhor compreendida ao passo que se conhece
o processo desde a construção ao seu uso. Richer (1847, p. 61, tradução nossa)
diz que Gerbert “[...] tinha um escultor construindo um ábaco, isto é, uma tábua
adequada para receber compartimentos” 212
. Ou seja, existia uma pessoa
encarregada na construção de instrumentos, nesse caso, o material utilizado não
foi explicitado, mas, por ser esculpido em formato de tábua, poderia ser construído
na madeira que precisaria ter determinadas características para ser dividida nos
espaços propostos.
A forma geométrica, determinada pela área do ábaco, foi especificada ao ser
indicada a divisão dessa tábua em “[...] vinte e sete partes, nas quais ele tinha nove
sinais expressando todos os números” 213 (RICHER, 1847, p. 61-63, tradução
nossa)214. Nessa passagem, o autor não deixa clara a disposição desses espaços
a serem determinados na madeira, se seriam horizontais, transversais, por
exemplo, o que poderia evidenciar o formato geral do instrumento.
Entretanto, segundo Burnett (2010), Bernelinus apresenta uma descrição
mais detalhada sobre o ábaco e seu funcionamento. Nesse modelo, o instrumento
continha 30 colunas, sendo que as três primeiras eram destinadas às frações. Esse
discípulo parisiense de Gerbert informa, ainda, que as colunas estavam agrupadas
de três em três, separadas por arcos em sua parte superior. Havia um arco na
primeira coluna do grupo de três, outro arco cobrindo a segunda e a terceira coluna
desse conjunto e outro arco maior contemplando as três colunas.
As partes em que foram divididas certo comprimento, em Richer (1847),
começam a ganhar forma pela explicação de Bernelinus, que ressalta a
verticalidade dos compartimentos esculpidos na madeira, pois se referem a
divisões longitudinais, determinando colunas, formando, assim, uma espécie de
mesa de madeira retangular.

212Vide “[...] Il fit préalablement constuire par um ouvrier ciseleur des compartiments” (RICHER,
1847, p.61).
213 Vide “[...] vingt-sept parties, sur lesquelles il disposa neuf signes, experimant tous les nombres.”

(RICHER, 1847, p. 61-63).


214 Nessa edição das obras de Richer, o texto em latim está intercalado com a tradução do mesmo

para o francês, fato que justifica a alternância da página 61 para a 63.

595
Além dos espaços em forma de coluna, esses autores citam os símbolos ou
figuras que eram inseridos no ábaco. Nesse sentido, Gerbert “[...]fez os mesmos
mil caracteres em chifre que foram organizados nos vinte e sete compartimentos
do ábaco [...]215” (RICHER, 1847, p. 63, tradução nossa). Pela descrição exposta,
os nove símbolos foram reproduzidos em grande quantidade, formando espécies
de fichas com as quais era possível representar diversos e infinitos números, como
ressaltou o discípulo de Gerbert. Vale considerar que o sistema de numeração, em
vigor no Ocidente Latino, por volta do ano mil, era o romano. Essa forma de
representar os números era decimal e continha o princípio da cardinalidade, ou
seja, o número como uma expressão de quantidade. Porém, não ordinal, pois os
números não atendiam a uma sequência natural de ordem.
Esses fatores dificultavam a realização de cálculos aritméticos, inclusive no
manuseio dos instrumentos de cálculo do período, como o ábaco romano (Figura
3), que se utilizava de fichas para representar as quantidades, nas quais cada uma
correspondia a apenas uma unidade da coluna que estaria inserida (MILLES,
1999).

Figura 3— Representação das quantidades no ábaco romano.

Fonte: Ifrah (2007, p. 119).

Assim, demandava-se expressivo número de caracteres para representar,


por exemplo, o número dois milhões, sessenta e um mil, quinhentos e vinte e um
eram necessárias duas fichas na coluna das unidades de milhão, seis fichas nas

215Vide “Il fit de même mille caracteres em corne, qui, disposés dans les vingt-sept compartimentes
de l’abaque [...]” (RICHER, 1847, p. 63).

596
dezenas de milhar, uma ficha na unidade de milhar, seis fichas nas centenas, duas
fichas nas dezenas e uma ficha nas unidades, totalizando dezessete fichas. Ao se
tratar de operações com números maiores, sobretudo na multiplicação e divisão,
essa forma de escrever os números dificultava os cálculos.
Enquanto com o sistema proposto por Gerbert, para a representação do
número apresentado, requeria apenas o uso de seis fichas. Ao adaptar esse
sistema das fichas para o ábaco romano (Figura 4), utiliza-se apenas uma ficha
com o número dois inscrito na coluna das unidades de milhão, outra tendo o número
seis nas dezenas de milhares, uma com o um nas unidades de milhares, o cinco
nas centenas, o dois nas dezenas e, por fim, com o número um nas unidades.
Richer (1847) ressalta que esse mecanismo otimiza a realização dos cálculos,
abreviando o tempo demandado para a realização das operações.

Figura 4 — Representação dos números no ábaco romano.

Fonte: Adaptado de Ifrah (2007, p. 119).

Richer (1847, p. 63, tradução nossa) continua a descrição do instrumento se


referindo aos compartimentos citados, informando que esses “[...] davam a
multiplicação ou a divisão de cada número e dividiam ou multiplicavam esses
números infinitos com tal celeridade que, em vista de sua multiplicidade, nós os
entendemos mais rápido do que pudemos expressá-los”216. Esse trecho remete à
função de registro numérico que as colunas ofereciam, de forma que indicavam um

216Vide “[...] donnaient la multiplication ou la division de chaque nombre, et divisaient ou multipliaient


ces nombres infinis avec une telle célérité que eu égard à leur multiplicité, on les comprenait plus
vite qu’on ne pouvait les exprimer” (RICHER, 1847, p. 63).

597
cálculo realizado previamente. Por isso, esse era compreendido antes de ser
expresso, ou seja, registrado no instrumento.
Eis a evidência de que o ábaco, utilizado por Gerbert e seus discípulos, não
correspondia a uma espécie de calculadora, mas continha espaços para a inserção
dos valores obtidos a partir do cálculo mental. O instrumento armazenava esses
dados para que o calculista não se perdesse durante as contas, levando ao erro.
As considerações expostas pelos discípulos de Gerbert sobre o ábaco,
apesar de bem descritas, ainda deixavam dúvidas com relação à estrutura do
referido instrumento e de que conhecimentos matemáticos, de fato, estariam
incorporados nesse aparato. Com efeito, não foram preservadas réplicas originais
construídas na madeira, como nos tempos de Gerbert.

CAMINHO METODOLÓGICO
O desenvolvimento do presente estudo se efetivou por meio de uma
pesquisa documental, pois se explorou materiais que ainda não receberam um
tratamento, podendo ser reelaborados na pesquisa (GIL, 2008, p. 50). Mas de fato,
o que seria um documento? De acordo com Saito (2015, p.27), esses tipos de
recursos "[...] não só livros e tratados, mas também cartas, manuscritos, minutas e
outros documentos não só escritos, mas também aqueles da cultura material, tais
como instrumentos, monumentos, máquinas, etc."
Diante disso, selecionou-se o Traité de Gerbert, na versão de 1843, como
documento histórico que contém as regras para uso do instrumento denominado
nesse estudo de ábaco de Gerbert. Entretanto, esse texto não descreve o
instrumento, permanecendo lacunas para a compreensão do seu funcionamento
no passado.
Assim, para se esboçar a estrutura física desse ábaco foi necessário recorrer
a outros dois documentos históricos, nas proximidades do tempo histórico em que
viver Gerbert (entre os séculos X e XI), que são: “Histoire de son temps” de Richer
na versão de 1847 e a imagem Abacus de Trier que continha em anexo as regras
idênticas às propostas por Gerbert (1843). Este último documento, dedicado a um

598
religioso no século XI, correspondia ao descrito sobre a estrutura do ábaco pelo
discípulo de Gerbert, Richer no primeiro texto secundário.
Com base nos textos referenciados, foi realizada a reconstrução de forma
digital do ábaco de Gerbert, a partir das descrições e composição do ábaco
encontradas nas fontes de pesquisa. Evidenciando-se assim seus elementos,
identificando os princípios matemáticos que são percebidos na construção do
instrumento e em seu uso, de acordo com a análise das esferas contextual,
historiográfica e epistemológica pautas em Alfonso-Goldfarb, Ferraz e Waisse
(2013).

DESCRIÇÃO DOS CONHECIMENTOS MATEMÁTICOS INCORPORADOS NA


ESTRUTURA DO ÁBACO DE GERBERT
Sobre a descrição da estrutura física do Ábaco de Gerbert, os
compartimentos ou colunas eram dispostos com propriedades matemáticas que
preservavam o caráter decimal do sistema de numeração. Ou seja, cada coluna
correspondia a agrupamentos numéricos, nos quais o compartimento mais à
esquerda seria dez vezes o compartimento à direita. Richer (1847) não discute esse
aspecto, mas indica que, para maiores esclarecimentos, seja consultado o tratado
de Gerbert a Constantino.
Seguindo o conselho do discípulo de Gerbert, a partir regras do tratado,
tomou-se as unidades, dezenas, centenas, etc., indicadas nas regras de
multiplicação como colunas do ábaco. Assim, as colunas valem, respectivamente,
em potência de 10: 100, 101, 10², 10³, 104,... No entanto, essa associação, que
representa as colunas, é mais recente, estando fora dos padrões do século X, que
usava apenas a inscrição em algarismos romanos na parte superior das colunas
para indicar sua correspondência.
A quantidade de colunas para representar os números que, segundo Gerbert
(1843), podiam ser infinitas, indicam quão grandes eram os números que seriam
operados no instrumento. Dessa maneira, o entendimento das propriedades

599
matemáticas do agrupamento numérico nas colunas seria determinante para a
agilidade na resolução dos cálculos.
Além do exposto, uma imagem do instrumento (Figura 5) foi apresentada por
Burnett (2010), ao se referir a um exemplar do ábaco medieval, datado do ano de
1081, que foi encontrado na biblioteca da cidade de Trier217, por volta da segunda
metade do século XX, dentro de uma bíblia gigante que pertencia ao abade de Trier,
Regimbertus (1051-1081). Esse manuscrito teria sido escrito em Echternach,
Luxemburgo. Vale ressaltar que, junto do instrumento, estavam anexas as regras
de multiplicação e divisão semelhantes às de Gerbert. Esse material corresponde
a uma placa de pergaminho 218 em formato de pôster (Figura 6) dividida em
exatamente 27 colunas, como indicado por Richer (1847).

Figura 5—Ábaco de Echternach.

Fonte: Acervo da Trier Stadtbibliothek (1081).

O ábaco de Echternach traz elementos semelhantes ao descritos por Richer


(1847). Nos arcos, por exemplo, era identificada apenas o início de cada classe
pela letra S (singularium), permanecendo as inscrições das colunas em algarismos
romanos, formando agrupamentos de dez em dez. Além disso, no arco menor, que

217 Uma
das mais antigas cidades Alemãs.
218Vide
Brown (2010), o processo de produção de pergaminhos medievais e a produção de
manuscritos.

600
delimita a unidade das classes, havia um dos nove símbolos mencionados
anteriormente.
A partir da visualização do ábaco de Echternach foi realizada uma
reconstrução do instrumento (Figura 6), utilizando ferramentas computacionais, o
que permitiu ampliar a visualização de sua estrutura, bem como oportunizar o
manuseio do instrumento após a impressão. Esse modelo foi escolhido para ser
reproduzido, pois a imagem do ábaco de Echternach foi localizada, nessa pesquisa,
anteriormente à imagem do ábaco no tratado anônimo, no estudo contextual do
Traité de Gebert (1843). Entretanto, a fins explicativos, nessa discussão, optou-se
por apresentar primeiro o instrumento contido no tratado anônimo mencionado por
Chasles (1843b).
Assim, posteriormente à realização da reconstrução, veio ao conhecimento
o ábaco com as duas representações para os valores das colunas (1, 10,
100,1000...) e a explicitação das unidades, dezenas e centenas de cada classe
numérica. Essas características podem ser visualizadas na Figura 6, na qual se
torna nítida a parte superior do Ábaco de Gerbert. Além disso, para o estudo
pretendido, a exploração dessa estrutura é suficiente para alcançar os objetivos
propostos.

601
Figura 6— Reconstrução do ábaco de Echternach.

Fonte: Adaptado de Trier Stadtbibliothek (1081).

A distribuição das colunas no ábaco de Echternach segue o mesmo formato


do ábaco do tratado (Figura 5), no sentido do valor que cada uma delas representa.
A fim de entendimento, será exposta uma imagem com a correspondência dos
valores de cada coluna em algarismos romanos e em potências de 10,
dimensionando, assim, o tamanho dos números que poderiam ser movimentados
no ábaco.
A representação de grandes números foi justificada no capítulo anterior,
tendo em vista a necessidade de auxílio em questões da geometria prática, no uso
do bastão geométrico. Entretanto, para o manuseio do instrumento de auxílio nos
cálculos, requer conhecer a associação entre a representação em algarismos
romanos e o valor correspondente de cada coluna (Quadro 1).

Quadro 1 — Representação matemática dos valores das colunas do ábaco de


Echternach.

602
Número Valor da coluna Representação no
da coluna ábaco de
Echternach
1 1 (100) I
2 10 (101) X
3 100 (102) C
4 1.000 (103) I
5 10.000 (104) X
... ... ...
100.000.000.000.000.000.000.000.000
27 CMIMIMIM
(1026)
Fonte: Adaptado de Burnett (2010, p. 98).

Adquirindo esses conhecimentos, bastava-se multiplicar o número absoluto


pelo valor da coluna para se saber o valor relativo do número. O sistema de
numeração decimal, no qual os algarismos assumem tanto valor relativo quanto
absoluto, empregava versatilidade na realização dos cálculos, tendo em vista que
o símbolo 2, por exemplo, poderia assumir diversos valores (2; 2.10; 2.10²; 2. 10³;
...; 2.10n), a depender da coluna em que o número estiver localizado.
Os símbolos de 1 a 9, que eram utilizados para representar os números,
estavam indicados no instrumento. A reconstrução do ábaco de Echternach, por
sua vez, tornou nítidos os caracteres ou ápices que estavam afixados acima da
primeira coluna de cada uma das nove classes delimitadas pelo arco maior.
Além disso, Chasles (1843b), ao discutir a função dos arcos no ábaco,
relaciona-os com o uso do ponto e, posteriormente, da vírgula que aparecem em
manuscritos publicados em tempos depois, ainda no período medieval. Na
ausência desses elementos, os arcos colaboraram na leitura dos números e
localização desses no instrumento.
Com relação a esses elementos do instrumento, Chasles (1843b) menciona
que essa indicação, na parte superior do ábaco, remete aos símbolos que deveriam
ser utilizados para representar os números durante seu manuseio. O instrumento
consiste, portanto, na estrutura das colunas e arcos, juntamente com os nove

603
números sugeridos no manuscrito medieval de Trier, assim como no texto anônimo,
com algumas variações. É possível relacionar esses ápices (símbolos indicados no
topo das unidades de cada classe de números) com os algarismos utilizados
atualmente, a saber:

Figura 7—Ápices presentes em manuscritos antigos e suas correspondências


com os algarismos modernos.

Fonte: Adaptado de Albuquerque (2019, p. 51).

Diante da exposição dos símbolos medievais, observa-se que, em relação


aos algarismos modernos, o princípio de representação dos números é mantido,
mudando apenas a simbologia para os números de um a nove, mas permanecendo
a correspondência de valores (Figura 7). Porém, o uso do caractere para
representar o número zero era dispensado no tratado de Gerbert sobre o ábaco e
nos escritos dos seus discípulos.
O símbolo, para representar o vazio, era conhecido por Sipos, formado por
uma figura circular contendo um ponto no meio (CHASLES, 1843b). Esse autor
relata ter encontrado registros desse caractere em, pelo menos, dois tratados do
ábaco que não mencionou a autoria. Apenas ressalta que, por seus achados,
concluiu que o símbolo misterioso podia ser utilizado para preencher as colunas
vazias ou demarcar espaços entres os números no instrumento.
Chasles (1843b) menciona que alguns ábacos continham um décimo arco
com o Sipos como ápice. O uso do zero teria colaborado,também,com a posterior
eliminação das colunas, sendo um marco na passagem do cálculo utilizando o
ábaco para o cálculo escrito, que dispensava a estrutura do instrumento. Segundo
Zunina (1995, p.118), esse algarismo “representa ao mesmo tempo a ausência de
elementos e a presença de uma posição”.
Apesar de serem utilizados apenas nove símbolos para o registro dos
números, poderia o sistema do ábaco ser considerado com base decimal? No

604
ábaco, o zero não fazia falta, tinha um representante, “o espaço vazio” identificado.
Ademais, as outras propriedades do sistema do ábaco como o agrupamento de 10
em 10, o aspecto posicional, são correspondentes ao sistema decimal de
numeração adotado no ensino da multiplicação moderno.
Os caracteres antigos apresentados (Figuras 7) se diferenciam apenas em
formato, dados poucos detalhes, mas no sentido não há divergência, pois existem
os correspondentes para os números de 1 a 9. Chasles (1843a) mostra essas
figuras com seus nomes: Igin, Andras, Ormis, Arbas, Quimas, Calcus, Zenis,
Themenias e Celentis. Essas palavras eram associadas ainda a nove letras do
alfabeto grego (CHASLES, 1843b).
Logo, é enfatizado que os gregos utilizavam letras para representar os
números. Dessa maneira, o estudo dos manuscritos medievais sobre o ábaco
conduz ao entendimento de que o sistema de numeração decimal com a inserção
dos nove caracteres era conhecido desde a antiguidade pelos estudiosos gregos.
Dos gregos aos árabes e, como mencionado no segundo capítulo, muitos
conhecimentos matemáticos foram recuperados pelos estudiosos latinos entre os
séculos VIII e X. Isso coloca em questão a afirmação da história oficial de que foi
apenas no século XIII, com Leonardo Fibonacci (1170 – 1250?), que os algarismos
chamados de arábicos foram disseminados em terras ocidentais.
De fato, nos tempos de Gerbert, esses ensinamentos estavam restritos a um
grupo específico de intelectuais, pois não foram encontrados vestígios de aplicação
e uso do ábaco medieval utilizando os ápices pagãos no comércio, por exemplo.
Apesar de autores como Allen (1842) atribuir a criação do ábaco a Gerbert,
a partir da discussão se conjectura que ele não criou algo novo, mas que teve
significativa participação na preservação dos conhecimentos gregos, bem como na
disseminação das ideias contidas no quadrivium. Com sua morte em 1003, seus
discípulos continuaram produzindo textos sobre o assunto, inclusive referenciando
Gerbert e aconselhando para otimizar o entendimento dos temas estudados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

605
Este estudo se constituiu como um suporte histórico direcionado a
educadores matemáticos apresentando os conhecimentos incorporados no ábaco
de Gerbert, fazendo uso de elementos advindos da história para conhecer como a
matemática do passado se expressava. Essa constatação foi possível devido ao
cruzamento de informações contidas nos textos históricos mencionados, tendo o
Traité de Gerbert como ponto de partida.
Diante do exposto, foram evidenciados indícios das propriedades
matemáticas do sistema de numeração decimais na estrutura física do referido
ábaco, visando à elaboração futura de atividades voltadas para o ensino das
operações de multiplicação e divisão dos números a partir dessa composição física.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Gerbert (1843) e o ensino na formação de professores de matemática.
Dissertação (Mestrado) - Curso de Mestrado em Ensino de Ciências e Matemática,
Instituto Federação de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará, Fortaleza, 2019.

ALLEN, R. Gerbert, Pope Silvester II. The English Historical Review. vol. 7, n.
28. p. 625-668, 1892.

ALFONSO-GOLDFARB, A. M.; FERRAZ, M.; WAISSE, S. Reflexões sobre a


constituição de um corpo documental para a história da ciência: um estudo de
caso do brasil colônia e brasil reino. Acervo - Revista do Arquivo Nacional, v.
26,n. 1,jan-jun: Arquivos e história das ciências, n. 1, p. 42-53. Disponível em:
<http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/107915>. Acesso em: 10 jan. 2021.

BURNETT, C. Numerals and Arithmetic in the Middle Ages. Ashgate


Publishing Company: Burlington, 2010.

CHASLES, M. Règles de l’Abacus (traduction littérale). In Académie des sciences


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sciences / publiés... par MM. les secrétaires. Gauthier-Villars: Paris, 1843a, p.
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<https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k2976b?rk=21459;2#>. Acesso em: 25 jan.
2021.

CHASLES, M. Histoire de l’arithmétique: développement et détails historiques sur


divers points du système de l’abacus. In Académie des sciences (France).
Comptes rendus hebdomadaires des séances de l'Académie des sciences /

606
publiés... par MM. les secrétaires. Imprimerie de Bachelier: Paris, 1843b, p. 1 -
28. Disponível em: <https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k62063k?rk=21459;2>.
Acesso em: 25 jan. 2021.

ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA. Michel Chasles. Disponível em:


<https://www.britannica.com/biography/Michel-Chasles>. Acesso em: 22 dez.
2020.

GERBERT. Traité de Gerbert. In: Académie des sciences(France). Comptes


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par MM. les secrétaires. Gauthier-Villars: Paris, 1843, p. 281 - 295. Tradução por
Michael Chasles. Disponível em:
<https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k2976b?rk=21459;2#>. Acesso em: 26 jan.
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Editora Globo 2007.

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Matemática como campo profissional e científico (Tradução de Rosana G. S.
Miskulin, Cármen Lúcia B. Passos, Regina C. Grando, & Elisabeth A. Araújo).
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Traduzido por J. Guadet.

SAITO, F. História da matemática e suas (re)construções contextuais. São


Paulo: Livraria da Física, 2015.

607
UM PRIMEIRO OLHAR DE ASPECTOS GERAIS DO TRATADO A ARTE DE
NAVEGAR (1606) DE SIMÃO D’ OLIVEIRA219

Gisele Pereira Oliveira220

RESUMO
Esse artigo realiza um estudo pautado na apresentação de um primeiro olhar de aspectos
gerais da obra a arte de navegar (1606) de Simão d’Oliveira, verificando as características
peculiares ao tratado, do século XVII, sobre a navegação. Nessa perspectiva, adotou-se
como objetivo geral, conhecer aspectos gerais da obra a arte de navegar de (1606) de
Simão d’Oliveira. Assim, o percurso metodológico se caracterizou, conforme uma
abordagem qualitativa, capaz de captar o subjetivo identificado no texto original
selecionado, através das relações visualizadas na narrativa e conforme critérios
facilitadores da compreensão das características impressas neste, em que, em
continuidade, esse estudo é documental, por fazer uso de documentos históricos, que
foram submetidos a tratamento didático, com o intuito de possibilitar a compreensão da
identidade fundante relatada. E, dessa maneira, observou-se a partir dessa mostra geral
do tratado, que o tratamento didático de textos presentes na história da Matemática, podem
contribuir para a inserção destes no ensino de Matemática em práticas no ambiente
escolar. Portanto, o uso do tratado a arte de navegar, demonstrou-nos a evidente
aplicabilidade das matemáticas do século XVII nos tratados de navegação, que ao serem
articuladas, forneciam aprendizagens significativas de saberes do conhecimento
matemático.

Palavras-chave: História da Matemática. A arte de Navegar. Simão d’Oliveira.


Instrumentos Matemáticos.

INTRODUÇÃO

A história da Matemática (HM) é repleta de eventos significativos no


decorrer dos tempos, com potentes momentos a serem investigados e aproveitados
no ensino de Matemática. E, assim, pensou-se em promover um primeiro olhar da
reconstrução de aspectos gerais de um tratado histórico de um determinado

219
Estudo orientada pela professora e doutora Ana Carolina Costa Pereira. Universidade Estadual do Ceará
(UECE). E-mail: carolina.pereira@uece.br
220
Universidade Estadual do Ceará (UECE). E-mail: gisele.oliveira@aluno.uece.br

608
período, que pudesse posteriormente, dialogar com pesquisas futuras rumo a
utilização destas informações.
Para selecionar um tratado para estudo, que fizesse uso de instrumentos
presentes na HM, realizou-se pesquisas em plataformas nacionais e internacionais,
que permitissem selecionar um dos encontrados, que contemplassem o uso de tais
recursos. Podendo desse modo, oportunizar assim, o exercício da construção e
reconhecimento de aspectos gerais do tratado.
Nessa percepção, destaca-se a necessidade de se estabelecer cautela
para identificar os aspectos pontuais, que possuam natureza epistemológica,
contextual e/ou historiográfica de um determinado período pesquisado, evitando
com isso, o risco de sermos anacrônicos e/ou progressistas, isto é, conforme Saito
(2015), refere-se ao fato de olhar para o passado com os olhos do presente,
percebendo e julgando circunstâncias diferentes com concepções do presente.
Com isso, visitou-se, a Biblioteca Digital de Teses e Dissertações (BDTD),
Banco de Teses e Dissertações da Coordenadoria de Pessoal e Aperfeiçoamento
de Nível Superior (CAPES), a Biblioteca Nacional de Portugal (BNP) digital e
JSTOR, com intencionalidade de investigar materiais em plataformas nacionais e
internacionais, que possuísse possíveis produções que correspondem-se a
temática de interesse deste.
Diante das pesquisas levantadas nestas plataformas, identificou-se
dissertações, teses e outras categorias de produções, que fizeram a utilização de
tratados históricos. Nessa direção, buscou-se por produções, que apontassem o
uso de instrumentos matemáticos na HM e, também, que permitissem a
experimentação da reconstrução de aspectos epistemológicos, contextuais e
históricos propostos por Beltran e Saito (2014).
Nesse intuito, pautou-se nos critérios ofertados por Silva (2018), avaliando-
se a circunstância, na expectativa de estabelecer uma justificativa, que auxiliasse
no respaldo científico, que se baseou esse processo de seleção do texto original,
isto é, a fonte primário, no caso o tratado.
Dessa maneira, selecionou-se um texto original, que consoante a Beltran e
Saito (2014, p. 18), referem-se à “textos, imagens ou documentos da cultura

609
material (objetos físicos) que chegaram a nossos dias trazendo registros de
conhecimentos elaborados, transmitidos, adaptados em outros tempos e culturas”.
E, diante disso, optou-se pela escolha do tratado histórico “A arte de
Navegar”, de 1606, de Simão d’Oliveira, por perceber possíveis potenciais a serem
explorados, após tratamento didático de elementos contidos neste. Esse processo,
viabiliza a reconstituição de elementos pontuais da episteme do século XVII, no que
diz respeito a arte de navegar e o uso das matemáticas para o exercício deste ofício
realizado para estabelecer relações comerciais.
E, segundo Saito (2015), as matemáticas eram capazes de explicar como
os fenômenos físicos ocorriam, mas não atendiam a destreza de apontar o porquê
destes acontecimentos e, ainda, manipulavam e se articulavam em torno daquilo
que Aristóteles denominou por “quantidades”, como por exemplo, a astronomia,
música, aritmética e geometria.
Para facilitar o estudo, estabeleceu-se a pergunta diretriz de “Quais
aspectos gerais podem ser identificados no tratado de Simão d’Oliveira à arte de
navegar (1606)?” E, como objetivo geral, temos o de “conhecer aspectos do tratado
a arte de navegar de Simão d’Oliveira (1606).
Esse estudo, caracteriza-se como uma abordagem qualitativa, em que
Araújo e Borba (2004, p.106) apontam que “o qualitativo engloba a ideia do
subjetivo, passível de expor sensações e opiniões”. E, ainda, como um estudo
documental, por Gil (2010, p.63) que afirma que “o documental assemelham a
levantamentos com dados disponíveis e não obtidos diretamente das pessoas [...]”,
que permitem desenvolver um plano de ação, através de um tratamento didático
das fontes e problema idealizado.

A ARTE DE NAVEGAR DE 1606 DE SIMÃO D’OLIVEIRA

O texto original, selecionado conforme os critérios apontados por Silva


(2018) corresponde a um tratado, que é um documento do século XVII, com autoria
de Simão d’Oliveira, natural de Lisboa – Portugal, em que foi dirigido a Dom Pedro
de Castilho, bispo de Leiria, inquisidor mór e visorey em reinos de Portugal e que
trata de assuntos da navegação.

610
Esse tratado, consoante ao visto em Oliveira (1606), possui capa,
contracapa, frontispício, prefácio reconhecido por proemio, carta ao leitor,
dedicatória e ao final deste uma taboada, que se assemelha ao que denominamos
por sumário. Além disso, identificou-se que é dividido em quatro livros, em que o
primeiro, possui 16 capítulos, o segundo sete, o terceiro 26 e o quarto 53.
Nessa direção, verificou-se possuir imagens que apresentam instrumentos
náuticos, taboadas que se assemelham a tabelas, e, ao final, a errata referente a
algumas informações presentes no corpo do texto, ressaltando alguns fatos
pontuais, não se tratando de todo o conteúdo apresentado nas páginas apontadas.
A seguir, ver-se o frontispício do tratado estudado, que contém uma
imagem, que aparentemente representa um brasão de algum reino, constando um
carimbo, ou timbre, ou ainda, um selo real. Destaca também a identidade de quem
compôs a obra, juntamente com sua naturalidade e informa conforme Oliveira
(1606), que este foi dirigido à Dom Pedro de Castilho, bispo de Leiria, apresentando
que possui licença da inquisição e ordinário, em Lisboa, por Pedro Crasbeeck,
1606, que possuía privilégios real, tendo ainda ao final da página, uma rubrica.

FIGURA 1: FRONTISPÍCIO DO TRATADO A ARTE DE NAVEGAR DE SIMÃO


D’OLIVEIRA

611
Fonte: Retirado de Oliveira (1606, s/p)

Em continuidade, logo após o frontispício, temos que Oliveira (1606, s/p,


tradução nossa) apresenta uma dedicatória a Dom Pedro de Castilho, destacando
que este “teve muita razão em trocar o que as armas se devem, pelo que é próprio
das leis [...]”, ressaltando nesta ocasião a importância de se admitir as leis para
resolver as situações, no lugar de fazer uso das armas. E, ademais, ressaltou
Oliveira (1606, s/p, tradução nossa):

[...] reuni ânimo para escrever este breve tratado, intitulado Arte de
navegar, por não achar autor algum sobre está matéria em forma
assim escrito, sendo assim que é muito importante haver nas
Repúblicas, quem saiba, pois dela dependem os tratos, comércios
e navegações, que enobrecem os estados e enriquecem os reinos
[...].

Nessa direção, observou-se que foi destacado pelo autor, que seu
interesse em o produzir, ocorreu pelo fato de não possuir conhecimento de outros
tratados que tenham realizado tal abordagem, reconhecendo também, a importante
das informações presentes nesta, para as relações comerciais e para enriquecer e
enobrecer os reinos e estados.
Em seguida, Oliveira (1606, s/p, tradução nossa) orienta aos prudentes
leitores, mediante à um proemio, que se assemelha à um prefácio, que “trataremos
das mais admiráveis ciências que as matemáticas tem [...]”, fazendo ainda um
esclarecimento de todo o cenário visualizado nesta obra, por meio de elementos
fundamentais na astronomia, como planetas e estrelas e do conhecimento de
cartas hidrográficas, conhecidas neste por cartas de marear e os instrumentos
usados para favorecer e facilitar o oficio da navegação.
Em continuidade, Oliveira (1606, s/p, tradução nossa) apresenta aos
leitores, alguns nomes de autores, segundo ele “antigos e modernos, dos quais se
tirou a doutrina desse tratado”, isto é, destacou-se uma espécie de referencial
teórico aos quais se pautaram as informações articuladas nesse texto original.
A obra, destaca um tópico de licenças, que se entende como autorizações
para a liberação da impressão do tratado, em que por ordem de Pedro Castilho foi

612
realizada uma avaliação do caráter do conteúdo deste, sendo declarado pelo
avaliador, que refere-se a um documento, segundo Oliveira (1606, s/p, tradução
nossa), “muito digno de lhe dar licença, pois não se tenta contra a fé e bons
costumes, mas mostra utilidade aos navegantes, como estudiosos das ciências
matemáticas”.
E, nessa compreensão, visualiza-se, que a arte de navegar, conforme
destacado por Oliveira (1606) faz uso das matemáticas, como saberes norteadores
e facilitadores do bom exercício que este ofício exige, por exemplo, na ocasião de
produção e manuseio de instrumentos matemáticos utilizados para atender as
finalidades e objetivos da navegação, tal como a importância de conhecer noções
astronômicas, que permitam aos sujeitos desta arte, conhecer os astros e inferir
informações sobre estes, além de saber sobre conhecimentos geométricos do
espaço navegado e de sua localização marítima, podendo mediante a esses, evitar
o acesso a terras perigosas ao navegante.
Assim, percebe-se na obra, uma necessidade evidente no uso de um tripé
fundamental para as navegações, que eram, a agulha, os instrumentos
matemáticos e as cartas de marear, em que Oliveira (1606) apresentou como
ferramentas fundantes para a navegação deste período.
A agulha, correspondia a uma caixa que possuía em seu interior um relógio
universal, orientador para os pilotos da navegação221; os instrumentos
matemáticos, tratavam-se de recursos que para Saito (2015) manipulavam o que
Aristóteles caracterizou por quantidades e as cartas de marear, correspondiam a
documentos norteadores dos trajetos, percursos e outros saberes da navegação.
Como literatura secundária, selecionou outro tratado, que relatava
assuntos correspondentes a obra discutida, em que Pimentel (1819), declarou que
"a arte de navegar” comumente se dividia em duas partes, numa científica e outra
experimental, em que a primeira tratava-se de regras, instrumentos para observar
a altura do Polo e a variação das agulhas, da fábrica e uso das Cartas de Marear
ou coisas semelhantes, sendo fundamentados nas ciências matemáticas,

221
Para Oliveira (1606) referia –se aqueles que possuíam o conhecimento para exercer a arte de navegar.

613
destacadas por Randles (1985, p. 235) como "astrologia, astronomia, cartografia e
navegação".
Já a segunda parte se inclinavam para as derrotas, que surgiam no ato de
navegar de um lugar para outro, descrevendo as distâncias, os baixos e outras
informações observadas pelos pilotos, levando-nos a refletir, que além de todos os
conhecimentos científicos e práticos, a observação se tornou para a navegação, o
recurso mais importante.
Com isso, visualizou-se que nem todos os pilotos concordavam com as
mesmas informações e notícias que eram divulgadas, pois segundo Pimentel
(1819), percebia-se que havia falta de exatidão no que costumava ser relatado
pelos pilotos, conduzindo-nos a confabular, que essa falta de validação destes
conhecimentos entre estes, poderiam ser decorrentes da ausência de formação
que possuíam sobre os elementos observados no exercício da navegação.
Além disso, um dos problemas identificados nos documentos elaborados
para navegação, poderiam ser decorrentes da ausência de esforços dos
Cosmógrafos Mór222, que segundo Pimentel (1819) recebiam informações de
distintos pilotos, mas que na maioria das vezes não se debruçavam a analisar estas
em prol da navegação, apenas reproduziam e não publicavam novos roteiros,
seguindo o que já era conhecido por errôneos nesse processo.
Vale ressaltar, que Pimentel (1819) destacou, que Manoel de Figueiredo,
foi o primeiro a publicar estes roteiros para esclarecimentos, mas que após este, os
outros cosmógrafos mór não deram continuidade a essa ação, o que na maioria
das vezes, só reproduziam tais roteiros, contendo muitos erros, pouca clareza e
desordem nas orientações para os pilotos que faziam uso destes.
Nesse contexto, visualizando a falta de precisão das Cartas de Marear e os
variados prejuízos causados por isto, Pimentel (1819, p. 11), relatou, que Pedro
Nunes, refutou informações das Cartas de Marear em um de seus tratados,
dedicados a Dom Luiz, destacando-se no documento, que não julguem erradas as
notícias relatadas neste, por ser diferentes de alguns outros roteiros conhecidos,

222
Cosmógrafos Mór referia-se ao maior cargo público do Reino de Portugal, que exigia para seu ofício a
dedicação a cosmografia. Ver mais em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Cosm%C3%B3grafo-mor

614
mas que entendam que ele "só escreve, pois crer conseguir a verdade em relação
ao diligente exame de tais ensinamentos e notícias".
E, em continuidade a estás compreensões, Simão d' Oliveira (1606)
destaca a importância de se ensinar a calcular a altura do polo e a largura dos
lugares, não só por meio do sol, pois existem dias e períodos do dia, que não se
podem realizar essa prática, logo, é preciso também por meio das estrelas,
aprender tais ofícios, que não são fáceis.
E, consoante a Randles (1985), o português Simão d' Oliveira e o espanhol
Garcia de Cespedes, nos seus manuais de navegação, ambos são enfáticos, que
os métodos astronômicos são muitas vezes inúteis, pela falta de taboadas 223
suficientemente precisas por conta da impraticabilidade e do conhecido dos
saberes contidos nestas.
Essa escassez de recursos e informações corretas quanto a navegação,
resulta em vários problemas, derrotas, perigos e desordem; sendo preciso ensinar
aos pilotos, os conhecimentos referentes as estrelas, pois é possível navegar e se
orientar por estás, mas Pimentel (1819) apontou, que muitos não conseguem e não
se aventuravam, pela falta de conhecimento das duas estrelas de referências,
sendo, a estrela Polar e outras estrelas fixas, conhecida como estrela notável fixa,
presentes nas taboadas e pouco conhecidas por estes sujeitos, para um cálculo
correto de suas latitudes e longitudes.

FIGURA 2: TABOADA DAS DECLINAÇÕES DE 24 NOTÁVEIS ESTRELAS


FIXAS APRESENTADAS NO TRATADO

223
Taboadas correspondiam ao agrupamento de informações relevantes a determinado assunto, podendo ser
organizados em tabelas, quadros ou de outras maneiras orientadoras para divulgação dos conhecimentos.

615
Fonte: Retirado de Oliveira (1606, s/p)

Desse modo, na busca por compreender a “Arte de Navegar” de Oliveira


(1606), aventurou-se a criar, em leitura flutuante do tratado, um mapa conceitual,
que reunisse uma visão geral dos elementos abordados nesta, destacando uma
percepção dos interesses discutidos na narrativa, tais como os sujeitos, locus,
relações entre estes e outros aspectos gerais.

FIGURA 3: MAPA CONCEITUAL DA LEITURA FLUTUANTE DO TRATADO “A


ARTE DE NAVEGAR”.

616
Fonte: Elaborado pela autora.

A partir da construção do mapa conceitual anteriormente apresentado


sobre as características do tratado, buscou-se identificar elementos fundantes da
episteme do período investigado, sob o contexto da navegação e a utilização das
matemáticas para o exercício deste ofício.
Assim, visualizou-se, que referiam-se de maneira mais significativa, aos
saberes de cunho da navegação, da astronomia, da cartografia e da cosmografia.
Em que, Oliveira (1606) destacou a necessidade da agulha, dos instrumentos
matemáticos e das cartas de marear como recursos auxiliares nesse processo,
mesmo em consciência da falta de imprecisão em algumas ocasiões.
Em seguimento, observando o contexto aos quais tais instrumentos
estavam imersos, percebemos uma relação direta com a geometria prática exercida
pelos praticantes das matemáticas, que para Saito (2015, p.171), eram “arquitetos,
pintores, escultores, agrimensores, navegantes e outros; que passaram a escrever
sobre seus ofícios, com a intenção de transmitir seus saberes a novas gerações,
tal como para valorizar sua arte e se autopromoverem”.
E, por fim, a arte de navegar tinha uma influência significativa sobre a
astronomia, pois a navegação dependia do conhecimento do piloto quanto a sua

617
localização, em que para isto, a maioria destes, conforme visualizado em Oliveira
(1606) e Pimentel (1819), dependiam do sol para realizar cálculos de distância entre
os locais e a altura ao polo, compreendendo assim sua latitude e longitude.
Por isso, ademais, foi também orientado, que conhecessem as estrelas,
pois através desses saberes, poderiam navegar com segurança à noite também,
sendo isto favorável para as rotas do comércio, pois otimizaria navegar em destino
ao que Oliveira (1606) relatou por terras das riquezas.

OS INSTRUMENTOS MATEMÁTICOS UTILIZADOS NA ARTE DE NAVEGAR DE


SIMÃO D’OLIVEIRA DE 1606

Neste texto original, é interessante relatar que os quatro livros contidos na


obra, intitulavam-se respectivamente, à círculos da esfera artificial, dos ofícios dos
círculos da esfera artificial, da fábrica dos instrumentos náuticos e do uso dos
instrumentos náuticos e preceitos de navegar.
Em que, mediante a essa explanação, declaramo-nos, a partir dos critérios
orientados por Silva (2018), que para um recorte e primeiro olhar da reconstrução
da episteme do período relatado no tratado, interessou-nos a estudar e perceber
as características investigadas nos livros terceiro e quarto, que orientam aos pilotos
e navegantes sobre a fabricação de alguns instrumentos náuticos favoráveis ao
sucesso nas rotas de navegação.
E, no mais, vale salientar, que Oliveira (1606) destacou conhecimentos que
se estendiam para além da fabricação, mas que se debruçavam rumo ao uso
destes. E, dessa forma, observa-se que entre todos os instrumentos citados no
documento, os que foram apreciados e fornecidos os ensinamentos quanto aos
saberes da fabricação e uso foram, respectivamente, o astrolábio, armilia náutica,
quadrante náutico e rosa da agulha, verificados na figura 4.

FIGURA 4: ALGUNS INSTRUMENTOS APRESENTADOS NA ARTE DE


NAVEGAR

618
Fonte: Oliveira (1606, p. 57-77)

E, diante do uso de todos esses instrumentos náuticos, percebeu-se as


matemáticas, que para Saito (2015) referiam-se a astronomia, aritmética, geometria
e música. E, para este tratado, observou a predominância do uso de noções de
astronomia, pelo que Oliveira (1606) apontava ser fundamental na arte de navegar,
que era o conhecimento dos polos e das estrelas, além da habilidade de calcular a
largura dos lugares, a altura dos polos para onde o navegante se encontra com a
nao, isto é, com a sua embarcação, navio, barco e etc.
Portanto, epistemologicamente, havia uma necessidade dos
conhecimentos da natureza e ainda do manuseio de operações aritméticas ou
geométricas para o exercício da fabricação e utilização dos instrumentos náuticos
matemáticos, isto é, haviam saberes do conhecimento importantes para o ofício de
piloto, o que na maioria das vezes eram uma das dificuldades encontradas, além
do que Oliveira (1606) relatava, que era a falta de precisão nos recursos usados na
navegação, como as cartas de marear, os instrumentos fabricados e a agulha
náutica, que era uma espécie de bússola orientadora, que possuía em seu interior
um relógio universal. E, assim, Almouloud (2018, p. 182) afirma que:

Os saberes matemáticos são construídos por matemáticos


pesquisadores, em resposta a questões externas ou internas à
matemática. A abordagem para responder a essas questões que
conduzem a novos saberes não é linear, mas um labirinto de
reflexões, ensaios, transformações da questão, reformulação de
saberes conexos anteriores, etc. O saber é, portanto, construído

619
por indivíduos em um contexto social e histórico a partir de
questões científicas: ele é personalizado e contextualizados.

Por isso, verificou-se que os saberes matemáticos utilizados nos distintos


períodos no decorrer da escrita da história, não foram lineares, mas eram
impulsionados mediante a questões internas e externas vivenciadas, além de um
labirinto de reflexões, verificações e experimentações.
Diante disso, debruçou-se a observar o que Oliveira (1606), Pimentel
(1819) e Randles (1985) destacaram em suas narrativas, como fundante a
navegação, que além da agulha, das cartas de marear e dos instrumentos náuticos
matemáticos, eram de extrema importância a observação do cenário visualizado
pelo caminho, pois como havia falta de precisão nos recursos usados, a
familiarização com a flora, fauna e demais características no percurso, imprimiam
ao navegante o conhecimento de sua localização.

DISCUSSÃO DE DADOS

Nesse estudo documental, fez uso de documentos, original e secundários,


fazendo menção à critérios de investigação de textos históricos, conforme Silva
(2018), observando-se que esse tratado, possui aspectos oportunos para a
contextualização da HM, para o ensino de operações aritméticas, geométricas e de
situações problemas, que ao ser submetido à um tratamento didático da linguagem,
das informações, dos saberes e nomenclaturas do período, destacou-se como
potente para o ensino de Matemática.
E, nessa perspectiva avaliamos que este, possui características que
reconhecem ser relevantes as matemáticas do século XVII para navegação, assim
como percebemos ser conhecimentos interessantes para a formação de
professores em modalidade inicial ou continuado, mediante a interface entre
história e ensino de Matemática, com intencionalidade de oportunizar, segundo
Saito (2019), a reconstrução de antigos instrumentos matemáticos dirigidos a
educação básica.
Desse modo, verificou-se ainda, através da seleção de um trecho histórico
presente neste, disposto a seguir, que enfatiza que a narrativa desse documento

620
assinala a importância de conforme Oliveira (1606) fazer uso do sol, isto é, era
necessário o dia como recurso facilitador e, instrumentos, que permitissem saber
durante o dia a altura do polo, ou ainda, o cálculo da largura entre os lugares e a
posição de localização do navegante a sua “nao”, ou seja, sua embarcação.
No entanto, destacou-se Oliveira (1606), que haviam dias perdidos por
conta das nuvens que encobriam o sol, levando-os a verificar, a necessidade de
aprenderem a realizar os mesmos procedimentos durante a noite, usando assim as
estrelas como referência que os amparassem e que otimizassem suas rotas
marítimas rumo as relações comerciais.

FIGURA 5: TRECHO AVALIADO DA ARTE DE NAVEGAR

Fonte: Oliveira (1606, p.113-114)

E, epistemologicamente, visualizou-se que conceitos fundantes das


matemáticas, emergiam nesta narrativa, como aritmética, geometria e astronomia,
despertando-nos a categorizar estes, conforme os termos sinalizados no trecho
coletado na leitura flutuante do tratado.

QUADRO 1: Categorização das matemáticas identificadas nos termos do


trecho
Termo(s) do Trecho Matemáticas em uso no século XVII
Sol, Polo e estrelas Astronomia
Largura dos lugares e Altura do Polo Geometria e Aritmética
Instrumentos Noções de astronomia, aritmética e
geometria
Fonte: Elaborado pela autora

621
E, portanto, o primeiro olhar do tratado “arte de navegar” de Simão
d’Oliveira, visualizou-se uma variedade de informações sobre a caracterização
desse estudo, em que segundo Saito (2016) é potente para ser usado em uma
interface entre história e ensino de Matemática, verificando que o tratamento
didático deste, pode favorecer o uso das matemáticas do século XVII, que ainda
não haviam sido consolidadas em uma área autônoma, neste século XXI,
reconhecida por Matemática.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Concluímos nesse estudo, a partir dos aspectos gerais do tratado a arte de


navegar (1606) de Simão d’ Oliveira, que o uso de tratados da HM, submetidos a
critérios de textos históricos, como orientados por Silva (2018), podem auxiliar na
interface proposta por Saito (2016), assim como na reconstrução de elementos
pontuais de natureza epistemológica, contextual e historiográfica assinalados por
Beltran e Saito (2014).
E, que a partir de Pereira e Saito (2018), os conhecimentos de aspectos
variados deste tratado, podem auxiliar no desenvolvimento da construção de uma
interface, que diante do uso dos instrumentos matemáticos identificados na obra e
submetidos a tratamento didático, podem influenciar positivamente entre história e
ensino de Matemática.
Em que, além disso, após estudos mais aprofundados e munidos de um
respaldo científico significativos, pretende-se em futuras produções, vislumbramos
experimentar, o que Sousa (2020) aponta por aliança entre HM e Tecnologias
Digitais da Informação e Comunicação (TDIC) via a Investigação Científica (IC) das
discussões iniciadas nesta produção.
E, por fim, alcançou-se respostas para a pergunta diretriz, assim como o
objetivo geral de conhecer aspectos do tratado a arte de navegar de Simão
d’Oliveira (1606), como características de cunho contextual, histórico, ou até,
epistemológico.

622
REFERÊNCIAS

ALMOULOUD, S. AG; SILVA, M. J. F. da.; COUTINHO, C. Q.; CAMPOS; C. R.;


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OLIVEIRA, G. P. de. (Org). Articulação entre História e Didática da
Matemática: aspectos teórico-metodológicos para o ensino. São Paulo:
Editora Livraria da Física, 2018.

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Educação Matemática. In: FIORENTINI, D.; GARNICA, A. V. M.; BICUDO, M. A.
V. (Orgs.). Pesquisa Qualitativa em Educação Matemática. 2. ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2004. cap. 2 e 4, p. 49-78, p. 101-114.

GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2010.

OLIVEIRA, S. de. Arte de navegar. Lisboa: Oficina de Pedro Crasbeeck. 1606.

PEREIRA, A. C. C.; SAITO, F. Os instrumentos matemáticos na interface entre


história e ensino de matemática: compreendendo o cenário nacional nos últimos
10 anos. Boletim Cearense de Educação e História da Matemática, v. 5, n. 14,
p. 109-122 (2018).

PIMENTEL, M. Arte de navegar em que se ensinam as regras práticas, e os


modos de cartear, e graduar a balestilha por via de número e muitos
problemas úteis a navegação e Roteiro das viagens e costas marítimas de
Guiné, Angola, Brazil, Indias, Ilhas Orientais e Ocidentais. Novamente
emendado e acrescentado muitas derrotas. Lisboa: Tipografia de Antonio
Rodrigues Galhardo. 1819.

RANDLES, W. G. L. Portugueses and Spanish attemps to measure longitude in


the 16 th century. Vistas in astronomy, v.28, p. 235-241, France, 1985.

SAITO, F. História da Matemática e suas (re)construções contextuais. São


Paulo: Ed. Livraria da Física/SBHmat, 2015.

SAITO, F. A reconstrução de antigos instrumentos matemáticos dirigida para a


formação de professores. Revista Educação: Teoria e Prática, Rio Claro, São
Paulo. v. 29, n. 67, p. 571-589 (2019). ISSN: 1981-8106.

SAITO, F. Construindo interfaces entre história e ensino da Matemática. Revista


Ensino da Matemática em Debate. v.03, n.01, p. 03-19 (2016).

SAITO, F.; BELTRAN, M. H. R. História da ciência para formação de


professores. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2014.

623
SILVA, I. C. Um estudo da incorporação de textos originais para a educação
matemática: buscando critérios na articulação entre história e ensino. 2018.
93 f. Dissertação (Mestrado em Ensino de Ciências e Matemática) – Instituto
Federal do Ceará, Fortaleza, 2018.

SOUZA, G. C. de. Aliança entre História da Matemática e Tecnologias via


Investigação Matemática: reflexões e práticas. In: SOUZA, G.C. (Org.). Reflexões
sobre aliança entre HM, TDIC e IM. São Paulo. Editora Livraria da Física, 2020.

624
UMA CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DAS TÉCNICAS DA TRANSFORMADA
INTEGRAL CLÁSSICA (CITT) E GENERALIZADA (GITT) – COMUNICAÇÕES:
Aspectos Iniciais

Reynaldo D’Alessandro Neto224

RESUMO
Estes resultados parciais de uma pesquisa de doutorado do Programa de Pós-Graduação
em Educação Matemática da UNESP – Rio Claro tem como objetivo descrever a evolução
histórica que culmina na concepção da Técnica da Transformada Integral Clássica, e as
motivações que levaram a sistematização do seu modelo generalizado. As técnicas têm
como foco resolver Equações Diferenciais Parciais (EDP) a princípio não tratáveis pelas
teorias clássicas, como o conhecido método da separação de variáveis. Pretendemos fazer
uma construção histórica, considerando o contexto do seu surgimento e desenvolvimento,
passando pelas diversas modificações sofridas até se tornar uma técnica analítica e,
posteriormente analítico-numérica, que acompanha a velocidade das abordagens
puramente numéricas e os avanços do mundo tecnológico. Para atingir esse objetivo,
descrevemos a Transformada Integral por N.S. Koshlyakov e os estudos detalhados
realizados por G.A. Grinberg (1948) e M.D. Mikhailov (1972). Para assim, podermos
entender e apresentar a Técnica da Transformada Integral Clássica (CITT – Classical
Integral Transform Technique) de Özisik e Murray (1974). E, por fim, mostramos os
conceitos que surgiram com o formalismo da Técnica Transformada Integral Generalizada
(GITT - Generalized Integral Transform Technique), proposta por Özisik e Mikhailov (1984).
Nesses resultados parciais de pesquisa, apresentamos os passos descritos acima até a
contribuição de Mikhailov (1972), que serão finalizados com a análise dos escritos que
fundamentam a CITT e GITT.

Palavras-chave: História da Matemática; Equação Diferencial Parcial - EDP;


Transformada Integral; Técnica da Transformada Integral Clássica – (CITT); Técnica da
Transformada Integral Generalizada – (GITT).

INTRODUÇÃO

Durante o mestrado, participamos do grupo de Simulação e Experimentos


para Microfiltração e Ultrafiltração da Universidade Federal de São Carlos –
Campus Sorocaba. Nesse grupo, estudávamos modelagens matemática
relacionadas aos problemas de filtração tangencial, dentre as soluções que se

224
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). reynaldo.dalessandro@gmail.com

625
aplicavam aos problemas, as Técnicas da Transformada Integral Clássica (CITT) e
Generalizada (GITT) eram as mais estudadas.
E durante o processo da escrita da dissertação, percebemos a necessidade
de um estudo histórico sobre a teoria, devido a dificuldade de se encontrar
informações relativas ao tema. Assim, iniciamos um levantamento e verificamos a
originalidade de tal estudo.
Segundo o professor Renato Machado Cotta, no seu artigo de 2012,
intitulado The Unified Integral Transforms (UNIT) algorithim with total and partial
transformation: A tribute to Prof. Mikhail D. Mikhailov, e o professor Aleksei Luikov,
no seu livro Heat and Mass Transfer de 1972, as ideias precursoras que culminaram
na concepção da CITT foram sugeridas por N.S. Koshlyakov em seu livro Basic
Differential Equations of Mathematical Physics, de 1936.
Nesse livro, Koshlyakov define um tipo de transformação integral que ficou
conhecida posteriormente como Transformada Integral Finita.
Depois das primeiras ideias, G.A. Grinberg fez um desenvolvimento mais
detalhado das transformações integrais no livro Selected Problems of Mathematical
Theory of Electrical and Magnetic Effects, de 1948.
Mas foi o artigo escrito por M.D. Mikhailov em 1972 intitulado General
Solution of the Heat Equation in Finite Regions, que deu uma contribuição
extremamente significativa para a consolidação da técnica de Koshlyakov. No
estudo, o autor elabora uma proposta de um núcleo de processamento geral que
unificou as várias transformações ao obter uma solução geral para a equação da
difusão linear em regiões finitas.
Finalmente, M.N. Özisik e R.L. Murray em 1974 no artigo On the Solution
of Linear Diffusion Problems With Variable Boundary Condition Parameters,
utilizaram as ideias dos autores citados anteriormente e, aplicaram pela primeira
vez uma nova técnica para a resolução de sistemas de Equações Diferenciais
Parciais (EDP), chamada posteriormente de Técnica da Transformada Integral
Clássica (CITT – Classical Integral Transform Technique).
Em 1984, Özisik e Mikhailov, no livro Unified Analysys and Solution of Heat
and Mass Difusion, apresentaram uma maneira sistemática de aplicação da

626
Técnica da Transformada Integral para a solução de diversos problemas lineares
de difusão, divididos em sete grandes classes que foram definidas partindo de
inúmeros problemas de transferência de calor e massa disponíveis na literatura.
Desse trabalho surgiram os formalismos da GITT.
Essas evoluções, segundo Cotta (2012), ocorreram devido ao período da
corrida tecnológica espacial, onde diversos países do Leste Europeu como a URSS
e Bulgária, tiveram suas pesquisas concentradas no desenvolvimento de
ferramentas analíticas. Concomitantemente, os Estados Unidos e Europa
concentravam-se no desenvolvimento aos métodos puramente numéricos, que se
tornaram viáveis com o advento do computador.
E assim, durante a década de 1980, vários pesquisadores norte-
americanos, soviéticos e búlgaros trabalharam conjuntamente, visando
desenvolver técnicas híbridas analítico-numéricas, que conseguissem unir as
características positivas de cada tipo de abordagem do problema.
Como iremos apresentar um resultado parcial da nossa pesquisa, este
texto conterá o que foi melhor desenvolvido na pesquisa até o presente momento.
Com isso, traremos os passos descritos acima até a contribuição de Mikhailov
(1972).

MOTIVAÇÕES HISTÓRICAS E O DESENVOLVIMENTO DE KOSHLYAKOV

Cotta et al. (2017) no texto Analytical Methods in Heat Transfer, comentam


que no trabalho de Fourier de 1807, Théorie de la Propagation de la Chaleur dans
les Solides, e seu tratado, Theorie Analytique de la Chaleur de 1822, foi consolidada
a formulação matemática de fenômenos de condução de calor em termos de uma
equação diferencial parcial para a temperatura dentro de um corpo, com as
variáveis de espaço e tempo.
Além disso, o desenvolvimento das soluções das EDO (Equações
Diferenciais Ordinárias) continuava, e, agora, precisavam satisfazer a propriedade
da ortogonalidade, e por isso geram infinitas soluções em forma de expansões e

627
séries infinitas de funções onde o produto entre elas é zero (condição de
ortogonalidade). Foi aí que a teoria desenvolvida pelos dois matemáticos franceses
entre 1829 e 1837, Sturm-Liouville, obteve uma grande aplicação.
Desse modo, foi aberto um novo caminho para uma metodologia de
solução analítica mais abrangente, que ficou conhecida como o método da
Transformada Integral. Essa técnica de resolução possui diversas abordagens
desenvolvidas ao longo da história, dentre as mais conhecidas estão a
Transformada de Laplace e de Fourier.
Nesse caminho, Cotta (2012) explica que o Trabalho de N.S. Koshlyakov
(1936) nos forneceu uma primeira ideia ao lidar com equações de difusão não
homogêneas e condições de contorno pelo método das Transformações Integrais
Finitas.
No livro de 1936, intitulado Basic Differential Equations of Mathematical
Physics, do russo, Osnovnye Differentsial’nye Uravneniya Matematicheskoi Fiziki,
N.S. Koshlyakov, estuda uma série de problemas físicos que envolvem EDP.
Com o auxílio do Prof. Renato Cotta, encontramos o exemplar original em
Russo de 1936 e comparamos com a publicação de 1964 intitulada Differential
Equations of Mathematical Physics, escrita por N.S. Koshlyakov, M.M. Smirnov e
E.B. Gliner. Com a análise das duas obras, verificamos que a presença da
Transformada na publicação de 1936 está de forma diluída no texto, durante a
solução de cada problema proposto pelo autor. Já no livro de 1964, vemos um
capítulo inteiro dedicado ao trato da Transformada Integral, de um modo didático e
compreensível. Assim, escolhemos a obra de 1964 para a realização do nosso
estudo.
O objeto de nosso estudo está presente na parte IV desse livro. No primeiro
capítulo dessa seção e XXXI do livro, vemos o título: The use of integral operators
in solving problems in mathematical physics.
No início do item 1 desse capítulo, Koshlyakov define "operador integral" e
explica que esses termos são aplicados aos resultados de uma transformação.
Assim, para Koshlyakov, a transformação da forma:

628
̅ = (𝜸𝟏 , 𝜸𝟐 , 𝜸𝟑 , … , 𝜸𝒎 ; 𝒙𝒎+𝟏 , … , 𝒙𝒏 )
𝒖

= ∫ ∫ … ∫ 𝑲(𝒙𝟏 , … , 𝒙𝒎 ; 𝜸𝟏 , 𝜸𝟐 , … , 𝜸𝒎 ) 𝐮(𝒙𝟏 , … . 𝒙𝒏 )𝒅𝒙𝟏.. 𝒅𝒙𝒎


𝑺

É a Operação (Transformada) Integral na região 𝑺 pela qual a função


original 𝒖(𝒙𝟏 , 𝒙𝟐 , . . . . , 𝒙𝒏 ) em relação às 𝒏 variáveis é transformada em uma função
̅ (𝜸𝟏 , 𝜸𝟐 , 𝜸𝟑 , … , 𝜸𝒎 ; 𝒙𝒎+𝟏 , … , 𝒙𝒏 ) com 𝒎 variáveis
𝒖 e 𝒏 − 𝒎 variáveis

(𝒙𝒎+𝟏 , … , 𝒙𝒏 ), com núcleo (Kernel) 𝑲(𝒙𝟏 , 𝒙𝟐 , . . . . , 𝒙𝒎 ; 𝒚𝟏 , 𝒚𝟐 , . . . . , 𝒚𝒎 ) dado que 𝒎


𝒏.
Koshlyakov, após demonstrar nos itens do seu capítulo, as definições
básicas, condições de utilização e o desenvolvimento da técnica para intervalos
finitos e infinitos, finaliza o capítulo, no item 5, com um resumo para facilitar o uso
dos métodos dos operadores integrais. Dentre as principais relações e passos,
destacamos o núcleo (Kernel) do operador proposto por Koshlyakov, que se tornou
muito aplicável nas resoluções de EDP que possuem correlação com fenômenos
físicos:
𝟏
𝑲(𝒙𝒊 , 𝜸) = ̅ 𝜸 (𝒙𝒊 )
𝝆(𝒙𝒊 )𝑲
𝑪𝜸
̅ (𝒙𝒊 , 𝜸) são funções determinadas por Koshlyakov,
Onde 𝑪𝜸 ; 𝝆(𝒙𝒊 ); 𝑲
utilizando os coeficientes da EDP dada. E, a solução problema original, expressa
em termos da solução 𝒖
̅ 𝜸 do problema transformado, por meio das séries:

𝒖 = ∑𝒖 ̅ 𝜸 (𝒙𝒊 )
̅ (𝜸) 𝑲
𝜸=𝟏

Destacamos aqui, seu método para intervalos finitos, porém, o autor


também apresenta de maneira análoga sua metodologia para intervalos infinitos. É
interessante ressaltar que o método de Koshlyakov é chamado em diversos livros,
como nos de Luikov (1972) e Cotta (2012), de Transformada Integral Finita.
Acreditamos que isso se deve ao fato de que a técnica para intervalos
finitos se tornou a mais utilizada em problemas de valor de contorno, ou seja,
equações diferenciais parciais que possuem condições iniciais para sua resolução.

629
DESENVOLVIMENTO DAS TRANSFORMAÇÕES INTEGRAIS DE G.A.
GRINBERG (1948)

Por não encontrar a literatura original de G.A. Grinberg - Selected Problems


of Mathematical Theory of Electrical and Magnetic Effects de 1948, foi pesquisado
livros que fizessem menções e discussões sobre sua contribuição para o
desenvolvimento da Transformada Integral. Dentre os estudos encontrados, foi o
de A.V. Luikov (1972) que mais detalhou o desenvolvimento realizado por Grinberg.
Segundo Luikov (1972), após a proposta de Koshlyakov, a teoria foi melhor
desenvolvida por Grinberg (1948), que generalizou os métodos para o caso de
mudança de propriedades do meio na direção dessa coordenada ao longo da qual
a transformação é executada, principalmente em problemas de cunho físico
(eletricidade e magnetismo)
Nesse desenvolvimento detalhado, os kernels 𝑲(𝒑, 𝒙) utilizados são as
transformações integrais finitas de Fourier e Hankel, escolhidos apropriadamente e
com solução encontrada a partir do problema de Sturm-Liouville. Se as autofunções
desse problema forem designadas por 𝑿𝒏 (𝒙) e a ponderação das funções 𝝆(𝒙)
dentro do intervalo [𝒂, 𝒃], então temos:

𝑲(𝒑, 𝒙) = 𝝆(𝒙)𝑿 𝒏 (𝒙)

Dessa forma, Grinberg faz a sugestão do núcleo e o define a partir dos


limites de integração. Para Luikov, Grinberg (1948) desenvolve um método que,
além de facilitar a escolha do kernel, tem como ideia principal a escolha do mesmo
em conformidade com a equação diferencial e as condições de contorno, isto é,
levando em consideração forma geométrica do corpo e da lei de sua interação com
o meio físico em questão.

DESENVOLVIMENTO DAS TRANSFORMAÇÕES INTEGRAIS DE M.D.


MIKHAILOV (1972)

630
Após o desenvolvimento de Grinberg (1948), foi a obra intitulada: General
Solution of the Heat Equation in Finite Regions, publicada como artigo em 1972,
por M.D. Mikhailov no International Journal Engineering Sciences, que deu uma
contribuição extremamente significativa para consolidação a técnica.
Segundo Cotta (2012), a concepção da GITT sofreu uma grande influência
das publicações de M.D. Mikhailov, em um período extremamente produtivo. Dentre
essas produções, inclui-se o seu trabalho de 1972.
Mikhailov, no seu trabalho, propõe um núcleo de núcleo de processamento
geral que unificou as várias transformações desenvolvidas até então, obtendo a
solução geral para a equação da difusão linear em regiões finitas.
O objetivo do estudo de Milhailov será solucionar um problema de valor de
contorno, ou seja, resolver a Equação Diferencial Parcial:
𝝏𝑻(𝑴, 𝝉)
𝝋(𝝉)𝒘(𝑴)
𝝏𝝉
= 𝒅𝒊𝒗[(𝑲(𝑴) 𝒈𝒓𝒂𝒅 𝑻(𝑴, 𝝉)]
+ [𝜷(𝝉)𝒘(𝑴) − 𝝆(𝑴)]𝑻(𝑴, 𝝉) + 𝑷(𝑴, 𝝉)
Onde 𝑑𝑖𝑣 é divergente e 𝑔𝑟𝑎𝑑 o gradiente no espaço 𝑀. Com condição
inicial:
𝑻(𝑴, 𝟎) = 𝒇𝟎 (𝑴)
E condição de contorno geral:
𝝏𝑻(𝑵, 𝝉)
𝑨(𝑵) + 𝑩(𝑵)𝑻(𝑵, 𝝉) = 𝒇(𝑵, 𝝉)
𝝏𝒏
Para resolver a equação nas condições dadas, segue a proposta de
Transformada Integral Finita de Mikhailov:

𝑇̃𝑖 (𝜏) = ∫ 𝑤(𝑀)𝜓𝑖 (𝑀)𝑇(𝑀, 𝜏)𝑑𝑉


𝑉

Que segundo o autor será utilizada. É interessante reparar que a


transformada sugerida possui um núcleo muito parecido com a sugestão de
Grinberg (1948), caracterizado pela inserção da função peso 𝒘(𝑴) e as
autofunções 𝝍𝒊 (𝑴). Após a leitura, podemos perceber que, Mikhailov ao utilizar as

631
ideias da Transformada Integral Finita de Koshlyakov (1936), com um núcleo de
transformada parecido com a sugestão de Grinberg (1948), propõe uma evolução
que será de especial interesse para os pesquisadores de fenômenos difusivos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao pesquisarmos a técnica e realizar um levantamento histórico


aprofundado, encontramos informações que relacionavam livros, artigos e datas de
modo a construir uma linha do tempo bem clara. Acreditamos que após a leitura
deste texto, podemos entender que a técnica proposta por Koshlyakov em 1936, foi
aproveitada por diversos estudiosos como Grinberg e Mikhailov, que de certo modo
ampliaram suas ideias e mostraram um novo modo de se resolver EDP que
modelavam problemas clássicos da física. Com um futuro a ser descrito, com o
desenvolvimento da CITT e GITT.

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Partial Transformation: A Tribute to prof. Mikhail D. Mikhailov. 14th Brazilian
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variable boundary condition parameters. Journal of Heat Transfer, 96c:48–51. 1974.

633
634
ANTÊMIO E A ELIPSE:
uma visão histórica sobre um método de construção da elipse

Domingos Cezar Marino Pontes225


Gabriel Faria Vieira226

RESUMO
O principal objetivo deste trabalho foi investigar a maneira pela qual Antêmio, um
matemático bizantino, resolveu o problema apresentado a ele de iluminar com luz do sol a
basílica de Santa Sofia durante o ano todo. A importância deste problema é tal que até hoje
é estudado na área de arquitetura. Utilizando a pesquisa documental em fontes primárias
e especialmente secundárias obtivemos a tradução, em inglês, da resposta dada por
Antêmio para o problema e, com o auxílio dos conhecimentos de Geometria, Física,
Geografia e Astronomia, conseguimos compreender a resposta, que se utiliza de espelhos
elípticos. Elaboramos para a solução um passo a passo, feito por meio do aplicativo
GeoGebra, de modo a evidenciar os processos de construção e com isso entendermos
como o conhecimento é interligado, passando pelas ideias dos indivisíveis, lei da reflexão
da luz, incidência dos raios solares durante o ano todo, a posição geográfica da cidade e
mais outras ideias, demonstrando assim a indissociabilidade do conhecimento.

Palavras-chave: História da Matemática. História das Cônicas. Elipse.

INTRODUÇÃO:

O objetivo deste trabalho é apresentar alguns resultados obtidos mediante


uma pesquisa efetuada durante a disciplina de História da Matemática da
Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Fomos orientados, pela professora da
disciplina227, a buscar trabalhos de alguns matemáticos do século VI. Durante essa

225
Universidade Federal do Triângulo Mineiro. domingos.cezar@gmail.com.
226
Universidade Federal do Triângulo Mineiro. d201610551@uftm.edu.br.
227
Profª Drª Mônica de Cássia Siqueira Martines.

635
busca, nos deparamos com a resolução de Antêmio de Trales (474 E.C. - 534 E.C.)
para o problema de conseguir iluminar a Basílica de Santa Sofia, localizada na
cidade de Constantinopla, com luz solar durante o ano todo. Assim, buscamos
responder a seguinte pergunta: Como Antêmio projetou um espelho na Basílica de
Santa Sofia a fim de permitir a entrada da luz solar durante o ano todo? O objetivo
principal foi compreender a solução de Antêmio e ilustrá-la utilizando o aplicativo
GeoGebra.
A metodologia utilizada foi a análise documental em fontes históricas. Para
isso, utilizamos como referência o trabalho de Heath, A History of Greek
Mathematics, que embora antigo (de acordo com O’Connor e Robertson (2003),
teria sido publicado na década de 1920) nos foi de muita serventia, pois
apresentava uma tradução da solução apresentada por Antêmio. Durante a
pesquisa nos deparamos com a fonte original; entretanto, não fomos capazes de
interpretá-la pois encontra-se escrita em grego antigo. Utilizamos também o
trabalho de O’Connor e Robertson para pesquisar sobre a vida de Antêmio, bem
como outros trabalhos para trazer um pouco de contexto histórico ao nosso
trabalho.
Em seguida, utilizamos o GeoGebra para transcrever o passo-a-passo da
solução geométrica do problema dado, interpretando essa solução. Nos apoiamos,
também, em livros de Geografia, pois o problema está intrinsecamente ligado à
essa área do conhecimento, bem como procurar proposições geométricas que
justificassem os meios utilizados para se desenvolver o problema, bem como
propriedades físicas de reflexão. Por fim, concluímos que Antêmio, utilizando como
ferramentas as proposições geométricas gregas e conhecimentos sobre Geografia,
Física e Astronomia, foi capaz de solucionar um problema que se apresentou de
forma arquitetônica, mostrando assim a indissociabilidade das áreas do
conhecimento.

METODOLOGIA

636
Sobre a pesquisa em História da Matemática, podemos dizer que um dos
mais importantes aspectos é a utilização de documentos. De acordo com Silva e
Silva:

Fonte histórica, documento, registro, vestígio são todos termos


correlatos para definir tudo aquilo produzido pela humanidade no
tempo e no espaço; a herança material e imaterial deixada pelos
antepassados que serve de base para a construção do
conhecimento histórico. O termo mais clássico para conceituar a
fonte histórica é documento. (SILVA e SILVA, 2009, p. 158)

De acordo com Pinheiro (2006), fontes primárias são aquelas que se


apresentam exatamente da maneira como foram produzidas por seus autores, isto
é, não sofreram modificações tais como traduções. Como exemplo, podemos citar
a correspondência entre matemáticos do século XVII, tais como Leibniz (1646 –
1716) e L’Hôpital (1661 – 1704). Já as fontes secundárias seriam aquelas que já
sofreram alguma modificação, como uma tradução ou uma interpretação por outro
autor. As fontes terciárias são classificadas como uma “destilação e coleção de
fontes primárias e secundárias” (Pinheiro, 2006).
Sobre a pesquisa em História da Matemática, podemos dizer que essa se
dá sobre as fontes históricas. De acordo com Mendes (2012, p. 72), “[...] o caráter
prioritário da pesquisa relacionada à História da Matemática e da Educação
Matemática, está na reconstituição da nossa história social, ou seja, na busca de
compreender o processo dinâmico natureza-cultura[...]”. Mendes (2012, p. 76)
também aponta que cada pesquisa possui sua originalidade, pois diferem tanto em
métodos, objetos de estudo, fontes, dentre outros.
Quanto ao objeto de estudo, Roque (2012) aponta que na Grécia antiga
havia certo distanciamento entre o saber teórico e o saber prático, o que pode ter
contribuído para nossa visão da Matemática como uma ciência abstrata, desligada
do cotidiano. Entretanto, podemos observar que nem sempre os matemáticos (que
eram denominados filósofos ou geômetras até então) se ocupavam somente das
abstrações matemáticas, como pode ser visto no caso deste artigo.

637
Não devemos estranhar a solução de Antêmio por não utilizar diretamente
régua e compasso, embora possa ser efetuada a partir destes. Segundo Roque
(2012), embora haja uma crença de que as únicas ferramentas permitidas pelos
geômetras da Antiguidade seriam régua e compasso, isso não era verdadeiro. Um
argumento muito utilizado para sustentar essa tese é o livro Os Elementos, cujas
construções contidas nele utilizam somente régua e compasso; entretanto, tal livro
parece ser a exceção e não a regra, já que outros autores da mesma época não se
restringiam a tais métodos.
Utilizamos como metodologia a pesquisa documental em fontes históricas.
Citando Phillips apud André e Lüdke (1986, p.38), podemos dizer que documentos
são “quaisquer materiais escritos que possam ser usados como fonte de
informação sobre o comportamento humano”. De acordo com Guba e Lincoln apud
André e Ludke (1986, p. 39), há diversas vantagens em se trabalhar com
documentos. Dentre estas vantagens, podemos citar a possibilidade de revisita-los
quantas vezes forem necessárias e a inalterabilidade de seu conteúdo.
Neste trabalho utilizamos somente fontes secundárias e terciárias, embora
tenhamos encontrado fontes primárias. As razões para essa escolha se deram
tanto pela questão do prazo definido para entrega do trabalho quanto pela
dificuldade dos autores em trabalhar com o idioma da fonte primária, no caso o
grego antigo. A fonte primária foi encontrada no site da biblioteca nacional da
França, que apontava Antêmio como um dos autores. No livro, identificamos sua
construção da elipse.
Como fontes secundárias, utilizamos um artigo do site Mactutor para que
pudéssemos compreender mais sobre a vida de Antêmio e o livro A History of Greek
Mathematics, para que pudéssemos compreender a construção da elipse proposta,
na forma do problema da construção do teto da igreja. Utilizamos também textos
que falassem sobre o contexto em que ele viveu, além de um para que
conseguíssemos assimilar certos conceitos geográficos utilizados na resolução do
problema.

DESENVOLVIMENTO

638
Um Breve Contexto Histórico e Resumo da Vida de Antêmio de Trales

De acordo com O’Connor e Robertson (1999), Antêmio pertencia a uma


família abastada, sendo seu pai, Stephanus, um médico, assim como dois de seus
irmãos. Um terceiro irmão era advogado, e o quarto seria um erudito. Antêmio
nasceu na cidade de Trales, atual Aidim, localizada na Turquia. Ele teria sido
matemático e arquiteto, tendo reformado a Basílica de Santa Sofia, que ficava em
Constantinopla, no ano de 532.
Constantinopla, atual Istambul na Turquia, era, segundo Petersen (2019),
o centro do Império Bizantino ou Império Romano do Oriente, um dos poucos a
resistir desde a Antiguidade até o início da Idade Moderna. O império se
desenvolveu principalmente após a queda do Império Romano do Ocidente, no ano
de 478 E.C., e se estendeu até 1453 E.C. O Império Bizantino encontrou seu fim
nesse ano, quando foi invadido por tropas do Império Otomano.
Segundo Petersen (2019), dentre a herança do Império Bizantino, podemos
citar a própria Basílica de Santa Sofia, e como patrimônio imaterial, a reforma feita
pelo imperador Justiniano (483 E.C. - 565 E.C.) no código romano, importante
conjunto de leis. Como já dito antes, e de acordo com O’Connor e Robertson (1999),
Antêmio havia sido incumbido de reformar essa basílica, a qual tinha sido destruída
depois de uma insurreição contra o imperador Justiniano. Procópio de Cesareia
apud O'Connor e Robertson (2000) diz que:

[...] o Imperador, desconsiderando todas as questões de despesa,


pressionou avidamente para começar o trabalho de construção e
começou a reunir todos os artesãos do mundo inteiro. E Antêmio
de Trales, o homem mais instruído na arte, conhecido como a arte
de construir, não apenas de todos os seus contemporâneos, mas
também quando comparado com aqueles que viveram muito antes
dele, ministrou ao entusiasmo do imperador, regulamentando
devidamente as tarefas dos vários artesãos e a preparação
antecipada dos projetos da futura construção [...] (PROCOPIUS
apud O'CONNOR e ROBERTSON, 2000, [tradução nossa])

639
O'Connor e Robertson (1999) dizem que Antêmio descreveu um método de
construção para a elipse a partir de uma corda presa em seus dois focos. O
problema que o levou a formular tal construção, de acordo com Heath apud
O'Connor e Robertson (1999), é “conseguir que um raio de sol (admitido através de
um pequeno buraco ou janela) caia em um determinado local, sem se afastar a
qualquer hora e estação do ano.” Iremos, posteriormente, mostrar como Antêmio
foi capaz de resolver tal problema.

O Problema que Levou à Construção da Elipse

Antes de discorrermos sobre a resolução do problema, traremos um breve


resumo sobre o tratamento de curvas no século VI. De acordo com Bos (2012, p.
3), a preocupação quanto a definir quando objetos matemáticos são conhecidos é
antiga, especialmente em relação à pergunta “o que significa para uma entidade
matemática ser ‘conhecida’ ou ‘dada’, e o que significa que um problema está
‘resolvido’, ou que sua solução é ‘conhecida’.” (BOS, 2012, p. 3, tradução nossa).
Não pretendemos nos aprofundar no mérito dessas questões, pois isso
foge ao escopo deste trabalho; entretanto, é importante compreender um pouco
desses aspectos para entender por que o problema foi considerado solucionado.
Segundo Bos (2012), para os gregos antigos, entidades geométricas eram
consideradas dadas caso fosse possível construí-las a partir de ferramentas dadas
no início; e um problema era considerado resolvido se fosse possível construir
geometricamente sua solução, também a partir das ferramentas dadas, que
poderiam ser compasso e régua.
Entretanto, Bos (2012) aponta que os geômetras gregos já observavam que
nem todos os problemas poderiam ser resolvidos utilizando somente régua e
compasso, o que por vezes, acarretava o aceite de diferentes ferramentas, ou sua
negação. Como exemplo, o autor cita os três problemas clássicos da geometria
grega: a trissecção do ângulo, a duplicação do cubo e a quadratura do círculo;
sabemos que estes problemas, séculos depois, foram provados insolúveis

640
utilizando somente régua e compasso. Podemos então prosseguir para o estudo
de espelhos.
O estudo de espelhos com a propriedade de concentrar em determinado
ponto os raios luminosos vem desde o século III a.E.C., como exemplo temos
Arquimedes de Siracusa (287 a.E.C. - 212 a.E.C.) que em sua obra perdida
Catoptrica, trabalha as propriedades dos espelhos. Sabemos da existência de tal
obra graças a uma citação feita por Téon de Alexandria (335 E.C. - 395 E.C.)
referenciando tal texto, como explicado por Heath (1921, p. 24-25).
De acordo com Heath (1921, p. 541), Antêmio era um hábil matemático,
tendo escrito o livro Sobre Espelhos Ustórios, que foi notável na história das seções
cônicas. Nele aparece o problema, que consistia em, dado um determinado ponto
por onde a luz do sol deveria passar (os raios de sol eram tratados como retas),
como refleti-la para um segundo ponto de modo que a luz solar fosse constante
neste durante todo o ano.
Segundo Heath (1921, p. 541-542), Antêmio provém a seguinte solução:
Seja 𝐵 a abertura, 𝐴 o ponto em que a reflexão deve sempre
ocorrer, 𝐵𝐴 estando no meridiano e paralelo ao horizonte. Que 𝐵𝐶
forme um ângulo reto com 𝐵𝐴 , de modo que 𝐶𝐵 seja um raio
equinocial; seja 𝐵𝐷 o raio no solstício de verão, 𝐵𝐸 um raio de
inverno.
Tome 𝐹 a uma distância conveniente em 𝐵𝐸 e tome 𝐹𝑄 igual à 𝐹𝐴.
Trace 𝐻𝐹𝐺 através de 𝐹 bissectando o ângulo 𝐴𝐹𝑄 ̂ , e seja 𝐵𝐺 a
linha reta bissectando o ângulo 𝐸𝐵𝐶 ̂ entre os raios de inverno e
equinocial. Então claramente, já que 𝐹𝐺 bissecta o ângulo 𝑄𝐹𝐴 ̂, se
tivermos um espelho plano na posição 𝐻𝐹𝐺 , o raio 𝐵𝐹𝐸 entrando
em 𝐵 será refletido para 𝐴.
Para obter o raio equinocial refletido de maneira semelhante a 𝑨,
tome 𝑮𝑨 com 𝑮 como centro e ̅̅̅̅ 𝑮𝑨 como raio trace um círculo que
intercepta 𝑩𝑪 em 𝑲. Bissectar o ângulo 𝑲𝑮𝑨 ̂ com a linha reta 𝑮𝑳𝑴
que encontra 𝑩𝑲 em 𝑳 e termina em 𝑴, um ponto na bissetriz do
ângulo 𝑪𝑩𝑫̂ . Então 𝑳𝑴 ̂ , e 𝑲𝑳
̅̅̅̅̅ também bissecta o ângulo 𝑲𝑳𝑨 ̅̅̅̅,
̅̅̅̅ ≡ 𝑳𝑨
̅̅̅̅̅. Então se 𝑮𝑳𝑴 é um espelho plano, o raio 𝑩𝑳 será
̅̅̅̅̅ ≡ 𝑴𝑨
e 𝑲𝑴
refletido para 𝑨.
Tomando o ponto 𝑵 em 𝑩𝑫 tal que ̅̅̅̅̅ 𝑴𝑵 ≡ ̅̅̅̅̅
𝑴𝑨, e bissectando o
̂
ângulo 𝑵𝑴𝑨 pela linha reta 𝑴𝑶𝑷 que intercepta 𝑩𝑫 em O,
descobrimos que, se 𝑴𝑶𝑷 é um espelho plano, o raio 𝑩𝑶 é refletido
para A (HEATH, 1921, p. 541-542, [tradução nossa]).

641
Optamos por utilizar a grafia bissectar, já que o texto original de Heath, na
língua inglesa, utiliza o verbo bisect.

Fazendo a construção passo-a-passo, temos:


1. Seja 𝐵 a abertura, 𝐴 o ponto em que a reflexão deve sempre ocorrer, 𝐵𝐴
estando no meridiano e paralelo ao horizonte.
Figura 6: Segmento 𝐵𝐴

Fonte 1: Autoria própria utilizando o GeoGebra

2. Que BC forme um ângulo reto com BA , de modo que CB seja um raio


equinocial, isto é, um raio de sol entrando por 𝐵 durante o equinócio.
Figura 7: O raio equinocial 𝐶𝐵

Fonte 2: Autoria própria utilizando o GeoGebra

Segundo Alves (2009, p. 33) o equinócio ocorre duas vezes ao ano, uma
aproximadamente em 21 de março e a outra em 23 de setembro, sendo a
característica principal do equinócio que a noite e o dia duram cerca de 12 horas,
em todos os lugares da terra, e os raios solares incidem perpendicularmente sobre
a linha do equador.

642
Figura 8: Representação dos raios solares durante o equinócio

Fonte 3: Adaptado de Alves (2009)

3. Seja 𝐵𝐷 o raio no solstício de verão, 𝐵𝐸 um raio de inverno.


Figura 9: O raio de sol durante o solstício de verão, e um raio de inverno

Fonte 4: Autoria própria utilizando o GeoGebra

De acordo com o dicionário Michaelis, solstício é “cada uma das duas


ocasiões do ano em que o Sol alcança o maior grau de afastamento angular do
equador, que ocorre no dia 21 ou 23 de julho [...] e 21 ou 23 de dezembro [...]
(MICHAELIS e MICHAELIS, 2015)”. Sabemos, conforme explica Alves (2009, p.
47), que durante o solstício de junho, também chamado de solstício de verão no
hemisfério norte do planeta, os raios solares incidem perpendicularmente sobre o
Trópico de Câncer.

643
Figura 10: os raios de sol durante o solstício de verão

Fonte 5: Adaptado de Alves (2009)

4. Tome F a uma distância conveniente em 𝐵𝐸 e tome FQ igual à 𝐹𝐴.

Figura 11: Os pontos F e Q tal que 𝐹𝑄 seja igual à 𝐹𝐴

Fonte 6: Autoria própria utilizando o GeoGebra

5. ̂ , e seja BG a linha reta


Trace 𝐻𝐹𝐺 através de 𝐹 bissectado o ângulo 𝐴𝐹𝑄
̂ entre os raios de inverno e equinocial.
bissectando o ângulo 𝐸𝐵𝐶

644
Figura 12: Os segmentos 𝐻𝐹𝐺 e 𝐵𝐺

Fonte 7: Autoria própria utilizando o GeoGebra

6. ̂, se tivermos um espelho
Então claramente, já que 𝐹𝐺 bissecta o ângulo 𝑄𝐹𝐴
plano na posição 𝐻𝐹𝐺 , o raio 𝐵𝐹𝐸 entrando em 𝐵 será refletido para 𝐴.

Figura 13: O espelho refletiria o raio de sol 𝐵𝐸 para 𝐴

Fonte 8: Autoria própria utilizando o GeoGebra

̅̅̅̅̅̅ deve ser plano; isso


Antêmio ressalta que o espelho colocado na posição 𝐻𝐹𝐺
porque, de acordo com Halliday, Resnick e Walker (2011), o ângulo de incidência
de um raio luminoso em um espelho plano é igual ao ângulo de reflexão, com a reta
perpendicular ao ponto dividindo-os. Isso garante que o raio de sol entrando em ̅̅̅̅
𝐵𝐹
será refletido para o ponto 𝐴.

7. Para obter o raio equinocial refletido de maneira semelhante a 𝐴, tome 𝐺𝐴 e


com 𝐺 como centro e 𝐺𝐴 como raio trace um círculo que intercepta 𝐵𝐶 em 𝐾 .

645
Figura 14: O círculo GA que intercepta 𝐵𝐶 em 𝐾

Fonte 9: Autoria própria utilizando o GeoGebra

8. ̂ a linha reta GLM que encontra 𝐵𝐾 em 𝐿 e termina em


Bissecta o ângulo 𝐾𝐺𝐴
̂.
𝑀, um ponto na bissetriz do ângulo 𝐶𝐵𝐷

̂
Figura 15: O segmento 𝐺𝐿𝑀 onde 𝑀 é um ponto na bissetriz de 𝐶𝐵𝐷

Fonte 10: Autoria própria utilizando o GeoGebra

9. ̂, e KL é igual a 𝐿𝐴, e KM é igual a


Então 𝐿𝑀 também bissecta o ângulo 𝐾𝐿𝐴

𝑀𝐴. Então, se GLM é um espelho plano, o raio BL será refletido para 𝐴.

646
Figura 16: o espelho em 𝐺𝐿𝑀 refletindo o raio de sol entrando em 𝐵𝐿 para 𝐴

Fonte 11: Autoria própria utilizando o GeoGebra

10. Tomando o ponto 𝑁 em BD tal que MN é igual a 𝑀𝐴, e bissectando o ângulo


̂ pela linha reta MOP que intercepta BD em 𝑂, descobrimos que, se MOP é um
𝑁𝑀𝐴
espelho plano, o raio 𝐵𝑂 é refletido para 𝐴.

Figura 17: o espelho 𝑀𝑂𝑃 refletindo o raio de sol entrando em 𝐵𝑂 para 𝐴

Fonte 12: Autoria própria utilizando o GeoGebra

Ao final temos a seguinte imagem e ao seu lado a ilustração feita por Antêmio.

647
Figura 18: a) construção de Antêmio evidenciada por Heath, e b) a construção original no manuscrito

Fonte 13:
a) Heath, 1921, p.542
b) https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b10723815x.r=anthemius?rk=64378;0

Ainda segundo Heath (1921, p.542), é possível repetir esse processo


indefinidamente, descobrindo pontos feitos por diferentes posições solares.
Diminuindo os espelhos, isto é, deixando-os infinitamente pequenos, é possível
formar uma curva na qual a soma das distâncias de um ponto qualquer até 𝐴 e do
mesmo ponto até 𝐵 resulta numa constante que é igual à BQ , BK ou BN .
Continuando a construção:

Então, se esticarmos uma corda em volta dos pontos A e B, e


tomando o primeiro ponto captado pelo reflexo dos raios de sol, a
dita curva será descrita, que fará parte da assim chamada “elipse”,
com referência à qual (ou seja, pela revolução em torno de 𝐵𝐴) a
superfície de impacto do referido espelho deve ser construída.
(HEATH, 1921, p. 542, [tradução nossa])

Para que a construção de Antêmio desse certo Heath (1921, p. 542)


destaca que esta dependia de duas proposições provadas por Apolônio de Perga
(~262 a.E.C. - ~190 a.E.C.), geômetra e astrônomo grego conhecido pelas suas
teorias em seções cônicas. A primeira é que a soma das distâncias focais de
qualquer ponto na elipse é constante, e a segunda que as distâncias focais de

648
qualquer ponto fazem ângulos iguais com a tangente do ponto escolhido e também
de uma proposição não encontrada em Apolônio, que o segmento de reta que une
o foco à intersecção de duas tangentes bissecta o ângulo entre os segmentos de
reta que unem o foco aos dois pontos de contato, respectivamente.

CONCLUSÃO

Embora não seja dito explicitamente, é possível perceber também que a


construção dessa curva utiliza a ideia dos indivisíveis. De acordo com Baron e Bos
(1974, p.19), a ideia de indivisíveis finitos surgiu, primeiramente, com a ideia dos
átomos, que seriam infinitos e constituiriam o universo, que por sua vez era também
infinito. Posteriormente, essa ideia foi trazida para a Matemática. Os indivisíveis
foram utilizados ao se trabalhar com os sólidos; de fato, havia o conceito que um
sólido seria composto por infinitas seções planas paralelas à base.
Aqui, Antêmio parece estar trabalhando com um conceito parecido, mas ao
invés de um sólido trata-se de uma figura plana, e ao invés de ser construída por
seções planas paralelas à base, é construída por infinitos segmentos de reta cujos
ângulos formam a curvatura.
O trabalho de Antêmio na resolução deste problema é até hoje estudado,
especialmente na área de arquitetura para o entendimento de como domos de
igrejas bizantinas parecem ser uniformemente iluminadas pela luz do sol, conforme
o estudo de Potamianos e Jabi (2015).
Antêmio para resolver um problema ligado a construção do domo de uma
basílica, se utilizou de ferramentas matemáticas e conceitos hoje estudadas na
Física, como a Lei da Reflexão da Luz; na Astronomia, ao utilizar o entendimento
da posição dos raios solares durante o equinócio e o solstício de inverno,
demonstrando assim a indissociabilidade do conhecimento.

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649
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650
APROXIMAÇÃO DE √𝟑 EM “A MEDIDA DO CÍRCULO”:
possíveis métodos usados por Arquimedes

Augusto de Amaral Sibo228


Gustavo Luis da Costa229
Henrique Marins de Carvalho230

RESUMO
Este trabalho apresenta reflexões sobre a aproximação de √3 utilizada por Arquimedes na
obra “A medida do círculo”. O objetivo deste tratado é a obtenção da quadratura do círculo
e, em uma etapa intermediária importantíssima, o matemático de Siracusa deduz uma
1
aproximação para a razão entre o perímetro e diâmetro do círculo: o intervalo entre 3 e
7
10
3 71, valores que indicam limites inferior e superior para 𝜋 e são conseguidos após a escolha
de números racionais para expressar uma aproximação de √3. O matemático grego, no
entanto, não descreve os procedimentos realizados para aproximar √3 ou qualquer
justificativa para a escolha desses números, questão que despertou o interesse de diversos
estudiosos da obra arquimediana e, a partir de seus trabalhos, é possível traçar algumas
possibilidades para a obtenção dos resultados utilizados por Arquimedes. Apesar da
incerteza sobre o procedimento específico escolhido pelo matemático grego, podemos
encontrar diversas evidências sobre métodos aritméticos utilizados por matemáticos
contemporâneos no cálculo de raízes quadradas. Entre os métodos aritméticos,
apresentamos três possibilidades distintas, sendo um procedimento relacionado à escola
pitagórica, outro a Herão de Alexandria e outro utilizado pelos babilônios.

Palavras-chave: Arquimedes. Aproximações. A medida do círculo. Raízes quadradas.

INTRODUÇÃO: O Enigma da Aproximação de √𝟑 em Arquimedes

Na obra “A medida do círculo", Arquimedes utiliza dois valores como aproximações


265 1351
de √3, os números racionais 153 e , no desenvolvimento de uma demonstração
780

acerca da “quadratura", isto é, da medida da área do círculo. O matemático de


Siracusa não esboça nenhuma justificativa para a escolha desses valores, mas eles

228
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP). siboaugusto@gmail.com
229
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP). gustavoluis.costa@hotmail.com
230
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP). hmarins@ifsp.edu.br

651
lhe garantem indicar os limites inferior e superior da razão entre o perímetro e o
1 10
diâmetro de um círculo. O resultado célebre obtido é: 3 <𝜋<3 . Como teria
7 71

Arquimedes obtido esses resultados? Esta pergunta, conforme aponta Heath


(1987) motivou dezenas de estudos em uma tentativa de reconstrução histórica dos
métodos de cálculo aproximado de raízes quadradas utilizados pelos matemáticos
gregos.
Dijksterhuis (1987) comenta que o pequeno tratado chamado de A medida
do círculo (Κὺκλου μὲτρησις), contendo apenas três proposições, provavelmente é
um fragmento de uma obra maior, mencionada por Pappus de Alexandria (290–
350) sob o título de Sobre o perímetro do círculo (περί τῆς τοῦ κύκλου περιφερείας)
e que não chegou até nós. Apesar disso, os resultados apresentados sobre a área
do círculo e a razão entre o perímetro e o diâmetro são alguns dos mais conhecidos
de toda a obra de Arquimedes. Apresentamos, a seguir, os trechos em que são
265 1351
exibidas as frações e como aproximações de √3, no desenvolvimento da
153 780

Proposição 3, assim como as figuras de referência, na tradução de Heath:

Let 𝐴𝐵 be the diameter of any circle, 𝑂 its centre, 𝐴𝐵 the


tangent at 𝐴 and let the angle 𝐴𝑂𝐶 be one-third of a right angle.
Then 𝑂𝐴: 𝐴𝐶 > 265: 153.[...] Next, let 𝐴𝐵 be the diameter of a
circle and let 𝐴𝐶, meeting the circle in 𝐶. Make the angle 𝐶𝐴𝐵
equal to one-third of a right angle. Join 𝐵𝐶. Then 𝐴𝐶: 𝐶𝐵 <
1351: 780. (HEATH, 1987, p. 93 e 96)

Nos dois casos, os triângulos determinados (𝑂𝐴𝐶 e 𝐴𝐶𝐵) são retângulos e


os ângulos agudos relevantes para a demonstração medem um terço de um ângulo
reto, isto é, 30º.

FIGURA 1: PROPOSIÇÃO 3 DE “A MEDIDA DO CÍRCULO” - PARTES I E II

652
Fonte: Heath, 1987.

Dos fundamentos de trigonometria, reconhecemos que as razões 𝑂𝐴/𝐴𝐶, no


primeiro caso e 𝐴𝐶/𝐴𝐵, no segundo, correspondem à cotangente do arco de
medida 30º, que vale √3. Assim, as desigualdades utilizadas por Arquimedes
265 1351
podem ser reunidas da seguinte maneira: < √3 < e, considerando uma
153 780

representação em números decimais, exibindo apenas sete casas após a vírgula,


temos 1,7320261 < 1,7320508 < 1,7320512.
Observa-se que os dois números escolhidos coincidem com o valor de √3
até o algarismo da ordem de grandeza 10−4 . Sobre a escolha de Arquimedes para
sua demonstração, Heath (1897, p. 93) diz que “[...] he gives two fractional
approximations to √3 (one being less and the other greater than the real value)
without any explanation as to how he arrived at them" e Netz (2009, p. 25) afirma
“[he] state – without an explanation – that the ratio of 𝛤𝐸 to 𝛤𝑍 is that of 265 to 153".
A razão 𝛤𝐸: 𝛤𝑍, no texto original como mencionado por Netz corresponde a 𝑂𝐴: 𝐴𝐶
na tradução de Heath citada acima.
Cantor (1984) cita Eutócio de Ascalão (c.480-c.540), que escreveu
comentários sobre obras de Arquimedes, inclusive sobre A medida do círculo,
explicitando várias passagens e cálculos não exibidos no texto original; a respeito
da aproximação de √3, no entanto, traz pouco esclarecimento:

Como encontrar a raiz quadrada, que se aproxima muito de


um determinado número, foi mostrado por Heron em seu
trabalho sobre métrica, bem como por Papo, Téon e vários
outros exegetas da grande coletânea de Cláudio Ptolomeu.
Portanto, não é necessário investigar esse assunto, uma vez
que os amigos da matemática podem ler sobre isso a partir
desses. (CANTOR, 1894, p. 303 - tradução livre)

Infelizmente, como ainda diz Cantor (1984), de todos esses escritos aos
quais Eutocius se refere, apenas resta preservado, o comentário de Téon sobre o
Almagesto e, contrariando a sugestão do matemático de Ascalão, a investigação
sobre esse assunto permanece. Acompanhamos Dijksterhuis em sua percepção do
problema, quando diz que:

653
[n]ow the question remains to be discussed how Archimedes
can in general have proceeded for the rational approximation
to square roots, and how in particular he can have found the
two rational limits for √3 which formed the starting points for
the two parts of the calculation. We here touch upon a cluster
of problems which, more than any other point in Greek
mathematics, has given rise to historical investigation and
mathematical reconstruction. The literature on this subject is
so vast that we have to refrain from a complete critical
discussion; we therefore confine ourselves to an exposition of
some solutions of the problem which are particularly
trustworthy because of their close affiliation with genuinely
Greek calculating methods. (DIJKSTERHUIS, 1987, p. 229)

Naturalmente, muitos pesquisadores se empenharam em discutir sobre tal


resultado fantástico. É importante ressaltar que alguns desses estudos utilizaram
procedimentos matemáticos modernos, tais como resolução de equações
algébricas, com o objetivo de mostrar que os valores tomados por Arquimedes não
foram arbitrários, mas que podem ser justificados por essas técnicas.
De fato, Heath (1897) utiliza o extenso estudo de Siegmund Günther
(publicado em Abhandlungen zur Geschichte der Mathematik, um suplemento de
Zeitschrift für Mathematik und Physik sob o título de Die quadratischen
Irrationalitäten der Alten und deren Entwickelungsmethoden), para apresentar uma
classificação dos trabalhos matemáticos que já haviam se dedicado ao tema,
subdivididos em três conjuntos:
(1) aqueles que identificaram o uso do método de frações contínuas: De
Lagny, Mollweide, Hauber, Buzengeiger, Zeuthen, P. Tannery (primeira solução) e
Heilermann.
(2) Os que apresentaram na forma de séries de frações: Radicke, v. Pessl,
Rodet (com referência aos Shulba Sutras) e Tannery (segunda solução).
(3) os que identificaram um processo de localizar o número irracional entre
um limite inferior e um limite superior, aproximando cada vez mais os limites ao
número desejado: Oppermann, Alexejeff, Schonborn e Hunrath. Günther aponta

654
que os dois primeiros deste grupo também se valem do método de frações
contínuas.
Com o intuito de apresentar métodos que poderiam ter sido empregados por
matemáticos da mesma época de Arquimedes, nas seções seguintes exploramos
alguns procedimentos matemáticos associados à questão levantada, a saber:
métodos de cálculo aproximado da raiz quadrada na tableta babilônica YBC 7289,
na escola pitagórica e na obra de Heron.

ESCOLA PITAGÓRICA E RAÍZES QUADRADAS

Heath (1897, pp. lxxv-lxxx) descreve, apoiado em estudos de Hunrath e


Günther, uma estratégia empregada pela escola pitagórica para a obtenção de
valores racionais que se aproximam de uma raiz quadrada irracional. As etapas são
baseadas em noções de frações equivalentes e quadrados perfeitos.
Considere este exemplo: Para encontrar uma primeira aproximação para raiz
50
de 2, podemos reescrever esse número como a fração equivalente 25. Extrair a raiz

quadrada dessa fração não é um desafio mais simples que o anterior, afinal, 50 não
é um quadrado perfeito; no entanto, conseguimos encontrar um valor próximo de
50 que seja um quadrado perfeito, por exemplo 49.
(50−1)
Tendo isso em mente, podemos calcular a raiz de . Assim, uma
25
7 7
primeira aproximação para √2 é 5 . Há, certamente, um erro ao aproximar √2 por 5

e, se for desejado um valor mais preciso, pode ser buscada outra fração que seja
suficientemente próxima de 2, e cujo numerador e denominador sejam quadrados
17 (288+1)
perfeitos, por exemplo 12, pois é um número racional mais próximo de 2 que
144
49
.
25

Tratando da questão necessária para a demonstração de Arquimedes, um


valor aproximado de raiz de 3, pode ser obtido utilizando esse método.
51
Consideremos a seguinte equivalência: 17 = 3. Uma fração que se aproxima desta,

655
49
sendo uma razão de quadrados perfeitos, é 16 e, nesse caso, a diferença, em valor
51 49
absoluto, é 17 − 16 = 0,0625.

Sendo necessária uma aproximação melhor, podemos elevar tanto o


2601
numerador quanto o denominador ao quadrado e assim obter a fração = 9 e,
289
2601
multiplicando em seguida o denominador por 3, o resultado é = 3. O processo
867

pode ser repetido, sempre visando a obtenção de uma razão de quadrados


2601
perfeitos que se aproxime de frações equivalentes a . Uma possível sequência
289

de frações equivalentes é a seguinte:


2601 7803 23409 70227
, 2601, , 23409
289 7803
70227
Analisemos a fração . Como 70227 é próximo de 70225, que, por sua
23409

vez, é um quadrado perfeito, pode ser utilizado o método pitagórico para aproximar
(70227−2) 265
um valor de raiz de 3 extraindo a raiz de , que é 153.
23409
70225 70227 265
Ressaltamos que, como < = 3, então é menor que √3. De
23409 23409 153
39
maneira análoga, podemos partir da fração 13 para encontrar a outra aproximação.
1521 1521
Elevando ao quadrado, obtemos e, multiplicando por 13, resulta em , que
169 507
39
é uma fração equivalente a 13.

Para se obter um erro menor, podemos multiplicar a fração (numerador e


1825200
denominador) por 1200 e assim obter: . Esta fração é oportuna, pois 1825201
608400
(1825200+1) 1351
é um quadrado perfeito, então podemos calcular a raiz de que é .
608400 780

1825201 1351
O erro relativo é de cerca de 1%. Assim, √ 608400 = é uma aproximação
780

1825201 1825200
de √3 sendo, nesse caso, por excesso, pois > . Reunindo os dois
608400 608400
265 1351
resultados, temos: 153 < √3 < .
780

Foi observado por Knorr (1989), estudando as diversas publicações e


comentários dos escritos arquimedianos, em especial de “A medida do círculo",
que, no mundo islâmico, a obra chegou provavelmente pela tradução de Thâbit ibn

656
Qurra, no século IX, tendo havido diversas adaptações e comentários feitos por
Banû Mûsâ, Abu ’l-Rashîd abd al-Hâdî (século XII) e Nasîr al-Dîn al-Tûsî (século
XIII). Especificamente, na versão de al-Hâdî há uma evidência relacionada ao
265
emprego da fração como aproximação da raiz quadrada de 3, que
153

transcrevemos, acompanhando a tradução e as observações de Knorr:

Then let there be a circle, over which ABGK, and its diameter GK,
and its center D, and we draw GE at right angles from the diameter,
and we draw KE until the angle which is over line KG is a third of a
right angle. Then the ratio K E to EG is as the ratio 306 to 153. Then
line KG in power is three times line GE. And like that is the ratio KG
to GE greater than the ratio of 265 because the square of 265 is
70225, and the square of 153 multiplied into three is 70227, and if a
thing is set in ratio to two things, then its ratio to the first is greater,
this Euclid has proved is to 153. But KE is double GE, so the ratio
of KG, KE together to GE is greater than the ratio of 571 to 153.
(KNORR, 1989, p. 557 - grifo nosso)

Knorr indica, como identificamos na figura a seguir, que todo o trecho “70225
... Euclid has proved" (em itálico, na citação acima) foi riscado e que acima dessas
duas linhas desconsideradas encontra-se escrito comentário o que significa que
provavelmente a parte excluída pertencia a um scholium, inserido pelo copista em
um lugar equivocado do texto.

FIGURA 2: FRAGMENTO DE AL-HÂDÎ

657
Fonte: Knorr, 1989.

O matemático al-Hâdî entendeu que a aproximação da raiz de 3 dada pela


265
fração pode ser observada pelo fato de que 2652 = 70225 e
153

265 2 70225 70227


1532 ∙ 3 = 23409 ∙ 3 = 70227. Assim, (153) = 23409 < 23409 = 3 que, conforme o

estudioso árabe indicou está apresentado na Proposição 8, do livro V e Proposição


20, do livro VII dos Elementos.

APROXIMAÇÃO DE RAIZ QUADRADA EM HERON (OU HERÃO) DE


ALEXANDRIA (10-80 A.D.)

Heron, em sua obra Metrica apresenta, na Proposição 8, um exemplo do uso


da expressão para o cálculo da área de um triângulo, de lados 𝑎, 𝑏 e 𝑐,

658
(𝐴 = √(𝑝(𝑝 − 𝑎)(𝑝 − 𝑏)(𝑝 − 𝑐) ), sendo 𝑝 o semiperímetro do triângulo, fórmula
conhecida exatamente pelo nome deste matemático. Apesar da importância desta
proposição, aqui nos interessa o comentário que é feito por Heron logo após o
referido exemplo, quando se nota a necessidade de calcular o "lado de 720", isto
é, a raiz quadrada de 720:

E então, dado que 720 não tem seu lado como racional, nós
tomaremos o lado com a menor diferença desta maneira. Como um
quadrado perto de 720 é 729 e tem lado 27, dividimos 720 por 27.
Isto dá 26 e dois terços. Some-se a 27. Obtém-se 53 e dois terços.
A metade disso é 26 ½ ⅓. Temos que 26 ½ ⅓ vezes ele mesmo dá
720 ⅟₃₆. Assim, a diferença é ⅟₃₆. Se nós quisermos que a diferença
seja menor que ⅟₃₆, ao invés de 729, nós tomamos o valor
encontrado de 720 ⅟₃₆, e fazendo as mesmas coisas,
encontraremos a diferença sendo muito menor que ⅟₃₆. (HÉRON
D’ALEXANDRIE, 2014, p. 165 - tradução livre)

Sistematizando o procedimento de Herão, temos o seguinte “algoritmo”:


• Queremos calcular √𝑛.
• Assumimos um valor 𝑎0 , racional, tal que (𝑎0 )2 seja próximo de 𝑛 (pode ser
por falta ou por excesso).
1 𝑛
• Tomemos 𝑎1 = (𝑎0 + 𝑎 ) como primeira aproximação. Se for desejada
2 0

uma melhor aproximação, o processo é repetido, substituindo 𝑎0 por 𝑎1 .


Para mostrar que a sequência é convergente (isto é, que ao se repetir os
passos, são obtido valores cada vez mais próximos do desejado √𝑛), deve-se
verificar que a diferença entre o quadrado da segunda aproximação e o número 𝑛
é menor que a metade da diferença entre a primeira aproximação e o número 𝑛.
Isto se apoia na proposição 1 do Livro X dos Elementos que diz que
Sendo expostas duas magnitudes desiguais, caso da maior seja
subtraída uma maior do que a metade e, da que é deixada, uma
maior do que a metade, e isso aconteça sempre, alguma magnitude
será deixada, a qual será menor do que a menor magnitude
exposta. (EUCLIDES, 2009, p. 354)

659
2
1 𝑛 1 𝑛2 1
Isto se verifica, pois, (2 (𝑎0 + 𝑎 )) = (𝑎20 + 2𝑛 + 𝑎2 ), levando a (2 (𝑎0 +
0 4 0

2
2
𝑛 1 𝑛 1
)) − 𝑛 = (𝑎0 − 𝑎 ) < (𝑎20 − 𝑛), como indica Mendell (2016). Então, supondo
𝑎0 4 0 2

𝑛 1 𝑛 2
que a primeira aproximação é tal que 𝑎02 > 𝑛, temos que 𝑎0 > e (𝑎0 − 𝑎 ) <
𝑎0 4 0

1
(𝑎02 − 𝑛).
2

Usando o método descrito por Herão, uma sequência de valores


aproximados de √3, que é o número em questão neste estudo é apresentado na
tabela 1.

QUADRO 1: Aproximação pelo “Método de Herão”


Etapa Valor aproximado Novo valor aproximado
atual
i aₒ 1 𝑛
a 𝑖+1 =(𝑎𝑖 + )
2 𝑎𝑖
1 2 1 3 7
𝑎1 = (2 + ) = = 1,75
2 2 4
2 7
1 7 3 97
4 a2 = ( + )= ≅ 1,7321
2 4 7 56
4
3 97
1 97 3 18817
56 a3 = ( + )= ≅ 1,73205
2 56 97 10864
56
4 18817
1 18817 3 708158977
10864 a4 = ( + )= ≅ 1,732050807568877295
2 10864 18817 408855776
10864

Fonte: os autores (2020)

Apenas para comparação, o valor aproximado de √3 obtido com o uso de


uma calculadora eletrônica é √3 ≈ 1,7320508075688772935274463415059, ou
seja, na quarta etapa já se alcança uma precisão de dezoito casas decimais.

MÉTODO BABILÔNICO

660
Na tableta babilônica YBC7289, vista na figura 2 foi reconhecido o registro
de um valor dado em notação sexagesimal que corresponde, na notação moderna,
a 1,41421. A sugestão de Joseph (1991) é que este valor corresponde a uma
aproximação de √2, obtido pelo seguinte processo:
1) Deseja-se uma aproximação do valor de √𝑥.
2) Se considerarmos 𝑥 = (𝑎 + 𝑐)2 = 𝑎2 + 𝑒, do que se obtém: 2𝑎𝑐 + 𝑐 2 = 𝑒.
Considerando, ainda, que 𝑐 é um acréscimo, implica que 𝑐 2 é muito menor
𝑒
que 2𝑎𝑐, o que permite utilizar a relação 𝑐 = 2𝑎.

A nova aproximação 𝑎𝑖+1 é dada por é dada por 𝑎𝑖 + 𝑐𝑖 e o valor 𝑒𝑖+1 é dado
por 𝑒𝑖+1 = 𝑥 − 𝑎𝑖2 .

FIGURA 3: TABLETA YBC 7289

Fonte: Joseph, 1991.

Usando o método que se supõe estar registrado nesta tableta, temos a


seguinte aproximação para √3.

QUADRO 2: Aproximação pelo Método Babilônico

Valor
Etapa aproximado Erro Acréscimo Novo valor aproximado
atual
𝑒𝑖
i 𝑎𝑖 𝑒𝑖 = 𝑥 − 𝑎𝑖−1 2 ci = a 𝑖+1 = 𝑎𝑖 + 𝑐𝑖
2𝑎𝑖

661
1 3
0 1 1 = 1,5
2 2
3 3 1 7
1 = 1,75
2 4 2 4
7 1 1 97
2 − − ≅ 1,7321
4 16 56 56
97 1 1 18817
3 − − ≅ 1,73205
56 3136 10864 10864
18817 1 1 708158977
4 − − ≅ 1,732050807568877295
10864 118026496 408855776 408855776

Fonte: os autores (2020)

Como aponta Dijksterhuis (1987), citando trabalhos de Hofmann, Hultsch,


Müller, Toeplitz e Vogel, se por um lado não há certeza a respeito do método
265 1351
utilizado por Arquimedes para apresentar os valores de e como
153 780

aproximações para a raiz quadrada de 3, por outro lado, é muito razoável


reconstruir métodos aritméticos utilizados pelos matemáticos gregos,
possivelmente como um aperfeiçoamento das técnicas babilônicas conhecidas.
A interpretação algebrizada e a busca por “fórmulas” não tem lugar na
matemática de Arquimedes e seus contemporâneos, mas são vieses em que se
pode perceber uma conexão entre os trabalhos clássicos e os desafios do cálculo
de aproximações de irracionais que também ocuparam a produção matemática dos
séculos posteriores.

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662
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EUCLIDES. Os elementos. Tradução e introdução de Irineu Bicudo. São Paulo:


Editora Unesp, 2009.

663
AS TRANSFORMAÇÕES DA GEOMETRIA DESCRITIVA:
do coupe de las pierres à disciplina principal no ensino superior e técnico

Ana Mary Fonseca Barreto de Almeida231


Gert Schubring232

RESUMO
O presente artigo é parte da pesquisa desenvolvida para uma tese de doutorado que busca
o processo de ascensão, transformação e queda da Geometria Descritiva como disciplina.
A Geometria Descritiva nasce como disciplina com Gaspard Monge, justamente no
movimento de organização do ensino após a Revolução Francesa. São consideradas três
dimensões como norteadoras do estudo: o entendimento conceitual da disciplina, as
mudanças sofridas no seu processo de ensino e o processo de disciplinarização no Brasil.
A pesquisa dessa disciplinarização se faz segundo os métodos da história social da
matemática. Com isso, o objetivo deste artigo é apresentar os resultados parciais de como
se deu o processo de elementarização do ensino de Geometria Descritiva na França e o
seu desenvolvimento, como disciplina, no Brasil. Observa-se que a concepção da
Geometria Descritiva praticada por Monge em suas Lições vai sofrendo mudanças, seja na
utilização dos problemas inaugurais, rigor e generalidade, seja na ordem de simplicidade
das ideias. No Brasil, com a chegada da Corte Portuguesa, foram criadas instituições de
ensino superior, e a primeira delas foi a Academia Real Militar. O Decreto Real de criação
também estipulou os livros a serem usados e, dentre eles, o livro Géométrie descriptive,
de Gaspard Monge. Apesar disso, os estudos apontam que teria sido o livro de Lacroix o
mais utilizado no Brasil no século XIX.

Palavras-chave: Geometria Descritiva. Elementarização. Disciplinarização

INTRODUÇÃO

Este trabalho é parte da pesquisa desenvolvida para a tese de doutorado


do primeiro autor, sob orientação do segundo, no âmbito do Programa de Pós-

231
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)/Instituto Federal Fluminense (IFF). anamary@iff.edu.br.

232
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). gert.schubring@limc.ufrj.br.

664
Graduação em Ensino de Matemática (PEMAT) na Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). A presente pesquisa busca o processo de ascensão,
transformação e queda da Geometria Descritiva, levando em consideração três
dimensões: o entendimento conceitual da disciplina, as mudanças sofridas no seu
processo de ensino e o processo de disciplinarização no Brasil. A pesquisa dessa
disciplinarização se faz segundo os métodos da história social da matemática.
Após a Revolução Francesa, há um movimento de organização de um
sistema de ensino público, com destaque para as escolas para engenheiros civis e
militares, para professores e trabalhadores. Gaspard Monge (1746 – 1818) esteve
envolvido no projeto de criação dessas escolas e propôs o ensino do que chamou
“Geometria Descritiva”. Embora seu surgimento como disciplina esteja associado
com a École Polytechnique e com a instrução de engenheiros, Barbin (2019a, p. 4)
afirma que o método das projeções já vinha sendo desenvolvido na École royale du
génie de Mézières, desde 1764, sem essa denominação. O termo “Geometria
Descritiva” foi usado pela primeira vez em um texto de 1793 e foi publicamente
conhecido em 1794, quando aparece no projeto da École normale de l’an III
(BARBIN, 2019a, p. 4).
Em cerca de 1760, o fundador da École royale du génie de Mézières,
Nicolas de Chastillon, considerou que o ensino de estereotomia tinha que ser
tomado como base para todos os outros ensinos que requeriam visão espacial,
como era o caso de projetos de fortificações. Isso consistia em representar um
sólido por duas projeções em dois planos perpendiculares. Monge, quando foi
professor de matemática, de desenho e estereotomia nesta escola, desde 1764,
sistematizou esse conceito para unificar e generalizar práticas de representações
inventadas pelos artesãos, arquitetos e engenheiros. Em um artigo de 1785,
introduziu a ideia de projeção para seus estudantes, por meio de sombras,
explicando que se devem construir projeções em dois planos perpendiculares, um
horizontal e o outro vertical (BARBIN, 2019a, p. 4).
Com isso, torna-se necessário investigar a originalidade no
desenvolvimento dos métodos geométricos de resolução dos problemas de
estereotomia e a história dos modos de representação do espaço. Essa

665
investigação remonta-se ao principal texto de Girard Desargues (1591 – 1661), o
Brouillon Project d’une atteinte aux evenements des rencontres du Cône avec un
Plan. Esse texto continha muitos termos novos e, com isso, foi mal compreendido
e quase ignorado por seus contemporâneos, inclusive por René Descartes e Pierre
de Fermat, os dois maiores matemáticos da época (SAKAROVITCH, 2010, p. 121-
122). Contudo, Blaise Pascal (1623 – 1662) o entende e se inspira em suas ideias,
bem como o professor da Academia de Arquitetura e amigo de Desargues Philippe
de La Hire (1640 – 1718), que também adota o ponto de vista arguesiano em seu
tratado sobre as cônicas de 1673, baseado nos projetos projetivos de Desargues e
Pascal. Mas, ao longo do século XVIII, esse ponto de vista é ofuscado pela
geometria analítica fundada por Descartes, e as obras de Desargues, muito pouco
difundidas na origem, caem no esquecimento quase total, afirma Sakarovitch (2010,
p. 122). Contudo, é com interesse renovado em geometria e nos ensinamentos
praticados por Gaspard Monge na École Polytechnique que os matemáticos do
século XIX redescobrem as obras de Desargues.
Este artigo, portanto, apresenta o desenvolvimento dessa pesquisa e, para
isso, está organizado em três seções, além das considerações finais: o
entendimento conceitual da Geometria Descritiva, as mudanças sofridas no seu
processo de ensino e o processo de disciplinarização no Brasil.

O ENTENDIMENTO CONCEITUAL DA GEOMETRIA DESCRITIVA

A pesquisa demonstra que a Geometria Descritiva tem origem no


desenvolvimento dos tratados de arquitetura e que, segundo Sakarovitch (1998, p.
73), os desenhos ilustrativos desses tratados ganharam ainda mais importância a
partir do século XVI. Para confirmar tal afirmação, Sakarovitch apresenta um
conjunto de tratados do século XVI e compara-os com os dez livros do tratado de
Leone Battista Alberti (1404 – 1472). Sarakovitch (1998, p. 75) apresenta os
tratados de Serlio, publicado em 1537 e 1540; os de Jacques Androuet Cerceau
(1559 e 1582); o tratado de Jacopo Barozzi – conhecido por Vignola – publicado

666
em 1562; e Philibert de l’Orme, publicado em 1567, dentre outros, cujas
características são destacadas no Quadro 1.

QUADRO 1: Características de tratados do século XVI


Tratados de Ano de Características Observações
Publicação
Inclui os primeiros desenhos
Serlio Pranchas geométricos de levantamentos
1537 e 1540
comentadas arquitetônicos, mas conserva
representações mais arcaicas
Edifícios são representados
Três livros que
por vezes geométricos, por
misturam
Cerceau vezes em perspectiva
1559 e 1582 representações
acompanhadas ou não de
arcaicas e
planos (vista frontal e lateral na
modernas
linguagem atual)
Imagens sem
texto; busca ser
preciso, prático,
Vignola Composto de 32 pranchas e
1562 didático. Dupla
duas páginas de texto;
projeção é
frequentemente
usada.
Controle
Philibert de perfeito do Seu tratado contém uma seção
1567
l’Orme princípio da dedicada ao corte de pedras.
dupla projeção
Fonte: Elaboração própria.

O tratado de Alberti - um tratado do século XV - se caracteriza pela escrita


em latim, sem nenhuma imagem. O texto abrange um vasto campo teórico sobre a
arte de construir, é voltado para um público humanista e já apresenta o uso de
projeções duplas, característica que será comum no século XVI como pode ser
verificado no Quadro 1. Os tratados de Serlio, primeiros do século XVI, são
caracterizados por apresentarem representações mais arcaicas, o que significa
ainda não apresentarem as tendências das representações em dupla projeção e
perspectivas.

667
As projeções duplas para representação de capitéis de colunas, presentes
nos tratados de Philibert de l’Orme e de Alberti, não são coincidência, mas sim fruto
da necessidade de representação por serem superfícies mais complexas na
construção das colunas (Fig. 1).

FIGURA 1: Philibert de l’Orme: Maison

Fonte: Sakarovitch, 1998, p. 79.

O final do século XVI até o século XVIII foi marcado pela expansão das
construções na Europa tornando assim o trabalho do arquiteto ainda mais preciso.
Nesse momento, o projeto arquitetônico passa a ser afetado pelo uso mais
sistemático da geometria, uma vez que a trilogia planta-seção-elevação não é
suficiente para dar as medidas reais de ângulos e distâncias. Com isso, o rigor e a
precisão da arquitetura clássica são refletidos no uso de modos de representação
do espaço como forma de obter a definição completa dos objetos (SAKAROVITCH,
1998, p. 81, 83).
O rigor geométrico dos desenhos arquitetônicos dos séculos XVII e XVIII
se reflete pelo uso das sombras - complemento essencial à representação

668
geométrica nos tratados de arquitetura do período. No século XVII, o desenho das
sombras é objeto do livro Traité des pratiques géométrales et perspectives de
Abraham Bosse, publicado em 1665. Cabe ressaltar que Bosse foi entalhador,
desenhista e pintor e, por trabalhar em relevo, essa representação geométrica foi
muito usada, justamente por seu entendimento da necessidade de encontrar as
formas e situações dos vários sólidos (SAKAROVITCH, 1998, p. 83). Como um dos
raros defensores de Girard Desargues e seus métodos do corte de pedras, o tratado
de Bosse torna conhecido o método arguesiano, expondo-o de forma mais clara e
com ajuda de figuras explicativas. Isso ocorre porque a construção gráfica proposta
no livreto de corte de pedra de Desargues, publicado em 1640, é simples, mas
confusa.
Os métodos de Girard Desargues trazem a originalidade da ideia de que é
possível “sair do plano” para resolver um problema de geometria plana por meio de
uma representação em perspectiva. Algumas operações são semelhantes à
mudança de plano na Geometria Descritiva (SAKAROVITCH, 2010, p. 122).
O desenho das sombras vai ser objeto do tratado publicado em 1763, por
Nicolas de Chastillon - fundador da École royale du génie de Mézières. Esse tratado
foi escrito, para os estudantes de engenharia da referida escola, um ano antes de
Monge chegar a ela. Segundo Sakarovitch (1998, p. 89), o tratado de Chastillon
traz uma série de problemas relativos ao desenho de sombras e seus métodos de
desenho das figuras se aproximam de um curso de Geometria Descritiva.

FIGURA 2: Lequeu: ombre propre d’um chapiteau toscan. Architecture civile, 1782

669
Fonte: Sakarovitch, 1998, p. 94.
O traçado das sombras nos desenhos de arquitetura também aparece nas
placas dos manuscritos de Jean-Jacques Lequeu (Fig. 2), datadas entre 1782 e
1789. Sakarovitch (1998, p. 89) aponta que os desenhos de Lequeu não são
acompanhados por curso explicativo ou teorização, mas eles provam o passo a
passo dos problemas de construção de curvas e suas sombras, com alto grau de
abstração e domínio notável dos traçados.
As pranchas de desenho eram técnicas inaplicáveis até os séculos XVI e
XVII e, portanto, fatores como organização do local da obra, tamanho, produção do
edifício ou o próprio status social do arquiteto podem levá-lo a adotar os métodos e
aperfeiçoamentos gráficos. Segundo Sakarovitch (1998, p. 91), a falta de gráficos
exigia uma presença contínua no local de obra. Assim, talvez essa exigência dos
desenhos seja um desejo de supervisionar vários locais diferentes
simultaneamente, ou seja, um desejo de se libertar dos canteiros de obras.

670
Há, assim, uma segregação de funções - que começou lentamente a partir
do século XIII, entre o arquiteto e o mestre pedreiro -, na qual a arte se divide na
invenção e execução (SAKAROVITCH, 1998, p. 93). Perspectivas e modelos
acompanham o projeto, pois permite responder "o desejo de quem gosta de ver e
compreender todas as coisas que serão desenhadas”, assim como o desenho das
sombras facilita a leitura dos volumes. É, portanto, a extensão lógica da
representação em dupla projeção.

AS MUDANÇAS SOFRIDAS NO SEU PROCESSO DE ENSINO

As primeiras Lições de Geometria Descritiva aconteceram na École


normale de l’an III - voltadas para os futuros professores – e depois na École
centrale des travaux publics – voltadas para engenheiros e militares. A École
centrale des travaux publics se tornará a École Polytechnique.
No texto de 28 de setembro de 1794, “Desenvolvimentos no ensino para a
École centrale des travaux publics”, Monge apresentou a organização da
matemática a ser ensinada num período de dois anos e dividida em duas partes:
análise e descrição gráfica (Quadro 2). Ambas as partes foram ensinadas por
Monge (BARBIN, 2019a, p. 5).

QUADRO 2: Organização do ensino da matemática na École polytechnique


(1795)
Primeiro ano Segundo ano
Análise Geometria tridimensional
Mecânica
Matemática Cálculos para máquinas
Estereotomia
Descrição Geometria Descritiva Arquitetura
gráfica Fortificações
Arte do desenho
Fonte: Barbin, 2019a, p. 7.

671
O espírito das lições dadas por Monge na École Normale foi diferente
porque: foi voltado para futuros professores; as aulas eram em um anfiteatro para
cerca de 1400 estudantes, com nível mais ou menos avançado em matemática; o
ensino tinha que estar reduzido a um período de quatro meses, por conta do
contexto histórico; o ensino não tinha de ser lido de um texto já pronto, mas
improvisado, de modo que as Lições fossem apresentadas como uma invenção e;
o ensino tinha que ser “elementar”. Barbin (2019a, p. 7) ressalta que havia dois
tipos de sessões: a lição nas ciências e as discussões – com questões dos alunos,
sendo este último um aspecto inovador.
A concepção da elementarização do ensino se inspira nas concepções do
Iluminismo, no que se refere a tornar as ciências ensináveis e a difundir o saber na
sociedade (SCHUBRING, 2014, p. 41).
Para Monge, a Geometria Descritiva tem dois objetivos: representar, com
exatidão, objetos tridimensionais em desenhos com duas dimensões apenas; e
deduzir da exata descrição de todos os corpos que necessariamente seguem de
suas formas e respectivas posições. Do ponto de vista de Monge, a Geometria
Descritiva nasce da necessidade de uma linguagem para conceber projetos - tanto
para aqueles que supervisionam quanto para os próprios artesãos que executam
as diferentes partes -, mas também serve de instrumento na construção da
verdade, oferecendo passagem do conhecido para o desconhecido. Essa
concepção vai trazer também uma tensão entre matemática teórica e prática
(BARBIN, 2019a, p. 7).
A leitura das Lições de Monge indica que a Geometria Descritiva requer
novidades, no que diz respeito aos elementos comuns da geometria, em ao menos
dois pontos: na prioridade dada aos objetos do espaço pelo “método das projeções”
e na introdução do movimento na geometria. O primeiro ponto trata imediatamente
da geometria espacial e o segundo corresponde ao novo modo de associar
geometria e análise. Em toda parte, Monge seguiu uma “ordem de invenção” que
oferece importante regra para a resolução de problemas no ensino (BARBIN,
2019a).

672
Em 1798, Monge deixa a França por Roma e depois pelo Egito. Seus
sucessores, Sylvestre-François Lacroix e Jean-Nicolas Pierre Hachette, foram
“assistentes” de Monge para as Lições na École normale. Sylvestre-François
Lacroix e Jean-Nicolas Pierre Hachette publicaram seus próprios livros-texto sobre
a nova área: Lacroix já em 1795 e Hachette duas obras, uma em 1817 e outra em
1822. Os dois autores tinham experiências distintas e objetivos distintos, o que os
levou a implementações distintas no processo educacional (BARBIN, 2015, p. 45).
A elementarização de Lacroix e Hachette é diferente em relação às duas
concepções essenciais de Monge: Lacroix mantém uma ordem de simplicidade das
figuras e Hachette segue Monge na decomposição de ideias. Mas uma
característica mais importante opõe Monge e seus alunos a seus antecessores: é
o papel dado aos problemas. Eles adotaram uma "ordem de invenção". Em
particular, deve-se observar a presença de um problema inaugural para motivar o
método de projeção. A ordem dos problemas não é a mesma. A intenção da
generalidade guiou a de Monge, enquanto a simplicidade organizou a de Lacroix,
e Hachette isolou problemas simples, dos quais os outros podem ser decompostos.
O ensino de Geometria Descritiva diminuiu rapidamente na École
Polytechnique, mas apareceu no programa de entrada para esta escola em 1813.
Desde a sua criação, existia um exame para entrar na École Polytechnique, que
tinha mais e mais candidatos ao longo dos anos. A introdução da Geometria
Descritiva no programa de entrada levou à publicação de muitos livros
explicitamente dedicados aos candidatos à École Polytechnique, mas também para
as outras escolas do governo (BARBIN, 2019b, p. 20-21).
Esses pequenos livros-texto dedicados à Geometria Descritiva e os livros-
texto de geometria contendo as noções descritivas retomam o projeto de Monge de
introduzir uma nova geometria no ensino secundário. A Geometria Descritiva se
tornou uma parte do ensino secundário nas matrizes das “matemáticas
elementares” dos cursos intermediários preparatórios, em 1865 (BARBIN, 2015, p.
70).
A Geometria Descritiva foi ensinada na matemática elementar até a década
de 1960. Entre 1902 e 1962, o ensino de Geometria Descritiva e Geometria tornou-

673
se mais próximo a cada reforma. Em 1962, a Geometria Descritiva tornou-se
apenas uma parte do programa de geometria no último ano dos Lycées, do qual
desapareceu em 1966. A Geometria Descritiva permaneceu como uma matéria
para o ensino em níveis preparatórios, até que desapareceu do exame de admissão
às “Grandes Écoles” e escolas de engenheiros em 1970 (BARBIN, 2019b, p. 36).

O PROCESSO DE DISCIPLINARIZAÇÃO NO BRASIL

A partir de 1808, com a chegada da Corte Portuguesa ao Brasil, foram


criadas instituições de ensino superior no país, na mesma época em que, pela
primeira vez, foi permitido o funcionamento de tipografias nesse território. A
Academia Real Militar, criada em 04 de dezembro de 1810 por Decreto Real,
estabelecida no Rio de Janeiro, foi a primeira instituição de ensino superior criada,
a qual formava engenheiros civis e militares desde 1811. O Decreto Real definiu
não apenas os objetos de ensino e nomeou os professores, como também estipulou
os livros a serem usados. O decreto requeria a tradução dos que não fossem
portugueses, dentre eles o livro Géométrie descriptive, de Gaspard Monge. Ao
mesmo tempo, os professores foram orientados a publicar seus próprios cursos
com traduções bastante fiéis (SCHUBRING; MENDES; OLIVEIRA, 2019, p. 380).
Na Academia, a Geometria Descritiva era ensinada no segundo ano do
curso e seu primeiro professor foi José Vitorino dos Santos e Sousa, graduado na
Faculdade de Matemática da Universidade de Coimbra. Seu livro Elementos de
Geometria Descriptiva, publicado em 1812, está baseado na primeira edição do de
Monge, que data 1799. Schubring, Mendes e Oliveira (2019, p. 380-381) apontam
que, embora haja alguns problemas nas conversões de terminologias francesas
para as portuguesas, quase todo o texto é uma tradução literal. Como o decreto
exigia também modificações dos textos a partir de novas descobertas, Vitorino
adicionou 27 páginas. Suas notas e adições não incluem nenhuma informação
diferente do ponto de vista teórico, mas seus comentários pretendem minimizar as
dificuldades encontradas pelos leitores menos familiarizados com a geometria
entendida nos textos de Monge.

674
Embora o livro-texto de Monge tenha sido o prescrito no Decreto Real,
traduzido e republicado pelo próprio professor, o livro-texto utilizado foi o de Lacroix,
Essais de géométrie sur les plans et les surfaces courbes (1795). A partir de análise
de documentos, Schubring, Mendes e Oliveira (2019, p. 381) apresentam
evidências que o livro do Lacroix tenha sido o livro-texto oficial da disciplina de
Geometria Descritiva por um período extenso no seu ensino e não só no período
de Vitorino (Fig. 3).

FIGURA 3: Livro-texto usado pelo segundo professor da Academia Real Militar


em 1837

Fonte: Schubring; Mendes; Oliveira, 2019, p. 382.

Em 1840, um ex-aluno da Academia Militar, Pedro d’Alcântara Niemeyer


Bellegarde, publicou o primeiro livro-texto de Geometria Descritiva do Brasil, com
apenas 27 páginas. O livro intitulado Noções de Geometria Descritiva para uso da
escola de architetos medidores infelizmente não teve nenhuma cópia encontrada
até a data de publicação deste artigo. O material seria revelador sobre a prática na
Academia, em particular se Bellegarde usou como fonte o de Monge ou o de Lacroix
(SCHUBRING; MENDES; OLIVEIRA, 2019, p. 382).
A Academia Militar passou por várias mudanças estruturais.
Primeiramente, em 1839, passou a se chamar Escola Militar e, em 1855, ocorreu a
separação do treinamento de engenheiros civis e militares, mas mantendo a
Geometria Descritiva em ambas. A escola civil, renomeada Escola Central em 1858
e Escola Politécnica em 1874, passou do Ministério da Guerra para o Ministério do
Império. Embora, durante quase todas essas mudanças, a Geometria Descritiva
tenha sido mantida como uma disciplina importante, sua posição no currículo variou
um pouco. A Geometria Descritiva era ensinada no segundo ano, mas, em 1839,
foi colocada no terceiro e renomeada para Geometria Descritiva e Analítica. Em

675
1842, foi eliminada do currículo, tendo retornado em 1845, novamente no segundo
ano, e denominada Geometria Descritiva, e suas aplicações à Estereometria, e à
Perspectiva. No currículo da Escola Central de 1858, a disciplina aparece como
Geometria Descritiva, permanecendo no segundo ano (SCHUBRING; MENDES;
OLIVEIRA, 2019, p. 383).
Embora o ensino superior em matemática estivesse concentrado na capital
do Rio de Janeiro desde 1810, em 1876, foi aberta a primeira escola com cursos
de matemática superior – a Escola de Minas, em Ouro Preto, no estado federal de
Minas Gerais. No ano seguinte, 1877, devido à preparação insuficiente dos alunos
pelas escolas secundárias, principalmente em matemática, foi introduzido um
Curso Preparatório que incluía Geometria Descritiva, uma vez que ela era exigida
nos exames para admissão na escola (SCHUBRING; MENDES; OLIVEIRA, 2019,
p. 386). Há evidências do ensino de Geometria Descritiva em escolas secundárias
desde 1894, ainda que o Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, tivesse introduzido
essa disciplina apenas em 1895. Como principal escola de ensino médio no Brasil,
sabe-se que o currículo do Colégio Pedro II deveria ser aplicado por todos os outros
colégios a serem reconhecidos pelo governo (SCHUBRING; MENDES; OLIVEIRA,
2019, p. 388-389).
A busca pelo processo de elementarização do ensino Geometria Descritiva
e o seu desenvolvimento no Brasil suscita questionamentos sobre como era o
ensino dessa disciplina no Brasil. Nessa perspectiva, é válido refletir sobre o início
do uso do quadro-negro no país.
A pesquisa revela que em 1823, por decreto de 1.º de março, foi criada no
Rio de Janeiro uma escola que deveria trabalhar segundo o método Lancaster, ou
seja, do ensino mútuo. Conforme esse método, baseado na obra de Joseph
Lancaster (sistema monitorial, 1798), visando a ampliar o acesso à educação,
haveria apenas um professor por escola e, para grupo de dez alunos (decúria), um
aluno com mais aptidão (decurião) transmitiria aos demais os conhecimentos
recebidos pelo professor. O ensino mútuo/monitorial inaugura uma arquitetura do
espaço escolar, em que mobiliário e material passam a ser dispositivos
fundamentais para o sucesso do método. Os quadros-negros são sistematicamente

676
utilizados, especialmente, para o desenho linear e para a aritmética. Para escrever,
os estudantes fazem uso de tabuinha com areia, onde escreviam com o dedo.
Pequenas lousas em pedra ou tábuas de mármores também foram usadas como
superfícies próprias à escrita. Para ler, os alunos se agrupam em semicírculo na
frente de grandes lousas ou “quadros”, pendurados nas paredes.
Embora o uso do quadro-negro tivesse sido estabelecido pelo Decreto do
início do século XIX, constata-se que é só no final do século que o objeto se instala
nas escolas e começa a ocupar espaço central na sala de aula, período em que
paulatinamente consolidam-se os sistemas públicos de instrução elementar e,
paralelamente, crescem as exigências de um mínimo de mobiliário e material
escolar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com o objetivo de apresentar como se deu o processo de elementarização
do ensino de Geometria Descritiva na França e o seu processo de disciplinarização
no Brasil, foi feita uma análise do surgimento da Geometria Descritiva como objeto
de ensino, além da sua disseminação. A disciplina ora era vista como objeto em si
ou como parte da geometria clássica.
O propósito das lições de Monge era unir a Geometria Descritiva e a
análise, trazendo a obviedade, o rigor e a generalidade, a partir da representação
de objetos tridimensionais em desenhos em duas dimensões e pesquisando a
verdade na geometria. Suas lições eram iniciadas a partir de problemas inaugurais
e, talvez, sob grande influência de Condillac e d’Alembert. A ordem de simplicidade
na apresentação das ideias de Monge não era a mesma da geometria, pois ele
partia do geral para o particular. Observa-se que esse processo não se dá da
mesma forma no período de disseminação da Geometria Descritiva. Esta
corresponde aos novos processos de elementarização em relação ao manual de
textos de Monge. Os autores em seus textos, num momento, voltam-se para
iniciantes e, em outro, para quem já possui familiaridade. Eles também propõem o
estudo a partir de problemas inaugurais, mas, para outros, os problemas
praticamente desaparecem.

677
O ensino da Geometria Descritiva no Brasil tem predominância de
abordagens a partir de livros didáticos franceses. No período entre 1812 e 1843, os
livros franceses característicos foram os de Lacroix e Hachette (1822) que,
diferentemente de Monge, trazem as noções preliminares estendidas, de modo que
mais e mais considerações são introduzidas para ajudar os alunos na resolução
dos problemas. Contudo, autores como Louis Leger Vallée e Joseph Adhémar
tiveram bastante influência nos programas brasileiros desde 1823, uma vez que
estes apresentavam características semelhantes, propondo decomposição
completa das projeções de pontos, retas e planos. Um padrão característico
observado foi o estudo dos objetos da Geometria Descritiva por meio de casos
particulares (SCHUBRING; MENDES; OLIVEIRA, 2019, p. 396).
A busca pelo primeiro livro de Geometria Descritiva publicado no Brasil por
Pedro de Alcântara Niemeyer Bellegarde é um passo na descoberta do
desenvolvimento da disciplina na escola de architetos e medidores, onde hoje
funciona o Liceu Nilo Peçanha em Niterói. Na busca do processo de
contextualização da publicação do referido livro, chega-se à interessante biografia
de João Bellegarde, cujo nascimento, em 13 de dezembro de 1807, ocorrera na
nau que transportava a Rainha D. Maria I, o Príncipe Regente D. João e o Príncipe
da Beira (D. Pedro de Alcântara) ao Brasil. O menino tinha por genitores Dona Maria
Antônia de Niemeyer Bellegarde e o Capitão da Brigada Real da Marinha - Cândido
Norberto Jorge de Bellegarde (1781-1810). O Príncipe Regente D. João indica o
filho D. Pedro – com apenas 10 anos de idade - para padrinho do bebê, que recebe
a honraria de ser chamado pelos dois primeiros nomes do futuro imperador: Pedro
de Alcântara (LOS RIOS FILHO, 1964, p. 194-195).

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678
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SCHUBRING, Gert. Klein’s conception of ‘Elementary Mathematics from a


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SCHUBRING, Gert; MENDES, Vinicius; OLIVEIRA, Thiago. The dissemination of


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VOLKERT, Klaus. Descriptive geometry, the spread of a polytechnic art: the legacy
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679
O SISTEMA DE MEDIDAS EM UM ANTIGO TRATADO ISLÂMICO
MEDIEVAL

Kaline França Correia Andrade 233

RESUMO
Este artigo é um estudo de um trecho da terceira parte do Tratado da Circunferência (al-
Risāla al-Muhītīyya) concluído em 1424, escrito pelo astrônomo e matemático islâmico
Ghiyāth al-Dīn Jamshīd ibn Mas'ūd ibn Mahmūd al-Tabı̄ b al-Kāshī (1380-1429). Nossa
principal fonte de pesquisa é a tradução do árabe para o russo Rosenfeld e Youschkevitch
(1954). O objetivo de al-Kāshī era obter uma melhor aproximação para a circunferência de
um círculo, comparada com as obtidas por seus predecessores - Arquimedes (287-212),
Abu’l-Wafā Būzjānī (940-998) e Abu Rayhān al-Bīrūnī (973-1048) - de tal maneira que, para
a medição da circunferência seiscentas mil vezes maior que a circunferência da Terra, a
precisão fosse menor que a largura de um fio de cabelo de cavalo. Assim, neste artigo,
apresentamos quem foi al-Kāshī, descrevemos o contexto da elaboração do seu Tratado
da Circunferência e apresentamos nosso estudo sobre as unidades de medida envolvidas
na aproximação para a circunferência do círculo obtida por al-Kāshī. Considerando que a
análise do Tratado da Circunferência faz parte de nossos estudos doutorais, os resultados
deste trabalho poderão sofrer modificações.

Palavras-chave: História da Matemática Islâmica Medieval. Al-Kāshī. Tratado da


Circunferência (al-Risāla al-Muhītīyya). Unidades de medida antigas.

INTRODUÇÃO

Este artigo, faz parte dos nossos estudos doutorais sobre o Tratado da
Circunferência de al-Kāshī. Tratamos de um trecho específico da terceira parte do
tratado que muito nos chamou atenção devido às unidades de medida tão

233
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN).
kaline.andrade@ifrn.edu.br

680
diferentes das que usamos atualmente, que são: farsang, cúbito, dedo, grão de
cevada e fio de cabelo de cavalo. Vamos entender suas origens, a relação entre
elas e o seu papel no objetivo de al-Kāshī no Tratado da Circunferência. Este artigo
foi dividido em quatro partes: Introdução, Contexto de elaboração do Tratado da
Circunferência, O Tratado da Circunferência e o seu sistema de medidas e
Conclusão.

CONTEXTO DE ELABORAÇÃO DO TRATADO DA CIRCUNFERÊNCIA

Segundo (O’conner; Robertson, 1999), durante as campanhas militares de


Timur (1336-1405), as condições de vida eram precárias e a pobreza era extrema.
Al-Kāshī (1380-1429), como tantos outros neste tempo, viveu essa situação. De
acordo com Kennedy (1960), ele vivia de cidade em cidade no Irã Central em busca
de melhores condições de sobrevivência, mas mesmo assim, passou a maior parte
do tempo em sua cidade natal e, mesmo sendo médico de formação, dedicou-se à
astronomia e à matemática.
O patrocínio das artes e das ciências por reis, príncipes, governantes e
pessoas abastadas era comum nesta e em outras épocas, o que não foi diferente
com al-Kāshī, que soube muito bem usar isso a seu favor e dedicou muitos dos
seus trabalhos a reis e governantes influentes. A situação mudou favoravelmente
quando Shah Rokh assumiu o império após a morte de seu pai Timur, ele trouxe
prosperidade econômica para a região e apoiou fortemente a vida artística e
intelectual, com essas mudanças a vida de al-Kāshī também melhorou.
Em 1409, segundo Morey (2017), Shah Rokh transferiu a capital do império
timúrida para Herat (Afeganistão), que se tornou um grande centro cultural e
comercial; então, ele colocou seu filho Ulugh Beg como governante da cidade de
Samarcanda que a transformou em um centro científico cultural. Samarcanda fazia
parte da Rota da Seda, que ligava a Europa ao Oriente. Apesar de não possuir
ambições militares e territoriais, Ulugh Beg era representante de seu pai na região

681
da Transoxiana, mas também era astrônomo e matemático, gostava de arte,
música e era mulçumano devoto e estudioso do Corão.
De acordo com Dold-Samplonius (1992, p.194), o primeiro marco da vida
científica de al-Kāshī que podemos datar com precisão, foi no dia 02 de junho de
1406 em Kashān quando ele observou um eclipse lunar, ele também escreveu
diversos trabalhos antes de finalmente ir para Samarcanda em 1421 (figura 1), a
convite do governante Ulugh Beg para trabalhar na sua madrassa (figura 2), um
centro de estudos astronômicos e religiosos.

FIGURA 1: LOCALIZAÇÃO DAS CIDADES DE KASHĀN (NO IRÃ) E SAMARCANDA


(NO UZBEQUISTÃO).

Fonte: <www.google.com/maps>. Acesso em 11 de outubro de 2020.

FIGURA 2: PRAÇA REGISTAN: À ESQUERDA A MADRASSA DE ULUGH BEG (1417-


1420), À DIREITA A MADRASSA DE SHIR-DOR (1619-1636) E AO FUNDO A
MADRASSA DE TILLA-KARI (1646-1666?). SAMARCANDA (UZBEQUISTÃO).

682
Fonte: https://www.nhc.no/en/uzbekistan/. Acesso em 12 de outubro de 2020.

Além de fazer parte da equipe de estudiosos de Ulugh Beg, composta por


cerca de sessenta sábios, cada um convidado criteriosamente, al-Kāshī participou
ativamente do processo de construção do Observatório Astronômico de
Samarcanda e tornou-se seu primeiro diretor, (BAGHERI, 1997) e (KENNEDY,
1960). Al-Kāshī também escreveu tantos outros ao chegar em Samarcanda, entre
eles, o Tratado da Circunferência (al-Risāla al-Muhītīyya) (1424).

O TRATADO DA CIRCUNFERÊNCIA E O SEU SISTEMA DE MEDIDAS

O Tratado da Circunferência (al-Risāla al-Muhītīyya) de al-Kāshī consiste


do cálculo da aproximação para a relação entre o comprimento da circunferência e
o seu diâmetro. São cinquenta e oito páginas escritas em árabe, com dez partes,
além de introdução e conclusão, concluído em julho de 1424. Esta obra não foi
direcionada ao um público específico, mas tinha como objetivo melhorar a
aproximação da relação entre o comprimento da circunferência e o seu diâmetro
pois, as aproximações disponíveis apresentavam margens de erro muito grandes
que também aumentavam à medida que se tomava circunferências maiores. Essa
demanda está relacionada a melhoria da precisão de tabelas astronômicas. É
organizado seguindo uma sequência de procedimentos matemáticos que nos
revelam importantes elementos do conhecimento matemático daquele período.
Utiliza diversas proposições de Os Elementos de Euclides, unidades de medida
babilônicas e árabes antigas, sistema de numeração sexagesimal, frações

683
sexagesimais, operações com sexagesimais, números decimais e também faz
referência ao Almagesto de Ptolomeu.
Pelo fato de estar escrito em árabe, a nossa fonte primária é a tradução
russa Rosenfeld e Youschkevitch (1954) baseado no manuscrito de Istambul que
está no Museu do Exército de Istambul sob o nº 756.
Para calcular a sua aproximação, al-Kāshī utilizou um método semelhante
ao usado por Arquimedes, Heath (1897), calculando os perímetros dos polígonos
regulares inscrito e circunscrito semelhantes a um círculo com 3 𝑥 228 =
805 306 368 lados e depois fez a média aritmética. O mais impressionante é que
ele estabelece antecipadamente a margem de erro relativa ao valor exato e que
essa margem seja tão menor quanto menor for o comprimento da circunferência.
Assim, al-Kāshī calcula a mais precisa aproximação da relação entre o
comprimento da circunferência e o seu diâmetro desde os gregos, até o século XVII,
com uma precisão de dezesseis casas decimais ou nove casas sexagesimais.

AS UNIDADES DE MEDIDA DO TRATADO DA CIRCUNFERÊNCIA

O objetivo deste artigo é identificar e compreender quais são, de onde


vieram e qual a relação entre as unidades de medida utilizadas no Tratado da
Circunferência. Mas, primeiramente, vamos ler o objetivo de al-Kāshī no Tratado
da Circunferência que está escrito na primeira parte do tratado e tirar algumas
conclusões:

[...] queremos determinar a circunferência do círculo com a suposição de


que seu diâmetro é conhecido, em termos de uma determinada medição,
de tal maneira que estaríamos certos de que em um círculo cujo diâmetro
é seiscentas mil vezes maior que o diâmetro da esfera terrestre, a
diferença entre o resultado de nossos cálculos e o valor real não
ultrapasse a largura de um fio de cabelo, ou seja, um sexto da largura de
um grão de cevada, de modo que tal diferença para um círculo menor, que

684
este seja ainda menor.234 (ROSENFELD & YOUSCHKEVITCH, 1954,
p.329, tradução nossa)

Vemos que al-Kāshī quer desenvolver um método para calcular a


circunferência do círculo de diâmetro conhecido, com uma precisão tal que, quando
for utilizado para calcular a circunferência do círculo que é 600 mil vezes maior que
a circunferência da Terra, (no contexto de al-Kāshī a circunferência da Terra é o
comprimento da maior circunferência da Terra), de tal maneira que a diferença
entre o valor real e o valor calculado não ultrapasse a “largura de um cabelo de
cavalo” que representa “um sexto da largura de um grão de cevada”, e a precisão
será ainda melhor quanto menor for o círculo. Berggren comenta tal objetivo:

Al-Kāshī explica seu requisito de precisão, afirmando que ele quer


que o valor seja tão preciso que, quando for usado para calcular a
circunferência do universo, de acordo com as dimensões antigas, o
resultado não diferiria do valor verdadeiro em mais do que a largura
de um cabelo de cavalo.235 (BERGGREN, 2003, p.21, tradução
nossa)

Confrontando o objetivo de al-Kāshī e o comentário de Berggren,


concluímos que no contexto de al-Kāshī, a medida da circunferência do universo
era estimada em seiscentas mil vezes a circunferência terrestre e a precisão desta
medida é mensurada nas seguintes unidades de medida “largura de um fio de
cabelo de cavalo” e “largura de um grão de cevada”.
Já na terceira parte do tratado, aparecem outras unidades de medida além
da “largura de um cabelo de cavalo” e “largura de um grão de cevada” (figura 3):

FIGURA 3: INÍCIO DA TERCEIRA PARTE DO TRATADO DA CIRCUNFERÊNCIA.

234
мы хотим так определить окружность круга в частях, в которых выражен диаметр, чтобы
мы были уверены, что в круге, диаметр которого равен шестистам тысячам диаметров земли,
разница между ней [полученной величиной окружности] и истинной была не больше волоса,
т.е. одной шестой ширины среднего ячменного зерна, так что разность для круга, меньшего
чем этот, была бы меньше.

235AI-Kāshī phrases his requirement for accuracy by stating that he wants the value to be so accurate
that, when it is used to calculate the circumference of the universe according to the ancient
dimensions, the result would not differ from the true value by more than the width of a horse's hair.

685
Rosenfeld e Youschkevitch (1954, p.332).

Assim, temos também o farsang, o cúbito e o dedo, todas são utilizadas na


medição de diversas partes da divisão da circunferência do universo. Embora não
sejam explicitadas as relações entre essas unidades de medida no tratado,
podemos inferi-las através desta tabela.
No título da tabela de al-Kāshī, dividir a circunferência significa determinar
quantos lados deve ter o polígono regular inscrito à circunferência, al-Kāshī deixa
isso claro no tratado. Assim, ele quer descobrir em quantas partes ele deve dividir
a circunferência do universo para que a diferença entre o valor real e a aproximação
obtida com o cálculo do perímetro do polígono regular inscrito não exceda a largura
de um fio de cabelo de cavalo. Ele inicia a tabela calculando as medidas do grau e
do minuto da circunferência do universo tomando a circunferência da Terra como
unidade. A partir do cálculo relativo aos segundos, ele cita as seguintes unidades
de medida: farsang, cúbito, dedo e fio de cabelo de cavalo; e, confrontando o
objetivo acima explicitado, Rosenfeld e Youschkevitch (1954, p.329), com a tabela,
concluímos que um grão médio de cevada equivale a seis cabelos de cavalo.
Mas afinal, por que usar essas unidades medidas tão peculiares e de onde
vieram? Vamos explicar isso à medida em que al-Kāshī vai determinando as

686
medidas dos graus, minutos, segundos, etc., da circunferência 600 mil vezes maior
que a circunferência da Terra. Mas antes disso, vamos falar um pouco sobre o
sistema de numeração sexagesimal.
O sistema de numeração sexagesimal era conhecido como a numeração
dos astrônomos, herança dos antigos babilônios que exerceu grande influência por
muito tempo, provavelmente foi adotada por interesse de se fazer medições, pois
uma grandeza de sessenta unidades pode ser dividida em: metade, terço, quarto,
quinto, sexto, décimo, décima segunda parte, décima quinta parte, vigésima,
trigésima. Segundo Boyer (1974, p.121), no tratado astronômico de Ptolomeu (séc.
I) conhecido com Almagesto (do árabe, “o maior”), uma das obras mais influentes
da astronomia, seu autor associa valores numéricos às cordas através de regras
para subdividir a circunferência e para subdividir o diâmetro e esta regra consiste
em subdividir a circunferência em 360 partes ou graus, algo que já era praticado na
Grécia, possivelmente por influência dos signos do zodíaco. Um ciclo de quatro
estações, aproximadamente 360 dias, cada signo cobrindo um período de 30 dias.
Assim, pela facilidade do uso desse sistema Ptolomeu subdividiu a circunferência
de 360 graus em minutos (minutae primae), segundos (minutae secundae), etc.,
obtendo assim suas frações. Também considerou a circunferência de raio 60
unidades.
Para al-Kāshī, um estudioso de seu tempo só poderia ser considerado
astrônomo se dominasse o Almagesto de Ptolomeu, ele faz referência a esta obra
na décima parte do Tratado da Circunferência e utiliza o sistema sexagesimal em
todos os seus cálculos. Como mostramos agora (figura 3), esta contém as medidas
dos comprimentos dos arcos correspondentes ao grau, minuto, segundo, etc., da
circunferência 600 mil vezes maior que a circunferência da Terra no sistema
sexagesimal. Assim, primeiro ele obtém o equivalente a um grau dessa
circunferência dividindo 600 mil vezes a circunferência da Terra por 360, sendo o
2
comprimento desse arco igual 1666 3 da circunferência da Terra. Para um minuto,
3
ele divide esse resultado por 60, obtendo o valor de 27 4 da circunferência da Terra.

Assim, ele continua obtendo os equivalentes às frações sexagesimais dividindo


sucessivamente por 60, nós reescrevemos a tabela de al-Kāshī (quadro 1).

687
QUADRO 1: Tabela correspondente a tabela de al-Kāshī da terceira parte do Tratado da
Circunferência.
FRAÇÕES PARA A CIRCUNFERÊNCIA 600 MIL VEZES
SEXAGESIMAIS MAIOR QUE A CIRCUNFERÊNCIA DA TERRA
(C)
GRAU 600000 600000 1 2
1 1° = ( )𝐶 = ( . ) 𝐶 = 1666 𝐶
( 0) 360 6 60 3
60
MINUTO 1 600000 1 600000 1 3
1 1′ = ( . )𝐶 = ( . 2 ) 𝐶 = 27 𝐶
( ) 60 6 60 6 60 4
60
SEGUNDO 1 600000 1 600000 1
1 1′′ = ( . 2) 𝐶 = ( . 3) 𝐶 =
( 2) 60 6 60 6 60
60 600000 1
( . 3 ) . 8000 ≅ 3704 farsangs
6 60

TERÇO 600000 1
1 1′′′ = ( . 4 ) . 8000 ≅ 62 farsangs
( 3) 6 60
60
QUARTO 600000 1
Fonte: 1 1𝑖𝑣 = ( . 5 ) . 8000 ≅ 1,03 farsangs Acervo
( 4) 6 60
da 60 (Verificamos que não é 1 farsang e três décimos como autora.
afirma al-Kāshī, mas três centésimos)
QUINTO 600000 1
1 1𝑣 = ( . 6 ) . 8000 ≅ 206 cúbitos
( 5) 6 60
60
SEXTO 600000 1
1𝑣𝑖 = ( . ) . 8000 .12000 ≅ 3 e 1/3 de cúbito
1 6 607
( 6)
60
SÉTIMO 600000 1
1𝑣𝑖𝑖 = ( . ) . 8000 . 12000 . 24 ≅ 1 e 1/3 de
1 6 608
( 7) dedo
60
Ou

600000 1
1𝑣𝑖𝑖 = ( . 8) . 8000 . 12000 . 24. 6 . 6 ≅ 48
6 60
cabelos de crina de cavalo (na verdade 49,38272)

OITAVO 600000 1
1 1𝑣𝑖𝑖𝑖 = ( . 9 ) . 8000 . 12000 . 24. 6 . 6 =
( 8) 6 60
60 1
(100000 . 8000 . 12000 . 24 . 6 . 6 ). 9 ≅
60
4
de cabelo de crina de cavalo = 0,0823045267489712
5

Na linha relativa ao segundo, al-Kāshī passa a expressar a fração


sexagesimal numa unidade de medida bastante antiga, o farsang, e também
assume que a circunferência da Terra mede 8000 farsangs. Ao longo do tratado,

688
al-Kāshī não traz nenhuma informação sobre a origem dessas unidades nem
porque considera a circunferência da Terra igual a 8000 farsangs.
Segundo Houtum-Schindler (1888), o cúbito era a unidade de todas as
medidas de comprimento na Ásia e passou a ser também da Pérsia; o cúbito persa
era o mesmo que o cúbito babilônico, possivelmente adotado no período pré-
histórico, teve diversas variações assim como o farsang. As primeiras menções ao
cúbito remontam a 2600 A.C., em escavações das ruínas da Antiga Babilônia. O
cúbito na Pérsia era chamado de gez que significa “a régua de medição”; em árabe
é dharâ’ e representa “o braço, do cotovelo até a ponta do dedo médio”, também
conhecido como cúbito real de Heródoto; o termo dhar’ em árabe significava
7
“medindo com um cúbito”. Havia dois tipos de cúbito, o real e o comum que era 8

do cúbito real.
O farsang é parasang em árabe, uma antiga unidade de medida persa para
rotas usada em todo o antigo Oriente Médio e Mediterrâneo, algumas de suas
definições são a distância que um pedestre robusto pode percorrer em uma hora;
outra, é o caminho percorrido por um cavalo em uma hora que equivale à metade
percorrida por um homem. Segundo Doursther,

PARASANGE, PHARSANGE, PHARSAC, FARSANG, FIRSENG,


em inglês parasang, em espanhol, em português e em italiano
parasanga, farsanga. Medição de rota.
ARABIA E PERSIA, antiguidade. O parasange árabe ou persa, 8ª
do marhala ou dia, valia 3 milhas árabes = 150 cadeias topográficas
= 1500 cassaba = 3000 kathouah = 9000 côvados haquêmicos =
12000 côvados deraga cabda = 18000 pés. Quilômetros: 5.760.236
(DOURSTHER, 1840, p.395)

Como podemos perceber, farsang é uma unidade de medida persa,


difundida no mundo árabe, portanto, não necessitava de maiores explicações.

236PARASANGE, PHARSANGE, PHARSAC, FARSANG, FIRSENG, en anglais parasang, en


espagnol, en portugais et en italien parasanga, farsanga. Mesure itinéraire.
ARABIE ET PERSE, antiquité. La parasange arabe ou persane, 8º du marhala ou journée, valait 3
milless arabes = 150 chaines d'arpentage = 1500 cassaba = 3000 kathouah = 9000 coudées
hachémiques = 12 000 coudées deraga cabda = 18000 pieds. Kilomètres: 5760.

689
Em Houtum-Schindler (1888) também temos a medição de um grau
2
terrestre em relação ao equador igual a 25 farsangs para Ptolomeu e, 22 9 farsangs
8 2
e 18 9, para outros estudiosos. Certamente al-Kāshī adotou 22 9 farsangs para um
2
grau terrestre, pois 22 9 𝑥 360 = 8000 𝑓𝑎𝑟𝑠𝑎𝑛𝑔𝑠, ele faz alusão a este valor na

terceira linha de sua tabela.


A menor medida persa de comprimento era o mû (cabelo), geralmente era
compreendido como cabelo de mula, provavelmente inspirados nessa medida, foi
instituída pelos árabes a medida linear “cabelo de cavalo” que também poderia se
referir a cabelo de camelo, (DOURSTHER, 1840, p.134) e (HOUTUM-SCHINDLER,
1888, p.587). Assim,

CABELO DE CAVALO, Cabelo de camelo. Antiga medida linear dos


árabes. Crina ou pelo de camelo, 36ª parte do dedo ou assbaa, =
0,556 mm.237 (DOURSTHER, 1840, p.134)

Finalmente, na linha relativa ao “quarto de circunferência” verificamos por


meio de cálculos que não é u farsang e três décimos, mas três centésimos. E no
“oitavo da circunferência”, Al-Kāshī não chega em quatro quintos de um fio de
cabelo de cavalo e “ainda menos”, mas chega em “ainda mais”, como podemos
perceber no cálculo abaixo:

600000 1
𝑥8000𝑥 9 𝑥12000𝑥24𝑥36 = 0,823045267 …
360 60

Em todo caso, este cálculo é menor que 1 𝑓𝑖𝑜 𝑑𝑒 𝑐𝑎𝑏𝑒𝑙𝑜 𝑑𝑒 𝑐𝑎𝑣𝑎𝑙𝑜. Assim,
conclui al-Kāshī:

Portanto, se definirmos os perímetros de dois polígonos de forma


que a diferença entre eles não atinja uma oitava, então, a diferença
entre eles não atingirá um fio, além disso, essa é a diferença entre
cada um deles e a circunferência real do círculo. (ROSENFELD E
YOUSCHKEVITCH, 1954, p. 333, tradução nossa).

237CRIN DE CHEVAL, Poil de chameau. Ancienne mesure linéaire des Arabes. Le crin de cheval
ou lo poil de chameau, 36º parte du doigt ou assbaa, = 0,556 millimètre.

690
Portanto, para que al-Kāshī consiga atingir a precisão desejada, a diferença
entre o valor calculado da circunferência 600 mil vezes a circunferência da Terra e
o valor real, que é menor que a largura de um cabelo de cavalo, a diferença entre
1
eles não deve atingir uma oitava (608 ) da circunferência 600 mil vezes da

circunferência da Terra.
Considerando um farsang aproximadamente igual a seis quilômetros,
Youschkevitch (1976, p.151) e, relacionando essas unidades de medida temos:

QUADRO 1: Relação entre as unidades de medida presentes no Tratado da


Circunferência e o nosso atual sistema de unidade (SI).
1 fasang 12000 cúbitos ≈6 km
1 cúbito (dharâ’) 24 dedos ≈50 cm
1 dedo (angusht) 6 grãos de cevada ≈2,083 cm
de 1 grão de cevada (jô) 6 cabelos de cavalo (mû) ≈ 0,347 cm
1 cabelo de cavalo (mû) ≈0,06cm
Fonte: Acervo da autora.

Para nós tais unidades de medida são bastante estranhas, mas eram as
disponíveis na época e relacionadas ao cotidiano da sociedade islâmica, ainda não
existiam os épsilons e deltas da matemática atual. Desta forma, al-Kāshī consegue
obter numericamente o que chamamos hoje de parâmetro de erro para o
comprimento da circunferência 600 mil vezes maior que a circunferência da Terra,
assim, tal parâmetro será ainda menor para circunferências menores, como ele
tinha proposto.

CONCLUSÃO

Neste trabalho, conhecemos o contexto em que viveu al-Kāshī e


discorremos um pouco sobre suas atividades intelectuais. Detivemo-nos na terceira
parte do Tratado da Circunferência, uma das principais obras não somente de al-
Kāshī, mas de toda a matemática islâmica medieval devido à genialidade, sutileza
e precisão empregadas nos cálculos para a obtenção da relação entre o

691
comprimento da circunferência e o seu diâmetro. Destacamos as unidades de
medida nele envolvidos, suas origens e relações entre elas e o seu papel no
alcance do objetivo geral de al-Kāshī no Tratado da Circunferência.

REFERÊNCIAS

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Historia Mathematica, n.24, p.241-256, 1997.

BERGGREN, J.L. Episodes in the mathematics of medieval islam. New York:


Springer-Verlag Inc., 2003.

BOYER, C. História da Matemática. Tradução: Elza F. Gomide. São Paulo:


Edgard Blücher, Ed. Da Universidade de São Paulo, 1974.

DOLD-SAMPLONIUS, Y. Practical Arabic Mathematics: measurement the


muqarnas by al-Kashi. Centaurus, n.35 (3-4), p.193-242, 1992.

DOURSTHER, H. Dictionnaire universel des poids et mesures anciens et


modernes. Bruxelles: M Hayez, Imprimeur de l’Académie Royale, 1840.
Disponível em: <https://books.google.fr/books?id=7UNRAAAAYAAJ>. Acesso em:
04 mar. 2021.

HEATH, T.L. The Works of Archimedes: On the sphere and cylinder. Book 1.
p.1-90. Cambridge University Press.1897.

HOUTUM-SCHINDLER, Albert. On the Length of the Persian Farsakh.


Proceedings of the Royal Geographical Society and Monthly Record of
Geography, New Monthly Series,n.10 (9), p.584–588, 1888. Disponível em:
<https://www.jstor.org/stable/1800976?origin=JSTOR-pdf&seq=1>. Acesso em: 04
mar. 2021.

KENNEDY, E.S. A Letter of Jamshid al-Kashi to His Father: Scientific Research


and Personalities at a Fifteenth Century Court. Orientalia, n. 29, p.191-213, 1960.

MOREY, B. O início da historiografia em russo sobre a matemática islâmica.


Anais do XII SNHM-2017/SBHM, ISSN 2236-4102.

O’CONNER, J.J.; ROBERTSON, E.F. Ghiyath al-Din Jamshid Mas'ud al-Kashi.


The MacTutor History of Mathematics Archive, Reterived July 1999. Disponível
em: <http://www-history.mcs.st-and.ac.uk/Biographies/Al-Kashi.html>. Acesso em:
04 mar. 2021.

692
ROSENFELD B.; YOUSCHKEVITCH A. Al-Kashanı. Istorico-Matematicheskie
Issledovaniya, Moscow, n.7, p.11-449, 1954.

YOUSCHKEVITCH, A.P. Les Mathemátiques Arabes (VIIIe-XVe siécles)


traduction par M. Cazenaze et K. Jaouiche. Librairie Philosophique J. VRIN. Paris,
1976.

693
OS NÚMEROS NEGATIVOS NOS PRINCIPIOS MATHEMATICOS DE
JOSÉ ANASTÁCIO DA CUNHA

Antonio José Melo de Queiroz238

RESUMO
A vida e obra do português José Anastácio da Cunha (1744-1787) têm servido de tema
para diversas pesquisas em História da Matemática, destacando-se nestes estudos o livro
Principios Mathematicos, publicado postumamente em 1790 e considerado sua obra-
prima. O citado texto trata de diversos tópicos da Matemática que, atualmente, podem ser
denominados por: geometria euclidiana, geometria analítica, aritmética, análise
matemática, álgebra e outros. Neste trabalho, o problema de pesquisa tratado é a
abordagem dos números negativos presente no capítulo (livro) VIII do livro Principios
Mathematicos. Com vistas a atacar o problema citado, o objetivo delineado foi
compreender a forma como números negativos foram apresentados e utilizados no capítulo
VIII da obra citada anteriormente. Para tanto, foi realizado um estudo bibliográfico e
documental seguindo a perspectiva historiográfica atualizada situando José Anastácio da
Cunha e os seus escritos no contexto das discussões que ocorreram nos séculos XVII e
XVIII sobre os números. Escolheu-se a versão digitalizada, pela Biblioteca Nacional de
Portugal, dos Principios Mathematicos. O percurso metodológico seguido levou à
construção de uma pesquisa descritiva e bibliográfico-documental. O resultado percebido
é a ausência de discussão sobre o conceito de número negativo, também foi observada,
por estudo em outras fontes, a recusa na aceitação dos números negativos com o mesmo
estatuto que os positivos, no entanto, o autor aceita as regras de sinais e realiza operações
algébricas sem maiores restrições.

Palavras-chave: José Anastácio da Cunha. Principios Mathematicos. Número.


Número negativo.

INTRODUÇÃO

O professor, militar, poeta e estudioso da matemática, José Anastácio da


Cunha, teve sua obra científica pouco analisada e divulgada até a década de 1980,
assim como ocorreu com a história de Portugal do século XVIII. (FERRAZ;

238
Universidade Estadual do Ceará (UECE). antonio.queiroz@uece.br.

694
RODRIGUES; SARAIVA, 1990). Felizmente tal situação se reverteu, e atualmente
existe uma quantidade razoável de estudos sobre diversos aspectos da atividade
profissional, científica e poética de Anastácio da Cunha.
Textos como os de Vieira (1990); Guerreiro (1990); Rodrigues (2008);
Santos, Lima e Ralha (2018) e Santos (2018) destacam o contexto geral e
matemático, bem como atuação profissional docente de Anastácio da Cunha. Em
outros estudos como Giusti (1990); Silva e Duarte (1990); Baroni (2001); Vieira
(2006) e Sad (2007) encontram-se uma ênfase em partes dos seus escritos,
principalmente, do livro Principios Mathematicos e também pesquisas que abordam
a sua concepção de números negativos (Schubring, 2001; Santos, 2018).
Algumas das pesquisas citadas anteriormente discutem, de forma
competente, os aspectos da análise matemática presentes em Cunha (1790) ou
outros textos do autor. A partir do estudo de tais referências, de leitura preliminar
dos Principios, que tratam de diversos tópicos da Matemática, e com o estímulo da
excelente análise de Schubring (2005) sobre a discussão em torno do conceito de
número e operações algébricas com os números negativos, surgiu a seguinte
indagação, como José Anastácio da Cunha apresenta o conceito de número
negativo e realiza operações algébricas com estes objetos nos Principios
Mathematicos?
Em conformidade com a questão de pesquisa, o objetivo deste trabalho foi
compreender a forma como números negativos e suas operações algébricas são
abordadas no capítulo VIII dos Principios Mathematicos. A escolha deste capítulo
deve-se ao conteúdo que o preenche, uma vez que, apresenta grandezas
afirmativas e subtrativas, em denominação atual, números positivos e negativos e
suas operações. Esse conteúdo, naquele período, era considerado uma introdução
à álgebra.
Este estudo trilhou os caminhos de uma pesquisa histórica, cujas
informações foram coletadas de fontes documentais e bibliográficas. Por
documento compreende-se não serem apenas livros e tratados, mas também
cartas, manuscritos, monumentos, máquinas e outros itens. (SAITO, 2015). O
principal documento utilizado neste texto foi o livro Principios Mathematicos de José

695
Anastácio da Cunha, publicado em 1790 em Lisboa, porém por facilidade de
acesso, a versão adquirida foi a digitalizada pela Biblioteca Nacional de Portugal,
disponível no portal da Biblioteca Nacional Digital.
A investigação buscou sempre a leitura dos Principios associada ao diálogo
com o referencial teórico para compreender a obra e seu autor em seu tempo, o
século XVIII. Sobre este ponto, Saito (2015) esclarece que na historiografia
atualizada busca-se partir do passado para compreender o presente e não o
contrário, também faz o destaque, “[...] na medida que o conhecimento matemático
do passado é contextualizado no “passado”, o historiador passa a ter acesso ao
seu processo de construção.” (SAITO, 2015, p. 27). As referências mais utilizadas
para esta conversa com a fonte primária foram Schubring (2005, 2018), Katz (2009)
e Roque (2012), pois traz bem delineado o contexto dos acontecimentos
relacionados aos números, seus estatutos e operações algébricas nos séculos XVII
e XVIII.
Este artigo divide-se em quatro seções: introdução; Anastácio da Cunha e
os Principios Mathematicos; os números negativos nos Principios Mathematicos;
considerações finais.

ANASTÁCIO DA CUNHA E OS PRINCIPIOS MATHEMATICOS

José Anastácio da Cunha foi um multifacetado português dos setecentos,


poeta, professor, estudioso da matemática e militar. A arte militar foi a primeira de
suas obrigações profissionais, em 1764 assumiu posição no Regimento de
Artilharia do Porto e lá permaneceu até 1773. Vieira (1990) destaca que este
período foi importante na artilharia portuguesa em virtude da reorganização no
exército e a implantação das aulas para oficiais e praças, estes cursos tinham um
plano de ensino prévio e livros de utilização obrigatória, em sua maioria francesa,
como o de Bernard Forest Bélidor (1698-1761), estudioso francês e autor de textos
didáticos de Matemática de ampla utilização.

696
Em relação aos números negativos, Bélidor, na obra Cours de
Mathématiques, os compreende como tão reais quanto os positivos, inclusive aceita
soluções negativas de equações, porém ainda distingue seis tipos de equações do
2º grau com coeficientes positivos apenas. Também se percebe o uso do termo
quantidades239, ou seja, números compreendidos como grandezas, sendo essa
associação comum no século XVIII. (SCHUBRING, 2005). Não foi possível
conseguir referências que comprovem o contato de Anastácio da Cunha com este
livro, mas percebe-se que é uma obra que pode ter circulado em seu regimento.
Santos (2018) indica que, mesmo antes de suas atividades militares,
Anastácio da Cunha teve contato com obras matemáticas de André Tacquet (1612-
1660), Tomás Vicente Tosca e Masco (1657-1723) e Alexis Claude de Clairaut
(1713-1765). Nota-se que Clairaut, assim como Bélidor, aceita e opera com
números negativos, utiliza como soluções de equações quadráticas e discute a
possibilidade de sua existência isolada240. (SCHUBRING, 2005). No entanto,
Curado (2012) lembra que não se sabe qual texto de Clairaut foi lido por Cunha, ou
seja, existe a possibilidade de contato com o pensamento do francês sobre os
números negativos.
Por fim, de forma comprovada, constata-se o contato de Anastácio da
Cunha com obras de Isaac Newton (1643-1727) e Thomas Simpson (1710-1761)
no regimento de artilharia. Do primeiro autor ele teve acesso aos Principia
Mathematica e Arithmetica Universalis, do segundo, ele estudou o Tratado de
Álgebra. (Santos, 2018). Vale ressaltar a relevante oportunidade em acessar obras
estrangeiras no regimento em que Cunha foi militar, situação propiciada pela
presença de militares estrangeiros, colaborando, inclusive, para as trocas de
experiências culturais. Santos, Lima e Ralha (2018) confirmam sobre o acesso a
obras literárias, filosóficas e matemáticas de propriedades destes oficiais.
De acordo com Katz (2009), na Arithmetica Newton trata da regra de sinais
para quantidades negativas, porém não entra em maiores discussões sobre estes

239
Ao longo do texto serão utilizados, várias vezes, os termos quantidades negativas e grandezas
negativas, em referência a forma como os estudiosos citados as tratavam.
240
Algumas discussões sobre a regra de sinais para a multiplicação utilizava quantidades
compostas, são as que tem a forma (a-b), quantidades negativas isoladas seriam da forma -b.

697
termos e nem há tentativa de demonstração da regra. Já no Tratado de Álgebra de
Simpson, o estudioso estabelece as quantidades negativas, opera com as mesmas,
apresenta as regras de sinais para multiplicação destes objetos, porém o faz com
quantidades compostas. Além disso, na discussão sobre quantidades negativas
isoladas, deixa claro sua repulsa em relação a existência de números menores que
zero. Ou seja, não há aceitação de quantidades negativas para além da utilização
em operações algébricas. (SCHUBRING, 2005).
A partir dessa breve apresentação de alguns autores, cujas obras ou parte
delas foram lidas por Anastácio da Cunha, percebe-se o contato com concepções
sobre os números negativos, uma vez que, as fontes não deixam dúvidas em
afirmar seu estudo da Arithmetica de Newton e do Tratado de Simpson, este último
o influenciou no entendimento do assunto, como será visto posteriormente.
Ainda no Regimento de Artilharia do Porto, Cunha escreveu a Carta Fisico-
Mathematica241, o Ensaio sobre as minas, a pedido de seus superiores militares, e
iniciou a escrita dos Principios Mathematicos. (SANTOS; LIMA; RALHA, 2018).
A partir de 1773, José Anastácio da Cunha é destinado para lente
(professor) da Cátedra de Geometria, 1º ano da Faculdade de Matemática da
Universidade de Coimbra. Tal nomeação veio junto com a titulação de doutor,
ambas atribuídas pelo marquês de Pombal242, que soube de suas façanhas
matemáticas no regimento de artilharia e o indicou para a instituição recém criada.
(SANTOS; LIMA; RALHA, 2018).
Albuquerque (1990) conta que a Universidade de Coimbra havia passado
por reforma dos estatutos em 1772, em tal evento foi criada a citada Faculdade de
Matemática, cujas normas regulatórias previam a desvinculação do ensino
escolástico, valorização da prática nas diversas cadeiras e adoção de bibliografia
variada e atualizada. Tudo sugere que o objetivo era deixar o ensino sincronizado
com os desenvolvimentos matemáticos do século XVIII.

241
O título completo é Carta Fisico-Mathematica sobre a theorica da polvora em geral, e a
determinação do melhor comprimento das peças em particular.
242
Secretário de estado no reinado de D. José I, seu nome completo era Sebastião José de
Carvalho e Melo.

698
Ainda ancorado em Albuquerque (1990) percebe-se que a cátedra sob
responsabilidade de Anastácio da Cunha tratava de assuntos da aritmética,
classificação dos números, operações, potências e raízes, proporções,
progressões, regras de três e logaritmos, também contava com conteúdos de
geometria, referenciados nos Elementos de Euclides, em trabalhos de Arquimedes
e de Proclo.
O intervalo em que Cunha foi professor em Coimbra parece ter sido
produtivo, pois, Silva e Duarte (1990) mencionam a apresentação à congregação
da Faculdade de Matemática de parte dos Principios Matthematicos, para ser
utilizada como texto indicado do curso. Vale lembrar que a mudança periódica de
livros era indicada pelos estatutos da universidade, com o objetivo de difundir
teorias recentes. É lícito pensar que a versão dos Principios citada anteriormente,
e que nunca recebeu resposta da solicitação, corresponda aos primeiros capítulos
da publicação de 1790, uma vez que, a porção inicial do livro trata de assuntos
ensinados na cátedra de responsabilidade de Cunha. Além deste trabalho, Santos
(2018, p. 45) afirma que também “[...] redigiu em inglês o texto Logarithms & powers
e deu prosseguimento aos Principios mathematicos [...].”
Ainda sobre as atividades em Coimbra, Santos, Lima e Ralha (2018) citam
a querela entre Anastácio da Cunha e José Monteiro da Rocha (1734-1819) sobre
o método de ensinar do primeiro, a questão ocorreu porque Cunha não seguia os
métodos tradicionais de ensino da instituição, que se resumiam a expor o conteúdo
e, em aula seguinte, escutar a repetição pelos alunos. Ele propunha demonstrar
proposições e outras afirmações e inserir a prática pelos alunos, questão prevista
nos estatutos, a proposta não foi bem aceita e Cunha recebeu críticas de Monteiro
da Rocha.
Encerrando esta etapa da vida de Anastácio da Cunha veio o processo
inquisitório. Em 1777, o marquês de Pombal foi destituído do cargo e,
consequentemente, como traz Queiró (1992, p. 8) “[...] os setores sociais e políticos
que ele tinha reprimido tão violentamente depressa foram reabilitados[...]”, entre
estes, a inquisição, pela qual Cunha foi preso e condenado em 1778. Dois pontos
devem ser destacados dos relatos, o primeiro é afirmação de Anastácio da Cunha

699
já ter concluído os Principios Mathematicos, ou seja, a obra já estava escrita em
1778. O segundo ponto é a lista de livros da biblioteca de José Anastácio da Cunha,
inventariada no processo citado e que de acordo com Giusti (1990) relata obras de
Euclides, Newton, d’Alembert243, Muller244, Bézout245, Bossut246, Tosca e Euler247.
É importante enfatizar, brevemente, a compreensão de algumas destas
figuras sobre os números negativos para a visualização da teia em torno deste
conceito e de Anastácio da Cunha. D’Alembert foi o estudioso francês que reforçou
uma ruptura com o cenário que estava se construindo para aceitação das
quantidades negativas, uma discussão ampla e profunda se faz em Schubring
(2005) ou Schubring (2018). Os textos de d’Alembert trazem: aceitação das
operações com quantidades negativas; contestação da generalidade da álgebra;
repulsa às grandezas negativas isoladas; a compreensão de um zero absoluto e a
indicação que solução negativa de uma equação implicaria a necessidade de
reformular o problema, posição mais severa que aquela defendida por Clairaut, de
reinterpretar soluções negativas. (SCHUBRING, 2018).
As ideias de d’Alembert tiveram ampla difusão, no entanto, os livros de
Bézout foram, nas palavras de Schubring (2018, p.73), “[...] o manual dominante,
se não exclusivo, nas escolas militares na França.” E, assim, Bézout difundiu e
ampliou a defesa da aceitação de operações com quantidades negativas e a visão
de que estas eram reais como as positivas, no entanto quando tratava de soluções
negativas de equações, propunha a reinterpretação do problema, ou seja, em
d’Alembert e Bézout percebe-se que não há questionamento ou recusa para
utilização das operações algébricas com os negativos, o que existe é a não
aceitação das quantidades negativas isoladas e admitindo que elas não tivessem
as mesmas funções que as positivas.
Observa-se que Anastácio da Cunha tinha acesso a obras e autores que
estiveram no centro das discussões sobre o estatuto dos números negativos. Giusti
(1990) lembra que o livro de Bézout catalogado na biblioteca de Cunha parece ser

243
Jean le Rond d’Alembert (1717-1783) estudioso francês.
244
John Muller (1699-1784) estudioso alemão que viveu na inglaterra.
245
Étienne Bézout (1730-1783) estudioso francês.
246
Abbé Charles Bossut (1730-1814) estudioso e professor de Matemática francês.
247
Leonhard Euler (1707-1783) estudioso suiço que viveu na Rússia e Alemanha.

700
o de geometria e não a obra completa que continha álgebra, porém é preciso
lembrar que, enquanto esteve em Coimbra, o livro adotado na cátedra de álgebra
era o de Bézout, ou seja, também foi possível o contato com tal texto na
universidade. Já Santos (2018) traz a afirmação de uma carta, atribuída a
Brunelli248, que Cunha tinha conhecimento de obras de d’Alembert.
Outro autor citado acima, Euler, “[...] já via a álgebra como a ciência dos
números, e não das quantidades.”(ROQUE, 2012, p. 442). Também compreendia
que a base da Matemática deveria ser constituída de números que poderiam
representar todas as grandezas, os positivos seriam construídos com adições
sucessivas e os negativos com subtrações, no entanto seus escritos não tiveram
grande influência no século XVIII. (ROQUE, 2012). Katz (2009) afirma que Euler
tratou das quantidades negativas e descreveu a regra de sinais sem maiores
detalhes, bem como discorreu que os números poderiam ser maiores, menores ou
iguais a zero. Anastácio da Cunha foi crítico de Euler, Giusti (1990) cita tal fato e,
em uma carta de 1785, percebe-se o tom irônico de Cunha (1990) ao tratar o autor
suíço como deus de Coimbra e José Monteiro da Rocha como seu profeta, além de
relatar a postura radical de Euler em favor da álgebra.
Por fim, um dos livros citados no processo de inquisição é de Bossut.
Anastácio da Cunha tinha as publicações de 1772 e 1773, ou seja, o Tratado
elementar de aritmética e Tratado elementar de álgebra. (GIUSTI, 1990;
SCHUBRING, 2005). Novamente, levando em consideração a questão das
quantidades negativas, tem-se que este autor francês ancora a compreensão de
tais objetos a partir da concepção de oposição às quantidades positivas, vale
também o relato da aceitação das operações algébricas, da multiplicidade de
raízes, forma normal de equação do 2º grau e solução geral para tal equação.
Compreende-se que Cunha lidou com textos de autores, em sua maioria
franceses, com algumas concepções diferentes sobre os números negativos, tais
estudiosos utilizavam estes objetos em operações algébricas e aceitavam as regras
de sinais, porém havia discordância sobre o estatuto dos números negativos, de

248
João Ângelo Brunelli (1722-1804), estudioso italiano, foi professor do Colégio dos Nobres em
Portugal. (Santos, 2018).

701
seu uso como quantidades isoladas e de soluções negativas de equações, enfim,
observa-se uma riqueza de concepções característica do século XVIII.
Após o período de condenação pela inquisição, que manteve Cunha
recluso por 3 anos, tem-se notícia de suas atividades na Casa Pia de Lisboa.
Rodrigues (2008) e Santos (2018) salientam suas atividades na construção do
plano de estudos científicos do Colégio de São Lucas da Casa Pia, uma vez que,
eram oferecidos ensinos de ciências matemáticas e físicas, História Natural,
Química e até Farmácia. Cada curso contava com docente e alguns de seus alunos
seguiram estudos científicos, tanto na Universidade de Coimbra como na Academia
da Marinha.
Enquanto esteve na Casa Pia, um fato relevante para a narração da relação
entre José Anastácio e os números negativos é a solicitação da aquisição do
Tratado de Álgebra de Simpson, citado anteriormente, visando à utilização no
ensino do Colégio São Lucas. (SANTOS, 2018). Isto mostra o valor atribuído à obra
do inglês.
Schubring (2005, p. 605) realça a escolha de Anastácio da Cunha pela
concepção de Thomas Simpson sobre as quantidades negativas ao afirmar que
“[...] recebeu e propagou a rejeição inglesa das quantidades negativas [...]”. E ainda
pode-se observar a preferência pelo texto de Simpson em Cunha (1990, p. 360) ao
referir-se a “[...] sua excellente Algebra[...]” para tratar da impossibilidade de
solução negativa em determinado exemplo de equação. É perceptível a
proximidade entre Anastácio da Cunha e o escrito citado, o possível primeiro
contato ainda no regimento de artilharia, a citação em carta, a indicação como
referência no ensino da Casa Pia são evidências interessantes.
A próxima seção apresenta partes do capítulo VIII dos Principios
Mathematicos que se relacionam com conceitos de números negativos e dão
indícios do juízo que Cunha fazia de tais objetos matemáticos.

OS NÚMEROS NEGATIVOS NOS PRINCIPIOS MATHEMATICOS

702
O texto dos Principios Mathematicos utilizado nesta pesquisa é o que foi
publicado em 1790, o qual foi digitalizado e disponibilizado na internet pela
Biblioteca Nacional de Portugal através da Biblioteca Nacional Digital. A obra é
formada por 21 capítulos, tratados como livros, uma errata e uma sequência de
figuras ao fim do livro. Este estudo abordou o capítulo VIII, que traz conceitos
relativos a grandezas negativas e positivas e assuntos relacionados a operações
algébricas.
Já na primeira página do referido capítulo, Cunha (1790, p.100) faz duas
suposições que se relacionam com a sua concepção de grandezas negativas e
positivas, pois propõe a aquelas com sinal positivo, “para se juntar a alguma
grandeza” e às precedidas de sinal negativo, “para se tirar de alguma grandeza.”
Visualiza-se a associação do sinal com as operações de adição e subtração e não
como representante de uma qualidade, ou característica da grandeza, outra
evidência disso é a nomenclatura, sendo que as grandezas com sinal positivo são
chamadas aditivas e as com sinal negativo de subtrativas.
Na sequência, Anastácio da Cunha define grandezas contrárias como
aquelas com sinais diferentes e utiliza a definição para escrever sobre o resultado
de uma soma com grandezas contrárias e diferentes que seria “[...] a grandeza que
se chamaria differença dellas, se se naõ suposessem contrarias, e é contraria à
menor.” (CUNHA, 1790, p. 101). Esta afirmação, atualmente, é a regra da soma e
preserva o sinal do maior número, que sempre se escuta nas escolas de educação
básica.
Digno de observação é sua opinião do zero como representante do nada,
Cunha (1790, p. 101) escreve, “Por somma de duas grandezas iguaes e contrarias,
entende-se o mesmo que pela palavra, nada, ou pelo caracter 0 [...]”. Vê-se pela
citação anterior uma evidência da visão de um zero absoluto, em concordância com
Simpson e d’Alembert que não acolhiam a ideia de grandezas menores que zero e,
divergindo de estudiosos como Newton, que aderiu a convicção de grandezas
positivas maiores que zero e negativas menores que zero. (SCHUBRING, 2005).

703
Na suposição V, Anastácio da Cunha aborda um ponto que gerou uma
controvérsia duradoura no século XVII, a proporcionalidade entre grandezas
contrárias, segue seu juízo sobre o assunto.
Grandezas proporcionaes [...] supporse-haõ sempre proporcionaes,
excepto se huma antecedente e a sua consequente forem contrarias entre
si, não sendo outra antecedente e sua consequente contrarias entre si.
(CUNHA, 1790, p. 101).
Assim, é possível visualizar que Cunha acata a possibilidade de
proporcionalidade entre números com sinais distintos, diferentemente de
estudiosos como Antoine Arnauld (1612-1694) que se envolveu em uma longa
discussão com Jean Prestet (1648-1691) sobre a dita proporcionalidade, uma vez
que esta situação contradiz relações entre os termos da proporção, esse
acontecimento é relatado por Schubring (2005).
A suposição de Cunha também difere de outro influente estudioso, Colin
MacLaurin (1698-1746). MacLaurin defendia a igualdade entre razões do tipo a:b e
a:-b, uma vez que para a proporção deveria importar apenas o valor absoluto, não
teria relevância as qualidades, compreendendo os sinais como representantes de
qualidades que dão direção às grandezas. D’Alembert foi outro estudioso que
abordou o tema, no entanto com a concepção da impossibilidade de tais razões
com termos negativos e utilizou o argumento da teoria geométrica das proporções.
(SCHUBRING, 2005).
Como consequência da suposição V, citada anteriormente, Anastácio da
Cunha enuncia, sem demonstração, três corolários importantes para o trato com
números negativos. O primeiro deles é o “Producto de dois factores contrarios he
negativo; de dois factores naõ contrarios, positivos.” (CUNHA, 1790, p. 102). Esse
corolário se refere a regra de sinais para a multiplicação. Uma vez que o autor a
percebe como deduzida da suposição V, portanto ele deve ter utilizado o seguinte
resultado referente às proporções, 1:a :: b:ab, ou seja, a unidade está para um fator,
assim como, o outro fator está para o produto, para concluir a afirmação do
corolário.
É relevante mencionar que as regras de sinais foram amplamente
abordadas nos séculos XVII e XVIII. Thomas Simpson, por exemplo, as concebia e
utilizava para quantidades compostas, porém, como rebatia o uso de quantidades

704
negativas isoladas, não acolheu o produto das mesmas por uma ausência de
significado. (SCHUBRING, 2005). Ainda vale destacar que, no capítulo VIII, Cunha
também não multiplica quantidades negativas isoladas, existe apenas a menção da
operação no primeiro corolário.
Os outros dois corolários referem-se à regra de sinais na divisão e a
ausência de raiz quadrada para números negativos, também como consequência
da suposição V. Acredita-se que o estudioso deve ter visualizado o mesmo
argumento anterior para tirar estas conclusões.
Na sequência, Cunha (1790, p. 102) traz a “Praxe de multiplicaçaõ de
sommas indicadas”, uma seção com dois exemplos de multiplicação de
quantidades compostas, ou seja, quantidades literais somadas ou subtraídas de
outras. Na operação de multiplicação fica evidente a ênfase às regras de sinais,
uma vez que, na primeira situação de multiplicação de um termo positivo e outro
negativo, Cunha refere-se ao corolário que se discutiu anteriormente. Vale citar o
caráter aparentemente pedagógico do primeiro exemplo, uma vez que, Anastácio
da Cunha realiza as operações algébricas, passo a passo, indicando as
multiplicações e os sinais que serão utilizados. As adições e subtrações não são
realizadas, apenas se indica o resultado final. No segundo exemplo, o autor realiza
a sequência de multiplicações e adições sem detalhamento. Observe-se que o
estudioso não multiplica quantidades negativas isoladas, mas sempre adicionadas
a outros termos.
Na última seção do capítulo VIII dos Principios, Anastácio da Cunha traz a
divisão de quantidades compostas com a ressalva de “[...] quando nos termos do
dividendo e divisor [...] está repetido diversas vezes como factor hum mesmo
numero.” (CUNHA, 1790 p. 103). Assim, os termos do quociente devem conter
potências. Observa-se que estas não foram representadas com os expoentes, mas
apenas pela repetição das letras em cada situação, diferentemente do capítulo X
em que os expoentes se fazem presentes.
Cunha opera a divisão detalhadamente em um exemplo, apresentando os
diversos passos. Vale citar que a utilização das regras de sinais e as operações
com quantidades negativas ocorrem sem restrições, por exemplo, quando Cunha

705
(1790, p.104) diz “[...] de -2ayyy a +0 vai +2ayyy [...]”, referindo-se à subtração de -
2ayyy do zero. Ainda neste trecho, percebe-se o zero acompanhado de sinal
positivo, no entanto Anastácio da Cunha havia comparado o zero ao nada, em
seção anterior do capítulo, então é possível que este sinal tenha relação com a
ausência da concepção de zero como termo neutro que agrega os números
positivos em uma direção e os negativos em outra.
Por fim, chama a atenção o último axioma do capítulo VIII, “A experiencia
tem provado que estas praxes saõ seguras.” (CUNHA, 1790 p. 105). Esta afirmação
é curiosa pelo fato de as praxes da multiplicação e divisão serem consequências,
principalmente, das regras de sinais. Tais regras, por sua vez, são corolários da
suposição V, então, existia dúvida na referida suposição? Se a resposta for
afirmativa, não é surpresa, no ambiente do século XVIII em que os estudiosos do
tema se dividiam em relação ao assunto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os Principios Mathematicos não abordam uma discussão explícita sobre a


natureza dos números negativos ou sobre as regras de sinais, como ocorre na obra
de Thomas Simpson, porém, em breves passagens do capítulo VIII, é possível
perceber indícios da posição de José Anastácio da Cunha em relação a tais
assuntos, como a utilização do termo grandeza para referir-se a número e a
definição de zero como nada.
Os indícios associados ao contexto matemático dos séculos XVII - XVIII e
às obras, com seus autores, que Cunha teve acesso permitem colocá-lo como um
estudioso em seu tempo. Um período de mudanças de concepções sobre o estatuto
dos números, inclusive dos números negativos. Além disso, os vestígios levam a
determinação de possíveis influências sobre o autor e obra.
Desta forma, acredita-se que o objetivo principal do trabalho foi
concretizado, atingindo a compreensão da forma como os números negativos são
apresentados no capítulo VIII. Também foi possível recolher indícios da opinião de

706
Anastácio da Cunha sobre estes objetos e associá-los ao que a literatura já
indicava. Por fim, indica-se uma direção para o prosseguimento do trabalho, a
saber, compreender e analisar questões análogas em relação aos números
irracionais e complexos, além de estudar tais números como raízes de polinômios
nos Principios Mathematicos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Anastácio da Cunha (1744-1747): o matemático e o poeta. Colóquio Internacional,
1987, Lisboa. Actas… Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1990. p. 19-
25.

BARONI, R. L. S. Aspects of differential equations in José Anastácio da Cunha’s


Mathematical Principles. Revista Brasileira de História da Matemática, Rio
Claro, v. 1, n. 2, p. 27-36, out. 2001.

CUNHA, J. A. Carta de J. A. da Cunha a João Manuel de Abreu, de 3/6/1785. In:


José Anastácio da Cunha (1744-1747): o matemático e o poeta. Colóquio
Internacional, 1987, Lisboa. Actas… Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda,
1990. p. 359-370.

CUNHA, J. A. Principios Mathematicos. Lisboa: Officina de Antonio Rodrigues


Calhardo, 1790. Disponível em: http://purl.pt/13843. Acesso em: 20 abr. 2020.

CURADO, S. C. Algumas notas sobre José Anastácio da Cunha, enquanto militar.


Boletim da Sociedade Portuguesa de Matemática, Lisboa, n. 67, p. 227-242,
out. 2012. Disponível em: https://revistas.rcaap.pt/boletimspm/issue/view/303.
Acesso em: 22 jul. 2020.

FERRAZ, M. L. A; RODRIGUES, J. F; SARAIVA, L. Sobre o colóquio e sua


contribuição para a análise da vida, obra e época de José Anastácio da Cunha. In:
José Anastácio da Cunha (1744-1747): o matemático e o poeta. Colóquio
Internacional, 1987, Lisboa. Actas… Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda,
1990. p. XIX-XXX.

GIUSTI, E. Quelques réflexions sur les Principios de da Cunha. In: José Anastácio
da Cunha (1744-1747): o matemático e o poeta. Colóquio Internacional, 1987,
Lisboa. Actas… Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1990. p. 33-52.

707
GUERREIRO, J. S. Anastácio da Cunha e as matemáticas em Portugal. In: José
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708
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709
710
A Geometria projetiva a partir de imagens de um tratado renascentista

Igor Cardoso Tonhato249


Matheus Vieira do Nascimento Cardoso250
Marisa Raquel de Melo Pereira251

RESUMO
Este trabalho tem como objetivo apresentar os aspectos matemáticos presentes em
imagens de um tratado renascentista, a fim de estabelecer um percurso histórico que
remete ao uso da perspectiva e seu desenvolvimento, ressaltando a história da matemática
e o mundo das artes visuais. O ensino de conceitos elementares da Geometria Projetiva
pode se dar a partir de relações de interdisciplinaridade entre Matemática e Arte, tendo
como suporte a História da Matemática. A partir da pesquisa bibliográfica pudemos
identificar o tratado Della Pittura, de Leon Battista Alberti (1404-1472) como o início da
sistematização matemática dos conceitos hoje conhecidos como geometria projetiva e
sobre algumas imagens contidas nesse tratado se concentra o nosso olhar.
Apresentaremos algumas referências teóricas sobre a leitura de imagem; as imagens e
seu contexto de produção; o desenvolvimento da geometria projetiva em seus primórdios
e as relações entre história da Matemática, arte e o ensino da geometria projetiva que
podem emergir a partir da leitura dessas imagens, bem como nossas considerações.

Palavras-chave: Geometria Projetiva; História da Matemática na Educação; História


da Matemática nas aulas de Matemática; Matemática na Arte.

INTRODUÇÃO

A ideia para o presente trabalho surgiu no âmbito do Grupo de Estudos em


História da Matemática e Educação Matemática (GHMEM), da Universidade
Estadual de Maringá (UEM), por meio das discussões referentes à leitura de

249
UEM; igorpolho@gmail.com

250
UEM; mv.cardas@hotmail.com

251
UNICESUMAR; marisaraquelmelo@gmail.com

711
imagens e às conexões com a história da Matemática que podem ser estabelecidas
a partir dessas leituras.
Este trabalho tem como objetivo destacar como a leitura de imagens
contidas em um tratado renascentista pode ser utilizado para ressaltar aspectos
matemáticos e históricos do surgimento da Geometria Projetiva.
A fim de justificar nosso trabalho, apresentamos a orientação que é
indicada pelas Diretrizes Curriculares da Educação Básica do Estado do Paraná
(DCE-PR), ao sugerir o tratamento da geometria não-euclidiana no Ensino
Fundamental através das noções de ponto de fuga e linha do horizonte (PARANÁ,
2008).
Além disso, o mesmo documento traz a importância que é dada à História
da Matemática (HM) na prática escolar. Este documento assegura que a “História
Matemática é um elemento orientador na elaboração de atividades, na criação das
situações-problema, na busca de referências para compreender melhor os
conceitos matemáticos”, uma vez que proporciona aos estudantes a compreensão
“da natureza da matemática e sua relevância na vida da humanidade.” (PARANÁ,
2008. p. 66).
A escolha das imagens se justifica a partir de nossas leituras referentes ao
surgimento da geometria projetiva, a partir da indicação de Leon Battista Alberti
(1404-1472) como autor do primeiro tratado que sistematizou matematicamente o
conceito de perspectiva na arte de pintar e desenhar. (HEFEZ, 1985; BOYER,
2012). E, portanto, as imagens as quais nos referimos neste trabalho, tratam-se de
ilustrações contidas no tratado Della pittura, de Leon Battista Alberti. Tivemos
acesso, a partir do portal E-rara no qual são disponibilizadas digitalizações de
impressos dos acervos das bibliotecas suíças desde o século XV, ao tratado Della
architettura Della pittura e Della statua impresso pelo Instituto de Ciências de
Bolonha em 1782, que traz compilados três tratados de Leon Battista Alberti, dentre
eles Della Pittura.
No que tange às nossas observações sobre as imagens, buscamos nos
pautar nas obras de Burke (2017), Santaella (2012) e nas relações entre leitura de
imagens e história da Matemática apontadas por Pereira e Trivizoli (2020).

712
Para o desenvolvimento deste texto, apresentaremos a imagem e seu
contexto de produção; o desenvolvimento da geometria projetiva em seus
primórdios e as relações entre história da Matemática e o ensino da geometria
projetiva que podem emergir a partir da leitura da imagem, bem como nossas
considerações.

AS IMAGENS E SEU CONTEXTO

Antes de apresentarmos as imagens que serão alvo de nossas observações,


é importante ressaltar o sentido polissêmico que a palavra “imagem” possui. E
nesse aspecto, a fim de delinear o nosso entendimento por esse termo,
concordamos com a ideia de “representação visual” tal como descrita por Santaella
(2012), e ainda nesse sentido, conforme assinala a autora “As imagens como
representações visuais diferem de acordo com a finalidade a que se prestam”
(SANTAELLA, 2012, P. 16).
Ainda de acordo com Burke (2017), existem dois pontos basilares para a
leitura de imagens históricas: a análise iconográfica e a análise iconológica. A
primeira diz respeito à interpretação do que se vê na imagem, ou por assim dizer,
reconhecer o que está na imagem, quanto a análise iconológica trata-se de uma
análise do que está intrínseco na imagem: o contexto onde foi produzida, que
“revelam atitudes, básicas de uma nação, um período, uma classe, uma crença
religiosa ou filosófica” uma forma de compreender o mundo (BURKE, 2017. p. 58).
Nesse sentido, entendemos as imagens como representações visuais que
estão inseridas para ilustrar melhor o que Alberti explana no texto, ao passo que
também buscaremos apresentar informações sobre o tratado, seu autor e o
contexto histórico e social no qual estava inserido.
As imagens que apresentamos nas figuras 1 e 2, tratam-se das páginas 292
e 304, contidas no tratado Della Pittura de Leon Battista Alberti, o primeiro a
sistematizar matematicamente os conceitos de geometria projetiva (HEFEZ, 1985;
BOYER, 2012). A partir dessas imagens destacamos dois recortes dos quais

713
discutiremos aspectos relacionados ao conceito que o autor procurou elucidar por
meio das ilustrações, as figuras 3 e 4.
Figura 1: Ilustração - página 292 da obra Della Pittura

Fonte: Alberti (1782)

714
Figura 2: Ilustrações - página 304 da obra Della Pittura

Fonte: Alberti (1782)

715
O tratado Della Pittura é dividido em três livros: Libro Primo, Libro Secondo
e Libro Terzo. De acordo com Zanchetta (2014) a primeira versão foi produzida em
Florença entre 1435 e 1436 escrita em dois idiomas. Primeiro na língua toscana e
depois na língua latina. Segundo Grayson e Sinisgalli (apud) Zanchetta (2014), a
versão toscana é mais “apta para expressar o pensamento do autor” uma vez que
é sua língua materna, já a versão latina “seria um texto mais preciso e esmerado,
por estar na linguagem culta, própria de um discurso dessa natureza”. Zanchetta
(2014) apresenta a tradução comentada do primeiro livro da obra nas duas línguas,
de acordo com o mesmo, o primeiro livro pode ser considerado uma cartilha voltada
ao pintor, com o intuito de lhe instruir a pintar e/ou desenhar.
De acordo com Boyer (2012, p. 207) “Alberti começa com uma discussão
geral dos princípios da redução (em perspectiva), depois descreve um método que
tinha inventado para representar em um ‘plano de figura’ vertical uma coleção de
quadrados em um ‘plano de terra’ horizontal.”
Segundo Ströher (2006) Leon Battista Alberti era o segundo filho de Lorenzo
Alberti, membro de uma rica família de Florença, e de Bianca Fieschi que faleceu
dois anos após o seu nascimento, em 1406. Ele não passou por privações
financeiras, e após a morte do seu pai, em 1421, teve seus estudos garantidos pela
família Alberti.
Ströher (2006) aponta que as contribuições de Alberti na pintura e escultura
são mais teóricas, ao passo que na arquitetura ela passa da teoria à prática. Na
arquitetura Alberti é referência, um dos seus projetos mais conhecidos é da
Catedral de Santo André, em Mântua, Itália.
Todavia, ainda que as contribuições de Alberti na área da pintura tenham
sido teóricas, não podemos deixar de considerá-las, tendo em vista que o período
no qual Alberti viveu, o Renascimento, é marcado pelo retorno ao estudo dos
saberes teóricos da Grécia Antiga. (ROQUE, 2012; SAITO, 2015)

Santaella (2012) refere-se ao período do Renascimento dado por volta de


1300 e 1650. O nome Renascimento, do verbo "renascer", se deu quando os ideais
religiosos da Idade Média na Europa foram substituídos pela apreciação da
natureza e da capacidade humana, inspirados pela cultura greco-romana. Foi um

716
período de grandes mudanças, principalmente devido ao desenvolvimento da
ciência, a valorização e a evolução da medicina, da música, da literatura e das artes
visuais e plásticas, como a arquitetura, escultura, pintura e o desenho.

A autora comenta que uma vez libertos dos valores religiosos da Idade
Média, a arte da Renascença concedeu privilégios pessoais aos artistas e eles
passaram a retratar a natureza e, consequentemente, a evolução da razão e da
matemática. A partir daí, a arte da pintura se soltou dos afrescos e das paredes das
Igrejas, mudou-se para a tela e tornou-se portátil. As obras de arte tornaram-se um
item portátil e precisavam fornecer um local para seu armazenamento,
preservação, manutenção e exposição. Começaram a surgir, naquele período, a
consciência dos museus e das pessoas sobre a necessidade dos documentos
escritos e espaços que reunissem essas artes, e assim começa-se a se constituir
a História da Arte ocidental (SANTAELLA, 2012)

Na pintura, iniciou-se o uso de relações geométricas para expressar o


princípio de uma perspectiva monocular (que determina uma posição fixa para o
observador) para retratar paisagens, elementos da arquitetura e seres humanos.
Os elementos nas pinturas passam a ter uma dimensão coerente e adequada às
proporções e ao uso humano. (CALDAS, 2010; SANTAELLA, 2012; ZANCHETTA,
2014).

O DESENVOLVIMENTO DA GEOMETRIA PROJETIVA

O elemento básico da leitura de pinturas renascentistas é a perspectiva


central, o que leva ao conceito de pintura como janela. Perspectiva segundo o
dicionário online (Oxford Languages) significa "técnica de representação
tridimensional que possibilita a ilusão de espessura e profundidade das figuras".
Essa é uma forma de produzir efeitos visuais tridimensionais, mesmo que a imagem
seja realizada em uma superfície gráfica bidimensional, ou seja, em um plano. Por
este motivo, muitos dispositivos são usados para indicar distância, tamanho e

717
profundidade, tais como: ponto de vista, ponto de fuga, linha de horizonte, linha de
nível de visão,dentre outros.

A invenção e utilização da técnica da perspectiva revolucionou a arte


ocidental. De acordo com CALDAS (2010, p. 05) “da generalização da técnica da
perspectiva a toda a arte ocidental, foi a própria percepção visual e o modo como
nos relacionamos com o espaço que foi profundamente alterado.”. Assim, segundo
muitos historiadores da arte, essa revolução não afetou apenas a arte, mas todo o
modo de entender e ver o mundo no período renascentista.

Vale destacar, conforme assinala Saito (2015) que perspectiva linear não
fazia parte das matemáticas no período medieval, era considerada uma arte
pictórica e começou a ser observada pelos pintores a partir do Renascimento. Até
então, a perspectiva era um ramo de estudo da óptica, inclusive o termo perspectiva
era a tradução da palavra grega optikè. A geometria projetiva seria desenvolvida
com mais intensidade nos finais do século XVII.

De acordo com Hefez (1985), Girard Desargues (1591 - 1661) foi o primeiro
que introduziu o método projetivo na geometria ao tentar sistematizar o trabalho de
Apolônio sobre cônicas. Outra contribuição de Desargues foi a introdução do plano
projetivo real. No entanto, o autor destaca que apesar do trabalho de Desargues
ser apreciado por alguns matemáticos contemporâneos ao seu tempo, ele não foi
totalmente compreendido. De acordo com Eves (2004) o desenvolvimento da
geometria projetiva como um campo de estudo em Matemática só ocorreu no
século XIX com os estudos de Jean Victor Poncelet (1788 - 1867), na Escola
Politécnica de Paris.

É importante observar, que ao analisarmos o desenvolvimento histórico do


conteúdo hoje denominado por Geometria Projetiva, percebemos uma trajetória
cheia de altos e baixos, na maioria das vezes descontínua, uma trajetória na qual
os erros fazem parte processo, e assim deixam evidente que a desenvolvimento
dos conhecimentos matemáticos é fruto de uma construção humana, social e
cultural.

718
Apresentamos, no tópico seguinte, algumas relações que podemos
perceber sobre a geometria projetiva a partir da leitura das imagens do tratado de
Alberti e salientando aspectos que possibilitam uma discussão com alunos do
Ensino Fundamental acerca da história e natureza da Matemática.

RELAÇÕES ENTRE A HISTÓRIA DA MATEMÁTICA E O ENSINO DE


GEOMETRIA PROJETIVA A PARTIR DA LEITURA DAS IMAGENS

Segundo as traduções e observações de Zanchetta (2014), Alberti utilizou


das noções de ponto, reta e plano da Geometria Euclidiana a fim de estabelecer o
que significa sinal, linha e superfície, e desta mesma forma define curvas, círculos,
triângulos, orla etc. Além disso Alberti utiliza a noção de pirâmide visual (ver figura
01, ilustração F.3. e F.6.) como uma adaptação do cone visual proposto por
Euclides em, aproximadamente, 323-283 a.E.C, como os raios da visão que partem
do nosso olho e captam as formas das mais diversas superfícies que podemos ver.
Assim, de acordo com Alberti segundo Zanchetta (2014) a pintura é
interseção da pirâmide visual com a superfície em que se deseja pintar, ou seja,
pintar é por em uma única superfície todas as outras superfícies que desejamos
representar. Com a intenção de preservar na superfície pintada as mesmas
propriedades que são vistas fora da superfície, Alberti ainda continua definindo o
que são superfícies colineares e equidistantes e proporcionalidade.

Superfícies equidistantes são aquelas que preservam a mesma distância


uma das outras e superfícies colineares, são aquelas que uma mesma linha reta
toca igualmente em todas as suas partes. Além disso, a noção de proporcionalidade
é definida quando a razão entre a medida de dois lados ou de dois ângulos de um
triângulo é igual a razão de outro triângulo que não seja o mesmo. Então ambos os
triângulos são ditos proporcionais. Ao estabelecer a ideia da pirâmide visual
projetada na superfície, mesmo que de forma inconsciente, Alberti propõe uma
Geometria que não existem retas paralelas. E, além disso, todas as retas

719
convergem para um único ponto, definido por ele como ponto do infinito.
(ZANCHETTA, 2014).

Uma vez definidas as noções e conceitos básicos da perspectiva, como


proposto por Alberti (1782), o autor então apresenta um modelo sistematizado para
construção da intersecção da pirâmide visual com a superfície, na qual desejamos
retratar o que enxergamos. Visando a compreensão dos leitores de sua obra,
Alberti apresenta as ilustrações F.3. e F.4. (figura 3).

Figura 3: recorte da página 298 da obra Della Pittura

Alberti (1782)

Na ilustração F.3. vemos um quadro (quadrado) que pode ser entendido


como o alcance do que podemos enxergar, a visão panorâmica que temos, quando
olhamos para algum lugar, além disso, o quadro está dividido por uma linha
horizontal, de tal modo que a parte superior do quadro é maior que a inferior, Alberti
chama esta linha de linha do horizonte e sobre ela está posto um ponto no qual
todas as linhas se encontram, esse ponto é denotado por Alberti como ponto do
infinito, no procedimento descrito pelo autor as linhas se originam no ponto do
infinito e se estendem até a parte inferior do quadro, denotado pelo mesmo como

720
linha da terra, essa construção dá origem a um triângulo central, formado por um
número finito de triângulos parecidos, com um vértice comum a todos, o ponto do
infinito.
Na ilustração F.4. Alberti continua com a construção de uma malha sobre o
triângulo central, a malha é construída traçando linhas contidas no retângulo
inferior determinado pelas linhas do infinito e da terra, paralelas à ambas as linhas,
além disso, a distância entres as linhas diminuem à medida que se aproximam do
ponto do infinito formando assim uma malha dentro do triângulo central. Uma vez
traçadas tais linhas obtemos os pontos B, C, D, E, F, G, H e K, a partir de cada
ponto são traçadas outras linhas de tal modo que cada nova linha traçada toca dois
vértices opostos de cada (retângulo) células da malha, obtidos da construção
anterior, feito isso, cada célula da malha dá origem a dois triângulos congruentes.
Vale ressaltar que na ilustração em questão Alberti apresenta apenas o triângulo
central com a malha construída.

Figura 4: recorte da página 304 da obra Della Pittura

Alberti (1782)

721
Na figura 4 temos um recorte do triângulo central da figura 3, nela vemos
dois prismas retangulares, ambos possuem tamanhos diferentes na imagem, no
entanto nos proporciona ilusão de profundidade, como se ambos os prismas
tivessem os mesmo tamanho e apenas estão a uma distância diferente com relação
ao observador, o prisma A está mais próximo do observador ao ponto que o prisma
B está mais distante, é esta percepção que Albert chama de perspectiva, e sua
construção tem o intuito de proporcionar ao pintor um recurso suficiente para a
produção de um desenho ou pintura em perspectiva, perceba que cada prisma está
em uma célula, e ambos os prismas são superfícies colineares, como definido pelo
autor.
Apesar do desenvolvimento da perspectiva na pintura ter iniciado a partir do
século XV com a obra de Alberti, e nos anos seguintes a técnica da perspectiva ter
sido difundida ampliada por outros pintores, a compreensão da existência de uma
nova geometria para além da geometria euclidiana é mais tardia, e mesmo tendo
evidências que indicam o matemático Desargues como precursor da geometria
projetiva, ao final do século XVII, é somente no século XIX que este campo da
Matemática é reconhecido pela comunidade Matemática (CALDAS, 2010; EVES,
2004; SANTAELLA, 2012).
A partir do exposto podemos notar como é sinuoso o percurso traçado pelo
desenvolvimento do conhecimento matemático, e não linear, ao contrário do que
comumente pensamos, portanto, acreditamos que o ensino deste, assim como de
outros conhecimentos matemáticos, não deve ser apresentados aos alunos
dissociados da realidade, tampouco do seu contexto histórico e utilitário.

CONSIDERAÇÕES

Há muitas possibilidades quanto ao desenvolvimento deste conteúdo


matemático, aqui apresentamos a partir da descrição da imagem o contexto
histórico no qual a mesma foi produzida, e deste modo, como esse contexto
contribuiu na amplificação do conhecimento matemático. Portanto, a partir do

722
material aqui apresentado, concluímos que é possível elaborar propostas de ensino
da Matemática, tendo como amparo a própria História da Matemática.
Podemos observar que a matemática atrelada à arte e à pintura utilizou-se
de relações geométricas para expressar o princípio de uma perspectiva para
retratar paisagens de forma mais realista no período renascentista, em que os
elementos nas pinturas passaram a ter uma dimensão coerente e adequada às
proporções e ao uso humano.
Explorar essas conexões com outras áreas de saber, amplia as
potencialidades didáticas que o professor pode desenvolver em sala de aula, além
de destacar o aspecto humano do desenvolvimento matemático, configurando uma
Matemática útil e com significado.

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tradução do primeiro livro. Dissertação de Mestrado apresentada ao programa
de Pós-Graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo,
2014.

724
A HISTÓRIA DA MATEMÁTICA EM DISCIPLINAS DOS CURSOS DE
FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES DE MATEMÁTICA DAS
UNIVERSIDADES FEDERAIS LOCALIZADAS NA REGIÃO CENTRO OESTE
DO BRASIL

Sabrina Helena Bonfim252

RESUMO
A presente pesquisa se dá como recorte do projeto intitulado “A História da Matemática na
formação inicial de professores de matemática nas universidades federais brasileiras”,
financiado pelo CNPq, e teve como objetivo identificar as disciplinas que abordam aspectos
da História da Matemática (HM) presentes nas disciplinas dos cursos presenciais de
Licenciatura em Matemática oferecidos pelas Universidades Federais (UF) localizadas na
região Centro Oeste do Brasil. Nota-se que pesquisas no campo da Educação Matemática
têm indicado a relevância da inclusão da HM no ensino de Matemática, em especial, na
Educação Básica e neste contexto, têm sido realizadas investigações que mostram a
relevância de serem trabalhados aspectos da HM na formação de professores, fato que
motivou esta investigação. Para tanto, realizamos uma busca no e-MEC dos cursos
presenciais de Licenciatura em Matemática que são ofertados por estas universidades e,
assim, identificamos 18 cursos pertencentes a região Centro-Oeste, incluindo o Distrito
Federal. Após esta etapa, localizamos os projetos políticos pedagógicos destes cursos,
com exceção de dois (2) que até o momento de fechamento dos dados não conseguimos
informações. Identificamos, nestes documentos, que 15 cursos preveem disciplinas
específicas da HM (incluímos nestas, a disciplina que trata de Tópicos em HM e HM, na
matriz curricular. Também apuramos que nos cursos analisados encontram-se disciplinas
que apresentam de acordo com sua ementa temáticas relativas a HM, HM no ensino
e História da Ciência. Destas, 6, 8 e 1 cursos respectivamente tiveram estes elementos
identificados em sua ementa. Com base nestes dados podemos afirmar que grande parte
dos cursos analisados preveem em sua matriz curricular pelo menos uma disciplina que
aborda aspectos da HM e a relação entre HM e o ensino de Matemática é presente nas
ementas de disciplinas de 13 cursos.

Palavras-chave: História da Matemática. Formação de Professores. Currículo de


Licenciatura.

INTRODUÇÃO:

252
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). sabrina_helenabonfim@yahoo.com.br

725
Nota-se que pesquisas no campo da Educação Matemática têm indicado a
importância da inclusão da História da Matemática (HM) no ensino de Matemática,
em especial, na Educação Básica e neste contexto, têm sido realizadas
investigações que mostram a relevância de serem trabalhados aspectos da HM na
formação de professores, fato que motivou esta investigação. Neste sentido, a
presente pesquisa se dá como ramificação do projeto intitulado “A História da
Matemática na formação inicial de professores de matemática nas universidades
federais brasileiras”253, financiado pelo CNPq, e teve como objetivo identificar,
utilizando os Projetos Políticos-Pedagógicos (PPP) dos cursos e/ou seus
ementários, as disciplinas que abordam aspectos da HM e das articulações entre
HM e a Educação Matemática, que estão presentes nas disciplinas dos cursos
presenciais de Licenciatura em Matemática oferecidos pelas Universidades
Federais (UF) localizadas na região Centro Oeste do Brasil. O recorte dado ao
Centro-Oeste foi trabalhado por meio de Iniciação Científica254.

Assim, embora as discussões relativas a HM na formação de professores, no


cenário internacional, não seja recente, no Brasil, as contribuições da abordagem
de temáticas referentes a HM na formação de professores de Matemática, as
formas de inserir esta temática na formação de professores e, também, as formas
de preparar o futuro professor para lecionar Matemática na Educação Básica
utilizando a HM, têm sido debatidas desde o final dos anos 1980 (MIGUEL e BRITO,
1996). Desta forma, pensando na HM como contribuição para a formação de
professores, conforme apontado pela literatura investigada na pesquisa maior ao
qual se insere esta investigação, nas últimas décadas, a HM tem assumido
importância nesta formação de professores no Brasil, fato que pode ser identificado
tanto pela produção acadêmica sobre questões relativas a História da Matemática
na formação de professores, quanto pelo aumento da oferta de disciplinas que

253 Projeto de pesquisa que vem sendo realizado em parceria com as profas. Dras. Mariana Feiteiro
Cavalari (UNIFEI), Angélica Raiz Calabria (UNIARARAS) e o prof. Dr. Sergio Roberto Nobre
(UNESP).
254 Iniciação científica intitulada A História da Matemática na formação inicial de professores de

matemática nas universidades federais brasileiras – Um recorte no Centro-Oeste do acadêmico


Paulo Felipe Toro, curso de Matemática-Licenciatura da UFMS (campus Paranaíba/MS).

726
abordam temáticas relativas à HM nos cursos que formam professores de
Matemática em território nacional. Veja por exemplo os apontamentos feitos em
CAVALARI, BONFIM e CALABRIA (2019).

A investigação e os dados iniciais:

A investigação inicial consistiu em identificar os cursos de formação de professores


de Matemática presenciais nas universidades federais da região Centro-Oeste do
Brasil, ou seja, identificar os cursos presenciais de Matemática, modalidade
licenciatura. Com vistas nisso, realizou-se uma busca no site do Ministério da
Educação, disponível em https://emec.mec.gov.br/, utilizando as seguintes guias
de busca para “consulta avançada”: Curso de graduação: Matemática; Gratuidade
do curso: sim; Modalidade: presencial; Grau: Licenciatura; Situação: em atividade.

Assim para a região Centro-Oeste do Brasil (Goiás, Mato Grosso, Mato


Grosso do Sul, Brasília e o Distrito Federal) com base no resultado desta consulta,
identificamos 15 cursos presenciais de Licenciatura em Matemática ofertados por
5 Universidades Federais (UF) instaladas nos respectivos estados, não
contabilizando o curso de Ciências Naturais e Matemática com habilitação em
Matemática ofertado pela UFMT (campus Rondonópolis) que se encontra em
desativação, como segue o quadro:

QUADRO 1: Cursos Presenciais de Licenciatura em Matemática ofertados por UF


localizadas na região Centro-Oeste do Brasil

Universidade - Sigla Cidade- Ano de início (Habilitação)


Estado/Campi
Catalão –GO/Catalão 29/02/1988 (Lic. em Mat.)
Jataí – GO/ Jataí 04/03/1996 (Lic. em Mat.)
Universidade Federal de Goiânia – GO/ 16/03/1964 (Lic. em Mat.)
Goiás –UFG Samambaia
16/03/1964 (ABI – Lic. em Mat.)
Universidade de Brasília Brasília –DF/Darcy 01/03/1962 (Lic. em Mat.)
UNB Ribeiro
01/03/1993 (ABI – Lic. em Mat.)

727
Universidade Federal da Dourados – 10/03/1987 (Lic. em Mat.)
Grande Dourados - MS/Dourados
UFGD
Aquidauana – 10/01/1997 (Lic. em Mat.)
MS/Aquidauana
Universidade Federal de Campo Grande –MS/ 10/03/1981 (Lic. em Mat.)
Mato Grosso do Sul – Campo Grande
UFMS Corumbá – 10/03/1987 (Lic. em Mat.)
MS/Pantanal
Paranaíba – 15/07/2001 (Lic. em Mat.)
MS/Paranaíba
Ponta Porã-MS/Ponta 02/03/2009 (Lic. em Mat.)
Porã
Três Lagoas-MS/Três 10/02/1987 (Lic. em Mat.)
Lagoas
Universidade Federal de Sinop-MT/Sinop 16/01/2006 [Ciências Naturais e Mat. –
Mato Grosso – UFMT habilitação em Mat.]
Cuiabá-MT/Cuiabá 24/10/1985 (Lic. em Mat.)
Rondonópolis- 01/07/1988 (Lic. em Mat.)
MT/Rondonópolis Ciências Naturais e Mat. – Habilitação em
Mat. [Em desativação]
Pontal do Araguaia- 01/09/1987 (Lic. em Mat.)
MT/Pontal do
Araguaia
Fonte: Elaborado pela autora com base em dados do Ministério da Educação – sistema e-MEC.

Pela tabela acima, na região Centro Oeste identificamos cinco universidades


federais que possuem cursos presenciais de graduação que formam licenciados
em Matemática. Estas universidades ofertam 18 destes cursos, sendo dois deles
na modalidade ABI255 e um com certificado em Ciências Naturais e Matemática com
habilitação em Matemática, atualmente em funcionamento. O segundo curso
referente a última especificidade, ou seja, Ciências Naturais e Matemática com
Habilitação em Matemática encontra-se em desativação.

Visando manter o anonimato destas instituições codificou-se os cursos de C1 a


C17, excluindo-se o curso em desativação. Por meio de buscas nas páginas
eletrônicas dos cursos e/ou das universidades e contatos por correio eletrônico,
procurou-se localizar os PPP destes cursos. Localizaram-se 14 PPP e 1 currículo,
sendo que dentre os não encontrados estão: 1 PPP de um curso de Licenciatura e

255ABI: Área Básica de Ingresso – Para graduação em Matemática o estudante após a conclusão
de um conjunto básico de disciplinas realiza a opção por prosseguir em uma opção que lhe dará a
formação sendo está Bacharelado ou Licenciatura.

728
1 PPP de um curso ABI. Desta forma, foram analisados 14 PPP e 1 currículo,
totalizando 15 cursos analisados dos 16 cursos identificados na presente pesquisa.

Após uma cuidadosa leitura destes documentos identificaram-se disciplinas que de


acordo com sua ementa abordavam temáticas relativas a HM, HM no ensino e
História da Educação Matemática. No tocante a última temática, as disciplinas
foram identificadas como no quadro a seguir, entretanto, não será discutido os
dados uma vez que não se constitui escopo da presente pesquisa. As disciplinas
de História da Educação Matemática serão investigadas no projeto maior.

QUADRO 2: Disciplinas de História da Educação Matemática propostos em


ementas de disciplinas dos cursos analisados

Curso Nome da disciplina


C1, C2, C3 História da Educação Matemática
C2 Aspectos históricos e filosóficos do conhecimento matemático
escolarizado
C13 Educação Matemática I
Fonte: Autoria própria com base nos dados obtidos nos PPP dos cursos analisados.

Referente a HM agrupou-se aquelas disciplinas especificas de História da


Matemática, ou seja, história de conteúdos de matemática e as que utilizam HM no
ensino. Estas ultimas, por sua vez, são disciplinas como “Prática de Ensino” e
“Didática da Matemática”, por exemplo, que em sua ementa apresentam elementos
de História da Matemática. Assim sendo, adotou-se a classificação proposta por
MORAES e CAVALARI (2019, p. 130), uma vez que, como mencionado
anteriormente, esta pesquisa trata-se de um recorte da pesquisa maior envolvendo
todos as regiões do Brasil. Assim:

Consideramos como disciplinas que abordam a HM aquelas que


apresentam, de alguma forma, a história de conceitos da
Matemática, mostrando a trajetória do desenvolvimento do
conhecimento matemático ao longo do tempo. Estas, de acordo
com as informações de suas ementas, foram agrupadas em
“Disciplinas específicas de História da Matemática” e disciplinas
que não são específicas de HM, ou seja, disciplinas de
“Matemática”, disciplinas de “Prática de Ensino” e disciplinas sobre
“História da Ciência”. Já as disciplinas que abordavam temáticas
relativas à HM no ensino foram consideradas como aquelas que

729
apresentam elementos voltados à utilização da HM para o ensino
dos conteúdos matemáticos na Educação Básica. Estas foram
agrupadas em disciplinas específicas de “História da Matemática”
e em disciplinas de “Prática de Ensino”. Além disso, elaboramos
considerações sobre a forma que estas disciplinas que abordam
temáticas relativas à HM e à HM no ensino estão inseridas na matriz
curricular dos cursos analisados. (MORAES e CAVALARI, 2019, p.
130)

Desta forma pode-se elaborar um panorama256 de como as temáticas relativas a


HM e HM no ensino tem sido inserida nos cursos de Licenciatura em Matemática
das Universidades Federais localizadas na região Centro-Oeste do Brasil. Dos
cursos analisados, todos preveem disciplinas nas quais, de acordo com suas
ementas são abordadas temáticas relativas à HM. Assim estas disciplinas
encontradas foram específicas de HM, HM no ensino e/ou de Matemática.

No tocante as disciplinas específicas de História da Matemática, que no


entendimento desta investigação concerne as disciplinas que tem foco na História
da Matemática estão previstas em 13 cursos. Observa-se C5 apresenta a disciplina
História da matemática para o ensino de matemática (72h/obrigatória) e que
referente aos cursos C11 e C16 não foi possível ter acesso ao PPP. Dos PPP
analisados, apenas C5 não possui uma disciplina especifica de HM.

QUADRO 3: Disciplinas específicas de História da Matemática

Período Natureza
Código do Carga
Nome da disciplina
Curso Horária
(semestre) (optativa/obrigatória)

C1 História da matemática 32h 1º semestre Obrigatória

256 Destaca-se que esta é a primeira parte da pesquisa que no momento de redação deste artigo
passava a aprofundar as informações obtidas no PPP por meio de questionários destinados aos
coordenadores dos cursos e dos professores que nos anos de 2016 e 2017, haviam lecionado
disciplinas específicas de História da Matemática; disciplinas que abordam a História da Matemática
no Ensino e disciplinas que, embora não fossem específicas de HM, abordavam essa temática.

730
Tópicos em história da A partir do
C2 64h Optativa
matemática 6º semestre

A partir do
História da matemática 64h Optativa
7º semestre
C3
Tópicos em história da A partir do
64h Optativa
matemática 7º semestre

A partir do
C4 História da matemática 64h Optativa
1º semestre

História da matemática
Informação
C5 para o ensino de 72h Obrigatória
indisponível
matemática
Informação
C6 História da matemática 68h Optativa
indisponível

C7 História da matemática 68h 8º semestre Obrigatória

História da matemática 68h 6º semestre Obrigatória

C8
Tópicos em história da A partir do
51h Optativa
matemática 7º semestre

História e filosofia da
68h 8º semestre Obrigatória
matemática
C9
História da matemática no A partir do
68h Optativa
Brasil 7º semestre

História da matemática e
C10 68h 1º semestre Obrigatória
da educação matemática

História da matemática I 45h 5º semestre Obrigatória

C12 História da matemática II 30h 6º semestre Obrigatória

História da matemática III 30h 7º semestre Obrigatória

731
História da matemática IV 30h 8º semestre Obrigatória

História e filosofia da
C13 60h 7º semestre Obrigatória
matemática

C14 História da matemática 60h 3º semestre Obrigatória

História e filosofia da
C15 matemática e da educação 64h 8º semestre Obrigatória
matemática
C17 História da Matemática - - Optativa
Fonte: Autoria própria com base nos dados obtidos nos PPP dos cursos analisados.

Além dos cursos que apresentam disciplinas específicas de HM, identificamos


cursos com disciplinas que apresentam elementos de HM no ensino. Estão estas
relacionadas as áreas de “Matemática”, “Prática de Ensino” e “História da Ciência”,
por exemplo. Classificação esta que nos permitiu o seguinte agrupamento:

QUADRO 4: Disciplinas que não são especificas de HM e apresentam elementos


de HM no ensino.

Agrupamento Curso Nome da disciplina


C3 Didática da Matemática III
C5 História da Matemática para o Ensino de Matemática
Disciplinas relacionadas a C7 Prática de Ensino em Matemática III
“Prática de Ensino” que C8 Curiosidades, jogos e recreações matemáticas
contemplam elementos de C9 Prática de Ensino em Matemática IV
HM no ensino em sua C10 Prática de Ensino em Matemática IV
ementa. C14 Instrumentação para o ensino da Matemática
C15 Laboratório de Ensino de Matemática e Estatística
C2 Geometria III
C4 Álgebra para o Ensino 1, Álgebra para o Ensino 2,
Geometria para o Ensino 1, Geometria para o Ensino 2.
C7 Geometria I
Disciplinas de “Matemática” Cálculo na Educação Básica
que contemplam elementos
de HM em sua ementa. C8 Geometria na Educação Básica

Números Irracionais e Transcendentes


C12 Números e funções

Tópicos especiais de Matemática


C15 Aprendizagem de Estatística no Ensino Fundamental e
Médio

732
Disciplinas de “História da C12 História da Ciência
Ciência”
Fonte: Autoria própria com base nos dados obtidos nos PPP dos cursos analisados.

Com base nas ementas das disciplinas acima selecionadas foi possível construir a
seguinte análise:

QUADRO 5: Tópicos de disciplinas que não são especificas de HM e


apresentam elementos de HM no ensino.

Trecho da ementa Nome da disciplina Curso


A História da Matemática. Didática da Matemática III C3
Discussão e sistematização de
conceitos matemáticos a partir de
problemas da História da
Matemática; Construção de tarefas
desafiadoras a partir da História da História da Matemática para o Ensino de C5
Matemática; Planejamento de uma Matemática
aula a partir de tarefa(s)
contextualizada(s) com base na
História da Matemática.
Fundamentos Teórico-
metodológicos da Matemática no 8º
e 9º Anos do Ensino Fundamental. Prática de Ensino em Matemática III C7
Investigações Matemáticas.
História da Matemática.
Tópicos de obras de Malba Tahan.
Uso de jogos no ensino de
matemática. Problemas curiosos. Curiosidades, jogos e recreações C8
Análise de paradoxos. matemáticas
Divertimentos matemáticos.
Análise das metodologias de
Resolução de Problemas e História
da Matemática visando estudo e Prática de Ensino em Matemática IV C9
produção de materiais ligados à
prática de ensino de conteúdos do
Ensino Básico.
Aplicação das metodologias de
ensino – Resolução de Problemas,
História da Matemática para o Prática de Ensino em Matemática IV C10
ensino, Etnomatemática e
Laboratório de Ensino de
Matemática – nas escolas.
Reflexões sobre o que é
Matemática, a matemática que se
aprendem e a que se ensina, os
objetivos de seu ensino no Ensino
Fundamental e Ensino Médio. Instrumentação para o ensino da Matemática C14
Apresentação de diversos métodos
(resolução de problemas, uso da
História da Matemática, uso de
materiais didáticos e recursos

733
tecnológicos, modelagem
matemática, dentre outros) para o
ensino de Matemática com vistas
ao planejamento de unidades
didáticas. Implementação por meio
de aulas simuladas das aulas
preparadas.
Metodologias de ensino de
matemática: Resolução de
Problemas, História da Matemática,
Modelagem Matemática, Jogos,
Etnomatemática, Tecnologias de Laboratório de Ensino de Matemática e C15
Informação e Comunicação na Estatística
Matemática. Análise, construção e
testagem de materiais didáticos
para o ensino de Matemática e
Estatística. Elementos de prática
para o ensino fundamental e
médio.
Fonte: Autoria própria com base nos dados obtidos nos PPP dos cursos analisados.

Referente as disciplinas específicas de Matemática que possuem elementos de HM


em sua ementa, foi possível identificar:

QUADRO 6: Tópicos de HM abordados em ementas de disciplinas de


“Matemática”

Trecho da ementa Nome da disciplina Curso


Contextos históricos e teóricos da Geometria III C2
admissão da geometria não euclidiana
[...]
Pequena História da Álgebra: Álgebra para o ensino 1
desenvolvimento do conceito de
número, resolução de problemas na C4
antiguidade.
Aspectos Metodológicos para o ensino Álgebra para o ensino 2
da Álgebra no ensino médio: materiais
pedagógicos; resolução de problemas;
história da Matemática; recursos
tecnológicos.
História da Matemática. Geometria para o ensino 1
História da Matemática. Geometria para o ensino 2
Desenvolvimento Histórico da Geometria I C7
Geometria.
Breve história do Cálculo. Cálculo na Educação Básica
Breve Histórico da Geometria. Geometria na Educação Básica
C8
A Ciência da Antiguidade: Astronomia Números e funções C12
e Matemática. [...]
A história da Estatística e do ensino da Aprendizagem de Estatística no Ensino C15
Estatística. Fundamental e Médio
Fonte: Autoria própria com base nos dados obtidos nos PPP dos cursos analisados.

734
No tocante as disciplinas classificadas como “História da Ciência”, observamos:

QUADRO 7: Tópicos de HM abordados em ementas de disciplinas de


“História da Ciência”

Trecho da ementa Nome da disciplina Curso


A constituição das ciências da
natureza como modo de compreender,
explicar e dominar a natureza em
diferentes povos e épocas. A
constituição das ciências moderna
ocidental e seu processo de
disciplinarização: fundamentos e
produção nas Ciências Naturais; Pré-
história; A Ciência da Antiguidade:
Astronomia e Matemática; Ciências História da Ciência C12
dos povos não eurocêntricos: Oriente:
Índia, China; e Américas pré-
colombianas: Maias, Astecas e Incas;
A estruturação do conhecimento na
Grécia Antiga: Matemática,
Astronomia e as Ciências da
Natureza. O reencontro da Alta Idade
Média com a civilização grega na
Baixa Idade Média; O Renascimento:
Anatomia e Arte. A Ciência
Contemporânea; História das Ciências
no Brasil. A Ciência Moderna e
disciplinaridade.
Fonte: Autoria própria com base nos dados obtidos nos PPP dos cursos analisados.

Assim sendo, pode-se concluir no tocante as formas como as temáticas relativas a


HM são abordadas nos cursos analisados:

QUADRO 8: Formas como são abordadas as temáticas relativas a HM nos


cursos analisados conforme a obrigatoriedade da disciplina de HM.

Parte da ementa que trata das formas de como são abordadas Curso
as temáticas relativas a HM nos cursos analisados conforme a
obrigatoriedade da disciplina de HM.

Uma disciplina obrigatória de “História da Matemática”. C1, C5, C7, C8, C9,

C10, C12, C13, C14,


C15

C9

735
Uma disciplina obrigatória de “História da Matemática”, uma *único curso a
disciplina optativa de “História da Matemática no Brasil”, uma apresentar HM no
disciplina obrigatória com elementos de HM no Ensino. Brasil, ainda que
como disciplina
optativa

Uma disciplina obrigatória de “História da Matemática” e pelo menos C7, C8, C12, C15
uma disciplina de Matemática.
Uma disciplina obrigatória de “História da Matemática” e pelo menos C7, C8, C9, C10,
uma disciplina obrigatória com elementos de HM no Ensino. C14, C15
Fonte: Autoria própria com base nos dados obtidos nos PPP dos cursos analisados.

Alguns cursos foram detalhados abaixo devido sua especificidade para realizar a
classificação. No tocante a C12 apresenta uma disciplina obrigatória de “História
da Matemática”; duas disciplinas obrigatórias de Matemática, além de uma
disciplina obrigatória de “História da Ciência”. C7 possui uma disciplina obrigatória
de “História da Matemática”, uma disciplina obrigatória de Matemática e uma
disciplina obrigatória de Prática de Ensino. Em C3 uma disciplina obrigatória de
“História da Matemática”, uma disciplina optativa de “História da Matemática” e uma
disciplina obrigatória de Prática de ensino. Observamos que o curso possui
Licenciatura em Matemática modalidade ABI em turno vespertino e licenciatura em
turno noturno. No período vespertino são ofertadas disciplinas de “História da
Matemática” como obrigatória e “Tópicos de História da Matemática” como optativa,
além de “Didática da Matemática III”, conteúdo relacionado a prática de ensino,
como disciplina obrigatória que apresentam em sua ementa elementos de história
da matemática. O curso C4 também dispõe de curso de Licenciatura em
Matemática nas modalidades ABI (diurno) e licenciatura (noturno). O curso diurno
apresenta a disciplina “História da Matemática” como optativa e uma disciplina
matemática (“Introdução à Álgebra Linear e Geometria Analítica”) cujas ementas
apresentam elementos de história da matemática. O Curso noturno não possui
disciplina específica de “História da Matemática” e os elementos desta temática são
encontrados nas ementas de três disciplinas obrigatórias da grade. São elas:
Álgebra para o ensino 1, Álgebra para o ensino 2 e Geometria para o ensino 1. C5
possui curso de Licenciatura em Matemática ofertados em turno matutino e noturno,
ambos com mesmo PPC e a disciplina “História da Matemática para o Ensino de

736
Matemática” como obrigatória. Observa-se que no PPC anterior ela se chamava
“História da Matemática”. No tocante ao curso C8, este foi o que mais apresentou
disciplinas com elementos de história da matemática em suas ementas. “História
da Matemática” como disciplina obrigatória, além de “Trigonometria e números
complexos” e “Ensino e Aprendizagem em Matemática”. As optativas nas áreas de
Matemática e de Prática de Ensino são: Cálculo na educação básica; Curiosidades,
Jogos e recreações matemáticas; Geometria na Educação Básica; Números
irracionais e transcendentes; Tópicos de História da Matemática.

Assim, referente a região Centro-Oeste do Brasil temos a História da Matemática


presente em disciplinas que são específicas de HM e disciplinas que não são
específicas de HM mas que possuem elementos de HM no Ensino, que conforme
já exposto, puderam ser observadas em disciplinas de “Matemática”, “Prática de
Ensino” e “História da Ciência”. Assim, dos 18 cursos identificados sendo 17 deles
analisados quanto as suas disciplinas obrigatórias e optativas, foi possível observar
que todos (C1, C2, C3, C4, C5, C6, C7, C8, C9, C10, C12, C13, C14, C15, C17) os
cursos analisados apresentam a disciplina especifica de História da Matemática,
sendo estas ofertadas em uma ou outra modalidade. Por outro lado, também
identificamos elementos de HM em disciplinas que não são específicas de HM, o
que nos permitiu a seguinte análise: 6 cursos (C2, C4, C7, C8, C12, C15)
apresentam disciplinas de “Matemática”, 8 cursos (C3, C5, C7, C8, C9, C10, C14,
C15) apresentam disciplinas com elementos de HM no Ensino e 1 curso (C12,)
apresenta a disciplina de “História da Ciência”. Concluímos que, para esta região,
todos os cursos analisados apresentam ao menos uma disciplina que trate
aspectos de HM e que apenas 1 curso (C9) apresenta a disciplina de História da
Matemática no Brasil.

Considerações finais:

Assim, à guisa de conclusão, e ao encontro da pesquisa maior na qual se encontra


inserido este trabalho, indicamos que seria profícuo que a HM pudesse ser

737
abordada nos cursos de formação de professores em algumas disciplinas com o
objetivo de que o licenciando aprendesse Matemática por meio de um viés histórico
e, em pelo menos uma disciplina específica de História da Matemática. Além disto,
é relevante a abordagem de questões relativas a História da Educação Matemática
e a utilização da História de Matemática em sala de aula. Neste caso, entendemos
que a inclusão de tópicos, nos currículos dos cursos de licenciatura, relativos a HM
e as relações entre HM e a Educação Matemática estaria contribuindo, dependendo
da abordagem, para a formação matemática e pedagógica do futuro professor.

Salientamos que no tocante a região Centro-Oeste aqui investigada, os dados nos


permitem identificar que em todos os seus estados e no Distrito Federal há pelo
menos um curso de formação de Professores de Matemática ofertado por
universidades federais que abordem a disciplina de HM em seu currículo,
entretanto, como será publicado pela pesquisa maior, este não é um dado uniforme
em todos os estados do país.

Olhando a frente, diante dos dados e considerações esta pesquisa caminha agora
no tocante a ampliar o questionamento inicial para que aspectos da História da
Matemática e que articulações entre História da Matemática e a Educação
Matemática são contemplados nos cursos de formação de professores de
Matemática oferecidos pelas Universidades Federais brasileiras localizadas na
região Centro Oeste do Brasil?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MORAES, S. R. A.; CAVALARI, M. F. A História da Matemática nos cursos de


Licenciatura em Matemática de Universidades Federais localizadas nos estados
de Minas Gerais. Revista Paranaense de Educação Matemática. v 8, n. 17, 2019.
Disponível em: < http://www.fecilcam.br/revista/index.php/rpem/article/view/2070
>.

CAVALARI, M. F.; BONFIM, S. H.; CALABRIA, A. R. A História da Matemática


nos cursos de formação de professores um mapeamento inicial. Anais XII
Seminário Nacional de História da Matemática realizado na UECE em 2019.

738
MIGUEL, A.; BRITO, A. J.A história da Matemática na formação do professor de
Matemática. Cadernos CEDES. n. 40, p. 47-61, 1996.

TORO, P. F., BONFIM, S. H. A História da Matemática na formação inicial de


professores de matemática nas Universidades Federais brasileiras – um recorte
no Centro-Oeste, Campo Grande, INTEGRA UFMS, 2018, (Apresentação em
Pôster e publicação nos anais do evento).

______. A História da Matemática na formação inicial de professores de


matemática nas Universidades Federais brasileiras – um recorte no Centro-Oeste,
Campo Grande, INTEGRA UFMS - parte da programação científica da 71ª
Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência - SBPC,
2019, (Apresentação em Pôster e publicação nos anais do evento).

739
AL-BIRUNI (973-1050) E O CASO DA LEI DOS SENOS NA TRIGONOMETRIA
TRIANGULAR ESFÉRICA: vislumbrando uma proposta de atividade-
histórica-com-tecnologia direcionada ao ensino superior

Francisco Neto Lima de Souza 257


Giselle de Costa Sousa 258

RESUMO
O presente trabalho se concentra na área de História da Matemática (HM), mais
precisamente a HM do Islã medieval. Buscamos a partir de uma metodologia qualitativa
apresentar uma intenção de pesquisa a ser desenvolvida no contexto do Mestrado
profissional em Ensino de Ciências Naturais e Matemática do Programa de Pós-Graduação
em Ensino de Ciências Naturais e Matemática (PPGECNM) da UFRN. O projeto tem por
objetivo principal realizar um estudo histórico-matemático de uma carta escrita por Al-biruni
(973-1048), a fim de construir um produto educacional, na forma de um caderno de
atividades, que conecte a HM e as Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação
(TDIC) por meio da Investigação Matemática (IM) com o apoio de um software de geometria
dinâmica. No que diz respeito ao conteúdo da carta, ela contém cinco casos da lei dos
senos aplicados a trigonometria esférica. Para análise do referido documento usamos uma
tradução inglesa encontrada no livro Beyruni’ye Armagan publicado em 1974 que também
apresenta a versão digitalizada do documento original em árabe. Como resultados iniciais
apresentamos informações sobre a situação do documento original, fazemos uma
apreciação preliminar do conteúdo da carta, bem como, a apresentação de informações
relativas à versão da tradução do documento histórico base dessa pesquisa.

Palavras-chave: História da Matemática Islâmica. Al-biruni. Trigonometria


Triangular Esférica.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho faz parte de uma pesquisa de mestrado em andamento


do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências Naturais e Matemática
(PPGECNM) da UFRN e está vinculada ao projeto Conexões potenciais entre

257
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). 20121053060294@ufrn.edu.br
258
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). gisellecsousa@hotmail.com

740
História da Matemática e TDIC: aporte para o fomento de atividades-históricas-
com-tecnologia. Se concentra na área de História da Matemática (HM) e, mais
precisamente, na História da Matemática Islâmica Medieval, bem como no apoio
que as Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC) podem fornecer
à compreensão desse conteúdo, aplicado ao contexto da sala de aula com respaldo
na Investigação Matemática (IM) proposta por Ponte, Brocado e Oliveira (2009).
Fundamenta-se ainda nas ponderações de uso da informática na Educação
Matemática como de Borba e Penteado (2007) e sobretudo, nos argumentos de
uso da HM no ensino trazidos, por exemplo, por Miguel e Miorim (2008).
Como bem coloca Scheppler (2006), cuja ideia vai ao encontro com alguns
pressupostos colocados anteriormente por Berggren (1986), é de grande
importância trazer à tona as contruibuições da civilização Islâmica para o
desenvolvimento da Matemática ocidental, bem como entender os percursos
tomados para tal desenvolvimento. Dessa forma, ver-se a contribuição científica
dessa civilização para o desenvolvimento de várias áreas, inclusive, da Matemática.
De fato, a região da penísula arábica, durante a Idade Média, contou com a
contruibuição de muitos islâmicos com um desejo de produzir conhecimento. Entre
eles surge uma personalidade que marca esse cenário, contando com produções
nas áreas de Astronomia, Matemática, Geografia, Religião, Farmacologia e Ciência
em geral (NASR, 1987).
Essa personalidade, nascida em 15 de setembro de 973, nos arredores de
Kath, em uma região adjacente ao Mar de Aral, recebeu o nome Abu Raihan
Muhammad ibn Ahmad Al-Biruni ou, simplesmente, Al-Biruni. Hoje, depois do
reconhecimento de seu trabalho, a cidade onde ele nasceu é chamada de Biruni,
em sua homenagem. Al-Biruni vem de uma família muçulmana xiita, originalmente
do Tajiquistão na Ásia Central a oeste da China (GAFUROV, 1974; SCHEPPLER,
2006).
A matemática desenvolvida por Al-Biruni está principalmente ligada ao
desenvolvimento de uma ferramenta que possibilitasse o estudo de sua principal
área de interesse, a Astronomia, visto ser impossível mapear e rastrear os céus
sem entender matemática. Assim, para começar a entender a Astronomia, ele teve

741
que se tornar especialista em campos como Aritmética, Álgebra e Geometria, o que
o tornou um polímata e deu sua Matemática um caráter experimental e utilitarista
importante dentro do seu vasto trabalho (GAFUROV, 1974; SCHEPPLER, 2006).
Tendo em vista o grande volume de produções do Al-Biruni em várias áreas
do conhecimento, organizamos o um estado da arte dos trabalhos de Al-Biruni.
Parte desse corpus se encontra no trabalho de Souza e Sousa (2018). Desta
varredura preliminar, como posto, chegamos a uma versão inglesa de uma carta
de Al-Biruni para Abû Said. Essa carta trata de uma geometria não-euclidiana, mais
especificamente, a Trigonometria Triangular Esférica (TTE).
As contribuições dos matemáticos islâmicos servem de alicerce para grande
parte da Matemática Ocidental, porém se observa poucos registros desta
contribuição no rol de assuntos da História da Matemática, quando se nota que,
geralmente, não são detalhadas tais contribuições (BERGGREN, 1986). De acordo
com levantamento bibliográfico feito por Souza e Sousa (2018), existe uma
escassez quanto a livros de História da Matemática em português que tratem
dessas contribuições islâmicas para o desenvolvimento da Matemática.
Segundo Scheppler (2006, p. 10, tradução nossa),

para apreciar plenamente a origem e o progresso das artes e das


ciências, devemos explorar a perspectiva histórica para estudar
aqueles que vieram antes e prepararam o caminho para a descoberta
científica futura. As disciplinas matemáticas como a álgebra e a
trigonometria, por exemplo, são fundamentais para cálculos precisos
no campo da astronomia. Ambas as disciplinas se originaram em
terras Muçulmanas, mas sabemos mais sobre os estudiosos da
Renascença que aplicavam as fórmulas do que os estudiosos
muçulmanos que desenvolveu-as, o tempo está maduro para
aumentar a nossa compreensão desta região fundamental do globo.

Nesse contexto, o trabalho em questão propõe trazer à tona parte desta


história, passando a considerar contribuições dos que prepararam o caminho para
avanços da Matemática, sobretudo, a partir dos progressos astronômicos
islâmicos. Como representante deste cenário, Al-Biruni (973-1048) apresenta-se
enquanto uma sugestão. Segundo o site The Muslin Times (apud KENNEDY, E. S.,
1970–80), Al-Biruni era um homem cuja aptidão intelectual era muito diversificada,

742
podendo, por isso, ser considerado um dos grandes pensadores da história, tendo
destaque no desenvolvimento da Matemática Islâmica.
Desse modo, este erudito, exemplifica os avanços no conhecimento humano
e na compreensão do universo e do mundo, nas suas dimensões natural e humana.
A visão de Al-Biruni é indicativo de que o Islã pode inspirar avanços no
conhecimento científico das ciências naturais, humanas e exatas. Até hoje, muitos
de seus livros existentes não foram (totalmente) traduzidos e estudados..
(SCHEPPLER, 2006).
No mais, pensar a Matemática apresentada por Al-Biruni, conjuntamente e
sob a perspectiva das TDIC, via apoio da IM, em prol do ensino-aprendizagem da
Matemática, é um fator de base para a proposta aqui apresentada. Conforme já
salientado, a historicidade aliada às TDIC é uma proposta didática para abordagem
dos conteúdos matemáticos mediante investigação e reconstrução histórica,
possibilitando o entendimento da matemática, como é visto nos trabalhos de
Andrade (2017), Alves (2015) e Oliveira (2014), bem como, Sousa (2020a) e Sousa
(2020b).
Como sinaliza Brasil (2018), é preciso trabalhar as TDIC e a HM em uma
perspectiva conjunta, com o intuito de fornecer uma aprendizagem mais efetiva da
Matemática. Pelo que foi colocado, tem-se um caminho interessante para lançar
um olhar científico e também pedagógico, sobre o tratado escrito por Al-Biruni, a
fim de que ele se torne mais acessível à comunidade científica, sobretudo, para a
comunidade de alunos do meio acadêmico, tendo em vista que é o ambiente onde
esse conhecimento pode ser mais amplamente estudado, particularmente, quanto
a importância na formação inicial de professores de matemática.
Tendo em vista esses anseios, para que a proposta de atividade-histórica-
com-tecnologia apoiada no trabalho de Al-Biruni com a TTE se efetive há
necessidade de realizar uma apreciação histórica do documento, carta, que consta
tal trabalho e em paralelo conhecer Al-Biruni e sua produção (com) o texto. Desse
modo, o presente artigo se destina a apresentar, conforme segue, os primeiros
resultados da análise historiográfica em andamento. Para tanto, na sequência
apontamos os aspectos metodológicos adotados.

743
METODOLOGIA

A presente pesquisa apresenta caráter qualitativo, se respaldando em


elementos que a direcionam para a Pesquisa Bibliográfica (PB). As noções teórico-
metodológicas que embasam esse trabalho justificam a escolha da pesquisa
qualitativa, pois, como coloca Oliveira (2008), a partir dessa abordagem, consegue-
se entender e analisar os objetos de estudos enquanto parte do mundo social de
forma mais crítica. Complementarmente, os elementos da PB se justificam nas
considerações de Martins e Theóphilo (2016) que colocam que a pesquisa
bibliográfica acontece na fase inicial de estudo de algum tema pela junção de
referências que dizem respeito ao assunto pesquisado, apresentando assim,
diversas posições acerca do tema de pesquisa, nisso concorda,
complementarmente Michel (2015) e Gil (2017).
Desse modo, almeja-se adotar o seguinte percurso para que os objetivos
propostos, na pesquisa de mestrado em andamento, sejam alcançados:
1. Ampliar o estado da arte iniciado por Souza e Sousa (2018), a fim de separar
todos os documentos que dizem respeito à biografia e à geometria, mais
especificamente a TTE.
2. Realizar a tradução dos documentos separados em 1, gerando uma versão
em português do que está em língua estrangeira.
3. A partir do levantamento, com a escolha e tradução dos documentos de
interesse, realizar estudos sobre assuntos/fundamentos da pesquisa abordada,
produzindo fichamentos e artigos.
4. Cruzar as informações a partir das fontes disponíveis para o
desenvolvimento da atividade-histórica-com-tecnologia.

744
5. Após conclusão de estudo histórico, usar tais informações em um produto
educacional que articule HM, TDIC via IM tendo como objeto a TTE produzida por
Al-Biruni na carta analisada.
6. Por fim aplicar e analisar o referido produto na formação inicial de
professores de matemática.
Vale salientar que parte desse percurso compõe o presente artigo, ou
seja, no trabalho aqui apresentado fizemos a ampliação do estado da arte,
cruzamos informações sobre o documento, criamos uma versão de tradução e
seguimos no caminho de pensar a atividade-histórica-com-tecnologia. Para tanto,
nos respaldamos no referencial posto sumariamente adiante.

REFERENCIAL TEÓRICO

Este trabalho se vincula a possibilidade de aliança entre HM e TDIC para o


ensino de Matemática, por meio do tratado escrito por Al-Biruni, com o apoio de um
software de geometria dinâmica. Para tanto, privilegia as considerações postas por
Miguel e Miorim (2008), no que diz respeito ao uso da HM no ensino,
complementarmente a perspectiva de incorporação da informática no ensino da
Matemática proposta por Borba e Penteado (2007), levando em consideração ainda
a IM proposta por Ponte, Brocado e Oliveira (2009).
Costa e Sousa (2017), mediante um levantamento feito em anais de eventos
nacionais e internacionais e em banco de teses e dissertações da CAPES, apontam
para a relevância de trabalhos que apresentam a aliança entre HM e TDIC, no
entanto, relatam também a escassez destes com tal direcionamentos. Nesse
sentido, esse artigo ancora-se no que Gomes e Sousa (2020) e Sousa (2020a)
definem como atividades-históricas-com-tecnologia. Esse termo diz respeito a
propostas de atividades que aliam HM e TDIC, por meio da IM, de modo a fazer do
aluno um investigador do problema proposto, de modo, a levar em consideração a
historicidade da problemática proposta e, apoiar-se nas TDIC, podendo fazer
formulação de inferências e conjecturas para resolução dessa problemática. No
mais, os autores complementam que essas atividades são elaboradas com base

745
no uso da HM no ensino de Matemática, com uma abordagem que se aproxima de
temas/episódios/problemas que possam ser tratados por essa ótica.
Assim sendo, o passo inicial parte do estudo histórico, particularmente,
nessa proposta, do documento que consta numa carta de Al-Biruni a Abû Said onde
trata do caso da lei dos senos na Trigonometria Triangular Esférica. Dessa forma,
trazemos adiante os resultados obtidos nessa direção e tendo em vista o anseio de
produção posterior de atividade-histórica-com-tecnologia.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Informações gerais sobre o documento original

O documento em questão é um pequeno tratado de Al-Biruni que traz a


demonstração de cinco casos da lei dos senos na trigonometria esférica. O tratado
original se encontra em uma coleção de manuscritos que se intitula Middle Eastern
Manuscripts Online 1: Pioneer Orientalists e consiste nos manuscritos árabes de
Joseph Justus Scaliger (falecido em 1609), Franciscus Raphelengius (falecido em
1597) e Jacobus Golius (falecido em 1667) que está depositado na Biblioteca da
Universidade de Leiden, na Holanda. Essa coleção é constituída por 267
manuscritos raros, alguns deles, únicos. O em questão tratado (objeto de estudo),
ocupa as páginas 134-136 da coleção e o seu código é 168 Gol. (codex 168), está
escrito em árabe e seu acesso se dá pelo site Brill Online Primary Sources a partir
do pagamento de uma taxa. Após o pagamento, o cliente tem acesso a todas as
obras raras do repositório, em forma de imagens digitalizadas, e tem permissão
para navegar, pesquisar e visualizar o conteúdo, não podendo fazer o download.

Informações sobre documento que consta a versão do tratado analisado

Para a análise, temos a reescrita do tratado original em árabe, uma versão


da tradução em turco e uma outra versão inglesa do tratado. Essas versões

746
juntamente com comentários do autor se encontram no livro Beyruni'ye Armagan
no capítulo intitulado Al Beyruni's Letter on Abu Nasr Mansur's Demonstration of
the Sine Law que ocupa as páginas 183 a 197 (ver figura 01).

FIGURA 01: CAPA DO LIVRO EM QUE SE ENCONTRAM AS TRÊS VERSÕES


DO TRATADO

Fonte: Franz Rosenthal. BEYRUNİ'YE ARMAGAN. Ed. 68. Michigan: Turk Tarih Kurumu
Basımevi, 1974. 301 p.

No documento não há evidências por quem foi feito e em qual época as


traduções foram feitas, no entanto, o autor indica que o manuscrito traduzido está
depositado na universidade de Leiden, sob o códex 168, coincidindo com as
informações postas na sessão anterior de informações do documento original.
Parte desse livro corresponde ao tratado propriamente dito, conforme pode ser
observado no destaque do sumário posto na figura 02 onde se observa o capítulo
correspondente.

747
FIGURA 02: LOCALIZANDO O CAPÍTULO DO TRATADO NO SUMÁRIO
DO LIVRO

Fonte: Franz Rosenthal. BEYRUNİ'YE ARMAGAN. Ed. 68. Michigan: Turk Tarih Kurumu Basımevi,
1974. 301 p.

No que diz respeito as versões do texto, o autor do livro deixa claro que o
manuscrito está desgastado em algumas partes, no entanto, o contexto permite que
palavras e/ou letras sejam adicionadas. As partes ilegíveis se encontram
destacadas entre parágrafos na versão árabe da tradução. Ele ainda acrescenta
que,

O manuscrito é um texto contínuo. Divide em parágrafos, e a


pontuação é toda minha. Eu adicionei pontos de letras
ocasionalmente ausentes no manuscrito e omiti algumas das marcas
diacríticas do texto manuscrito. (ROSENTHAL, 1974, tradução nossa)

Rosenthal (1974) menciona que existem duas alterações feitas com relação
ao manuscrito original. A saber:

748
i) Em quatro lugares a palavra seno está faltando no manuscrito, e não há dúvida de que
não tendo sido deixado de fora por engano. Estes foram adicionados, portanto, para o texto
e inserido em chaves. (ROSENTHAL, 1974, tradução nossa)
ii) Da mesma forma, no final do manuscrito algo como uma linha completa foi ignorada
pelo copista. Isto é bastante óbvio a partir do contexto. (ROSENTHAL, 1974, tradução
nossa)

Tais modificações podem ser observadas na figura 03 a partir de nosso


destaque.

FIGURA 03: MODIFICAÇÕES FEITAS PELO AUTOR NO CONTEÚDO DA


CARTA (I) (P. 198 DO LIVRO)

Fonte: Franz Rosenthal. BEYRUNİ'YE ARMAGAN. Ed. 68. Michigan: Turk Tarih Kurumu Basımevi,
1974. 301 p.

749
De ante mão, apesar de nossa limitação quanto ao árabe, podemos intuir
que as partes destacadas na figura 03 são os senos que Suter (1974) menciona ter
acrescentado, tendo em vista duas evidências conclusivas: a primeira delas é que
as palavras são notadamente as mesmas e não existe em outro parágrafo com tal
demarcação quatro vezes consecutivas na mesma palavra, além disso, uma outra
modificação notada é que a medida que se avança na leitura da tradução o autor
faz referência a um conjunto de figuras (primeira e última marcação em vermelho
da figura 03) criadas por ele, que juntas, ajudam no entendimento das provas
colocadas. Dessa forma, vale apreciar na figura 04 esses outros destaques.

FIGURA 04: MODIFICAÇÕES FEITAS PELO AUTOR NO CONTEÚDO DA


CARTA (II) (P. 199 DO LIVRO)

750
Fonte: Franz Rosenthal. BEYRUNİ'YE ARMAGAN. Ed. 68. Michigan: Turk Tarih Kurumu Basımevi,
1974. 301 p

Considerando as informações preliminares no tocante ao documento em


análise, trazemos na sequência considerações preliminares do documento.

Apreciação preliminar da carta

A carta é escrita pelo Al-Biruni, endereçada a uma pessoa chamada Abû


Said. Com suas palavras, nesta carta, Al-Biruni anuncia trazer à luz certas
contribuições de Abu Nasr Mansur (970-1036) para trigonometria esférica. Esta
contribuição é a prova para a lei dos senos e contém os teoremas cobrindo cinco
casos da lei dos senos na geometria esférica.
Com ênfase a Matemática presente no tratado, as demonstrações usadas
têm forte ligação com a Geometria Euclidiana, de modo a obter demonstrações de
fácil compreensão. Para todos os casos apresentados, é válido que: dado um
̂ 𝒆𝑪
triângulo esférico de vértices 𝑨, 𝑩 e 𝑪, com ângulos internos medindo Â, 𝑩 ̂e
cujos lados opostos medem 𝒂, 𝒃 e 𝒄, respectivamente, então:
𝒔𝒆𝒏 (𝒂) 𝒔𝒆𝒏 (𝒃) 𝒔𝒆𝒏 (𝒄)
= = (𝟏)
𝒔𝒆𝒏(Â) ̂ ) 𝒔𝒆𝒏(𝑪
𝒔𝒆𝒏 (𝑩 ̂)
Nesse sentido, a lei dos senos nos triângulos esféricos relaciona os
comprimentos de arcos da esfera (lados do triângulo esférico) com os ângulos
esféricos, de modo que a razão entre o seno de um desses arcos e o seno do
ângulo esférico imediatamente oposto a ele seja uma constante para os três casos
possíveis. Ao longo do documento, cada um dos cinco casos é verificado
retoricamente e se apresenta seguindo uma estrutura de enunciação do caso
seguido por sua demonstração, apresentando paralelamente, uma figura
correspondente. Pode-se constatar outros aspectos relevantes como influência do
Islã no trabalho de Al-Biruni e seus contemporâneos (saudação no início),
conhecimento em trânsito (conteúdo das correspondências) e suas respectivas
motivações e ligações (interesses astronômicos, conquistas territoriais, entre outros
aspectos). Desse modo, percebe-se uma amostra da contribuição Islâmica

751
Medieval e com o avanço da pesquisa alude-se explorar potencialidades didáticas
desses conhecimentos.
Frente ao exposto, tecemos nossas considerações finais do presente artigo
adiante.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho se propõe apresentar estudos preliminares sobre um tratado


escrito por Al-Biruni, um personagem com contribuições para a História a partir da
Astronomia e da Matemática Islâmica no século XI, por exemplo. Colocamos a
disposição da comunidade acadêmica e aos educadores matemáticos
ponderações iniciais de um estudo que, mesmo em fase inicial, aponta para
contribuições com respeito a HM. De fato, observa-se que o trabalho de Al-Biruni
em questão mostra como o islã pode inspirar avanços no desenvolvimento de
várias áreas do conhecimento humano e na compreensão do universo.

REFERÊNCIAS

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eletrônicas. Dissertação (Mestrado em Ensino de Ciências e Matemática) –
PPGECNM, Natal, 2015.

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em Ensino de Ciências e Matemática) – PPGECNM, Natal, 2017.

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752
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http://basenacionalcomum.mec.gov.br/#/site/inicio. Acesso em: 22 jul. 2018.

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Conjunção entre História da Matemática e Tecnologias de Informação e
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Internacionais de Educação Matemática. Revista Boletim Cearense de
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propostas e desafios. – 1 ed., 2 reimp. – Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

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Mascheroni (1750-1800) em atividades com Geogebra. Dissertação (Mestrado
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754
A MATEMÁTICA PRESENTE NA PEÇA DE ROSVITA DE
GANDERSHEIM

Drielly Cristine Oliveira Passos259

RESUMO
Neste trabalho apresentaremos parte de uma pesquisa em andamento, a qual visa propor
atividades usando a história da matemática como recurso pedagógico. Aqui abordaremos
uma história de vida de Rosvita de Gandersheim, contextualizando o momento histórico de
sua existência, assim como, o local onde viveu. Em seguida traremos a matemática
presente numa das obras de Rosvita, intitulada Sabedoria e, por último, mostraremos uma
das atividades elaboradas para a sala de aula. A metodologia usada nesta pesquisa é de
cunho histórico bibliográfica, a qual nos forneceu subsídios para levar uma obra de fonte
secundária, uma vez que se trata de uma tradução do latim para o português, para a sala
de aula. Concluímos que o uso da história da Matemática no âmbito do ensino nos permite
a reelaboração e organização de abordagens pedagógicas que podem contribuir no
processo de ensino e aprendizagem da Matemática.

Palavras-chave: História da Matemática, Rosvita de Gandersheim, Ensino.

INTRODUÇÃO

Este trabalho tem por objetivo apresentar uma atividade, dividida em três
momentos, que usa a história da matemática como recurso pedagógico. Esta
atividade faz parte de uma pesquisa que se encontra em andamento, a qual trata
da possibilidade do uso da peça de Rosvita de Gandersheim para ensinar critérios
de divisibilidade, par ou ímpar e múltiplos para alunos do 6º ano do ensino
fundamental.
A obra escolhida foi a peça “Sabedoria” que tem por título original Sapientia.
A escolhemos devido ser uma peça que vemos com clareza conceitos matemáticos

259
Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). driellypassos0@gmail.com

755
sendo abordados, diferente de outras obras, da mesma autora, nas quais apresenta
outras questões, como a religiosa por exemplo. Como nosso foco é propor uma
atividade para ensinar matemática aliada a história da matemática, a peça que se
encaixa em nosso objetivo é justamente a mencionada. Para tanto, utilizamos a
tradução do latim para o português da peça “Sabedoria” realizada por Luiz Jean
Lauand em parceria com Prof. Dr Ruy Nunes. Os textos se referem ao contexto
inicial da Idade Média. E encontra-se em Patrologiae Cursus Completus, Series
Latin, uma edição Migne260 da peça que possui um glossário latim, explicando o
significado de diversos temas típicos do século X.
Ao utilizar a peça Sabedoria, buscamos trazer como recurso didático o uso
da história da matemática no ensino, a partir de um resgate histórico realizado pelos
próprios discentes, transformando informações históricas em conhecimento.
A utilização de atividades históricas segundo Mendes (2008) tem por
objetivo dar significado a matemática escolar, pois ele afirma que assim é possível
resgatar, a partir de textos históricos, sejam eles de fontes primárias ou
secundárias, no nosso caso de fontes secundárias e terciárias, o contexto
sociocultural para que propicie uma melhor compreensão da matemática, que o
aluno perceba a evolução da ciência e a compreenda como construção humana. O
uso dessas atividades pressupõe a participação efetiva do aluno na construção de
seu conhecimento em sala de aula e constitui-se como um fator essencial e
predominante no processo de ensino e aprendizagem

Para efetivarmos um ensino-aprendizagem significativo em


matemática, é necessário utilizarmos as atividades históricas,
buscarmos no material histórico existente todas as informações
úteis à condução da nossa ação docente e somente a partir daí
orientar os estudantes à realização de atividades. (MENDES,
2008.p. 41)

É importante perceber que a pesquisa em História segundo Martins (2005,


p.307) requer um estudo aprofundado e, para isso, se faz necessário realizar

260
O nome de Migne está vinculado à edição de duas grandes coleções de textos cristãos, assim
como à publicação de dicionários. Das coleções de textos e obras resta-nos o sua monumental
Patrologia Latina (PL), um conjunto de escritores eclesiásticos latinos que chegou até Inocêncio III
no século XIII.

756
levantamentos bibliográficos, e não é somente verificar trabalhos que descrevem o
conteúdo matemático, como a tradução da obra referida, mas também trabalhos
que trazem o contexto histórico, a educação desse período. Também se torna
importante estudar os documentos oficiais sobre a educação básica, como a Base
Nacional Comum Curricular (BNCC), onde uma de suas competências da
Matemática para o ensino fundamental consiste em:

Reconhecer que a Matemática é uma ciência humana, fruto das


necessidades e preocupações de diferentes culturas, em diferentes
momentos históricos, e é uma ciência viva, que contribui para
solucionar problemas científicos e tecnológicos e para alicerçar
descobertas e construções, inclusive com impactos no mundo do
trabalho (BRASIL, 2017, p. 367)

A História da Matemática pode ser utilizada como uma “ferramenta” em sala


de aula, pois permite ao docente o acesso a uma visão mais ampla e
contextualizada dos temas e, assim, instigue a curiosidade dos discentes. Desta
forma, a história pode contribuir para superar abordagens que por muitas vezes
podem estar descontextualizadas do ensino escolar.
Na atividade que apresentamos, buscamos fazer uso da história da
matemática, em acordo com as orientações de Mendes (2008), para que o
processo de contextualização dos saberes matemáticos possa ser utilizado de
maneira a mostrar que a matemática é uma ciência humana, produzida por pessoas
comuns na tentativa de solucionar problemas cotidianos. O uso da história da
Matemática no âmbito do ensino permite ao docente a reelaboração e organização
de abordagens pedagógicas que podem contribuir no processo de ensino e
aprendizagem.

ROSVITA DE GANDERSHEIM: uma História de vida e um contexto social

Rosvita de Gandersheim nasceu no século X, na Saxônia, sob a Dinastia


Otoniana. Ingressou ainda jovem na abadia de Gandersheim, construída para
abrigar mulheres de origem nobre, cuja escola era dirigida por religiosas

757
beneditinas. Para as jovens mulheres tornar-se canonisa representava a
oportunidade de participar da luta a favor do cristianismo ou de manter uma boa
condição social sem precisar se casar.
Enquanto poucos na Europa sabiam ler, Rosvita escrevia em latim,
conhecia o grego e dominava as disciplinas do currículo carolíngio, formado pelo
“quadrívium”, que reunia aritmética, geometria, música e astronomia, e pelo
“trivium”, lógica, gramática e retórica, relacionadas ao estudo do texto (Regino
2020).
O contexto histórico de Rosvita nos mostra que com a desestruturação do
Império Carolíngio um novo modo de vida alterou o comportamento da família
feudal. Essa alteração trouxe “a preocupação com a formação cultural e intelectual
dos homens, o que despertou nas mulheres a preocupação com a aquisição e a
transmissão de conhecimento” (Bovolim, 2005, p.83).
Bovolim (2005, p.83) afirma ainda que

[...] com as guerras, na ausência dos maridos, elas assumiram a


direção dos feudos e a educação dos filhos. Além dos
ensinamentos religiosos, tornou-se importante o conhecimento
prático e filosófico, que chegavam aos castelos por meio das
mulheres que habitavam os mosteiros e dos clérigos que habitavam
os feudos.

Segundo ORTUÑO ARREGUI (2016, p. 56 apud COSTA, 2017) os


manuscritos de Rosvita de Gandersheim foram descobertos por Conradus Celtis,
em 1494, na Abadia de Saint Emmeram, em Regensburg. A partir desses originais,
foi organizada a primeira impressão de suas obras completas, em 1501, na cidade
de Nuremberg. Descrita por Celtis como “Rara avis”261, Rosvita define a si mesma
como “a voz forte de Gandersheim”.
As obras de Rosvita, escritas em latim, inclui os seguintes tipos de
trabalhos: poemas, narrativas, peças e textos históricos. Suas lendas foram
inspiradas a partir das Sagradas Escrituras, dos Evangelhos apócrifos ou de
histórias de santos. Enquanto as peças de teatro foram redigidas a partir do modelo
do escritor romano Terêncio. Seus trabalhos tratam da vitória da fé e da pureza

261
Traduzido de forma literal do latim para o português como “ave rara.”

758
sobre o poder e a sedução e de comédias morais tais como: Gallicanus (Galicano),
Dulcitius (Dulcício), Callimachus (Calímaco), Abraham (Abraão), Paphnutius
(Pafnúcio) e Sapientia (Sabedoria). COSTA (2017)
Não se sabe se tais esboços dramáticos foram alguma vez representados,
se ela os escreveu apenas como exercício literário, utilizado apenas para a
distração de suas companheiras do convento ou se tiveram um público maior, com
uma encenação propriamente dita.
No entanto, Goulert (2000, p.17 apud Bovolim, 2005, p. 83) afirma que:

Este espaço cultural era governado por mulheres que se ocupavam


das tarefas religiosas e intelectuais. Todas de cultura nobre, elas
possuíam grande poder e responsabilidades administrativas e foi
neste contexto que a canonisa Rosvita preocupou-se em transmitir
aquilo que as mulheres precisavam saber naquele momento.

Sendo assim, percebe – se que há uma intencionalidade em suas obras de


uso no ensino. Além disso, Rosvita deixa marcada em sua dramaturgia, a narrativa
poética e os relatos históricos. Seus escritos fornecem-nos dados importantes para
apreendermos que o conteúdo educacional por ela proposto correspondia às novas
ocupações da mulher no interior dos feudos no período imediatamente posterior ao
Império Carolíngio. Em seus dramas, Rosvita parece tentar demonstrar que, em um
mundo dominado por homens, onde as mulheres são obrigadas a se submeter às
leis patriarcais, a fé cristã pode se tornar uma fonte de coragem, de alimento que
fortalece, diante de enfrentamento tão desigual.

A MATEMÁTICA PRESENTE NA PEÇA DE ROSVITA

A peça “Sabedoria” é composta por nove cenas e 277 falas, no qual trata
da história de Santa Sabedoria e suas três filhas: Fé, Esperança e Caridade.
Segundo Lauand (1986) não foi criado por Rosvita, mas adaptado por ela para o
teatro em comemoração a festa das santas Sabedoria, Fé, Esperança e Caridade
que acontecia no dia 1 de agosto, em forma de relato feito por um contemporâneo
Simeão Metafraste. A obra de Rosvita teve como pontos originais a escolha das

759
idades das filhas em doze, dez e oito, na cena III e nas falas de 30 a 50. Para esse
estudo foi utilizada a tradução da peça “Sapientia” feita por Luiz Jean Lauand
encontrado na obra “patrologiae cursus completus, séries latina” 137, 10451062.
FIGURA 1: Patrologiae cursus completus,137

Fonte: https://archive.org/details/patrologiaecurs49unkngoog

Transcrevendo apenas o trecho da peça262 que traz a matemática,


percebemos que se trata de um diálogo entre Sabedoria e o personagem Imperador
Adriano (76 E.C. – 138 E.C.):

Adr: Quantos anos têm?


Sab: (sussurrando) Agrada-vos, às filhas que perturbe com um
problema aritmético a este tolo?
Fé: Claro, mamãe. Porque nós também ouviremos de bom grado.
Sab: O imperador, se tu perguntas a idade das meninas: Caridade
tem por idade um número deficiente que é permanente par;
Esperança, também um número deficiente, mas parmente ímpar; e
Fé, um número excedente, mas imparmente par.

262
A peça “sabedoria “ na íntegra se encontra na obra de LAUAND, Jean Luiz. Educação, teatro
e matemática medievais. São Paulo: Perspectiva, 1986.

760
Adr: Tal resposta me deixou na mesma: não sei que números são!
Sab: Não admira, pois, tal como respondi, podem ser diversos
números e não uma única resposta.
Adr: Explica de modo mais claro, senão não entendo.
Sab: Caridade já completou 2 olimpíadas; Esperança, 2 lustros; Fé,
3 olimpíadas.
Adr: E por que o número 8, que é 2 olimpíadas, e o 10, que é 2
lustros são números deficientes? E por que o 12 que completa 3
olimpíadas se diz número excedente?
Sab: Porque todo número cuja soma de suas partes (isto é, seus
divisores) dá menor que esse número se chama deficiente, como é
o caso do 8. Pois os divisores de 8 são: sua metade - 4, sua quarta
parte - 2, e sua oitava parte - 1; que somados dão 7. Assim também
o 10, cuja metade é 5; sua quinta parte é 2; e sua décima parte - 1.
A soma das partes do 10 é, portanto, 8, que é menor que 10. Já o
contrário, se diz número excedente, como é o caso do 12. Pois sua
metade é 6; sua terça parte - 4; a quarta parte -3; a sexta parte -2;
e sua duodécima parte -1. Somadas as partes dão 16. Quando,
porém, o número não é excedido, nem inferior a soma de suas
partes, então esse número é chamado perfeito. É o caso de 6, cujas
partes- 3,2,1 somadas dão o próprio 6. Do mesmo modo, o 28, 496
e 8128 também são chamados números perfeitos. (LAUAND, 1986,
p.50-51 )

O problema matemático proposto por Rosvita apresenta-se como um


enigma, que Adriano não soube resolver, por isto, durante a cena, ele afirma “Tal
resposta me deixou na mesma: não sei que números são!”; “Explica de modo mais
claro, senão não entendo”; “E por que o 12 que completa 3 olimpíadas se diz
número excedente? /.../?”; “e o que é 2 lustros são números deficientes? /.../?”
(Lauand, 1986, p. 50-51).
Percebe-se que Rosvita demonstrava o conhecimento que possuía das
Artes Liberais. Os conceitos de matemática desenvolvidos por Rosvita, por meio da
personagem de sua peça, segundo Lauand (1986), foram extraídos do livro de
“Arithmetica” de Boécio (477 E.C. – 524 E. C.), filósofo, político e poeta italiano,
autor da obra "A Consolação da Filosofia", escrita entre 523 e 524, sua obra
influenciou a filosofia da idade média. Traduziu para o latim todos os tratados de
Aristóteles e todos os diálogos de Platão (Frazão, 2018).
Bovolim (2005, p.107) afirma que Rosvita descreveu com clareza os
cálculos de matemática, as diferenças entre números pares e ímpares, perfeitos e
imperfeitos, as potências de base dois, a divisão, adição, multiplicação e a
subtração para que as mulheres do mosteiro pudessem aplicar esses

761
conhecimentos na administração do mesmo, que eram dirigidos por elas, ou em
seus feudos, quando da ausência de seus maridos.
A contribuição das peças de Rosvita nos serve como resgate da educação
no período medieval e nos mostra domínio e conhecimento matemático ao citar
critérios de se obter números perfeitos, além das abordagens conceituais de
divisores, múltiplos e números primos.

UMA POSSIBILIDADE DE USO DA OBRA DE ROSVITA EM SALA DE AULA

Tendo conhecimento do contexto social em que Rosvita viveu e de alguns


dos conceitos aritméticos apresentados por ela em sua obra, pretendemos utilizar
esses conceitos, em acordo com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), para
ensinar matemática usando a história da matemática como recurso pedagógico.
Para tanto, seguiremos o modelo adotado por Mendes (2008), que primeiro
nos impele a definir um nome para cada atividade, nos sugerindo escolher um que
apresente o tema central ou o conteúdo, em seguida nos diz ser importante
definirmos os objetivos da atividade deixando clara a finalidade da mesma, nos
informa também sobre a importância da contextualização da atividade, como
elemento motivador esclarecendo os porquês matemáticos. Ainda nos mostra que
é importante definirmos os materiais a serem utilizados e os procedimentos
metodológicos que orientarão os estudantes no sentido de desenvolverem as
atividades.
Seguindo as orientações dadas e mencionadas, apresentamos uma das
atividades elaboradas envolvendo o uso da História no ensino de matemática em
sala de aula.
1. Atividade em três momentos:
a) Primeiro momento: Mulher? Na Matemática? Que Loucura!!!
b) Segundo Momento: A Idade da Santa!!
c) Terceiro Momento: Mulher, matemática e a Santa, quem é você?
2. Objetivos:
✓ elaborar problemas que envolvam as ideias de múltiplo e de divisor;

762
✓ resolver os problemas propostos;
✓ elaborar enigmas com a idade de cada aluno assim como Sabedoria fez
com a idade de suas filhas.
Habilidades de acordo com a BNCC:

(EF06MA05) Classificar números naturais em primos e compostos,


estabelecer relações entre números, expressas pelos termos “é
múltiplo de”, “é divisor de”, “é fator de”, e estabelecer, por meio de
investigações, critérios de divisibilidade por 2, 3, 4, 5, 6, 8, 9, 10,
100 e 1000.
(EF06MA06) Resolver e elaborar problemas que envolvam as
ideias de múltiplo e de divisor

Conversa com o professor: Caro professor, caso haja disponibilidade de


tecnologia digital como laboratório de informática com acesso à internet, é
importante conduzir os discentes a este local específico e, durante as atividades
de pesquisa que serão solicitadas, dobrar a atenção e o cuidado com o conteúdo
que os discentes acessam. Torna-se imprescindível ensinar aos discentes a
usarem informações de sites confiáveis, de artigos científicos decorrentes de
pesquisas e de evitar sites com fake news. Caso não tenha esses recursos, será
necessário que os alunos anotem em seus cadernos o roteiro de pesquisa que os
guiará, lembrando de os ensinar a efetuar consultas em sites confiáveis e/ou em
artigos com validade científica.
3. Quantidade de aulas: serão necessárias pelo menos duas aulas para cada
momento. Totalizando seis aulas.
4. Conteúdo histórico:
Contexto social do século X. Peça teatral de Rosvita.
5. Material necessário: A peça “Sabedoria” impressa em folhas, coladas no
caderno ou não, caderno para elaborar e anotar os enigmas.
6. Procedimentos metodológicos: o docente irá solicitar primeiramente uma
pesquisa em grupo sobre quem foi Rosvita, qual seu contexto histórico (o que
estava acontecendo nessa época). Depois será realizada a leitura da peça em
sala de aula e, o docente, irá relembrar os conceitos trazidos na peça os
relacionando com o que foi trabalhado em sala.

763
Após a leitura, cada aluno irá elaborar um enigma com a sua idade usando
os conceitos trabalhados e a peça de Rosvita.

Roteiro pensado para ser desenvolvido em sala de aula:


1º momento: Mulher? Na Matemática? Que loucura!!
Nesse momento, o(a) docente pode pedir ao(à) discente que faça uma
pesquisa sobre quem foi Rosvita, quais os conceitos matemáticos usado por ela.
O docente irá elaborar um roteiro de estudo e pesquisa para orientar o aluno. O
roteiro de pesquisa poderá ter a seguinte estrutura:
1. Quem foi Rosvita de Gandersheim?
2. Que período da história ela viveu?
3. O que você pode destacar deste período histórico vivido por Rosvita?
4. Como era a matemática nesse período?
5. Você acredita que a matemática da época de Rosvita tenha mudado ou
continua a mesma? Justifique.
6. Registre o autor de cada texto encontrado e estudado, o título do artigo ou
página consultada, assim como os endereços virtuais (link da página consultada),
o dia e a hora da consulta de cada um.
Além disso, o(a) docente pode retomar alguns conceitos já aprendidos em
aulas anteriores e utilizar esse fato histórico como fonte de contextualização. É
nesse momento do trabalho, que podemos despertar-nos(as) estudantes a sua
curiosidade e espírito investigativo fazendo com que eles adentrem na aventura
do conhecimento, partindo dos aspectos históricos e transportando-os para uma
situação atual.
2º Momento: A Idade da Santa!!!!
Leitura da peça escrita por Rosvita e traduzida por Lauand e Nunes (1986).
Conversa com o(a) professor(a): Ao apresentar a peça para a sala, instigue-
os a se imaginarem no contexto da peça.

1. Você sabia que Rosvita criou peças de teatro? Qual delas apresenta
conceitos matemáticos?

764
2. Agora que você conhece Rosvita, leia a peça “Sabedoria” e destaque os
termos “parmente par”, “parmente ímpar” e indivisibilidade. O que significa cada
um destes termos?
3. Rosvita fala na peça “Sabedoria” que os números parmente par são os
múltiplos de 2; parmente ímpar é o dobro de um número ímpar, considerando
esses termos usados por Rosvita. Responda:
a) Você sabe o que é um múltiplo de um número? Como encontrar múltiplos
de um número? Dê exemplos.
b) O que é um número par? Como encontrar números pares? Dê exemplos.
c) O que é um número ímpar? Como encontrar um número ímpar? Dê
exemplos.
d) O que são divisores? Como encontrar os divisores de um número? Dê
exemplos.
e) Você já ouviu falar de números primos? Como encontrar números primos?
Dê exemplos.

3º Momento: Mulher, matemática e a Santa, quem é você?


Sabedoria propôs um enigma com a idade de suas filhas: Fé, Caridade e
Esperança. O professor solicitará aos estudantes que elaborarem um enigma com
a sua idade, utilizando os conceitos trabalhados na peça “Sabedoria”, além disso,
irá realizar uma pequena auto avaliação do aprendizado.
Conversa com o professor: Incentive os alunos a apresentarem seus
próprios métodos e extrair suas próprias conclusões.

1. Agora que você já conhece Rosvita e sua peça “Sabedoria”, os conceitos


de números pares, ímpares, múltiplos, divisores e números primos, elabore um
enigma semelhante ao que Rosvita escreveu na peça “Sabedoria”. Lembre que na
peça a personagem Sabedoria explica ao Imperador Adriano a idade das suas
filhas. A proposta é que você, e seus amigos, em grupo, façam algo parecido com
suas idades usando a época atual.
2. Quais conceitos aritméticos foram utilizados?

765
3. Você acha que conhecer a história sobre Rosvita, conhecer o Teatro dela e
como era a Matemática dessa época te ajudou a entender os conceitos aritméticos
e elaborar seu enigma? Justifique.

As atividades propostas têm por objetivos envolver os discentes na


realização da pesquisa histórica despertando a curiosidade destes, neste caso em
específico, sobre como foram tratados os números e, como estes foram definidos.
Além disso, trazer a tona como a matemática foi desenvolvida e ensinada ao longo
da história permitindo aos discentes um envolvimento na construção do
conhecimento superando a visão da matemática como algo pronto. Quanto as
habilidades da BNCC a atividade propõe que o aluno aprimore as técnicas para
determinação de divisibilidade e identificar números primos e, poder apresentar aos
alunos algumas soluções instigando-os a avaliar seus próprios cálculos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os conceitos matemáticos apresentados na obra de Rosvita envolveram


estudo de inúmeros matemáticos ao longo da história. O ensino da matemática e
das ciências em geral era predominante nos mosteiros e nos leva a compreender
os propósitos de ensino da época que eram formar monges ou não clericais com
estudo do trivium e quadrivium, pois necessitavam que os monges soubessem
copiar e reproduzir os manuscritos, além de transmitir o cristianismo. No caso da
Rosvita ela utilizou o teatro para transmitir os valores cristãos e o cálculo
matemático do quadrivium como proposta de ensino.
As atividades propostas trazem o desafio de transformar as informações
históricas obtidas a partir das pesquisas dos discentes e propiciar uma melhor
assimilação dos conceitos envolvidos mediante as conexões históricas.
O conhecimento da história facilita o pensamento matemático, propicia
uma visão de produção de conhecimento e permite reflexões tanto ao docente
quanto ao discente de que podem construir seu conhecimento e que a matemática
é um produto de cultura humana e histórica.

766
Portanto, percebe-se que é possível criar atividades a partir do uso da obra
de Rosvita como recurso pedagógico e usando a metodologia da Historia da
Matemática aliada a Base Nacional Curricular Comum. O trabalho continua com
aplicação das atividades na educação básica e a recolha de dados.
Fonte Financiadora: BIC/FAPEMIG

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOVOLIM, Zenaide Zago Campos Polido; OLIVEIRA, Terezinha. Os escritos de
Rosvita de Gandersheim no século X. Disponível em:
¡https://www.yumpu.com/pt/document/view/ escritos-de-rosvita-de-gandersheim-
no-seculo-x-facedufu¿ Acesso em : 26 Fev 2020.

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Consulta Pública. Brasília,


MEC/CONSED/UNDIME, 2015.

COSTA, Marcos Roberto Nunes. Roswita de Gandersheim e o papel psico-


pedagógico da arte nas obras da teatróloga medieval. Disponível em
http://www.revistasisifo.com/2017/11/roswita-de-gandersheim-e-o-papel-
psico.html

LAUAND, Jean Luiz. Educação, teatro e matemática medievais. São Paulo:


Perspectiva, 1986.

LAUAND, Jean Luiz. Estudo Introdutório - a Aritmética de Isidoro de Sevilha e a


Educação Medieval. tradução do original / original Latino. (publicado originalmente
em Signum, Revista da ABREM - Associação Brasileira de Estudos Medievais,
São Paulo, No. 4, 2002. Disponível em:
http://www.hottopos.com/geral/isidorus.htm. Acesso em 30 out 2020

LAUAND, Jean Luiz. Cultura e educação na Idade Média.São Paulo.: Martins


Fontes,1998. – ( Clássicos).

MARTINS, Gilberto Figueiredo. A Sancta Sapientia medieval – enigma e


mistério no teatro cristão de Hrotsvitha de Gandersheim. Revista de Historias
das Religiões – ANPUH. Ano IV, n. 10, p. 69-95, 2011.

MENDES, Iran Abreu. Tendências metodológicas no ensino de matemática.


Belém: EdUFPA, 2008. (Obras completas EDUCIMAT; v.41.

NUNES, Ruy Afonso da Costa. História da Educação na Idade Média. São


Paulo:EPU: Ed.da Universidade de São Paulo, 1979.

767
PATERLINI, R. R., Aritmética dos números inteiros. (Último acesso em
20/09/20).

REGINO, Maria de. Dramaturgia de Rosvita de Gandersheim (Edição em


Português). Edição Kindle. 2020, 215 páginas.

768
A TEMPORALIDADE ENTRE PARECERES E A APRECIAÇÃO DOS PCN
PELO CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO: UMA REFLEXÃO
PERTINENTE

METZ, Lauro Igor263

RESUMO

A investigação tem caráter histórico e sua problemática está relacionada com a elaboração
de pareceres relacionados com a primeira versão dos PCN com o objetivo de entender
como se deu o processo de elaboração de tais documentos na área de matemática no que
se refere a temporalidade de sua estruturação. A pesquisa limita-se a analisar dois
pareceres organizados por profissionais que atuam na educação pública superior do
estado do Paraná revelando suas posições e o tempo estimado em suas elaborações.
Também, fez-se uma análise no parecer emitido pelo Conselho Nacional de Educação a
cerca de tal documento. Apóia-se teórico-metodologicamente em Barros (2017), Chartier
(2002), Ginzburg (1989) e Burke (2008; 2016) no que envolve a relevância e a escrita da
pesquisa histórica e seus procedimentos metodológicos. Os resultados preliminares
revelam que o documento elaborado pelo Ministério da Educação é inovador para a
melhoria da educação pública porém, a escassez de tempo na elaboração de pareceres
e discussões sobre tal documento podem ter afetado qualitativamente a versão final
publicada em 1997.

Palavras-chave: Parâmetros Curriculares Nacionais. Pareceres. Ensino de Matemática.


Formação de professores.

INTRODUÇÃO:

A publicação dos PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) para os dois


primeiros ciclos do Ensino Fundamental no ano de 1997 pelo Ministério da
Educação é um divisor de águas entre a estruturação curricular do ensino de
matemática no Brasil nos primeiros anos escolares e o processo formativo do
professor que atua em tal área. Reflexos de tais circunstâncias repercutiram e

263
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). E-mail: lauroigormetz@gmail.com.

769
repercutem no meio acadêmico até os dias atuais. Apoiando-se em fatos históricos
a problemática da investigação está relacionada com a elaboração de pareceres
por diferentes profissionais em relação a primeira versão dos PCN para os dois
primeiros ciclos da educação básica e tem como objetivo entender como ocorreu o
processo de elaboração de pareceres na área de matemática no que se refere a
temporalidade de sua estruturação. Dentre os objetivos específicos busca-se
entender o processo que precedeu a determinação da organização dos PCN,
verificar a temporalidade que representantes paranaenses vivenciaram para
elaborar pareceres relacionados com o documento que seria publicado
posteriormente pelo Ministério da Educação, colaborar na construção da história da
Educação Matemática brasileira. A investigação apresenta dados parciais de um
tese de doutorado em desenvolvimento que busca descobrir quais foram as
contribuições dos pareceres da área de Matemática elaborados em torno da
primeira versão dos Parâmetros Curriculares Nacionais na constituição dos
saberes profissionais sistematizados em tal documento. O trabalho justifica-se por
colaborar em esclarecimentos de fatos relacionados com o ensino da matemática
e a formação de professores. Trata-se de uma investigação histórica que
fundamenta-se teórico-metodologicamente em Barros (2017), Chartier (2002),
Ginzburg (1989) e Burke (2008; 2016) no que se refere ao entendimento e
procedimentos de uma pesquisa histórica. Metodologicamente foi realizada uma
análise documental em dois pareceres elaborados por professoras representantes
de Instituições de Ensino Superior Paranaense em relação a versão preliminar dos
Parâmetros Curriculares Nacionais dos dois primeiros ciclos do Ensino
Fundamental. O primeiro emitido pela professora Ettiène Cordeiro Guérios
representante do Departamento de Educação da Universidade Federal do Paraná
(UFPR) e outro, elaborado pela professora Regina Maria Pavanello, representante
do Departamento de Teoria e Prática da Educação da Universidade Estadual de
Maringá (UEM). Para a compreensão de argumentos apresentados em tais
pareceres também foi feito um estudo no Parecer No 3/97 emitido pelo Conselho
Nacional de Educação sobre os Parâmetros Curriculares Nacionais.

770
A PESQUISA HISTÓRICA

A história é um campo do saber diversificado em suas potencialidades e


existem diferentes teorias que favorecem a aproximação de processos que
caracterizam a função do historiador. Acreditando que a missão do historiador é
fornecer a sociedade interpretações problematizadas sobre o que de fato
aconteceu em um determinado momento histórico a investigação aproxima-se com
as considerações do papel do historiador proposta por Barros (2017) acreditando
na importância dos fatos e na essencialidade de dar sentido a eles por meio de
interpretações. Assim, o foco da investigação não é de apenas descrever fatos
históricos, a qual considera-se ser uma percepção histórica do senso comum
aquém das expectativas mas sim, buscar compreendê-los. Conforme destaca o
historiador francês Roger Chartier (2002), a função do historiador não é profetizar
a história mas buscar compreender os significados e os efeitos das rupturas
estabelecidas. O trabalho segue os princípios estabelecidos pelo historiador Peter
Burke (2016), o qual apresenta a distinção entre informação e conhecimento.
Destaca que a primeira é algo relativamente cru já, o conhecimento, vem a ser algo
cozido, ou melhor, que teve tempo de ser processado. O autor afirma que processar
significa verificar, classificar, sistematizar e que a sabedoria é o produto final disso
tudo. Para ele, as modificações no presente são responsáveis em motivar os
historiadores a olhar para o passado de novas maneiras e destaca que dentre as
funções sociais de um historiador estaria "ajudar os cidadãos de seu tempo a
enxergar os problemas do presente em uma perspectiva de longo prazo e, dessa
forma, evitar o paroquialismo"(BURKE, 2016, p. 16). Considera-se o termo
paroquialismo pelo autor uma visão limitada das causas e efeitos. Para ele, o
trabalho de construção e entendimento do historiador precisa atentar-se aos
detalhes tanto que, ao explicar a ascensão da micro-história como um novo gênero
histórico na década de 1970, destaca a importância da pesquisa histórica não
empregar apenas métodos quantitativos e descrever tendências gerais

771
evidenciando que é fundamental atentar-se na variedade ou à especificidade das
culturas locais salientando que o historiador precisa interagir com suas fontes no
sentido de criticá-las quanto a sua existência e seus propósitos, não deve tratar
textos e imagens de um certo período como reflexos não problemáticos de seu
tempo (Burke, 2008).
A potencialidade do olhar minucioso caracterizado por Burke (2008) é
firmada pelo historiador italiano Carlo Ginzburg em "O queijo e os vermes" (1996),
na qual a postura do protagonista Menocchio revela que nem sempre a
argumentação é consistente mas necessariamente instiga o pensamento e
também, no trabalho "Sinais raízes de um paradigma indiciário" (1989) o qual
remete o leitor a reflexões a cerca de saberes e conduções metodológicas em
pesquisas da História da Educação Matemática. No que se refere a aspectos
metodológicos o autor destaca por meio de metáforas a importância do historiador
ir em busca das fontes primárias, compreende-se a importância de todo historiador
valorizar e analisar fontes primárias e não deixar ludibriar por impressões frágeis e
manipuladoras. Na atividade de análise de fatos históricos é essencial "examinar
os pormenores mais negligenciáveis, e menos influenciados" (GINZBURG, 1989,
p.144) para descobrir a veracidade e as finalidades do objeto observado. O
historiador necessita se basear em indícios que as vezes são imperceptíveis.

A ORIGEM DOS PCN

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) é um documento publicado


pela Secretaria de Educação Fundamental no ano de 1997 composto por 10
volumes que foram distribuídos gratuitamente para cada educador brasileiro com o
objetivo de servir de subsídios na elaboração dos projetos de cada escola ou seja,
tal documento reforça a importância de que cada escola formule seu projeto
educacional de acordo com suas singularidades. De acordo com Paulo Renato
Souza, ministro da Educação e Desporto da época, tais documentos são úteis às

772
discussões pedagógicas, planejamento, análise material didático e elaboração de
projetos educativos (BRASIL, 1997).

Historicamente, o posicionamento político favorável para a elaboração de tal


documento foi consequência do compromisso assumido por governantes
brasileiros na Conferência Mundial de Educação para Todos que aconteceu em
Jomtien na Tailândia em 1990 convocada pela Organização das Nações Unidas
para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), Fundo das Nações Unidas para
a Infância (UNICEF), Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD) e Banco Mundial, onde o Brasil, em virtude do seu quadro educacional,
comprometeu-se com a melhoria e ampliação de oportunidades educacionais para
crianças e jovens para garantir financiamentos na área(BRASIL, 1997). A
decorrência também incentivou a elaboração do Plano Decenal de Educação
(1993-2003) que trata de diretrizes para a recuperação da escola fundamental e a
avaliação dos sistemas escolares.

De acordo com o volume introdutório dos PCN, o processo de elaboração de


tal documento iniciou a partir de um estudo das propostas curriculares de estados
e municípios realizado pela Fundação Carlos Chagas porém, há controvérsias em
relação a tal posição, fatos ainda em investigação revelam que ambos os
documentos podem ter sido produzidos concomitantemente. O que se tem certeza
é que houve a elaboração de uma versão preliminar dos PCN que foi enviada para
docentes de universidades e demais órgãos representativos para análise de onde
resultaram a elaboração de pareceres. A versão preliminar elaborada passou por
uma processo de discussão entre os anos de 1995 e 1996 o que resultou em
inúmeros encontros regionais com "a participação de professores do ensino
fundamental, técnicos de secretarias municipais e estaduais de educação,
membros de conselhos estaduais de educação, representantes de sindicatos e
entidades ligadas ao magistério"(BRASIL 1997, pág. 17).
Os resultados das análises e discussões em relação a versão preliminar dos
PCN originaram a constituição de pareceres que constituem sugestões de melhoria
e críticas específicas em relação a aspectos teóricos e metodológicos abordados

773
em tal documento e geraram uma série de discussões sobre sua real finalidade.
Dentre os impasses está a capacidade técnica de pessoas envolvidas na sua
elaboração, questões voltadas a competências entre Conselho Nacional de
Educação e o próprio Ministério da Educação, situações envolvendo
posicionamentos de profissionais, Instituições e Entidades Organizacionais sobre a
forma e procedimentos de elaboração, entre outras.

A CONSTITUIÇÃO DOS PARECERES

Baseado nos objetivos propostos a investigação limitou-se a tratar de fatos


históricos relacionados com apenas dois pareceres, um deles elaborado pela
professora Ettiène Cordeiro Guérios da UFPR e outro, elaborado pelo professora
Regina Maria Pavanello da UEM. Para sustentar a interpretação foi realizado uma
análise em parecer emitido pelo Conselho Nacional de Educação em relação aos
PCN.
Professora Ettiène é professora titular na Universidade Federal do Paraná
desde o ano de 1985, graduada em Matemática e Pedagogia é mestre em.
Educação pela Universidade Federal do Paraná e possui doutorado em Educação
Matemática pela Universidade Estadual de Campinas. Na época da elaboração dos
PCN atuava num projeto com o foco no estudo de comportamentos de alunos do
ensino fundamental diante de aplicação de possibilidade metodológica inovadora
em matemática. O parecer solicitado a professora Ettiène foi recebido por meio de
uma circular expedida pelo Ministério da Educação em 02 de fevereiro de 1996 e
enviado a resposta no dia 05 de março de 1996 visto a emergência do processo de
implantação da política curricular em andamento. Dentre várias questões
pertinentes expostas no documento a professora sugere aprimorações no aspecto
metodológico do documento para facilitar seu entendimento pela classe docente.
Destaca também que não está claro no documento o encaminhamento para ciclos
para a superação da fragmentação escolar. Em relação específica a área da

774
matemática evoca que o bloco Tratamento de Informação precisa ser reestruturado
considerando sua incorporação nos demais.
Já, a professora Regina Maria Pavanello, graduada em Matemática, mestre
e doutora pela Universidade Estadual de Campinas, atua desde 1985 como
professora da Universidade Estadual de Maringá. Na época da elaboração dos
PCN era membro representante do Departamento de Teoria e Prática da Educação
no Colegiado do Curso de Matemática e coordenava um projeto financiado pela
Instituição que tinha como objetivo investigar as dificuldades dos alunos das séries
iniciais do ensino fundamental na resolução de situações problema que envolvem
noções geométricas. A solicitação da elaboração de um parecer técnico sob
responsabilidade da professora Pavanello foi endereçado a Fundação
Universidade de Maringá em 13 de julho de 1996. No corpo do mesmo a autora
descreve que houve apenas 10 dias para a realização de tal tarefa o que impediu
um trabalho aprofundado.

FIGURA 1: Protocolo de Controle de Documentos do MEC

Fonte: Pavanello, 1996.

Pavanello descreve no parecer que o PCN é um marco da educação


brasileira por recolocar discussões para a qualidade de ensino da escola pública
porém, alerta, que por si só, ele será insuficiente para transformações em virtude
na necessidade explícita de melhorias nas condições do trabalho do professor. Em

775
específico a área de matemática sugere que se evidencie nas orientações didáticas
a existência de diferentes maneiras de resolver um mesmo problema para que os
docentes não confundam tais estratégias metodológicas.
No parecer no. 3/97, emitido pelo Conselho Nacional de Educação, verificou-
se que o então ministro da educação da época, Paulo Renato de Souza, solicitou
a apreciação do documento intitulado Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) -
versão agosto 1996 no dia 10 de setembro de 1996 e na sessão realizada em 12
de março de 1997 a decisão da Câmara da Educação Básica coordenada pelo
presidente - conselheiro Carlos Roberto Jamil Cury acompanhou o relatório
elaborado pelo relatores/conselheiros Edla de Araújo Lira Soares, Fábio Luiz
Marinho Aidar, Hermengarda Alves Ludke, Regina Alcântara de Assis no sentido
favorável pelo documento. Dentre o posicionamento dos conselheiros destaca-se
que o PCN visa a melhoria da qualidade do ensino fundamental e o
desenvolvimento profissional do professor porém, trata-se de uma proposição
pedagógica sem caráter obrigatório. O documento evidencia a ciência dos
conselheiros que no final de 1995, antes da constituição do CNE, a Secretaria de
Educação Fundamental já havia divulgado a primeira versão dos PCN elaborada
por equipes contratadas pelo MEC destacando que aquele Conselho acompanhara
o movimento em torno dos PCN desde março de 1996 antes de ser oficialmente
convidado a fazê-lo pelo ministro da educação. Revela-se também que
conselheiros já tinham acesso a versão preliminar dos documentos por terem sido
convidados a emitir pareceres na qualidade de consultores. No âmbito da
aproximação entre CNE e professores realizaram-se seminários regionais na
região nordeste, centro-oeste, sudeste e norte do país. Na região sul não houve o
seminário regional com a justificativa que na região haviam sido promovidas
reuniões pelo MEC e pela SEE para o mesmo fim.

CONSIDERAÇÕES:

Dentro do contexto analisado percebe-se a existência de diferentes tensões


em torno da elaboração dos PCN relacionadas a aspectos educacionais, políticos

776
e econômicos, como também a pressão internacional em relação a elaboração de
tais documentos. As análises dos documentos elaborados pelas professoras
especialistas revelam que o parecer emitido pela representante da UFPR foi
elaborado em apenas 31 dias e o parecer emitido por representante da UEM foi
organizado em apenas 10 dias. Em ambos os Pareceres não é possível identificar
se houve encontros com outros profissionais da área ou discussões com a
comunidade em suas elaborações como destaca a versão introdutória dos PCN. O
Parecer n. 3/97 revela que houve uma aceleração no envio da versão final
elaborada pelo MEC ao CNE ao verificar, que a versão final foi elaborada a menos
de 60 dias de recebido do Parecer emitido pela professora Pavanello. Diante da
revelação dos fatos conclui-se que tal documento tem sua relevância na
organização curricular do ensino de matemática nas primeiras séries da Educação
Básica e na formação de professores que ensinam matemática mas, que a
escassez de tempo prejudicou a qualidade dos pareceres elaborados pelas duas
especialistas e coloca-se em questão se os pareceres produzidos foram ou não
considerados em discussões na elaboração da versão final publicada dos PCN.

REFERÊNCIAS:

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BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Parecer Nº 3/97 - Os Parâmetros


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777
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__________ O que é História do Conhecimento. Trad. Claudia Freire. São


Paulo: Editora Unesp, 2016.

CHARTIER, Roger. Os Desafios da Escrita. Trad. de Fúlvia M. L. Moretto. São


Paulo: Editora UNESP, 2002.

GUÈRIOS, E. C. Parecer técnico da versão preliminar dos PCN. Maringá, 13


de jul. 1996. Disponível em arquivo no centro de documentação do GHEMAT.

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%20indici%C3%A1rio.%20In%20_____.%20Mitos%2C%20Emblemas%20e%20Si
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PAVANELLO, R. M. Parecer técnico da versão preliminar dos PCN. Curitiba,


05 de mar. de 1996. Disponível em arquivo no centro de documentação do
GHEMAT.

778
ELEMENTOS PARA UM TRATAMENTO DIDÁTICO SOBRE A DESCRIÇÃO DO
INSTRUMENTO JACENTE NO PLANO264

Francisco Wagner Soares Oliveira265

RESUMO
O esforço dedicado neste estudo está atrelado a proposta de construção de interface entre
história e ensino de matemática, sob uma perspectiva historiográfica atualizada, em
particular, a etapa de tratamento didático do texto, vislumbrando uma possível
incorporação do instrumento jacente no plano em uma atividade em sala de aula de
matemática. Especificamente, o objetivo com esse trabalho é apresentar elementos para
favorecer um tratamento didático sobre o texto de descrição do instrumento jacente no
plano. Para tanto, como forma de sustentar/guiar metodologicamente a pesquisa é
assumido um estudo do tipo qualitativo documental e bibliográfico. Aqui, os excertos em
que Pedro Nunes descreve o aparato são observados em De arte atqui ratione navigandi
(2008). Dentre os temas incorporados no texto de descrição do instrumento jacente no
plano, notam-se Astronomia, Matemática e Navegação, entre outros que circulavam no
século XVI. Também se pode notar a existência de alguns termos não mais usuais na
modernidade. Diante desses fatos, são apresentados elementos que ajudam a
compreender o texto de descrição do instrumento jacente no plano.

Palavras-chave: Tratamento didático. Instrumento jacente no plano. Interface entre


história e ensino da matemática.

INTRODUÇÃO

A proposta de construção de interface entre história e ensino de


matemática aqui destacada, tem sido defendida por Saito e Dias (2013), Saito
(2016a, 2016b) e Pereira e Saito (2018, 2019). Segundo esses autores, faz-se
necessário realizar dois momentos: “o movimento do pensamento na formação do

264
O presente trabalho tem relação com a pesquisa de mestrado de Oliveira (2019), a qual teve como orientadora a
professora Ana Carolina Costa Pereira - Universidade Estadual do Ceará (UECE). E-mail: carolina.pereira@uece.br.
265
Grupo de Pesquisa em Educação e História da Matemática (GPEHM/UECE). E-mail:franciscowagner2007@gmail.com.

779
conceito matemático” e o “contexto no qual os conceitos matemáticos foram
desenvolvidos” (SAITO, 2016a, 2016b; SAITO, DIAS, 2013).
No processo de construção da interface não existe uma ordem pré-
estabelecida para o desenvolvimento desses movimentos, pois se entende que o
pesquisador pode conduzir o estudo a partir de suas necessidades e/ou
concepções. Para o caso em que o estudioso seja um educador matemático, as
informações da malha histórica possibilitaram estabelecer um diálogo entre história
e ensino. Dessa conversa entre as áreas vão emergir algumas questões, a
exemplo, epistemológicas e matemáticas (conceituais), as quais podem se
apresentar como potencialmente didáticas ou pedagógicas para o ensino de
matemática (PEREIRA, SAITO, 2019).
O diálogo dessas questões na interface, “[...] fazem emergir um novo objeto
que, retirado da malha histórica, é orientado para o ensino de matemática”
(PEREIRA, SAITO, 2019, p. 5). Diante dele, o educador poderá propor atividades
para trabalho com estudantes, as quais busquem “[...] refletir o processo da
produção do conhecimento que, dependendo da intencionalidade do educador,
poderá ser orientada para diferentes propostas de ensino” (SAITO, DIAS, 2013, p.
11).
Conforme Saito e Dias (2013) a proposta de atividade deve contemplar três
etapas inter-relacionadas, são elas: intencionalidade e plano de ação; tratamento
didático; e desenvolvimento. Como o foco nesse estudo é a etapa de tratamento
didático, deve-se ter em conta que quando aqui se referir a tratamento didático,
cabe destacar que se está falando de todo o processo de decodificação do:

[...] texto de acordo com os propósitos didáticos sem invadir o texto.


Assim, o estudante pode, minimamente, apreender que as formas
de expressão não são fixas. A língua e as formas de expressão de
um conhecimento variam e mostram aspectos do caráter histórico
da produção de conhecimento. Além disso, a organização das
ideias no que se refere aos conceitos matemáticos não é
propriamente didática, como em livros didáticos. Ela reflete um
contexto histórico, social e cultural que permite ao estudante
identificar a necessidade do conhecimento matemático, bem como
sua relação com outros conhecimentos, como das artes, da Física,
da Química, da linguagem etc., como, por exemplo, os refletidos

780
nas imagens, no material para confecção do instrumento, nos
elementos discursivos, etc (SAITO; DIAS, 2011, p. 26).

Na prática, faz parte desse tratamento didático, a tradução e organização


do texto, no sentido de:

[...] tornar seu conteúdo acessível ao público-alvo da atividade. Para


tanto será necessário atentar para os aspectos internos do texto, tais
como as expressões, os nomes de objetos, as imagens, entre outros,
que possam impedir o leitor de compreendê-lo minimamente. Muitos
desses aspectos podem ser esclarecidos com notas de rodapé ou,
simplesmente, mudando-se o termo ou a expressão se for o caso
(SAITO; PEREIRA, 2019, p. 69).

Nesse sentido, entende-se que o tratamento didático, trata-se de todo o


processo de seleção, tradução e organização das partes do texto a serem postas à
disposição dos alunos em sala de aula. Ele se faz necessário, visto que é
responsável por favorecer a compreensão do texto por parte dos estudantes, em
consequência possibilita a obtenção das intenções didáticas, objetivos da aula ou
pesquisa.
Aqui, dedica-se a apresentar elementos para favorecer um tratamento
didático sobre o texto de descrição do instrumento jacente no plano. Esse esforço
se justifica pelo fato de que a compreensão dos conceitos geométricos que estão
sintetizados no aparato, pode favorecer o ensino de matemática, seja na formação
inicial de professores ou mesmo na educação básica (OLIVEIRA, 2019).
Quanto a abordagem metodológica, o tipo qualitativo documental, entra em
cena, visto que se trata de um “[...] exame de materiais de natureza diversa, que
ainda não receberam um tratamento analítico, ou que podem ser reexaminados,
buscando-se novas e/ ou interpretações complementares (GODOY, 1995, p. 21-
22). Já a abordagem bibliográfica, é assumida como forma de “[...] colocar o
pesquisador em contato direto com tudo o que foi escrito, dito ou filmado sobre
determinado assunto, inclusive conferências seguidas de debates que tenham sido
transcritos por alguma forma, quer publicadas, quer gravadas” (MARCONI;
LAKATOS, 2003, p. 183).

781
O TEXTO DE DESCRIÇÃO DO INSTRUMENTO JACENTE NO PLANO

O estudo do instrumento jacente no plano, é feito a partir da obra De arte


atque ratione nauigandi, título expresso no frontispício, essa obra, trata-se de uma
edição moderna da De arte atque ratione nauigandi, de 1573. Nessa publicação de
2008, têm-se: o texto do século XVI em Latim, a tradução para o Português e ainda
anotações sequências sobre seu conteúdo.
A descrição do instrumento jacente no plano, encontra-se no segundo livro,
sobre as regras e os instrumentos para descobrir as aparências das coisas, tanto
marítimas como celestes, partindo das ciências matemáticas, de Pedro Nunes, de
Alcácer do Sal, em particular no sexto capítulo, sobre os instrumentos com que se
tomam as alturas e as distâncias dos astros. Pedro Nunes expõe:
A altura do Sol pode tomar-se não só com instrumentos erectis
sobre o plano do horizonte como também usando instrumentos que
estão jacentes, paralelos a esse plano. Divida-se, então, uma tábua
circular abcd em 360 graus, como é costume, colocando-a paralela
ao horizonte e fabrique-se, num material duro, um triângulo
rectângulo e isósceles fgh, de modo que os lados fg e gh façam um
ângulo recto e sejam iguais ao semidiâmetro do círculo traçado.
Coloque-se então esse triângulo perpendicularmente à
tábua circular, de tal modo que
o lado gh se ajuste
perfeitamente a ae,
semidiâmetro do círculo, isto é,
que fique g com a, e h com e;
por conseguinte o ponto f ficará
para cima. Coloque-se também
um estilete perpendicularmente
ao plano, em qualquer ponto do
diâmetro bd.
Quando se quiser achar a altura
do Sol acima do horizonte,
rodar-se-á o instrumento até
que a sombra do estilete se
projecte sobre a recta bd. Então,
a sombra do lado fh, ou fe, no
quadrante ab, indicará a altura
procurada, calculada a partir do
ponto b na direcção de a. A
restante parte do quadrante até
a será a distância entre o Sol e
o Zénite.

782
A demonstração é a seguinte: Imagine-se que a superfície do
círculo abcd, que está paralela ao horizonte, é prolongada para
o lado em que as sombras se projectam, e seja o triângulo ake
a sombra do triângulo rectângulo afe, perpendicular a esse plano
e projectada no mesmo plano; que a recta af projecte a sombra
ak, e seja ek a sombra da recta ef, cortando 1 o quadrante ab.
Visto que os raios solares à superfície da terra são tidos como
paralelos, a linha recta ak e a sombra do estilete projectada na
reta eb serão paralelas. Sabemos que o ângulo aeb é recto;
portanto será recto o ângulo eak, assim como é recto eaf, e por
consequência será recto o ângulo fak, pela terceira definição do
livro 11º de Euclides. Portanto, nos dois triângulos ake e afk,
como o lado ae de um é igual ao lado af do outro, e ak é lado
comum, os dois ângulos contidos pelos lados iguais são iguais,
ou seja rectos, e por isso os dois ângulos afk e aek serão iguais
entre si pela quarta proposição do primeiro livro de Euclides. Por
outro lado, o ângulo afk é oposto ao ângulo de vértice em f que
subtende o arco da distância entre o Sol e o zénite, pelo que o
ângulo aek subtenderá de modo idêntico o arco a1 no quadrante
ab. O restante b1 será semelhante ao arco da altura do Sol
acima do horizonte, que era o que se pretendia demonstrar.
A partir desta demonstração pode ver-se, se este tipo de
instrumento tiver forma quadrada, de modo a que nele se possa
traçar a recta ak tangente ao círculo no ponto a, não será
necessário um estilete ou uma haste cuja sombra se projecte na
reta bd. Basta rodar o próprio instrumento até que a sombra da
recta af se projecte sobre a recta ak, pois assim a sombra da
recta ef indicará o arco da altura do Sol acima do horizonte. Se
se duplicarem os lados do triângulo fgh, de maneira a que o lado
gh seja igual ao diâmetro ac e se ajuste perfeitamente a ele,
poder-se-á dividir o semicírculo abc em noventa partes iguais e
então os graus da altura do Sol serão duplamente maiores.
Se o instrumento assim construído for colocado
perpendicularmente ao plano do horizonte, e posto diante do Sol
de maneira que a sombra da recta af, que já não será recta, mas
versa, se projecte na reta ak, será a1 o arco da altura do Sol
acima do horizonte, e o restante b1 será o arco da distância entre
o Sol e o zénite. Por esta razão, a sombra recta e a versa
permutam-se, por forma que, tomadas duas alturas do Sol que
perfaçam 90 graus, será tanta a sombra recta de um mesmo
gnómon, para uma desta alturas, quando a versa que
corresponde à outra. Para uma mesma altura do Sol acima do
horizonte, quer os gnómones sejam iguais, quer desiguais, a
sombra recta estará em relação ao seu gnómon como qualquer
outro [gnómon] estará em relação à sua sombra versa. A
demonstração disto é fácil, pela quarta proposição do sexto livro
de Euclides. Portanto, pela regra usual das proporções,

783
conhecereis a sombra versa a partir da recta e, por sua vez, a
recta partir da versa (NUNES, 2008, p. 358-360).

Essa descrição expõe elementos da construção e do uso do instrumento


jacente no plano. Sobre a fabricação, ver-se que o aparato pode ser construído
tanto em uma tábua circular, como em uma tábua quadra, sobre elas, Oliveira
(2019) expõe e discute as possíveis configurações que o instrumento pode
receber. Em relação ao uso, verifica-se que a função do aparato é determinar a
altura do Sol acima do horizonte.
O estudo da construção e/ ou do uso do instrumento jacente no plano,
abre espaço para mobilizar vários conhecimentos geométricos, como reta
tangente, semelhança de triângulos, perpendicularidade, construções
geométricas, paralelismo entre planos, entre outros (OLIVEIRA, 2019). Para
fomentar a elucidação e discussões desses conceitos, na sequência, busca-se
apresentar elementos para favorecer um tratamento didático sobre o texto de
descrição do aparato.

ELEMENTOS PARA FAVORECER UM TRATAMENTO DIDÁTICO DO TEXTO

Um dos primeiros elementos, que chama atenção na descrição feita por


Pedro Nunes, refere-se à instrução de dividir uma tábua circular em 360 partes
como é costume. A omissão dessa tradição, possivelmente repousa no fato de
que [...] essa informação não era necessária, pois seria um conhecimento tácito
dos artesãos da época, bem como de outros interlocutores” (DIAS; SAITO, 2011,
p. 8). Nesse sentido, nota-se que Nunes (2008) faz apenas a indicação do
costume, haja visto o público vislumbrado para seu texto já saber como proceder
para a repartição da tábua circular.
Uma das referências que trazem indícios desse costume elucidado por
Nunes (2008) é uma Arte de Navegar, publicada em 1606 por Simão de Oliveira
(OLIVEIRA, 2019; OLIVEIRA, PEREIRA, 2020). O exposto nesse tratado, ilustra

784
alguns elementos da construção geométrica, por exemplo, para a divisão de um
quadrante, instrui que, “divida-se cada quadrante superior em 3. Partes iguaes,
cada hūa das quaes se repartirá em outras 3. & seraõ 9. & destas cada hūa pelo
meyo sayraõ 18. Que divididas cada hūa em 5. Ficará o quadrãte dividido em 90
(OLIVEIRA, 1606, p. 55).
Em seu trabalho de dissertação, Oliveira (2019) traz uma discussão
entorno dos conhecimentos geométricos mobilizados no decorrer dos
procedimentos de construção indicados por Simão de Oliveira em sua Arte de
Navegar. Ainda sobre o referido costume, Oliveira e Pereira (2020) expõem
alguns indícios e informações em torno do contexto.
Da descrição do instrumento jacente no plano, ainda merece atenção o
significado de alguns termos. É preferível que se busque significado para eles
no próprio texto em estudo, em fontes secundárias do autor ou em último caso
em literatura secundária. Horizonte, por exemplo, conforme expresso em fonte
secundária, Tratado da Sphera Nunes (2014), pode ser definido como “[...] o
círculo maior que separa a parte visível do mundo da que se não ver, pois um
hemisfério está acima da terra, o outro debaixo da terra, sendo um mesmo
hemisfério e metade da esfera” (NUNES, 2014, p. 213).
A função do instrumento jacente no plano é fornecer a “altura” do Sol
acima do horizonte, à luz do próprio texto, entende-se que esse termo técnico,
nada mais é do que o ângulo entre o horizonte e onde está o Sol. É possível
definir a altura dessa forma, visto que ela é dada por meio de um arco formado
na circunferência graduada sobre a tábua do aparato.
Dentre as partes do aparato, tem-se a instrução de se colocar um
estilete. Segundo Figueiredo (1913), esse termo está a se referir a um aparato
de aço, fino e pontiagudo. De forma similar, também se pode ouvir falar em estilo,
o qual, em termo antigo, é definido como um “ponteiro ou pequeno instrumento,
com que os antigos escreviam em tábuas enceradas (Lat. stilus)” (Figueiredo,
1913, p. 820). Na modernidade, compreende-se que seria parecido com um
prego (OLIVEIRA, 2019).

785
Outro termo que merece destaque é a palavra zênite, que pode ser
definido como “[...] o ponto mais alto da esfera celeste, correspondente à
extremidade superior de uma linha imaginária que se projeta na vertical acima
da cabeça de um observador” (OLIVEIRA, 2019, p. 53).
Também carece de uma definição os termos, sombra reta e sombra
versa. Sobre eles cabe destacar que:
A definição de sombra recta (também denominada por vezes de
direta, ou tendida) e sombra versa (às vezes também chamada
diversa, ou conversa), pode recolher-se das notas de aulas, por
um professor anónimo do século XVII: ‹‹Sombra direita ou
estendida se chama toda a que lança alguma cousa alevantada a
ângulos rectos sobre a superfície do orizonte ou de qualquer plano
a ela paralelo como seria a sombra de huma cana[?] fabricada a
perpendiculo, ou de corpo semelhante. Sombra diversa he a que
faz qualquer corpo paralelo ao orizonte no plano onde ele esta
posto que he perpendicular ao mesmo orizonte como he a sombra
de hum estilo pegado na parede a ângulos rectos›› (LEITÃO, 2008,
p. 689).

Para favorecer a compreensão acerca desses tipos de sombras e dos


procedimentos para uso do instrumento jacente no plano, cabe ainda destacar o
termo gnómon. A literatura secundária aponta que um gnómon é um “ponteiro
ou qualquer instrumento, que marque a altura do Sol pela direcção da sombra”
(Figueiredo, 1913, p. 820). Em outras palavras, ele pode ser definido como:
[...] um instrumento de sombra. Ele mede o comprimento das
sombras. A palavra γνώμώv tinha vários significados, todos
relacionados de alguma forma. Em matemática, pode denotar a
forma de L que resta ao cortar um quadrado menor de um
quadrado maior. Esta forma foi usada por pedreiros para obter
ângulos retos. Na verdade, Vitruvius conhecia o gnômon como um
instrumento arquitetônico. Para os astrônomos, o gnômon é um
bastão colocado verticalmente no horizonte com o propósito de
projetar sombras e medi-las. O comprimento da sombra era
tipicamente expresso em proporção ao comprimento do gnômon
(DEPUYDT, 1998, p. 174, tradução nossa).

Diante dessa definição e das demais já apresentadas sobre alguns


termos que podem favorecer a compreensão da descrição do instrumento
jacente no plano, cabe ainda algumas notas sobre a forma física do aparato. Na
descrição de Nunes (2008), notam-se duas possíveis configurações para o

786
aparato, uma delas em uma tábua circular e outra em uma tábua quadrada
(LEITÃO, 2008; OLIVEIRA, 2019). Sobre elas, cabe destacar que “i) numa tábua
redonda, com um triângulo colocado perpendicularmente a esse tábua, e
também com um estilete vertical; ii) numa tábua quadrada, apenas com um
triângulo colocado perpendicularmente” (LEITÃO, 2008, p. 688).
Sobre essas duas configurações, tem-se (figura 1):

FIGURA 1: Da direita para a esquerda: instrumento em uma tábua quadrada e


aparato em uma tábua circular

Fonte: Oliveira (2019, p. 49) e Oliveira (2019, p. 50)

Nessas configurações, observa-se que elas têm em comum, o fato de


possuírem um triângulo colocado perpendicularmente sobre a tábua do aparato.
Entretanto, divergem na configuração da tábua, em que uma é circular e a outra
quadrada, além disso, ainda se diferenciam pela existência de um estilete (tábua
circular) e de uma reta tangente (tábua quadrada). Na versão da tábua quadrada
a reta tangente, aparece como alternativa para substituir o estilete, feito isso, o
instrumento ainda assim, mantém sua finalidade e validade (OLIVEIRA, 2019).
Essas configurações do instrumento ainda podem receber algumas
variações. No caso da construção do aparato na tábua quadrada, ele pode ser
elaborado da seguinte forma:
FIGURA 2: Instrumento jacente no plano com o triângulo duplicado e o
semicírculo repartido em 90 partes congruentes

787
Fonte: Oliveira (2019, p. 51)

Nessa variação, o triângulo posto perpendicularmente sobre a tábua (o


triângulo duplicado que Pedro Nunes se refere), agora tem seu lado congruente
ao diâmetro da circunferência e a semicircunferência está repartida em 90 partes
congruentes.
Ainda no que se refere a configuração do instrumento jacente no plano,
em particular sobre a interpretação feita por contemporâneos, têm-se dois
registros. Um deles, trata-se do Tratado del arte de navegar (1588), de João
Baptista Lavanha, nessa obra o autor dá destaque a versão na tábua circular,
em que se tem a presença do estilete, o qual Lavanha chama de estilo.
O outro texto, diz respeito a uma Arte de Navegar do século XVII.
Divulgada em manuscrito, conhecido por Códice 27 do fundo Manizola, de
autoria desconhecida, está presente no catálogo da Biblioteca de Évora,
possivelmente composto na cidade de Lisboa depois de 1632 (ALMEIDA, 2011).
Nesse documento, já se é possível observar uma versão em uma tábua
retangular (figura 3).

FIGURA 3: Instrumento jacente no plano descrito em uma Arte de navegar do


século XVII

788
Fonte: BPE, Manizola, Cod. 27 (Séc. XVII, fl. 13r, apud Almeida, 2011)

Nessa versão o instrumento jacente no plano aparece, como já


destacado, em uma tábua retangular. Contudo, ver-se que mantém o triângulo
posto perpendicularmente a tábua e que a semicircunferência gravada sobre a
tábua está repartida em 180 partes congruentes.
Diante dessas diferentes variações que o instrumento jacente no plano
pode assumir, cabe destacar que em todas elas o instrumento mantém sua
finalidade e validade (OLIVEIRA, 2019). Quando se substitui, por exemplo, o
estilete (parte do instrumento na tábua circular) pela reta tangente (parte do
instrumento na tábua quadrada), ainda assim, é possível assegurar que a
sombra do segmento FA (lado do triângulo AFE) vai estar paralela ao diâmetro
BE da circunferência.

NOTAS FINAIS

Ao se pensar em articular o texto de descrição do instrumento jacente


no plano na interface entre história e ensino de matemática, deve-se ter
consciência de que ele está sob a episteme do século XVI. Nesse sentido, faz-
se necessário tanto buscar reconhecer em seu período de elaboração o

789
significado de alguns termos, como também reconhecer as partes e
configurações do aparato, pois esse trabalho, será responsável por potencializar
a obtenção da intencionalidade e plano de ação do educador matemático.
A construção do instrumento jacente no plano, assim como o seu uso,
tem incorporado uma gama de conhecimentos geométricos (OLIVEIRA, 2019).
Quanto à construção, pode-se explorar conceitos mobilizados em construções
geométricas (trissecção de ângulos, bissetriz, divisão de um ângulo em n partes
e traço de reta tangente, etc.). Sobre o uso, cabem discussões matemáticas
entorno do posicionamento do instrumento e de sua validade em qualquer uma
das configurações que pode receber.

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nunes na náutica dos séculos XVI e XVII: um estudo de transmissão de
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.

792
HISTÓRIA DA MATEMÁTICA E TECNOLOGIAS DIGITAIS:
do que tratam as dissertações e teses (de 1990 a 2019)?

Ivonne C. Sánchez S.266


Luis Andrés Castillo B.267
Iran Abreu Mendes268

RESUMO
Neste artigo se descrevem resultados parciais de uma pesquisa ligada a um
macroprojeto intitulado História para o Ensino de Matemática na Formação de
Professores e na Educação Básica: uma Análise da Produção Brasileira (1990 – 2017).
O projeto foi aprovado e financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) sob a coordenação do Prof. Dr. Iran Abreu Mendes.
Neste desdobramento, temos o intuito de indagar qual o panorama de pesquisas que
apresentam uma possível aliança entre a história da matemática e as tecnologias
digitais para o ensino da matemática. A abordagem metodológica nesta pesquisa é de
tipo bibliográfica, pois o objeto de estudo são as teses e dissertações disponíveis no
acervo do Centro Brasileiro de Referência em Pesquisa sobre História da Matemática
(CREPHIMat), nas modalidades de pesquisa em História da Matemática (HM), as quais
são História e Epistemologia da Matemática (HEpM), História da Educação Matemática
(HEdM) e História para o ensino da Matemática (HEnM). Das 728 produções
acadêmicas-científicas foram filtradas apenas 24, que tiveram presença de tecnologias
digitais no corpus do trabalho. O panorama esboçado neste mapeamento permitiu
constatar que as tecnologias digitais mais usadas são os softwares de Geometria
Dinâmica, dentre eles, o GeoGebra é o mais destacado nas pesquisas. Consideramos
que se deve continuar promovendo o desenvolvimento de mais propostas que nutram a
aliança entre história da matemática e as tecnologias digitais pelo fato de apenas o 3%
das 728 produções tiver presença deste tipo de recurso digital.

Palavras-chave: História da Matemática, Tecnologias Digitais, Teses e


Dissertações.

266
Aprender en Red. ivonne.s.1812@gmail.com.
267
Aprender en Red. luiscastleb@gmail.com.
268
Universidade Federal do Pará (UFPA). iamendes1@gmail.com.

793
CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Neste trabalho se descrevem os resultados parciais de uma pesquisa


em andamento, aprovada e financiada pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), intitulada História para o
Ensino de Matemática na Formação de Professores e na Educação Básica: uma
Análise da Produção Brasileira (1990 – 2017). Um dos assuntos a pesquisar
nesse projeto são as propostas metodológicas para o ensino de Matemática
apoiadas nas informações históricas nas teses, dissertações, artigos, livros e
outras produções acadêmicas-científicas (MENDES, 2018)
No caso apresentado, tratamos de Teses de Doutorado e Dissertações
tanto de Mestrados Acadêmicos quanto de Mestrados Profissionais cujo foco de
estudo tenha relação com alguma das modalidades de pesquisa em História da
Matemática. Estas modalidades são História e Epistemologia da Matemática
(HEpM), História da Educação Matemática (HEdM) e História para o ensino da
Matemática (HEnM) (BARROS; MENDES, 2017; CASTILLO; MENDES, 2019;
MENDES, 2015)
As produções foram coletadas do Centro Brasileiro de Referência em
Pesquisa sobre História da Matemática (CREPHIMat), o qual foi O CREPHIMat,
idealizado pelo pesquisador Iran Abreu Mendes (CASTILLO; MENDES, 2019;
MENDES, 2018) e materializado no trabalho de mestrado de Castillo (2020) sob
a orientação do pesquisador mencionado. A justificativa de escolher o
CREPHIMat foi o fato desse centro disponibilizar as produções de pesquisas em
História da Matemática produzidas no Brasil, dentre outras informações e
materiais sobre esta temática. É por isso que este centro virtual se concebe como
um repositório digital com o maior acervo digital de produções acadêmico-
científicas Brasileiras sobre História da Matemática (MENDES; PIRES, 2020).
Para maiores informações, acesse: http://www.crephimat.com.
Nosso objetivo com este mapeamento das produções no CREPHIMat foi
constatar, nas pesquisas que têm como contribuições conceituais-pedagógicas,
metodologias para o ensino de Matemática apoiadas na conjunção de

794
informações históricas e tecnologias digitais, de modo que se tenham condições
para responder o seguinte questionamento de pesquisa: Qual o panorama de
pesquisas que apresentam uma possível aliança entre a história da matemática
e as tecnologias digitais para o ensino da matemática?
Na seguinte seção descrevemos como foram os procedimentos
metodológicos sobre a organização, catalogação e filtragem das produções de
teses e dissertações para atingir o objetivo e responder à questão da pesquisa.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Para a consolidação do referido estudo, no que diz respeito às


materializações de pesquisas em teses e dissertações, nossa pesquisa foi
desenvolvida em quatro etapas. Na primeira etapa, levantamos todas as
produções disponíveis no CREPHIMat nas modalidades de História e
Epistemologia da Matemática (HEpM), História da Educação Matemática
(HEdM) e História para o ensino da Matemática (HEnM). Na segunda etapa,
preparamos uma tabela em um processador de dados em que inserimos o título,
o autor, o ano de defesa, o orientador, as IES, o resumo e as palavras-chave.
Na terceira etapa, segundo as informações da etapa anterior, realizou-
se uma filtragem para saber quais produções destacavam alguma menção sobre
o uso de determinada tecnologia digital na pesquisa e/ou materialização da
mesma. Finalmente, na quarta etapa fizemos o estudo e a análise do grupo de
teses e dissertações que apresentavam essa conjunção do ensino da
matemática apoiada em informações históricas e uso de tecnologias digitais.

HISTÓRIA DA MATEMÁTICA NO CREPHIMat: Teses e Dissertações

Segundo Castillo (2020), o acervo atual de produções de teses e


dissertações no CREPHIMat está constituído por levantamentos realizados sob
a coordenação do Prof. Dr. Iran Abreu Mendes, destacando que nos anos 2018
e 2019 foram realizados apenas os levantamentos de dissertações e teses

795
produzidas após 2010, pelo fato desse pesquisador, junto com outro grupo de
orientandos e colaboradores que fizeram parte das pesquisas anteriormente
desenvolvidas por Mendes (2010; 2014), constituir o acervo de teses e
dissertações no período de 1990 a 2010. A Tabela 1 ilustra a distribuição
realizada por Mendes das teses e dissertações no período 1990 – 2018.

TABELA 1: PRODUÇÕES EM HISTÓRIA DA MATEMÁTICA (HM) (1990 –


2018)
Modalidades de Pesquisa em História da Matemática

Nível HEpM HEdM HEnM Total


Doutorado 78 143 19 240
Mestrado
57 273 57 387
Acadêmico
Mestrado
10 47 73 130
Profissional
Total 145 463 149 757
Fonte: Mendes (2019)

No levantamento das produções disponíveis no CREPHIMat nas


modalidades de História e Epistemologia da Matemática (HEpM), História da
Educação Matemática (HEdM) e História para o ensino da Matemática (HEnM)
percebemos que foi feita uma atualização do acervo, já que foram acrescentadas
produções de 2019. Assim sendo, realizamos a organização e contagem das
produções conforme se observa na Tabela 2.

TABELA 2: TESES E DISSERTAÇÕES EM HM NO CREPHIMAT (1990 –


2019)
Modalidades de Pesquisa em História da Matemática

Nível HEpM HEdM HEnM Total


Doutorado 55 136 20 211

796
Mestrado
73 245 65 383
Acadêmico
Mestrado
5 53 76 134
Profissional
Total 133 434 161 728
Fonte: Elaborada segundo as produções disponíveis no CREPHIMat (2021)

Da tabela anterior podemos dizer que as produções de pesquisa em


História para o ensino da Matemática (HEnM), uma modalidade de pesquisa em
História da Matemática, tiveram um crescimento desde o ano 2018 em todos os
níveis de pós-graduação.
Após lermos os resumos e as palavras-chave, para podermos realizar a
filtragem daquelas produções, destacamos alguma menção sobre o uso de
alguma tecnologia digital na pesquisa e/ou na materialização da mesma. A
organização e distribuição deste grupo de produções se ilustra na Tabela 3.

TABELA 3: TESES E DISSERTAÇÕES EM HM QUE USAM TECNOLOGIAS


DIGITAIS NO CREPHIMAT (1990 – 2019)
Modalidades de Pesquisa em História da Matemática

Nível HEpM HEdM HEnM Total


Doutorado 1 0 4 5
Mestrado
1 0 5 6
Acadêmico
Mestrado
0 0 13 13
Profissional
Total 2 0 22 24
Fonte: Elaborada segundo as produções disponíveis no CREPHIMat (2021)

A informação mostrada na Tabela 3 permite perceber que, na


modalidade de História e Epistemologia da Matemática (HEpM), há apenas dois

797
trabalhos que fazem menção ao uso das tecnologias digitais, pelo que podemos
dizer que isso era um resultado a priori, já que as produções nesta modalidade
estão ligadas tanto à vida quanto à obra de matemáticos, bem como ao
desenvolvimento das suas ideias matemáticas e ao desenvolvimento de
conceitos matemáticos ao longo do tempo.
No caso de zero (0) produções em História da Educação Matemática –
HEdM com uso das tecnologias digitais era de esperar porque estes tipos de
produções geralmente abordam estudos com relação à história de instituições,
(auto) biografias de professores de matemática, para a melhoria do ensino, bem
como o que contribuem com a coleta de documentos, memórias e o patrimônio
da Educação Matemática.
Bem destacado é o número de produções em História para o Ensino da
Matemática (HEnM) que apresentam o uso das tecnologias digitais, tal vez pelo
fato de as produções nesta modalidade de pesquisa da HM serem
caracterizadas pelas propostas e ações centradas nos usos das informações
históricas com fins pedagógicos, como uma estratégia para o ensino da
Matemática, bem como a elaboração de materiais didáticos para ensinar
Matemática, baseadas em fontes históricas.
Com o propósito de indagar um pouco mais sobre outros aspectos destas
produções, organizamos na Tabela 4 as 13 Instituições de Ensino Superior (IES)
nas quais estas produções de pesquisa foram defendidas.

TABELA 4: DISTRIBUIÇÃO DAS PRODUÇÕES DA TABELA 3 NAS IES


IES Produções
CEFET RJ 1
IFCE 1
IFES 1
PUC - SP 3
REAMEC 1
UEM 1

798
UFPel 1
UFPR 1
UFRN 8
UFSCar 1
UNICSUL 1
URI 1
USP 3
Total 24
Fonte: Elaborada segundo as produções disponíveis no CREPHIMat (2021)

Na tabela anterior podemos observar como as 24 produções estão


distribuídas por IES, bem como a maior concentração das mesmas, exatamente
nove produções se encontram no nordeste do Brasil, especificamente na
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Logo, o segundo lugar
com igualdade de produções (cinco) são oriundas do sudeste do Brasil, sendo
representado maiormente pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP) e a Universidade de São Paulo (USP). No terceiro lugar, cada uma
das IES restantes possuem apenas uma produção.
Um fato interessante é que a maioria das produções ligadas à UFRN nesta
modalidade foram desenvolvidas no mestrado profissional do programa de Pós-
Graduação em Ensino de Ciências Naturais e Matemática. Este e outros
assuntos surgiram na descrição destes trabalhos, que será resenhada na
próxima seção.

HISTÓRIA DA MATEMÁTICA E TECNOLOGIAS DIGITAIS: O PANORAMA

Nesta seção organizamos, em primeiro lugar, as tecnologias digitais que


têm presença nas 24 produções que foram encontradas do total de 728,
disponíveis no CREPHIMat nas diferentes modalidades de pesquisa em História
da Matemática. Na Tabela 5 se apresentam as referidas tecnologias.

799
TABELA 5: DISTRIBUIÇÃO DAS PRODUÇÕES DA TABELA 3 NAS IES
IES Produções
GeoGebra 13
Régua e
1
Compasso
Compasso
1
Eletrônico
Meplot free e
Mathlab 1
Calculator
Winplot 1
Recursos
3
Audiovisuais
Excel 1
Prezi 1
Videogames 1
Blog
1
(Homepage)
Total 24
Fonte: Elaborada pelos autores

Na tabela anterior podemos observar que a maior quantidade de


tecnologias digitais presentes nas produções está centralizada no uso de
software de geometria dinâmica (GeoGebra, Régua e Compasso, Compasso
Eletrônico e Meplot free). Dentre estes, o GeoGebra é o mais usado para a
conjunção das propostas metodológicas nas produções de História para o ensino
da Matemática (HEnM), apoiadas com tecnologias digitais.
Em segundo lugar, podemos dizer que recursos audiovisuais ainda fazem
presença para promover o ensino de matemática com atividades em sala de aula
baseadas em informações históricas. Além disso, temos outras variedades de

800
recursos digitais que fazem presença como Excel, Prezi, Videogames, Blog
(Homepage), Winplot, entre outros.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo foi realizado um mapeamento de 728 produções (teses e


dissertações de mestrados acadêmicos e profissionais) com o intuito de
responder o seguinte questionamento de pesquisa: qual o panorama de
pesquisas que apresentam uma possível aliança entre a história da matemática
e as tecnologias digitais para o ensino da matemática?
No mapeamento, foram encontradas 24 produções, dentre delas cinco
teses, seis dissertações de mestrado acadêmico e 14 dissertações de mestrado
profissional, cujas contribuições pedagógico-conceituais dão conta da presença
do uso de uma tecnologia digital pelo menos. Após realizarmos a análise das
produções, conseguimos esboçar um panorama do que abordam as teses e
dissertações no período 1990 – 2019 sobre a possível aliança na História para o
Ensino da Matemática com Tecnologias Digitais (HEnM-TD). Neste panorama,
visualiza-se o predomínio do uso de uma tecnologia digital, em particular os
softwares de geometria dinâmica.
Nesta categoria encontramos que mais do 50% das produções levantadas
incorporam o software GeoGebra nas atividades para o ensino de matemática
baseadas em informações históricas. Outro assunto de interesse é que a maior
concentração de trabalhos com GeoGebra foi desenvolvida no nordeste do
Brasil, especificamente na UFRN, no mestrado profissional do programa de Pós-
Graduação em Ensino de Ciências Naturais e Matemática.
Para finalizar, chamamos a atenção para tal fato, comparando os 24
trabalhos com o total de 728, o percentil é de apenas 3%. Portanto, é visível a
evidência de que há a necessidade de empreender esforços para ampliar ações
com o propósito de desenvolver mais propostas que continuem nutrindo a
aliança entre a história da matemática e as tecnologias digitais.

801
AGRADECIMENTOS
Este artigo tem o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior – Brasil (CAPES) código de financiamento 001, e se classifica
como uma produção gerada nos projetos de pesquisas vinculados a programas
de pós-graduação em níveis de mestrado e doutorado aprovados e financiados
pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

REFERÊNCIAS
BARROS, Rafael José; MENDES, Iran Abreu. Dissertações e teses em História
e Epistemologia da Matemática: contribuições para a abordagem da Geometria
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CASTILLO, Luis Andrés. Contribuições de um ambiente virtual para a


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Dissertação (Mestrado em Educação em Ciências e Matemáticas).
Universidade Federal do Pará, 2020.

CASTILLO, Luis Andrés; MENDES, Iran Abreu. O CREPHIMat como um


ambiente virtual sobre as pesquisas em historia da matemática. REMATEC, n.
32, p. 163–176, 2019. DOI: 10.37084/REMATEC.1980-3141.2019.n32.p163-
176.id210. Disponível em:
http://www.rematec.net.br/index.php/rematec/article/view/210.

MENDES, Iran Abreu. História da matemática no ensino: Entre trajetórias


profissionais epistemológicas e pesquisas. 1a. ed. São Paulo: Livraria da
Fisica/SBHMat, 2015.

MENDES, Iran Abreu. História para o Ensino de Matemática na Formação


de Professores e na Educação Básica: uma Análise da Produção
Brasileira. Projeto de Pesquisa. Universidade Federal do Pará, Belém, 2018.

MENDES, Iran Abreu. Flashes e Imagens das Produções nas Pesquisas em


História da Matemática no Brasil: um cenário tecido em três décadas. In: A.
COSTA, F. MATOS, R. SILVA (Org.) XII ENCONTRO PARAENSE DE
EDUCAÇÕ MATEMÁTICA 2019, Belém. Anais [...]. Belém: SBEM-PA, 2019.

MENDES, Iran Abreu; PIRES, Lucas Silva. Classificação de teses e


dissertações nas subáreas em história para o ensino da matemática (1990-
2018). Revista Paranaense de Educação Matemática, v. 9, n. 19, p. 410–
434, 2020. DOI: 10.33871/22385800.2020.9.19.410-434. Disponível em:
http://rpem.unespar.edu.br/index.php/rpem/article/view/2280/pdf_419.

802
HISTÓRIA DA MATEMÁTICA NAS COLEÇÕES DO PNLD 2018:
um estudo preliminar

Cleber Haubrichs269
Marcello Amadeo270

RESUMO
Os livros didáticos são um veículo importante na universalização do acesso a materiais
didáticos e a principal referência de alunos e professores. Através deles que se fazem
circular algumas histórias da matemática na comunidade escolar. Assim, temos como
objetivo identificar como e qual história da matemática (HdM) que chega até os
estudantes e professores pelos livros do PNLD de 2018. O Coletivo de História no
Ensino de Matemática (CHEMat) elaborou um instrumento para descrever as inserções
de HdM contidas nos livros didáticos. Por inserção histórica, entendemos qualquer tipo
de informação que remeta ao passado, tomando o cuidado de evitar contextualizações
deliberadamente ficcionais. O instrumento, no formato de um formulário para efetuar a
coleta de dados, está organizado em seis blocos de perguntas: uma para identificar
formalmente a inserção, seguida de quatro partes que descrevem os episódios
históricos em relação aos personagens citados, o período histórico, as figuras utilizadas,
a relação da inserção com os demais conteúdos do livro e as referências ali contidas. A
última parte analisa as inserções de HdM em livros didáticos segundo suas funções
didáticas. O presente texto traz um relato dos dados coletadas num estudo preliminar
envolvendo três livros, comentários de algumas tendências nas respostas obtidas,
dificuldades observadas na tarefa da coleta e algumas reflexões levantadas após a
conclusão do estudo preliminar.

Palavras-chave: História da matemática. Ensino de matemática. Análise de


livros didáticos. Funções didáticas da história no ensino.

INTRODUÇÃO

269
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ).
cleber.santos@ifrj.edu.br
270
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). marcello.amadeo@gmail.com

803
Desde a criação do PNLD (Programa Nacional do Livro e do Material
Didático) em 1985, os livros didáticos se tornaram gradualmente obrigatórios nas
redes públicas de ensino. Hoje, eles constituem um veículo importante para a
universalização do acesso a materiais didáticos e a principal referência de alunos
e professores. É através dos livros didáticos que se fazem circular algumas
histórias da matemática entre estudantes e educadores. Sejam elas curiosidades
históricas, anedotas exageradas, informações biográficas ou reconstruções
históricas, algumas coleções didáticas têm se dedicado a incorporar elementos
históricos aos seus textos. Sendo assim, podemos nos perguntar quais as
funções pedagógicas podemos identificar da HdM nos livros textos? Ela é usada
como motivacional, como elemento disparador de conteúdo? Como
contextualização de conceitos matemáticos? Como formação geral dos leitores?
Como um recurso pedagógico para se explorar uma propriedade matemática?
Por outro lado, a historiografia da matemática possui diversos aspectos,
muitas vezes incompatíveis entre si, como, por exemplo, a dualidade entre
historiografia tradicional versus historiografia atualizada – evocada com
frequência nos últimos eventos de HdM. Portanto, podemos nos perguntar qual
historiografia os autores de livros didáticos se baseiam? Ela parte de textos
ultrapassados271 ou privilegia as discussões recentes? As coleções contemplam
algum resultado histórico dos últimos 50 anos? Quais implicações isso tem para
a formação inicial do estudante em matemática? Qual imagem que o estudante
sai do ensino médio sobre o ofício do matemático a partir dessas leituras
históricas?
Pensando assim, temos como objetivo inicial, dentro de um projeto de
pesquisa mais amplo, identificar qual é a HdM que chega até os estudantes e
professores. Compreender qual HdM circula entre os alunos é importante para

271 Aqui nos referimos especificamente aos livros de história da matemática de H. Eves e de C.
Boyer publicados originalmente em 1953 e 1968, respectivamente. São as principais referências
nos cursos universitários e, ainda hoje, se mantêm com ampla divulgação dentro da comunidade
matemática brasileira. Para uma leitura crítica dessas obras recomendamos o artigo de Abreu et
al. (2021).

804
nós, pois entendemos que ela reflete muitos estigmas que a matemática carrega
na escola básica. Não existe neutralidade nas narrativas históricas (SAITO,
2018). Essas leituras históricas já foram duramente criticadas nas últimas
décadas. Elas são discussões fundamentais se quisermos reconstruir a imagem
de que a matemática é uma ciência humana como qualquer outra, sujeita a erros
e acertos, não tão diferente das demais como se quer acreditar. Elas necessitam
ir além do conteúdo matemático e considerar, também, o contexto cultural na
qual a fonte se insere (Grattan-Guinness, 2004). Esse novo olhar sobre a HdM
é um passo importante se quisermos ultrapassar os preconceitos e respeitar a
diversidade no fazer matemático, e no fazer pedagógico. Ele pode ajudar os
professores a ter uma visão crítica diferente sobre sua própria disciplina.
Os livros aprovados pelo PNLD (Programa Nacional do Livro Didático)
têm um alcance nacional e universal, isto é, qualquer escola pública,
independente da sua região ou especificidade, tem direito ao acesso às mesmas
coleções. Portanto, os livros de matemática aprovados pelo PNLD nos
apresentam como um bom parâmetro para identificar como a HdM é tratada nos
materiais didáticos brasileiros. O edital do PNLD mais recente para a disciplina
de matemática no ensino médio foi o de 2018. Foram 8 coleções aprovadas,
cada uma com três volumes, correspondendo três anos do ensino médio, ou
seja, no total, foram 24 livros aprovados para serem utilizados no triênio 2018-
2020. A avaliação desse ciclo culminou com a publicação do Guia de Livros
Didáticos de Ensino Médio do PNLD 2018 (BRASIL, 2017), que nos serviu como
uma importante referência para nossa análise. Assim, a escolha dos livros
didáticos desse edital de 2018 foi feita por se tratar das coleções em vigor nas
escolas públicas quando se iniciou essa pesquisa.
A restrição por coleções de ensino médio foi feita por se tratar dos anos
finais da educação básica. Boa parte dos estudantes nessa etapa são jovens
entre 14 e 18 anos e estão descobrindo o mundo com um olhar um pouco menos
ingênuo do que tinham no ensino fundamental. Nessa etapa, os estudantes já
possuem algum nível de discernimento sobre o que é a matemática escolar.

805
A partir dessas considerações, nós do CHEMat (Coletivo de História no
Ensino de Matemática) iniciamos um projeto de pesquisa sobre as inserções de
história em livros didáticos de matemática. Por inserção histórica, entendemos
qualquer tipo de informação que remeta ao passado, a qual pode abordar
momentos do desenvolvimento histórico dos conceitos, informações biográficas
de matemáticos, livros ou outra publicação importante, datas de acontecimentos,
dentre outras informações, tomando o cuidado de evitar contextualizações
deliberadamente ficcionais que sejam inspiradas em situações históricas. O
nosso projeto tem como objetivo fazer uma leitura completa sobre o uso de HdM
em todas as coleções aprovadas no PNLD de 2018. Elas podem nos oferecer
um bom panorama de qual é a HdM que os estudantes da educação básica das
escolas públicas têm acesso atualmente. O presente texto traz algumas
reflexões preliminares desse estudo.

A COLETA DE DADOS DO ESTUDO PILOTO

No formato de um formulário para efetuar a coleta de dados, o CHEMAT


elaborou um instrumento para descrever as inserções de HdM nos livros
didáticos. Ele está organizado em seis blocos de perguntas, quatro dos quais
descrevendo o(s) episódio(s) histórico(s) em questão, as suas figuras, a relação
da inserção com os demais conteúdos do livro e as referências contidas na
própria inserção. Anterior às quatro partes mencionadas acima, existe ainda a
“parte zero”, que serve apenas para identificar formalmente a inserção. A sexta
e última parte contém perguntas que apontam para possíveis categorias de
análise da inserção dentro dos nossos referenciais, que explicaremos logo mais.
A escolha de um formulário único para a coleta de dados se justifica por
dois motivos principais. O primeiro deles é para termos um banco de dados com
todas as informações quantitativas e qualitativas que nos pareçam ser
pertinentes. O segundo deles é para uniformizar o processo de análise, uma vez
que teremos 24 livros sendo estudados por diferentes indivíduos e,

806
consequentemente, um número muito maior de inserções para se analisar. Essa
foi a maneira que encontramos para diminuir a subjetividade da leitura de cada
participante e, portanto, tornar nossa interpretação mais objetiva.
Para avaliar o uso, a adequação e a versatilidade do instrumento no
processo de coleta de dados, o grupo se engajou num estudo piloto entre agosto
e setembro de 2020. Nesse estudo, foram analisadas as inserções de 3 livros
didáticos, tomados um de cada ano letivo do ensino médio. Para que a amostra
pudesse ser diversificada quanto à forma das inserções, o grupo optou por
escolher os três livros de diferentes coleções. Os livros, selecionados
arbitrariamente, foram os seguintes: (a) Matemática: Contexto e Aplicações,
volume 1, de Luiz Roberto Dante, (b) Quadrante Matemática, volume 2, de
Eduardo Chavante e Diego Prestes (c) Matemática: Ciência e Aplicações,
volume 3, de Gelson Iezzi e outros quatro autores.
No fim dessa etapa contabilizamos 52 inserções. Nos dois meses
seguintes, nos debruçamos sobre os dados coletados. Essa etapa da pesquisa
teve dois objetivos específicos: tanto aprender a ler e interpretar os dados do
modo como são tabulados e apresentados pelo Google Forms, quanto rever e
atualizar o instrumento de coleta de dados, o que se revelou necessário.
A seguir, apresentamos um relato dos dados coletadas. Comentamos
algumas tendências nas respostas obtidas; as dificuldades observadas na tarefa
da coleta; e apontamos as modificações necessárias para o aperfeiçoamento do
instrumento de coleta com vista na próxima etapa deste projeto.

RELATO DOS DADOS COLETADOS, COMENTÁRIOS E OBSERVAÇÕES

A “parte zero” do questionário presta-se à identificação da inserção em


seu livro, volume e página. Observamos que a distribuição das inserções em
cada livros ficou bastante desequilibrada, pois encontramos 36 inserções no livro
de primeiro ano, 8 no de segundo e 8 no livro do terceiro ano. Não sabemos
ainda, sem fazer o estudo completo, se há mesmo uma tendência de mais

807
inserções no início do ensino médio ou se essa grande quantidade é uma
característica da coleção do autor Dante, que foi selecionado para o estudo
piloto. São aspectos interessantes para serem investigados nas próximas etapas
do projeto.
Parte I do instrumento de coleta de dados das inserções: o primeiro bloco
de perguntas levanta os principais elementos históricos. O questionário começa
situando as coordenadas de espaço e tempo em que os episódios narrados
acontecem. Os dados coletados nessa pergunta revelam a ênfase dada aos
episódios ocorridos em dois períodos/territórios bem específicos. Primeiramente,
a maior quantidade, 33 em 77 (que corresponde a 43%), são de episódios
ocorridos na Europa central (em países como Alemanha, França, Grã Bretanha,
Inglaterra ou Itália) no período do século XVI ao XIX. Depois, seguem-se 18
ocorrências (23%), na Grécia Antiga e seu entorno, no Período Helenístico, que
cobre desde o século VI a.E.C. até o século IV da nossa Era. Ressalta-se que
há 9 menções a episódios ocorridos no século XX. As demais 17 menções são
distribuídas em outros oito itens que contemplam povos e culturas não ocidentais
como Mesopotâmia Antiga, Babilônia, Oriente Médio ou Egito Antigo, por
exemplo. Nota-se a ausência total de menção ao Brasil, e mesmo de Portugal,
país europeu cuja história se aproxima mais da nossa.

33

18 17

Europa Moderna Grécia Antiga Século XX Demais

Figura 1 – Recorte histórico das inserções.


Fonte: dados coletados pelos autores.

808
É notório observar que 2 a cada 3 inserções concentram a história da
Europa (Antiga ou Moderna), e esses dados nos revelam o quanto a HdM
presente nesses livros didáticos refletem uma historiografia eurocêntrica.
Conhecemos e valorizamos a matemática produzida na Europa, mas não temos
o mesmo tratamento para a matemática produzida em outras regiões do mundo.
Os livros didáticos podem induzir o estudante a acreditar que a matemática é
uma produção majoritariamente europeia. Esse número desproporcional de
inserções está longe de incluir os estudos da etnomatemática ou as críticas a
essa história centralizada a partir de um único continente.
De fato, se incluirmos as inserções do século XX e olharmos sob uma
lente ocidente/não-ocidente, veremos que esses três grupos Europa Moderna,
Grécia Antiga e Século XX se referem à história do ocidente, o que representam
89% das inserções. Em outros termos, 9 em cada 10 inserções se referem ao
mundo ocidental. A HdM contada nesses livros nos indicam que a matemática é
uma produção ocidental e que o resto do globo tem pouca relevância no
desenvolvimento da matemática.
A pergunta seguinte registra os personagens que aparecem nas
inserções. Em 52 inserções houve 42 que mencionam um ou mais personagens
pelo nome, totalizando 84 nomeados. Os mais evocados são Carl Friedrich
Gauss e Gottfried Wilhelm Leibniz (ambos são mencionados 4 vezes), Aristarco
de Samos, Galileu Galilei e Isaac Newton (3 vezes). Com 2 menções apareceram
Apolônio de Perga, Tycho Brahe, Girolamo Cardano, René Descartes, Pierre de
Fermat, Fibonacci, Christiaan Huygens, Blaise Pascal e Claudius Ptolomeu.
Observamos que na lista há matemáticos, obviamente, bem como cientistas
naturais (por exemplo, Gregor Johann Mendel), inventores (Alexander Graham
Bell e Leonardo Da Vinci), historiadores (Heródoto) e líderes políticos antigos
(Júlio César e Xerxes).
Em que pese o excesso de personagens europeus, alguns personagens
de outras culturas são mencionados (por exemplo, Ahmes do Egito Antigo, Al-
Khowarizmi e Ibn Yunus, do Islã Medieval). Entretanto, um fato marcante é a
total ausência de mulheres nessa lista de 84 nomes. A falta de

809
representatividade feminina na matemática é um tema que merece a nossa
atenção. Diversas ações que fazemos dentro e fora da sala de aula contribuem
para uma construção nos estudantes de que matemática não é para meninas
(BOALER, 2018; BARROW-GREEN, 2019; LESLIE et al, 2015). Nesse sentido,
acreditamos que a HdM possa ter seu papel tanto para romper com alguns
estereótipos como para reforçá-los – como foi observado nessa lista de 84
nomes masculinos.
Também neste bloco de perguntas, alistamos os nomes de livros,
documentos históricos, tratados, periódicos ou publicações mencionadas na
inserção. Identificamos 18 títulos de obras. Aqui ainda persiste uma vantagem
quantitativa na contagem de menções a obras produzidas no território europeu
moderno (11 títulos) e as demais obras (7 títulos), embora dessa vez a diferença
não seja tão contundente quanto na lista de personagens. No primeiro grupo
aparecem Ars Magna de Cardano, La Géométrie de Descartes e Liber Abaci de
Fibonacci. Já no segundo grupo há, entre outros, Al-jabr W’al-Mugabala de Al-
Khowarizmi, o Papiro de Rhind (de fato, redigido pelo escriba egípcio antigo
Ahmes) e o Chiu-Chang Suan-Shu (Nove capítulos sobre a arte matemática).
Apesar das nossas críticas até aqui parecerem um tanto duras – ainda
que necessárias –, devemos reconhecer que há uma tentativa dos livros
didáticos procurarem incluir contribuições matemáticas de outras culturas não-
ocidentais. Vemos referências às matemáticas egípcia,
babilônica/mesopotâmica, islâmica, hindu e chinesa, o que nos mostra algum
nível de preocupação em mostrar que diferentes civilizações têm também
contribuições na matemática. Assumimos, então, que há algum grau de
progresso no sentido de reconhecer outras produções matemáticas ao redor do
mundo, embora ainda tenhamos um longo caminho pela frente.
Parte II do instrumento de coleta de dados das inserções: o segundo
bloco de perguntas registra as figuras na inserção, quando há. Apareceram
figuras em 39 das 52 inserções. O que está em jogo nessa parte do instrumento
de coleta de dados é a formação de um repertório iconográfico para a HdM no

810
imaginário dos leitores dos livros didáticos. Entretanto pela exiguidade de espaço
no presente trabalho, omitimos aqui nossas analisa sobre esses dados.
Parte III do instrumento de coleta de dados das inserções: este bloco de
perguntas investiga as relações da inserção com os demais conteúdos do livro
didático. Trata-se da parte mais longa do instrumento.
Na primeira pergunta, nós alistamos alguns dos conteúdos trabalhados
no ensino médio adaptado do que está apresentado pelo Guia do PNLD 2018.
Alistamos trinta e dois conteúdos específicos agrupados em quatro conjuntos de
“conteúdos geral”, a saber: Números e Operações, Álgebra, Geometria e
Estatística e Probabilidade.
Identificamos que alguns dos participantes preencheram a pergunta
observando os conteúdos dos trechos do livro didático (o assunto da unidade,
capítulo ou seção) em que aparece a inserção. É como pensar que a história foi
colocada “dentro” do conteúdo. Outros entenderam que o “movimento” se dá no
sentido contrário: assinalou-se quais os conteúdos são mencionados na
inserção. É como pensar no conteúdo que está “dentro” da história. Em todo
caso, tanto os que interpretaram de um jeito ou de outro”, perceberam que a lista
apresentada no Guia do PNLD não contempla todos os conteúdos matemáticos
que são mobilizados pelas inserções de HdM.
Esse conjunto de perguntas, relacionando inserções e conteúdo, são
perguntas objetivas. Nós as preenchemos sem distinguir as delimitações que
podiam existir. Assim, devido à mistura de intenções do que agora entendemos
ser investigações diferentes, concluímos que os dados coletados no estudo
piloto para esta pergunta estão demais distorcidos para uma boa interpretação.
Apesar dos dados deturpados não nos permitirem apontar para uma
tendência, essa divergência de interpretação não foi prejudicial para a pesquisa.
O debate posterior à coleta permitiu ao CHEMat repensar, reescrever e
aperfeiçoar o instrumento de modo que se possa responder com mais precisão
a essas novas duas perguntas de pesquisas, agora devidamente postas: (a) Em
quais conteúdos do ensino médio, os autores de livros didáticos recorrem à
HdM? (b) Quais são os conteúdos mobilizados pela inserção histórica?

811
Nas perguntas seguintes são registradas a posição da inserção dentro
da estrutura do livro, que pode ser no início ou no fim de alguma unidade, capítulo
ou seção, ou pode aparecer ao longo do texto corrente. Registra-se ainda um
possível destaque da inserção dentro da página em que aparece, podendo ser
em box separado/específico para conteúdos de apoio ao texto principal ou
“misturada” com outros conteúdos do livro didático.
Quase metade das inserções, 25 em 52, aparecem no meio da seção,
misturada com o texto expositivo. Esse resultado parece esperançoso, porque
aponta um esforço dos autores de livros didáticos em mesclar os dois conteúdos
de naturezas distintas: o matemático e o histórico. Há ainda um número
significativo de inserções, 11 em 52, que são alocadas no final da seção,
pretendendo ser uma leitura complementar para o conteúdo já feito. Outra
informação interessante é que a maioria das inserções de história da matemática
são longas e bem destacadas, visto que contabilizamos 23 delas ocupando uma
página inteira ou mais. Isso nos aponta que a HdM é bem-vinda nos livros
didáticos analisados.
Uma pergunta que se revelou complexa no momento da coleta de dados
investigava se havia a presença explícita de elementos que tipicamente
compõem as redações de textos matemáticos: definições, teoremas ou
propriedades de objetos matemáticos enunciados completamente, cálculos
completos ou demonstrações, exemplos ou exercícios resolvidos. Mais do que
isso, em sua continuação, a pergunta demandava saber se os elementos
matemáticos faziam sentido em si mesmo e poderiam dispensar as demais
informações presentes na inserção ou se esses elementos matemáticos
efetivamente precisavam das informações registradas na inserção para fazer
sentido.
Para a primeira parte da pergunta não houve dificuldades na coleta de
dados, que revelou que das 52 inserções, apenas 25 têm elementos
matemáticos explícitos em seu texto. A segunda parte, porém, causou
dificuldades de interpretação, delimitação e objetividade. Ao compor essa
pergunta, a intenção do CHEMat era compreender o quanto o discurso

812
“puramente matemático” e o discurso “puramente histórico” são indissociáveis
ou, pelo contrário, se eles podem ser separáveis. Devido a uma falta de
consenso entre o grupo, não conseguimos saber se a pergunta do modo como
está posta atingiu o objetivo intencionado. Além disso, cometemos uma falha de
não colocarmos “fórmulas” como uma das opções.
Na versão aperfeiçoada do questionário, construída após os debates do
estudo piloto, pretendemos reescrever essa pergunta de maneira mais clara e
objetiva. Uma vez identificados os elementos que tipicamente compõem as
redações de textos matemáticos, uma redação possível para a pergunta seria a
seguinte: “qual é a relação dos elementos matemáticos que aparecem na
inserção com o texto da inserção?”, oferecendo como opções de respostas: a)
Sendo excluídos os elementos matemáticos, a narrativa histórica ainda faz
sentido; b) Sendo excluídos os elementos históricos, a redação matemática
ainda faz sentido; e c) Nesta inserção os elementos matemáticos e os elementos
históricos são indissociáveis.
Uma discussão de igual teor aconteceu para a pergunta seguinte, que
investigava se na inserção havia a presença explícita de atividades ou exercícios
propostos: exercícios, problemas ou questões de matemáticas, perguntas,
problemas ou reflexões sobre história, sugestões de consultas a outras fontes
para saber mais ou sugestões de outras tarefas. Na sequência, a pergunta
solicitava a informação se os exercícios, problemas ou questões de matemática
precisavam das informações registradas na inserção para serem propostos ou
respondidos; ou se poderiam dispensar as informações registradas na inserção
para serem propostos ou respondidos. Semelhantemente ao caso anterior, a
primeira parte foi computada sem dificuldades e registrou apenas 9 inserções
contendo atividades propostas aos estudantes. E igualmente semelhante ao
caso anterior, a versão aperfeiçoada do instrumento de coleta de dados deve
reescrever a segunda parte dessa pergunta de maneira mais objetiva.
Parte IV do instrumento de coleta de dados das inserções: nesta parte,
uma única pergunta verifica quais são as referências historiográficas utilizadas
pelos autores dos livros didáticos nas inserções de HdM. Outra vez, respeitando

813
os limites de espaço do presente trabalho, omitimos aqui nossas análises dos
dados coletados neste trecho do instrumento.
Parte V do instrumento de coleta de dados das inserções: este bloco
contém três perguntas que apontam para algumas categorias de análise da
inserção de HdM no livro didático. Tais perguntas nos permitirão começar um
aprofundamento na interpretação qualitativa das inserções, bem como a fazer
nossa pesquisa dialogar com outras que relacionam história e educação
matemática. Das três perguntas originais deste bloco, analisaremos apenas a
que investiga a função didática da inserção histórica nos livros didáticos.
A pesquisadora Elisângela Pereira, em seu trabalho de 2016, classifica
as inserções de HdM em livros didáticos, segundo suas funções didáticas, em
quatro categorias: (a) a inserção de HdM no livro didático serve como estratégia
didática, quando a história possibilita desenvolver algum raciocínio matemático;
(b) a HdM funciona como elucidação dos porquês, quando a história mostra
como, por que e em que circunstâncias certos conhecimentos matemáticos
surgiram; (c) a HdM contribui na elucidação do para quê, quando a história
mostra a utilidade ou as aplicações de certos conteúdos matemáticos (na própria
matemática ou em outras áreas) ao longo do tempo ou num período específico;
(d) a HdM se presta à formação cultural geral, quando as informações históricas
trazem conhecimentos gerais ligados à matemática, e que não contribuem para
a aprendizagem de conteúdos matemáticos (PEREIRA, 2016, pp. 49-50).
Gostaríamos de esclarecer que nem todas as inserções foram
classificadas em algumas dessas categorias, porque houve divergências de
interpretação metodológica sobre o que é (ou o que deveria ser) uma “pergunta
de pré-análise” num contexto de coleta de dados. Naturalmente os debates
posteriores à coleta permitiram ao CHEMat uma compreensão melhor do papel
desse tipo de pergunta na próxima etapa de coleta de dados da pesquisa mais
ampla. Em todo caso, houve 37 inserções classificadas nas categorias
elaboradas por Pereira e os resultados obtidos por nós neste estudo piloto, estão
apresentados no quadro 1 abaixo.

814
Quadro 1: Resultados das categorias de análise da função pedagógica.
Categoria Quantidade
a) História da matemática e estratégia didática 3 inserções
b) História da matemática e elucidação dos 14 inserções
porquês
c) História da matemática e elucidação dos para 6 inserções
quê
d) História da matemática e formação cultural 14 inserções
geral
Fonte: dados coletados pelos autores.

São pouquíssimas inserções que cumprem um papel de estratégia


didática. Isso vai contra às nossas expectativas, uma vez que existe um
movimento significativo no ensino defendendo o uso de HdM como um recurso
pedagógico para se ensinar matemática. Isso nos aponta que talvez exista um
abismo muito grande separando as pesquisas que envolvem o uso de HdM no
ensino e a elaboração de materiais didáticos de ampla escala nacional.
A segunda e a quarta categorias são as que apresentam um maior
número de ocorrências. Não nos parece ser nenhuma surpresa que a categoria
da elucidação dos porquês apareça como uma das que mais ocorre. Nela
reconhecemos a narrativa histórica mais recorrente: de buscar na HdM a origem
dos conceitos e das propriedades matemáticas. Observamos que as inserções
assim classificadas reforçaram nossa expectativa. Em princípio, seria um uso
perfeitamente legítimo da HdM. Porém, o que nos chama a atenção é o olhar
presentista que essas construções históricas o fazem. Elas, partem dos
parâmetros atuais da matemática – escolar ou acadêmica – para interpretar na
história seu desenvolvimento. Esse anacronismo é prejudicial à construção
histórica da matemática. Acabamos por filtrar somente aquilo que é relevante
para a matemática de hoje, e descartamos as demais produções que poderiam
ser consideradas pertinentes para a matemática. Repensar isso pode ter
implicações diretas sobre o olhar que queremos desenvolver nos estudantes
sobre reconhecer a diversidade do fazer matemático: a matemática pode ser
uma ciência plural, com diferentes questões e manifestações, não apenas
restritas aquelas valorizadas no ambiente escolar.

815
A terceira categoria, sobre a elucidação dos para quê, parece estar
dentro das nossas expectativas. Posto que as inserções nessa categoria
dialogam muito com alguns resultados recentes dentro das ciências, a HdM
valorizada nos livros tradicionais tem pouco diálogo com os resultados recentes
na matemática e nas suas áreas afins. À vista disso, parece razoável elas
representarem cerca de 16% das 37 inserções classificadas.
Um pouco mais de um terço dessas inserções, mobilizam a formação
geral do estudante. A princípio, essa parece ser a categoria que tem um impacto
menos direto no ensino-aprendizagem. Enquanto as três primeiras categorias
são norteadas diretamente pelos conteúdos matemáticos expostos, seja como
recurso didático, ou para justificar seu papel na matemática ou para além dela,
a categoria de formação cultural geral é voltada para uma formação que não se
justifica somente no conteúdo matemático. Entendemos que essa categoria, de
alguma maneira, contribui para uma formação matemática do estudante que vai
além dos conteúdos restritos pelo currículo. Ela pode incluir um olhar formativo
mais geral para a disciplina. Como reconhecemos e apreciamos o papel de
formação geral nas aulas de matemática como algo bastante relevante para uma
formação mais ampla do estudante, as inserções nessa última categoria nos
pareceram bem interessantes.
Como comentário final desse breve relato dos dados coletados,
observamos que o livro do autor Dante (volume 1) é, para nós, aquele que mais
se aproxima de um esforço de integrar HdM ao ensino. Primeiro, por conta da
quantidade de inserções. Ela foi bem expressiva, 36 inserções contra 8 inserções
em cada um dos outros dois livros. Em segundo e mais importante, por causa da
qualidade: muito além das minibiografias – que já consideramos uma praxe em
materiais didáticos – o livro do Dante traz abordagens de conceitos em diferentes
momentos no tempo histórico, traz informações de contextos de publicações e
instituições e ainda dialoga com conteúdos do ensino superior. Embora
identifiquemos que a historiografia na qual ele se baseia ainda é a tradicional,
isso não diminui a boa impressão inicial que suas inserções causaram ao
CHEMat. Pareceu-nos o autor Dante faz um esforço – à sua maneira – de

816
aproveitar a HdM em sua disposição para favorecer um ensino de matemática
mais humanizado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: ESTADO ATUAL E PRÓXIMAS ETAPAS

No momento, o CHEMat trabalha no aperfeiçoamento e arremate do


instrumento de coleta de dados sobre as inserções de HdM nos livros didáticos.
A principal dificuldade no processo de coleta de dados do estudo piloto já foi
informada ao longo da apresentação dos dados. Trata-se das divergências que
tivemos em interpretar tanto as perguntas do modo como estavam postas, como
quanto à interpretação de quanto ou como um determinado trecho do livro
didático deve ser considerado uma inserção de HdM.
Uma vez aperfeiçoado o instrumento de coleta de dados, partimos para
a continuação deste programa de pesquisa, em direção a um estudo completo
sobre todas as coleções de ensino médio do PNLD 2018. Cabe registrar que
entre os dados contidos no livro didático e o registro desses dados no
questionário, há a intermediação e a subjetividade do pesquisador. Assim, uma
maneira de diminuir as possíveis distorções e inconsistências nos dados, bem
como reduzir as tendências interpretativas do coletor dos dados, o grupo entende
que na pesquisa completa que se inicia tão logo o questionário esteja atualizado,
a coleta de dados deve ser feita aos pares. Em outras palavras, cada livro
didático será percorrido por dois pesquisadores independentemente, e
evitaremos as repetições das duplas sorteadas para cada livro.
Acreditamos que com o questionário tendo passado pelo “teste” do
estudo piloto, a sua consequente atualização e adequação, e por fim com os
cuidados metodológicos na coleta dos dados feita aos pares, essa pesquisa
revelará justamente aquilo que gostaríamos de conhecer: um panorama de qual
é a HdM que circula nas escolas públicas brasileiras de ensino médio nos últimos
três anos.

817
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Anais Eletrônicos do 17º SNHCT (Seminário Nacional de História da Ciência e
da Tecnologia), 23 a 27 de novembro de 2020, Rio de Janeiro. Organizado por
Gisele Sanglard et al. Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira de História das
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IEZZI, Gelson; DOLCE, Osvaldo; DEGENSZAJN, David; PÉRIGO, Roberto e


ALMEIDA, Nilze. Matemática: Ciência e Aplicações. Volume 3, 9ª edição. São
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818
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SAITO, Fumikazu. A Pesquisa Histórica e Filosófica na Educação Matemática.


Revista Eventos Pedagógicos, v. 9, n. 2, pp. 604-618, 2018.

819
IMPLEMENTAÇÕES ENVOLVENDO HISTÓRIA DA MATEMÁTICA: um olhar
para os artigos do XIII SNHM

Érica Gambarotto Jardim Bergamim272


Ana Caroline Frigéri Barboza273
Lucieli M. Trivizoli274

RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo verificar nos anais do XIII SNHM comunicações
científicas referentes a implementações envolvendo história da matemática, a fim de
identificar como esta tem sido utilizada no contexto de sala de aula. Com esse intuito,
este texto se caracteriza como de natureza qualitativa, e adota a pesquisa bibliográfica
como procedimento metodológico, apoiado em processos de leitura informativa,
segundo Cervo, Bervian e Silva (2007). No processo de busca pelos trabalhos correlatos
ao objetivo deste texto, foram encontrados quatro trabalhos, dentre 111 publicados nos
anais da 13ª edição do evento. Apesar dos poucos trabalhos encontrados, ao analisá-
los foi possível notar abordagens envolvendo instrumentos matemáticos históricos e
utilização de fontes primárias e secundárias, bem como alguns benefícios da utilização
da história da matemática, a saber: motivação dos alunos, compreensão da matemática
como construção humana, participação ativa dos discentes e mobilização de
conhecimentos matemáticos. Os resultados revelam a necessidade de realização de
mais pesquisas que abordem implementações envolvendo a utilização da história da
matemática como recurso pedagógico.

Palavras-chave: História na Educação Matemática. XIII Seminário Nacional de


História da Matemática. Comunicações científicas. História da matemática como
recurso pedagógico.

INTRODUÇÃO

272 Universidade Estadual de Maringá (UEM). ericagambarotto@hotmail.com.


273 Universidade Estadual de Maringá (UEM). anac_fbarboza@hotmail.com.
274 Universidade Estadual de Maringá (UEM). lmtrivizoli@uem.br.

820
O presente trabalho se insere nas discussões mobilizadas pelo Grupo
de Estudos em História da Matemática e Educação Matemática (GHMEM) da
Universidade Estadual de Maringá (UEM), o qual possui, como um de seus
objetivos, desenvolver estudos sobre as possibilidades da história da
matemática em sala de aula.
A utilização da história da matemática como recurso para o ensino de
matemática é um tema que é bastante discutido no meio acadêmico. Ao encontro
dessa afirmação, Mendes e Chaquiam (2016, p. 12) discorrem que “atualmente
tem se ampliado os estudos sobre possíveis abordagens didáticas que podem
ser propostas para o ensino da matemática com base na história desta
disciplina”.
Estudos dessa natureza estão relacionados à História na Educação
Matemática, sendo esta uma das classificações propostas por Miguel e Miorim
(2004) quanto aos campos de investigação da História da Matemática. Este
campo abrange estudos voltados à incorporação da história na formação inicial
ou continuada de professores, na formação matemática de estudantes, nos
programas de ensino, livros de matemática, dentre outros; ou seja, preocupa-se
em como a história da matemática pode contribuir para alunos e professores de
matemática (MIGUEL; MIORIM, 2004; TRIVIZOLI, 2016).
Para o campo mencionado, discorre-se que “embora haja boa
quantidade de literatura que pode ser consultada atualmente, o campo ainda
precisa de muito mais pesquisa empírica sobre o ensino e a aprendizagem
relacionada à história.” (TRIVIZOLI, 2016, p. 202), pois esse tipo de pesquisa
pode auxiliar na utilização da história da matemática como recurso para o ensino,
visto que tende a apresentar o “como”, ou seja, o caminho a ser seguido para
realizar tal utilização.
Com base nessas informações, e considerando que as pesquisas já
realizadas devem ser amplamente divulgadas, ressalta-se que os eventos
científicos se constituem como meios potenciais para contribuir com esse
propósito. Essa ideia é corroborada por Campello (2000) quando afirma que

821
dentre algumas funções dos eventos, têm-se: aperfeiçoamento dos trabalhos,
reflexos do estado da arte e comunicação informal.
Dessa forma, tendo em vista a importância de eventos científicos e a
necessidade de mais pesquisas que relatem experiências envolvendo a história
da matemática para o ensino, entende-se que o evento Seminário Nacional de
História da Matemática (SNHM) constitui-se como um importante meio para
investigar pesquisas já realizadas. O SNHM foi originado há mais de duas
décadas por pesquisadores interessados em estudos sobre história da
matemática, e “[...] tornou-se o momento maior, em nível nacional, para a
congregação desses interessados que passaram a poder discutir e divulgar para
a comunidade as distintas investigações científicas inerentes à História da
Matemática”. O referido evento ocorre a cada dois anos, e em 2019 completou
sua 13ª edição, sendo a mais recente e foco deste trabalho (SNHM, 2019,
online).
Nesse sentido, diante da relevância desse evento e partindo de
preocupações quanto à pesquisas que relatem experiências envolvendo a
utilização da história da matemática, tem-se a seguinte problemática de
pesquisa: o que as comunicações científicas, presentes nos anais do XIII SNHM,
revelam sobre implementações275 envolvendo a história da matemática em sala
de aula?
Com base na problemática elencada, tem-se como objetivo verificar nos
anais do XIII SNHM comunicações científicas referentes a implementações
envolvendo história da matemática, a fim de identificar como esta tem sido
utilizada no contexto de sala de aula. Para cumprir com esse objetivo, foi adotado
como procedimento metodológico a pesquisa bibliográfica, respaldada pelas
etapas da leitura informativa, segundo Cervo, Bervian e Silva (2007).
Isto posto, nas próximas seções apresentam-se os encaminhamentos
metodológicos utilizados no delineamento da pesquisa, as descrições e

275
Neste trabalho, entende-se a palavra implementação como práticas realizadas em sala
de aula.

822
discussões dos trabalhos selecionados relativos ao XIII SNHM, que estão em
conformidade com o objetivo deste texto, e por fim, as considerações com
relação à pesquisa realizada.

METODOLOGIA

O presente artigo se caracteriza como de natureza qualitativa, a qual,


segundo D’Ambrosio (2004, p. 12) “tem como foco entender e interpretar dados
e discursos”, pois seus propósitos estão vinculados a identificar como a utilização
da história da matemática em sala de aula é apresentada nos artigos publicados
nos anais do XIII SNHM.
Tendo em vista esse intuito, o estudo é de cunho descritivo, pois busca
descrever as características dos fenômenos (GIL, 2002), no caso, descrever
trabalhos que são correlatos ao objetivo deste texto. Como procedimento
metodológico, adota-se a pesquisa bibliográfica, visto que esse tipo de
procedimento

procura explicar um problema a partir de referências teóricas


publicadas em artigos, livros, dissertações e teses. Pode ser
realizada independentemente ou como parte da pesquisa
descritiva ou experimental. Em ambos os casos, busca-se
conhecer e analisar as contribuições culturais ou científicas do
passado sobre determinado assunto, tema ou problema (CERVO;
BERVIAN; SILVA, 2007, p. 60).

Sendo assim, a pesquisa bibliográfica foi realizada a partir dos artigos


científicos publicados nos anais do XIII SNHM. A escolha desse evento se deve
ao fato de sua relevância para a comunidade de pesquisadores em História da
Matemática - contemplando especificamente àqueles interessados nas
contribuições da utilização da história da matemática para o ensino -, e a escolha
da edição, por ser a mais recente do evento.

823
De acordo com informações presentes nos anais dessa edição, tem-se
que foram realizadas 5 conferências, 1 painel, 4 mesas de discussões temáticas
e 1 exposição permanente, como também 111 trabalhos aprovados para
apresentação em modalidade de comunicação científica e 20 em modalidade de
pôster; dentre o rol de trabalhos da primeira modalidade, 78 pertencem ao eixo
História da Matemática e 33 ao da História da Educação Matemática (SNHM,
2019).
Com a intenção de identificar os artigos que contemplam
implementações em sala de aula envolvendo a história da matemática como
recurso para o ensino, foram utilizadas algumas etapas da leitura informativa
apresentadas em Cervo, Bervian e Silva (2007), a saber: pré-leitura, leitura
seletiva e leitura reflexiva dos dados.
A etapa de pré-leitura ocorreu com a leitura dos resumos dos 111
trabalhos publicados na 13ª edição do SNHM, pois com essa ação foi possível
identificar a existência de informações concernentes ao propósito da pesquisa,
o que é característica dessa etapa, segundo Cervo, Bervian e Silva (2007). Para
sua realização, buscou-se por artigos em que nos resumos havia menção à
utilização da história da matemática nos mais distintos níveis e etapas de ensino.
Com essa ação foram selecionados 11 trabalhos, que correspondem a apenas
10% do total de trabalhos publicados.
Na etapa de leitura seletiva “somente os dados que possam fornecer
alguma luz sobre o problema, constituindo um elemento de resposta ou de
solução, é que serão selecionados” (CERVO; BERVIAN; SILVA, 2007, p. 85).
Sendo assim, ao ler por completo os 11 artigos selecionados na etapa anterior
foram desconsiderados aqueles que, em um primeiro momento, davam a
entender aproximação com o objetivo deste trabalho, mas que em seu cerne não
se aproximavam, de fato, seja por motivos de não ocorrer implementações
quanto à utilização da história da matemática, ou por serem recortes de partes
de um trabalho maior com intenção futura de implementar, dentre outros. Assim,
a partir da ação resultante dessa etapa foram selecionados quatro trabalhos,
conforme apresentado no Quadro 1.

824
QUADRO 1: Trabalhos selecionados a partir do XIII SNHM
Título Autores Instituição Eixo
1. O estudo de
conhecimentos
matemáticos
incorporados no Antonia Naiara de
Universidade
manuseio da Sousa Batista e Ana História da
Estadual do Ceará
balhestilha inserida Carolina Costa Matemática
- UECE
no documento Pereira
Chronographia,
reportorio dos
tempos...(1603)
2. Prática de ensino
Universidade
de matemática- a
Regional do Cariri
história da Denise Aparecida
- URCA e História da
matemática como Enes Ribeiro e José
Universidade Matemática
opção metodológica Lamartine Barbosa
Estadual da
no ensino de
Paraíba - UEPB
geometria
3. Uma experiência
de trabalho
cooperativo
recorrendo à história Elisângela Pereira Universidade
História da
da matemática e à Barbosa e Andressa Federal do Espírito
Matemática
pedagogia do texto Cesana Santo - UFES
como caminhos
para ensinar
multiplicação
4. História como
Jessica Alves
mediadora na
Ribeiro, João Pedro Universidade
educação História da
Marques Oliveira e Estadual de Goiás
matemática: ensino Matemática
Luciano Feliciano de - UEG
e a aprendizagem
Lima
de funções
Fonte: as autoras.

Tendo como base a leitura reflexiva, terceira etapa da leitura informativa,


para a qual depois de selecionados os textos “o pesquisador ingressa no estudo
propriamente dito dos textos, com a finalidade de saber o que o autor afirma
sobre o assunto” (CERVO; BERVIAN; SILVA, 2007, p. 85), na próxima seção
serão apresentadas descrições dos trabalhos selecionados.

825
DESCRIÇÃO DOS TRABALHOS SELECIONADOS

Com base no encaminhamento metodológico descrito anteriormente,


foram identificados os trabalhos que apresentam implementações que utilizam a
história da matemática em sala de aula, nos mais variados níveis, desde a
educação básica até o nível superior.
Nesse sentido, tendo em vista que o foco deste trabalho é verificar nos
anais do XIII SNHM comunicações científicas referentes a implementações
envolvendo história da matemática, a fim de identificar como esta tem sido
utilizada no contexto de sala de aula, optou-se por descrever brevemente esses
trabalhos tendo como base os objetivos propostos, os tipos de atividades
desenvolvidas e seus modos de encaminhamento, o público-alvo, período de
implementação e os resultados indicados.
O artigo produzido por Batista e Pereira (2019) é um recorte da
dissertação de mestrado da primeira autora e tem como objetivo apresentar um
breve estudo dos conhecimentos matemáticos incorporados no manuseio da
balhestilha276, que pode vir a se tornar um recurso potencialmente didático para
a exploração de conhecimentos matemáticos. A atividade proposta nesse
trabalho foi desenvolvida no âmbito de um curso de extensão universitário de 20
horas, composto por 11 participantes – seis professores e cinco licenciandos em
Matemática.
As autoras explicam que o curso foi dividido em quatro encontros. No
primeiro encontro, foi discutido sobre o contexto histórico em que o documento
Cronographia277 e a balhestilha estão inseridos. A partir do segundo encontro,

276
A balhestilha é um instrumento matemático, destinado para medir distâncias angulares
e que foi bastante usado entre os séculos XIV e XVIII, para diversas finalidades (BATISTA;
PEREIRA, 2019, p. 755).
277
A palavra Chronographia [...] significa, de acordo com Figueiredo (1913), um
substantivo feminino que deriva da palavra chronologia, que designa “tratado das
divisões do tempo” ou “tratado das datas históricas” (BATISTA, 2020, p. 126).

826
foi iniciada a realização da atividade proposta, a qual foi desenvolvida em três
momentos (nos três dias restantes).
No primeiro momento, os participantes receberam uma balhestilha
construída e um texto que descrevia sobre como utilizá-la, para que pudessem
elencar os conhecimentos matemáticos que deveriam ser mobilizados para fazer
uso desse instrumento. No segundo momento, os participantes foram
convidados a fazer a medição de um astro segundo a linha do horizonte,
conforme instruções presentes no documento Cronographia, e por fim, no
terceiro momento se deslocaram para fazer observações e medições
considerando como astro a lua.
Como resultado, as autoras apontam que ao manipular a balhestilha os
alunos tiveram dificuldade em posicionar seus elementos corretamente, no
entanto, identificaram conceitos de ângulos, triângulos, retas perpendiculares,
evidenciando que o objetivo da atividade foi alcançado.
Com relação ao trabalho de Ribeiro e Barbosa (2019), foram
apresentados dois objetivos, no entanto, somente um deles está relacionado
mais diretamente à história da matemática, a saber: verificar as possibilidades
pedagógicas de atividades com figuras geométricas, por meios algébricos e
geométricos, para demonstração do Teorema de Pitágoras, a partir da História
da Matemática, numa perspectiva interdisciplinar.
A atividade proposta foi desenvolvida com 20 alunos das disciplinas
Práticas de Ensino III e IV de um curso de licenciatura em Matemática, e consistiu
em solicitar que os alunos fizessem algumas manipulações direcionadas com
um quadrado de medida c e quatro triângulos retângulos com hipotenusa
medindo c e catetos medindo a e b, com o intuito de discutir sobre a
demonstração da fórmula do Teorema de Pitágoras. A partir dessa ação, foi
apresentado um texto sobre quem foi Pitágoras e sua importância para a
Matemática, sobre a história do triângulo retângulo, bem como do Teorema de
Pitágoras. Em seguida, foi proposta a demonstração do teorema de Pitágoras
por meio da semelhança de triângulos. Os autores explicam que as atividades
propostas foram baseadas em Mendes e Chaquiam (2016).

827
Os resultados apontados pelos autores indicam que a história da
matemática foi utilizada como meio para compreensão dos alunos acerca de que
a matemática não está desvinculada do contexto social, mas que ela é resultante
de uma construção histórica e cultural.
Barbosa e Cesana (2019) apresentam uma pesquisa, inserida em um
trabalho de conclusão de curso, a qual foi realizada com a cooperação de uma
professora das séries iniciais do Ensino Fundamental. Esse estudo apresenta
como objetivo analisar a prática da sala de aula de uma professora regente do
5º ano do Ensino Fundamental I numa experiência de construção e aplicação de
uma atividade estruturada de ensino, sobre a multiplicação, recorrendo à História
da Matemática e à Pedagogia do Texto278 como caminhos para ensinar.
Nesse texto é explicitado que houve cinco encontros com a professora
para discussão e planejamento das ações para, em seguida, as atividades serem
aplicadas a duas turmas de 5º ano, com quatro horas/aula para cada uma,
distribuídas em dois dias com aulas geminadas.
Os encaminhamentos das atividades propostas para essas turmas foram
os mesmos, em que no primeiro dia, inicialmente foi apresentado sobre John
Napier (1550-1617) e suas contribuições para a matemática, bem como a
representação construída em madeira dos “Ossos de Napier”279 . No segundo
dia, foi relembrado o que foi discutido na aula anterior por meio da apresentação
de um folder sobre John Napier, e em seguida, o tempo restante foi destinado à
realização de atividades estruturadas envolvendo os “Ossos de Napier”, que
tinham como foco a operação de multiplicação por meio desse instrumento, e a
resolução de situações-problema que foram elaboradas tendo em vista os
pressupostos da Pedagogia do Texto.

278
“[...] o objetivo dessa metodologia é propiciar, pela linguagem escrita, a apropriação e
compreensão de novas ideias, conceitos ou teorias que permitam que o aluno faça a sua
leitura de mundo” (SILVA; LOURENÇO; CÔGO, 2004, p. 17, apud BARBOSA; CESANA,
2019, p. 1029).
279
Os “Ossos de Napier”, também conhecido como “barras/varas de Napier”, é uma
invenção de John Napier (1550-1617), o qual se classifica com um dispositivo mecânico
de cálculo (SWETZ, 1994).

828
Conforme indicado pelas autoras, as ações desenvolvidas com a
professora e a realização das atividades pelos alunos mostraram que a
cooperação contribuiu com a formação da professora no sentido de conhecer
novas formas de ensinar; em relação aos alunos, eles conheciam pouco sobre a
história da matemática e o contato com ela foi enriquecedor, motivando-os para
uma participação ativa no desenvolvimento das atividades.
Em relação ao trabalho de Ribeiro, Oliveira e Lima (2019), os autores
buscaram refletir a importância da história no contexto escolar e como ela pode
ser trabalhada na sala de aula de matemática como fonte de incentivo e,
consequentemente, como motivação para o envolvimento dos alunos na
aprendizagem da matemática. O conteúdo matemático levado em consideração
nesse trabalho foi o de funções.
As atividades desenvolvidas foram aplicadas com alunos do 1º ano do
Ensino Médio, as quais consistiram em um primeiro momento na apresentação
de uma tarefa envolvendo duas sequências de números que estão relacionadas
por meio de uma lei de formação, em que os alunos deveriam identificar as
variáveis dependentes e independentes e expressar a lei de formação de dois
modos: expressão (matemática) e frase escrita; em um segundo momento, foram
distribuídas listas de exercícios. Em meio às discussões referentes a essas
listas, foram apresentadas, por meio de uma tabela, as diferentes modificações
da definição de função ao longo do tempo.
Embora os resultados da implementação realizada não tenham sido
apresentados de forma explícita, as considerações dos autores apontam que a
história da matemática pode contribuir como fonte de incentivo e motivação para
o aprendizado e também pode favorecer o estabelecimento de relações com o
cotidiano.

DISCUSSÃO DOS TRABALHOS DESCRITOS

829
Inicialmente, considera-se importante enfatizar que foram encontrados
poucos trabalhos relacionados ao objetivo deste estudo. Esse resultado está de
acordo com outras pesquisas já realizadas, cita-se por exemplo, o trabalho de
Souto (2010), que aborda sobre a História na Educação Matemática presente no
Seminário de História da Matemática (SNHM) e no Encontro Luso-Brasileiro de
História da Matemática, datados de 2003 a 2007. A autora indica que “apenas
13% dos estudos publicados tratam da participação da História da Matemática
em situações de ensino e, apenas uma parcela desses discute propostas
efetivas de inserções históricas em sala de aula.” (2008, p. 534).
Outro trabalho que também tem relação com o objeto de estudo deste
texto é o de Martins e Silva Neto (2018), donde os autores fizeram um
levantamento dos trabalhos publicados no Encontro Nacional de Educação
Matemática (ENEM) dos anos de 1987 a 2017, e encontraram que dentre 71
comunicações contidas no eixo da História para o ensino de Matemática, apenas
15 discorreram sobre atividades de ensino.
Para mais, destaca-se que o trabalho de Machado e Araújo Neto (2019)
também estão correlatos ao objeto de estudo deste texto, donde os autores
buscaram analisar 10 trabalhos publicados no Simpósio Temático intitulado “A
investigação científica em História da Matemática no Brasil”, presente no 16º
Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia, e dentre os
resultados apresentados, indicaram que apenas 1 trabalho foi classificado como
pertencente ao campo da História na Educação Matemática.
Diante desse cenário, tem-se ciência de que são poucos os trabalhos
relacionados ao objetivo deste texto, bem como aqueles encontrados na busca
que foi realizada nos anais da última edição do SNHM, todavia, considerando a
representatividade desse evento, entende-se ser pertinente apresentar alguns
aspectos dos trabalhos selecionados, os quais indicam como a história tem sido
utilizada na sala de aula, tais como: tipos de fontes históricas utilizadas, os
conteúdos que foram abordados e as contribuições elencadas pelos autores.
De acordo com a descrição apresentada na seção anterior, verifica-se
que os trabalhos apresentam algumas aproximações e distanciamentos. Nesse

830
sentido, destaca-se que os trabalhos de Batista e Pereira (2019) e Barbosa e
Cesana (2019) se aproximam no que se refere ao tipo de atividade, pois os dois
se pautam na utilização de instrumentos antigos para a condução dos conteúdos
propostos, sendo que o primeiro trabalho focaliza no estudo de conteúdos
relacionados à geometria, tais como triângulos, ângulos e perpendicularismo; e
o segundo, por sua vez, se relaciona com estudos de conteúdos da aritmética,
como multiplicação e adição.
Além disso, constata-se que somente o trabalho de Batista e Pereira
(2019) se apropria de fontes primárias, enquanto que os trabalhos de Ribeiro e
Barbosa (2019), Barbosa e Cesana (2019) e Ribeiro, Oliveira e Lima (2019) se
apoiam em fontes secundárias para a produção das atividades propostas e
implementadas. Isto pode ser corroborado com o que é exposto por Sad e Silva
(2008), de que muitas fontes primárias apresentam um estado ruim de
conservação, outras se encontram em locais de difícil localização e acesso,
como também linguagem desconhecida, o que dificulta sua utilização como
recurso para o ensino, enquanto que as fontes secundárias são mais utilizadas
por serem mais fácil o seu acesso.
No que se refere aos resultados apresentados nos trabalhos descritos,
observa-se que a história propiciou a motivação dos alunos (RIBEIRO;
OLIVEIRA; LIMA, 2019), a compreensão da matemática como construção
humana (RIBEIRO; BARBOSA, 2019), a participação ativa dos discentes
(BARBOSA; CESANA, 2019), e mobilização de conhecimentos matemáticos
(BATISTA; PEREIRA, 2019). Tais resultados estão em consonância com alguns
dos argumentos reforçadores quanto às potencialidades da história da
matemática (MIGUEL; MIORIM, 2004).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho teve por objetivo verificar nos anais do XIII SNHM
comunicações científicas referentes a implementações envolvendo história da

831
matemática, a fim de identificar como esta tem sido utilizada no contexto de sala
de aula. Para atender a esse objetivo, foram realizadas buscas nos anais da
última edição do evento mencionado, em que foram encontrados 4 trabalhos
correlatos ao objetivo deste texto.
Os trabalhos selecionados direcionam-se para implementações
envolvendo a história da matemática, cada qual com suas particularidades
quanto ao tipo de atividade e abordagens realizadas, em que foi possível
identificar como a história foi utilizada nos contextos de sala de aula. Mediante a
descrição e discussão dos quatro trabalhos encontrados, foi possível notar
abordagens envolvendo instrumentos matemáticos históricos e utilização de
fontes primárias e secundárias, como também alguns benefícios da utilização da
história da matemática elencados pelos autores dos trabalhos identificados, a
saber: motivação dos alunos, compreensão da matemática como construção
humana, participação ativa dos discentes e mobilização de conhecimentos
matemáticos.
Todavia, conforme apontado no texto, verifica-se que na edição
escolhida são poucos os trabalhos direcionados para o objetivo deste texto. Esse
fato está em consonância com resultados de outras pesquisas e revela a
necessidade da realização de mais investigações que abordem implementações
envolvendo a utilização da história da matemática como recurso pedagógico, e
que possam, consequentemente, fortalecer o campo da História na Educação
Matemática.
Este fato se mostra como uma possível limitação do estudo, pela
questão do rol de trabalhos, no entanto, apresenta-se também como indicativo
para futuras investigações que cooperem cada vez mais com estudos e
pesquisas relacionados à História na Educação Matemática.

REFERÊNCIAS

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recorrendo à história da matemática e à pedagogia do texto como caminhos

832
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BATISTA, A. N. S. O documento Chronographia, reportorio dos tempos...


(1603) e o instrumento balhestilha: a incorporação de alguns conhecimentos
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833
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história da matemática como opção metodológica no ensino de geometria. In:
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13 ed., Fortaleza, 2019, site. Disponível em: <
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SOUTO, R. M. A. História na Educação Matemática – um estudo sobre


trabalhos publicados no Brasil nos últimos cinco anos. Bolema, Rio Claro
(SP), v. 23, n. 35B, abril, 2010, p. 515-536. Disponível em:
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SWETZ, F. J. Learning Activities from the History of Mathematics. Portland:


J. Weston Walch Publisher, 1994.

TRIVIZOLI, L. M. Um panorama para a investigação em História da


Matemática: surgimento, institucionalização, pesquisas e métodos. Revista
Paranaense de Educação Matemática, Campo Mourão, v. 5, n. 8, p.189-
2012, jan. 2016. Disponível em:
<http://www.fecilcam.br/revista/index.php/rpem/article/viewFile/1231/pdf_171>.
Acesso em: 11 out. 2020.

834
LIGA DE ENSINO DO RIO GRANDE DO NORTE: concepções e práticas
voltadas ao ensino de matemática (1911 – 1924)

Maria Maroni Lopes280

RESUMO
Este texto é um recorte de uma pesquisa de Doutorado, que entre outros objetivos,
buscou entender as concepções educacionais da Liga de Ensino do Rio Grande do
Norte - LERN, em específico, como os membros desta instituição compreendiam e
influenciavam a implementação de práticas voltadas ao ensino de matemática no RN.
As respostas, aos nossos questionamentos, foram sendo construídas ao longo da
pesquisa, por meio dos documentos analisados e, interpretados em arquivos
catalogados, entre estes: boletins, atas, diário de professores, Relatório da
Instrução Pública, em revistas, e, artigos do jornal A Republica. Evidenciamos, no
presente estudo, que os intelectuais ligados a LERN participavam diretamente na
elaboração das diretrizes educacionais do RN, de modo a determinarem as práticas
formativas essenciais aos professores, vislumbradas em cursos direcionados aos
docentes com temáticas que reforçavam a compreensão que tinham em relação as
inovações didáticas, à época. As metodologias voltadas as salas de aulas, os recursos
didáticos, o modo como os registros nos diários de classe era realizados, e os conteúdos
a serem abordados, dentre estes, os referentes a matemática.

Palavras-chave: Concepções educacionais. Ensino de Matemática.


Intepretação de documentos.

INTRODUÇÃO

Estudos, por nós analisadas, apontam que as Ligas de Ensino no


Brasil começaram a serem criadas nas primeiras décadas do século XX.
Rodrigues (2007), Cosme Neto (2016) e Nagle (2001), ressaltam que a Liga de
defesa nacional teve suas atividades iniciadas em 1916 e a Liga Nacionalista,
por iniciativa do estado de São Paulo, em 1917. Estas instituições

280
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). marolopes@gmail.com

835
buscavam, entre outras iniciativas, a erradicação do analfabetismo, tendo na
educação a expectativa de mudanças sociais no país. É nessa direção que a
Liga de Ensino do Rio Grande do Norte – LERN foi fundada em julho
de 1911, funcionando até os dias atuais, atuando como órgão regulador do
Complexo Educacional Noilde Ramalho, o qual é composto por duas escolas de
educação básica.
Idealizada e implementada por Henrique Castriciano de Souza281, com o
apoio educacional, cultural, logístico e financeiro de lideranças políticas,
religiosas, educacionais, empresariais, militares, agrícolas e de funcionários
públicos, elite social e cultural que pensava a educação do Rio Grande do Norte
à época. Inspirado nos ideais republicanos, Henrique Castriciano, ao retornar de
uma viagem à Europa, passou a publicar, em periódicos locais, por vezes
regionais e nacionais, as impressões a respeito da educação europeia.
Evidenciou-se que em sua estada pela Europa, dedicou-se a estudar sobre as
escolas voltadas à formação da mulher, em específico as escolas profissionais
e de economia domésticas, principalmente em países como Suíça, França,
Alemanha, Holanda e Bélgica. Expôs, assim, suas ideias por meio de
publicações em periódicos do estado e, em especial, no Jornal A República282.
Compreendemos igualmente ao pesquisador Jean-François Sirinelli (2003),
quando este ressalta que: “o meio intelectual constitui, ao menos para seu núcleo
central, um ‘pequeno mundo estreito’, onde os laços se atam, por exemplo, em
torno da redação de uma revista ou do conselho editorial de uma editora” Sirinelli
(2003, p. 248). Nesta perspectiva, Catriciano discutiu com amigos próximos,
grupo com os quais dialogava, imbuídos das mesmas convicções, a
possibilidade de organizar uma sociedade de homens com a finalidade de
trabalharem em prol da melhoria da educação norte-rio-grandense.

281Vasta é a produção sobre Henrique Castriciano e a quantidade de referências em relação a


sua atuação enquanto educador, na literatura norte-rio-grandense.
282
Fundado em 1889, por Pedro Velho, como porta-voz das ideias republicanas no estado.
Com a Proclamação da República o jornal passa a ser um veículo oficial de informação.

836
Com base nos textos analisados, compreendemos que os integrantes da
referida liga vislumbravam um projeto educacional que trouxesse mudanças
significativas a Natal e, em larga escala, ao estado. Assim, em julho de 1911 a
LERN foi criada, tendo como justificativa em seus regulamentos e, reforçado nos
discursos dos membros, a contribuição, em tudo que dissesse respeito a
instrução pública do estado do Rio Grande do Norte.
Nessa direção, em nosso estudo, buscou-se entender como a LERN
influenciava a educação norte-rio-grandense, em específico, as compreensões
em relação ao ensino de matemática e as práticas a ele relacionadas. As
respostas, aos nossos questionamentos, foram sendo construídas ao longo da
pesquisa, por meio dos documentos analisados nos arquivos inventariados,
principalmente, no Arquivo Público Estadual do Rio Grande do Norte, no acervo
do Museu da Escola Doméstica e no Repositório do Laboratório de Imagens da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, entre estes: boletins, Atas,
Ofícios, Relatórios dos Diretores da Instrução Pública; em Leis, Decretos, além
de artigos de jornais e revistas.
Para tanto, estudamos suas ações em diversos âmbitos da Educação a
partir de seus escritos e práticas publicadas na imprensa e imprensa pedagógica,
principalmente as atividades que desenvolveram em prol de assuntos
direcionados ao ensino de matemática, nas primeiras décadas do século XX.

O ENSINO DE MATEMÁTICA: Concepções Pedagógicas e Práticas Docentes

Como posto, direcionamos nosso olhar as ações da LERN na busca de


entender, por meio de suas publicações, como concebiam, implementavam e
influenciavam as práticas voltadas ao ensino de matemática no RN, entre os
anos de 1911 e 1924. O recorte temporal se justifica por ser este o período de
criação da instituição e culminar com o encerramento do mandato do Diretor
da Instrução Pública do estado, membro e presidente da liga. Assim, para este
estudo analisamos as publicações no jornal A Republica, alguns dos artigos

837
da revista Pedagogium283, e arquivos do Repositório do laboratório de
imagens da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – LABIM/UFRN.
O uso da imprensa como fonte historiográfica nas pesquisas em
história da educação e educação matemática vem sendo incorporado na
medida em que novos métodos de análise de dados vão sendo utilizados aos
estudos apoiados em argumentos teóricos de outras áreas, proporcionando
uma variedade de fontes de informação e documentação. No entendimento
de Hernandez Dias (2013) a imprensa pedagógica tem sua identidade
construída no contexto informativo e hermenêutico dos problemas dos
professores, de suas associações, dos sindicatos de professores, nos
avanços e retrocessos do sistema educacional, na informação e análises de
outras instituições educativas diferentes das instituições escolares,
movimentos estudantis, em associações de apoio à criança e ao adolescente,
em movimentos sindicais, dentre outros. Outros esses, que possam estar
ligados de modo direto ou indireto ao processo educativo.
Desse modo, a imprensa pedagógica apresenta uma identidade própria.
Ao passo que se aproxima dos documentos formais dos problemas
educacionais, se apresenta também como questionadora, tendo em vista as
publicações de associações de professores, sindicatos, associações de alunos,
jornais de movimentos de bairros, de pais de alunos: “La prensa pedagógica se
convierte em un capítulo diferenciado de la historia de los sistemas educativos,
de la difusión de las ideas y del pensamento pedagógico, de las practicas y
métodos de ensinanza” (HERNADEZ DIAZ, 2015, p.10). Nessa direção,
destacamos, nos quadros 01 e 02, textos que foram selecionados no periódico
A Republica por contribuíram com nossa pesquisa.

QUADRO 1: Publicações no Jornal A Republica


Número do Jornal/página / data Título do artigo

283
Revista da Associação de Professores do Rio Grande do Norte, teve o primeiro número publicado em
julho de 1921, sob a direção de Nestor dos Santos Lima, Diretor da Escola Normal, à época.

838
156/ página 04/ 26 julho de 1911 Lição de Coisas: sua importância,
princípios e métodos.
Breve descrição
A Narrativa do autor é construída mediante explicações sobre o que é o
ensino de lição de coisas, o qual compreende como sendo rudimentos de
ciências e história natural, ministrado de forma concreta nas escolas
primárias. Tendo como objetivo fornecer a criança representações nítidas,
vivas, completas, por meio da percepção a intuição imediata, possibilitando
uma soma de conhecimentos elementares, com base no meio local. Estimula
a percepção sobre as partes dos objetos, e suas propriedades, ao mesmo
tempo que os educandos aprendem a denominar os objetos, a falar sobre
eles. Pondera sobre a sua importância educativa em virtude de estimular a
percepção a observação, o raciocínio, a abstração e a generalização.
Fonte: Jornal A REPUBLICA, 1911

Os trechos destacados, no quadro um, e, quadro dois trazem algumas


das compreensões que membros da LERN, ligados diretamente a
administração pública, tinham, à época, em relação as metodologias de
ensino, os recursos didáticos utilizados em sala de aula. A nossa
interpretação, com base nos artigos, é que buscava-se divulgar por meio dos
periódicos investidas ações educativas embasadas em ideias pedagógicas e
visão de mundo que perpassava no cenário europeu e norte-americano.
Assim, imprimia-se suas ideias, uma vez que a narrativa não era neutra, de
modo que emitiam opiniões sobre modelos educacionais e diversificadas
perspectivas de ensino, como destacado nos trechos, a relevância dada a
inserção no currículo de lições de coisas e trabalhos manuais.

QUADRO 2: Publicações no Jornal A Republica


Número do Jornal/página / data Título do artigo

190/ página 03/ 05 de setembro de Trabalho Manual: canto, exercícios


1911 físicos, sua importância, métodos e
processos.
Breve descrição
o texto discorre sobre a relevância da abordagem em sala de aula do trabalho
manual, seus métodos e processos, de modo que este atenda a vários fins,
dentre os quais destaca a educação intelectual, unindo sempre ao ensino
manual e as disciplinas como desenho, o estudo das formas geométricas, e,

839
o cálculo. De modo a possibilitar o aluno observar e escolher as formas, as
cores, além de manipular objetos, os quais consiste em cortar, dobrar,
confeccionar sólidos e objetos usuais, fazer a modelagem de objetos em
barro, gesso e moldagem de outros, por meio de modelos. O autor ressalta
que existe duas escolas que debatem o trabalho manual, uma embasada nas
concepções francesas que entende este como um preparo especial para os
diversos ofícios, “é o método dos elementos técnicos” (DANTAS, 1911, p.4).
A outra praticada na Bélgica que compreende como um simples exercício
manual, o qual se restringe a confecção de objetos usuais, sem visar uma
dada profissão, sendo ministrado pelos próprios professores das escolas
primárias.

Fonte: Jornal A REPUBLICA, 1911.

Mediante a reforma de ensino do RN de 1916 algumas mudanças


foram implementadas, o texto apresentava orientações a formação de
professores, e, currículo escolar, além de questões ligada aos aspectos
administrativos das instituições de ensino. Assim se determinou que o ensino
público primário seria ministrado do seguinte modo:

completo, ou rudimentar, nos estabelecimentos adequados,


comporta, nos grupos e escolas isoladas, um curso preliminar
de quatro anos, compreendendo as seguintes matérias: leitura,
escrita, língua nacional, cálculo aritmético e sistema decimal,
noções de geometria, de geografia geral, noções de desenho,
noções de ciências físicas e naturais, em especial, higiene,
agricultura, zootecnia, economia doméstica, canto e trabalhos
manuais e exercícios físicos. (A REPUBLICA, 1917, p.5).

A citação nos revela alguns conteúdos voltados ao ensino de


matemática que era contemplando nas escolas primárias, como o estudo de
cálculo aritmético, a abordagem do sistema decimal, e algumas noções de
geometria. Contudo, o documento não apresenta de modo detalhado como se
dava o estudo de cada tema.
Nessa mesma direção, encontramos uma publicação no jornal A
Republica que ressalta o currículo da Escola Normal de Natal, e como o curso
estava organizado. Sendo este em quatro anos, dois de preparação para o
ensino nas escolas primárias e dois dedicados ao profissionalizante

840
propriamente dito. O qual compreendia as seguintes disciplinas: português;
Francês; Aritmética; Geometria teórica e prática; Geografia geral e particular
do Brasil; Educação moral e cívica; Noções de física e Química aplicada à
vida prática; História Natural aplicada a agricultura e à criação dos animais;
história da educação; economia e leis escolares; pedagogia; higiene escolar;
desenho; princípios de música e cantos escolares; trabalhos manuais;
economia e artes domésticas, para o sexo feminino, educação física e
exercícios infantis. A prática escolar ocorria no Grupo escolar modelo Augusto
Severo.
Não obstante, os documentos analisados, em 1921, trazem as
orientações dos conteúdos a serem estudados em cada disciplina das
instituições de ensino primário, públicas e privadas, das escolas
complementares, e da Escola Normal de Natal. No que se refere ao ensino
das matemáticas consta no programa das escolas primárias:

Ideia geral de grandezas, números e suas espécies; definição


de aritmética; utilidade do seu estudo. Ideia geral de geometria:
volume; superfície; linha; ponto; figura geométrica; objeto da
geometria. Ideia geral da numeração: numeração falada;
ordens e classes de unidades; princípio fundamental da
numeração falada; linhas retas, curvas e quebradas.
Numeração escrita: princípio fundamental; leitura dos números;
numeração decimal; linhas perpendiculares e oblíquas. As
quatro operações sobre os números inteiros: definições regras
e provas de cada uma delas, paralelas. Divisibilidade dos
números, características da divisibilidade. Ângulos Números
primos, decomposição dos números em fatores primos, teoria
do máximo comum divisor e do mínimo múltiplo comum. As
superfícies planas, triângulos. Frações, suas espécies. Frações
decimais, operações sobre os números decimais e as frações
decimais. As superfícies planas: quadriláteros. Frações
ordinárias, princípios fundamentais, redução das frações ao
mesmo denominador. O menor denominador comum.
Superfícies planas: círculo e sua superfície. Simplificação das
frações, expressões e números fracionários, mudança de
fração decimal em fração ordinária e vice-versa. Dízimas
periódicas superfícies planas; polígonos. As quatro operações
sobre as frações ordinárias: superfícies planas, coroas e elipse.
Raiz quadrada, princípios, raiz quadrada dos números inteiros,
decimais e das frações ordinárias, sólidos geométricos: cubo.
Raiz cúbica: definição e regras. Raiz cúbica dos números

841
inteiros decimais, e das frações ordinárias. Sólidos
geométricos: paralelepípedo. Sistema métrico decimal. Sólidos
geométricos: prisma triangular. Razões e proporções,
propriedades fundamentais e consequências, sólidos
geométricos: prisma triangular. Razões e proporções.
Propriedades fundamentais e consequências, sólidos
geométricos: prisma quadrangular e pentagonal. Grandezas
proporcionais, regra de juros, sólidos geométricos, pirâmide
truncada. Grandezas proporcionais, regra de descontos,
corpos redondos e cilindros. Regra de companhia, corpos
redondos, o cone. Noções de cambio, principais medidas
nacionais. (RIO GRANDE DO NORTE, 1921, p.12).

Compreendemos, com base nas análises documental, que alguns dos


temas abordados nos currículos das escolas primárias sofriam influência das
concepções educacionais dos membros da LERN, em virtude do currículo dos
cursos preparatório da escola modelo284, regulamentado pela Liga, em seus
cursos preparatório, equivalente aos dois últimos anos do ensino primário,
apresentarem o mesmo programa de ensino. A hipótese se justifica em virtude
do presidente da Liga atuar também como Diretor da Instrução Pública do RN,
e, em parceria com professoras da referida escola organizou e regulamentou
todo seu currículo.

DIÁRIOS DE CLASSE, CURSOS DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES E


CONCURSOS PÚBLICOS: Indícios sobre o ensino de matemática

Discorreremos neste tópico a respeito dos diários de classe, tendo em


vista que estes podem nos trazer alguns indícios de como professores, e
professoras se apropriavam dos conteúdos presentes nos currículos
escolares estabelecidos nos documentos oficiais, buscamos, desse modo,
interpretar os registros docentes por entendermos que estes são produto da
cultura escolar e, de tal modo, conservam os registros reveladores a respeito
do trabalho docente. Além disso, analisamos os temas propostos nos cursos
de formação oferecidos aos professores, e concursos públicos, por estes nos

284Escola Doméstica de Natal, instituição de modelo suíço, idealizada e mantida pela Liga
de Ensino do Rio Grande do Norte, inaugurada em 1914 funcionando até os dias atuais.

842
fornecer pistas das perspectivas educacionais da época, assim como a
respeito da difusão e implementação das reformas educacionais.

Diário de Classe

FIGURA 1: DIÁRIO DE CLASSE DE UMA ESCOLA FEMININA

Fonte: Laboratório de Imagens, Digitalização de Documentos Históricos –


LABIM/UFRN.

Assim, analisamos alguns dos diários de classe, buscando informações de


como os conteúdos matemáticos eram abordados, quais conteúdos eram
privilegiados e a frequência com que eram ministrados ao logo de cada semana,
dentre outras informações. Os referidos diários eram organizados conforme
orientação da Instrução Pública do estado, tendo na capa o termo de abertura,
no final do livro o termo de encerramento. Cumpre lembrar que o diário conta
com 100 folhas, todas rubricadas pelo diretor geral da Instrução Pública.
O quadro 3, a seguir, apresenta o formato do referido diário,
salientando alguns conteúdos que nos foi possível realizar anotações.

QUADRO 3: Diário de Classe


Horários Matéria Ponto tratado Demonstrações

11h – 11h e Desenho Desenhar a mão livre Do Natural


40 um chapéu e um jarro.
8h – 8h e 40 Geometri Prisma hexagonal Definição; quantos
a lados tem; qual a forma

843
dos lados; Exemplo de
objetos hexagonais.
9h – 9h e 40 Cálculo Escrita: copiar do Aparece a escrita de
quadro negro contas algumas atividades
de somar, dividir, com operações de
multiplicar somar, dividir e
multiplicar
Cálculo Oral: tabuada de 5 Com o auxílio do
10h – 11 e 40 Escrita: problemas contador A professora
destaca a escrita de
alguns problemas.
Fonte: Laboratório de Imagens, Digitalização de Documentos Históricos –
LABIM/UFRN.

FIGURA 2: DIÁRIO DE CLASSE DE UMA ESCOLA MASCULINA

Fonte: Laboratório de Imagens, Digitalização de Documentos Históricos –


LABIM/UFRN.

QUADRO 4: Diário de Classe


Horários Matéria Ponto tratado Demonstrações

Das 10h e 40 Geometri Ângulos, divisão, etc Ângulo reto, agudo,


às 11h e 10. a obtuso
Das 11h e 10 Cálculo 1ª) Oral: ler as páginas 228 + 323 = 824 +
às 11h e 30. 8 e 9 do Mappa de 448 = 3663 + 862 = etc.
Parker

844
2ª) Escrita: somar com
mais de uma parcela
De 9h às 9h Trabalho 1ª sec. Dobras em tiras Triângulos
e 40 s de papel formando
Manuais figuras geométricas.
De 11h e 30 Desenho 1ª e 2ª) Desenharão Do natural
às 11h e 45 uma pirâmide de base
quadrangular – à mão
livre
Fonte: Laboratório de Imagens, Digitalização de Documentos
Históricos – LABIM/UFRN

Os diários das professoras trazem algumas indicações de como se


dava o ensino de matemática nas escolas primárias. Observamos que era
trabalhado, em um mesmo dia, diferentes disciplinas. Assim, podia ter uma
aula de desenho seguida de leitura, trabalhos manuais, cálculo. Os
documentos nos mostram que os registros das professoras eram similares,
seguindo orientações da instrução pública descreviam a hora da aula, a
matéria, o tema abordado e o modo como foi realizado em sala. Outro ponto
que nos chama atenção diz respeito ao fato de que os conteúdos descritos
nos diários se assemelham as propostas dos documentos oficiais, em
específico, trabalhos manuais e geometria, No entanto, o estudo de aritmética
se limitou, ao longo de um ano, ao estudo das operações com números
naturais. Evidenciamos que, embora existisse escolas específicas para
meninas e para meninos, os conteúdos voltados ao ensino de matemática
eram os mesmos.

Cursos de Formação de Professores

Buscou-se, nos cursos ofertados aos professores, evidências das


temáticas discutidos, o que era privilegiado e compreendido como necessário
na formação dos professores de modo que estes estivessem habilitados para
atuarem em suas salas de aula, e promoverem uma educação nos moldes
que suscitava a instrução publica à época. Para o presente estudo foi
analisado o livro do curso de férias que data de 1923 e 1924. O curso contava

845
com uma frequência média de 103 participantes, entre estes os professores
da Escola Normal de Natal, professores dos grupos escolares e escolas
subvencionadas, entre outros.

FIGURA 3: CURSO DE FÉRIAS OFERTADO AOS PROFESSORES DO RN

Fonte: Arquivo público do RN.

Reunião do “curso de férias”, cabendo a palavra ao Dr.


Francisco Ivo Cavalcante que dissertou sobre – “O ensino de
Geometria na escola primária. Do que para constou, eu, José
Julio P. de Medeiros, secretário. Lavrei a presente turma e
assinei.

Entre as diversas palestrar proferidas, ao longo dos referidos cursos, nos


foi possível identificar, além da ressaltada anteriormente, que trata do ensino de
geometria, a palestra do Professor Abel Aprígio Soares sobre lições de coisas
no ensino primário, o ensino de cartografia na escola primária o qual dissertou o
professor Antônio Gomes da Rocha Fagundes. Coube ao professor Waldomiro
Fetterman falar sobre o ensino de desenho na escola primária. Os cursos
contaram com outras temáticas como: a disciplina na escola primária, exercícios
físicos e saúde mental; a agricultura no ensino primário; orientações gerais do
ensino; escrituração e administração escolar, entre outros. Outros que estavam
em consonância com os princípios que norteavam as diretrizes educacionais da
instrução pública do RN.

Concursos públicos para as cadeiras de Desenho e Matemática

846
Os programas cobrados dos concursos públicos podem nos revelar
alguns vestígios de temáticas, as quais eram priorizados como essenciais
para que o professor estivesse habilitado a ingressar no magistério público.
Encontramos, no Livro dos Atos e Resoluções da Diretoria Geral da Instrução
Pública - 1919 a 1923 algumas listas de temas solicitados nos supracitados
concursos.

FIGURA 4: CONCURSO PÚBLICO PARA A CADEIRA DE DESENHO

Fonte: Arquivo Público do RN.

Para o preenchimento da cadeira de desenho foram solicitados os


pontos referentes a prova escrita e oral. Sendo estes:

noções preliminares sobre desenho e suas principais


modalidades; Importância do desenho na arte moderna;
diferentes métodos adaptados para o estudo do desenho; o
desenho linear e suas principais regras; posições do aluno; do
papel e do lápis; noções sobre linhas. Preceitos práticas para o
traçado das linhas retas. Objetos, importância e utilidades do
desenho geométrico. Instrumentos empregados, sua verificação
e conservação. Preceitos para a exceção do desenho
geométrico. Noções de ponto nas suas principais posições em
relação aos planos de projeção. Desenho a mão livre e desenho
do natural, planos perspectivos. (RIO GRANDE DO NORTE,
1919, p. 7 – 8).

Os temas que aparecem na citação são próximos ao que encontramos


nos programas de ensino nas escolas, contudo para as escolas femininas há
um direcionamento para os trabalhos ornamentais. No que se refere ao ensino

847
de matemática, foi realizado um concurso para a cadeira de matemática da
Escola Normal de Natal, tendo a comissão responsável organizado o
programa para as provas escritas, oral e prática. Dentre outros conteúdos
abordados, foram contemplados:
Ideia geral de grandeza, números e suas espécies. Definição
de Aritmética, utilidade do seu estudo. Ideia de geometria:
volume; superfície; linha; ponto; figura geométrica. Objeto da
geometria. Ideia geral da numeração, numeração falada,
ordens e classes de unidades, princípio fundamental da
numeração falada, linhas restas, curvas e quebradas.
Numeração escrita: princípio fundamental; leitura dos números;
numeração decimal; linhas perpendiculares e oblíquas. As
quatro operações sobre os números inteiros. Paralelas.
Divisibilidade. Ângulos. Números primos, decomposição dos
números em fatores primos, máximo comum divisor e mínimo
múltiplo comum. As superfícies planas: triângulos,
quadriláteros, polígono. Frações, operações com números
decimais e as frações decimais, simplificação das frações.
Dízimas periódicas. Raiz quadrada, raiz cúbica. Sistema
métrico decimal. Sólidos geométricos: Prismas, corpos
redondos e cone. Razões e Proporções, câmbios.

Os temas abordados no concurso para a cadeira de matemática nos


apresentam o que era concebido como relevante tanto para o professor
formador, enquanto docente que atuava na formação de professores, quanto
para os alunos. Assim, entendemos que se fazia necessário conhecimentos
em matemática que se referia a aritmética e geometria.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Compreendemos, por meio da interpretação dos documentos, que os


membros da LERN aparecem nos elementos da configuração de um discurso
estabelecido no contexto das reformas educacionais, políticas e administrativa
do RN, nas primeiras décadas do século XX, que marcaram o quadro extra
discursivo da cultura pedagógica construída ao longo desse período.
Influenciavam assim, nos projetos educativos, e, participavam diretamente na

848
elaboração das diretrizes educacionais do RN, de modo a determinarem as
práticas formativas essenciais aos professores, vislumbradas em cursos
voltados aos docentes com temáticas que reforçavam a compreensão de
inovação didática, à época. As metodologias voltadas as salas de aulas, os
recursos didáticos, o modo como os registros nos diários de classe era
realizado, e os conteúdos a serem abordados, dentre estes, os referentes a
matemática.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

A REFORMA do Ensino. Revista Pedagogium. Natal, p. 3 set. 1917.

A REFORMA DO ENSINO. A Republica. Natal, p 1 – 2. 1911

HERNANDEZ DIAZ, José Maria. Prensa Pedagógica de Castilla y León 1793 – 1936.
Repositório analítico. 2015.

MARQUES NETO, Cosme Ferreira. Da necessidade de uma “nova” escola só para
moças: Henrique Castriciano de Souza e a modernidade pedagógica norte-rio-
grandense (1911 – 1923). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal
de Campina Grande – UFCG. 2016.

NAGLE, Jorge. Educação e sociedade na Primeira República. 3. ed. São Paulo:


Editora da Universidade de São Paulo, 2009

OLIVEIRA, Adriel Gonçalves. Ensino de Aritmética entre 1920 e 1940: um cálculo


presente em periódicos de Educação. In: (org.) Brito, A. de J.; FARIAS, K. S. C. dos
S. MIORIM, M. A. Pesquisas históricas em Jornais e revistas: produção do HIFEM.
Editora da Física, Sociedade Brasileira de História da Matemática, São Paulo, 2014.

O ENSINO. A Republica. Natal, p 5 – 6, jul. 1911

PEDAGOGIA. A Republica. Natal, p 3 – 4, jul. 1911.

RODRIGUES, Andréa Gabriel Francelino. Educar para o lar, educar para a vida:
cultura escolar e modernidade educacional na Escola Doméstica de Natal (1914-1945).
Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal,
2007

SIRINELLI, Jean-François. Os Intelectuais. In: REMOND, René. Por uma História


Política. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 2003.

849
O ENSINO DE LOGARITMOS A PARTIR DA ARTICULAÇÃO ENTRE
HISTÓRIA DA MATEMÁTICA E ETNOMATEMÁTICA

Juliana Batista Pereira dos Santos285


Isabel Cristina Machado de Lara286

RESUMO
Com o objetivo de refletir sobre o ensino de Logaritmos a partir da articulação entre
História da Matemática e Etnomatemática, o presente trabalho analisa os efeitos da
realização de uma proposta de ensino com 64 estudantes do Ensino Médio. Para tal,
apresenta as respostas fornecidas pelos participantes ao instrumento de pesquisa
elaborado, a saber, um questionário com respostas abertas, analisando-as
genealogicamente. Fundamenta-se nas relações de poder e saber de Michel Foucault,
no conceito de jogos de linguagem de Ludwig Wittgenstein, na perspectiva
Etnomatemática de Ubiratan D’Ambrosio e na visão de Tatiana Roque sobre a História
da Matemática. Por meio da análise genealógica foucaultiana verificou-se que a
proposta de ensino possibilitou aos estudantes a compreensão de aspectos relevantes
à noção de Logaritmos; aprendizagem de um modo distinto de matematizar, que se deu
a partir do reconhecimento de outros jogos de linguagem diferentes dos presentes na
Matemática Escolar; conhecimento e reflexão sobre métodos de calcular distintos dos
apresentados no livro didático para o cálculo de Logaritmos; reflexão sobre os efeitos
da dependência dos recursos eletrônicos e digitais para os processos de ensino e de
aprendizagem.

Palavras-chave: Logaritmos. História da Matemática. Etnomatemática. Ensino


de Logaritmos. História e Ensino de Matemática.

INTRODUÇÃO

Consolidadas independentemente há décadas, a História da Matemática


e a Etnomatemática são temáticas de pesquisa pertencentes ao campo de
estudos e pesquisas da Educação Matemática. Cada uma possui seus objetos

285
Secretaria Estadual de Educação do Rio Grande do Sul (SEDUC-RS). juhbpereira@gmail.com.
286
Pontifícia Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PUC-RS). isabellara@pucrs.br.

850
de pesquisa e fundamentações teóricas distintos, entretanto, a questão de
pesquisa que conduz este texto é: quais os efeitos, na formação de estudantes
de 2º ano do Ensino Médio, da aplicação de uma proposta de ensino construída
a partir da articulação entre a História da Matemática e a Etnomatemática, sobre
os Logaritmos?
Assim, o objetivo do texto é refletir sobre o ensino de Logaritmos a partir
da articulação entre História da Matemática e Etnomatemática. Em termos
metodológicos, o texto apresenta e analisa, por meio da análise genealógica
foucaultiana, as respostas fornecidas por 64 estudantes após a participação em
uma proposta de ensino sobre o estudo dos Logaritmos. Com idades entre 15 e
17 anos, os participantes eram estudantes do 2° ano do Ensino Médio, da cidade
da Porto Alegre, no estado do Rio Grande do Sul, quando o estudo foi realizado.
A reflexão proposta está embasada na filosofia pós-estruturalista,
especialmente nos conceitos de poder e saber, de Michel Foucault, bem como
nos conceitos de formas de vida e jogos de linguagem, de Ludwig Wittgenstein.
A combinação desses filósofos possibilita olhar para a História da Matemática e
a Etnomatemática com outras lentes, favorecendo sua articulação. Nas seções
a seguir, os fundamentos teórico-metodológicos são apresentados, bem como,
o desenvolvimento da proposta de ensino, que ocorre simultaneamente à análise
dos resultados. Por fim, são apresentados e discutidos os efeitos da proposta de
ensino na formação dos estudantes participantes.

FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

Michel Foucault e Ludwig Wittgenstein pertencem ao que se denominou


movimento pós-estruturalista da linguagem e as teorizações produzidas por
ambos os filósofos criam condições que possibilitam refletir acerca da linguagem
matemática, presente dentro ou fora do ambiente escolar. Mais do que isso,
possibilita olhar para a História da Matemática e a Etnomatemática com outras
lentes, favorecendo sua articulação.

851
Wittgenstein propõe que a linguagem seja entendida como um jogo que
segue determinadas regras sancionadas coletivamente pelo grupo que dela
partilha, ou seja, as formas de vida. Essas são delimitadas mais por questões
culturais do que biológicas, ao passo que cada forma de vida apresenta suas
próprias regras para a significação da linguagem. Nesse sentido, “[...] a
significação de uma palavra é seu uso na linguagem.” (WITTGENSTEIN, 1979,
p. 28, §43) e, por isso, o autor defende que se é na práxis que se estabelece o
uso da linguagem, então não há uma linguagem universal, mas um conjunto de
linguagens que variam de acordo com o grupo que dela partilha e com o
significado, por ele atribuído, à palavra.
Para o filósofo: “O termo ‘jogo de linguagem’ deve aqui salientar que o
falar da linguagem é uma parte de uma atividade ou de uma forma de vida.”
(WITTGENSTEIN, 1979, p. 18, §23, grifos do autor). Portanto, os jogos de
linguagem são “[...] o conjunto da linguagem e das atividades com as quais está
interligada.” (WITTGENSTEIN, 1979, p. 12, §7), evidenciando assim que mais
do que palavras, os jogos de linguagem são constituídos por atividades e ações.
Ao longo da história da humanidade, algumas regras, presentes em
determinadas formas de vida, receberam um status de verdade sobre outras,
que foram marginalizadas. Entretanto, como destaca Foucault (1979): “A
verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele
produz efeitos regulamentados de poder.” (p.12). Para o filósofo, o poder se
exerce mais do que se possui, ou seja, ele não existe em determinado lugar, mas
“[...] é um feixe de relações mais ou menos organizado, mais ou menos
piramidalizado, mais ou menos coordenado.” (FOUCAULT, 1979, p.248).
Observa-se que seu entendimento acerca do poder se diferencia do
sentido habitual atribuído ao termo, que ele chamou de sentido jurídico do poder,
que carrega consigo a ideia de que o poder “[..] ‘exclui’, ‘reprime’, ‘recalca’,
‘censura’, ‘abstrai’, ‘mascara’, ‘esconde’. (FOUCAULT, 1991, p. 172). Para
Foucault é preciso abandonar esse entendimento e passar a enxergar o poder
pela sua positividade e pela sua capacidade de ser produtivo por meio de táticas
e técnicas sutis, que agem diretamente sobre o corpo e o formam. O conceito de

852
poder está extremamente relacionado ao conceito de saber, pois “[...] não há
relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber
que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder.”
(FOUCAULT, 1991, p. 30).
Assim, em uma proposta de ensino para o estudo dos Logaritmos,
recorre-se a essas teorizações com a intenção de possibilitar aos estudantes,
entre outros, a compreensão de que: os jogos de linguagem presentes na
Matemática Escolar foram constituídos historicamente por meio de relações de
poder e saber, tornando-se hegemônicos; outros jogos de linguagem, que foram
deixados à margem durante os processos de organização dos saberes e
conhecimentos matemáticos, podem ser suficientes para a compreensão de
algumas noções matemáticas.
Tais ideias vão ao encontro da História da Matemática e da
Etnomatemática, possibilitando que ambas se articulem. Para D’Ambrosio
(2007), a Etnomatemática são os “[...] modos, estilos, artes, técnicas, de explicar,
aprender, conhecer, lidar com o ambiente natural, social, cultural e imaginário.”
(D’AMBROSIO, 2007, p. 2). Essas diversas formas de matematizar, conhecer,
explicar, propor, solucionar um problema ou uma situação, são jogos de
linguagem, que possuem regras específicas, de acordo com as formas de vida
às quais pertencem, sejam distintos povos, civilizações ou grupos sociais ou
laborais.
Nesse sentido, segundo Roque (2014), as perspectivas recentes
relacionadas à História da Matemática defendem que a Matemática não se
desenvolveu de modo linear e contínuo, visto que, ao longo da história da
humanidade diversos povos e civilizações contribuíram para o desenvolvimento
do que hoje conhecemos por Matemática. Logo, a História da Matemática é
constituída desses diversos jogos, que no decorrer de seus processos de
geração, organização e difusão enfrentaram relações de poder e saber. Os jogos
de linguagem presentes na Matemática Acadêmica superaram tais relações e se
afirmaram como ciência, construindo uma hegemonia matemática e,
consequentemente, outros modos de matematizar, outros jogos de linguagem,

853
acabam por ser marginalizados. Adicionado a isso, é possível vislumbrar uma
proposta de ensino com essa articulação, entre História da Matemática e
Etnomatemática, a partir da perspectiva apresentada por Lara (2019), que ao
utilizar-se de pressupostos d’ambrosianos e wittgensteinianos define a
Etnomatemática “[...] como um método de pesquisa e de ensino que possibilita
analisar os diferentes jogos de linguagem presentes nas práticas discursivas de
distintos grupos culturais.” (p. 47).
Com essas lentes, este texto apresenta e analisa parte de uma proposta
de ensino que se realizou no ano de 2018, com 64 estudantes do 2° ano do
Ensino Médio de uma escola pública da cidade de Porto Alegre. Com duração
aproximada de cinco aulas de 60 minutos, a proposta foi elaborada em 10
momentos distintos, sendo 2 momentos relatados e analisados com maior
detalhamento na seção a seguir. Após a realização da proposta, os estudantes
responderam um questionário com respostas abertas, as quais foram analisadas
a partir da Análise Genealógica ou Análise de Discurso na perspectiva
foucaultiana. Essa ferramenta analítica se atenta aos discursos, com o intuito
de compreender quais as condições de existência de seus enunciados, quais
suas regras de formação. Mais do que isso, quais seus efeitos na constituição
dos sujeitos, pois discursos são “[...] práticas que formam sistematicamente os
objetos de que falam.” (FOUCAULT, 1987, p. 56).

A PROPOSTA DE ENSINO: resultados e discussões

Nesta seção serão apresentadas, simultaneamente, algumas das


atividades realizadas ao longo da proposta de ensino e a análise dos seus
resultados. Tal opção metodológica vai ao encontro da perspectiva analítica
utilizada, a Análise Genealógica foucaultiana. As respostas dos estudantes aos
questionamentos propostos no instrumento de pesquisa, que serão analisados
neste texto, serão apresentadas em quadros e, para fins de organização, optou-
se por não apresentá-las em sua totalidade, mas as enunciações semelhantes e

854
com qual frequência foram produzidas. Além disso, para omitir a identidade dos
participantes, seus nomes foram substituídos pelo código Ex, em que x
representa um dos 64 estudantes participantes.
No primeiro momento da proposta de ensino, solicitou-se aos estudantes
a realização de uma pesquisa para responder aos seguintes questionamentos:
a) Qual a motivação para a criação dos Logaritmos?; b) Quais nomes de
matemáticos/estudiosos da antiguidade fazem parte da história dos Logaritmos?;
c) Qual a importância da criação dos Logaritmos para o desenvolvimento das
ciências em geral?; d) Quais outras histórias ou fatos interessantes, relacionados
à história dos Logaritmos, foi possível encontrar?. A pesquisa realizou-se fora do
horário da aula, com a intenção de promover aos estudantes um momento de
busca por aspectos históricos relativos aos conceitos que seriam trabalhados.
A escolha por tais questões foi intencional, pois, a partir delas, criam-se
condições para a compreensão dos processos de geração, organização e
difusão do conceito de Logaritmos, indo ao encontro do Programa
Etnomatemática de D’Ambrosio. Em outros termos, ao proporcionar aos
estudantes possibilidades de reflexões e compreensões acerca desses
processos se está articulando História da Matemática e Etnomatemática.
As questões 1, 3 e 4, apresentadas no Quadro 1 abordam a primeira
atividade da proposta.

Quadro 1: Questionamentos sobre o primeiro momento realizado na proposta:


Autor Enunciação Semelhantes Frequência
Questão 1: Quais dificuldades/facilidades você encontrou para realizar essa tarefa?
Foi bem tranquila a pesquisa, consegui encontrar
E3, E4, E6, E9, E10,
E2 as questões e, além disso, algumas histórias 20
E12, E16
interessantes que envolvem os Logaritmos.
Achei fácil de realizar essa tarefa, mas muitas E7, E8, E15,E54 e
E7 6
coisas meus colegas acharam e eu não. E55
Como era uma pesquisa e podemos usar a
internet/ livros não encontrei nenhuma
dificuldade. Acho a proposta desse tipo de
E33 E46, E48, E61 4
avaliação bem interessante, pois aprendemos
também sobre a origem da matéria e não só como
é resolvido.

855
Questão 3: Você julga importante ou desnecessário conhecer tais informações acerca do
conteúdo matemático?
E2, E6, E21, E41,
É importante, pois sabemos a origem da matéria e
E1 E48, E52, E53, E54, 35
por que/ por quem foi criado.
E62.
E8, E14, E17, E18,
E4 Não acho necessário isso para a matéria. <3 15
E19, E24, E27, E60
Desnecessário, em minha opinião é perda de
tempo. Eu consigo entender uma matéria com a
teoria e questões, exercitar é melhor forma de
aprender matemática, e sinto que falta mais
E18 E40 2
exercitar do que saber a história por trás da
matéria. Acho que na hora do Enem ou de um
vestibular não irão perguntar a história da matéria,
mas sim se conseguimos fazer.
Questão 4: Conhecer tais informações modificou de alguma forma a sua aprendizagem
sobre Logaritmos?
E1 Sim, pois sabemos o motivo de ter sido criado. E2, E20, E32, E53 29
E3 Não, pois achei a matéria bem difícil e complicada. E9, E12, E22, E43 32
Não, pois em nenhum momento ela cobrou na
E42 prova esses tipos de questões, mas sim os - 1
problemas para resolvermos usando os métodos.
Fonte: Elaborado pelas autoras (2020).

Na Questão 1, sobre as facilidades ou dificuldades para a realização da


pesquisa, os ditos evidenciam que a maioria dos participantes da proposta
considerou a atividade de pesquisa fácil. Observa-se que para E33, E46, E48, e
E61 a pesquisa histórica foi considerada fácil, divertida e motivadora. Mais do que
isso, criou condições que possibilitaram aos estudantes compreender aspectos
históricos relevantes relacionados aos Logaritmos. O dito de E 61, em especial,
evidencia que para esse estudante, os temas tratados em aula adquirem mais
valor e significado se cobrados em avaliações. Entretanto, ainda que a história
dos Logaritmos não tenha sido abordada em avaliações, motivou o estudante,
pois, para ele, é relevante saber sobre a geração dos Logaritmos.
Observa-se uma nítida relação de poder-saber entre os conteúdos
cobrados em avaliações e aqueles não cobrados, pois, os que são cobrados
adquirem status, tornando-se mais relevantes, ao passo que os demais podem
tornar-se supérfluos. Esse é um risco que abordagens metodológicas
envolvendo apenas a História da Matemática podem correr, em especial se

856
atribuírem à História apenas um uso instrumental, pautado na exposição de
curiosidades.
Nesse sentido, defende-se que a articulação com a Etnomatemática
possibilita à História da Matemática superar seu uso instrumental, ao passo que
contribui para a compreensão dos processos de geração, organização e difusão
dos conceitos matemáticos, além de possibilitar a reflexão acerca dos processos
de hegemonização, e consequentemente de marginalização, desses conceitos.
Em outros ditos, os estudantes expõem que realizaram suas pesquisas
na internet, como se pode observar em E7, E8, E15, E54 e E55. Para alguns desses,
a ferramenta facilitou as pesquisas, enquanto que para outros, dificultou. Entre
as dificuldades elencadas, percebe-se a preocupação quanto à validade das
informações presentes na rede, compreensível por se tratar de uma pesquisa
histórica. Como destacaram os estudantes, foi preciso realizar pesquisas em
fontes diversas, ser crítico e atento para identificar possíveis informações falsas.
Outra dificuldade mencionada foi relativa à organização e síntese das
informações encontradas na internet, como é possível observar no dito de E 1.
Foi preciso que os estudantes recorressem às suas habilidades de leitura,
interpretação, síntese e reescrita para realizar a tarefa solicitada. Logo, a
atividade de pesquisa mobilizou nos estudantes o uso de diversas habilidades
relevantes para a compreensão de conceitos matemáticos. Contudo nem
sempre trabalhadas pelos professores.
A Questão 3 objetivou inventariar a opinião dos estudantes acerca da
importância da pesquisa histórica. No Quadro 1, observa-se que, de modo geral,
pelo menos 35 estudantes afirmaram com convicção que é importante conhecer
informações históricas sobre o conceito de Logaritmos, enquanto 15 julgam
desnecessário. Para além disso, novamente emergiu como argumento a sua
presença em avaliações, internas ou externas, como, por exemplo, nos ditos de
E18 e E40.
Entre os estudantes que julgaram desnecessária a pesquisa histórica,
observa-se a predominância de justificativas relacionadas à perda de tempo
frente à resolução de exercícios de cálculos. Segundo esses estudantes,

857
conhecer acerca da história não facilitou a aprendizagem dos conceitos
matemáticos, atrasou o desenvolvimento da matéria e é dispensável visto que
não faz parte dos conteúdos exigidos em avaliações externas.
Tais ditos possibilitam concluir que, para esses estudantes, a
Matemática enquanto uma ciência exata requer cálculos, repetição e treino de
modo que, informações diferentes disso, não são relevantes. Sob lentes
foucaultianas pode-se afirmar que esses estudantes foram sujeitados,
regulados, disciplinados, por meio de uma concepção de Matemática Escolar,
visto que não reconhecem em uma prática pedagógica diferente sua eficácia.
Observa-se, portanto, os efeitos do disciplinamento do saber, visto que, para os
estudantes apenas a Matemática Escolar, presente em exames nacionais de
seleção ao ensino superior, é importante.
Entre os estudantes que consideraram importante a realização da
pesquisa histórica, é possível verificar que a atividade proporcionou o
esclarecimento de algumas questões relativas à própria história dos Logaritmos,
como as condições de emergência do conceito. Além disso, facilitou sua
aprendizagem, tornando-a mais prazerosa, significativa e envolvente. Tais ditos
possibilitam concluir que, por meio de uma pesquisa histórica, foi possível
compreender os motivos pelos quais determinados conceitos matemáticos foram
gerados. Segundo os estudantes, tal compreensão atribui mais significado à
aprendizagem, facilitando o entendimento do conceito e motivando a
aprendizagem.
Tal entendimento é reforçado pelas respostas atribuídas à Questão 4,
em que se observa que, apesar da maioria dos estudantes considerar importante
conhecer as informações históricas sobre um conceito, como foi possível
observar na questão 3, 29 estudantes afirmaram que esse conhecimento
modificou sua aprendizagem, ao passo que 32 acreditam que não. Entre os
estudantes que responderam positivamente à questão, E 20, E32 e E53
reconhecem que o conhecimento das informações históricas motivou sua
aprendizagem e facilitou o entendimento do conteúdo e, mais do isso, mudou de
algum modo sua forma de pensar. As enunciações dos estudantes vão ao

858
encontro de Lara (2013) no que tange às contribuições do uso da História da
Matemática no ensino, “[...] estimular o interesse do estudante; tornar as aulas
mais atraentes, instigantes e desafiantes; desenvolver a criatividade do
estudante na resolução de problemas; tornar a aprendizagem mais significativa
[...]” (p. 61). Além disso, o dito de E2 corrobora a defesa de Lara (2013) de que a
presença da História da Matemática nos processos de ensino e de aprendizagem
precisa superar a apresentação de curiosidades pontuais, como nomes e datas.
A partir da articulação com a Etnomatemática pode-se, entre outras coisas,
possibilitar aos estudantes a compreensão dos motivos pelos quais os conceitos
matemáticos emergiram.
Possibilitar o conhecimento das condições de emergência de conceitos
a serem estudados pode ser um movimento de contraconduta frente à
Matemática Escolar. Isso, pois, o um dos objetivos da proposição de pesquisa
histórica é proporcionar outras formas de condução da aprendizagem da
Matemática Escolar, possibilitando aos estudantes sair do sistema convencional
de aprendizagem, baseado na sequência definição, exemplo e exercício.
Em relação aos estudantes que responderam afirmando que o
conhecimento das informações históricas não modificou sua aprendizagem,
destacam-se os ditos de E9, E12, E22 e E43. A enunciação do primeiro estudante
evidencia que, apesar de não modificar algo em sua forma de pensar, a pesquisa
histórica antecedendo a apresentação dos conceitos matemáticos o motivou.
Essa enunciação vai ao encontro dos ditos anteriores, visto que criou condições
que possibilitaram ao estudante motivação e interesse para com os conceitos
matemáticos a serem aprendidos.
Nos demais ditos, observa-se que os estudantes atribuem mais peso aos
cálculos em si, à prática de calcular e efetuar exercícios, do que aos aspectos
históricos. A posição dos estudantes evidencia os efeitos de poder que o
chamado ensino tradicional, baseado na sequência definição, exemplos e
exercícios, tem sobre os estudantes. Em relação ao dito de E 42, novamente
observa-se menção ao fato de que as informações históricas não estiveram
presentes nas avaliações, em especial na prova.

859
Já no sétimo momento da proposta de ensino, após a formalização do
conceito de Logaritmos, os estudantes foram divididos em equipes e receberam
exemplares de livros contendo tábuas logarítmicas, um artefato histórico visto
que não é mais utilizado no ensino. A fim de trabalhar as noções de mantissa e
característica, a instrução dada aos estudantes foi: compreender de que modo
se utiliza a tábua para o cálculo dos Logaritmos. Ao introduzir tais noções se
possibilitam aos estudantes contato com outros jogos de linguagem, distintos
daqueles abordados pela Matemática Escolar. Dessa maneira, novamente é
perceptível a presença da Etnomatemática na proposta de ensino, visto que,
outros modos e técnicas para explicar, conhecer e lidar com o ambiente estão
sendo abordados. Sobre essa atividade foram realizadas três questões,
apresentadas no Quadro 2.

Quadro 2: Questionamentos sobre o sétimo momento realizado na proposta:


Autor Enunciação Semelhantes Frequência
Questão 7: Vocês foram desafiados a compreender de que modo se utiliza a tábua
para o cálculo dos Logaritmos. Descreva como foi para você realizar a tarefa.
Foi complicado dada a idade dos livros e a
E1 E5, E12, E27, E34 5
dificuldade de entender.
E7, E9, E11, E17,
Foi interessante, porque todos deram ideias
E6 E19, E26, E31,E44 e 10
e discutimos sobre o assunto.
E52
Foi muito legal porque voltei no tempo onde
os matemáticos não tinham as tecnologias
E16 E57 2
atuais do que hoje e aprendi como se virar
nas tábuas sem ajuda da internet.
Questão 8: Descreva o que você achou de conhecer a forma como se calculava
Logaritmos antes do aprimoramento das calculadoras:
Mostrou a evolução do tempo, antigamente
eles pensavam muito mais, até mesmo para E13, E35, E36, E43,
E7 achar uma solução mais fácil de resolver cada E53, E55, E61, E1, 12
questão. Hoje temos as calculadoras e até E18, E44 e E46
mesmo a internet.
Achei interessante, é sempre bom ver como
E45 as coisas funcionavam antigamente e refletir E26 e E30 3
o quanto evoluímos.
Questão 9: O que você achou de utilizar um material histórico para aprender isso?
E1, E2, E6, E7, E8,
Foi bom, deu para entender a matéria de um
E4 E9, E10, E13, E14, 40
jeito diferente.
E16, E19, E20

860
Interessante, provavelmente se não
tivéssemos estudado a história, apenas
E12 - 1
teríamos essa “regra”, mas não entendido o
porquê.
Legal porque utilizamos formas diferentes
E15 - 1
para aprender a mesma matéria.
Achei legal usar os métodos antigos, pois
E17 - 1
hoje temos as calculadoras que facilitam.
E18 Não acho muito interessante. E21, E26, E29, E31 5
Fonte: Elaborado pelas autoras (2020).

Na primeira questão do Quadro 2 estão algumas das respostas


fornecidas pelos estudantes para a questão 7, das quais destacam-se os ditos
dos 10 estudantes para os quais a tarefa foi interessante, diferente, divertida,
motivadora. Além disso, segundo esses estudantes, a atividade possibilitou um
retorno aos métodos antigos de cálculo, desafiou-os na busca de soluções e
mostrou-os outros modos possíveis para calcular. Com base nessas
enunciações conclui-se que utilizar um artefato histórico, como os livros
contendo algumas tábuas logarítmicas, motivou e instigou os estudantes durante
os processos de ensino e de aprendizagem. Igualmente motivador foi realizar a
atividade em grupos, pois os estudantes puderam refletir, argumentar a fim de
defender suas hipóteses, e dialeticamente avançar na compreensão das tábuas.
Mais do que isso, pode-se afirmar que a atividade criou condições que
possibilitaram aos estudantes conhecer e refletir sobre métodos distintos dos
atuais para o cálculo de Logaritmos. Isso é efeito do avanço das tecnologias e o
acesso fácil à internet, acarretando que o cálculo dos Logaritmos passou a ser
baseado no uso de calculadoras. Os modos de matematizar historicamente
produzidos e expressos nas tábuas de Logaritmos podem ser considerados
jogos de linguagem históricos, que apresentam suas regras e foram utilizados
em determinadas formas de vida. Isso sugere que o contato com um modo de
matematizar diferente, histórico e sem o uso de tecnologias digitais, motivou e
desafiou os estudantes, criando condições de possibilidade para a compreensão
de aspectos relativos aos avanços dos cálculos. Os ditos de E16 e E57 evidenciam
que, ao entrar em contato com as tábuas logarítmicas, possibilitou-se aos

861
estudantes conhecer e refletir sobre os processos de organização e difusão dos
conhecimentos matemáticos.
Por outro lado, para os estudantes E1, E5, E12, E27, E34 foi complicado
utilizar o artefato histórico, pois foi preciso desenvolver um raciocínio para
compreendê-lo e interpretá-lo, visto que atividades assim ainda não haviam sido
realizadas em sala de aula. Além disso, a atividade foi considerada chata, pois
não auxiliou o estudante na compreensão do conteúdo, e difícil, pois o modo de
pensar dos antigos é diferente do modo de pensar do estudante. Ademais se
observa que, entre as justificativas dos estudantes que desaprovaram a
atividade, está o fato dos livros serem antigos e das pesquisas em livros serem
diferentes das realizadas em sites da internet. É possível relacionar a
emergência desses ditos ao avanço e popularização das tecnologias digitais com
acesso fácil à rede de dados, visto que os estudantes estão cada vez mais
dependentes desses recursos, o que implica em uma geração mais imediatista,
requerendo respostas rápidas aos problemas e situações propostas.
O uso de tecnologias digitais nos processos de ensino e de
aprendizagem, discurso bastante difundido no campo da Educação, traz
vantagens aos processos, assim como desvantagens. Um dos efeitos desse
alargamento tecnológico está no tipo de estudante que se está formando, visto
que quase não há mais tempo para pesquisas, momentos de reflexão e análise,
pois a tecnologia faz com que se tenha acesso a informação e às respostas
prontas. Consequentemente, atividades que transgridam a ordem imposta
podem não ser significativas para os estudantes, além de dificultar os processos
de ensino e de aprendizagem. Portanto, pode-se dizer que o uso dos livros
históricos para o ensino de Logaritmos criou condições que possibilitaram aos
estudantes romper com as tradicionais barreiras ligadas aos processos de
ensino e de aprendizagem, possibilitando aos estudantes serem conduzidos de
outra forma.
A dependência dos estudantes em relação às tecnologias digitais é
reforçada, e torna-se evidente, quando solicitada a sua opinião sobre o uso de
materiais históricos nos processos de ensino e de aprendizagem, como se

862
verifica na questão 8. Das 63 respostas atribuídas à questão, os ditos de doze
estudantes evidenciam que a atividade possibilitou conhecer questões relativas
ao avanço da Matemática ao longo do tempo, refletir acerca dos métodos de
resolução anteriores ao uso de tecnologias e sobre as consequências do seu
uso nos processos de ensino e de aprendizagem. Isso sugere que o uso das
tábuas logarítmicas, presentes nos livros históricos, para a prática de calcular
Logaritmos possibilitou aos estudantes refletir sobre os efeitos da dependência
dos recursos eletrônicos e digitais nos processos de ensino e de aprendizagem.
Portanto, por meio da atividade os estudantes puderam perceber que a
popularização da calculadora facilitou os processos de ensino e de
aprendizagem, em especial porque em grande parte das escolas não é mais
exigido dos estudantes a realização, de fato, desses cálculos. Entretanto, outros
estudantes destacaram que o avanço tecnológico, em especial da calculadora,
pode ter colaborado para que os estudantes deixassem de aprender aspectos
relativos aos conceitos matemáticos, visto que a calculadora substitui o
pensamento do estudante na hora da resolução. Os ditos possibilitam refletir
sobre os impactos que a popularização da calculadora traz ao ensino de
Matemática, uma vez que esses estudantes são usuários frequentes dessa
tecnologia.
A calculadora fornece ao estudante o acesso rápido ao resultado de
determinado cálculo, de modo ágil e preciso, ao mesmo tempo em que retira dele
a necessidade de realizar operações matemáticas fundamentais. Em longo
prazo, os efeitos desse uso frequente podem ser percebidos na dependência
que os estudantes apresentam em relação à calculadora, de modo que, muitas
vezes, seu uso determina o acerto ou o erro da questão. É observável, então,
certa criticidade em relação ao uso da calculadora, visto que reconheceram que
ao utilizá-la deixa-se de aplicar determinados conceitos matemáticos na
resolução dos exercícios.
Para E45, E26, E30 a atividade consumiu muito tempo e se mostrou
desnecessária por tratar-se de um modo antigo para resolução de Logaritmos
decimais. Observa-se, nesses ditos, uma comparação entre os aspectos

863
históricos e a prática matemática mediada pelos cálculos, sendo essa última
considerada mais importante pelos estudantes. Novamente, percebe-se o
disciplinamento do saber ao qual os estudantes estão imersos, evidenciando o
quanto estão sujeitados pelo poder disciplinador da Matemática. Isso por que,
apesar de julgar uma atividade interessante, consideram-na menos necessária
do que aprender técnicas de cálculos.
Na questão 9, os estudantes foram questionados sobre a utilização dos
livros históricos para aprender sobre mantissa e característica. Dos 60
estudantes que responderam à questão, observa que a maioria respondeu
positivamente sobre o uso do material histórico. O dito de E12 evidencia que, para
esse estudante, a utilização dos livros possibilitou que a aprendizagem
superasse a compreensão da regra matemática, possibilitando compreender os
motivos pelos quais o cálculo se dá de determinada forma e não de outra. Para
E15, o acesso ao livro possibilitou ao estudante compreender que existe formas
diferentes para aprender determinado conceito.
Em síntese, a proposta de ensino que abordou o conceito de Logaritmos
por meio da articulação da História da Matemática e da Etnomatemática, ao
solicitar aos estudantes uma pesquisa sobre a história do conceito, possibilitou-
lhes conhecer aspectos da história que contribuíram para a emergência dos
Logaritmos, atribuindo mais significado a sua aprendizagem, facilitando o
entendimento do conceito e motivando-lhes. Sendo a linguagem histórica
constituída por jogos de linguagem de formas de vida históricas, pode-se afirmar
que confrontar os estudantes com outros jogos de linguagem, outros modos de
matematizar, presentes no artefato histórico, possibilitou-lhes conhecer e refletir
sobre métodos distintos dos atuais para o cálculo de Logaritmos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da análise dos ditos dos estudantes, é perceptível que a proposta


didática propiciou aos participantes condições de compreenderem aspectos

864
relativos ao conceito de Logaritmos, por meio da pesquisa histórica solicitada,
bem como, do uso do artefato histórico disponibilizado. Mais do que isso, os
dados criaram condições de possibilidade para uma reflexão acerca dos efeitos
das articulações entre Etnomatemática e História da Matemática para o ensino
do conceito de Logaritmos, objetivo deste texto. Desse modo, é possível
responder ao questionamento de pesquisa proposto inicialmente.
Entre os efeitos, verificou-se que a proposta mobilizou nos estudantes
habilidades de leitura, interpretação, reescrita e síntese, para responder às
questões solicitadas na pesquisa, bem como, criticidade, a fim de diferenciar
possíveis informações falsas presentes na internet; possibilitou aos estudantes
a compreensão de aspectos relevantes à noção de Logaritmos; aprendizagem
de um modo distinto de matematizar, que se deu a partir do reconhecimento de
outros jogos de linguagem diferentes dos presentes na Matemática Escolar;
conhecimento e reflexão sobre métodos de calcular distintos dos apresentados
no livro didático para o cálculo de Logaritmos; reflexão sobre os efeitos da
dependência dos recursos eletrônicos e digitais para os processos de ensino e
de aprendizagem.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

D’AMBROSIO, U. Etnomatemática – elo entre as tradições e a modernidade.


2ª ed. 3ª reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto


Machado. 7ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. 3ª


ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.

FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Ligia M.


Pondé Vassallo. 9ª ed. Petrópolis: Vozes, 1991.

LARA, I. C. M. de. O ensino da matemática por meio da história da matemática:


possíveis articulações com a Etnomatemática. VIDYA, Santa Maria, v. 33, n. 2,
p. 51-62, jul/dez. 2013.

865
LARA, I. C. M. de. Formas de vida e jogos de linguagem: a Etnomatemática
como método de pesquisa e de ensino. Com a Palavra, O Professor, v. 4, n.
9, p. 36-64, 2019.

ROQUE, T. Desmascarando a equação. A história no ensino de que


matemática?. Revista Brasileira de História da Ciência. Rio de Janeiro, v. 7,
n. 2, p. 167-185, jul – dez, 2014.

WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas. 2ª ed. São Paulo: Abril


Cultural, 1979.

866
OPERAÇÕES DE MULTIPLICAÇÃO E DIVISÃO NA BABILÔNIA ANTIGA
Experiências com massa de modelar numa Feira de Matemática

Lucas Mulinari Bongiovani287


Jhúlia Rittberg Rocha288
Claudia Alessandra Costa de Araujo Lorenzoni289

RESUMO
A elaboração desta pesquisa é resultado de estudos e discussões em aulas da disciplina
de História da Matemática em um curso de Licenciatura em Matemática do Instituto
Federal do Espírito Santo – Ifes no ano de 2019. O texto é de autoria de dois estudantes
do curso, com a orientação e participação da professora regente da disciplina. O
trabalho explora as operações de multiplicação e divisão de números reais como
operações inversas e toma como base tabelas da Babilônia Antiga de multiplicação e
de recíprocos de números no sistema de numeração sexagesimal. Discute os métodos
prováveis adotados na época e faz um paralelo com estratégias de cálculo de
multiplicações e divisões no sistema de numeração decimal. Através de um relato de
experiência é apresentada a aplicação desses conhecimentos como recurso
metodológico em uma feira de matemática realizada no Instituto Federal do Espírito
Santo Campus Vitória no ano de 2019.

Palavras-chave: Tabletes babilônicos, multiplicação e recíprocos, sistema


numérico sexagesimal, história da matemática.

287
Instituto Federal do Espírito Santo (IFES). lucasmulinaribongiovani@gmail.com.
288
Instituto Federal do Espírito Santo (IFES). jhulia_chick@hotmail.com.
289
Instituto Federal do Espírito Santo (IFES). claudia.araujo@ifes.edu.br.

867
INTRODUÇÃO

O presente artigo visa a explorar operações de multiplicação e o emprego de


tabelas de recíprocos (inverso multiplicativo) presentes em tabletes da Babilônia
Antiga, evidenciando a utilização da História da Matemática como alternativa de
abordagem e experienciação de saberes de outras culturas e que, neste caso,
viveram há cerca de quatro milênios. Permite uma aproximação e avaliação de
prováveis métodos utilizados na época e uma leitura de como alguns conceitos
matemáticos podem ter se desenvolvido dentro de um contexto histórico,
sofrendo transformações ao longo do tempo. Toma-se a História da Matemática
como fonte de possibilidades para um “fazer matemática” na Educação Básica
(LORENZONI & SAD, 2018) e no processo formativo em matemática de
estudantes em geral.
O texto conta com uma breve explanação de características da matemática
babilônica e seu sistema de numeração, bem como a apresentação de alguns
tabletes e suas respectivas interpretações.
Vale pontuar a relação da História da Matemática com a produção de
conhecimentos empíricos de uma cultura ou sociedade, ligados, em grande
parte, a necessidades de ordem prática, como por exemplo a própria contagem.
As ideias matemáticas comparecem em toda a evolução da humanidade, definindo
estratégias de ação para lidar com o ambiente, criando e desenhando instrumentos para
esse fim, e buscando explicações sobre os fatos e fenômenos da natureza e para a
própria existência. Em todos os momentos da história e em todas as civilizações, as
ideias matemáticas estão presentes em todas as formas de fazer e de saber.
(D’AMBROSIO, 1999, p. 97)

Nesse sentido, destacamos a abordagem etnomatemática como uma potencial


ação pedagógica em sala de aula, numa articulação que norteie com mais afinco
e significância os diversos conteúdos ministrados ao longo da vida escolar do
discente.
Por fim, através de um relato de experiência, explanamos a utilização dessa
abordagem histórica, com recurso de massa de modelar, numa feira de

868
matemática realizada na nossa instituição (BONGIOVANI; ROCHA;
LORENZONI, 2019).

ESCRITA CUNEIFORME EM TABLETES DE MULTIPLICAÇÃO E DE


RECÍPROCOS

O trabalho se estrutura com base em uma pesquisa bibliográfica a respeito de


ideias matemáticas associadas à Babilônia Antiga (BOYER, 1996; ROQUE,
2012), com ênfase em tabelas de multiplicação e de recíprocos do mesmo
período apresentadas em Phillips (2012).

Nas obras citadas, a expressão Babilônia Antiga refere-se a cerca de 2000 a


1600 a.C. na região do Crescente Fértil, onde atualmente se localiza o Iraque. A
escrita utilizada nos registros da época é a cuneiforme, criada pelos sumérios
em cerca de 3.200 anos a.C. Uma característica dessa escrita é a forma de
cunha dos sinais, marcados em tabletes, em sua maioria retangulares, feitos de
argila (PHILLIPS, 2012).

Compreendendo o sistema numérico babilônico é possível compreender o


conteúdo dos tabletes de multiplicação e recíprocos. Esse sistema possui base
sexagesimal, ou seja, 60. A unidade e o agrupamento de dez unidades são
representados por símbolos distintos: e , respectivamente.

A partir destes, é possível formar combinações para representar os números de


1 a 59, não havendo símbolo para o zero, salvo em alguns tabletes onde havia
um espaçamento para sugerir o vazio ou uso de cunhas inclinadas para indicar
separação ou ponto.

Como exemplo extraído de Eves (2011, p. 36), a representação cuneiforme do


numeral 524.551 (em base decimal) se dá por , pois

524551 = 2(603)+25(602)+42(60)+31.

869
Em notação moderna, podemos escrever

(524551)10 = (2;25;42;31)60 .

Apresentamos, a seguir, com as FIGURAS 1, 2 e 3, respetivamente, os tabletes


de multiplicação por 10 (VAT 7858), de multiplicação por um inteiro e um quinto
(MS 3866) e o de recíprocos (MS 3874), assim como suas respectivas
explicações com a tradução matemática no sistema numérico hindu-arábico das
operações realizadas, conforme Phillips (2012).

FIGURA 1: TABLETE DE “10 VEZES”

Fonte: PHILLIPS, 2012.


Fotografia de Peter Damerow.

Nessa primeira tabela (FIGURA 1), podemos observar o emprego da notação


posicional de numeração com base sexagesimal dos babilônios, bem como um
formato comum às tabuadas convencionais utilizadas atualmente. Lê-se, na
primeira linha, por exemplo, “10 a-rà (símbolo multiplicativo) 1 10”, ou seja, 10
vezes 1 é igual a 10. Na sexta linha, “10 a-rà 6 60”, observamos o uso do símbolo

870
representando o fator 6 (empregado seis vezes, com três símbolos em cima

e três embaixo) e também representando o produto, 60.

FIGURA 2: TABLETE DE MULTIPLICAÇÃO POR UM INTEIRO E UM QUINTO

Fonte: PHILLIPS, 2012.


Fotografia de Jöran Friberg.

A “tabela de vezes” possui um número-cabeça, facilmente observado na primeira


linha à esquerda, 1 12, ou seja, + −𝟏 𝟏𝟐 = + 𝟏 (um
𝟏 • 𝟔𝟎𝟎 𝟏𝟐 • 𝟔𝟎 = 𝟏 + 𝟔𝟎 𝟏 𝟓
inteiro e um quinto). Já era conhecido que, um número quando deslocado para
a esquerda, efetua um produto por uma potência positiva de sessenta, mas
nesse caso, verifica-se que, quando esse deslocamento ocorre para a direita, o
produto ocorre por uma potência negativa de sessenta. Nota-se que, mais
especificamente, para escrever um número é efetuada a multiplicação por
potências que, independente da base numérica, mas nesse caso 60 e expoentes
inteiros, a partir do zero para a direita os expoentes são negativos em ordem
decrescente, e a partir do zero para a esquerda os expoentes são positivos em

871
ordem crescente; e como propriedade de potenciação, as potências com
expoentes negativos podem ser escritas em formato de fração.

FIGURA 3: TABLETE DE RECÍPROCOS

Fonte: PHILLIPS, 2012.


Fotografia de Jöran Friberg.

Em um sistema de numeração sexagesimal, recíprocos são os números


sexagesimais cujo produto resulta em 1 unidade, de onde se identifica mais
nitidamente a noção do inverso multiplicativo. Em termos práticos, o referido
produto pode ser igual à base, sessenta, ou a um múltiplo dela.
Na terceira linha (FIGURA 3), por exemplo, têm-se “igi. 3 gál.bi 20", ou seja, "3
vezes 20" que é igual a 60; na quarta linha têm-se “igi. 4 gál.bi 15”, ou seja, "4
vezes 15" que é igual a 60; na sétima linha têm-se “igi. 8 gál.bi 7 30”, ou seja, "8
vezes ( + −𝟏 )" que é igual a 60; e segue-se esse mesmo
𝟕 • 𝟔𝟎𝟎 𝟑𝟎 • 𝟔𝟎
padrão para todas as outras linhas.
Pode-se dizer também que "o recíproco de 3/2 é 40 " e "o recíproco de 2 é 30",
como observa-se na primeira e segunda linha do tablete, respectivamente.

872
Uma característica interessante do sistema sexagesimal é o fato do número 60
ser divisível por todos os inteiros entre 1 e 6, facilitando a inversão dos números
expressos nessa base.

RESULTADOS E UM RELATO DE EXPERIÊNCIA

Alguns resultados da pesquisa foram os recursos criados para abordar o tema


proposto em interação com os visitantes na Feira de Matemática da 8ª Semana
de Matemática do Instituto Federal do Espírito Santo – SEMAT, realizada no dia
31 de maio de 2019 (BONGIOVANI; ROCHA; LORENZONI, 2019), relatada a
seguir, e a produção de um vídeo de curta duração apresentado na Mostra de
Vídeo “Curta Matemática”, organizada também pelo Instituto, em 2020, e
disponível no link https://youtu.be/xZl7tL4Wz0Q.

Na referida Feira de Matemática, foram propostas atividades interativas como o


registro de números em escrita cuneiforme sobre reproduções dos tabletes
babilônicos em massa de modelar, com dimensões em torno de 12cm de
comprimento e 6cm de largura, de modo a caber na palma da mão. Foram
utilizadas ainda fotos dos tabletes de argila, um protótipo de mesma cor e
formato com marcas dos símbolos babilônicos identificando a escrita cuneiforme,
massinhas de modelar de diferentes cores, dispostas em bases de isopor, e um
palito de madeira para fazer o talhamento (FIGURA 4).

FIGURA 4: PARTICIPAÇÃO DO PÚBLICO NO EVENTO

873
Fonte: Arquivo pessoal dos autores.

Na Feira, foram atendidos os mais variados tipos de público (FIGURA 4):


crianças da Educação Infantil, estudantes de redes públicas municipais, da rede
pública estadual, estudantes do próprio Ifes , colegas de graduação e também
professores. A cada atendimento, ora em grupo, ora em dupla ou
individualmente, expusemos um contexto histórico acerca da civilização
babilônica e sua forma prática de se fazer matemática, apresentamos as tabelas
reais através de fotos e logo depois as tabelas traduzidas. A exposição sobre o
contexto histórico pretendeu-se ser um recurso metodológico introdutório à ideia
de uma base numérica diferente da que utilizamos em situações de contagem
de objetos, por exemplo. Com o mesmo contexto histórico, buscou-se levar os
visitantes a uma reflexão sobre a importância de estratégias de uso das tabelas
de cálculos num período em que não se dispunha de máquinas de calcular.

Os visitantes foram convidados a empregar métodos semelhantes de


multiplicação e divisão babilônios em fichas com operações nas bases 12 ou 10.
Especialmente, esperando-se estabelecer um paralelo entre os métodos
babilônicos e estratégias de cálculo mental envolvendo números na base 10,

874
visto que uma notável diferença entre o nosso sistema e o dos babilônios é que
estes empregavam um sistema aditivo para formar combinações distintas de
símbolos que representam os números de 1 a 59, enquanto o nosso utiliza
símbolos diferentes para os números de 0 a 9 e, em seguida, passa a fazer uso
de um sistema posicional (ROQUE, 2012).

O sistema sexagesimal ficava claramente entendido quando se fazia necessário


utilizar o mesmo símbolo para representar números diferentes, no caso o 1 e o
60, e assim já se explicitava a importância da posição destes símbolos e uma
interpretação de natureza prática para diferenciação das grandezas. Utilizamos
alguns exemplos como o número de tijolos necessários para alguma construção,
o cálculo do volume de uma vala, o cálculo da área de um campo, entre outros,
onde nitidamente era possível diferenciar as quantidades de 1 e 60 unidades e
estabelecer uma compreensão da cultura local e da escrita.

Após a abordagem histórica e uma breve explanação acerca das características


do sistema numérico babilônico, convidamos os participantes a talhar alguns
números na massinha de modelar, e na prática, a reproduzirem algumas tabelas
de multiplicação e recíprocos.

Importante ressaltar que enquanto se fazia a exposição do conteúdo do nosso


trabalho, era avaliado o envolvimento e engajamento dos participantes.
Conforme eles mostravam compreensão, avançávamos para as tabelas de
recíprocos, por exemplo, que demandavam um nível maior de compreensão e
raciocínio matemático, especialmente porque as tabelas não estavam totalmente
traduzidas e convertidas para a base decimal. Dessa forma, ao lidar e apresentar
nossa proposta a diferentes tipos de público, foi perceptível uma democratização
do conhecimento, sendo possível adaptar a abordagem e a explicação do
conteúdo de forma que todos os níveis fossem atendidos, sendo uma rica
experiência de aplicação de conceitos como o de transposição didática
(BROUSSEAU, 2008) e outros estudados em nosso curso de graduação,
levando consequentemente a uma aprendizagem mais significativa.

875
Posteriormente à apresentação do trabalho na Feira de Matemática, foi
confeccionada, por um aluno do ensino técnico integrado do IFES, uma cunha
de metal com recursos disponíveis nos laboratórios técnicos do campus
(FIGURA 5), o que permitiu novas apresentações em aulas da disciplina de
História da Matemática lecionada pela professora orientadora deste artigo,
proporcionando maior interação entre diferentes cursos e níveis escolares.

FIGURA 5: CUNHA DE METAL PRODUZIDA POR ALUNO

Fonte: Arquivo pessoal dos autores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A utilização dos materiais propostos no presente trabalho, tais como a confecção


e reprodução dos tabletes, reforça a posição didático-pedagógica das
representações lúdicas para aproximação de características peculiares de
algumas ideias em Matemática e permite uma conexão intelectual com o “fazer
matemática” em outras culturas e períodos históricos.

A História da Matemática se constitui de um valioso meio de introduzir, explorar,


associar, embasar, contextualizar e dar significado a conteúdos matemáticos
escolares, os diversos saberes e fazeres matemáticos, em diferentes níveis e
áreas, dentro de um aspecto sociocultural. Assim permitindo uma considerável
contribuição para o processo de ensino-aprendizagem, tornando-o mais
humano, agradável e integrado.

876
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BONGIOVANI, Lucas Mulinari; ROCHA, Jhúlia Rittberg; LORENZONI, Claudia


A. C. de Araujo. Operações de multiplicação e divisão com tabletes da
Babilônia Antiga. Anais da 8ª semana da Matemática (pp. 68 - 71). Vitória: Ifes
- Vitória. 2019. Disponível em: https://ocs.ifes.edu.br/index.php/semat/8. Acesso:
03 jan. 2021.

BOYER, Carl B. História da Matemática. São Paulo: Edgard Blucher, 1996.

BROUSSEAU, Guy. Introdução ao Estudo das Situações Didáticas:


Conteúdos e Métodos de Ensino. São Paulo: Ática, 2008.

D’AMBROSIO, Ubiratan. A história da matemática: questões historiográficas


e políticas e reflexos na educação matemática. São Paulo, 1999.

EVES, Howard. Introdução à história da matemática / Howard Eves; tradução


Hygino H. Domingues. 5a ed. – Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2011.

LORENZONI, Claudia A. C. de Araujo; SAD, Ligia Arantes. (2018). História da


Matemática e o “fazer matemática” na Educação Básica. HISTEMAT – Revista
de História da Educação Matemática, Ano 4. v. 1, pp. 75-89.

PHILLIPS, Tony. Old babylonian multiplication and reciprocal tables. American


Mathematical Society: Feature Column. v.5. 2012. Disponível em:
http://www.ams.org/publicoutreach/feature-column/fc-2012-05. Acesso: 12 abr.
2019.

ROQUE, Tatiana. História da Matemática: uma visão crítica, desfazendo


mitos e lendas. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

877
UBP NA FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES:
o Sistema de Numeração Indo-Arábico e sua disseminação na Europa
Ocidental

José Acácio de Araújo290


Gabriela Lucheze de Oliveira Lopes291

RESUMO
O presente trabalho apresenta parte de uma pesquisa de mestrado profissional, que
teve como objetivo principal a elaboração de uma proposta pedagógica abordando os
significados conceituais das operações fundamentais com os números naturais com o
uso da História da Matemática, direcionado aos professores que ensinam Matemática
nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Estes professores, em sua grande maioria,
licenciados em Pedagogia, não recebem uma formação suficiente em Matemática, visto
que, em geral, os cursos de Pedagogia dão prioridades às questões metodológicas, em
detrimento dos conteúdos específicos às disciplinas. Nossa pesquisa se fundamentou,
principalmente, nos estudos realizados por Curi (2004) e em uma pesquisa recente que
fizemos nas matrizes curriculares de cursos de Pedagogia de algumas universidades
públicas de vários estados brasileiros, a fim de detectar as disciplinas destinadas ao
estudo da Matemática. A partir de nossas pesquisas e reflexões, decidimos que a forma
mais adequada de alcançarmos o nosso objetivo principal era com a utilização das
Unidades Básicas Problematizadoras (UBPs), que são atividades propostas por Miguel
e Mendes (2010), que resgatam práticas histórico-sociais, e a partir delas são
elaborados questionamentos de cunho investigativo e reflexivo. No presente artigo, nos
limitamos a apresentar o resultado da pesquisa bibliográfica e discutir uma Unidade
Básica Problematizadora elaborada para constituir a nossa proposta pedagógica.

Palavras-chave: UBP. História no ensino da Matemática. Sistema de


Numeração Indo-Arábico. Formação continuada de Professores do Ensino
Fundamental.

INTRODUÇÃO

290 Secretaria de Educação do Rio Grande do Norte (SEEC). j.acacio@hotmail.com


291 Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). glucheze@gmail.com

878
Historicamente, os alunos que não simpatizam ou têm dificuldades nos
conteúdos das ciências exatas, mais especificamente em Matemática, tendem a
ingressar em um curso superior na área de humanas, incluindo o curso de
Pedagogia, que forma professores polivalentes, aptos a lecionarem todas as
disciplinas nos anos iniciais do Ensino Fundamental. O problema recorrente é
que esse curso, em geral, não oferece uma formação suficiente em Matemática
para um futuro professor. Isso é um dos motivos que causam uma falsa
sensação de que para ensinar nos anos iniciais não precisa gostar nem sequer
saber Matemática, gerando um entrave no processo de ensino-aprendizagem da
Matemática, visto que a maioria dos professores não domina os conceitos
elementares dessa disciplina, refletindo na sua prática profissional.
Apresentamos, neste artigo, uma discussão a respeito dessa
problemática e uma alternativa que utiliza a História da Matemática, na tentativa
de sanar um pouco do que foi observado no cenário de formação inicial dos
pedagogos. Para isso, escolhemos o conteúdo de Números, explorando mais
especificamente a disseminação do sistema de numeração indo-arábico pelo
Ocidente e seu caráter decimal e posicional.
Primeiramente, buscando compreender o quadro da formação inicial dos
professores, que constituem o foco de nossa atenção, fizemos uma pesquisa,
essencialmente bibliográfica, examinando documentos oficiais sobre a política
de formação de professores no Brasil, principalmente sobre os que atuam nos
anos iniciais do Ensino Fundamental, e materiais acadêmicos que tratam do
tema. Aprofundamos no exame de matrizes curriculares de cursos de Pedagogia
de instituições públicas do nosso país, bem como as ementas e carga horária
dos componentes curriculares relacionados à Matemática.
Após essa pesquisa, nossas reflexões nos encaminharam para a
elaboração de um material pedagógico voltado à formação continuada dos
pedagogos e que utiliza a História da Matemática como fio condutor. Para isso,
utilizamos as Unidades Temáticas Problematizadoras (UBPs), que são
atividades propostas por Miguel e Mendes (2010), que resgatam práticas
histórico-sociais. E, a partir delas, são elaborados questionamentos de cunho

879
investigativo e reflexivo. Os conteúdos matemáticos tratados foram relacionados
aos Números Naturais, dando um enfoque conceitual aos professores,
necessários à sua prática docente.

A FORMAÇÃO INICIAL DOS PEDAGOGOS E A MATEMÁTICA

De acordo com as Diretrizes Curriculares para os Cursos de Pedagogia,


instituída pela Resolução CNE/CP Nº 1, de 15 de maio de 2006, o egresso do
Curso de Pedagogia está apto a ensinar Língua Portuguesa, Matemática,
Ciências, História, Geografia, Artes, Educação Física, de forma interdisciplinar e
adequada às diferentes fases do desenvolvimento humano. O documento institui
uma carga horária mínima de 3.200 horas para o Curso, mas deixa a cargo de
cada instituição, o tempo destinado ao estudo dos conteúdos específicos das
disciplinas citadas acima.
Esses futuros professores são denominados no meio educacional de
polivalentes, que, de acordo com Lima (2007), podem ser compreendidos como
os sujeitos capazes de apropriarem-se de conhecimentos básicos das diferentes
áreas que compõem a base comum do currículo do Ensino Fundamental e de
articulá-los, desenvolvendo um trabalho interdisciplinar.
No entanto, os cursos de formação de professores polivalentes dão
prioridade às discussões metodológicas, em detrimento dos conteúdos. Para tal
conclusão, nos baseamos, em parte, nos estudos de Curi (2004):

No campo curricular: são frequentemente desconsiderados os


conhecimentos do objeto de ensino. Nem sempre há clareza
sobre quais são os conteúdos que o professor em formação
deve aprender, em razão de precisar saber mais do que vai
ensinar, e sobre quais os conteúdos que serão objetos de
atividade de ensino. Nos cursos atuais de formação de
professores polivalentes geralmente, salvo raras exceções, dá-
se mais ênfase ao “saber ensinar” os conteúdos, sem
preocupação com a sua ampliação e aprofundamento; os cursos
de formação de professores polivalentes geralmente
caracterizam-se por não tratar ou tratar apenas superficialmente

880
dos conteúdos sobre os objetos de ensino com os quais o futuro
professor irá trabalhar. (CURI, 2004, p. 20).

Com relação à Matemática, verificamos que a formação do estudante de


Pedagogia não é suficiente para atender à demanda de um futuro professor.
Para constatar tal afirmação, também analisamos as matrizes curriculares dos
Cursos de Pedagogia de dezoito universidades públicas de todas as regiões do
Brasil, e podemos observar que a importância dada aos conteúdos matemáticos
é mínima. Em todas elas figura uma ou duas disciplinas associadas às
metodologias ou ao ensino da Matemática, priorizando o como ensinar, deixando
entender que o professor dos anos iniciais não precisa dominar o conteúdo
específico para lecionar.
Pesquisamos em sites de busca, que nos conduziram às páginas das
instituições brasileiras de Ensino Superior que ofertam cursos de Pedagogia.
Buscamos nas páginas desses cursos o Projeto Pedagógico para obtermos as
informações que procurávamos. Organizamos os dados encontrados em dois
quadros, de modo que o quadro 1 apresenta os dados dos cursos de Pedagogia
em estados das regiões Sul, Sudeste, Centro-Oeste e Distrito Federal e o quadro
2 apresenta os dados dos cursos de estados das regiões Norte e Nordeste.

Quadro 1: Disciplinas relacionadas à Matemática de alguns cursos de


Pedagogia nas regiões Sul, Sudeste, Centro-Oeste e no Distrito Federal.
INSTITUIÇÃO – CIDADE SEDE DISCIPLINAS – CARGA HORÁRIA

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) • Educação Matemática I – 75h


– Porto Alegre • Educação Matemática II – 45h

• Educação Matemática e
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) - Infância – 72h
Florianópolis • Fundamentos e Metodologia da
Matemática - 72h

Universidade Federal do Paraná • Metodologia do Ensino de


(UFPR) - Curitiba Matemática – 30h

• Fundamentos Teórico-metodológicos
Universidade de São Paulo (USP) – do Ensino de Matemática – 30h
São Paulo • Projeto Integrado de Estágio em Docência em
Matemática e Ciências – 90h

881
Universidade Federal do Rio de Janeiro
• Didática da Matemática - 60h
(UFRJ) - Rio de janeiro

• Fundamentos e Metodologia do
Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) - Ensino de Matemática I –75h
Cuiabá • Fundamentos e Metodologia do Ensino
de Matemática II - 75h

Universidade Federal de Tocantins • Fundamentos e Metodologia do


(UFT) - Palmas Ensino da Matemática - 60h

Universidade de Brasília
• Educação Matemática I - 60h
(UNB) - Brasília
Fonte: Sites desses cursos na internet.

Quadro 2: Disciplinas relacionadas à Matemática de alguns cursos de


Pedagogia nas regiões Norte e Nordeste.
INSTITUIÇÃO – CIDADE SEDE ´ RIA
DISCIPLINAS - CARGA HORA

Universidade Federal do Acre • Ensino de Matemática I – 60h


(UFAC) - Rio Branco • Ensino de Matemática II – 60h

• Estatística e Educação – 60h


Universidade Federal de Roraima
• Conteúdos e Fundamentos Metodológicos do Ensino de
(UFRR) - Boa Vista
Matemática – 60h

Universidade Federal do Pará • Fundamentos Teórico Metodológicos


(UFPA)-Belém do Ensino da Matemática - 75h

Universidade Federal do Amazonas


• A Criança e a Linguagem Matemática – 60h
(UFAM) - Manaus

Universidade Federal do Piauí


• Educação Matemática – 75h
(UFPI) - Terezina

Universidade Federal de Sergipe • Fundamentos de Matemática para os


(UFS) - Aracaju anos iniciais do Ensino Fundamental – 60h

• Fundamentos do Ensino de
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) - Matemática I - 75h
Recife • Fundamentos do Ensino de
Matemática II – 45h

Universidade Federal do Ceará • Estatı́stica Aplicada à Educação - 64h


(UFCE) - Fortaleza • Ensino da Matemática - 96h

Universidade Federal da Paraíba


• Ensino da Matemática - 60h
(UFPB) – João Pessoa

882
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) • Ensino de Matemática I – 60h
- Natal • Ensino de Matemática I I– 60h

Fonte: Sites desses cursos na internet

Podemos observar que cinquenta por cento das instituições pesquisadas


apresentam em suas grades curriculares apenas uma disciplina relacionada à
Matemática, e nos outros cinquenta por cento se verifica duas disciplinas.
Consideramos essa carga horária baixa, tendo em vista que os profissionais
formados nesses cursos estarão aptos a lecionar Matemática em todas as séries
iniciais do Ensino Fundamental. Analisamos as cargas horárias apenas em
termos absolutos, e a instituição que apresentou maior carga horária foi a
Universidade Federal do Ceará (UFC), com duas disciplinas, totalizando 160
horas, e observamos que a Universidade Federal do Paraná (UFPR) aparece
com a menor carga horária, com apenas uma disciplina de 30 horas. Apenas
observando as nomenclaturas das disciplinas, constatamos que é bastante
comum aparecer as palavras: Ensino, Metodologia, Fundamentos, Educação e
Didática, o que reforça os resultados obtidos, há cerca de quinze anos atrás, por
Curi (2004):

[...] ficou bastante evidente o predomínio de uma formação


generalista, baseada nos Fundamentos da Educação, que não
considera a necessidade de construir conhecimentos sobre a
disciplina para ensiná-los, deixando transparecer uma
concepção que o professor polivalente não precisa “saber
Matemática”, basta saber como ensiná-la. (CURI, 2004, p. 167).

Os cursos de formação inicial de pedagogos ainda hoje priorizam as


questões metodológicas em detrimento dos conteúdos específicos das
disciplinas. O exame mais detalhado dessas disciplinas, com relação aos
conteúdos, comprovou que realmente há uma tendência a explorar a parte
metodológica, com a inserção de alguns conteúdos específicos, inclusive
explorando as operações com os números racionais, sem antes ter feito qualquer
menção aos números naturais, que é o principal objeto de estudo nos anos
iniciais do Ensino Fundamental.

883
O Conselho Nacional de Educação (CNE) aprovou em 2017 a Base
Nacional Comum Curricular (BNCC), que em sua estrutura divide a educação
básica em etapas, a saber: Ensino Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio.
Atentaremos aqui à disciplina de Matemática nos anos iniciais do Ensino
Fundamental, mais especificamente ao conteúdo de Números Naturais. O
documento afirma que:

O conhecimento Matemático é necessário para todos os alunos


da Educação Básica, seja por sua grande aplicação na
sociedade contemporânea, seja pelas suas potencialidades na
formação de cidadãos críticos, cientes de suas
responsabilidades sociais. (BRASIL, 2018, p. 265).

A BNCC propõe a organização dos conteúdos de Matemática em cinco


unidades temáticas: Números, Álgebra, Geometria, Grandezas e Medidas, e
Probabilidade e Estatística, acompanhadas de habilidades a serem
desenvolvidas ao longo do Ensino Fundamental, variando de acordo com o ano.
Daremos ênfase à unidade temática Números, conteúdo que escolhemos
abordar em nossa pesquisa.
Considerando que o conteúdo de Números Naturais é essencial nesta
fase escolar, é esperado que o aluno que chegue ao final do 5º ano do Ensino
Fundamental dominando as operações fundamentais com os números naturais.
Mas, para isso, é necessário que o professor também as domine, e, além disso,
disponha de conhecimentos além do que ele vai ensinar, facilitando assim o
desenvolvimento de metodologias que possibilitem uma aprendizagem
significativa. Na nossa proposta, exploraremos o caráter decimal e posicional da
representação dos números naturais, utilizando as UBPs e relacionando com as
habilidades previstas na BNCC.

UBP NA FORMAÇÃO CONTINUADA DOS PEDAGOGOS

O nosso principal objetivo neste trabalho é apresentar um material


pedagógico que pode ser usado na formação continuada de professores que

884
ensinam Matemática para os anos iniciais do Ensino Fundamental, tendo em
vista que os cursos de Pedagogia que formam esses professores não oferecem,
em sua grande maioria, uma formação suficiente em Matemática. Fato
constatado pela baixa carga horária destinada às disciplinas relacionadas à
Matemática, presentes nas matrizes curriculares destes cursos, conforme
discutimos anteriormente.
Tivemos a preocupação em considerar que esses professores não são
matemáticos, portanto, não dispõem de conhecimentos teóricos específicos
desta área. Nossa intenção é oferecer um material que contenha um certo rigor
matemático, usando uma linguagem apropriada para o público mencionado.
Nessa perspectiva, vimos nas Unidades Básicas de Problematização, ou
simplesmente UBPs, uma oportunidade de contribuir para o processo de ensino-
aprendizagem em Matemática para os professores que ensinam Matemática nos
anos iniciais do Ensino Fundamental. Segundo Miguel e Mendes (2010):

A UBP é um flash discursivo memorialístico que descreve uma


prática sociocultural situada em um determinado campo de
atividade humana, e que teria sido de fato realizada para se
responder a uma necessidade posta a uma comunidade de
prática, em algum momento do processo de desenvolvimento
dessa atividade na história. (MIGUEL; MENDES, 2010, p. 386,
tradução nossa).

Ao longo do tempo, a Matemática evoluiu de acordo com a necessidade


da humanidade em tornar a vida mais fácil e resolver problemas relacionados ao
cotidiano. Sendo assim, a UBP é explorada a partir de um fato histórico
sociocultural de natureza indisciplinar, ou seja, que não é específico de uma
determinada disciplina, a partir dele elaboramos problematizações.
O uso de UBPs na formação de professores pode ser um rico recurso
metodológico, pois possibilita a construção do conhecimento por meio de
práticas históricas e sociais, favorecendo o pensamento crítico do sujeito. As
atividades a serem desenvolvidas têm cunho investigativo, no sentido de que os
professores podem trabalhar coletivamente na elaboração de respostas para os
questionamentos, discutir e socializar para uma posterior reflexão sobre o

885
conteúdo trabalhado, seu conhecimento sobre ele e sua prática docente. De
acordo com Tavares e Pereira (2016):

A proposta de produção de UBP na formação de professores de


matemática pode ser uma opção didática que possibilita um
melhor aproveitamento do processo de ensino e aprendizagem
de matemática por trabalhar de maneira agradável e instigante
os conteúdos matemáticos com a finalidade de que a Educação
Básica realmente forme o aluno tornando-o crítico e agente ativo
na transformação da sociedade.(TAVARES; PEREIRA, 2016, p.
11).

Uma UBP não trabalha apenas um conteúdo matemático específico,


uma de suas características é tratar assuntos que versem em diversas
disciplinas e esse é um aspecto que permeia não apenas a formação, mas
também a prática profissional dos professores dos anos iniciais do Ensino
Fundamental. Esse é um dos aspectos que consideramos ao escolher o uso das
UBPs na elaboração do nosso material pedagógico, além de poderem ser
utilizadas pelos professores em suas aulas nos anos iniciais, já que as mesmas
têm potencial para serem exploradas em qualquer nível de ensino.
O ensino por repetição e memorização foi bastante contestado nas
últimas décadas, os cursos de formação de professores passaram por
reformulações e as práticas metodológicas foram mudando, o que não significa
dizer que houve avanço na aprendizagem. Com relação ao ensino de
Matemática nos anos iniciais, embora as técnicas de repetição tenham perdido
espaço, ainda é constatado grandes falhas no processo de ensino-
aprendizagem. Segundo Gualberto e Almeida (2009), nesta fase escolar o
grande entrave parece ser a alfabetização das crianças, a matemática acaba
sendo colocada em segundo plano, o que prejudica a formação do aluno nos
demais anos escolares.
Faz-se necessário darmos a devida importância ao ensino da
Matemática nesta fase, já que a mesma favorece o desenvolvimento do
raciocínio lógico nas crianças, bem como subsidia o estudo das demais ciências
naturais e até mesmo das ciências sociais. É necessário dar uma base sólida ao

886
aluno, e acreditamos que o ensino dos números naturais e suas operações feito
por professores bem preparados favorecem a construção dessa base.
O processo de construção do conhecimento sobre números naturais e
suas operações básicas vai muito além da memorização dos algoritmos, requer
uma busca por significados, e isso só é possível com professores preparados,
dispondo do conhecimento teórico necessário para favorecer esse processo.
Como os cursos de Pedagogia, em geral não oferecem estes conhecimentos,
propomos que seja feito por meio de formação continuada. Preocupamos-nos
em elaborar um material que possa ser usado nestas formações.

PROPOSTA PEDAGÓGICA DE USO DA UPB PARA PEDAGOGOS

Os números naturais foram representados ao longo do tempo de várias


maneiras distintas e por diversos povos, até chegar no moderno sistema de
numeração decimal, que segundo Ifrah (1994), nasceu na Índia, por volta do
século V da era cristã. Durante muito tempo na Europa usou-se o sistema de
numeração romano, havendo uma resistência ao uso do sistema hindu-arábico,
até que no século XVI este ganhou supremacia e começou a ser adotado
oficialmente, graças aos islâmicos, principalmente pelo trabalho do matemático
Abu Ja'far Muhammad ibn Musa al-Khwarizmi (783 – 850), conforme destaca
Lopes e Morey (2019)

Al-Khwarizmi, além de descrever o sistema de posição decimal


em seu tratado Aritmético, também demonstrou os métodos para
se calcular com números naturais, método este desenvolvido na
Índia no século V. A notável ideia indiana foi a forma de
expressar, por um único símbolo, uma quantidade infinita de
números. Cada símbolo em separado teria um valor e na
composição de números maiores que 10, o valor do símbolo
depende da ordem em que ele se encontra, isto é, na primeira
ordem ela expressa unidades, na segunda ordem ela expressa
dezenas, na terceira ordem ela expressa centenas e assim por
diante. (LOPES; MOREY. 2019, p. 4)

887
O sistema indo-arábico é chamado de decimal, pois sua base é
constituída de dez símbolos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 e 0, que chamados de
algarismos. Este sistema é também posicional, pois cada algarismo, além de seu
valor absoluto possui um peso relacionado com sua posição. Esse peso é uma
potência de 10 que varia da direita para a esquerda segundo as potências 100=1,
101=10, 102=100, 103=100, e assim sucessivamente. Como um exemplo, o
número 2568, no sistema decimal é representado por 2.10 3 + 5.102 + 6.10 + 8.
Esta é o que chamamos de expansão decimal do número.
Nossa proposta de UBP aborda principalmente temas que tratam da
disseminação do sistema de numeração indo-arábico pelo Ocidente e seu
caráter decimal e posicional. Abordamos fatos históricos e culturais relacionados
a esse sistema, por meio de problematizações que levarão o professor a pensar
de forma reflexiva e adquirir ou aprimorar conhecimentos importantes como a
representação de qualquer número natural na forma decimal posicional que o
ajudará a compreender conceitos até então mecanizados pela educação
tradicional. Introduzimos esta UBP, intitulada “O Sistema de Numeração Indo-
Arábico e sua disseminação na Europa Ocidental”, com o seguinte texto de
nossa autoria:

Problematização histórica: “A representação dos números e a maneira de


operá-los nem sempre foi a que conhecemos hoje. Ao longo do tempo, a
humanidade desenvolveu diversos símbolos até chegar aos algarismos que
usamos na atualidade quase que universalmente. Quanto ao sistema de
numeração mais usado na atualidade é o decimal posicional, cuja invenção se
deu na Índia por volta do século V d.c., sendo adotado pelos árabes, com quem
mantinham fortes relações comerciais por volta do século VIII.
Até então o sistema numérico mais usado no mundo ocidental para
representar os números era o Romano. As operações eram feitas por pessoas
com um grau de conhecimento avançado, chamados calculadores, que usavam
o ábaco como instrumento para realizar os cálculos. A disseminação do sistema
de numeração indo-arábico foi fruto de um longo processo. Havia bastante

888
rejeição, principalmente por questões religiosas. Acredita-se que o comércio e
suas necessidades de cálculos, cada vez maiores, foram decisivos na aceitação
do novo sistema.
Todavia os métodos de cálculo desenvolvidos pelos hindus só vulgarizou
amplamente com o trabalho do matemático persa Abu Ja'far Muhammad ibn
Musa al-Khwarizmi (783-850), que escreveu uma obra expondo pela primeira
vez o sistema numérico decimal, que usa dez símbolos, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 e
0 para representar qualquer número natural, sendo que a partir do 10 o valor do
símbolo depende da ordem em que ele se encontra. Na obra, chamada de
Tratado Aritmético de al-Khwarizmi, ele também expõe o modo de calcular dos
indianos, que facilitaria bastante as operações com números naturais.”
Baseado no texto de problematização histórica, nós propomos nove
questionamentos que promovam o senso investigativo do professor. Iniciamos
abrindo uma discussão sobre o surgimento da contagem e dos números.
Propomos também investigações históricas, como o surgimento do sistema de
numeração decimal e sua disseminação pela Europa Ocidental e o trabalho do
matemático Al-Khwarizmi, bem como o uso do ábaco para a realização de
operações básicas com os números naturais. Abordamos também
conhecimentos conceituais sobre algarismo, número e expansão decimal e
representações numéricas de povos antigos como os Incas e os Egípcios.
Os objetivos dessa UBP são de discutir e compreender o sistema de
numeração decimal: invenção, disseminação pelo Ocidente e representação dos
números em base 10; fazendo assim uma exploração do sistema de numeração
decimal por meio do processo histórico até a sua representação atual. O público-
alvo são os professores que ensinam Matemática nos anos iniciais do Ensino
Fundamental. Nossa UBP foi estruturada para um minicurso de formação
continuada para professores de Matemática dos anos iniciais e são necessários
os seguintes recursos: lápis, borracha, papel para anotações e dispositivo
eletrônico conectado à internet.

889
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo buscou discutir a formação matemática dos professores que


ensinam Matemática nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Estes são,
geralmente, licenciados em Pedagogia, e de acordo com as Diretrizes
Curriculares para os Cursos de Pedagogia, instituída pela Resolução CNE/CP
Nº 1, de 15 de maio de 2006, estão aptos a lecionar todas as disciplinas que
compõem a base curricular dos anos iniciais. Por meio de estudos como o de
Curi (2004), e de pesquisas que realizamos em 2020 nas matrizes curriculares
de algumas Universidades Públicas de vários estados brasileiros, constatamos
que a formação matemática desses professores conta com pouca presença de
conteúdos matemáticos e baixa carga horária destinada às disciplinas
relacionadas à Matemática.
Uma tentativa de amenizar esse quadro foi baseado em uma proposta
de formação continuada na forma de minicurso. No material pedagógico
elaborado por nós, procuramos utilizar uma metodologia que despertasse nos
professores um interesse no aprofundamento dos conteúdos matemáticos
trabalhados. Decidimos, então, utilizar Unidades Básicas Problematizadoras
(UBPs), proposta criada por Miguel e Mendes (2010), na qual exploramos
problematizações a partir de fatos históricos sociais. Além disso, o uso das UBPs
propicia um meio instigante e agradável de abordar conteúdos matemáticos e
levam os cursistas a adotarem uma postura investigativa no estudo da
Matemática. Nossa UBP aborda disseminação do sistema de numeração indo-
arábico pelo Ocidente e seu caráter decimal e posicional.
Por meio da utilização do nosso material pedagógico, para os
professores que ensinam Matemática nos anos iniciais do Ensino Fundamental,
esperamos que estes se sintam incentivados a investigar, refletir e buscar novos
conhecimentos para, a partir deles, melhorar sua prática pedagógica, tornando
o processo de ensino-aprendizagem mais significativo. Salientamos, ainda, que
o nosso material pedagógico poderá ser utilizado por outros Matemáticos que se

890
interessarem em ampliar o conhecimento dos professores que ensinam
matemática.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular (BNCC) Brasília:


MEC/CONSED/ UNDIME, 2017.

BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE/CP n. 1/2006


Diretrizes curriculares nacionais para o curso de graduação em pedagogia,
licenciatura. Brasília: MEC, 2006.

CURI, E. Formação de professores polivalentes: uma análise de


conhecimentos para ensinar Matemática e de crenças e atitudes que interferem
na constituição desses conhecimentos. 2004. Tese (Doutorado em Educação
Matemática) - PUC/SP, São Paulo, 2004.

GUALBERTO, P. M. A.; ALMEIDA, R. Formação de professores nas séries


iniciais: algumas considerações sobre a formação matemática e a formação
dos professores das licenciaturas em Pedagogia. Olhar de Professor, Ponta
Grossa, v. 12, n. 2, p. 287-308, 2009. Disponível em:
https://www.revistas.uepg.br/index.php/olhardeprofessor/article/view/\\
1213/863. Acesso em: 01 abr. 2020.

IFRAH, G. Os Números: a História de uma grande invenção. Tradução de


Stella M. de Freitas Senra. 6. ed. São Paulo: Globo, 1994.

LIMA, V. M. M. Formação do professor polivalente e saberes docentes: um


estudo a partir de escolas públicas. 2007. Tese (Doutorado em Educação) -
Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.
Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-
12032009-111920/\\pt-br.php. Acesso em: 07 jul. 2020.

LOPES, G. L. O.; MOREY, B. B. Tratado Aritmético de Al-khwarizmi -


observações iniciais. In: Seminário Nacional de História da Matemática, 8,
Anais. Fortaleza, CE: SNHM, 2019.

MIGUEL, A.; MENDES, I. A. Mobilizing histories in mathematics teacher


education: memories, social practices, and discursive games. ZDM
mathematics Educacion, v. 42, p. 381-392, 2010.

891
TAVARES, M. O.; PEREIRA, A. C. C. Um estudo sobre a inserção das práticas
matemáticas históricas por meio de UBP no ensino de Matemática. Boletim
Cearense de Educação e História da Matemática, v. 3, n. 8, p. 59 - 70, 2016.
Disponível em: https://revistas.uece.br/index.php/BOCEHM/article/view/77/30.
Acesso em: 26 ago. 2020.

892
UM ESTUDO SOBRE A REVISTA HISTÓRIA DA MATEMÁTICA PARA
PROFESSORES

Antonio Rodrigues Junior292


Marcos Lübeck293

RESUMO
Neste artigo apresentamos um estudo realizado sobre as edições da Revista História
da Matemática para Professores (RHMP), publicada pela Sociedade Brasileira de
História da Matemática (SBHMat), enfatizando conteúdos históricos e matemáticos de
cada um dos exemplares e elencando-os aos possíveis anos do ensino básico em que
os professores podem empregar esse material. Para tanto, nos embasamos em
documentos oficiais, tais como na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e no
Referencial Curricular do Paraná (RCP), e perfazemos isso mediante uma análise
documental e bibliográfica. As edições da respectiva revista foram analisadas
associando seus conteúdos às unidades temáticas e anos escolares, conforme
encaminham esses documentos. Portanto, esperamos com este estudo contribuir com
o ensino de matemática na educação básica, por intermédio da divulgação dessa
importante revista aos professores, promovendo o uso da história nas aulas, o acesso
a esses materiais e suas possibilidades no ensino de matemática.

Palavras-chave: RHMP. Conteúdos Didáticos. Ensino de Matemática.

INTRODUÇÃO

Os professores, durante as suas aulas, tem enfrentado diversos desafios,


principalmente os professores de matemática que, ao ensinar certos conteúdos,
escutam dos alunos falas como: “aonde iriei utilizar isso em minha vida?” ou
“para que serve isso?”. Diante desses e de outras questões enfrentadas nas
salas de aula, tem se buscado alternativas ou metodologias de ensino que

292
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). E-mail: juniorarjrodri3@gmail.com.
293
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). E-mail: marcoslubeck@gmail.com.

893
podem ajudar na solução de demandas como estas. E dentre as possibilidades
emergentes na educação matemática, destacamos a história da matemática.
A história da matemática, segundo asseguram Mendes (2015) e Miguel e
Miorim (2004), é um instrumento de investigação das origens e descobertas, de
métodos e notações matemáticas que foram desenvolvidas ao longo de tempo,
e que expõe a contribuição de diversas civilizações. Ou seja, a matemática que
conhecemos hoje foi desenvolvida ao longo de muitos e muitos anos. Mas para
os alunos essa é uma disciplina que espanta, hora por seus elegantes teoremas,
hora por seus cálculos complexos, ou até mesmo pelo pré-conceito de ser difícil.
Para romper essa barreira, a história da matemática surge como uma das
tendências metodológicas para o ensino de matemática, tendência que permite
compreender a origem das ideias que formam a cultura e o desenvolvimento
humano. Reconhecer esse processo histórico é fundamental para compreender
as origens que deram forma a cultura. D’Ambrósio (1999, p. 97) afirma que “um
dos maiores erros que se prática em educação, em particular na educação
matemática, é desvincular a matemática das outras atividades humanas”. Assim,
por meio da história da matemática o aluno pode relacioná-la com o seu
cotidiano.
A história da matemática pode ajudar alunos e professores a verem essa
disciplina por outro prisma, com um olhar que a torne mais fácil de entender, e
até mais atraente, tornando-a inclusive mais prazerosa de ser estudada. Para
ajudar nesse processo, os conteúdos didáticos e atividades descritas nas
edições da Revista História da Matemática para Professores (RHMP), uma
publicação da Sociedade Brasileira de História da Matemática (SBHMat), serão
associados as suas respectivas unidades temáticas e respectivos anos
escolares, segundo os documentos oficiais, a saber, a Base Nacional Comum
Curricular (BNCC) e o Referencial Curricular do Paraná (RCP), com o objetivo
de organizar um guia para o professor da educação básica, facilitando o acesso
a esses materiais de forma mais rápida e objetiva, ajudando-os, assim, no
planejamento de suas aulas.

894
Vale ressaltar que este artigo é um ensaio sobre parte de uma dissertação
de mestrado que está ainda em desenvolvimento no Programa Pós-Graduação
em Ensino (PPGEn) da Universidade Estadual do Oeste do Paraná
(UNIOESTE), campus de Foz do Iguaçu, na qual objetivamos analisar todos os
livros referentes a Coleção História da Matemática para Professores,
organizando seus conteúdos, também, segundo estes documentos oficiais,
como na intenção apresentada aqui.

CONTEXTUALIZAÇÃO TEÓRICA

Vivemos em uma sociedade em constante mudança, que afeta


diretamente o comportamento das pessoas, e isso também reflete no dia a dia
escolar. Aulas consideradas tradicionais, cuja metodologia se baseia em
exposição oral, que tem como recursos principais lousa e giz/pincel, ou agora,
de forma puramente teórica e remota, por meio de recursos tecnológicos e
impressos, tornam-se praticamente improdutivas, pois essas aulas são
cansativas e pouco atraentes para os alunos.
E ao buscarmos recursos para tornar as aulas mais atraentes, podemos
olhar para o passado e nos apoiar na História da Matemática, para revelar fatos
e circunstancias que podem ser boas às aulas. D’Ambrosio (2003) reforça a ideia
de que contextualizar a matemática e seu ensino é essencial. Além disso,
destaca que a história da matemática serve para professores e alunos devido a
relação que estabelece com a cultura dos povos, e deve ser vista como um
processo em desenvolvimento, estando presente em todas as formas de fazer e
saber.
Além disso, pode ser usada como uma estratégia de ensino motivadora
para os alunos ao abordar os conteúdos matemáticos estabelecendo uma
relação entre as fórmulas e a cultura de diversas civilizações. É importante
destacar que a história da matemática pode ajudar o aluno a perceber que a
matemática não é uma ciência isolada dos demais saberes. Corroborando estas
concepções, vemos

895
(1) a Matemática como uma criação humana; (2) as razões pelas
quais as pessoas fazem Matemática; (3) as necessidades
práticas, econômicas e físicas que servem de estímulo ao
desenvolvimento das ideias matemáticas; (4) as conexões
existentes entre Matemática e Filosofia, Matemática e Religião,
Matemática e Lógica, etc.; (5) a curiosidade estritamente
intelectual que pode levar a generalização e extensão de ideias
e teorias; (6) as percepções que os matemáticos têm do próprio
objeto da Matemática, as quais mudam e se desenvolvem ao
longo do tempo; (7) a natureza da uma estrutura, de uma
axiomatização e de uma prova. (MIGUEL; MIORIM, 2004, p. 33)

Podendo estar presente nas salas de aula em vários contextos diferentes,


pode ser apresentada de forma lúdica, com problemas curiosos, enigmas, jogos
que estimulem o raciocínio, entre outros, como fonte de pesquisa e
conhecimento geral, ou, ainda, como introdução de um conteúdo ou atividade
complementar de leitura, de trabalho em equipe e apresentação para a
coletividade.
Com a história da matemática é possível encontrar/buscar uma nova
forma de ver e entender a matemática, integrando-a ainda mais com outras
disciplinas, ou seja, tornando-a mais contextualizada e, ao mesmo tempo, mais
agradável de ser ensinada e aprendida, e quiçá, mais humanizada.

As ideias matemáticas comparecem em toda a evolução da


humanidade, definindo estratégias de ação para lidar com o
ambiente, criando e desenhando instrumentos para esse fim, e
buscando explicações sobre os fatos e fenômenos da natureza
e para a própria existência. Em todos os momentos da história e
em todas as civilizações, as ideias matemáticas estão presentes
em todas as formas de fazer e de saber. (D’AMBROSIO, 1999,
p. 97)

Entendemos que, com a história da matemática, é possível relacionar os


conteúdos da matemática com outras disciplinas e com a realidade atual, uma
vez que ela acompanha a história da humanidade, desde seus primórdios. A
história da matemática permite igualmente saber/observar que a matemática tem
um processo histórico que a sustenta e que é uma construção humana,

896
impulsionada e gerada pelas necessidades das pessoas. E para ajudar entender
esse processo e a própria matemática, os professores podem contar com
referências diversas.
Agora, quanto aos documentos oficiais, a Base Nacional Comum
Curricular (BRASIL, 2017a) afirma que a matemática é necessária para todos os
alunos, seja por suas potencialidades para a formação dos cidadãos, assim
como na sua grande aplicação na sociedade contemporânea. Além do mais, a
matemática não se restringe a quantificar fenômenos determinísticos, mas
estuda fenômenos de caráter aleatório, apesar de ser uma ciência hipotético
dedutiva devido a sua excelência, baseada em axiomas e postulados, ela é
crucial na aprendizagem devido ao seu papel heurístico, nomenclatura essa
utilizada para descrever a abordagem feita por alguém para se resolver um
problema.
Nesse sentido, apresentamos um significado para heurística, o qual diz
que

Heurística, Heurética ou ars inveniendi era o nome de um certo


ramo de estudo, não bem delimitado, pertencente à lógica, à
filosofia ou à psicologia, muitas vezes delineado mas raramente
apresentado com detalhes, hoje praticamente esquecido. O
objetivo da heurística é o estudo dos métodos e das regras da
descoberta e da invenção. (PÓLYA, 1978, p. 86)

Isto é, a heurística objetiva analisar as diferentes maneiras de pensar das


pessoas na resolução de problemas, destacando as justificativas apresentadas
e como elas foram elaboradas, considerando a sua criatividade e diversidade.
Outrossim, no Ensino Fundamental a Matemática está dividida em
tópicos, os quais são Números, Álgebra, Geometria, Grandezas e Medidas,
Estatística e Probabilidade (BRASIL, 2017a), que visam garantir que os alunos
sejam capazes de interpretar as relações empíricas do mundo real e as suas
representações associadas a matemática, por intermédio de conceitos e
propriedades.

897
Acredita-se que o Ensino Fundamental tenha o papel de desenvolver o
“letramento matemático, definido como as competências e habilidades de
raciocinar, representar, comunicar e argumentar matematicamente” (BRASIL,
2017a, p. 266), e que, por meio deste, o aluno possa desenvolver um raciocínio
lógico e crítico, estimulando assim seu aprendizado.
O desenvolvimento dessas competências e habilidades pode acontecer
no ínterim da aprendizagem matemática por diversos processos de ensino, seja
pela resolução de problemas, na investigação matemática, no desenvolvimento
de projetos, da modelagem e pela própria história da matemática. Esses
processos são potencialmente ricos para o desenvolvimento das competências
e habilidades para o letramento matemático. E dentre as principais, podemos
destacar:

1. Reconhecer que a Matemática é uma ciência humana, fruto


das necessidades e preocupações de diferentes culturas, em
diferentes momentos históricos [...] 2. Desenvolver o raciocínio
lógico, o espírito de investigação e a capacidade de produzir
argumentos convincentes, recorrendo aos conhecimentos
matemáticos para compreender e atuar no mundo. 3.
Compreender as relações entre conceitos e procedimentos dos
diferentes campos da Matemática (Aritmética, Álgebra,
Geometria, Estatística e Probabilidade) e de outras áreas do
conhecimento [...]. 4. Fazer observações sistemáticas de
aspectos quantitativos e qualitativos presentes nas práticas
sociais e culturais, de modo a investigar, organizar, representar
e comunicar informações relevantes, para interpretá-las e avaliá-
las crítica e eticamente, produzindo argumentos convincentes.
5. Utilizar processos e ferramentas matemáticas, inclusive
tecnologias digitais disponíveis, para modelar e resolver
problemas cotidianos, sociais e de outras áreas de
conhecimento, validando estratégias e resultados. 6. Enfrentar
situações-problema em múltiplos contextos, incluindo-se
situações imaginadas [...]. 7. Desenvolver e/ou discutir projetos
que abordem, sobretudo, questões de urgência social, com base
em princípios éticos, democráticos, sustentáveis e solidários,
valorizando a diversidade de opiniões de indivíduos e de grupos
sociais, sem preconceitos de qualquer natureza. 8. Interagir com
seus pares de forma cooperativa, trabalhando coletivamente no
planejamento e desenvolvimento de pesquisas para responder
a questionamentos e na busca de soluções para problemas [...].
(BRASIL, 2017a, p. 267).

898
Além de mais, a matemática reúne um conjunto de ideias
fundamentais importantíssimas para o desenvolvimento dos alunos,
entrelaçando esta disciplina com outras áreas do conhecimento. Assim,

Para que o ensino de Matemática alcance esses objetivos,


proporcionando aos estudantes oportunidades de
desenvolveram habilidades e conhecimentos úteis, e que os
preparem, como homens comuns, para ter uma compreensão
relacional do conhecimento matemático ensinado na escola, é
necessário a utilização de uma metodologia que valorize a ação
docente do professor, através de um ensino partindo do concreto
para o abstrato. (MIGUEL; BRITO; CARVALHO; MENDES,
2009, p. 109).

E para serem desenvolvidas estas habilidades, cada unidade temática


tem sua finalidade. A unidade temática Números, além de desenvolver o
pensamento numérico para quantificar objetos, também tem o objetivo de
desenvolver nos alunos a capacidade de resolver/interpretar problemas
envolvendo as operações básicas. Podendo esta unidade ter um papel
interdisciplinar ao ensinar valores e quantidades, o professor pode utilizar a
história e trabalhar as diferentes moedas e sua função na sociedade. Essas
questões desenvolvem competências pessoais e sociais nos alunos, ao mesmo
tempo que aprofundam esses conceitos.
Realçamos ainda outra competência relacionada na BNCC, a qual visa
Reconhecer que a Matemática é uma ciência humana, fruto das
necessidades e preocupações de diferentes culturas, em
diferentes momentos históricos, e é uma ciência viva, que
contribui para solucionar problemas científicos e tecnológicos e
para alicerçar descobertas e construções, inclusive com
impactos no mundo do trabalho. (BRASIL, 2017a, p. 267)

A BNCC pressupõe que a aprendizagem em matemática está relacionada


à compreensão, ou seja, a percepção de significados matemáticos, sem deixar
de lado suas aplicações, significados estes que estabelecem conexão entre eles
e os demais elementos do cotidiano. Com base na BNCC, o Referencial
Curricular do Paraná (RCP) destaca que os diferentes campos que a matemática
reúne são um conjunto de ideias fundamentais para a formação do estudante,

899
ideias estas que desenvolvem o pensamento matemático. O conhecimento
matemático se torna necessário, seja pela sua aplicação na sociedade ou pelas
suas potencialidades na formação dos cidadãos e, assim, a matemática assume
uma função social.
A matemática deve correlacionar as unidades temáticas entre si, de
acordo com o ano de escolarização e, ainda, sendo proposto um conjunto
progressivo de conhecimento matemático historicamente construído. Para isso,
listamos alguns aspectos destacados na BNCC, como habilidades, e no RCP,
como Objetivos de Aprendizagem, os quais sugerem observar:

• se os objetivos de aprendizagem originam-se dos objetos de


conhecimento;
• se os conhecimentos matemáticos historicamente construídos
estão contemplados nos objetivos de aprendizagem;
• se os objetivos de aprendizagem expressam de forma clara os
conhecimentos matemáticos que o estudante tem direito em
aprender ao final de cada etapa de ensino. (PARANÁ, 2018, p.
816).

Ao voltar a atenção à essas características, a preocupação foi contemplar


as especificidades e características de cada escola e região onde está localizada
no Estado do Paraná, evitando, desse modo, tornar este um documento fechado.
Vale destacar que, durante o desenvolvimento das atividades docentes de
ensino dos conhecimentos matemáticos, as legislações nacionais e estaduais
devem ser respeitadas, sempre valorizando e respeitando as diferenças de cada
indivíduo.
Os diferentes contextos e as múltiplas relações permitem trazer aspectos,
considerações e reflexões na formação do estudante, devido aos mais variados
recursos didáticos pedagógicos que podem ser utilizados, podendo sistematizar
conceitos por meio dos diálogos que se estabelecem no espaço de
comunicação.
No tocante ao RCP, vale destacar também que,

900
Como fundamentação teórico-metodológica, assume-se, nesse
documento, a Educação Matemática como uma área de
pesquisa que possibilita ao professor balizar suas práticas
educativas em uma ação que leva em consideração, além dos
conhecimentos matemáticos, aspectos cognitivos, as questões
sociais, culturais, econômicas, políticas, entre outras. As
tendências metodológicas dessa área – por exemplo, a
resolução de problemas, a modelagem matemática, a
etnomatemática, a história da matemática, a investigação
matemática, as mídias tecnológicas, entre outras –, são
estratégias que permitem desenvolver os conhecimentos
matemáticos. (PARANÁ, 2018, p. 810, grifo nosso).

Apesar disso, a matemática vem sendo trabalhada nas escolas pautada,


por vezes, exclusivamente nos livros didáticos. Nesse sentido,

Embora o livro didático seja um recurso importante no processo


de ensino e aprendizagem, ele não deve ocupar o papel
dominante nesse processo. Assim, cabe ao professor manter-se
atento para que sua autonomia pedagógica não seja
comprometida. Nunca é demais insistir que, apesar de toda a
sua importância, o livro didático não é o único suporte do
trabalho pedagógico do professor. É sempre desejável buscar
complementá-lo, a fim de ampliar as informações e as atividades
nele propostas, para contornar deficiências, ou, ainda, adequá-
lo ao grupo de alunos que o utilizam (BRASIL, 2013, p. 13).

Porém, “a matemática que lemos nos livros já foi produzida há muito


tempo e reorganizada inúmeras vezes. Entretanto, não se trata de um saber
pronto e acabado” (ROQUE, 2012, p. 31). Por isso, precisamos mostrar aos
estudantes que a matemática não surgiu de forma pronta e acabada, e que esta
ainda está em desenvolvimento. De fato,

[...] a história oferece as informações necessárias para: 1) a


compreensão da realidade da vida cotidiana e sua interação
social; 2) a compreensão da linguagem e do conhecimento
cotidiano estabelecido nos períodos em que os tópicos
matemáticos se desenvolveram e se formalizaram da maneira
como os conhecemos atualmente. (MENDES, 2015, p. 128).

Daí a importância de estudar e conhecer a história para ensinar, em fontes


como artigos, livros, teses, dissertações, monografias, vídeos etc., que abordam

901
a história da matemática, para além dos livros didáticos. Contudo, destacamos
aqui unicamente as edições da Revista História da Matemática para Professores.

A REVISTA HISTÓRIA DA MATEMÁTICA PARA PROFESSORES

A Revista História da Matemática para Professores (RHMP), publicada


pela Sociedade Brasileira de História da Matemática (SBHMat), teve início em
março de 2014, quando o seu primeiro número foi publicado. Vale lembrar que
o Número Zero saiu em março de 2013, no X Seminário Nacional de História da
Matemática, como um chamado para publicações futuras. A revista é de acesso
livre, gratuito, (disponível em: http://www.rhmp.com.br/index/index.php/rhmp/) e,
igualmente, não cobra do autores para nela publicar, democratizando a produção
e divulgação do conhecimento. Segundo seu foco e escopo,

A RHMP tem o objetivo de constituir-se num instrumento de


divulgação de trabalhos relativos à articulação entre a história da
matemática e a educação matemática. Publica artigos em
história da matemática, relatos de experiências educacionais
envolvendo a história da matemática, propostas de atividades
envolvendo história da matemática para sala de aula de
matemática, curiosidades e aprofundamentos em história da
matemática, resenhas de livros e filmes, jogos, brincadeiras e
quebra-cabeças que envolvam a história da matemática, fotos e
ilustrações de lugares, pessoas, artefatos e monumentos
relacionados à história da matemática. A RHMP destina-se a
professores das escolas de ensino fundamental e médio. O
objetivo da RHMP é disponibilizar aos professores literatura
sobre a história da matemática que de algum modo venha
contribuir com a formação do professor e com o seu trabalho em
sala de aula. Sendo assim, espera-se que os artigos submetidos
à publicação na revista tenham caráter pedagógico, proponham
atividades e orientações didáticas e sejam interessantes e
acessíveis para o professor [...]. Ao mesmo tempo, os textos
devem resguardar a cientificidade e capacidade de
aprofundamento trazendo as referências bibliográficas nas quais
se apoia. Recomendamos que os autores procurem ilustrar seus
textos tornando-os mais atraentes, sempre respeitando as leis
dos direitos autorais. (RHMP, 2020)

902
Quanto a sua estrutura, cada edição da RHMP apresenta as sete sessões
seguintes: 1. Editorial; 2. Diálogo com um educador; 3. Histórias da matemática;
4. Sugestões para sala de aula; 5. Brincadeiras e diversões; 6. Merece ser lido,
visto e divulgado; e, 7. Conversa com o leitor. As submissões são feitas para as
sessões 3, 4, 5 e 6. Uma descrição completa de cada uma dessas seções, bem
como os números, e mais informações acerca da RHMP, podem ser acessadas
pelo seu endereço eletrônico. A Figura 1 apresenta um recorte da sua página.

FIGURA 1: LAYOUT PÁGINA INICIAL DA RHMP 2020

Fonte: Autores, 2020.

Na sequência apresentamos o Quadro 1, separando artigos com


diferentes temáticas, seguindo as sessões 3. Histórias da matemática, 4.
Sugestões para a sala de aula, 5. Brincadeiras e diversão, e 6. Merece ser lido,
visto e divulgado, da RHMP. Esse recorte é para apresentar uma análise
sintética de alguns textos de cada edição voltados para a sala de aula,
considerando os limites deste ensaio.

QUADRO 1: ANÁLISE DOS TEXTOS DA RHMP PARA A SALA DE AULA


Título do Volum An Sugest Unidade Objeto de Habilidades
Artigo ee o ão de Temática Conhecime /
Núme Ano BNCC/RC nto Objetivos
ro P de
Aprendizag
em

903
De contagens v.1, 201 A partir Probabilida Noções de (EF06MA30)
empíricas e n.1 4 do atual de e probabilidad
jogos ao 6° ano estatística / e
poder da Tratamento
ciência da
estatística Informação
Alguns v.1, 201 A partir Números Sistema de (EF06MA10)
aspectos n.1 4 do atual numeração
históricos dos 6° ano decimal: (EF06MA11)
números característic
decimais as, leitura,
escrita e
comparação
de números
naturais e de
números
racionais
representad
os na forma
decimal.
As v.1, 201 Atual 9° Álgebra / Equação do (EF09MA09)
potencialidad n.1 4 ano Números e 2.º grau
es Álgebra
pedagógicas
da história da
matemática –
uma
abordagem
com alunos
da 8ª série
Onde está a v.1, 201 A partir Álgebra / Razão e (EF09MA08)
proporção? n.1 4 do atual Números e proporção /
7° ano Álgebra Teorema de (EF09MA14)
Geometria Tales
A beleza da v.1, 201 A partir Geometria Geometria (EF06MA17)
estrela da n.1 4 do atual plana /
felicidade 6° ano Geometria (EF06MA18)
espacial
A v.2, 201 Atuais Geometria Função do (EF09MA06)
contribuição n.1 5 8° e 9 ° 2.º grau
da geometria anos
dinâmica na
resolução
geométrica
de equações
do segundo
grau como
proposto por
Descartes

904
A matemática v.2, 201 A partir Geometria Geometria (EF08MA15)
por trás da n.1 5 do atual plana
balhestilha 8° ano (EF09MA17)

(EF09MA19)
A história da v.2, 201 A partir Álgebra / Sequências (EF08MA10)
matemática n.1 5 do atual Números e recursivas e
subsidiando 8° ano Álgebra não
contextos de recursivas
abordagem
para a
resolução de
problemas: o
caso do
“truque de
Fibonacci”
A perspectiva v.2, 201 A partir Álgebra / Função do (EF09MA06)
sociocultural n.1 5 do atual Números e 1.º grau
da história da 9° ano Álgebra Função do
matemática 2.º grau
como uma
lente
metodológica
para o estudo
de funções
Geometria e v.3, 201 A partir Geometria Geometria (EF07MA21)
estilo gótico: n.1 6 do atual plana
as catedrais 7° ano
medievais /
Construindo
arcos com
régua e
compasso
O Encontro v.3, 201 A partir Geometria Geometria (EF09MA13)
da Álgebra e n.1 6 do atual plana
da Geometria 9° ano
nas Obras de
Descartes e
Hilbert
Do v.3, 201 A partir Álgebra / Equação do (EF09MA09)
“completame n.1 6 do atual Números e 2.º grau
nto” de 9° ano Álgebra
quadrados ao
“completame
nto” de cubos
por Cardano
e Tartaglia
Notação v.3, 201 A partir Números Notação (EF08MA01)
posicional n.1 6 do atual científica
sem zero: 8º ano Potências

905
possibilidade
s lógicas e
realidades
históricas
Gelosia: um v.4, 201 A partir Álgebra / Múltiplos e (EF06MA05)
método de n.1 8 do atual Números e divisores
multiplicação 6º ano Álgebra (EF06MA06)
medieval
A História dos v.4, 201 A partir Números Números (EF06MA04)
números n.1 8 do atual primos e
primos 6º ano compostos
História da v.5, 201 A partir Álgebra / Razão e (EF07MA17)
matemática e n.1 9 do atual Números e proporção
o ensino da 7º ano Álgebra
razão áurea:
uma
sequência de
atividade
A v.5, 201 A partir Geometria Geometria (EF07MA33)
reconstrução n.1 9 do atual Plana
dos círculos 7° ano (Medidas de
de proporção comprimento
no Geogebra Número π)
como uma
atividade
para a
mobilização
de
conhecimento
s
matemáticos
Investigação v.6, 202 Atual 9° Números, Princípio
histórica com n.1 0 ano Probabilida multiplicativo (EF09MA22)
tecnologia de e de contagem
para a Estatística (EF09MA23)
unidade de /
números, Tratamento
probabilidade da
e estatística Informação
no 8° ano: o
caso do
princípio da
casa dos
pombos de
Dirichlet
Números v.6, 202 A partir Números Números (EF07MA03)
inteiros n.1 0 do atual inteiros
chineses da 7° ano (EF07MA04)
Era Shang

906
Fonte: Autores, 2020.

Segundo a BNCC (2017), o desenvolvimento dessas competências,


favorece a interpretação e compreensão da realidade pelos estudantes. Essas
competências, contribuem para a formação de cidadãos críticos e reflexivos,
assim como, para a formação científica geral dos estudantes. Vale ressaltar, que
os artigos aqui apresentados, foram relacionados com o conteúdo mínimo de
cada ano segundo a BNCC e o RCP. Podendo ser desenvolvidos nos demais
anos de ensino.
Além dos conteúdos, que podem ser relacionados diretamente com a
BNCC, a revista trás artigos que podem ser apresentados como curiosidades,
ou mesmo, como atividade que venha contribuir com a ampliação do
conhecimento dos alunos. Atividades que podem ser consideradas extra
curriculares, pois os professores não devem ater-se somente aos livros didáticos,
se possível, levar aos alunos mais do que lhe é proposto no currículo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A história da matemática possibilita compreender melhor como chegamos


aos conhecimentos modernos e os porquês de ensinar este ou aquele conteúdo,
como também permite entender que a matemática está em constante
construção, estando sujeita a erros e acertos. E mais, que com ela
contextualizada, é possível realizar conexões entre os conhecimentos escolares
e a realidade circundante.
Assim, esperamos ter destacado que história da matemática, a qual serve
de facilitador para o processo de ensino e aprendizagem da matemática, pode
ser uma valiosa ferramenta nesse processo (LÜBECK; JUNIOR, 2020). E que
Revista História da Matemática para Professores e seus acessíveis e notáveis
conteúdos estão disponíveis, ricos em possibilidades, prontos para serem postos
em prática.

907
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2017a. Disponível em:
https://bit.ly/3hfbmO5. Acesso em: 20 dez. 2020.

BRASIL. Guia de Livros Didáticos - PNLD 2014 - Matemática. Brasília: MEC, 2013.

BRASIL. Guia de Livros Didáticos - PNLD 2017 - Matemática. Brasília: MEC, 2017b.

D’AMBROSIO, U. A história da matemática: questões historiográficas e políticas e


reflexos na Educação Matemática. In: BICUDO, M. A. V. (Org.). Pesquisa em
Educação Matemática: concepções e perspectivas. São Paulo: EDUNESP, 1999, p.
97-115.

D’AMBROSIO U. Etnomatemática: arte ou técnica de explicar e conhecer. São Paulo:


Ática, 1990.

D’AMBROSIO, U. Etnomatemática: elo entre as tradições e a modernidade. Belo


Horizonte: Autêntica, 2001.

D’AMBROSIO, U. Educação Matemática: da teoria à prática. Campinas: Papirus,


2003.

D’AMBROSIO, U. História da Matemática e Educação. In: FERREIRA, E. S. (Org.).


Cadernos CEDES 40. Campinas: Papirus, 1996.

LÜBECK, M; JUNIOR, A. R. A história como ferramenta de ensino dos números.


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2020. Disponível em: https://bit.ly/2WuBXNh. Acesso em: 20 dez. 2020.

MENDES, I. A. História da Matemática no Ensino: entre trajetórias profissionais,


epistemologias e pesquisas. São Paulo: Livraria da Física, 2015.

MIGUEL, A.; MIORIM, M. Â. História na Educação Matemática: propostas e


desafios. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

MIGUEL, A.; BRITO, A. de J.; CARVALHO, D. L. de; MENDES, I. A. História da


matemática em atividades didáticas. 2. ed. São Paulo: Livraria da Física, 2009.

PARANÁ. Referencial Curricular do Paraná: princípios, direitos e orientações.


Curitiba: SEED, 2018.

PÓLYA, G. A arte de resolver Problemas. Rio de Janeiro: Interciência, 1978.

REVISTA HISTÓRIA DA MATEMÁTICA PARA PROFESSORES. Sobre a revista. Rio


Claro: SBHMat, 2020. Disponível em: https://bit.ly/3pcavQX. Acesso em: 20 dez. 2020.

REVISTA HISTÓRIA DA MATEMÁTICA PARA PROFESSORES. Rio Claro: SBHMat,


2014-. ISSN: 2317-9546/e-ISSN: 2675-715X. Disponível em: https://bit.ly/3mCXWw6.
Acesso em: 20 dez. 2020.

908
ROQUE, T. História da Matemática: uma visão crítica, desfazendo mitos e lendas.
Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

909
910
A PRESENÇA DA HISTÓRIA DA MATEMÁTICA NAS AVALIAÇÕES DO
ENEM: UMA EXPERIENCIA DE INICIAÇÃO À PESQUISA

Robertto Brasilino Silva de Oliveira294


Severino Barros de Melo295

RESUMO
O presente relato tem por objetivo socializar uma experiência amadurecida no âmbito
das disciplinas História da Matemática e Prática Docente e Metodologia Científica em
Matemática, ofertadas pelo Departamento de Educação, no curso de Licenciatura em
Matemática da Universidade Federal Rural de Pernambuco, com o intuito de familiarizar
os alunos acerca das etapas de uma pesquisa. Para o caso específico escolhemos o
tema presença da História da Matemática (HM), nos Exames Nacionais do Ensino Médio
(ENEM) nos últimos onze anos. A escolha do referido tema adveio da curiosidade em
identificar a existência de tal abordagem nos ENEM, pois atualmente há uma maior
democratização quanto ao acesso aos conteúdos voltados para a História da
Matemática. De fato, encontra-se com facilidade assuntos de HM em livros didáticos e
em variados formatos de mídias. Ademais, a HM é um tema presente nas indicações
dos documentos oficias como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e a Base
Nacional Comum Curricular (BNCC). Era de nosso interesse verificar se uma maior
divulgação da HM teria tido repercussão nas avaliações nacionais. A definição do
período deveu-se a mudança ocorrida no exame em 2009, quando deixou de ser uma
prova única constituída por questões interdisciplinares, que não apresentavam
necessariamente articulação direta com os conteúdos do ensino médio e passou a ser
subdividido em quatro áreas, dentre elas “Matemáticas e suas tecnologias”. Tal
subdivisão permitiu uma abordagem focada nos conteúdos ministrados no ensino
médio, podendo ser apresentados de forma interdisciplinar e relacionados com o
cotidiano das pessoas. Do ponto de vista do marco teórico, procuramos confrontar a
realidade pesquisada com o pensamento de matemáticos e educadores matemáticos
como Lakatos (1978), Struik (1985), Matthews (1995), Fossa (1998) e Morais (2013),
que de diversas maneiras advogam o uso da HM nas aulas de matemática. A
metodologia adotada foi uma pesquisa bibliográfica e documental. Utilizamos a tipologia
de Struik (1985) para análise das questões. Como conclusão observamos que apesar
da grande facilidade de acesso aos conteúdos relacionados à HM e de sua prescrição
didática por pesquisadores da área, há uma inserção muito tímida da HM nos exames
analisados. Ao final avaliamos a experiência como exitosa, pelo fato de ter acionado no
seu desenvolvimento, mesmo de forma breve, as etapas clássicas de uma pesquisa,
preparando o aluno envolvido para futuras incursões num eventual projeto de pesquisa
de mestrado.

Palavras-chave: Educação Matemática. História da Matemática. ENEM.


294
Colégio Imaculado Coração de Maria (CICM). brasilino.math@gmail.com 1.
295
Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). sbmelo55@gmail.com2.

911
1. INTRODUÇÃO:

O presente relato tem por objetivo socializar uma experiência


amadurecida no âmbito das disciplinas História da Matemática e Prática Docente
e Metodologia Científica em Matemática ofertadas pelo Departamento de
Educação, no curso de Licenciatura em Matemática da Universidade Federal
Rural de Pernambuco e teve como escopo familiarizar os alunos acerca das
etapas de uma pesquisa.
No caso vivenciado pelo aluno em tela, escolhemos o tema presença da
História da Matemática (HM), nos Exames Nacionais do Ensino Médio (ENEM)
nos últimos onze anos. Tal escolha adveio da curiosidade em verificar se a
democratização de conteúdos voltados a HM teve repercussão nos exames
nacionais do ensino médio. De fato, atualmente há uma maior divulgação da HM
em livros didáticos e em variados formatos de mídias. Ademais, a HM é um tema
presente nas indicações dos documentos oficias como os Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
A definição do período deve-se a mudança ocorrida no exame em 2009,
quando deixou de ser constituído por questões interdisciplinares, que não
apresentavam necessariamente articulação direta com os conteúdos do ensino
médio, passando a ser subdividido em quatro áreas, dentre elas “Matemática e
suas tecnologias”. Tal subdivisão permitiu uma abordagem focada nos
conteúdos ministrados no ensino médio, apresentados geralmente de forma
interdisciplinar e relacionados com o cotidiano das pessoas.
Do ponto de vista do marco teórico, procuramos confrontar a realidade
pesquisada com o pensamento de matemáticos e educadores matemáticos
como Lakatos (1978), Struik (1985), Matthews (1995), Fossa (1998), Morais
(2013) e documentos oficiais como os PCN (1997) e a BNCC (2020) que de
diversas maneiras advogam o uso da HM nas aulas de matemática.
A metodologia adotada foi uma pesquisa bibliográfica e documental e
utilizamos a tipologia de Struik (1985) para análise das questões.

912
2. DESENVOLVIMENTO:

A experiência se desenvolveu com as etapas clássicas de uma pesquisa,


vivenciadas de modo breve, desde a elaboração do projeto até sua execução.
No projeto passamos pela justificativa (ou caracterização do tema), pela visita a
um referencial teórico, pela elaboração do problema de pesquisa, pela definição
de um objetivo geral e pela definição de um percurso metodológico. Na execução
passamos pela coleta e análise dos dados e pelas conclusões.

2.1. Caracterização do tema e marco teórico

Para a caracterização do tema e a visita ao marco teórico iniciamos com


leituras que sublinhavam a importância do tema; ou seja, nos servimos de
referências que apresentavam algunas ideias-força defendidas por matemáticos,
historiadores da matemática e educadores matemáticos acerca do uso da HM
na prática docente.
Foram discutidas ideias de Lakatos (1978), Struik (1985), Matthews
(1995), Fossa (1998), Morais (2013) e documentos oficiais como os PCN (1997)
e BNCC (2020). O uso de apenas cinco referências deveu-se ao objetivo da
experiência; ou seja, fazer um mini pesquisa. Entretanto ficou clara como se dá
a relação do marco teórico com pesquisa. Procedemos as leituras dos textos
escolhidos e procuramos eleger qual a ideia que mais nos chamou a atenção em
cada texto, procurando justificar a escolha no diálogo com o professor da
disciplina.
Ademais, ratificando a importância do tema, identificamos que dentre os
15 grupos de trabalho (GT) organizados pela Sociedade Brasileira de Educação
Matemática (SBEM), há o GT5 (História da Matemática e Cultura) no qual se
inseria o campo de estudo de nossa mini pesquisa.
Dentre os pesquisadores estudados, elegemos as ideias que se seguem
e que serviram de discussões nas aulas e em outros contextos. A primeira é a

913
de Matthews (1995, p.165) por revelar aspectos comuns entre realidades
educacionais tão diferentes.
Para ele a História da ciência em geral:
Pode humanizar as ciências e aproximá-las dos interesses
pessoais éticos, culturais e políticos da comunidade; pode tornar
as aulas de ciências mais desafiadoras e reflexivas, permitindo
desse modo, o desenvolvimento crítico; pode contribuir para o
desenvolvimento mais integral da matéria cientifica, isto é, pode
contribuir para a superação do mar de falta de significação que
se diz ter inundado as salas de aula de ciências, onde fórmulas
e equações são recitadas sem que muitos cheguem a saber o
que significam; pode melhorar a formação do professor
auxiliando o desenvolvimento de uma epistemologia da ciência
mais rica e mais autêntica; ou seja, de uma maior compreensão
da estrutura das ciências; bem como do espaço que ocupa no
sistema intelectual das coisas. (MATTHEWS, 1995, p. 165)

De fato, não fazer o uso da História da Ciência de modo explícito ou


como fundamento de toda prática pedagógica é perder a oportunidade de
agregar à fria estrutura dos números e das formas, já em si bonita e fascinante,
o sangue da história, cuja presença pode contribuir para humanizar o ensino.
Chama atenção também no texto de Matthews o fato de que, mesmo num
contexto bem diferente da realidade educacional brasileira, ele constata que
fórmulas e equações são memorizadas sem o aluno atribuir a elas um
significado. Muito parecido com o que se verifica nas aulas de matemática em
nosso país.
O segundo texto que foi motivo de discussão foi o de Fossa (1998). Ele
advoga o uso da HM nas aulas de matemática como um elemento ligado a uma
perspectiva construtivista, ao perceber que várias descobertas que ocorreram na
HM podem ser reproduzidas, criando uma aproximação entre o modo de
trabalhar do matemático e as atividades propostas para o aluno.

A História da Matemática é utilizada como uma fonte de


atividades a serem feitas pelo aluno na sala de aula, trabalhando
em pequenos grupos em um contexto de redescoberta [...] o
aluno é posto na posição de um matemático criativo fazendo
descobertas nas fronteiras da disciplina [...] em contraste ao
ensino tradicional este tipo de atividade estimula o pensamento

914
matemático e promove uma maior maturidade das capacidades
intelectuais do aluno. (FOSSA, 1998, p. 130-131)

De fato, alguns experimentos vivenciados em laboratórios de ensino de


Matemática, em assuntos como a lei angular de Tales, o Teorema de Pitágoras
ou a conjectura de Collatz, ratificam a perspectiva defendida por Fossa, fazendo
o aluno da educação básica se sentir como um mini matemático.
O terceiro texto que nos chamou a atenção foi o de Lakatos (1978, p.
186):

As Matemáticas se apresentam como um conjunto sempre


crescente de verdades eternas e imutáveis, nas quais não
podem entrar os contra–exemplos, as refutações ou a crítica. O
tema em estudo se reveste de um ar autoritário [...] O estilo
dedutivista esconde a luta e oculta a aventura. Toda História se
desvanece, as sucessivas formulações tentativas do teorema ao
longo do procedimento probatório é condenado ao
esquecimento, enquanto que o resultado final é exaltado ao
estado de infalibilidade sagrada. (LAKATOS, 1978, p. 186)

Esse texto de Lakatos vai ao encontro da curiosidade dos alunos, tanto


da educação básica quanto do ensino superior, que ao se depararem com um
livro de matemática indaga se todo esse conteúdo surgiu de modo tão
organizado. De fato, um dos defeitos da transposição didática é que em nome
da objetividade do ensino, na elaboração de um texto didático se oculta as idas
e vindas inerentes ao desenvolvimento da matemática.
O quarto texto estudado foi o de Morais (2013), o qual é quase um
comentário ou reflexão sobre o pensamento de Lakatos. Ele destaca que a HM
pode ajudar os alunos a superar eventuais complexos de inferioridade no trato
com a matemática ao evidenciar os erros e acertos na construção desta ciência,
além de trazer à tona como determinados conceitos são tão carregados de
complexidades que levaram séculos para serem aceitos por unanimidade na
comunidade dos matemáticos.
O estudo da construção histórica do conhecimento matemático
leva a uma maior compreensão do conceito, enfatizando as
dificuldades epistemológicas inerentes ao conceito produzido e,
ao mesmo tempo, observando que as dificuldades do aluno em
compreender determinado conceito pode constituir uma

915
dificuldade histórica para a aceitação desse conceito. (MORAIS,
2013, p. 84)

No contexto da educação básica a perspectiva apresentada por Morais


(2013) é muito importante pois segundo o senso comum, é preciso ter
habilidades e competências especiais para lidar com a matemática. Segundo
esse ponto de vista, uma pessoa que não consegue fazer contas com rapidez
ou cálculo mental não teria queda para a matemática. A História viria de encontro
a esta visão equivocada.
O quinto texto estudado que serviu de discussão foi o de Struik (1985, p.
213). Ele, como um dos pesquisadores mais importantes da HM no século XX
destaca uma série de vantagens do uso da HM que ultrapassam os limites da
própria Matemática:
1. Satisfaz a curiosidade sobre a origem e o desenvolvimento da Matemática.
2. O estudo dos Clássicos pode ser considerado uma atividade prazerosa como
também auxiliar na pesquisa e no ensino.
3. Ajuda entender a herança cultural, tanto pela sua aplicabilidade em outras ciências,
como por suas relações em campos distintos da vida humana.
4. Pode proporcionar campo comum onde o especialista em Matemática e outras
ciências encontram convergência.
5. Serve de cenário para compreensão das tendências da Matemática do passado e
do presente.
6. Pode ilustrar o ensino de Matemática com historietas. (STRUIK, 1985, p. 213)

Considerando os objetivos do trabalho; ou seja, propiciar a elaboração e


execução de um miniprojeto de pesquisa e quase numa homenagem a Struik,
nos servimos dos 6 pontos apresentados por ele, para classificar as eventuais
questões de HM encontradas nas provas do ENEM.
Finalmente, estudamos os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997),
que enquanto documento oficial foi um dos pioneiros a defender o uso da HM na
prática docente:
A História da Matemática, mediante um processo de
transposição didática e juntamente com outros recursos
didáticos e metodológicos pode oferecer uma grande
contribuição ao processo de ensino e aprendizagem em
Matemática. Ao revelar a Matemática como uma criação
humana, ao mostrar necessidades e preocupações de diferentes
culturas, em diferentes momentos históricos, ao estabelecer
comparações entre os conceitos e processos matemáticos do

916
passado e do presente, o professor tem a possibilidade de
desenvolver atitudes e valores mais favoráveis do aluno diante
do conhecimento matemático. Além disso, conceitos abordados
em conexão com sua História constituem-se veículo de
informação cultural, sociológica e antropológica de grande valor
formativo. A História da Matemática é, nesse sentido, um
instrumento de resgate da própria identidade cultural. Em muitas
situações, o recurso à História da Matemática pode esclarecer
ideias Matemáticas que estão sendo construídas pelo aluno,
especialmente para dar respostas a alguns “porquês” e, desse
modo, contribuir para a constituição de um olhar mais crítico
sobre os objetos do conhecimento. (PCN, 1997, p. 45)

O enfoque dado pelos PCN de certo modo sintetiza os diversos pontos


de vista, apresentados anteriormente. Chama atenção a sintonia entre um texto
oficial e as perspectivas apresentadas por diferentes pesquisadores de diversas
partes do mundo. Uma das razões desta convergência está na participação de
mais de 700 pareceristas comprometidos com a educação Matemática por
ocasião da confecção do referido documento.
Vale destacar que mesmo sendo um documento oficial mais recente, a
BNCC se refere ao uso da HM de forma muito tímida em comparação com as
indicações e justificativas apresentadas pelos PCN.

2.2. O problema de pesquisa e os objetivos

No âmbito da elaboração do miniprojeto, passamos à pergunta


norteadora: considerando a democratização da HM em relação às décadas
precedentes, ele se faz presente nos instrumentos de avaliação externa à escola
como o ENEM? A esta pergunta estava relacionado nosso objetivo; ou seja,
identificar a presença da HM nas provas do ENEM. Para o escopo da nossa
experiência não avaliamos interessante, descer aos particulares dos objetivos
específicos.

2.3. Aspectos Metodológicos

A busca de respostas para o problema de pesquisa nos fez optar, do


ponto de vista metodológico por uma pesquisa bibliográfica (marco teórico) e

917
documental. A parte documental foi realizada no banco de dados das provas do
ENEM disponibilizado no site do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (INEP). A análise foi realizada com base nas
provas realizadas de 2009 a 2019. A escolha para iniciar a pesquisa a partir de
2009 deveu-se ao fato de ser este o ano no qual o ENEM sofreu uma mudança
fundamental. De fato, é a partir de 2009 que a prova deixou de ser constituída
por uma avaliação de 63 questões interdisciplinares, sem apresentar articulação
direta com os assuntos ministrados no ensino médio, para uma avaliação
subdividida em quatro áreas de conhecimento, dentre as quais: “Matemática e
suas tecnologias”.
Com essa nova configuração cada área passou a conter 45 questões de
múltipla escolha, com assuntos ministrados no ensino médio, abordados
geralmente de forma interdisciplinar e relacionados com o cotidiano das
pessoas. Com essa mudança foi aberta uma possibilidade considerável para
utilização da HM.
Para a análise das questões decidimos classificá-las segundo as seis
categorias apresentadas por Struik (1985). Com relação a quantidade de
questões analisadas, em 2009 o exame foi elaborado no formato de uma única
aplicação com um total de 45 questões. No ano seguinte houve uma alteração
quanto à aplicação do exame, sendo instituído também o ENEM PPL, destinado
para pessoas privadas de liberdades, entretanto sem alterar o nível das
questões. Dessa forma, a partir de 2010 nossa analise passa a ser feita com 90
questões. O formato de duas aplicações do exame continua em vigência até o
último ano pesquisado. Vale destacar que no ano de 2016, ocorreram três
aplicações por motivo de fraude na primeira aplicação, portanto, para base na
nossa pesquisa nesse ano analisamos as três aplicações totalizando 135
questões.

2.4. Análise do material

A análise ocorreu nas provas de cada um dos onze anos


correspondentes ao recorte histórico da nossa pesquisa. Todos os exames do

918
ENEM regular utilizados como objetos de estudo, foram o da cor amarela e
também os do ENEM PPL do período de 2016 a 2019. Com relação ao ENEM
PPL do período de 2010 a 2015 e à terceira aplicação de 2016, não aconteceram
distinção da cor no exame.
Ano 2009:
Primeiro ano de mudança do exame o qual passou a apresentar 45
questões. Não notamos a utilização de HM na tipologia de Struik em nenhuma
das questões analisadas.
Ano 2010:
Em 2010 tivemos uma mudança, o acréscimo de uma segunda aplicação
anual do exame, o chamado ENEM PPL destinado a pessoas privadas de
liberdade. Contudo os conteúdos e o nível das questões abordadas foram os
mesmos da primeira aplicação, o que resultou num total de 90 questões
analisadas. No ENEM regular notamos a utilização de HM na questão 165,
quanto a classificação de Struik podemos destacar a tipologia 3 por ajudar
entender a herança cultural, tanto pela sua aplicabilidade em outras ciências,
como por suas relações em campos distintos da vida humana e no ENEM PPL
na questão 171 podemos destacar pela classificação de Struik na tipologia 1; ou
seja, satisfazendo a curiosidade e desenvolvimento da matemática.
Ano 2011:
Foram analisadas 90 questões divididas em duas aplicações. Notamos
a utilização da HM apenas na questão 139 do ENEM regular. Quanto à
classificação de Struik, pode ser enquadrada na tipologia 3, ou seja; ajudar
entender a herança cultural, tanto pela sua aplicabilidade em outras ciências,
como por suas relações em campos distintos da vida humana.
Ano 2012:
Foram analisadas 90 questões divididas em duas aplicações. Foi notada
a utilização da HM apenas na questão 150 do ENEM PPL. Quanto a classificação
de Struik pode ser enquadrada destacada na tipologia 1.
Ano 2013:

919
Foram analisadas 90 questões divididas em duas aplicações. Na
primeira foi notada a utilização de HM nas questões 138 e 163, sendo
classificadas respectivamente, segundo Struik, nas tipologias 3 e 1. No ENEM
PPL as questões notadas foram 145 e 168, ambas podem ser classificadas na
tipologia 1.
Ano 2014:
Foram analisadas 90 questões divididas em duas aplicações. Na
primeira foi notada a utilização de HM na questão 177, segundo a classificação
de Struik na tipologia 1 e no ENEM PPL a questão 180 foi classificada na
tipologia 3.
Ano 2015:
Foram analisadas 90 questões divididas em duas aplicações. Na
primeira foi notado a utilização de HM na questão 154, segundo a classificação
de Struik na tipologia 3 e no ENEM PPL a questão 149 foi classificada na
tipologia 1.
Ano 2016:
Em 2016 tivemos uma situação inusitada, a realização do exame por três
vezes em decorrência de fraude no primeiro exame aplicado. Para efeito dessa
pesquisa foram analisados os três exames, num total de 135 questões. No
ENEM regular notamos duas questões utilizando HM, a 158 e a 174;
classificadas segundo Struik, respectivamente nas tipologias 1 e 3. No ENEM
PPL não foi notado à utilização de HM e na terceira notamos a utilização da HM
nas questões 143 e 176, ambas classificadas na tipologia 1.
Ano 2017:
No ano de 2017 retornamos para a situação padrão; ou seja, duas
aplicações do exame totalizando 90 questões. Na primeira foi notado a utilização
de HM na questão 160 e na segunda na questão 139, segundo a classificação
de Struik ambas são da tipologia 3.
Ano 2018:
Foram analisadas 90 questões divididas em duas aplicações. Na
primeira foi notada a utilização de HM na questão 151 e na segunda foram

920
notadas nas questões 146 e 169, segundo a classificação de Struik todas as
questões são da tipologia 3.
Ano 2019:
Foram analisadas 90 questões divididas em duas aplicações. Na
primeira foi notado a utilização de HM na questão 158, segundo a classificação
de Struik na tipologia 3 e na segunda aplicação a questão 156 foi classificada na
tipologia 1.

2.5. Resultados

Em síntese, o resultado da pesquisa pode ser resumido no quadro


abaixo. Os números de 1 a 6 apresentados na quarta coluna se referem à
classificação de Struik apresentada no tópico 2.1.

Tabela 1 - Resumo dos resultados.

Ano Número de questões Presença da Tipologia de Struik


analisadas HM
2009 45 0 -
2010 90 2 3e1
2011 90 1 3
2012 90 1 1
2013 90 4 3,1,1 e 1
2014 90 2 1,3
2015 90 2 3e1
2016 135 4 1,3,1 e 1
2017 90 2 3e3
2018 90 3 3,3 e 3
2019 90 2 3e1
Total 990 23
Fonte: Elaboração dos autores.

3. CONCLUSÃO

Diante da análise realizada no recorte histórico, a resposta ao problema


de pesquisa explicitado no tópico 2.2 foi que a presença da HM praticamente

921
inexiste nas provas do ENEM. Depois de analisarmos 990 questões dos últimos
onze anos do exame na subárea “Matemática e suas tecnologias”, notamos a
presença da HM em 23 questões, que representa uma porcentagem de
aproximadamente 2,32%.
Pela tipologia de Struik (1985) identificamos 11 questões enquadradas
em “satisfazer a curiosidade sobre a origem e desenvolvimento da matemática”
e 12 enquadradas em “ajudar a entender a herança cultural, tanto pela
aplicabilidade em outras ciências, como por suas relações em campos distintos
da vida humana”. Dentre as seis características apresentadas por Struik, era de
se esperar que nem todas poderiam ser encontradas num exame como o ENEM.
Talvez a tipologia 6 pudesse ser explorada. Entretanto, mesmo considerando
apenas as duas tipologias identificadas, a porcentagem da presença da HM é
muito pouca em relação ao potencial didático que a HM carrega em si.
Dessa forma podemos concluir que apesar da grande facilidade de
acesso aos conteúdos relacionados à HM, sua prescrição didática pelos
pesquisadores da área e todos os esforços empregados nos últimos anos, ainda
temos trabalho pela frente para conseguirmos a HM nos exames de avaliação
externa.
Ademais, consideramos exitosa à experiência vivenciada no contexto
das disciplinas História da Matemática e Prática Docente e Metodologia
Científica em Matemática, que teve como escopo familiarizar os alunos acerca
das etapas de uma pesquisa. De fato, ao longo do trabalho vivenciamos mesmo
de forma breve, as etapas clássicas de uma pesquisa, preparando o aluno
envolvido para futuras incursões em eventuais projetos de pesquisa.

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL, Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais para o


Ensino Fundamental. Brasília, MEC/SEF, 1997.
FOSSA, John A. (org.). Educação Matemática. Natal: UFRN, 1998.

922
INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.
Desenvolvida pelo Ministério da Educação. Apresenta os serviços oferecidos.
Disponível em: <http://portal.inep.gov.br/provas-e-gabaritos>. Acesso em: 25
nov. 2020.
LAKATOS, Imre. A Lógica do Descobrimento Matemático: Provas e
Refutações. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.
MATTHEWS, M. História, Filosofia e Ensino de Ciências: A Tendência Atual
de Reaproximação. In: Caderno Catarinense de Ensino de Física, 12 (3): 164-
212, 1995.
MORAIS, Auricélio Carneiro de. Tendências Atuais no Ensino de Matemática.
In: Algumas concepções no Ensino da Matemática. Mossoró (RN): EDUFERSA,
2013.
STRUIK, Dirk J. Por Que Estudar A História da Matemática? In: História da
Técnica e da Tecnologia. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
1985.

923
DESENVOLVENDO A IDEIA DE NÚMEROS INTEIROS E DE ADIÇÃO EM
UMA TURMA DO 7º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL A PARTIR DOS
NUMERAIS CHINESES DA ERA SHANG

Edmar Luiz Gomes Júnior296


Dilhermando Ferreira Campos297

RESUMO
Este artigo apresenta um relato de algumas aulas de Matemática de uma turma do
sétimo ano do Ensino Fundamental de uma escola pública de Belo Horizonte nas quais
a ideia de número inteiro e consequentemente de número negativo foi desenvolvida a
partir dos numerais chineses da era Shang e das tábuas de contagem chinesas.
Discute-se, também, além do processo de desenvolvimento de atividades orientadoras
de ensino que explorem uma situação histórica tendo como inspiração a perspectiva
modules de Jankvist, um pouco do contexto histórico destes numerais. A principal
contribuição que se pretende com esse trabalho para o cenário educacional é a de
possibilitar ao professor a reflexão acerca da utilização de situações históricas nas aulas
de Matemática, além de inspirá-lo na elaboração e no desenvolvimento de atividades
orientadoras de ensino baseadas em situações históricas.

Palavras-chave: Números Inteiros, Educação Matemática, História da


Matemática, Numerais Chineses da Era Shang, Matemática Chinesa.

INTRODUÇÃO

Este relato apresenta algumas situações ocorridas durante as aulas de


Matemática de uma turma do sétimo ano do Ensino Fundamental de uma escola
pública de Belo Horizonte nas quais nas quais a ideia de número inteiro e

296
Prefeitura Municipal de Belo Horizonte (PBH). edmar.junior@edu.pbh.gov.br.
297
Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). dilhermando@ufop.edu.br.

924
consequentemente de número negativo foi desenvolvida a partir dos numerais
chineses da era Shang e das tábuas de contagem chinesas, bem como algumas
reflexões acerca do processo de desenvolvimento de atividades orientadoras de
ensino que explorem uma situação histórica tendo como inspiração a perspectiva
modules de Jankvist O primeiro autor deste trabalho era o professor desta turma
e as atividades foram elaboradas e discutidas entre os dois autores.
Apresentaremos, inicialmente, algumas questões teóricas a respeito do
uso da História da Matemática em sala de aula que ancoram nossa prática, um
pouco do contexto histórico das ideias e dos materiais utilizados para em seguida
relatar como foram as aulas. Para concluir, traremos uma breve reflexão sobre
os possíveis desdobramentos destas aulas, assim como de inquietações nossas
com relação a este tema.

NOSSOS ALICERCES TEÓRICOS

Para apresentar e desenvolver a ideia de números inteiros em uma


turma do 7º ano do ensino fundamental de uma escola pública de Belo Horizonte,
elaboramos uma atividade orientadora de ensino, inspirada na perspectiva
modules de Jankvist.
Nos apoiamos na noção de atividade pedagógica alicerçada no
materialismo histórico-dialético. Para Asbahr (2005), a educação ocorre por meio
de um processo que visa transmitir e assimilar a cultura produzida historicamente
e, é por meio dela, que nos humanizamos, tornando-se possível a formação de
nossa natureza social. Neste sentido, Asbahr (2005) acredita que, a significação
social da atividade pedagógica é proporcionar aos estudantes a apropriação de
um conhecimento não-cotidiano que tem por finalidade direta o desenvolvimento
psíquico.
Para Moura et al (2010, p. 217) a estrutura de uma atividade orientadora
de ensino “indica uma necessidade (apropriação da cultura), um motivo real
(apropriação do conhecimento historicamente acumulado), objetivos (ensinar e

925
aprender) e propõe ações que considerem as condições objetivas da instituição
escolar”. Os autores acreditam também que os professores devem guiar suas
ações de modo que seus alunos se apropriem das experiências histórico-
culturais da humanidade.
Além disso, outro elemento da significação social da atividade
pedagógica é a formação da postura crítica do aluno, que ocorre, segundo Moura
(2001) citado por Asbahr (2005), ao possibilitar que o estudante perceba o
processo de produção do conhecimento. O aluno não é apenas o objeto da
atividade do professor, mas é acima de tudo o sujeito.
Ao encontro desta noção de atividade pedagógica, nos aportamos na
perspectiva modules para o planejamento e o desenvolvimento da atividade
orientadora de ensino. É importante frisar que Jankvist (2009), apresenta, além
deste, outros dois modos dentre os quais a História da Matemática poderia ser
utilizada no processo de ensino de aprendizagem de Matemática como o
ilumination, e o history-based.
O autor classifica uma abordagem como ilumination quando em uma
classe, as aulas expositivas habituais, ou os livros didáticos adotados, são
complementados por informações históricas. Esses complementos seriam
considerados, nessa categoria, independentes da abrangência e do escopo,
podendo ser desde informações isoladas, trechos históricos e anedotas, até
mesmo epílogos/prólogos históricos, onde são apresentados nomes, datas,
problemas históricos, referências a obras originais etc.
Na abordagem modules, o autor categoriza as ações que apresentam
unidades instrucionais devotadas à história e, muitas vezes, baseadas em casos
históricos. O termo modules é tomado do trabalho dos autores Katz e
Michalowicz, de 2004 e pode variar tanto em abrangência quanto em escopo.
Se estabelecermos em uma escala para essa categorização, uma
abordagem que se enquadraria em um dos extremos da categoria é a
denominada por Tzanakis e Arcavi (2000) citados por Jankvist (2009) de
“pacotes históricos”, que seriam materiais prontos para serem utilizados pelos
professores em duas ou três aulas e focado em um pequeno tópico, fortemente

926
vinculado ao currículo . No meio da escala estariam módulos que necessitam de
10 a 20 aulas para serem abordados pelo professor e que precisam estar ligados
aos tópicos do currículo matemático, oferecendo aos estudantes a possibilidade
de explorar ramos da matemática que geralmente não seriam explorados na
escola.
Para Fauvel e van Maanen (2000) citados por Jankvist (2009), as formas
de implementar esta abordagem seriam numerosas. Esses módulos poderiam
ser introduzidos por meio de livros didáticos, de fontes originais, de projetos, de
peças históricas, com o uso da Internet, de planilhas, de problemas históricos,
de instrumentos mecânicos etc. Na outra extremidade da escala estariam os
cursos completos, ou até mesmo os livros, que abordassem a história da
matemática dentro de um programa de matemática.
Diferentemente da categoria modules, a history-based não aborda a
história da matemática diretamente, o desenvolvimento histórico não é discutido,
mas é ele que define a ordem e a forma como os tópicos matemáticos são
apresentados.
Acreditamos que nos inserimos no primeiro extremo apresentado da
categoria modules, pois elaboramos um “pacote histórico” focado no
desenvolvimento da ideia de números inteiros a partir de uma situação histórica.

OS NUMERAIS CHINESES DA ERA SHANG

A Dinastia Shang, de 1750 a.C. até 1040 a.C, foi fundando-se após a
derrubada do imperador Jie da dinastia Xia pelo o primeiro imperador Tong. Eles
dominaram a arte do comércio e por isso a dinastia chama-se “Shang” (商), cujo
significado em língua chinesa é comércio. Os Shang respeitavam o mundo
espiritual e as forças da natureza por isso sempre consultavam os oráculos que
orientavam as ações do governo. A civilização chinesa neste período já possuía
um alto nível de desenvolvimento e evolução além de um grande poder militar.
A antiga capital, Anyang era testemunha do grande poder desta dinastia que era

927
sobretudo baseado na agricultura. Os Shang possuíam inúmeras coleções de
recipientes dos mais variados tipos e funções feitos de bronze. Tais objetos são
normalmente encontrados nas tumbas. A dinastia Shang durou por volta de 600
anos (CHEN, 2010).
Uma das obras mais importantes da matemática chinesa deste período
é o livro Jiuzhang Suanshu (Nove Capítulos da Arte Matemática). Gomes Junior
e Azevedo Oliveira (2020) afirmam que o autor e a data deste trabalho não
podem ser identificados com certeza, mas há indícios que sugerem que tenha
sido escrito por volta de 200 a.C. e circulado, também, no Japão e na Coreia.
A versão original apresentava regras e algoritmos para os cálculos, no
entanto, não haviam demonstrações. Foi em 263 d.C. que o matemático chinês
Liu Hui revisou o trabalho, que continha muitas das matemáticas conhecidas na
China naquela época e acrescentou comentários e justificativas para as técnicas
presentes no livro (Beery et all, 2004).
Além disso, Gomes Junior e Azevedo Oliveira (2020) asseguram haver
registros de inscrições contendo símbolos para numerais em “ossos oraculares”
que datam também da Dinastia Shang (séculos XVI - XI antes da Era Comum)
que registravam o número de dias, prisioneiros capturados ou inimigos mortos
durante uma guerra. Estes símbolos (os numerais Shang) que aparecem nos
ossos dos oráculos foram mais tarde representados por varetas em uma placa
de contagem. A placa de contagem era organizada em quadrados e cada fila de
quadrados poderia representar um número.
Um dado importante apresentado pelos autores é que este sistema,
embora antigo, era um sistema numérico com base decimal. Varetas de
contagem vermelhas eram usadas para os números positivos e varetas pretas
eram usadas para os números negativos. Os chineses, segundo Gomes Junior
e Azevedo Oliveira (2020) não pareciam ter objeções ao conceito de número
negativo em cálculos. Eles pensavam no número negativo como um número a
ser subtraído de outro, uma quantidade a ser paga, como no caso de impostos.
Atualmente utilizamos vermelho para representar um saldo bancário negativo,
mas os chineses utilizavam a cor vermelha para números positivos.

928
Como afirma Schwartz (2008) nenhuma dessas tábuas sobreviveu,
entretanto ele apresenta uma ilustração produzida no Japão no século XVIII para
nos dar uma ideia de como eram (figura 1).

FIGURA 1: TÁBUA DE CALCULAR CHINESA

Fonte: Schwartz (2008, p. 9)

Os numerais Shang eram representados em duas formas: uma forma


vertical e uma forma horizontal. A forma vertical foi usada para unidades,
centenas, dezena de milhar, etc., enquanto a forma horizontal foi usada para as
dezenas, milhares, etc. Por exemplo, || = | | (representa 22.101) e | | = |
(representa 10.121).

FIGURA 2: FORMA VERTICAL E HORIZONTAL DOS NUMERAIS SHANG.

Fonte: Beery, Cochell, Dolezal e Sauk (2004, p. 7)

929
A seguir veremos dois exemplos de como a adição de dois números
inteiros era realizada por esse método.

Exemplo 1

Vamos calcular 331 + (- 203), a figura 4 ilustra o diagrama para essa


operação e mostra apenas as duas primeiras linhas da tabela de contagem.
A placa de contagem está configurada com barras vermelhas
representando 331 na primeira linha e barras pretas representando −203 na
segunda linha (figura 3). Os chineses trabalhavam da esquerda para a direita,
portanto o quadrado à direita de uma linha representava uma unidade, o próximo
quadrado à esquerda representava as dezenas, as centenas no quadrado
seguinte, depois milhares, dez mil, etc.. Começando com os quadrados de
centenas, duas hastes vermelhas e duas barras pretas resultam em zero e,
portanto, são removidas do tabuleiro. Em seguida, nenhuma das hastes é
removida nas dezenas de quadrados, uma vez que não há qualquer vareta preta.
Próximo passo para os quadrados das unidades onde uma barra vermelha e
uma barra preta podem ser removidas.

FIGURA 3: EXEMPLO DE OPERAÇÃO

Fonte: Beery, Cochell, Dolezal e Sauk (2004, p. 40)

Uma vez que todas as hastes de resposta devem estar em uma única
linha, precisamos “pegar emprestado” uma barra vermelha das dezenas e
colocar o equivalente a 10 barras vermelhas no quadrado das unidades. Se

930
representarmos 10 como o numeral para 8 mais 2 hastes adicionais, então
podemos remover essas duas hastes vermelhas juntamente com o duas hastes
pretas restantes, deixando o numeral de 8 no quadrado das unidades. O
resultado é uma fileira de varetas vermelhas representando o número positivo
128 (figura 4).

FIGURA 4: RESULTADO DA OPERAÇÃO

Fonte: Beery, Cochell, Dolezal e Sauk (2004, p. 40)

Exemplo 2

Um segundo exemplo pode ser visto por meio da operação 1 839 – 2


853. Se seguirmos os passos descritos no exemplo anterior, o resultado será
uma fileira de barras pretas, representando o número negativo −1014. Observe
que na figura 5 a esquerda a primeira fileira está representada com varetas
pretas, o que representa um número negativo e, a segunda, um número positivo,
pois está em vermelho.

FIGURA 5: OPERAÇÕES DO SEGUNDO EXEMPLO

Fonte: Beery, Cochell, Dolezal e Sauk (2004, p. 41)

931
AS AULAS

As aulas ocorreram no início do ano letivo. Após duas aulas iniciais, onde
o professor se apresentou à turma bem como apresentou o conteúdo e as
habilidades matemáticas a serem desenvolvidas, houve uma tentativa de
resgate dos sistemas de numeração vistos pelos estudantes no ano anterior na
intenção inseri-los novamente num contexto em que a matemática é vista como
produção da humanidade indissociável de sua história e consequentemente da
invenção de número e numerais para atender a necessidades práticas.
A partir de um exercício de retomada proposto pelo próprio livro didático,
os estudantes viram o sistema de numeração egípcio (muitos pela primeira vez,
como foi possível perceber). Houve muita curiosidade, pois os mesmos fizeram
perguntas como “O que é isso?” (em relação à representação de um calcanhar),
“E o mil? É um desenho de quê? (Em relação à flor de lótus). Um dos estudantes,
neste momento, perguntou o que era uma flor de lótus e um outro estudante o
respondeu: “É aquela que aparece no filme do Percy Jackson”.
Foi desenvolvido com eles também um outro exercício do livro didático
no qual alguns fatos históricos em relação aos sistemas de numeração já
utilizados pela humanidade presentes em um texto deveriam ser organizados em
uma linha temporal.
Na aula seguinte, foi apresentado um breve relato da história dos
números inteiros com o foco no sistema de numeração chinês da era Shang.
Mostramos que, embora matemáticos chineses e gregos do séc. III e
matemáticos indianos do século VII tenham criado regras para trabalhar com
eles, muitos matemáticos europeus famosos que viveram séculos mais tarde
argumentavam que números negativos representariam quantidades inferiores a
zero e, portanto, não poderiam existir. Discutimos que os números negativos
para esses matemáticos poderiam ser usados para representar dívidas ou
indicar a distância quando viajavam em uma direção oposta, mas que eles ainda
não estavam dispostos a aceita-los como soluções para equações (como eles

932
não tinham muito conhecimento sobre álgebra foi preciso explicar o que era uma
equação sem aprofundar, pois não era o foco desta aula) e como parte do
conjunto dos números inteiros.
Em relação à Matemática produzida na China Antiga, foi dito que um dos
mais famosos matemáticos da China Antiga, Liu Hui revisou o Jiuzhang Suanshu
(Nove Capítulos da Arte Matemática), que datava do ano 200 (Antes da Era
Comum) e que continha muitas das matemáticas conhecidas na China naquela
época, atualizando-a e adicionando comentários. Em relação a este livro, foi dito
que ele apresentava, dentre outras coisas, regras para adicionar e subtrair
números positivos e negativos e que Liu Hui é às vezes comparado com
Euclides, um matemático grego que compilou um famoso livro de geometria
chamado Os Elementos por volta do ano 300 (Antes da Era Comum).
Já em relação aos numerais chineses da era Shang, foi apresentado a
eles que inscrições contendo símbolos para numerais foram encontradas em
ossos que datam da dinastia Shang (séculos XVI - XI antes da Era Comum) e
que esses “ossos oraculares” registraram o número de dias, prisioneiros
capturados ou inimigos mortos durante uma guerra. Além disso, foi dito também
que os numerais Shang que aparecem nos ossos dos oráculos foram mais tarde
representados por varetas de contagem em uma placa de contagem. A placa de
contagem foi organizada em quadrados e cada fila de quadrados poderia
representar um número.
Foi dito também que, embora a primeira evidência escrita de que
números negativos foram usados na China remonta ao séc. III, e que varetas de
contagem vermelhas eram usadas para os números positivos e varetas pretas
eram usadas para os números negativos.
Diante disso, foi solicitado que os estudantes representassem no
caderno alguns números (positivos e negativos) no intuito de que, no trabalho
com a tábua, explorássemos efetivamente o cálculo e não houvesse maiores
dificuldades na representação dos números no sistema proposto.
Inicialmente, aguns estudantes apresentaram dificuldades em relação às
palavras “horizontal” e “vertical” que foi sanada diante da sugestão de um outro

933
estudante que sugeriu “deitado”, para horizontal e “em pé” para vertical, termos
que, como foi posssível observar, foram amplamente utilizados pelos estudantes
em todo o processo. Em relação à representação neste sistema, os estudantes
chegaram a algumas constações como, por exemplo: “8 é a mesma coisa aqui
que 5 + 3 não é professor? Uma deitada valendo cinco e 3 em pé.”

FIGURA 6: REPRESENTAÇÃO DE NÚMEROS POSITIVOS E NEGATIVOS


NO SITEMA DE NUMERAÇÃO CHINÊS DA ERA SHANG POR UM
ESTUDANTE DA TURMA.

Fonte: Arquivo pessoal dos autores.

Foi possível perceber que, em um primeiro momento, os números


positivos serem representados na cor vermelha (ao contrário do usual
atualmente) não pareceu incomodá-los pois, acreditamos que para muitos deles,
era o primeiro contato com esse tipo de número (inteiro – positivo e negativo) da
forma como o concebemos na escola, no dia a dia possívelmente já usavam sem

934
perceber.
Na terceira aula, os estudantes foram distribuídos em 5 grupos (três com
6 estudantes e dois com 5) e lhes foram entregues uma “tábua de contagem” e
“varetas” nas cores preta e vermelha para que eles pudessem realizar a adição
de alguns números inteiros.

FIGURA 7: MATERIAL ENTREGUE AOS GRUPOS.

Fonte: Arquivo pessoal dos autores.

Foram realizados dois exemplos inicialmente pelo professor: + 331 - 203


e + 1 839 – 2 853 nos quais as varetas eram retiradas (sempre uma preta para
uma vermelha e vice-versa) e substituições feitas quando necessário. Diante da
primeira operação proposta, + 514 + 1040, três, dos cinco grupos não
perceberam que o + 1 040 era um número positivo (acreditamos que os dois
exemplos apresentados possam ter induzido a isto) e o representaram na cor
preta, realizando, consequentemente, a operação + 514 + (– 1 040). Um grupo
represento-os, além disso, na mesma linha, conforme a figura a seguir.

FIGURA 8: REPRESENTAÇÃO DA OPERAÇÃO + 514 + (– 1 040) COM OS


NUMERAIS CHINESES DA ERA SHANG E A PLACA DE CONTAGEM POR
UM DOS GRUPOS.

935
Fonte: Arquivo pessoal dos autores.
Os estudantes terminaram a operação e em seguida, houve uma
intervenção no sentido de que, realizando a operação + 514 + (– 1 040) o
resultado obtido estaria correto, porém era solicitado que fizesse a adição de
dois números inteiros positivos, + 514 e + 1 040. Após uma breve discussão,
concluíram que ambos deveriam ser representados na cor vermelha, por se
tratarem de números positivos.
As demais operações que foram solicitadas aos estudantes foram: + 3
752 – 963, + 561 – 89, + 2 777 – 5 050 e + 341 + 586 – 623. Alguns grupos
eventualmente continuaram a apresentar dificuldades com horizontal e vertical e
a indentificar o resultado como um número inteiro positivo ou negativo. As
intervenções ocorreram sempre no sentido de questioná-los em relação à cor do
número obtido e, diante dela, da constatação de positivo ou negativo. Um
estudante, em dado momento, foi além da cor do número obtido e disse que “o
número deu negativo porque dos outros dois de antes o que era maior era
negativo” possivelmente se referindo ao valor absoluto dos números envolvidos
na operação.

FIGURA 9: REPRESENTAÇÃO DA OPERAÇÃO + 341 + 586 – 623 COM OS


NUMERAIS CHINESES DA ERA SHANG E A PLACA DE CONTAGEM POR
UM DOS GRUPOS.

936
Fonte: Arquivo pessoal dos autores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste relato, abordamos o ambiente no qual se desenvolveu uma


atividade orientadora de ensino pautada em uma situação histórica específica:
os números inteiros chineses da Era Shang e o processo de adição deles por
meio de placas de contagem. Esta atividade foi elaborada pelos pesquisadores
e desenvolvida em uma turma do 7º ano de uma escola pública brasileira
localizada na cidade de Belo Horizonte.
Explorar uma situação histórica em sala de aula portanto, nos permitiu,
enquanto professores, refletir e questionar o modo como nos posicionávamos
frente aos conteúdos trabalhados, ao percebermos ser possível trabalhar com a
História da Matemática sem que ela seja vista como algo a mais na sala de aula
pois o tempo empregado foi o mesmo que possivelmente teríamos se
optássemos por uma abordagem tradicional do currículo.
Acreditamos, também, que a História da Matemática foi essencial para a
conexão da Matemática com outros temas como a História das Civilizações, por
exemplo, principalmente ao discutir, dentro da aula de matemática, um pouco da
cultura de antigos povos, como os egípcios e os chineses, a influência delas na
Matemática e, até mesmo, em nossa sociedade atual, uma vez que os números

937
inteiros são amplamente utilizados no nosso cotidiano. Tal opinião acerca do uso
da História da Matemática também é compartilhada por D’Ambrosio quando
afirma que:

(...) o ideal é um estudo mais aprofundado do que a simples


enumeração de nomes, datas e lugares. Sobre cada tópico, deve-
se elaborar um pouco. É muito importante destacar aspectos
socioeconômicos e políticos na criação matemática, procurando
relacionar com o espírito da época, o qual se manifesta nas
ciências em geral, na filosofia, nas religiões, nas artes, nos
costumes, na sociedade como um todo. (D’AMBROSIO, 1996,
p.13)

Dessa forma, acreditamos que este relato de experiência pode ser um


bom ponto de partida para outras pesquisas, mesmo em outros campos de
análise.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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contribuições da teoria da atividade. Revista Brasileira de Educação, Rio de
Janeiro, n. 29, p. 108-118, maio/agosto, 2005.

BEERY, Janet. COCHELL, Gary. DOLEZAL, Connie. SAUK, Angi. Historical


Modules Project: Negative Numbers. Mathematical Association of America.
USA. 2004.

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de Cascavel: Dois mundos, um mesmo objetivo. 2010. Trabalho de
Conclusão de Curso - Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Cascavel,
2010.

FAUVEL, John; van MAANEN, Jan. (Eds.) History in Mathematics Education:


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D’AMBROSIO, U. História da Matemática e Educação. In: Cadernos CEDES


40. História e Educação Matemática. 1ª ed. Campinas, SP: Papirus, 1996, p.7-
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938
GOMES JUNIOR, Edmar Luiz; A elaboração e o desenvolvimento de
atividades orientadoras de ensino pautadas em situações históricas: o
sistema hidráulico da Alhambra e o bloco grandezas e medidas. Dissertação
de Mestrado (Educação Matemática). Universidade Federal de Ouro Preto. Ouro
Preto, p. 135. 2018.

GOMES JUNIOR, Edmar Luiz; AZEVEDO OLIVEIRA, Davidson Paulo.


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JANKVIST, Uffe Thomas. On Empirical Research in Fiel of Using History in


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MOURA, Manuel Oriosvaldo et al. Atividade Orientadora de Ensino: unidade


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SCHWARTZ, Randy. A Classic from China: The Nine Chapters. The Right
Angle. Vol. 16. N. 2. Outubro, 2008.

939
HISTÓRIA DA MATEMÁTICA EM ATIVIDADES SOBRE A RAZÃO
ÁUREA

Kamila Gonçalves Celestino298

RESUMO
Este artigo apresenta o relato de uma das atividades desenvolvidas para a dissertação
de mestrado intitulada “História da Matemática em Atividades de Geometria: uma
proposta para a formação inicial de professores” do Programa de Pós-Graduação em
Ensino de Ciências Naturais e Matemática (PPGEN) da Universidade Estadual do
Centro-Oeste (UNICENTRO). A pesquisa buscou investigar quais potencialidades da
História da Matemática se evidenciam no desenvolvimento uma atividade pautada na
razão áurea na formação inicial de professores. Para tanto escolhemos como
encaminhamento metodológico uma abordagem qualitativa, pois nosso interesse
principal foi o desenvolvimento das ações em sala de aula. Realizamos a experiência
com acadêmicos do curso de Licenciatura em Matemática da UNICENTRO. A atividade
permitiu mostrar aos acadêmicos formas de trabalhar os conteúdos de razão e
proporção por meio da História da Matemática. Buscamos observar em nossa
experiência quais das potencialidades pedagógicas da HM, descritas por Fauvel (1991)
apud Miguel et al. (2009) e Miguel e Miorim (2008), se evidenciaram nessa prática.
Pudemos constatar que a História da Matemática se revelou como: uma fonte adequada
de seleção de problemas, metodologia para as aulas de Matemática e um elemento que
favorece o pensamento crítico e o entendimento de que a Matemática foi construída a
partir das necessidades humanas.

Palavras-chave: História da Matemática. Razão Áurea. Ensino de Matemática.

INTRODUÇÃO

Este trabalho apresenta o relato de uma das atividades desenvolvidas


para a dissertação de mestrado intitulada “História da Matemática em Atividades
de Geometria: uma proposta para a formação inicial de professores” do

298
Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO). kcelestino@unicentro.br.

940
Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências Naturais e Matemática
(PPGEN) da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO).
O interesse pela pesquisa em História da Matemática (HM) relacionada
ao ensino de Matemática surgiu a partir da experiência e das dificuldades
encontradas por esta autora ao ministrar a disciplina de HM no curso de
Licenciatura em Matemática da UNICENTRO. Nesta disciplina, a ementa tratava
do desenvolvimento da Matemática desde as civilizações antigas até a
atualidade, mas, não direcionava os tópicos para o ensino de Matemática.
Dessa forma nasceu a preocupação em mostrar aos acadêmicos que a
HM não é apenas uma disciplina isolada no currículo, mas também um recurso
didático que pode ser usado nas aulas de Matemática, motivando assim a
escolha do tema da pesquisa.
Para Chaquiam (2015), a HM é um elemento que pode melhorar o
processo de ensino e aprendizagem da Matemática. Neste sentido, encontramos
a HM citada em documentos oficiais como os Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCN) e as Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná (DCE). Estes
documentos apresentam a HM como uma ferramenta para desenvolver os
conteúdos matemáticos do Ensino Básico e favorecer a aprendizagem da
Matemática. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), apesar de não tratar
de encaminhamentos metodológicos, ressalta que “é importante incluir a História
da Matemática como recurso que pode despertar interesse e representar um
contexto significativo para aprender e ensinar Matemática” (BRASIL, 2017,
p.296).
Notamos, no entanto, que muitos professores não usam recursos como a
HM em suas aulas devido, principalmente, à sobrecarga de trabalho e ao número
reduzido de aulas para cumprir um currículo extenso. Acreditamos que isso pode
ser modificado inserindo experiências com HM e outras metodologias na
formação inicial de professores.
Outro fator que pode dificultar a presença da HM nas aulas de
Matemática, segundo Miguel et al. (2009), é a falta de material bibliográfico com
sugestões de atividades que possam ser utilizadas pelos professores.

941
Esta carência de material vem sendo suprida nos últimos anos, o que
pode ser verificado no banco de teses e dissertações da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Na busca com o termo
“História da Matemática” encontramos 331 resultados no período de 2013 a 2018
(este período foi escolhido porque os resumos dos trabalhos anteriores a 2013
não estão disponíveis na plataforma). Na análise desses trabalhos constatamos
que 158 tratam do uso da HM no ensino de Matemática e 55 propõem algum tipo
de atividade pautada na HM.
Também buscamos um panorama das pesquisas que tratam da HM nos
anais do último Seminário Nacional de História da Matemática (SNHM) que foi
realizado no ano de 2019 na cidade de Fortaleza – CE. Para tanto, consideramos
as comunicações científicas (CC) apresentadas no evento. Foram publicados
111 artigos de CC, dos quais destacamos, pelos termos contidos no título de
cada trabalho, 17 que remetiam ao uso da HM para o ensino de Matemática e,
em seguida, fizemos a leitura de cada um destes e constatamos que 10
relatavam atividades com HM que foram ou estão sendo realizadas, pois alguns
artigos tratavam de experiências ainda em andamento.
Então, podemos perceber que os materiais para uso da HM em sala de
aula estão sendo produzidos por pesquisadores da área, mas acreditamos que
além de elaborar propostas é necessário proporcionar aos licenciandos em
Matemática a experiência com as atividades durante sua graduação para que
eles tenham conhecimento das formas de se inserir a HM nas aulas de
Matemática do Ensino Básico.
Diante do exposto, propomos como foco desta investigação a seguinte
questão de pesquisa: O que se mostra da História da Matemática no
desenvolvimento uma atividade pautada na razão áurea na formação inicial de
professores?
Para refletirmos sobre essa questão, nosso objetivo geral foi propor aos
acadêmicos a experiência com uma atividade pautada na HM.
Sendo assim, admitimos um trabalho pautado na pesquisa qualitativa e
interpretativa em Educação, pois nossa preocupação principal é atribuída ao

942
desenvolvimento das ações em sala de aula e não a um resultado final. Ao
oferecer aos acadêmicos a oportunidade de participar dessa atividade pudemos
destacar as potencialidades da HM que se evidenciaram.

HISTÓRIA DA MATEMÁTICA NO ENSINO DE MATEMÁTICA

Para iniciar os fundamentos desta pesquisa, destacamos alguns


documentos oficiais que tratam do currículo escolar: os PCN (BRASIL, 1997), as
DCE (PARANÁ, 2008) e a BNCC (BRASIL, 2017). No caso dos dois primeiros,
ainda trazem as disposições metodológicas para o ensino dos conteúdos
elencados em cada um deles.
Os PCN tratam a HM como uma tendência metodológica e um elemento
que oferece uma importante contribuição ao processo de ensino e aprendizagem
em Matemática, ao:

Revelar a Matemática como uma criação humana, ao mostrar


necessidades e preocupações de diferentes culturas, em
diferentes momentos históricos, ao estabelecer comparações
entre os conceitos e processos matemáticos do passado e do
presente, o professor tem a possibilidade de desenvolver
atitudes e valores mais favoráveis do aluno diante do
conhecimento matemático (BRASIL, 1997, p.34).

As DCE trazem a HM como um encaminhamento metodológico que pode


promover uma aprendizagem significativa, pois é importante:

Entender a História da Matemática no contexto da prática


escolar como componente necessário de um dos objetivos
primordiais da disciplina, qual seja, que os estudantes
compreendam a natureza da Matemática e sua relevância na
vida da humanidade (PARANÁ, 2008, p.66).

Em acordo com as DCE, a BNCC reforça que “é fundamental haver um


contexto significativo para os alunos, não necessariamente do cotidiano, mas
também de outras áreas do conhecimento e da própria História da Matemática”

943
(BRASIL, 2017, p.297). A BNCC não trata de encaminhamento metodológicos,
apenas cita que a HM pode ser usada nas aulas.
Em consenso com os pressupostos dos PCN e das DCE de que a HM
fornece uma visão mais humanizada dos conteúdos, ou seja, pode ajudar o
estudante a se aproximar dos conteúdos estudados ao fazê-lo perceber que
estes foram criados a partir das necessidades humanas, podemos destacar que:

A inserção de fatos do passado pode ser uma dinâmica bastante


interessante para introduzir um determinado conteúdo
matemático em sala de aula, tendo em vista que o aluno pode
reconhecer a Matemática como uma criação humana que surgiu
a partir da busca por soluções para resolver problemas do
cotidiano, conhecer as preocupações dos vários povos em
diferentes momentos e estabelecer comparações entre os
conceitos e processos matemáticos do passado e do presente
(CHAQUIAM, 2015, p.13).

No que concerne às potencialidades pedagógicas da HM, alguns autores


destacam diferentes argumentos. Miguel e Miorim (2008), por exemplo, os
apresentam em dois grupos:

Argumentos de natureza epistemológica:

Fonte de seleção e constituição de sequências adequadas de


tópicos de ensino; Fonte de seleção de métodos adequados de
ensino para diferentes tópicos da Matemática escolar; Fonte de
seleção de objetivos adequados para o ensino-aprendizagem da
Matemática escolar; Fonte de seleção de tópicos, problemas ou
episódios considerados motivadores da aprendizagem da
Matemática escolar; Fonte de busca de compreensão e de
significados para o ensino-aprendizagem da Matemática escolar
na atualidade; Fonte de identificação de obstáculos
epistemológicos de origem epistemológica para se enfrentar
certas dificuldades que se manifestam entre os estudantes no
processo de ensino-aprendizagem da Matemática escolar;
Fonte de identificação de mecanismos operatórios cognitivos de
passagem a serem levados em consideração nos processos de
investigação em Educação Matemática e no processo de
ensino-aprendizagem da Matemática escolar (MIGUEL;
MIORIM, 2008, p.61-62).

Argumentos de natureza ética:

944
Fonte que possibilita um trabalho pedagógico no sentido de uma
tomada de consciência da unidade da Matemática; Fonte para a
compreensão da natureza e das características distintivas e
específicas do pensamento matemático em relação a outros
tipos de conhecimento; Fonte que possibilita a desmistificação
da Matemática e desalienação do seu ensino; Fonte que
possibilita uma conscientização epistemológica; Fonte que
possibilita um trabalho pedagógico no sentido da conquista da
autonomia intelectual; Fonte que possibilita o desenvolvimento
de um pensamento crítico, de uma qualificação como cidadão e
de uma tomada de consciência e de avaliação de diferentes usos
sociais da Matemática; Fonte que possibilita uma apreciação da
beleza da Matemática e da estética inerente a seus métodos de
produção e validação do conhecimento; Fonte que possibilita a
promoção da inclusão social, via resgate da identidade cultural
de grupos sociais discriminados no (ou excluídos do) contexto
escolar (MIGUEL; MIORIM, 2008, p.62).

Para Fauvel (1999) apud Miguel et al. (2009) a importância do uso da HM


no ensino de Matemática se justifica pois:

1) A história aumenta a motivação para a aprendizagem da


Matemática; 2) Humaniza a matemática; 3) Mostra seu
desenvolvimento histórico por meio da ordenação e
apresentação de tópicos no currículo; 4) Os alunos
compreendem como os conceitos se desenvolveram; 5)
Contribui para as mudanças de percepções dos alunos com
relação à Matemática, e 6) Suscita oportunidades para a
investigação em Matemática (MIGUEL et al., 2009, p.9).

Percebemos uma convergência desses autores em associar a


importância da HM com a uma capacidade de motivar o estudante, pois ao
perceber a matemática como uma criação originada pelas necessidades
humanas supõe-se que ele possa se aproximar mais do conteúdo,
compreendendo a sua utilidade e assim se interessar mais em aprendê-lo.
No entanto, contestando o potencial motivador relacionado à HM, Miguel
e Miorim (2008) dizem que é um ponto de vista ingênuo atribuir à história “um
poder quase mágico de modificar a atitude do aluno em relação à Matemática”
(p.16). Saito (2015) corrobora com isso quando diz que “devemos tomar o
cuidado de não reduzir a história da matemática a dados biográficos ou uma
coleção de curiosidades e anedotas sobre matemáticos” (p.20).

945
Neste sentido, Baroni e Nobre (1999) e Vianna (2000) defendem que o
uso da HM nas aulas não seja apenas como um instrumento metodológico
motivador e informativo. Na concepção desses autores a utilização desta
metodologia pode ir muito além disso. A amplitude da HM extrapola o campo da
motivação e engloba elementos cujas naturezas estão voltadas a uma
interligação entre o conteúdo e sua atividade educacional (BARONI; NOBRE,
1999).
No que diz respeito a presença da HM na formação inicial de professores,
Miguel e Brito (1996) afirmam que “a problematização com base na história pode
contribuir para que o futuro professor reflita sobre diferentes concepções que se
tem de aspectos da atividade matemática e do seu ensino” (p.3), outra
contribuição seria:

Modificar as representações que estudantes e futuros


professores têm da matemática, contribuindo no sentido de
modificar a visão estática e unilateral que trazem consigo a
respeito da natureza da matemática: do seu conteúdo, dos seus
métodos, do seu significado, do seu alcance e dos seus limites
[...] (MIGUEL; BRITO, 1996, p.4).

Neste sentido, encontramos no livro de Saito (2015) uma discussão


atualizada a respeito do papel da HM no ensino, atendendo “a uma crescente
demanda na educação, que é a inclusão da História da Matemática nos cursos
de formação de professores” (p.5). Este autor trata do desenvolvimento da
Matemática em diferentes épocas e contextos, o que pode ajudar o professor a
compreender o processo de construção do conhecimento.

A história da matemática é muitas vezes considerada um


instrumento importante para o professor de matemática em sala
de aula que, utilizando-se de fontes adequadas e atualizadas,
pode promover entre seus alunos uma visão mais crítica em
relação à matemática e à construção do conhecimento
matemático (SAITO, 2015, p.20).

Com os apontamentos teóricos, pudemos perceber que os autores


citados consideram a HM como um recurso que pode ser o alicerce para o

946
encaminhamento de diversas atividades escolares bem como para aproximar os
conteúdos matemáticos da realidade dos estudantes.
É com esta argumentação que encontramos respaldo para desenvolver
um estudo com foco na HM como recurso para ensinar Matemática e, além disso,
envolver os licenciandos em Matemática nessas atividades.

PERCURSO METODOLÓGICO

Esta experiência foi desenvolvida com estudantes do curso de


Licenciatura em Matemática da Universidade Estadual do Centro-Oeste
(UNICENTRO) - Campus Cedeteg, que está instalada na cidade de Guarapuava
– PR. Estiveram envolvidos 10 participantes, sendo 2 acadêmicos do 2º ano, 7
do 3º ano e 1 do 4º ano do curso.
O estudo foi desenvolvido em 5 etapas: 1) Estudo bibliográfico sobre
Geometria e HM; 2) Busca por problemas ou episódios históricos que pudessem
ser usados para formular atividades didáticas para o ensino de Geometria; 3)
Elaboração da atividade e produção dos materiais que seriam usados na
experiência; 4) Execução da atividade e, 5) Organização e análise dos dados
coletados.
Para tanto, buscamos uma modalidade de pesquisa que nos permitisse
descrever e examinar os aspectos da HM que se evidenciaram nesta
experiência. Com esse intuito, esta investigação foi conduzida no âmbito da
pesquisa qualitativa, pois esta se preocupa com questões muito particulares,
com um nível de realidade que não pode ser quantificado e se aprofunda nos
significados das ações e relações humanas (MINAYO, 2001).
Para Bogdan e Biklen (1994), uma pesquisa qualitativa é aquela em que
o ambiente natural é a fonte direta dos dados, a investigação é descritiva, o
interesse dos investigadores está mais no processo do que nos resultados, a
análise dos dados tende a seguir um processo mais indutivo e os significados
produzidos merecem uma atenção especial do pesquisador.

947
Para realizar a análise buscamos observar em nossa experiência quais
das potencialidades pedagógicas da HM, descritas por Fauvel (1991) apud
Miguel et al. (2009) e Miguel e Miorim (2008), se evidenciaram nessa prática.

ATIVIDADE DESENVOLVIDA – RESULTADOS E DISCUSSÕES

Esta atividade foi baseada na história do número Φ=1,61803399⋯ (Fi)


que é uma constante matemática associada com a perfeição e a beleza.
Conhecido desde a Antiguidade, recebeu o título de “Número de Ouro”, “Razão
Áurea” e “Secção Áurea” no século XIX e, em um livro publicado na Itália no
século XVI, foi chamado de “Proporção Divina” (LIVIO, 2006).
Desenvolvemos esta atividade em um encontro de 4 horas e contamos
com a participação de 10 acadêmicos, que serão citados sob os códigos de P1
até P10. O objetivo foi mostrar aos participantes maneiras de trabalhar os temas
razão e proporção por meio de problemas geométricos relacionados à Razão
Áurea.
Inicialmente questionamos os participantes a respeito da civilização e
matemática gregas, já que as primeiras menções e discussões acerca da Razão
Áurea estão relacionadas com matemáticos gregos. Com isso os acadêmicos
citaram que os matemáticos gregos foram importantes para a Geometria e
lembraram de alguns matemáticos gregos importantes como Pitágoras, Tales e
Euclides.
Também perguntamos aos participantes se eles conheciam a Razão
Áurea e eles mencionaram: “É o número de ouro”, “Dizem que usaram nas
construções na Grécia” e “Na Mona Lisa também”.
Nesses comentários percebemos que os participantes sabiam do que se
tratava, mas ninguém mencionou o valor do número de ouro ou uma definição
da Razão Áurea, então pedimos para que, em grupos, eles resolvessem alguns
problemas que resultariam no número de ouro.

948
Após encontrarem o resultado e perceberem que era sempre o mesmo o
número eles reconheceram o valor como o número de ouro e um grupo também
lembrou da representação utilizada, a letra Φ (pronuncia-se “fi”) do alfabeto
grego.
Partimos então para algumas situações em que a Razão Áurea é
encontrada na HM. Propomos um problema sobre o pentagrama, o símbolo dos
Pitagóricos.

QUADRO 2: Problema sobre a razão áurea no pentagrama


A Irmandade Pitagórica usava um pentagrama como símbolo de sua
sociedade secreta. Um pentagrama é a estrela formada quando
desenhamos todas as diagonais de um pentágono regular. Esta figura
possui muitas propriedades, uma delas é ela gera outro pentágono no
qual podemos desenhar um novo pentagrama. Também é possível
encontrar a Razão Áurea nesta construção. Desenhe um pentágono e
suas diagonais e determine onde está a Razão Áurea.
Fonte: a autora, 2020.

FIGURA 2: REPRODUÇÃO DO PENTAGRAMA E RESOLUÇÃO DE UM DOS


GRUPOS

Fonte: a autora, 2020.


Na sequência apresentamos a definição de média e extrema razão,
propomos alguns problemas relacionados à esta definição e fizemos uma
construção geométrica, utilizando o software Geogebra, para dividir um
segmento dado na proporção áurea, baseada no método usado por Euclides em
sua obra “Os Elementos”. Também trabalhamos com a definição de retângulo e
fizemos uma construção no Geogebra.

949
Nessas duas construções os grupos acompanharam e reproduziram os
passos no Geogebra, sendo que cada grupo iniciava com uma medida a escolha
deles e ao finalizar as construções eles usaram os recursos do software para
medir os segmentos necessários e calcular as razões e puderam concluir que,
independentemente das medidas iniciais, a razão era sempre próxima do
número de ouro.
Em seguida solicitamos que os participantes pesquisassem onde
encontramos a Razão Áurea e eles encontraram várias respostas: “No Partenon
de Atenas”, “Na Mona Lisa”, “No corpo humano”, “Nas pirâmides”, entre outros.
Isso gerou alguns questionamentos dos acadêmicos: “Nossa! Parece que tem
em tudo que é coisa”, “Mas tá estranho, será que é verdade?”, “Se olhar nas
imagens, tá meio esquisito”, “Encaixaram o retângulo de um jeito aleatório. Tô
desconfiando, acho que não tem em todos esses lugares não!”.
Nestas falas se evidencia uma visão crítica dos participantes em
questionar se as informações encontradas são verdadeiras. Então, com os
apontamentos que partiram dos grupos, observamos as imagens do Partenon e
da Mona Lisa para verificar se era possível justificar a presença da Razão Áurea.

FIGURA 3: PARTENON DE ATENAS

Fonte: Mega curioso. Disponível em:


https://www.megacurioso.com.br/matematica-e-estatistica/74174-voce-sabe-o-
que-e-a-proporcao-aurea.htm.
P6: Tem um pedacinho ali em cima (à esquerda da imagem) que está fora do
retângulo.
P7: Tá pegando um pedaço da escada na parte de baixo.
P8: Tá forçado!

950
FIGURA 4: MONA LISA DE LEONARDO DA VINCI

Fonte: Pense e Exista. Disponível em:


https://danielcapello.wordpress.com/tag/mona-lisa/.

P6: Os braços dela tão fora do retângulo.


P7: Não deveria ser na tela inteira?
P8: Assim, colocando o retângulo no lugar que for conveniente, sempre tem a
proporção em tudo daí.
P2: Aqui diz que a tela tem 77 cm de altura por 53 cm de largura, se dividir dá
1,45. Se o da Vinci realmente queria usar a proporção acho que ele já ia começar
no formato da tela.

Após os participantes perceberem que os retângulos áureos nas imagens


estavam colocados de uma forma improcedente, reforçamos que, apesar de
serem imagens e informações muito comuns de serem encontradas, não há de
fato nenhuma evidência comprovada de que a Razão Áurea foi utilizada no
Partenon e na Mona Lisa.
Por fim, também fizemos a verificação da Razão Áurea no corpo humano.
Para isso utilizamos a proporção entre as medidas de algumas partes do corpo:
R1) A altura do corpo (M1) e a medida do umbigo até o chão (M2); R2) A medida
do ombro à ponta do dedo (M3) e a medida do cotovelo à ponta do dedo (M4) e
R3) A medida do quadril ao chão (M5) e a medida do joelho até o chão (M6).

951
Escolhemos as partes do corpo e as razões a serem calculadas de acordo com
a pesquisa feita pelos grupos.

QUADRO 1: Medições, em metros, e razões calculadas pelos participantes


Participant
M1 M2 M3 M4 M5 M6 R1 R2 R3
e
1,6 0,9 0,6 0,4 0,8 0,5 1,693
P1 1,5 1,78
6 8 9 6 9 0 8
1,7 1,1 0,7 0,4 1,0 0,5 1,590 1,767 1,785
P2
5 0 6 3 0 6 9 4 7
1,5 0,9 0,7 0,4 0,9 0,5 1,642 1,730
P5 1,75
6 5 0 0 0 2 1 7
1,7 1,0 0,7 0,4 0,9 0,5
P7 1,73 1,73 1,80
3 0 3 2 4 0
1,6 1,0 0,7 0,4 0,9 0,5 1,590 1,767
P8 1,82
6 4 0 3 3 2 9 4
Fonte: a autora, 2020.

Enquanto faziam as medições e calculavam as razões os participantes


conversavam e faziam algumas considerações:

P2: Algumas até ficam próximas, mas varia muito os valores.


P6: Depende do lugar que a gente começa a medir, eu posso medir acima do
umbigo ou abaixo ou bem no meio, não diz qual é o lugar certo.
P3: É, eu posso medir de um jeito e você de outro.
P6: Ou seja, eu posso medir do jeito que eu quiser até fazer dar certo o número
que eu quero.
P2: Eu acho que é isso que acontece, ficam forçando as medidas pra dar o
número de ouro.

Mais uma vez pudemos observar que os participantes questionaram a


falta de critério para fazer as medições e foram percebendo que conforme
alteram o lugar em que se começa a medida os valores podem ser manipulados
para chegar em um resultado desejado.

952
Para concluir falamos do percurso histórico da Razão Áurea, desde as
primeiras aparições até as situações que foram discutidas sobre a razão,
supostamente, aparecer vários objetos e lugares. Ressaltamos que utilizamos o
termo Razão Áurea durante toda esta prática, mas na época dos Pitagóricos e
de Euclides essa nomenclatura não existia. Também perguntamos aos
participantes a opinião deles sobre o tema trabalhado e se eles gostariam de dar
alguma sugestão de melhoria ou modificação para esta atividade:

P6: Eu acho que pros alunos dava pra começar explicando os conceitos de razão
e proporção com alguns exemplos e daí usar a Razão Áurea como aplicação. A
gente já conhecia o conteúdo mas as crianças não sabem, então precisa
explicar.
P8: Eu acho que nessa atividade deu pra aprender bastante coisa, eu aprendi
pelo menos, como dá pra usar a história do conteúdo e fazer isso virar problemas
pra levar pra sala de aula. E o próprio conteúdo mesmo da Razão Áurea, que eu
não lembrava.
P2: É interessante ver essas ideias de como podemos fazer nas nossas aulas e
quando a gente participa assim fazendo as tarefas já dá pra aprende o conteúdo
e saber quais problemas podemos usar, sem precisar elaborar do zero, que isso
é mais difícil pro professor, por isso muitos não fazem, não tem tempo de
pesquisar e preparar um material desses.
P7: Eu gostei, é fácil de aplicar, dá pra fazer dentro da sala mesmo e não precisa
de nenhum material especial.

Aqui pudemos perceber que os participantes pensam em reproduzir as


atividades em suas práticas futuras quando falam em levar os problemas para
sala de aula ou dão sugestões para melhorar a atividade pensando nos
estudantes do Ensino Básico, o que demonstra que HM se revelou como uma
fonte adequada de seleção de problemas e tópicos de estudo.
Nessas manifestações também é possível observar que os participantes
conseguiram compreender a HM como uma metodologia que pode ser utilizada

953
em sala de aula, cumprindo, assim, nosso objetivo de mostrar aos participantes
maneiras de implementar a HM nas aulas de Matemática.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho buscamos identificar quais potencialidades da HM se


evidenciaram no desenvolvimento de uma atividade pautada na Razão Áurea na
formação inicial de professores. Para tanto, oportunizamos aos acadêmicos do
curso de Licenciatura em Matemática a experiência com uma atividade para o
ensino de razão e proporção, baseada na história da Razão Áurea.
Entendemos que nosso objetivo foi cumprido, pois com a implementação
da atividade pudemos demonstrar aos acadêmicos que é possível estudar
tópicos presentes no currículo da Educação Básica utilizando a HM, fazendo a
ponte da disciplina teórica de HM com a prática de sala de aula.
Além disso, procuramos inserir a HM em vários momentos da atividade,
com definições, métodos e construções encontradas no histórico do tema, para
incentivar os acadêmicos a fugirem da “visão ingênua” da HM citada por alguns
autores. Isso permitiu mostrar aos participantes que a HM no ensino deve ir além
de notas históricas ou biográficas.
Trabalhar o tema por meio da HM proporcionou aos estudantes em
formação inicial reflexões sobre a construção do conhecimento matemático,
evidenciando que a Matemática está em constante desenvolvimento e que ela
foi, e é, criada pelas necessidades humanas. Também pudemos observar a
manifestação de um pensamento crítico nos participantes quando questionam
algumas informações pesquisadas e procuram verificar e justificar porque não
são coerentes.
Esta experiência também nos mostrou a HM como uma fonte adequada
de seleção de tópicos e problemas para se ensinar Matemática, pois permitiu
organizar uma sequência de estudo para o conteúdo de razão e proporção

954
utilizando, não apenas o contexto histórico do tema, mas também definições e
construções históricas relacionadas à Razão Áurea.
Acreditamos que oportunizar experiências como esta, aos licenciandos
em Matemática, contribui com a formação inicial e lhes mostra que as
metodologias de ensino estudadas podem, de fato, ser levadas para as aulas,
enriquecendo assim suas práticas futuras e, consequentemente, favorecendo o
processo de ensino e aprendizagem da Matemática no Ensino Básico.

REFERÊNCIAS

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introdução à teoria e aos métodos. Porto: Porto Editora, p.134-301, 1994.

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http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro03.pdf. Acesso em: 09.out.2019.

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MARCO SHINOBU MATSUMURA. Rio de Janeiro: Record, 2006.

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Campinas: Papirus, n. 40, 1996. p.47-61.

MIGUEL, A.; MIORIM, M. A. História na Educação Matemática: propostas e


desafios. 1 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

955
MIGUEL, A. et al. História da Matemática em Atividades Didáticas. 2 ed. São
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MINAYO, M. C. de S. (org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 18.


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PARANÁ. Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná: Matemática. Disponível


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http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/diretrizes/dce_mat.pdf.
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Encontro Paranaense de Educação Matemática. Londrina: Editora da UEL,
2000. p. 15-19.

956
RAZÃO E PROPORÇÃO:
Possibilidades de utilizar a História da Matemática no ensino
remoto

Guilherme Oliveira Santos299


Lucieli Trivizoli300

RESUMO
O objetivo deste trabalho foi relatar e discutir as possibilidades de aplicação de uma
proposta didática utilizando a História no Ensino da Matemática, bem como suas
possíveis contribuições e obstáculos. O relato desta experiência envolve uma proposta
didática que foi desenvolvida com um 7° ano do Ensino Fundamental, no formato do
Ensino Remoto Emergencial (ERE), envolvendo os conteúdos de razão e proporção, já
estudados pela turma em questão. Composta por seis atividades e dois formulários
online, a intenção com a proposta era relacionar os conteúdos estudados anteriormente
em aula, com relações de razão e proporção conhecidos historicamente, mostrando,
dessa forma, certa contextualização dos conceitos. As interações dos alunos com o
professor, a participação ativa nas aulas, a entrega das fotos referentes às atividades
realizadas em aula e as respostas aos formulários indicam que os alunos se sentiram
motivados a participar, além de não serem apenas “receptores” de conhecimentos, mas
sim agentes no processo de suas aprendizagens. Porém, o trabalho em grupo e o
acompanhamento em tempo real do que os alunos estavam construindo e registrando,
não foi satisfatório, se mostrando um obstáculo nesse formato de ERE.

Palavras-chave: Educação Matemática; História no Ensino da Matemática;


Ensino Fundamental; Ensino Remoto Emergencial (ERE); Razão e Proporção.

INTRODUÇÃO

299
UEM; gui14gos2014@gmail.com
300
UEM; lmtrivizoli@uem.br

957
Em 2020, fomos impactados de diversas formas com a pandemia do
novo coronavírus (Sars-Cov-2), decretada pela Organização Mundial da Saúde
(OMS) em 11 de março de 2020 segundo a UNA-SUS (2020), causador da
Covid-19. Segundo o portal do Ministério da Saúde (2020), o primeiro caso
confirmado no Brasil foi em 26 de fevereiro, no estado de São Paulo. No estado
do Paraná, onde aplicamos nossa proposta, os 6 primeiros casos foram
confirmados todos no dia 12 de março de 2020. Em 16 de março de 2020, o
governo do estado decretou (Decreto n.º 4.230) a suspensão das aulas a nível
de Educação Básica e Ensino Superior.
No dia 17 de março de 2020, o Ministério da Educação (MEC) publicou
as Portarias MEC n.º 343 (alterada pelas portarias n.º 345, de 19 de março de
2020, e n.º 356, de 20 de março de 2020) e no dia 03 de abril de 2020 a
Secretaria de Estado da Educação e do Esporte (Seed) publicou a Resolução
n.º 1.016. Ambos os documentos possuíam definições e direcionamentos para
aulas em meio à pandemia.
Assim, foi implantado o Ensino Remoto Emergencial (ERE) no estado do
Paraná em que as aulas, até então presenciais, passaram a ser não presenciais,
sendo caracterizadas da seguinte forma pela Resolução Seed n.º 1.016 (2020):

Art. 3.º As atividades escolares não presenciais são aquelas


utilizadas pelo professor da turma ou pelo componente curricular
destinadas à interação com o estudante por meio de orientações
impressas, estudos dirigidos, quizzes, plataformas virtuais,
correio eletrônico, redes sociais, chats, fóruns, diário eletrônico,
videoaulas, audiochamadas, videochamadas e outras
assemelhadas.
[...] Art. 6° [...] II – metodologias desenvolvidas por meio de
recursos tecnológicos, inclusive softwares e hardwares,
adotados pelo professor ou pela instituição de ensino e utilizadas
pelos estudantes com material ou equipamento particular,
cedido pela instituição de ensino, ou mesmo público; [...] (SEED,
2020).

Professores, alunos, pais e toda comunidade escolar foram então


surpreendidos por essa nova modalidade de ensino. Diante disso, surgem
algumas indagações: o quanto essa mudança afetou e afeta o ensino nas

958
escolas? Será que as práticas do professor em sala de aula presencial podem
ser utilizadas da mesma forma no ERE? Será que as tendências pedagógicas
no ensino da Matemática podem ser utilizadas também nas plataformas digitais,
sem o contato presencial entre alunos e professor?
Embora não nos propormos a responder esses questionamentos iniciais,
essas preocupações motivaram a produção deste trabalho, cujo objetivo é relatar
e discutir a possibilidade de implementação de uma proposta utilizando
elementos da História da Matemática, bem como suas possíveis contribuições e
obstáculos neste formato de ensino.
Para construir o relato apresentado neste trabalho, compreendemos que
a pesquisa ação caracteriza nossas discussões, uma vez que buscamos tratar
sobre uma implementação em que os pesquisadores estão inseridos na
pesquisa e buscam contribuir com o processo de ensino e aprendizagem
desenvolvido no ERE. Na pesquisa ação “[...] o pesquisador se insere no grupo
com a intencionalidade de exercer uma ação política de transformação do grupo,
com a pesquisa sendo a ferramenta para isto.” (ROSA, 2013, p. 70).
Nas próximas seções apresentaremos uma breve caracterização do
ERE, bem como alguns aspectos da História da Matemática no Ensino da
Matemática. Em seguida, traremos a proposta em si, como também uma breve
descrição de sua aplicação.

O ensino em meio à pandemia

Behar (2020) aborda que o ERE veio como uma resposta rápida e prática
para a questão das aulas em meio à quarentena e ao isolamento social,
decretados pela Portaria n.º 356 do Ministério da Saúde em 11 de março de 2020
(a nível nacional) e pelo Decreto n.º 4.230 do Governo do Paraná de 16 de março
de 2020 (a nível estadual). Por esse motivo, os conceitos de Educação a
Distância (EAD) e de ERE acabaram se confundindo.

959
Segundo ela, no ERE “a presença física do professor e do aluno no
espaço da sala de aula presencial é ‘substituída’ por uma presença digital numa
aula online [...]” (BEHAR, 2020, s/p). Já o EAD é uma modalidade em que o uso
de meios e tecnologias de informação e comunicação servem como mediação
entre professores, tutores e alunos, nos processos de ensino e aprendizagem.
Saraiva et al. (2020) afirmam ainda que enquanto as atividades
desenvolvidas na EAD, em sua maior parte, são avaliações, no ERE as
atividades, de modo geral, são de caráter não avaliativas e funcionam como
envio de evidência, juntamente com as webconferências, de cumprimento de
carga horária e de abordagem dos conteúdos por parte da escola e dos
professores.
Ainda segundo os autores, a pandemia e o ERE trouxeram mudanças
significativas para o professor. Além do aumento de carga horária dedicada a
atendimento aos alunos, também coube ao professor preparar, enviar, conferir,
corrigir e cobrar atividades realizadas pelos alunos. Nesse sentido, temos
professores sobrecarregados com deveres e atribuições.
Em relação ao ensino e à aprendizagem da Matemática, para Ramos
(2017) esse processo deve ser elaborado de forma que ocorra junto aos alunos
e não para os alunos, isto é, o professor na posição de provocador de diálogos
deve questionar o aluno com o objetivo de fazê-lo pensar e expor seu
pensamento.

A História no Ensino da Matemática

Miguel e Miorim (2004) abordam que diversos autores defendem a


importância da história para o processo de ensino e aprendizagem, uma vez que
esses autores entendem que somente a exposição de conteúdos não leva a
reflexão das características históricas da produção do mesmo. Nesse sentido,
teria a história o papel de desmistificar “[...] a falsa impressão de que a

960
Matemática é harmoniosa, de que está pronta e acabada, etc.” (MIGUEL;
MIORIM, 2004, p. 49).
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) destaca que além de
utilizarmos recursos didáticos e materiais como jogos, calculadoras, planilhas e
softwares, incluir a História da Matemática como recurso possibilita “[...]
despertar interesse e representar um contexto significativo para aprender e
ensinar Matemática” (BRASIL, 2018, p. 298). O documento também aborda que

[...] para a aprendizagem de certo conceito ou procedimento, é


fundamental haver um contexto significativo para os alunos, não
necessariamente do cotidiano, mas também de outras áreas do
conhecimento e da própria história da Matemática. (BRASIL,
2018, p. 299).

Quanto à História da Matemática, Miguel e Miorim (2004) destacam três


campos de investigação: História da Matemática, História da Educação
Matemática e História na Educação Matemática, sendo esse último o campo em
que se encontra esse trabalho.
Os autores caracterizam a História na Educação Matemática “[...] como
um campo de pesquisa que toma como objeto de investigação: formas de
participação da história da matemática e/ou da educação matemática na
educação matemática, entendida como campo de ação pedagógica ou como
campo de investigação” (MIGUEL; MIORIM, 2002, p. 187-188). Podemos, então,
destacar algumas potencialidades quanto ao uso da História no Ensino da
Matemática:

▪ Elementos motivadores para se produzir o conhecimento matemático;


▪ Objetivos que estiveram na base da produção do conhecimento matemático;
▪ Métodos adequados de se produzir o conhecimento matemático;
▪ Problemas práticos, curioso e/ou recreativos com os quais se envolveram os
matemáticos;
▪ Elementos ou subsídios capazes de promover, entre os estudantes, a
desmistificação da matemática e o combate à alienação de seu ensino;
▪ Elementos ou subsídios capazes de promover a construção, pelos estudantes,
de atitudes e valores julgados adequados. (MIGUEL; MIORIM, 2002, p. 193)

961
Essas potencialidades darão um direcionamento para os nossos
olhares, ao discutir nosso relato a seguir.

Proposta Didática e Implementação

A proposta didática foi aplicada em uma turma de 7° ano do Ensino


Fundamental de uma escola particular do interior do estado do Paraná, composta
por 28 alunos e ocorreu em seis aulas de 30 minutos cada301. As duas primeiras
aulas envolveram as Atividades 1 e 2, a terceira aula envolveu a Atividade 3, a
quarta e a quinta aula envolveram as Atividades 4 e 5, e a sexta aula envolveu
a finalização da Atividade 5. O Formulário Inicial e a Atividade 0 foram feitos
previamente, enquanto o Formulário Final foi feito após o encerramento da
aplicação da proposta.
Essas aulas tinham por objetivo trabalhar os conceitos de razão e
proporção estudados anteriormente pela turma, tendo como base a produção
Didático-Pedagógica de Gabardo (2016) intitulada “A Influência da Geometria na
Construção das Obras de Arte: Aprendendo com Perspectiva”, que relaciona
História da Matemática, Geometria e Arte.
Organizamos a nossa proposta da seguinte forma:

QUADRO 1: Proposta
Atividade Objetivo
Formulário Inicial: Ensino Conhecer e identificar a visão dos alunos
Remoto Emergencial (ERE) sobre o ERE
Atividade 0: Pesquisa sobre o Estimular a pesquisa por informações e a
Número de Ouro organização dela em diferentes formas
Discutir sobre as informações obtidas na
Atividade 1: O Número de Ouro
Atividade 0
Observar a presença do Número de Ouro
Atividade 2: O Pentagrama
no Pentagrama

301 Esse é o formato adotado pela escola para as aulas síncronas.

962
Observar a presença do Número de Ouro
Atividade 3: O Retângulo Áureo
no Retângulo Áureo
Atividade 4: Retângulos e Retomar o conceito de retângulos com
Triângulos com lados lados proporcionais e apresentar
proporcionais triângulos com lados proporcionais
Trabalhar um problema envolvendo razão
Atividade 5: Problema da
e proporção e triângulos com lados
Pirâmide
proporcionais.
Conhecer a opinião dos alunos a respeito
Formulário Final: Atividade Final
da proposta implementada.
Fonte: Os autores (2020)

O Formulário Inicial, disponibilizado online pela plataforma Google


Formulários, foi composto por 6 questões: 1) o que os alunos pensavam em
relação ao ERE; 2) se estavam com mais dificuldade que nas aulas presenciais;
3) atividades e dinâmicas de aula diferente ajudariam na compreensão dos
302
conteúdos; 4) se as câmeras e microfones eram utilizadas nas aulas ao vivo e
5) o porquê (se sim e se não); e 6) o que poderia ser feito para tornar as aulas
mais interessantes.
Esse formulário inicial tinha por objetivo identificar o posicionamento dos
alunos e se estes estariam abertos a participar de uma atividade diferenciada,
assim os alunos poderiam escolher identificar-se ou não, bem como o
preenchimento do formulário era facultativo. Embora dos 20 alunos que
responderam o formulário, 65% tenham considerado o ensino remoto que
estavam vivenciando como Excelente ou Bom, 80% afirmaram estar com mais
dificuldades que no ensino presencial.
Com relação ao uso de dinâmicas diferenciadas, 90% respondeu que
poderiam ajudar na compreensão dos conteúdos. Referente à questão 6 do
questionário, tivemos respostas como:
▪ “Fazer atividades mais dinâmicas e mais participativas com os alunos” –
Resposta 4

302 Webconferências realizadas pela plataforma do Google Meet.

963
▪ “Para as aulas ficarem mais interessantes, poderiam ser usados outros
instrumentos além da apostila... como vídeos, por exemplo; para as aulas
ficarem mais chamativas... [...]” – Resposta 7
▪ “Fazer dinâmicas de acordo com o conteúdo, aulas diferenciadas, vídeos
explicativos menos leituras e mais fala ou até mesmo a leitura como tarefa assim
da aula só discutimos o assunto.” – Resposta 14
▪ “Ser mais dinâmica” – Resposta 17
Encontramos, desta forma, um ambiente propício para a aplicação da
proposta. A primeira atividade, Atividade 0, visava levar os alunos a pesquisar
informações sobre o Número de Ouro e a utilizarem diferentes representações
para registrar essa pesquisa, de forma que fosse mais fácil para eles estudarem,
revisarem e explicarem o que encontraram. Poderiam ser produzidos slides,
vídeos, histórias em quadrinhos, mapas conceituais, texto, entre outros registros.
Essa atividade foi dada como tarefa na aula anterior a que iniciaríamos a
implementação da proposta.
Com relação à Atividade 1, esta ocorreu durante as aulas e envolveu a
discussão da pesquisa feita pelos alunos. Eles apresentaram as informações que
haviam encontrado, enquanto os colegas que obtiveram a mesma informação
confirmavam e os que obtiveram respostas diferentes confrontavam com a sua
pesquisa. Para completar a discussão, apresentamos alguns dados que os
alunos não haviam comentado, como por exemplo a presença do Número de
Ouro no Egito, na Grécia e na Atualidade, o fato dele ser um número irracional,
além de reforçar outras informações encontradas por eles, como as
representações 𝟏, 𝟔𝟏𝟖𝟎𝟑𝟑𝟗𝟖 … e 𝟏+√𝟓.
𝟐

Também foi o momento de discutir sobre a veracidade das informações


encontradas pelos alunos, como por exemplo a presença do Número de Ouro no
Partenon e na Mona Lisa, segundo Barboza et al. (2019). Essa discussão
colaborou com a desmistificação de algumas informações e possibilitou aos
alunos refletir que nem todas as informações são confiáveis, de forma que
devemos revisar e confirmar as informações obtidas.

964
Partindo dessa discussão, passamos à Atividade 2, que visava construir
com régua e compasso o Pentagrama. Os alunos foram questionados se
conheciam o Pentagrama e se imaginavam como ele poderia ser construído. Foi
abordado que “os pitagóricos usavam o pentagrama como seu símbolo secreto”
(BARBOZA et al., 2019, p. 14). De maneira breve, explicamos quem foram os
pitagóricos, contextualizando as informações, já como uma justificativa para o
uso da régua e compasso na construção do Pentagrama.
Após a construção do Pentagrama, os alunos foram questionados se o
Número de Ouro estava presente ali ou não. Inicialmente os alunos tentaram
medir os seguimentos e não encontraram um que tivesse medida igual ou
próxima ao Número de Ouro. Com a nossa sugestão de tentarem estabelecer
relações entre alguns segmentos, foi possível concluir que a razão entre uma
das diagonais do pentágono com um dos lados do pentágono resulta na
chamada Razão Áurea, cujo valor numérico é associado ao Número de Ouro.
Na Atividade 3, que aconteceu na terceira aula, utilizamos régua e
compasso para a construção do Retângulo Áureo. Esse retângulo havia sido
discutido na Atividade 1, porém nessa atividade, nos atentamos a observar as
características Matemáticas presente nele. A construção ocorreu inicialmente
em um momento síncrono e foi finalizada como tarefa para a aula seguinte. Para
verificar a presença do Número de Ouro, tanto na Atividade 2 quanto na
Atividade 3, o software GeoGebra foi utilizado como uma verificação, após os
alunos realizarem tentativas no papel.
Após a verificação do Número de Ouro no Retângulo Áureo, um outro
questionamento foi levantado: se a razão entre os lados dos retângulos é igual
em todos. Nesse momento os alunos relembraram de outro conteúdo estudado
previamente: retângulos com lados proporcionais. Fizemos uma breve revisão e
finalizamos a aula questionando: será que somente para o retângulo temos essa
relação de lados proporcionais quando a razão é a mesma?
Iniciamos a Atividade 4 na quarta aula, retomando o questionamento da
aula anterior. Prontamente os alunos responderam que essa relação não se
limitava ao retângulo. Dessa forma, construímos três triângulos de lados

965
proporcionais, a partir da partição de um retângulo. Destaca-se que como o
conteúdo de Semelhança de Triângulos ainda havia sido trabalhado, instruímos
quais lados dos triângulos deveriam ser comparados, de modo a verificar se era
a mesma razão para todos os lados.
Questionamos os alunos se para determinar a razão poderíamos tomar
quaisquer lados dos triângulos. Alguns responderam que não, mas também não
souberam dizer qual seria o critério. Sugerimos então, para que eles pudessem
comparar os lados corretamente, que colocassem os triângulos na “mesma
posição”, isto é, de forma que os ângulos correspondentes ficassem na “mesma
posição” de visualização.
A Atividade 5 consistia em um problema (baseado no problema histórico
que envolve Tales e a medição de pirâmides), no qual Tales visitou o Egito, e
desejava medir a altura de uma pirâmide303. Após questionar um guia local e
receber algumas orientações sobre como fazer a medição, Tales fincou uma
estaca no chão de forma perpendicular e com as informações do tamanho da
sombra da pirâmide, da altura da estaca e do tamanho de sua sombra ele
determina a altura da pirâmide. Foi questionado aos alunos de que forma a
estaca auxiliaria no cálculo da altura da pirâmide, mas não souberam responder.
Dessa forma, os discentes foram organizados em cinco grupos, quatro
grupos compostos de quatro alunos e um grupo composto de três alunos, com o
objetivo de determinar a altura da pirâmide dadas as mesmas informações que
Tales tinha, porém, cada grupo possuía valores numéricos diferentes para o
cálculo da altura de suas pirâmides. Depois, ao menos um representante do
grupo deveria dizer a qual valor chegou para a altura da pirâmide e qual foi o
raciocínio utilizado, iniciando as discussões nessa aula e finalizando na aula
seguinte.
A princípio a ideia era organizar os grupos em diferentes reuniões na
plataforma Google Meet, porém a rede de internet não suportou essa quantidade
de guias abertas, nem o computador. Também não conseguimos acompanhar

303Apresentamos o que é altura de uma pirâmide, uma vez que não haviam estudado esse
conteúdo.

966
os alunos nas reuniões, uma vez que com o sistema travando não houve uma
boa comunicação com os alunos. Acordamos então que os alunos poderiam
conversar por mensagens via WhatsApp ou pelo chat disponível na própria
reunião no Google Meet.
Após a apresentação de todos os grupos no início da aula seguinte,
questionamos o que os alunos achavam das resoluções dos colegas, se havia
alguma que eles consideravam “mais correta” e o porquê. Alguns alunos
afirmaram que a resolução apresentada pelo Grupo 3 estaria correta, pois essa
resolução utilizou, além das informações dadas, os conhecimentos estudados
anteriormente nas aulas e durante a aplicação da proposta.
Indagamos os alunos se poderíamos utilizar da visão lateral para
considerar que a altura da estaca e sua sombra formam um triângulo, assim
como a altura da pirâmide e sua sombra formam um triângulo parecido com o
primeiro, porém maior. Ao visualizarem o problema dessa forma, a maioria dos
alunos percebeu que poderíamos utilizar a relação estudada na aula anterior da
proporção dos lados do triângulo.
Dessa forma, novamente os grupos calcularam a altura da pirâmide, de
acordo com os dados de seu grupo, discutimos em conjunto se as resoluções
estavam coerentes e se os valores faziam sentido e entramos em acordo que
sim. Vale ressaltar que apesar de todos utilizarem a mesma ideia de proporção
entre os lados dos triângulos, os grupos utilizaram diferentes estratégias para
determinar o valor desconhecido (a altura da pirâmide).
Levantamos então um questionamento que não foi levantado pelos
alunos: porque podemos aplicar a ideia de lados proporcionais para esses dois
triângulos? Essa “regra” vale para quaisquer dois triângulos que eu tomar? Uma
aluna respondeu que foi possível utilizar porque os triângulos em questão tinham
o mesmo “formato”, alterando-se apenas o tamanho dos lados.
Perguntamos para os alunos o que define o “formato” de um triângulo e,
após algumas discussões, chegamos à conclusão que os ângulos é que
determina esse formato. Assim, retornamos aos triângulos construídos na
Atividade 4 para observar, verificar e medir seus ângulos, uma vez que já

967
havíamos concluído que seus lados eram proporcionais. Pelas explorações,
pudemos concluir que em triângulos com lados proporcionais os ângulos
correspondentes são iguais. Para finalizar, apresentamos de forma inicial os
conceitos de triângulos semelhantes, triângulos congruentes e do Teorema de
Tales304.
Para finalizar a implementação, os alunos responderam um segundo
formulário, de forma a expressarem sua opinião a respeito da proposta aplicada,
composto por 6 questões: 1) se participaram de toda as aulas; 2) se as atividades
foram chamativas e motivadoras; 3) se consideravam que houve aprendizagem
de novos conhecimentos; 4) se as atividades desenvolvidas ajudaram na
compreensão do conteúdo de razão e proporção; 5) se eles gostariam de mais
aula dessa forma; e 6) aberto para comentários individuais.
Assim como no primeiro formulário, os alunos não precisavam se
identificar e o preenchimento do formulário era facultativo. Ao todo foram 20
respostas, não necessariamente dadas pelas mesmas pessoas do primeiro
formulário. Das respostas, 55% responderam que algumas atividades foram
motivadoras e outras não, enquanto apenas 5% responderam que as atividades
não foram motivadoras.
Quanto aos novos conhecimentos, parte dos alunos indicou conteúdos
como o Número de Ouro, triângulos com lados proporcionais, retângulo áureo,
cálculo da altura da pirâmide e a construção do Pentagrama. Com relação a
compreensão de razão e proporção, a maioria das respostas foi positiva:
▪ “Sim, pois ampliou meu conhecimento sobre esse conteúdo” – Resposta
1
▪ “Sim pois colocou as coisas aprendidas em pratica” – Resposta 6
▪ “Sim pois envolve esse tema” – Resposta 11
▪ “Eu achei que ficou mais chamativo sabe” – Resposta 18
Sobre a aplicação de outras propostas semelhantes a essa, 95% dos
alunos que responderam o formulário afirmaram que gostariam de mais

304 Essesconteúdos foram trabalhados de modo inicial, pois são relativos a séries posteriores e
a intenção é apenas mostrar uma relação entre os conteúdos.

968
atividades assim. A questão aberta para comentários dos alunos também
reforçou que a proposta atingiu, motivou e foi bem recebida pelos alunos.
Evidenciamos, também, que ao longo da proposta, os alunos
participaram ativamente, interagindo com os colegas e com o professor,
respondendo às perguntas e aos questionamentos propostos e enviando as fotos
das atividades ao final das aulas. Por essa participação efetiva e pelas respostas
dadas dos formulários, podemos entender que, para os alunos, de maneira geral,
a proposta representou uma mudança na dinâmica das aulas que os cativou.
Nesse sentido, Miguel e Miorim (2004) abordam que a História pode ser
encarada como “[...] um meio para se promover entre os estudantes a construção
de atitudes e valores de naturezas diversas” (p. 67). Além disso, os autores
também trazem que podemos buscar apoio na História da Matemática para que
os alunos possam perceber a Matemática como criação humana, as motivações
das pessoas em fazer matemática e “[...] a curiosidade estritamente intelectual
que pode levar à generalização e extensão de ideias e teorias” (MIGUEL;
MIORIM, 2004, p. 50).
Dessa forma, podemos concluir que o uso da História no Ensino da
Matemática em meio ao ERE contribuiu para o processo de ensino e
aprendizagem, uma vez que permitiu uma interação entre alunos e professor,
levando os alunos a relacionarem os conteúdos estudados com situações e
contextos históricos, evidenciando aspectos da matemática como uma ciência
que é resultado da produção humana.
Entretanto, é importante ressaltar alguns obstáculos encontrados na
aplicação dessa proposta que foram relativos ao ERE. O primeiro deles é a
dificuldade em acompanhar em tempo real o que os alunos estão produzindo.
Em sala de aula podemos passar pelas carteiras, solicitar idas ao quadro para
representação, porém pelas webconferências, muitos alunos não possuem ou
não utilizam suas câmeras e não perguntam se estão seguindo as instruções
“corretamente”, como ocorre em sala de aula. Só foi possível ver a produção e
os registros dos alunos quando foram enviadas as fotos após o fim da aula.

969
Outro problema foi o momento de realizar a divisão dos alunos em
grupos. Uma possibilidade seria abrir várias chamadas no Google Meet, porém
temos a questão da conexão da internet que não suporta tantos dados sendo
usados ao mesmo tempo, a máquina (computador) que pode também não
suportar tantas abas abertas, além do professor ter que estar gravando305 todas
essas reuniões e acompanhando-as simultaneamente.

CONSIDERAÇÕES

Tínhamos com esse trabalho, o objetivo de relatar e discutir a aplicação


de uma proposta que utilizasse a História no Ensino da Matemática no cenário
do ERE. Também desejávamos observar suas possíveis contribuições para o
ensino no ERE e obstáculos de aplicação que poderíamos nos deparar.
Quanto à possibilidade de aplicação da proposta, pudemos concluir que
essa pode ser uma estratégia que venha a contribuir com o processo de ensino
e aprendizagem dos alunos, uma vez que entendemos a participação e o
envolvimento destes, bem como os retornos positivos por meio dos formulários,
como sendo sinais de que a proposta motivou os alunos, os permitiu explorar os
conteúdos de forma diferente daquela já vista em aulas anteriores e uma
interação entre professor e aluno diferente da dinâmica que estava sendo
trabalhada.
Com relação à estruturação da proposta, ela foi elaborada de forma que
também pudesse ser aplicada em sala de aula na forma presencial. Porém um
ponto que precisou de adaptação foram os momentos de discussão em grupo
no formato do ERE. Nossa sugestão é que se possa fazer as discussões que
surgirem com toda a turma, tentando fazer uma espécie de “rodízio” entre os
alunos que estão participando das aulas, ou que o professor consiga participar

305Exigência da escola para que quem não participou da aula síncrona possa assistir de forma
assíncrona.

970
das discussões assíncronas realizadas pelos grupos, a fim de identificar
dificuldades e organizar seus direcionamentos.
Os obstáculos dificultam um desenvolvimento mais próximo daquilo que
ocorre em sala de aula presencial, porém o professor pode adaptar essas
situações, de forma que esses obstáculos sejam minimizados. Por exemplo, ele
pode solicitar aos alunos que mostrem nas câmeras as considerações, que
compartilhem suas reflexões, representações que estão fazendo, ou solicitar
fotos por meio da plataforma utilizada para acompanhar o processo conforme for
sendo desenvolvido.
É importante lembrar que essa foi apenas uma proposta, e muitos outros
recursos poderiam ter sido utilizados, assim como outras estratégias poderiam
ter sido adotadas em determinados momentos. Essas reflexões podem ser
aplicadas em uma nova implementação da proposta ou de outras que envolvem
a História no Ensino da Matemática, indo ao encontro do objetivo da pesquisa
ação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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uma sequência de atividades. Revista de História da Matemática para
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971
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973
ESTRATÉGIA DE ENSINO UTILIZANDO A LEITURA NA
MATEMÁTICA EM TEMPOS DE PANDEMIA

Maria Helena de Andrade306


Rannyelly Rodrigues de Oliveira307
José Carlos Tavares dos Santos308

RESUMO
Aborda um trabalho de leitura interpretativa vivenciada por cento e dezessete alunos do
nono período de uma escola da rede municipal de ensino da periferia de Fortaleza, o
qual foi remotamente conduzido na corrente fase da pandemia covid-19. Teve o
propósito de promover uma estratégia de ensino que enseje a leitura interpretativa das
turmas, de modo a possibilitar a melhoria do aprendizado. Em decorrência do
distanciamento social imposto, foi exercitada uma estratégia de ensino com o texto
paradidático As mil e uma equações, que se reporta ao conteúdo “Equações do segundo
grau”, de modo a responder a esta indagação: - Como desenvolver atividades de leitura
interpretativa na disciplina Matemática em tempos de pandemia? A sequência de
condução do estudo ocorreu em quatro etapas: a) abordagem do conteúdo Equação do
segundo grau em aulas pelo meet e/ou notas explicativas enviadas por whatsapp ao
aluno e a coordenação da escola para impressão e posterior acesso aos alunos
impossibilitados virtualmente, acompanhada de exercício de aprendizagem; b) correção
comentada de todas as questões da atividade proposta com apresentação do texto
paradidático acompanhado do direcionamento da leitura e discussões dos capítulos
durante uma semana; c) solicitação de um Podcast, sendo acompanhado por uma
apresentação da definição, objetivo e utilidade da tarefa imposta; e, por último,
d) o envio do Podcast por email. Dessa maneira, com o desenvolvimento da
leitura interpretativa, observou-se que os educandos, de modo geral, iniciaram o
gosto pela leitura e, consequentemente, também pelo conteúdo expresso,
conduzindo-os ao conhecimento.

Palavras-chave: Leitura interpretativa. Equação do segundo grau. Aluno.


Podcast.

306 Secretaria Municipal de Educação de Fortaleza (SME). helenaeducadoramat@gmail.com.


307Universidade Federal do Rio Grande do Norte e Secretaria Estadual de Educação (UFRN/SEDUC).
ranny.math.06@gmail.com.
308 Secretaria Municipal de Educação de Fortaleza (SME). carlostavaresdossantos@gmail.com.

974
INTRODUÇÃO

É de opinião geral entre os professores de Matemática da Educação


Básica o relato da dificuldade dos alunos em interpretar matematicamente um
texto. Declaram, ainda que esse entrave decorra da falta de leitura e de escrita.
De outra parte, as avaliações externas apontam na direção de insuficiência da
qualidade no condizente ao ensino de Matemática. Essa realidade caótica é
vislumbrada no ensino presencial. Em contrapartida, a sociedade, de modo
geral, está sob uma pandemia, aliás, a mais grave que a História registra. Os
cidadãos, inclusive alunos e professores, seguiam cada um com sua rotina, mas,
inopinadamente, tudo mudou. Então, como permeia o ensino de Matemática no
Ceará em tempos de pandemia? No momento, não se tem resposta para essa
indagação. Aborda-se, entretanto, o relato de experiências com atividades de
leitura e escrita, envolvendo gravações e até pesquisas sobre um determinado
conteúdo.
Nessa perspectiva, coube ao povo brasileiro a adoção do isolamento
social, de sorte que as escolas foram oficialmente interrompidas do exercício de
sua função na modalidade presencial. Boa parte dos alunos, entretanto, está
com atividades domiciliares e/ou aulas online, tendo que adquirir autonomia para
prosseguir com os estudos e, assim, adquirir conhecimento. As circunstâncias
são desafiadoras, deixando os professores de Matemática com um enorme
desafio: buscar estratégias de ensino incentivadoras susceptíveis de
proporcionar aos estudantes a compreensão necessária dos conteúdos e o
suporte na resolução das atividades domiciliares.
Em decorrência, pois, do contexto vivenciado por parte de todo
brasileiro, indaga-se: - como desenvolver atividades de leitura interpretativa na
disciplina Matemática no período ora vivenciado? Para responder a indagação a
esta pergunta, tem-se como propósito promover uma estratégia de ensino que
dê ensejo à leitura interpretativa das turmas, de modo a possibilitar a melhoria
do aprendizado.

975
Portanto, foi pensada e desenvolvida uma estratégia de ensino com um
livro paradidático de Matemática, habilitado a dar suporte ao professor dessa
matéria na condução das atividades domiciliares utilizando o conteúdo “Equação
do segundo grau”. Para que, todavia, a proposta tenha eficácia, impõe-se faz
necessário o docente entender à leitura interpretativa e escrita na Matemática, a
qual será visualizada em seção a posteriori.

LEITURA INTERPRETATIVA E ESCRITA NO ENSINO DA MATEMÁTICA

O ensino da Matemática no Brasil aponta caminhos e indicam papéis,


deveres e estigmas que foram se modificando à medida do tempo, inclusive o
aumento no interesse dos pesquisadores pelo assunto. Prova disto é o relato de
Fiorentini e Lorenzato (2012), quando exprimem que

Os poucos estudos, com características que se aproximam da


pesquisa stricto sensu, relativos ao ensino e à aprendizagem da
matemática, realizados antes da década de 1950, ocorreram no
terreno da psicometria e consistiam no estudo psicológico da
criança por meio de testes. (p. 18).

Depois dos anos de 1950, no entanto, os estudos relativos ao ensino da


Matemática receberam impulso, como vantajoso resultado dos congressos
brasileiros de ensino de Matemática (CBEM), bem assim, em virtude da criação
dos centros regionais de pesquisas educacionais (CRPE). Sob esse aspecto
histórico-desenvolvimentista da matéria, é imperioso registrar a contribuição
relevante da professora Maria Laura Mouzinho Leite Lopes, para a melhoria da
qualidade do ensino de Matemática no País, no emprego de sua determinação,
competência e ideais inovadores. A busca por um ensino de qualidade atrelado
ao crescimento do número de trabalhos publicados oriundos de pesquisa
conduziu à criação, em 2000 e 2001, de uma área de conhecimento - Ensino de
Ciências e Matemática - pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (CAPES).

976
Malgrado todos esses esforços, o ensino da Matemática está deixando
a desejar, sendo um desafio para todos, principalmente para os professores
dessa disciplina na Educação Básica. Alguns docentes comentam que,
provavelmente, essa situação caótica tem como uma das causas o fato de que
os alunos não conseguem ler matematicamente um texto. E, quando o fazem,
não o interpretam adequadamente. Atentando-se para este aspecto, pergunta-
se: o que é ler, interpretar e escrever matematicamente? Como resolver a
questão o problema do desinteresse pela leitura e escrita em Matemática?
Ler é decodificar os símbolos. E a Matemática, consoante assinala
Mendes (2009), se constitui de uma linguagem revestida por elementos
significantes [...], ou seja, esta por sua vez é recapeada por símbolos, gráficos,
formas geométricas, diagramas e expressões algébricas que lhes são
peculiares, e por um vocabulário que guarda uma relação intrincada com a língua
materna, na qual se faz necessário seu entendimento.
Sendo assim, é fundamental que o educando seja alfabetizado em
Matemática. Para Danyluk (1991 apud KLÜSENER, 2000, p. 177), “[...] ser
alfabetizado em matemática é entender o que se lê e escreve, [...] é buscar o
significado do ato de ler e escrever, presentes na prática cotidiana”. Em
contrapartida, são notórios comentários de professores abordando a ideia –
verdadeira em muitas circunstâncias - de que os alunos detestam estudar essa
Ciência. Então, como se permitir entender aquilo que se repele? Daí, a
importância de fazer a mobilização da leitura em Matemática. No alcance do
entendimento de Gomes (2002), todavia, mencionado por Salmazzo (2005, p.
32), a leitura, atualmente, é enxergada
[...] não mais como um processo de pronunciar o texto, mas como
uma atividade complexa que envolve raciocínio, ou seja, ler é
compreender. A Leitura é um processo interativo e construtivo, no
qual entram em jogo as relações entre as diferentes partes do texto
e os conhecimentos prévios do leitor.

Portanto, compreender um texto numa linguagem matemática, impõem-


se decodificação, entendimento e análise do escrito. Em tais circunstâncias,
sobra evidente o fato de que a leitura é uma atividade que merece destaque na

977
prática de sala de aula e necessita ser explorada pelos professores de um modo
geral, inclusive pelos instrutores de Matemática. Carrasco (2000) comenta a
noção de que, além do óbice de leitura, o aluno também possui dificuldade de
escrever em linguagem matemática.
A escrita relativa à Matemática é proposta por Santos (2005) como uma
opção pedagógica de mediação integrativa com as experiências individuais e
grupais de cada sujeito na busca pela apropriação dos conceitos matemáticos
estudados.
Dessa forma, De efeito, Carrasco (2000, p. 192) aponta duas soluções
para combater a dificuldade de ler e escrever nessa linguagem.
A primeira consiste em explicar e escrever, em linguagem usual,
os resultados matemáticos. [...] uma segunda solução seria a de
ajudar as pessoas a dominarem as ferramentas da leitura, ou
seja, a compreender o significado dos símbolos, sinais e
notações.

Em concordância com a reflexão acima expressa, foi desenvolvida uma


proposta de ensino envolvendo a leitura de um escrito paradidático, o que será
expresso no módulo sequente.

ESTRATÉGIA DE ENSINO PARA AS AULAS REMOTAS

O caminho trilhado configura a mostra de uma estratégia de leitura e


interpretação do livro paradidático As mil e uma equações, nas turmas de nono
ano do Ensino Fundamental no turno da manhã de uma escola municipal
localizada na periferia de Fortaleza, totalizando 117 estudantes. A literatura
vigente aborda a dificuldade dos alunos em ler, interpretar e escrever textos
matemáticos. Imagine-se esse problema nos dias atuais com uma pandemia,
quando as aulas são remotas e nas quais os educandos carecem de autonomia,
disciplina e determinação. Para isso, se faz necessário evidenciar a realidade:
alunos e professores isolados socialmente por uma pandemia, a qual está
acontecendo no Mundo.

978
Haja vista essa realidade, a proposta pedagógica das escolas há que ser
modificada, uma vez que, em consequência do distanciamento social oriundo de
uma medida preventiva de combate ao vírus, os professores devem oferecer
atividades domiciliares, semanalmente, de tal modo que os educandos tenham
condições de suscitar hipóteses individualmente e adquirir, todos os dias,
autonomia de resolução.
Nessa perspectiva, as escolas solicitam aos professores as ações
domiciliares da semana, deixando apreensivos os envolvidos (professores, pais
ou responsáveis e alunos). Sendo assim, divisou-se a ideia de ofertar, por via
deste artigo, a oportunidade de desenvolver-se uma situação de ensino que situe
o aprendiz numa investigação. Salienta-se que a sugestão de trabalho há de ser
aplicada pelos professores de Matemática. Inicialmente, para que se efetivasse
a pesquisa, antes, se concordou com a ideia de Skovsmose (1994, p.62), ao
alegar que um tema deve cumprir as seguintes condições:
• ser um tópico conhecido dos alunos ou passível de
discussão de modo que conhecimentos não matemáticos ou da
vida diária dos alunos possam ser utilizados;
• ser passível de discussão e de desenvolvimento num
determinado tempo em um grupo;
• ter um valor em si próprio, não devendo ser meramente
ilustrativo para introduzir um novo tópico matemático teórico;
• ser capaz de criar conceitos matemáticos, ideais sobre
sistematização ou ideias sobre como ou onde se usa a
Matemática;
• privilegiar a concretude social em detrimento da
concretude no sentido físico.

Coaduna-se, pois, a ideia que se tem neste ensaio ao que pensa


Skovsmose, haja vista a relevância, para o ensino, dos teores expressos no livro,
o qual se reporta a uma história bem interessante de aventura. Além disso,
salienta-se que para o aluno adquirir habilidades de fazer gráficos de funções
quadráticas, principalmente de forma remota, se faz necessário o domínio do
conteúdo equação do segundo grau. Atrela-se à situação conturbada, na qual é
observável certa impotência da escola, de modo peculiar do professor de
Matemática, uma vez que boa parte dos discentes acredita que esta Ciência é
difícil e complicada. O trabalho paradidático foi escolhido para elaboração da

979
proposta em razão da relevância do tema abordado de modo não presencial e
da maneira pela qual as equações são abordadas na história, isto é, mediante
desafios para salvar a vida de um ser humano.
Ademais, foi pensando em dar suporte ao docente para ministrar
atividades domiciliares de conteúdos matemáticos utilizando assuntos que
requerem atenção em decorrência da magnitude no Ensino Médio, como
também para promover a leitura interpretativa e a escrita, podendo, inclusive,
contribuir para o desenvolvimento da competência especifica da Matemática de
número 2. Refletiu-se, também, em “Desenvolver o raciocínio lógico, o espírito
de investigação e a capacidade de produzir argumentos convincentes,
recorrendo aos conhecimentos matemáticos para compreender e atuar no
mundo” (BRASIL, 2017, p. 267), relatado pela Base Nacional Comum Curricular
(BNNC).
Desse modo, a situação de ensino será desenvolvida em formato de
atividades domiciliares direcionadas para estudantes das escolas públicas na
faixa etária de 15 a 16 anos, a qual chegará até os educandos por meio de
informações encaminhadas pelo grupo de Whatsapp e devolvidas por email, da
turma, respectivamente, para envio e devolutiva das atividades.

A equação do 2º grau e a concepção de um podcast

O livro paradidático As mil e uma equações, conforme figura 1, conta


uma aventura de três amigos que, numa viagem, se envolvem em sequestro,
casamento e ainda tornam-se comerciantes e participam da batalha entre
príncipes que tinham por objetivo casar-se com uma princesa. O cenário,
entretanto, está relacionado com a resolução de desafios, que, por sua vez, são
equações do segundo grau do tipo ax2 + bx + c = 0.
CAPA DO LIVRO PARADIDÁTICO AS MIL E UMA EQUAÇÕES

980
Fonte: Rosa Neto, 2001.
O podcast é um material, ou seja, é uma estratégia de comunicação
entregue no formato de áudio que fica disponível para que o receptor, no caso,
o professor, escute quando quiser. Conforme Schmidt (2008), a palavra podcast
é,
[...] uma junção das palavras "iPod" e "broadcast" (transmissão via
rádio) e surgiu em 2004. Os créditos do conceito desse termo são
atribuídos ao ex-VJ da MTV Adam Curry, que criou o primeiro
agregador de podcasts e disponibilizou o código na internet para
que outros programadores pudessem aperfeiçoá-lo e utilizá-lo.

Assim, para confeccioná-lo, é essencial cumprir alguns passos, tais


como: estudar e dominar o conteúdo antecipadamente, planejar a exposição da
fala do remetente (estudante que irá produzi-lo), escrevê-lo (como um treino para

981
ter a escolha do texto apropriado), escolher um ambiente silencioso e utilizar um
bom microfone. Após produzi-lo, é recomendável escutá-lo e, para envio e/ou
divulgação, fazê-lo pelo Google podcast, Spotify ou Deezer.
A estratégia de ensino foi dividida em quatro etapas. Evidencia-se que a
habilidade viável nessa atividade é (EF08MAXX) Resolver e elaborar, com e sem
uso de tecnologias, problemas que possam ser representados por equações
polinomiais de 2º grau do tipo ax2 + bx + c = 0. Essa habilidade, porém, não
consta na BNCC, daí a escrita do número sequencial da habilidade ser
representado por letras idênticas.
Na primeira fase, o aprendiz, provavelmente, participou das aulas pelo
meet sobre equações do segundo grau, seguindo-se a leitura do livro didático
com aplicação, por meio da resolução, de exercícios propostos. Salienta-se que,
para os educandos sem acesso à internet, foram escritas notas de aula
explicativas e deixadas na Coordenação da escola. Afinal, o objetivo da
Educação Matemática, conforme exprimem Miguel e Miorim (2004, p.70), é fazer
o estudante compreender e se apropriar da Matemática “[...] concebida como um
conjunto de resultados, métodos, procedimentos, algoritmos etc.”
Na segunda parte, o estudante participou, pelo meet ou mesmo por via
de folha xerografada disponível na escola, das correções comentadas da
atividade. Em seguida, tirou as dúvidas. Nesse momento, foi mostrado à turma
o livro paradidático com sete capítulos pequenos. O aluno foi orientado a efetuar
a leitura de dois capítulos por dia, o que corresponde, em média, a dezesseis
páginas com várias ilustrações, objetivando facilitar a interpretação da leitura.
A cada dia eram colocadas algumas perguntas do tipo “Quem ficou
perdido no deserto? Eles estão em qual lugar? Fazendo o quê? Em qual século
acontece a história? Como são as vestimentas? Quem é o matemático das
Arábias? Que conteúdo é abordado? Como o conteúdo é abordado? Quem é
Emir? Quais desafios você não conseguiu resolver? Por quê?” Isto no grupo do
Whatsapp referente aos capítulos para discussão. De acordo com as respostas,
havia um momento de debate, seguido da conclusão referente aos dois capítulos
lidos no dia.

982
Na semana seguinte, na terceira etapa, a professora explicou a definição
e as fases de construção de um podcast, como também sua funcionalidade, ao
grupo de alunos. Entende-se como funcionalidade a finalidade da execução da
tarefa conduzida pela professora, a qual explanou detalhadamente a função da
construção do podcast direcionado ao conteúdo equação do segundo grau,
relatando que se deve: compartilhar o conteúdo, desenvolver a oratória, verificar
a interpretação referente ao conteúdo ministrado, expor o nível de aprendizado
do sujeito, apresentar uma maneira diferente de enxergar a Matemática, verificar
se houve compreensão do assunto abordado, desenvolver o processo de leitura,
interpretação, integração e escrita do aprendiz com a simbologia matemática e
conhecer a aplicabilidade da Matemática em situações cotidianas por meio de
uma aventura. A quarta etapa aconteceu pelo envio do podcast ao docente da
turma via e-mail.

DISCUSSÕES E RESULTADOS

De acordo com o contexto mostrado, ensejou-se aos estudantes do nono


ano de uma escola pública municipal de Fortaleza – Ceará a leitura de um livro
paradidático disponibilizado em PDF nos grupos de Whatsapp de cada turma, o
qual estava relacionado com o conteúdo “Equação do 2º grau” ministrado pela
professora por intermédio da plataforma meet, como também por notas
explicativas reproduzidas em cópias Xerox e deixadas à disposição do aluno na
Coordenação pedagógica.
Além do mais, foi proposta ao aprendiz uma situação de aprendizagem
planejada e escolhida, de modo a verificar a interpretação leitora e o conteúdo
abordado, visto que há uma intenção direcionada à participação ativa do
estudante no decurso de elaboração do conhecimento mediante leitura
interpretativa. Sendo assim, o podcast solicitado é uma estratégia viável ao
objetivo pretendido, nesse momento de pandemia.
Segue a transcrição do Podcast, que, na visão que se tem, evidencia um
nível considerável de interpretação leitora sobre o assunto e a estruturação da

983
estória, uma vez que o discente, ao comentar sobre o que leu, enriquece seu
vocabulário, informa a internalização do conhecimento, nesse caso sobre a
Equação do 2º grau, além de permitir o desenvolvimento do pensamento crítico
abordado na BNCC.

Podcast sobre as mil e uma equações.


Najla, Kamal e Ahmed são comerciantes de tecidos que estão
passando pelo deserto para vender seus tecidos no século IV, na
grande feira do Oriente Médio. No meio do caminho são feitos de
reféns e roubados por ladrões. Mas com sorte conseguem
escapar. Em uma situação horrível são encontrados no meio do
deserto pela caravana do Emir. Resolveram acompanhar a
caravana. Nela resolveram vários desafios de lógica propostos
pelo matemático Omar. Com a chegada da caravana ao destino
os três amigos foram explorar a grande cidade. Passeando,
ouviram uma conversa do príncipe Kalik, pretendente da princesa
Núria, filha de Emir, tramando contra o sogro. Em busca de uma
solução descobrem logo que o príncipe Tarik veio pedir a mão da
princesa. Com isso os príncipes iriam travar uma batalha de força
e inteligência. Os três desvendaram as respostas dos desafios das
equações do 2º grau, mas o príncipe Kalik abandonou a
competição, deixando o príncipe Tarik vencer. Com o tempo os
três amigos se estabeleceram na cidade, abriram uma loja de
tecido e também resolviam equações do tipo ax2 + bx + c = 0 e
logo descobriram uma fórmula para resolver esse tipo de equação.
Foram convidados para o casamento. No meio do casamento. No
meio do casamento o produtor do filme apareceu pedindo para
pararem com a gravação. Pois estava o roteiro do filme cheio de
furos .(ALUNA do 9º C M).

À vista disso, percebe-se que a habilidade de leitura da referida aluna


encontra-se no nível de retenção, uma vez que, em sua fala, houve início, meio
e fim. Inclusive, da parte do conhecimento matemático, foi identificada a equação
do segundo grau em sua forma geral e, ainda, se comprovou a existência de
uma fórmula de resolução. Faltou, porém, a explicitação da fórmula e/ou de
algum dos desafios propostos no livro. Salienta-se que, dos quarenta e nove
podcasts recebidos, conforme o quadro a seguir, o desta aluna ficou mais bem
estruturado. Por outro lado, houve estudantes que abordaram o início da estória,
outros o começo e o final e alguns somente o meio. E notório, porém, o fato que
todos identificaram em algum momento do livro a abordagem do conteúdo
“Equações do segundo grau”.

984
Quantitativo de Alunos do nono ano - manhã

TURMA ALUNOS ALUNOS ALUNOS COM


MATRICULADOS FREQUENTANDO DEVOLUTIVA
POR TURMA AULA PELO DO PODCAST
MEET

9º A M 39 17 08

9º B M 39 29 20

9º C M 39 31 21

Fonte: Elaboração própria, com suporte no Diário de Classe das turmas.

O gráfico a seguir evidencia que, da turma do 9AM, quatro alunos, cerca


de 10%, conseguiram acomodar, embora que timidamente, o conteúdo
matemático salientado no livro, pelo fato de que alguns relataram a aventura,
disseram que falava de equação do segundo grau, mas não mencionaram como
o conteúdo foi apresentado no livro paradidático. As demais turmas tiveram uma
participação maior, porquanto os aprendizes que fizeram o Podcast, sem
exceção, abordaram o assunto. O texto falado, entretanto, não reportou a
aventura em sua totalidade, demonstrando ser essencial a continuidade da
leitura nessa renomeada disciplina.

985
Devolutiva do Podcast - Nonos da Manhã

9º A M
10,2%
9º C M
53,2%
9º B M
51,2%

Fonte: Elaboração própria, com apoio no Diário de classe das turmas.

Os estudantes, porém, que prontificaram a tarefa fez com esmero pelo


fato de terem gostado da estória, foram incentivados ao estudo das equações do
segundo grau, resolvendo vários exercícios, inclusive os desafios apresentados
no livro paradidático e depois se sentiam confiantes, dizendo que dominavam o
assunto. Portanto, a experiência de trabalhar livro em tempos de isolamento
social foi exitosa.
De acordo com o desenvolvimento da leitura interpretativa, foi
constatado que os educandos, de modo geral, iniciaram o gosto pela leitura e,
consequentemente, também pelo conteúdo expresso. Além do mais, foi proposta
ao aprendiz uma situação de aprendizagem planejada e escolhida com a
finalidade de relacionar uma aventura no deserto ao assunto “Equação do
segundo grau”, visto que há uma intenção direcionada à participação ativa do
estudante na constituição do conhecimento por intermédio da interpretação
leitora.
Com efeito, é cabível assinalar que a indagação inquietante acerca de
"como desenvolver atividades de leitura interpretativa na disciplina Matemática
em tempos de pandemia?" foi respondida. Isto, pois, conduz a não se ostentar
dúvida de que a leitura da produção paradidática permite uma contribuição
significativa durante a consolidação do conhecimento do educando. E, ainda, no
evento narrado neste artigo, proporcionou ao professor a oportunidade de

986
evidenciar aos estudantes uma maneira divertida de aprender Matemática.
Demais disso, na demanda pelo aprendizado, o discente interagiu virtualmente
com os colegas e consigo próprio, levantou hipóteses, fez conjecturas e,
portanto, atuou ativamente durante o fenômeno da aprendizagem.

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988
989
ABORDAGENS GEOMÉTRICAS EM PROBLEMAS ARITMÉTICOS E
ALGÉBRICOS PROPOSTOS EM LIVROS DIDÁTICOS DO ENSINO MÉDIO

Nickson Deyvis da Silva Correia309


Viviane de Oliveira Santos310

RESUMO
Este texto tem como objetivo apresentar abordagens geométricas em problemas
aritméticos e algébricos propostos em livros didáticos (LD) destinados ao Ensino Médio.
Tais abordagens são resultados da pesquisa de iniciação científica Aspectos históricos
da aritmética e álgebra nos LD do Ensino Médio: relações com a geometria do Grupo
de Pesquisa História da Matemática e Educação Matemática da Universidade Federal
de Alagoas. Nessa pesquisa, percorremos uma sequência de estudos relacionados à
História da Matemática e à História da Educação Matemática no Brasil com base em
livros, teses, dissertações, artigos, documentos legislativos e LD. Selecionamos, para
este texto, quatro problemas aritméticos ou algébricos apresentados em LD de 1962,
1997, 2005 e 2016, propondo uma abordagem geométrica proveniente de noções dadas
em uma obra didática mais nova, bem como mais antiga ou proveniente da História da
Matemática. Acreditamos que este trabalho, que relaciona aritmética, álgebra e
geometria por meio de resoluções de problemas, vem somar com práticas diárias do
professor de Matemática, uma vez que pode servir de apoio para estratégias em abordar
conteúdos e problemas em suas aulas, já que é comum alunos serem considerados
bons em álgebra e aritmética e ruins em geometria.

Palavras-chave: História da Educação Matemática. Álgebra. Aritmética.


Resolução de problemas.

INTRODUÇÃO

Segundo Baroni e Nobre (1999), um dos itens mencionados pelo prof.


Dr. Hans Wussing, um dos mais respeitados pesquisadores em História da
Matemática do mundo – ganhador do Prêmio Kenneth O. May em 1993, como

309
Universidade Federal de Alagoas (Ufal). nickson.correia@im.ufal.br.

310
Universidade Federal de Alagoas (Ufal). viviane.santos@im.ufal.br.

990
sendo tema de investigação científica relativo à História da Matemática é a
história de problemas e conceitos. Além disso, dentre as diferentes perspectivas
por volta da História da Educação Matemática no Brasil, tem-se as vertentes
“História na Educação Matemática” e “História oral e Educação Matemática”. A
primeira relacionada ao campo didático que usa a história em pesquisas sobre o
Ensino de Matemática. A segunda relacionada à construção de possibilidades
de alternativas diferenciadas para o ensino dessa ciência, colocando o
licenciado/licenciando em Matemática em contato com relatos de práticas
pedagógicas de antigos professores, sistematizações ou recriações. Essas e
outras vertentes travam diálogo com a produção historiográfica, condicionando
necessidades didáticas impostas pela Educação Matemática. (VALENTE, 2014)
Segundo Dassie e Costa (2014), no fazer historiográfico da Educação
Matemática, as fontes possuem um papel importante e, dentre essas fontes,
temos os livros didáticos (LD). Nesse sentido, Chervel (1990), “texto já bem
conhecido e transformado em referência para todo historiador das disciplinas
escolares” (VALENTE, 2008, p. 141), trata o estudo de LD como um grande
revelador da trajetória histórica de uma determinada disciplina escolar. Couto e
Jucá (2019) completam que um estudo utilizando LD como objeto de pesquisa
propicia ao pesquisador construir uma história de determinada disciplina, uma
vez que se pode perceber as modificações que esta sofreu ao longo do tempo.
Outra fonte para a História da Educação Matemática são os documentos
legislativos tais como leis, decretos, resoluções, entre outros. Segundo Mattos e
Abdoumur (2014), os documentos legislativos influenciam os historiadores na
escolha de demais documentos que possibilitem a atribuição de significado ao
âmbito historiográfico.
Consoante a tais considerações, desenvolvemos a pesquisa Aspectos
históricos da aritmética e álgebra nos LD do Ensino Médio: relações com a
geometria pelo Grupo de Pesquisa História da Matemática e Educação
Matemática da Universidade Federal de Alagoas. Nesse estudo de iniciação
científica, o foco principal foi estudar conteúdos e problemas de aritmética e
álgebra dos LD que se relacionam com a geometria. Dentre os resultados

991
oriundos dessa pesquisa, apresentaremos apenas as possíveis abordagens
geométricas em problemas aritméticos e algébricos presentes em LD destinados
ao Ensino Médio.
Dentre diversos trabalhos na linha de LD como objeto de pesquisa,
destacaremos Oliveira (2008) que, em sua dissertação de mestrado, faz alguns
apontamentos sobre estudos de LD dos tipos histórico e pragmático, são eles: o
tipo histórico refere-se aos estudos que utilizam LD para a escrita de uma
história, isto é, estudos do ensino em uma instituição, da matemática escolar
praticada por uma comunidade em um recorte de tempo, da escolarização de
uma disciplina, das mudanças provocadas por documentos legislativos, da
disciplinarização de um conteúdo e como se constituem as diferentes
abordagens para o ensino de um conteúdo matemático no decorrer dos tempos;
o tipo pragmático refere-se aos estudos descritivos/comparativos que
comumente não estabelecem conexões entre os conteúdos apresentados nas
obras com as condições sociais e educacionais; estudos históricos que tratam
as diferentes abordagens para o ensino de um conteúdo matemático propostas
no decorrer dos anos não deixam de ser do tipo pragmático, sendo estes fonte
de recursos didáticos para o ensino atual.
Assim, um trabalho do tipo histórico e pragmático voltado a apresentar
abordagens geométricas em problemas aritméticos e algébricos propostos em
LD destinados ao Ensino Médio, passa a ter uma importância para o estudante
e para o professor de Matemática. Como diz D’Ambrosio (2007), é bastante
comum alunos serem considerados bons na álgebra e nas operações numéricas,
mas terem dificuldades na geometria e isso ocorre, na maioria das vezes, porque
a álgebra e a geometria estão sendo entendidas como ideias isoladas, o que não
acontece ao longo da história. Além disso, uma das práticas diárias do professor
de matemática é fazer análise de estratégia de solução de problemas diversos.
Logo, acreditamos que este trabalho vem a somar com as práticas
diárias do professor podendo servir de apoio para estratégias em abordar
conteúdos e problemas em suas aulas, debates e pesquisas futuras.

992
PROCESSOS METODOLÓGICOS

Segundo Oliveira (2008), os trabalhos do tipo histórico e pragmático


comumente não trazem explícita uma discussão metodológica. Contudo,
percorremos uma sequência de estudos relacionados à História da Matemática
e à História da Educação Matemática no Brasil que viabilizou chegarmos em
possíveis abordagens geométricas de conteúdos ou problemas aritméticos e
algébricos presentes em LD destinados ao Ensino Médio.
De início adotamos textos, entre livros, teses e artigos, que
possibilitaram compreender um pouco das principais pesquisas em História da
Matemática relacionadas a aspectos históricos das matemáticas da antiguidade
até os dias atuais, em especial a problemas aritméticos e algébricos, e à História
da Matemática no Brasil. Entre esses textos, destacamos D’Ambrosio (2008) que
diz ser importante o professor de Matemática conhecer a História da Matemática
no Brasil para entender a dinâmica do encontro cultural de gerações, o desafio
no mundo escolar, os programas escolares, os livros adotados, entre outros.
Sendo assim, com base em Mattos e Abdoumur (2014), também
estudamos o Sistema Educacional Brasileiro do período Brasil Império ao
período Nova República (dias atuais), isto é, compreendendo decretos, portarias,
reformas, leis, resoluções e programas curriculares que estabeleceram
mudanças na organização, objetivos e currículos da matemática do Ensino
Médio ao longo dos anos. Esse estudo possibilitou compreender a distribuição
dos conteúdos aritméticos e algébricos em cada mudança realizada e, também,
que o Ensino Médio nem sempre recebeu esse nome, já que ele também foi
chamado de Ensino Secundário, Curso Colegial e Ensino de 2º grau.
Em seguida, iniciamos a coleta de LD referente a esses ensinos para
que pudéssemos estudar os conteúdos aritméticos e algébricos com ênfase em
compreender de que modo tais conteúdos e seus respectivos problemas são
apresentados e propostos para a resolução. Seguindo algumas instruções de
Chervel (1990), visitamos o Repositório Institucional da Universidade Federal de

993
Santa Catarina (RIUFSC) e, também, acervos pessoais de professores de
Matemática que autorizaram o acesso e disponibilização de obras para essa
pesquisa. Encontramos vários LD, contudo para não trabalhar com um número
demasiadamente alto, estabelecemos alguns critérios para uma seleção, foram
eles: a) trabalhar apenas com obras publicadas após o Decreto nº 4.244
(BRASIL, 1942), estabelecido por Gustavo Capanema no comando do Ministério
da Educação e Saúde em 1942, responsável por dividir o Ensino Secundário em
Curso Ginasial e Curso Colegial, sendo este o pontapé inicial da estrutura que
conhecemos hoje como Ensino Médio; b) trabalhar apenas com obras de volume
único ou, no caso da obra ser composta por vários volumes, a coleção completa
independentemente da edição, uma vez que é difícil estudar com precisão os
aspectos da aritmética e álgebra em uma obra didática incompleta.
De posse dos LD, iniciamos a leitura dos conteúdos aritméticos e
algébricos, verificando a apresentação do conteúdo, os problemas propostos, os
métodos de resolução desses conteúdos, e se esses conteúdos ou problemas
eram relacionados com a geometria. Para isso, seguimos uma ordem
cronológica, da coleção mais antiga para a mais nova, a fim de identificar se
houve mudança ou não no modo de abordar a aritmética e a álgebra. Apesar de
constatarmos que a relação de alguns conteúdos e problemas aritméticos e
algébricos com a geometria foi crescente com o passar dos anos, selecionamos
conteúdos e problemas aritméticos e algébricos apresentados nesses LD para
propormos abordagens geométricas, sejam essas abordagens provenientes de
noções dadas em uma obra didática mais nova, bem como mais antiga ou
provenientes da História da Matemática, se remetendo ao estudo inicial dessa
pesquisa.

AS ABORDAGENS GEOMÉTRICAS

Na pesquisa realizamos abordagens geométricas de vários problemas e


conteúdos em LD, mas para não repetir os conteúdos tratados, selecionamos de

994
modo aleatório algumas abordagens. Dentre as obras trabalhadas na pesquisa,
apresentaremos nesse texto problemas das obras Curso de Matemática para os
primeiro, segundo e terceiro anos dos cursos clássico e científico (BEZERRA,
1962); Matemática volume único (IEZZI et al., 1997); Matemática Dante (DANTE,
2005); e Matemática para compreender o mundo (SMOLE; DINIZ, 2016).
Problema 1: “Calcular a soma √𝟐 + √𝟑 + √𝟓, com o menor erro
possível.” (Adaptado de BEZERRA, 1962, p. 22). Trata-se de um problema de
números aproximados proposto no livro de Bezerra (1962) e para resolvê-lo
aritmeticamente, de acordo com a obra, basta utilizar os valores aproximados.
Para resolvermos usando uma abordagem geométrica, nos baseamos
na relação de Pitágoras 𝒂𝟐 = 𝒃𝟐 + 𝒄² em um triângulo retângulo 𝑨𝑩𝑪 e utilizamos
o desenho geométrico, vejamos a resolução a partir da Figura 1.
Figura 1: Resolução da soma √𝟐 + √𝟑 + √𝟓 com o menor erro possível

Fonte: Autores, 2020.

Resolução: De início, em uma semirreta de origem 𝑶, construímos um


quadrado de lados medindo 1, traçando sua diagonal 𝑶𝑩 que mede √𝟐. Em
seguida, utilizando a relação de Pitágoras, traçamos os segmentos de retas que
medem √𝟑 e √𝟓, marcando os valores de √𝟐, √𝟑 e √𝟓 na semirreta de origem 𝑶.
Em seguida, chamamos os valores √𝟐, √𝟑 e √𝟓 marcados na semirreta de 𝑮, 𝑯
e 𝑰 respectivamente. Com o raio 𝑶𝑯, traçamos um arco com centro 𝑰, chamando
de 𝑱 a interseção desse arco com a semirreta. Com o raio 𝑶𝑮, traçamos um arco

995
com centro 𝑱, chamando de 𝑲 a interseção desse novo arco com a semirreta,
sendo 𝑲 a soma √𝟐 + √𝟑 + √𝟓 com o menor erro possível.
Problema 2: “Nesta figura, o número de triângulos que se obtém com
vértices nos pontos 𝑫, 𝑬, 𝑭, 𝑮, 𝑯, 𝑰 e 𝑱 é:” (Iezzi et al., 1997, p.436), ver Figura
3.

Figura 3: Problema de análise combinatória

Fonte: Adaptado de Iezzi et al., 1997, p. 436.

Trata-se de um problema de análise combinatória e para resolvê-lo


𝒏!
algebricamente basta utilizar a fórmula para combinações 𝑪𝒏,𝒑 = 𝒑!(𝒏−𝒑)!, uma

vez que a ordem dos vértices não irá alterar o resultado, obtendo 31 triângulos,
mas também podemos resolver este problema com noções de geometria,
vejamos:
Resolução: Partindo do pressuposto que para se obter um triângulo,
deve-se ter três pontos distintos e não colineares, temos: 1º caso - com base em
𝑫𝑬 temos os possíveis triângulos 𝑫𝑬𝑮, 𝑫𝑬𝑯, 𝑫𝑬𝑰, 𝑫𝑬𝑱, 𝑫𝑬𝑭, ou seja, 5
triângulos. 2º caso - dois pontos na base 𝑨𝑪 = {𝑮𝑯, 𝑯𝑰, 𝑰𝑱, 𝑮𝑰, 𝑮𝑱, 𝑯𝑱} podemos
obter os triângulos
𝑮𝑯𝑫, 𝑯𝑰𝑫, 𝑰𝑱𝑫, 𝑮𝑰𝑫, 𝑮𝑱𝑫, 𝑯𝑱𝑫, 𝑮𝑯𝑬, 𝑯𝑰𝑬, 𝑰𝑱𝑬, 𝑮𝑰𝑬, 𝑮𝑱𝑬, 𝑯𝑱𝑬, 𝑮𝑯𝑭, 𝑯𝑰𝑭, 𝑰𝑱𝑭, 𝑮𝑰𝑭, 𝑮𝑱𝑭,
𝑯𝑱𝑭, ou seja, 18 triângulos. 3º caso - com base em 𝑬𝑭 temos os possíveis
triângulos 𝑬𝑭𝑮, 𝑬𝑭𝑯, 𝑬𝑭𝑰, 𝑬𝑭𝑱 e com base em 𝑫𝑭 temos 𝑫𝑭𝑮, 𝑫𝑭𝑯, 𝑫𝑭𝑰, 𝑫𝑭𝑱,
ou seja, 8 triângulos. Total de 31 triângulos.
Problema 3: “Calcular o limite da soma dos termos da progressão
𝟏 𝟏 𝟏 𝟏 𝟏
geométrica da soma + 𝟒 + 𝟖 + 𝟏𝟔 + ⋯ + 𝟐𝒏 + ⋯ , 𝒏 ∈ 𝑵∗ ” (Adaptado de Dante,
𝟐

996
2005, p. 149). Trata-se de um problema de progressão geométrica proposto no
livro de Dante (2005) e para resolvê-lo de modo algébrico, o livro propõe utilizar
𝟏 𝒂 𝟏 𝟏
a fórmula 𝑺𝒏 = 𝟏−𝒒 , sendo 𝒂𝟏 = 𝟐 e 𝒒 = 𝟐. Seguindo essa sugestão, obtemos

como resultado o valor 1, mas este problema também pode ser abordado de
modo geométrico, como apresentamos a seguir.
𝟏
Resolução: Consideramos um quadrado de área igual a 1. Pintamos 𝟐
𝟏 𝟏
dessa área. Em seguida, pintamos 𝟒 da área restante, depois 𝟖 da área restante,
𝟏
da área restante, e assim sucessivamente (ver Figura 4).
𝟏𝟔

𝟏 𝟏 𝟏 𝟏 𝟏
Figura 4: Resolução do limite da soma 𝟐 + 𝟒 + 𝟖 + 𝟏𝟔 + ⋯ + 𝟐𝒏 + ⋯ , 𝒏 ∈ 𝑵∗

Fonte: Autores, 2020.

Ao continuarmos esse procedimento, nos aproximaremos da área total


𝟏 𝟏 𝟏 𝟏 𝟏
do quadrado, que é 1, sendo este o limite da soma + 𝟒 + 𝟖 + 𝟏𝟔 + ⋯ + 𝟐𝒏 +
𝟐

⋯ , 𝒏 ∈ 𝑵∗ .
Problema 4: (Ver Figura 5) “Dado um quadrado 𝑸 de lado 𝟏𝒄𝒎, são
construídos outros quadrados de modo que, a partir do 2º, os pontos médios dos
lados de cada um deles sejam os vértices do quadrado anterior. Veja o desenho
ao lado. [...] qual é a área do 5º quadrado construído?” (SMOLE; DINIZ, 2016,
p.174).

Figura 5: Problema proposto na coleção Matemática para compreender o


mundo

997
Fonte: Smole; Diniz, 2016, p.174.

Trata-se de um problema de função exponencial proposto no livro de


Smole e Diniz (2016). Para resolver, o livro induz relacionar função exponencial
a progressão geométrica, permitindo estabelecer ligações entre propriedades de
funções relativas e o crescimento e decrescimento. Apresentaremos nossa
abordagem geométrica para resolver este problema a partir da Figura 6.

Figura 6: Resolução do Problema 4

Fonte: Autores, 2020.

Resolução: Dado o quadrado 𝑸 de área 𝟏𝒄𝒎² temos que a área do


quadrado vermelho é maior que o quadrado 𝑸, uma vez que o quadrado 𝑸 está
contido no quadrado vermelho. Dividindo o quadrado 𝑸 em quatro partes e
realizando o esquema da Parte 1 (ver Figura 6), temos que a área do quadrado
vermelho é 𝟐𝒄𝒎². Repetindo o mesmo processo para o quadrado azul, Parte 2,
temos que a sua área é 𝟒𝒄𝒎². Assim por diante, temos que o quarto quadrado
terá área de 𝟏𝟔𝒄𝒎² e o quinto quadrado, 𝟑𝟐𝒄𝒎².

CONSIDERAÇÕES FINAIS

998
Apesar de ser um recorte de abordagens feitas na pesquisa, acreditamos
que as abordagens geométricas dos problemas expostos neste trabalho é uma
fonte de recurso didático para o professor de Matemática, de modo a possibilitar
enxergar que há conteúdos aritméticos e algébricos que podem ser relacionados
com a geometria. Isto ganha mais importância quando pensamos que nem todos
os alunos compreendem facilmente a abordagem algébrica ou aritmética de um
conteúdo ou problema, sendo assim, uma alternativa de compreensão para o
aluno.
Além disso, tais abordagens trazem em questão a importância de
relacionar a aritmética e álgebra com a geometria levando em consideração aos
aspectos históricos da Matemática, bem como da História da Educação
Matemática. No mais, apesar de ser uma pesquisa concluída em ciclo de
iniciação científica, vale considerar que ainda há muito a se pesquisar nesse
mundo dos LD e História da Educação Matemática, deixando aqui o gancho para
pesquisas, debates e trabalhos futuros.

REFERÊNCIAS

BARONI, R. L. S., NOBRE, S. A Pesquisa em História da Matemática e suas


relações com a Educação Matemática. In: BICUDO, Maria (org.). Pesquisa
em Educação Matemática: Concepções & Perspectivas. São Paulo: Editora da
Unesp, 1999.

BEZERRA, M. J. Curso de Matemática para os primeiro, segundo e terceiro


anos dos cursos clássico e científico. 7. ed. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1962.

BRASIL. Lei nº 4.244, de 9 de abril de 1942. Lei orgânica do ensino


secundário. Diário Oficial da União. Rio de Janeiro, 1942. Disponível em:
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-4244-9-abril-
1942-414155-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 28 nov. 2020.

CHERVEL, A. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de


pesquisa. In: Teoria & Educação. Porto Alegre, 1990.

COUTO, A. P. N. P., JUCÁ, R. S. Uma análise de dois manuais de aritmética


que circularam em Belém no período de 1900 a 1910. In: HISTEMAT. ISSN
2447-6447. v. 5, n. 3, p. 152 – 177, 2019. Disponível em:

999
http://histemat.com.br/index.php/HISTEMAT/article/view/283/234. Acesso em:
10 out. 2020.

D’AMBROSIO, B. S. Reflexões sobre a História da Matemática na Formação


de Professores. In: NOBRE, S. (org.). Revista Brasileira de História da
Matemática-an international journal on the History of Mathematics,
Especial nº 1–Festschrift Ubiratan D’Ambrosio, p. 399-406, 2007.

D’AMBROSIO, U. Uma história concisa da Matemática no Brasil. Petrópolis:


Vozes, 2008.

DANTE, L. R. Matemática - volume único. São Paulo: Ática, 2005.

DASSIE, B., COSTA, D. A. da. Livros didáticos como fonte: o que dizem as
pesquisas brasileiras do I ENAPHEM. In: VALENTE, W. R. (Org.). História da
educação matemática no Brasil: problemáticas de pesquisa, fontes,
referências teórico-metodológicas e histórias elaboradas. São Paulo: Livraria
da Física, 2014.

IEZZI, G., DOLCE, O., DEGENSZAJN, D. M., PÉRIGO, R. Matemática -


volume único, manual do professor. São Paulo: Atual, 1997.

MATTOS, A. C. de., ABDOUNUR, O. J. Documentos legislativos: fontes para a


história da educação matemática. In: VALENTE, W. R. (Org.). História da
educação matemática no Brasil: problemáticas de pesquisa, fontes,
referências teórico-metodológicas e histórias elaboradas. São Paulo: Livraria
da Física, 2014.

OLIVEIRA, F. D. Análise de textos didáticos: três estudos. 222 f. Dissertação


(Mestrado em Educação Matemática) - Universidade Estadual Paulista, Rio
Claro, 2008.

SMOLE, K. S., DINIZ, M. I. Matemática para compreender o mundo 1. São


Paulo: Saraiva, 2016.

VALENTE, W. R. Livro didático e educação matemática: uma história


inseparável. In: Zetetiké. Unicamp: v. 16, n. 30, jul./dez. 2008.

VALENTE, W. R. Os diálogos trans, inter e intra da história da educação


matemática no Brasil. In: VALENTE, W. R. (Org.). História da educação
matemática no Brasil: problemáticas de pesquisa, fontes, referências teórico-
metodológicas e histórias elaboradas. São Paulo: Livraria da Física, 2014.

1000
OS SABERES PROFISSIONAIS EM DOCUMENTOS OFICIAIS DO ESTADO
DE SÃO PAULO – COMUNICAÇÕES, PÔSTERES

Gisele de Gouvêa311

RESUMO
A proposta objetiva-se estudar, quais saberes profissionais do professor que ensina
matemática em documentos oficiais poderão passar por um processo de
sistematização? Baseada na perspectiva histórica, nosso entendimento é pelo viés da
construção teórica provinda de sistematizações das experiências docentes, num dado
tempo, com intuito de fomentar discussões sobre o saber profissional do professor que
ensina matemática, no ensino de 1º grau. A pesquisa de cunho histórico que estamos
desenvolvendo, aborda discussões acerca da constituição dos saberes elementares
matemáticos e para o desenvolvimento dos saberes de formação de professores que
ensinam matemática. Sendo parte de uma pesquisa doutoral desenvolvida no Programa
de Pós-Graduação da Universidade Federal de São Paulo, com apoio financeiro da
Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. O objeto de análise
que será parte constituinte da caracterização desses saberes é o documento oficial
Proposta Curricular de Matemática do Estado de São Paulo de 1980, referente ao
ensino primário. A metodologia de pesquisa será por meio da pesquisa documental.

Palavras-chave: Saberes. Sistematização. Experiências docentes. Saberes


Profissionais.

INTRODUÇÃO

A presente proposta de artigo é parte da proposta da tese de


doutoramento da autora, cujo eixo de trabalho é “A Proposta Curricular da
década de 1980 e a nova organização da matemática para o ensino”, por
intermédio de um subprojeto intitulado “As Reformas educacionais e os experts:

311
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). gidegrau@hotmail.com.

1001
a produção de saberes para o ensino e para a formação de professores”, o
subprojeto e seus eixos de trabalho fazem parte do “projeto guarda-chuva”
desenvolvido por integrantes do Grupo de Pesquisa em História da Educação
Matemática (GHEMAT) com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de São Paulo (FAPESP), intitulado por “ A Matemática na Formação de
Professores e no Ensino: processos e dinâmicas de produção de um saber
profissional, 1890-1990”.
A questão de pesquisa que envolve essa proposta é: Quais saberes
profissionais do professor que ensina matemática em documentos oficiais
poderão passar por um processo de sistematização?
A proposta a seguir está dividida pelos seguintes itens: introdução,
metodologia de pesquisa e as Considerações Finais.

Os Saberes do Professor que ensina Matemática


Nesse tópico abordaremos a problemática acerca dos saberes do
professor que ensina matemática, baseada na perspectiva histórica, nosso
entendimento é pelo viés da construção teórica provinda de sistematizações das
experiências docentes, num dado tempo, com intuito de fomentar discussões
sobre o saber profissional do professor que ensina matemática, nos primeiros
anos escolares. Experiências docentes para Valente (2020) é:“ De pronto,
experiência docente representa toda e qualquer ação do professor em seu labor
cotidiano ligado ao ensino e acompanhamento da aprendizagem de seus
alunos”. (VALENTE, 2020, p.905). Ressaltamos que, nosso interesse, não é
apenas nomear quais são os saberes, nessa investigação buscamo-los como
um objeto a ser teoricamente construido, ou seja, a construção de um objeto
histórico pelo historiador.
Para Valente (2020):
[...] sendo o saber profissional tomado como objeto de
conhecimento, o processo de sua construção deverá
promover uma abstração a partir das experiências
docentes, intentando, num dado tempo, verificar como
tratá-las como conhecimento e, posteriormente, verificar a

1002
possibilidade desse conhecimento ser considerado como
um saber. (VALENTE, 2020, p.904)

Explicitaremos nosso entendimento por conhecimento e saber, nessa


ordem, o primeiro é um acumulado de experiências por intermédio do sujeito,
baseado em saberes de sua ação no mundo e das práticas da sua vida cotidiana.
O segundo é o discurso sistematizado, que pode ser mobilizado, tendo
capacidade de circulação, ou seja, em síntese o saber pode ser comunicável,
utilizado e apropriado em diferentes contextos.
Em suma, tanto o conhecimento como o saber embalam discursos que se
evidenciam por intermédio de grau de sistematização em que se apresentam.
Concordamos com Valente (2020) quando menciona que o oficio da docência
produz conhecimento, permeando constantemente o trabalho do professor, que
está situado nas suas experiências no trato do ensino e aprendizagem de seus
alunos. Logo, nos parece que esse conhecimento oriundo da docência poderá
ser sistematizado por intermédio de uma análise minuciosa acerca das
experiências docentes, num dado tempo.
Ressaltamos, que, ao mencionarmos “experiências docentes” não
estamos nos referindo as ações práticas dos professores, nem as experiências
docentes em sala de aula, baseado em análises na medida em que elas ocorrem,
no caso dessa pesquisa busca-se analisar por intermédio de documentos
oficiais, ou seja, a Proposta Curricular de Matemática, por meio de rastros do
passado dessas experiências que nos permitem viabilizar o estudo.
Para Valente (2020):
As experiências docentes, realizadas em tempos
passados, poderão ser analisadas por meio de uma
documentação variada que contenha registros sobre as
práticas dos professores (CHARTIER, 2006). Esses
dados lidos diretamente nos documentos poderão ser
tomados como informações. (VALENTE, 2020, p.905)

Além de analisar tal proposta, recebemos um material que circulou nas


escolas públicas e particulares no Município de Campinas na década de 80, que
teve como participante em sua confecção um dos elaboradores da proposta,

1003
sendo sua expertise requisitada pelo governo, após a elaboração do material
que recebemos.
É importante destacarmos, que, os conteúdos contidos nos documentos
oficiais devem ser tomados inicialmente como informações, que serão
convertidas em saber, o processo de análise inicial da documentação é um
desafio metodológico, no sentido de caracterizar os saberes profissionais do
professor. Esse processo é o da sistematização cujo intuito é converter uma
experiência em um objeto de produção de conhecimento, sua finalidade é
objetivar os saberes.
O processo de sistematização pode ser entendido como um movimento
de objetivação, pois o conhecimento inerente ao sujeito por intermédio da
sistematização, passa a circular, depois, é apropriado em diversos contexto dos
que foram produzidos antes do processo.

Os saberes na Proposta Curricular de Matemática do estado de São Paulo


A pergunta que deve permear esse tópico é, como estudar à Proposta
Curricular de 1980, tendo como fio condutor os saberes? Para isso, buscaremos
abordar tal problemática, tomando-as como caixa-preta e tendo necessidade de
abrir essa caixa, a abertura significa percorrer etapas anteriores à publicação da
Proposta, nesse processo: entender o que diz à Proposta, o que ela tem de
diferente da anterior, que personagens estão nela envolvidos. O conceito de
“caixa-preta” que utilizamos nessa narrativa, refere-se aos estudos de Valente,
Almeida e Silva (2020):
Nesse sentido, como se mencionou acima, toda proposta
curricular, objeto de análise dos estudos que
empreendemos, deverá ser vista como uma “caixa-preta”
a ser aberta, por mais que haja, como no caso
mencionado da BNCC, uma quantidade enorme de
informações, pareceres, textos com diferentes versões
etc. (VALENTE; ALMEIDA; SILVA, 2020, p.81)

O documento analisado por nós será chamado aqui por “caixa-preta”,


nosso papel será abrir essas caixas, buscando compreensão sobre o movimento
de seu fechamento, em outras palavras, entender quais processos e dinâmicas

1004
foram consolidadas nessa referência curricular. Quando ocorre o movimento de
fechamento da caixa-preta, que entendemos aqui como a oficialização de um
novo documento oficial, com intuito de solidificar os saberes para o ensino e
formação de professores.
Há necessidade de uma operação histórica, no que tange o processo de
abertura dessas caixas, nos cabe pesquisar o passado anterior à publicização
do documento analisado. Como estratégia vislumbrando à abertura das caixas-
pretas remete-nos ao estudo dos personagens, os experts, que foram
convocados pelas autoridades do ensino com intenção de elaborar tais
propostas.

Importância de analisar os saberes em documentos oficiais

Os estudos que são propostos em nosso trabalho baseado no referencial


teórico suíço Hofstetter e Schneuwly (2017), focando nos saberes objetivados,
colocando de forma centralizada por meio de reflexões os saberes formalizados,
com intuito de conceitualizar o seu papel nas profissões do ensino e da
formação. Para os autores os saberes são constituidos de dois saberes, a e para
ensinar, o primeiro são os objetos do seu trabalho oriundo do campo disciplinar,
o segundo refere-se aos saberes que são ferramentas de seu trabalho de origem
do campo da ciência da educação.
Assim nosso objetivo é, investigar os saberes a e para ensinar que são
explicitados na Proposta Curricular de Matemática de 1980, do ensino paulista.

A Proposta Curricular para o Ensino de Matemática

A Proposta Curricular para o ensino de matemática no ensino primário a


ser analisado nessa tese é a sua 5ª edição, cujos elaboradores foram: Antônio
Miguel (Assessor- UNICAMP), Marília Barros de Almeida Toledo (CENP), Mário
Magnusson Jr. (CENP), Nilson José Machado (Assessor- USP), Regina Maria
Pavanello (CENP), Roberto Barbosa (CENP), Ruy Cesar Pietropaolo (CENP),

1005
Suzana Laino Candido (CENP) e Vinício de Macedo Santos (CENP), para situar
o leitor sua 1ª edição aconteceu no ano de 1986.
Cuja elaboração se deu por meio da equipe técnica de matemática da
Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas (CENP) da Secretaria de
Educação do Estado de São Paulo, cuja tinha uma ligação direta concernentes
a discussão acerca da qualidade do ensino oferecido pelas escolas públicas.
O foco da proposta era sobre alguns problemas no tocante ao ensino de
Matemática, diagnosticados por professores, dentre eles, preocupação com
treino de habilidades com a mecanização de algoritmos, com a memorização de
regras e esquemas de resolução de problemas, priorização de uma repetição e
a imitação primando por uma aprendizagem que não se dá por meio da
compreensão de conceitos e de propriedades, centrava-se pelos temas
algébricos deixando de lado tópicos de Geometria, e por último, exigência de
uma formalização precoce e um nível de abstração em desacordo com o
amadurecimento do aluno. Assim, esses professores em constantes
questionamentos dos conteúdos dos livros didáticos vinham se reunindo para
discutir novas propostas para o ensino de Matemática.
Sensibilizada, a Secretaria de Educação de São Paulo, a esse estado de coisas
e tendo em vista a política educacional cuja intenção era desenvolver e propiciar
por meio da CENP condições para que novas Propostas fossem elaboradas.
Acerca das reflexões do papel da Matemática no currículo do 1º grau, no tocante
aos problemas detectados no ensino da disciplina nos níveis mencionados e a
respeito dos Guias Curriculares anteriores, então o processo de elaboração das
Propostas teve seu início, com a equipe de Matemática da CENP, professores
da rede estadual, monitores de Matemática e professores da USP, UNICAMP,
UNESP e PUCSP.
Sua estruturação se deu por meio, os assuntos que a compõem são
distribuídos em três grandes temas: Números, Geometria e Medidas, por
intermédio deles buscava-se atingir as seguintes metas para o ensino de
Matemática na escola básica: as aplicações práticas e o desenvolvimento do
raciocínio lógico.

1006
Tendo como base as oitos séries, estes temas eram tratados
simultaneamente, havendo possibilidades para tal, os assuntos não eram
abordados por si só, mas sim com destaque para as ideias fundamentais, por
exemplo, a ideia de proporcionalidade envolve números (razões, proporções) e
Geometria (semelhança de figuras), logo tais assuntos podem ser desenvolvidos
paralelamente. Com isso, a pretensão sobre o conhecimento matemático no 1º
grau, baseado na proposta, era que os alunos tivessem uma visão global destes
temas. Há também ao final de cada série comentários e observações para
nortear o trabalho do professor.

METODOLÓGIA DA PESQUISA

Trata-se de uma pesquisa documental, onde pretendemos analisar, quais


saberes profissionais formou o professor que ensinou matemática na década de
1980, nossa análise será pautada no documento oficial, no caso, a Proposta
Curricular de Matemática do Estado de São Paulo. Estudaremos como se deu
sua elaboração com foco nos personagens, os intitulados experts. Ressaltamos
que a pesquisa se encontra em andamento, no presente momento estamos
entrevistando os personagens que fizeram parte de sua elaboração, o objeto de
pesquisa será a construção desses saberes a partir de processos e dinâmicas
com base nas experiências docentes.
Para Gil (2008), vale-se de materiais que não receberam ainda um
tratamento analítico, ou que ainda podem ser reelaborados de acordo com os
objetos de pesquisa. Além de analisar os documentos de “primeira-mão”
(documentos de arquivos, igrejas, sindicatos, instituições etc.), existem também
aqueles que já foram processados, mas podem receber outras interpretações,
como relatórios de empresas, tabelas etc.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

1007
Buscou-se com a proposta algumas discussões acerca dos saberes
profissionais do professor que ensina Matemática, num dado tempo, por
intermédio da perspectiva histórica.
Esse texto é parte da tese de doutoramento da autora, que tem como foco
analisar esses saberes na Proposta Curricular de Matemática do estado de São
Paulo da década de 1980. Se apropriando de uma construção teórica, adquirida
por sistematizações de experiências docentes.
Esse trabalho teve como objetivo compreender os saberes que estão nos
documentos oficiais, que normatizam a formação inicial do Professor que ensina
Matemática.
Utilizamos como referencial teórico Hofstetter e Schneuwly (2017), com
estudos centrado nos saberes objetivados, que em síntese refere-se aos
saberes formalizados, não sendo expresso por algo subjetivo, ou ligados a um
contexto, ou uma situação particular do sujeito. É um saber que vive fora do
sujeito, não tendo dificuldade na sua comunicação e utilização, no que pode ser
chamado de um processo de sistematização.
Estudar os saberes profissionais constitutivo da formação e da ação
docente, por intermédio de uma constituição histórica acerca de elementos que
podem nos trazer uma compreensão sobre os aspectos do ensino e da formação
de professores.
E, por último, a pesquisa de cunho histórico que estamos desenvolvendo,
aborda discussões acerca da constituição dos saberes elementares
matemáticos e para o desenvolvimento dos saberes de formação de professores
que ensinam matemática.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BORBA, S.; VALDEMARIN, V.T. A Construção Teórica do Real: uma questão


para a produção do conhecimento em educação. Currículo sem Fronteiras,
v.10, n.2, pp.23-37, jul/dez 2010. ISSN 1645-1384 (online). Disponível em: <
http://www.curriculosemfronteiras.org/vol10iss2articles/borba-valdemarin.pdf>.
Acesso em: 02 de mar. 2021.

1008
GIL, A.C. Como elaborar projetos de pesquisa. 4.ed. São Paulo: Atlas,2008.

HOFSTETTER, R.; VALENTE, W.R. Saberes em (trans)formação tema


central da formação de professores. 1.ed. São Paulo: Livraria da Física,
2017.

HOFSTETTER, R.; SCHNEUWLY, B. Saberes: um tema central para as


profissões do ensino e da formação. In: HOFSTETTER, R; VALENTE,
W.R.(org). Saberes em (trans)formação: tema central da formação de
professores. 1.ed.- São Paulo: Editora Livraria da Física, 2017, p. 113- 172.

VALENTE, W.R.; ALMEIDA, A.F.; SILVA, M.C. Saberes em (Trans)formação e


o papel dos Experts: currículos, ensino de matemática e formação de
professores, 1920-2020. Acta Sci, Canoas, v.22, n.5, p. 65-83, set/out. 2020.
ISSN 2178-7727 (online). Disponível em: <
https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/217026>. Acesso em: 02 de
mar.2021.

VALENTE, W.R. A pesquisa sobre História do Saber Profissional do Professor


que Ensina Matemática: Interrogações Metodológicas. Revista Paradigma
(Edición Cuadragésimo Aniversário: 1980-2020), v.XLI, p. 900-911,
jun.2020. Disponível em:
<http://revistaparadigma.online/ojs/index.php/paradigma/article/view/827/817>.
Acesso em: 02 de mar.2021.

1009
1010
“Mirifici Logarithmorum Canonis Constructio” de Napier: Uma
descrição inicial

Vitor Eduardo da Silva Fonseca312


Luís Gustavo Sampaio Bueno313
Mariana Feiteiro Cavalari314

RESUMO
Em 1614, John Napier publicou a obra Mirifici Logarithmorum Canonis Descriptio, na
qual apresentava seus logaritmos. Este trabalho foi rapidamente difundido e Napier
iniciou a elaboração de outra obra na qual apresentaria como foram calculados seus
logartimos. Entretanto, Napier faleceu em 1617 antes de finalizar tal material e coube
ao seu filho Robert Napier concluir este trabalho. Assim, a obra intitulada “Mirifici
Logarithmorum Canonis Constructio” (conhecida como Constructio) foi publicada, em
latim, em 1619. Neste contexto, entendemos que esta obra é relevante para a história
da Matemática, pois por meio dela é possível entender o raciocínio utilizado por Napier
para a construção de suas tabelas Logarítmicas, assim, realizamos o presente estudo
que busca descrever, de forma sucinta, a obra Constructio de autoria de Napier. Para
tanto, tomamos como base a primeira tradução desta obra para o inglês realizada por
William Rae Macdonald em 1889 e consultamos a obra Constructio, em Latim publicada
em 1619, na qual são apresentados comentários em inglês elaborados por E. Tomash
e M. R. Williams. Nesta descrição inicial da obra Constructio apresentamos sua estrutura
e destacamos sete proposições.

Palavras-chave: História dos Logaritmos. John Napier. Estudo da tradução do


original. Obra Constructio.

INTRODUÇÃO:

A história dos Logaritmos teve início com o estabelecimento de relações


entre os entes matemáticos que, atualmente denominamos como progressões

312
Discente do curso de Matemática da UNIFEI. vitor_eduardo_85@hotmail.com.

313
Discente do curso de Matemática da UNIFEI. lgustavo_bueno@unifei.edu.br.

314
Docente do Instituto de Matemática e Computação da UNIFEI. mfcavalari@unifei.edu.br.

1011
aritméticas e geométricas. Embora esta ideia remonte da antiguidade, os
trabalhos decisivos para o início dos logaritmos foram realizados muito séculos
depois por Jobst Bürgi (1552 - 1632), Henry Brigss (1561 - 1631) e John Napier
(1550 - 1617) (WUSSING, 1989).
Napier, em 1614, publicou a obra Mirifici Logarithmorum Canonis
Descriptio, (conhecida como Descriptio) na qual apresentava seus logaritmos e
“[...] sua intenção era publicar um livro descrevendo como eles haviam sido
calculados”315 (TOMASH, WILLIAMS, 2009, p. 02, tradução nossa). Entretanto,
Napier faleceu em 1617 antes de finalizar a obra na qual descreveria a
construção dos seus logaritmos, de modo que seu filho Robert Napier se dedicou
a finalizá-la e a publicá-la. Desta forma, a obra “Mirifici Logarithmorum Canonis
Constructio” (conhecida como Constructio) foi publicada em latim em 1619.

Enquanto o Descriptio [obra publicada em 1614] foi reeditado


muitas vezes, o Constructio [obra póstuma publicada em 1619],
devido a ausência de tabelas logarítmicas, era de interesse
apenas de matemáticos e de pessoas que se dedicavam a
construir tábuas e então houve menos atenção a esta obra. O
Descriptio foi traduzido para muitas línguas quase que
imediatamente, enquanto o Constructio teve que esperar até
1889 quando uma versão inglesa foi produzida (TOMASH,
WILLIAMS, 2009, p. 02, tradução nossa)316

Esta primeira tradução da obra Constructio do latim para o inglês, de


acordo com os referidos autores, fora realizada por William Rae Macdonald
(1844 - 1924) e intitulada “The Construction of the Wonderful Canon of
Logarithms”.
Neste contexto, entendemos que a obra Constructio é relevante para a
história da Matemática, pois por meio dela é possível entender a ideia de

315
Oferecemos ao leitor o trecho original “[...] his intention was to publish a book describing how
they had been calculated.”
316
Oferecemos ao leitor o trecho original: “While the Descriptio was reprinted many times, the
Constructio, lacking any tables of logarithms, was of interest only to mathematicians and table
makers and thus had far less attention paid to it. The Descriptio was translated into other
languages almost as soon as it appeared, while the Constructio had to wait until 1889 before an
English version was produced [...]”

1012
logaritmo elaborada por Napier e o raciocínio utilizado por ele para a construção
de suas tabelas Logarítmicas, assim, realizamos este estudo que busca
descrever, de forma sucinta, a obra Constructio de autoria de Napier.
Para tanto, tomamos como base a primeira tradução desta obra para o
inglês realizada por Macdonald. Já a obra Constructio, em Latim publicada em
1619, na qual são apresentados comentários em inglês elaborados por Tomash
e Williams317 foi utilizada para compreender, sobretudo, aspectos que foram
incluídos na tradução e algumas proposições.
Para apresentação dos resultados deste estudo inicial, dividimos o
presente trabalho em duas partes, sendo que na primeira apresentamos dados
biográficos de John Napier, para situar a elaboração da obra a ser descrita e,
posteriormente, na segunda parte apresentamos uma breve descrição da obra.

JOHN NAPIER E OS LOGARITMOS

John Napier nasceu, em uma família nobre, em Edimburgo, em 1550, na


Escócia e viveu a maior parte da sua vida na luxuosa propriedade de sua família.
Estudou em St. Andrews e, possivelmente, em países da Europa continental
(O'CONNOR, ROBERTSON, 1998).
De acordo com Macdonald (1889), em 1571, Napier retornou a Escócia
e, casou-se pela primeira vez, nesta década ele teve dois filhos e ficou viúvo.
Posteriormente, Napier se casou novamente e teve mais dez filhos, sendo um
destes Robert Napier.
Embora Napier seja mais conhecido por suas obras na área de
matemática, em especial, com relação aos logaritmos, no período que estava

317
A localização destas duas obras foi realizada pelo primeiro autor durante sua Iniciação
Científica intitulada “Contribuições da História da Matemática para o ensino de Logaritmos”. Após
a localização destas obras, decidimos realizar um estudo especificamente voltado a elas, que se
refere ao presente estudo.

1013
vivo, ele era famoso por seus estudos sobre teologia e se interessava por
questões políticas.
Em 1593, publicou um livro no qual afirmava que o papa era anticristo e
o que o fim do mundo ocorreria entre os anos 1688 e 1700, esta obra, de acordo
com Eves (2011, p. 342), “[...] atingiu 21 edições, pelo menos dez ainda em vida
do autor, e Napier acreditava piamente que sua reputação com a posteridade
repousaria sobre esse livro”. Além disso, Napier imaginou a possibilidade de
criação de algumas máquinas de guerra, que vieram a se concretizar na Primeira
Guerra Mundial (EVES, 2011).
Na área da Matemática, foi o principal responsável por introduzir a
notação de frações decimais (KATZ, 2009) e inventou o instrumento conhecido
como Barras ou Ossos de Napier, que são pequenas barras que auxiliariam a
realização de operações.
Além disto, Napier é amplamente conhecido pelos seus trabalhos acerca
dos logaritmos. O conceito de logaritmo fora elaborado com o intuito de
simplificar e facilitar os cálculos com números grandes, em especial ligados a
cálculos astronômicos. Este objetivo acabou se concretizando, afinal para o
estudioso Pierre-Simon Laplace (1749 – 1827) o logaritmo “[...] ao encurtar o
trabalho, dobrou a vida do astrônomo”. (O'CONNOR, ROBERTSON, 1998,
documento online sem página).
A primeira obra de Napier sobre os logaritmos, conforme já explicitado,
foi Descriptio e após a publicação desta, Napier foi procurado por Henry Briggs
que propôs uma nova tábua de logaritmos, que utilizasse a base 10, pois esta
seria mais conveniente para os cálculos. Devido à idade avançada, Napier não
pôde se dedicar a este trabalho, de modo que estas tabelas foram publicadas
por Briggs em 1624 (EVES, 2011).
Enquanto produzia o seu segundo livro sobre logaritmos, Constructio,
Napier faleceu em 1617, na Escócia. Conforme já apontado, esta obra foi
finalizada e publicada em 1619 por seu filho Robert Napier e sua primeira
tradução para o inglês, foi divulgada apenas em 1889 por William Rae

1014
Macdonald. Destacamos que é esta obra que se configura como foco de nosso
estudo.

FIGURA 1: JOHN NAPIER FIGURA 2: CONSTRUCTIO

Fonte: O'Connor e Robertson,1998, Fonte: Napier, 1619, página de rosto.


documento online sem página.
UMA BREVE DESCRIÇÃO DA OBRA “MIRIFICI LOGARITHMORUM
CANONIS CONSTRUCTIO”

A descrição desta obra, conforme já indicado, foi realizada tendo como


base a sua primeira tradução para o inglês realizada por William Rae Macdonald
e publicada em 1889.
Encontramos, ao longo desta investigação, poucas informações relativas
a William Rae Macdonald, localizamos informações que indicam que ele era um
antiquário escocês que nasceu em 1844 e faleceu 1924.
Esta tradução para o inglês tem o título que pode ser traduzido como “A
Construção de um Maravilhoso Cânon de Logaritmos” é constituída por 165
páginas, distribuídas em 4 grandes partes, a saber: “Introdução”, “A Construção
dos Logaritmos, por John Napier”; “Notas do Tradutor” e “Um Catálogo dos
Trabalhos de John Napier”, como pode ser observado nas Figuras 03 e 04:

FIGURA 3: PÁGINA DE ROSTO FIGURA 4: SUMÁRIO DO


DO “THE CONSTRUCTION” “THE CONSTRUCTION”

1015
Fonte: Napier (1889) Fonte: Napier (1889)

Ressaltamos que a obra de Napier, publicada em latim em 1619, é


referente a parte intitulada “A construção dos logaritmos, por John Napier”, sendo
assim, a introdução, as notas do tradutor e o catálogo de trabalhos de John
Napier foram acrescentadas pelo tradutor.
Na Introdução são apresentadas algumas informações acerca da
biografia de John Napier e, também, sobre a forma que a obra foi organizada e
como foi buscado manter a fidelidade à obra original durante o processo de
tradução.
A parte intitulada “A Construção dos Logaritmos, por John Napier”318 se
inicia com a tradução do prefácio da obra original escrito por Robert Napier, que
pode ser traduzido como “Para o Leitor estudioso em Matemática,
saudações”319. Neste prefácio, Robert destaca aspectos da vida de seu pai,
lamentando sua morte, bem como ressaltando as contribuições de Henry Briggs
para o desenvolvimento dos Logaritmos. Salienta a importância de certas
proposições na resolução de triângulos esféricos, além de especificar que esses
e outros serão tratados em um Apêndice da obra. Robert Napier destaca, ainda,

318
Em inglês: “The Construction of Logarithms, by John Napier”
319
Oferecemos o título em inglês: “To The Reader Studious of The Mathematics, Greeting”.

1016
que Napier não chegou a provar as proposições porque havia tido uma morte
precipitada.
Posteriormente a este prefácio, são apresentadas cinco seções, sendo
uma dedicada as construções das tabelas logarítmicas, intitulada “A
Construção”; uma sobre observações acerca do Apêndice de Briggs; uma
exclusiva a proposições Trigonométricas e, por fim, uma dedicada as notas de
Briggs sobre proposições Trigonométricas.
Daremos enfoque a seção intitulada “A construção”, que efetivamente
apresenta as proposições publicadas na obra original publicada em latim.
Esta seção é constituída por 59 proposições e 09 exemplos. Napier
desejava apresentar na obra, formas de construir tabelas Logarítmicas, que de
acordo com ele, na proposição 1, seriam tabelas que podem ser usadas para
realizar cálculos complexos de dimensão geométrica e movimentos no espaço
através de cálculos simples.
Durante o desenvolvimento da obra, são construídas ao todo, três
tabelas “auxiliares”, que de acordo a proposição 21, terão informações
suficientes para a construção da tabela logarítmica que será descrita
posteriormente na proposição 59 da obra.
No presente trabalho serão apresentadas as proposições 2, 13, 23, 24,
25 e 26 que em nosso entendimento, permitem entender a definição de
Logaritmo na perspectiva de Napier.
A proposição 2 é enunciada como: “Das progressões contínuas, uma
progressão aritmética é aquela que prossegue em intervalos iguais; uma
geométrica é a que avança por intervalos desiguais e proporcionalmente
crescente ou decrescente”320.
Nesta proposição, Napier apresenta características de uma Progressão
Aritmética e Progressão Geométrica, possibilitando que o leitor possa construí-
las. Posteriormente, com relação a construção destas progressões, a proposição

320
Oferecemos ao leitor o trecho da obra: “Of continuous progressions, an arithmetical is one
which proceeds by equal intervals; a geometrical, one which advances by unequal and
proportionally increasing or decreasing intervals.” (NAPIER, 1889, p. 08, tradução Macdonald)

1017
13 indica: “A construção de uma progressão aritmética é fácil, não é assim,
entretanto, com uma progressão geométrica”321.
Podemos assim, identificar que para Napier seria mais fácil o manuseio
de uma progressão aritmética, em relação ao manuseio de progressões
geométricas, evidenciando a ideia de que seria mais simples operar com somas
que com multiplicações. Esta ideia reforça o entendimento de que os logaritmos
foram pensados de modo a facilitar cálculos.
Nas proposições 23, 24 e 25, Napier prepara o leitor para o entendimento
da proposição 26. A seguir apresentamos a tradução do enunciado dessas três
proposições: A proposição 23 indica que: “Aumentar aritmeticamente é, em
tempos iguais, ser aumentado sempre por uma mesma quantidade” 322; a 24 por
sua vez: “Diminuir geometricamente é isto, que em tempos iguais, primeiro toda
a quantidade depois cada um de seus sucessivos remanescentes é diminuído,
sempre por uma parte proporcionalmente igual” 323; e por fim, a 25: indica que
“[...] um ponto que se move geometricamente se aproximando de um ponto fixo
tem sua velocidade proporcional à sua distância do ponto fixo” 324.
Destacamos que de acordo com Soares (2011, p. 39), “O logaritmo
definido por Napier é bem diferente daquele que é usado hoje, principalmente no
estudo de função”. A sua ideia é apresentada na proposição 26 que é enunciada
como: “O logaritmo de um determinado seno é o número que aumentou
aritmeticamente com a mesma velocidade que o raio começou a diminuir

321
Oferecemos ao leitor o trecho da obra: “The construction of every arithmetical progression is
easy; not so, however, of every geometrical progression.” (NAPIER, 1889, p. 11, tradução
Macdonald).
322
Oferecemos ao leitor o trecho da obra: “To increase arithmetically is, in equal times, to be
augmented by a quantity always the same.” (NAPIER, 1889, p. 17, tradução Macdonald).
323
Oferecemos ao leitor o trecho da obra: “To decrease geometrically is this, that in equal times,
first the whole quantity then each of its successive remainders is diminished, always by a like
proportional part.” (NAPIER, 1889, p. 17, tradução Macdonald).
324
Oferecemos ao leitor o trecho da obra: “Whence a geometrically moving point approaching a
fixed one has its velocities proportionate to its distances from the fixed one.” (NAPIER, 1889, p.
18, tradução Macdonald).

1018
geometricamente, e ao mesmo tempo que o raio diminuiu para o seno dado” 325.
Posteriormente a esta proposição, o autor apresenta uma ilustração, a qual
apresentamos na figura 5 e uma explicação que descreveremos utilizando uma
linguagem atual.

FIGURA 5: ILUSTRAÇÃO PROPOSIÇÃO 26

Fonte: Napier (1889, p. 19)

Nesta ilustração, para Napier, 𝑻𝑺 é um segmento de medida igual ao


raio, 𝒅𝑺 é o seno e 𝒃𝒊 uma reta. O ponto 𝒈 se move geometricamente de 𝑻 para
𝒅 e 𝒂 parte de 𝒃 em direção a 𝒊 se movendo aritmeticamente, com a mesma
velocidade de 𝒈 quando tinha atingido o ponto 𝑻. Utilizando o mesmo tempo que
𝒈 percorre 𝑻𝑺, 𝒂 sai de 𝒃 e atinge um ponto, que passa a ser chamado de 𝒄. A
medida de 𝒃𝒄 é o logaritmo do seno 𝒅𝑺.
Posteriormente a esta proposição, Napier apresenta outras, relativas as
tabelas “auxiliares” e finaliza a obra com a proposição 59: “Para formar uma
tabela logarítmica” 326, na qual, ao longo de mais de duas páginas, o autor explica
de modo detalhado todo o procedimento de construção de uma tabela de
logaritmos utilizando as informações de todas as 58 proposições anteriores.
Apesar de considerarmos, por convenção, que a obra possui 59
proposições, após finalizá-las, Napier enuncia uma proposição de número 60, na

325
Oferecemos ao leitor o trecho da obra: “The logarithm of a given sine is that number which
has increased arithmetically with the same velocity throughout as that with which radius began to
decrease geometrically, and in the same time as radius has decreased to the given sine.”
(NAPIER, 1889, p. 19, tradução Macdonald).
326
Oferecemos ao leitor o trecho da obra: “To form a logarithmic table” (NAPIER, 1889, p. 43,
tradução Macdonald).

1019
qual apresenta uma segunda maneira de construir uma tabela de logaritmos,
esta não foi considerada na contagem das proposições justamente por não
apresentar um resultado distinto, mas sim uma reformulação da proposição
anterior.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho objetivou fazer uma breve descrição da obra


“Contructio”, baseada, sobretudo, na sua primeira tradução para o inglês datada
de 1889. Identificamos que por meio desta obra é possível que o leitor entenda
a ideia de logaritmo utilizada por Napier e o raciocínio utilizado para a construção
de suas tabelas logarítmicas.
Para finalizar, destacamos que este se configura como um estudo inicial
da obra que deverá ser aprofundado pelos autores posteriormente, em especial
com relação a proposição 59.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

EVES, H. Introdução à História da Matemática. Tradução Hygino H


Domingues. 5ª ed. Campinas: Ed. da UNICAMP, 2004.

KATZ, V. J. A History of Mathematics: an Introduction. 3ª Ed. Columbia, USA:


Editora Pearson Education, Inc., 2009.

NAPIER, J. Mirifici Logarithmorum Canonis Constructio. 1619. Disponível


em: <http://profmarino.it/Nepero/ConstructioVersioneConNoteInInglese.pdf >.
Acesso em: 15 out. 2020.

O’CONNER, J. J.; ROBERTSON, E. F. John Napier. Disponível em:


<https://mathshistory.st-andrews.ac.uk/Biographies/Napier/>. Acesso em: 27
out. 2020.

SOARES, E. C. Uma investigação histórica sobre os logaritmos com


sugestões didáticas para a sala de aula. 2011. 142 f. Dissertação (Mestrado

1020
em Ensino de Ciências Naturais e Matemática) - Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, Natal, 2011.
______. The Construction of the Wonderful Canon of Logarithms.
Tradução: William Rae Macdonald, 1889. Disponível em:
<http://profmarino.it/Nepero/ConstructioEnglishVersion.pdf>. Acesso em: 16
out. 2020.

TOMASH, E; WILLIAMS, M. W. Comentários em inglês na obra “Mirifici


Logarithmorum Canonis Constructio” em latim. Disponível em:
<http://profmarino.it/Nepero/ConstructioVersioneConNoteInInglese.pdf>.
Acesso em: 15 out. 2020.

WUSSING, H. Lecciones de Historia de las matemáticas. Tradução: Elena


Ausejo, José Luis Escorihuela, Mariano Hormigón, Daria Kara-Murzá e Ana
Millán. Madrid: Siglo XXI de España Editores, 1998.

1021
A HISTÓRIA DA MATEMÁTICA NA REGIÃO DA MESOPOTÂMIA

Helves Belmiro da Silveira327


Jairomar de Araújo Sobrinho 328
Jurandi Bastos Alves 329

RESUMO
Tendo em vista que a história da matemática como estratégia de abordagem e
motivação para o ensino dos conteúdos matemáticos, pesquisa-se sobre a história da
matemática na região da Mesopotâmia (atual Iraque), a fim de relatar a importância da
história da matemática como meio facilitador, bem como, apresentar uma estratégia de
ensino. Para tanto, é necessário, apresentar um contexto histórico relacionando-o ao
cotidiano do aluno. Realiza-se, então, uma pesquisa bibliográfica com uma abordagem
qualitativa. Diante disso, verifica-se que essa pesquisa demonstrou que o estudo da
História da Matemática além de auxiliar o professor numa conjuntura cultural pode ser
uma ferramenta valiosa para ensina matemática, ela pode despertar o interesse por
parte dos alunos, estimular sua curiosidade e garantir um aprendizado descontraído,
além disso, utilizar a Historia da Matemática como recurso metodológico nas aulas, pode
muito ajudar o professor a dinamizar seu trabalho. Mas o profissional da educação
precisa-se apropriar desse conhecimento.

Palavras-chave: História da Matemática. Matemática Mesopotâmica. Ensino.


Aprendizagem.

INTRODUÇÃO

327
Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA). helves123@hotmail.com
328
Universidade Federal do Tocantins (UFT). jairo.matematico@gmail.com
329
Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA). bastosjurandi@gmail.com

1022
Essa pesquisa foi gerada a partir da vontade de desmistificar a
matemática na região da Mesopotâmia. Cada território tem a sua diversidade
cultural, tem a sua história, isso é fato. Conhecer a diversidade cultural de um
povo torna-se primordial para uma relação cordial entre ambas as partes, em se
tratando de matemática não são diferentes. Compreender a história da
matemática desde os seus primórdios muito pode contribuir no processo de
ensino aprendizagem, proporcionar ao aluno uma compreensão da matemática
através de sua história é garantia de um aprendizado significativo. Isso tornaria
o fazer matemático mais atrativo.
Ainda segundo Cajori (2007), a história da Matemática é um imenso
portal pelas quais a ótica filosófica olha os períodos passados e busca o
desenvolvimento intelectual.
A matemática surgiu, quando o homem procurava conter os efeitos das
inundações, construíam casacos para se aquecer do frio, construía utensílios
domésticos, essa luta era para garantir a continuidade da espécie humana.
Compreender o contexto histórico é entender a geratriz dos fundamentos
matemáticos criados desde primórdios até nossos dias. Isso é entender a origem
de todas as pedras desse enigmático “quebra cabeça” denominada matemática.
O presente trabalho é resultado de uma pesquisa bibliográfica realizada
sobre livros, trabalhos de pesquisas em História da Matemática. Esse tipo de
pesquisa geralmente se apropria de trabalhos disponíveis na internet: livros,
artigos e etc. Segundo Guedes (2000), a pesquisa bibliográfica ainda é muito
utilizada para aumentar a reflexão existente em determinada área de
conhecimento.
Esses trabalhos contribuem para o aperfeiçoamento cientifico dos
pesquisadores e contribuem para os conhecimentos teóricos da pesquisa,
possibilitando trabalhos originais. A História da Matemática estimula a
curiosidade do aluno e responde alguns de seus questionamentos, é nesse
contexto que a História da Matemática deixa de ser um recurso apenas para
informar, ela possibilitar através do esclarecimento histórico uma metodologia
diferente para o ensino de matemática. O referido texto tem como objetivo

1023
demonstrar a importância da Historia da Matemática Mesopotâmica e suas
contribuições para a humanidade quanto ao processo de ensino-aprendizagem
para futuras gerações, podendo ainda ser utilizado por alunos, professores e a
quem tiver interesse.

MATEMÁTICA MESOPOTÂMICA

A Babilônia foi uma das mais importantes cidades da Mesopotâmia, os


babilônios se estabeleceram no sul da Mesopotâmia, próximo ao rio Eufrates,
entre 1900 a.C – 1600 a.C. Foi nessa região que surgiram as primeiras cidades,
a cerca de 4 mil anos, elas se tornaram complexas e os lideres religiosos já não
tinham tanta confiança na memória para registrar o pagamento a comerciantes,
empréstimos de animais. Nesse contexto os sumérios criaram a escrita
cuneiforme. Percebe-se que, a finalidade da escrita cuneiforme era atender os
interesses matemáticos, talvez esse seja um dos fatos pelos quais se acredita
que a matemática teve a sua origem as margens do rio Tigre e Eufrates na
Mesopotâmia.
Segundo Aragão (2009), as pesquisas arqueológicas relatam que a
matemática surgiu na Mesopotâmia, entre o rio Tigre e Eufrates, região em que
habitaram sumérios e babilônios, os criadores da escrita cuneiforme. O
conhecimento matemático dos babilônios está registrado em tabletes de argila
nos quais são impressas marcas na forma de cunha, daí serem chamados
caracteres cuneiformes. (UBIRATAN D’AMBROSIO, 2012, p. 33).

FIGURA 1: ESCRITA CUNEIFORME.

1024
Fonte: Jamdat Nasr, Uruk III style, (3100-2900).

A acessão babilônica durante a dinastia Hamurabi colocou a babilônia


como capital da Mesopotâmia, assim a babilônia se transforma no principal
centro comercial da Mesopotâmia, é nesse contexto que emerge a Aritmética
dos babilônicos, de base 10 e 60. Os babilônicos foram os primeiros a utilizarem
as frações inteiras, conheciam as relações pitagóricas, sabiam calcular a raiz
quadrada, praticavam a álgebra, geraram um sistema de medida, conceberam o
calendário com 360 dias, produziram o relógio solar, criaram o Código de
Hamurabi.
Os babilônios tinham um modelo urbano invejável, casas planejadas,
sistema de irrigação, era uma sociedade extremamente desenvolvida para
aquele período.
Segundo D’Ambrosio (2012) os primeiros sistemas numéricos
posicionais da humanidade surgiram na mesopotâmia as margens do rio Tigre e
Eufrates, foi uma criação dos babilônios. Esses povos dominavam as operações
básicas com cálculos.

Os babilônios conheciam as séries geométricas e aritméticas e


tinham já alguns conhecimentos do nível das proporções. O seu
conhecimento de geometria parece ter sido confinado a regras
isoladas, úteis na Astronomia e na construção. Construíram

1025
canais eficientes para o controle das inundações, e foi pelos
conhecimentos sobre geometria Aplicada que este povo pôde
construir a arquitetura espetacular do Palácio de Bel, com os
jardins suspensos. (ARAGÃO, 2009, p. 22)

Para Feitosa (2000), os babilônios eram apaixonados pela a astronomia,


fato esse que muito contribuiu com o desenvolvimento da matemática, mas a
necessidade em solucionar problemas do cotidiano contribuiu significativamente
no aperfeiçoamento matemático e garantiu melhores condições de vida ao
homem da antiguidade.
Segundo Boyer (2012), pesquisas arqueológicas descobriram inúmeras
fontes históricas relacionadas à Matemática Babilônica. Esses registros muito
contribuíram na eficácia da computação, os matemáticos mesopotâmicos foram
habilidosos, desenvolveram o sistema de numeração e foram precisos com os
algoritmos.

FIGURA 2: SISTEMA ALTAMENTE RADICAL.

Fonte: Cajori, (2007).

Segundo Cajori (2007), uma série de ícones sem fim diferentes foi
atendida pelos babilônios, por um eficiente dispositivo, o sistema altamente
racional, que dava condições para que os cálculos fossem feitos com facilidades,

1026
o que outros povos não conseguiam. Nesse sistema um número limitado sinal é
suficiente para representar números de qualquer tamanho. Entende assim, esse
sistema demonstram os números, o primeiro demonstra unidades e o outro,
dezenas. Para Boyer e Merzebach (2012), a escrita cuneiforme babilônica, para
os inteiros menores, tinha os mesmos traços da redação egípcia, com repetições
de signos para unidades e dezenas.

Em 1889, foram encontrados em Nuffar cerca de cinquenta mil


bronzes com tabelas de multiplicação dos números inteiros até
o número 180.000. Foram também encontradas tabelas de
divisão em caracteres cuneiforme até o número 12.960. Estes
povos chegaram a escrever números enormes, tal como o que
chegou até nos, 195.955.500.000.000. (ARAGÃO, 2009, p. 21).

O sistema sexagesimal é o sistema de numeração babilônica de 60


algarismos de 0 a 59, como é visto na figura a seguir, é importante frisar que
esse sistema apesar de poucos elementos era um emaranhado de caracteres
que se repetiam continuamente.

FIGURA 3: SISTEMA SEXAGESIMAL.

Fonte: Wikipédia, (2020).

1027
Os babilônicos tiveram grande relevância no desenvolvimento da
matemática. É notório que essa matemática primaria praticada pelos
mesopotâmicos foi primordial para o home daquele período. Conhecimentos
matemáticos garantiram melhores condições à espécie humana. O comercio
mesopotâmico foi o grande responsável pela criação de uma escrita e a difusão
dos conhecimentos matemáticos. Ainda hoje os conhecimentos matemáticos
produzidos pelos mesopotâmicos são utilizados pelo o homem contemporâneo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARAGÃO, MARIA JOSÉ, 1948 - História da Matemática / MARIA JOSÉ


ARAGÃO. – Rio de Janeiro: Interciência, 2009. 212 p.

BOYER, C.B; MERZBACH, UTA, C, História da Matemática. São Paulo:


Bencher, 2012.

CAJORI, FLORIAN, História da Matemática. Rio de Janeiro: Editora Ciência


Moderna Ltda. 2007.

D’AMBROSIO, Ubiratan, 1932 – Educação Matematica: Da teoria a


pratica/Ubiratam D’ambrosio. – 23ª ed. – Campins, SP, Papirus, 2012.

FEITOSA, H. de A. Quanto um deus está de outro deus? Elementos de


matemática na Babilônia. Mimesis, Bauru, v.21, n. 1,pa. 25-38, 2000.

GUEDES, E, M. (2000). Curso de metodologia cientifica. Curitiba: HD Livro


Editora.

1028
A MOBILIZAÇÃO DE ALGUNS ASPECTOS DE USO DO BÁCULO DE
PETRUS RAMUS EXPLORADO EM UM CURSO DE EXTENSÃO
UNIVERSITÁRIA

Francisco Hemerson Brito da Silva330


Antonia Naiara de Sousa Batista331

RESUMO
A necessidade da implementação de estratégias no ensino de matemática estão sendo
cada vez mais recorrentes, mediante as exigências de entidades em esferas municipais
e estaduais. Sabendo disso, o professor de matemática precisa se apropriar de variados
materiais didáticos, procurando resolver tal problemática. Assim, temos o surgimento de
muitas vertentes de estudo que contemplam a abordagem citada, uma delas é a
construção de uma interface entre história e ensino de matemática, que pode ser
direcionada para o corpo docente. Tal relação visa desenvolver algumas estratégias de
ensino, bem como atividades que assegurem uma proposta didático-pedagógica, por
meio da utilização de fontes antigas, baseada em considerações historiográficas
atualizadas. Com isso, este estudo objetiva expor algumas colocações dos graduandos
de licenciatura em matemática, da Universidade Estadual do Ceará, acerca das
condições de uso do báculo de Petrus Ramus (1515–1572), contido no tratado Via regia
ad geometriam, que foi mobilizado em um curso de extensão universitária. Para isso,
fizemos a utilização do levantamento de uma atividade realizada no curso, que, a partir
de uma abordagem qualitativa, permitiu-nos chegar a resultados relevantes. Nesse
sentido, por meio das discussões promovidas e das atividades realizadas, alguns
elementos de postura corporal propícios ao uso do instrumento foram elencados, como
também o destaque a elementos matemáticos que podem ser direcionados ao ensino
de matemática. Dessa forma, observamos que o curso proporcionou uma vivência que
interferiu de maneira positiva na formação dos futuros docentes, dado que demos
indícios das possibilidades de exploração de uma fonte histórica voltada para algum
propósito.

Palavras-chave: Báculo. Via regia ad geometriam. Elementos matemáticos.


História da matemática. Formação inicial de professores.

330
Universidade Estadual do Ceará (UECE). francisco.hemerson@aluno.uece.br.
331
Universidade Estadual do Ceará (UECE). naiara.batista@uece.br.

1029
INTRODUÇÃO:

A elaboração de novas abordagens no ensino é algo bastante relevante


para o professor de matemática, pois influencia diretamente na construção do
seu perfil profissional. Assim, tal abordagem já deve ser explorada em sua
formação inicial, levando o docente a formular sua própria didática, visando
edificar concepções, valores, entres outros aspectos que advenham de alguns
instrumentos metodológicos.
Entre os recursos que a história da matemática dispõe, encontramos os
documentos históricos e os instrumentos matemáticos providos pela história da
matemática, que, após um tratamento didático feito a partir de uma
intencionalidade, tornam-se viáveis ao corpo magisterial. Nesse sentido, temos
em vista a execução de uma articulação entre dois campos de conhecimentos,
que denominamos de interface entre história e ensino de matemática, em que a
mesma permite um diálogo entre o educador e o pesquisador matemático,
gerando diversas contribuições (PEREIRA; SAITO, 2019).
Ao se realizar o estudo de alguns documentos antigos, a fim de
direcioná-los a propósitos didáticos, é necessário um planejamento minucioso,
bem como o tracejar de algumas metas, para que sejam voltados à elaboração
de atividades. Além disso, é indispensável que o docente se aproprie e veja as
potencialidades que tal recurso pode oferecer, para que não faça uso indevido,
já que a fonte histórica pode ser

uma ferramenta que poderá ser utilizada em conjunto com a aula


expositiva. Seu uso não está agregado a fornecer datas e fatos
ocorridos no decorrer da história de certo conceito matemático,
mas sim mostrar ao aluno como este originou-se, trabalhando
com a matemática da época (SILVA; NASCIMENTO; PEREIRA,
2018, p. 28).

1030
À vista disso, obtemos que diversificados produtos são gerados, como
atividades, metodologias de ensino, propostas de aula, entre outros, que
precisam de uma aplicabilidade para que as mesmas sejam validadas, a fim de
identificar suas vantagens, como também as desvantagens. Portanto,
ministramos um curso de extensão universitária, realizado de maneira remota
com os licenciandos em matemática, da Universidade Estadual do Ceará
(UECE), visando construir o instrumento báculo para a exploração de conceitos
matemáticos.
O báculo de Petrus Ramus se encontra descrito no documento histórico
Via regia ad geometriam, de autoria de Petrus Ramus (1515–1572). Esse objeto
era um instrumento agrimensor muito utilizado por algumas profissões no início
da Idade Moderna, em que podemos destacar o arquiteto, o engenheiro, entre
outros. O aparato permitia a esses trabalhadores medirem distâncias celestes e
também terrestres, tais como comprimento, altura e largura.
A versão utilizada do tratado foi a inglesa, publicada e traduzida por
William Bedwell, em 1636, sendo esta uma das amostras disseminada na Idade
Moderna. Segundo Silva e Pereira (2020b), o tratado trazia, em seu escopo,
entes básicos da geometria plana, de modo a direcioná-los para a medição, já
que suas partes se encontram divididas em medidas de segmentos, medidas de
áreas e medidas de volumes.
Com isso, apresentaremos as concepções dos cursistas a respeito das
observações de utilização do báculo de Petrus Ramus, explorado em um curso
de extensão universitária. Ao longo do artigo, serão destacados o percurso
metodológico e algumas informações básicas do curso, resultados dessa
aplicação e seus aspectos conclusivos.

METODOLOGIA

A pesquisa desenvolvida se deu a partir da aplicação de um curso de


extensão universitária, intitulado de “A exploração de recursos didáticos

1031
advindos da história da matemática por meio do Báculo (1636) de Petrus
Ramus”, que foi realizado de forma remota por conta da pandemia da COVID-
19332 e teve como objetivo construir o instrumento báculo, para a exploração de
conhecimentos emergentes no ensino de matemática.
O curso de extensão universitária ficou organizado em quatro etapas, de
forma que pudesse ser contemplado o contexto histórico do instrumento e as
suas especificações. Assim, no primeiro momento da vivência, foram
apresentados aspectos epistemológicos sobre o documento Via regia ad
geometriam e o legado de Petrus Ramus, dando destaque à importância de
ambos para a geometria prática dos séculos XVI e XVII. Na segunda parte,
abordamos o processo de construção do báculo, com base na leitura do excerto
no tratado, a fim de promover uma discussão, entre os participantes, sobre as
orientações dadas por Ramus.
À vista disso, no terceiro tópico, tratamos a respeito das orientações
gerais do uso do báculo, em que é elucidada a maneira correta de
posicionamento do mesmo, para a realização de algumas medidas. Em seguida,
no último módulo, foram debatidas outras condições específicas de uso do
instrumento, que Ramus denomina de “situações de medição”. Tais situações
norteiam o leitor de como fazer medições em problemas envolvendo grandezas
como comprimento, altura ou largura, sendo explorados separadamente.
Assim, tal estudo se configura como uma pesquisa aplicada, pois visa
“gerar conhecimentos para aplicação prática dirigidos à solução de problemas
específicos” (PRODANOV; FREITAS, 2013, p. 51). Com isso, primamos pela
abordagem qualitativa, posto que a mesma dispõe de elementos discursivos, que
podem ser explorados com mais detalhamento ao longo do escrito. Ademais,
segundo Prodanov e Freitas (2013, p. 70), na pesquisa qualitativa, “os
pesquisadores tendem a analisar seus dados indutivamente, [pois] o processo e
seu significado são os focos principais de abordagem”.

332É referente ao vírus respiratório que foi descoberto no final do ano de 2019 e que está
assolando a população mundial.

1032
Com isso, a fim de contemplar os objetivos de nossa investigação,
primamos pelo método descritivo, já que o pesquisador registra e descreve
acontecimentos observados ao longo de uma vivência, sem nenhuma
interferência direta (PRODANOV; FREITAS, 2013). Ainda a esse respeito,
Prodanov e Freitas (2013, p. 52) alegam que tal metodologia visa “descrever as
características de determinada população ou fenômeno ou o estabelecimento de
relações entre variáveis”.
Nessa perspectiva, adotamos alguns procedimentos metodológicos que
nos auxiliaram no recolhimento de alguns dados, como organização, tratamento
e análise dos mesmos. Entre tais estratégias disponíveis, decidimos explorar
métodos do levantamento que foi feito da atividade de um dos módulos do curso,
com o intuito de obter a precisão desejada.
Assim, em uma das etapas, utilizamos o levantamento, já que “esse tipo
de pesquisa ocorre quando envolve a interrogação direta das pessoas cujo
comportamento desejamos conhecer através de algum tipo de questionário”
(PRODANOV; FREITAS, 2013, p. 57). Logo, a técnica permitiu questionar por
meio de um relatório a respeito de questões geradoras em relação a instruções
de uso do instrumento báculo.
A respeito do aporte teórico, destacamos os estudos de Pereira e Saito
(2019), que nos deram a compreensão de como construir uma interface entre
história e ensino de matemática. Atrelado a isso, embasamo-nos nas pesquisas
de Silva, Nascimento e Pereira (2018), que chamam a nossa atenção ao
realizarem tratamentos didáticos em fontes históricas, ambientadas entre os
séculos XVI e XVII.
Destacamos, ainda, como base da pesquisa, o tratado Via regia ad
geometriam, que trazia em sua estrutura conteudista orientações da construção,
uso e procedimentos de medição do instrumento báculo. Concomitante a isso,
os estudos realizados por Silva e Pereira (2020b) serviram como facilitadores na
compressão de aspectos contextuais e matemáticos do documento histórico,
junto ao instrumento.
Logo, enfatizamos que o caminho metodológico seguido foi de extrema

1033
importância, dando-nos uma direção para conseguirmos dar prosseguimento
com as etapas do estudo, com vistas a alcançar os resultados. Além disso,
garantimos que a pesquisa foi alicerçada em recentes investigações, que
possuem uma grande bagagem literária, fornecendo noções relevantes à nossa
perspectiva.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Nesta parte do texto, iremos dar ênfase às colocações feitas pelos


cursistas no relatório desenvolvido ao final do terceiro módulo do curso, que teve
como objetivo geral a compreensão de algumas observações propostas por
Petrus Ramus para a utilização do báculo. Ainda salientamos que, durante o
penúltimo módulo, foram desenvolvidos apenas um relatório, junto ao fórum de
discussão e uma sessão de videoconferência extra, pedida pelos estudantes em
decorrência da última333 que foi realizada. A seguir, daremos algumas noções
iniciais do báculo, destacando sua função, bem como as partes de sua
composição. Na Figura 1, está exposto um esquema do instrumento, enfatizando
suas principais partes.

FIGURA 1: ESQUEMATIZAÇÃO DO BÁCULO E SEUS COMPONENTES

333
Que fora realizada no módulo 2.

1034
Fonte: Pereira e Saito, 2019.

A partir do esquema anterior, salientamos que o báculo possui duas


partes principais que servem como sustentação, sendo elas: o indicador e a
transversal. Junto a esses componentes, temos os cinco tubos, dos quais dois
(o terceiro tubo 334 e o tubo alternado 335 embaixo dele) servem para a
movimentação das hastes do báculo.
Os tubos restantes servem de encaixe nas extremidades das hastes,
sendo o quinto e o quarto tubo acoplados na transversal, bem como o segundo
colocado em uma ponta do indicador. Ainda são fixadas aletas verticais em
quatros tubos, com o intuito de garantir o plano visual 336 que sustenta o
instrumento, dando noção ao usuário da inclinação do mesmo, uma vez que, no
momento da medição, ambas têm que estarem uma mesma altura, paralelas
entre si.
Sabendo disso, a atividade desenvolvida pelos estudantes se deteve em
elencar algumas observações e condicionantes manipulativos de uso do báculo,
baseados no cartão de recurso337, que serviu de auxílio aos cursistas. Como uma
forma de ilustrar as condições de uso que vão ser descritas a seguir e facilitar a
compreensão destas, fizemos a esquematização (Figura 2) do usuário do báculo,
medindo a altura de uma árvore com o instrumento, pois não realizamos
nenhuma medição física.

FIGURA 2: ILUSTRAÇÃO DE UMA MEDIÇÃO DE ALTURA

334 O terceiro tubo serve para a transversal deslizar de um lado para o outro.
335 Já o tubo alternado embaixo dele serve para o indicador deslizar para baixo e para cima.
336 Tal plano visual começa a ser formado a partir do posicionamento na aleta do segundo tubo
em um dos olhos do usuário, que tenha melhor precisão na hora de mirar na grandeza a ser
medida.
337 Um cartão que continha o texto original traduzido, a partir do excerto de Petrus Ramus, com
adaptações necessárias ao entendimento.

1035
Fonte: Elaborada pelos autores.

A partir do esquema da Figura 2 e as premissas que foram destacadas


pelos cursistas, houve uma abordagem de certos componentes físicos do corpo,
que refletem, excepcionalmente, na medição com o báculo. Um desses é com
̅̅̅̅̅), que deve ser de maneira
relação à postura corporal do usuário (segmento 𝑮𝑯
reta com o plano do chão (solo), pois, segundo os cursistas, é importante para o
uso do instrumento, uma vez que o estabiliza sem inclinações para realizar a
medição.
Junto a isso, deram ênfase à mira feita por um dos olhos no objeto
(árvore) ou grandeza a ser medida (altura da árvore), para se ter um melhor foco
e nitidez, já que o campo visual perpassa pelo indicador (plano 𝜷, definido pelos
pontos D, B e C), chegando até o ponto importante da mensuração. Alguns
estudantes julgam que, ainda, é necessário considerar uma distância (segmento
̅̅̅̅) que vai do medidor até o que vai ser medido, assim, o usuário não pode
𝑨𝑩
escolher um espaço nem muito curto e nem longo, devendo ser um afastamento
adequado com condições favoráveis e exequíveis.

1036
Quanto aos condicionantes manipulativos do instrumento, deram
̅̅̅̅) era um fator determinante
indícios de que a haste da transversal (segmento 𝑬𝑭
para o posicionamento, posto que a mesma deve preencher o que vai ser
medido338, podendo ser disposta horizontalmente e verticalmente, influenciando
̅̅̅̅).
diretamente na posição do bastão do indicador (segmento 𝑫𝑰
Também foi explorado a respeito do fio de prumo, em que os cursistas
definiram como um aparato auxiliar, que garantiria, ao medidor, o paralelismo e
a perpendicularidade das hastes do báculo, em relação a grandeza a ser medida.
Em nosso exemplo na Figura 2, temos que a transversal é paralela a altura da
árvore e o indicador é perpendicular a essa mesma altura, podendo acontecer
também o contrário.
Em relação ao posicionamento do usuário, junto ao báculo, foi dado
destaque a algumas maneiras de posição que devem ser obedecidas de acordo
com cada situação. Os alunos indicaram que tanto comprimento quanto altura
possuem três formas de medir, concretizando um tríplice 339 de medição.
Entretanto, ao se referirem à largura, indicaram que só existia uma única forma
de medi-la, senão por duas posições, sendo um caso inusitado.
Apesar de grande parte dos alunos ter identificado os quesitos descritos
precedentemente, outros cursistas enviaram propostas equivocadas que não
corresponderam ao que foi pedido na atividade. Um deles, durante todo o
relatório, procurou descrever apenas as dificuldades encontradas na leitura do
excerto do módulo. Outros participantes tiveram uma fuga por completo,
relatando coisas correspondentes ao módulo posterior.
Assim, percebemos que alguns elementos matemáticos estão presentes
nas orientações de uso do báculo, a partir do que foi elencado pelos cursistas.
Entre eles, destacamos os de perpendicularidade, ângulos na inclinação do
instrumento, posição relativas horizontais e verticais, junto ao paralelismo. Tais

338 Referente ao objeto que está no campo de visão do usuário, em nosso caso, a altura da
árvore.
339 Em relação às três maneiras de medição das grandezas destacadas. Para mais
informações e entendimento dessa denominação, vide Silva e Pereira (2020a).

1037
entes são mobilizados para a medição de grandezas usuais que podem ser
recorrentes ao ensino de matemática, visando suas aplicações práticas com um
planejamento elaborado.
À vista disso, constatamos que o assunto explorado, no decorrer do
módulo, foi de extrema importância, dado que deu aos alunos uma noção inicial
de posturas adotadas na utilização do báculo, contemplando o objetivo geral.
Ademais, observamos que cursistas conseguiram chegar a um consenso em
todas as afirmações postas, fazendo com que os debates da videoconferência
fossem proveitosos e os ajudassem na construção do relatório destinado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo do curso, foi reforçado que as orientações de Petrus Ramus, a


respeito do uso do báculo, são de extrema importância para o manuseio do
mesmo. Tal fator influencia diretamente em seu entendimento, permitindo ao seu
usuário realizar muitas medições a partir de conhecimentos matemáticos, bem
como os condicionantes corporais.
Observamos que a maioria dos alunos conseguiu compreender as
orientações, extraindo variadas concepções relevantes para a medição final com
o instrumento, tornando-os aptos a realizarem o procedimento. Ainda
ressaltamos que os cursistas perceberam a relação existente entre a matemática
do instrumento com as posturas do corpo de seu usuário, tendo a noção de que
pode ser feita uma possível aplicação em sala de aula, contando como mais um
recurso didático para o ensino de matemática.
Também demos destaque às variadas contribuições que o curso pôde
promover aos cursistas, entre elas, o contato preliminar com uma fonte histórica
do século XVII, já que muitos conhecimentos emergiram em relação à escrita e
ao entendimento desse período. Além disso, apresentamos o báculo e sua
matemática, com a possibilidade de seu convertimento em recurso didático, algo
que foi bastante relevante na formação dos licenciandos.

1038
Desse modo, ressaltamos que a interface entre história e ensino de
matemática tem um grande valor para o professor, pois permite que o mesmo
possa ter um contanto com outras práticas que complementem o ensino. Para
mais, proporciona uma mobilização de conceitos da matemática com
conhecimentos práticos, que juntos podem diversificar cada vez mais as
metodologias educacionais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

PEREIRA, Ana Carolina Costa; SAITO, Fumikazu. A reconstrução do Báculo


de Petrus Ramus na interface entre história e ensino de matemática. Revista
Cocar, Belém, v. 13, n. 25, pp. 342-372, 2019.

PRODANOV, Cleber Cristiano; FREITAS, Ernani César de. Metodologia do


Trabalho Científico: Métodos e Técnicas da Pesquisa e do Trabalho
Acadêmico. 2. ed. Novo Hamburgo: Editora Feevale, 2013. 277 p.

SILVA, Francisco Hemerson Brito da; PEREIRA, Ana Carolina Costa.


Explorando as situações de medição de comprimento, altura e largura com o
uso do báculo de Petrus Ramus. Revista Brasileira de História, Educação e
Matemática – HIPÁTIA, São Paulo, v. 5, n.2, p. 398-409, dez. 2020a.

SILVA, Francisco Hemerson Brito da; PEREIRA, Ana Carolina Costa. O legado
de Petrus Ramus e o tratado Via Regia ad Geometriam. Boletim Cearense de
Educação e História da Matemática, Fortaleza, v. 7, n. 20, p. 158-169, 11 jul.
2020b.

SILVA, Isabelle Coelho da; NASCIMENTO, Josenildo Silva do; PEREIRA, Ana
Carolina Costa. Estudando equação do 1o grau por meio do uso de fontes
históricas: o papiro de Rhind. Boletim Cearense de Educação e História da
Matemática, Fortaleza, v. 2, n. 6, p. 37-48, 31 maio 2018.

1039
ALGUNS ASPECTOS GERAIS DO INSTRUMENTO RÉGUA DE
CARPINTEIRO DE LEONARD DIGGES (1520-1559)

Sabrina de Sousa Paulino340


Ana Carolina Costa Pereira341

RESUMO
Nas últimas décadas, pesquisadores brasileiros têm desenvolvido estudos a respeito da
incorporação de documentos originais ao ensino de matemática, como forma de
contribuir com a disseminação de recursos provenientes da história da matemática.
Dentre tais documentos, encontra-se o tratado A Booke Named Tectonicon, escrito e
publicado em Londres, no ano de 1556, pelo inglês Leonard Digges (1520-1559), cuja
temática aborda a construção e manipulação de três instrumentos matemáticos, o
báculo (cross-staffe), a régua de carpinteiro (carpenters ruler) e o esquadro de
carpinteiro (carpenters square). A partir disso, esse estudo tem o objetivo de apresentar
alguns aspectos gerais do instrumento régua de carpinteiro de Leonard Digges, contido
no tratado A Booke Named Tectonicon (1556). Para isso, realizou-se uma pesquisa
qualitativa de cunho documental, apoiada a um estudo bibliográfico em fontes
secundárias, cuja temática está relacionada ao autor e a obra. Com base nisso, foi
possível observar que estão associados ao processo de construção física da régua
conceitos matemáticos que estão presentes até os dias de hoje na educação básica,
como as unidades de medida. Dessa forma, observa-se no processo de elaboração do
instrumento régua de carpinteiro, itens potencialmente didáticos para o ensino de
matemática, principalmente voltados para a incorporação de instrumentos matemáticos
ao ensino.

Palavras-chave: Instrumentos Matemáticos. A Booke Named Tectonicon.


Régua de Carpinteiro.

INTRODUÇÃO
Recentes investigações na área de história da matemática 342 têm
voltado seus focos para o estudo das possíveis potencialidades didáticas
presentes no processo de incorporação de documentos originais ao ensino de

340
Universidade Estadual do Ceará (UECE). sabrina.paulino@aluno.uece.br .
341
Universidade Estadual do Ceará (UECE). carolina.pereira@uece.br .
342 (
PAULINO; ARGEMIRO FILHO; PEREIRA, 2020; PEREIRA e SAITO, 2018; SILVA, 2018).

1040
matemática, como forma de construir uma interface entra a história da
matemática e o ensino. Segundo Pereira e Saito (2019, p.5),

A escolha do documento tem em vista a realização de dois movimentos:


um que busca contextualizar historicamente os conhecimentos
matemáticos nele escritos e outro, revelando o movimento do
pensamento na formação do conceito matemático que se quer abordar,
seja para ensiná-lo, seja para compreendê-lo, no seu processo de
construção para o sujeito.

Nesse sentido, Saito (2015), ainda ressalta que tais documentos, não
são necessariamente apenas textos escritos, mas, monumentos, máquinas,
fotos, instrumentos e etc. A partir disso, a utilização desses artefatos históricos
vem sendo considerada uma grande ferramenta no processo de construção de
uma aliança entre a história e o ensino de matemática.
Dessa forma, nas últimas décadas, tais artefatos históricos têm recebido
cada vez mais atenção por parte de pesquisadores, em especial, para esse
estudo, destacam-se os instrumentos matemáticos, de modo que, tem-se
realizado diversos estudos a respeito dos conhecimentos matemáticos e
relacionados à matemática incorporados a eles (PEREIRA, BATISTA e SILVA,
2017; CASTILLO, 2016; SAITO, 2019).
A esse respeito, Saito (2019, p.4), explica que

[...] um exame minucioso sobre o contexto de sua elaboração tem


revelado interessantes aspectos do “saber-fazer” matemático de uma
época e contribuído para preencher algumas lacunas do processo da
construção do conhecimento matemático nas origens da ciência
moderna. Restituídos à malha histórica, os instrumentos matemáticos e
os seus respectivos tratados, juntamente com outros documentos
dedicados à geometria prática, introduzem novas questões para o
historiador da ciência e da matemática

Dessa forma, muitos desses estudos utilizam como fonte primária,


tratados que foram publicados, em sua maioria, durante os séculos XVI e XVII,
cuja temática está voltada, em particular, para apresentar as formas de construir
e manipular tais instrumentos.
Dentre os documentos escritos com essa finalidade, encontra-se o A
Booke Named Tectonicon (1556), cujos versos além de apresentarem instruções

1041
matemáticas, também apresentam as formas de construção e manipulação de
três instrumentos de medida, a saber, o báculo (cross-staffe), a régua de
carpinteiro (carpenters ruler) e o esquadro de carpinteiro (carpenters squire).
Nesse sentido, esse estudo tem o intuito de apresentar alguns dos
aspectos gerais do instrumento régua de carpinteiro de Leonard Digges (1520-
1559), contido no tratado A Booke Named Tectonicon (1556).

METODOLOGIA
A fim de que o objetivo proposto fosse alcançado, realizou-se uma
tradução e leitura da obra original, A Booke Named Tectonicon (figura 1), escrita
e publicada pela primeira vez em Londres, no ano de 1556 343, de autoria do
inglês praticante das matemáticas, Leonard Digges (1520 – 1559).

FIGURA 1: FRONTISPÍCIO DO TRATADO A BOOKE NAMED TECTONICON

Fonte: Digges, frontispício, 1605.

343 Vale ressaltar que para esse estudo foi utilizada como fonte primária a edição do tratado publicada em
1605.

1042
A partir disso, seguiu-se uma metodologia qualitativa de cunho
documental, que segundo Kripka, Scheller e Bonotto (2015, p.58), ocorre quando

[...] os dados obtidos são estritamente provenientes de documentos, com


o objetivo de extrair informações neles contidas, a fim de compreender
um fenômeno; é um procedimento que se utiliza de métodos e técnicas
para a apreensão, compreensão e análise de documentos dos mais
variados tipos; é caracterizada como documental quando essa for a única
abordagem qualitativa, sendo usada como método autônomo.

Apoiado a isso, também se realizou uma pesquisa bibliográfica em


fontes secundárias (CASTILLO 2016; GILLIPSIE 1971), a fim de compreender o
contexto em que autor e obra estão inseridos. Gil (2008), ainda destaca que a
pesquisa realizada em documentos secundários é indispensável para que se
possa conhecer os fatos do passado.

RESULTADOS E DISCUSSÃO
Dentre os instrumentos apresentados no tratado A Booke Named
Tectonicon (1605), destaca-se para esse estudo a régua de carpinteiro (figura
2), apresentada no capítulo XII de Tectonicon. No que se refere a sua
construção, Digges (1605) ressalta que poucas palavras serão expressas, uma
vez que a régua era um instrumento comum para os profissionais daquele
período.

FIGURA 2: A RÉGUA DE CARPINTEIRO

Fonte: Digges 1605, XII, p.1

1043
Nesse sentido, Digges (1605), inicia o capítulo XII apresentando
instruções a respeito da construção física do instrumento, ele ressalta que

[...] abcd bem plana, doze polegadas de comprimento, de um quarto


de polegada de espessura, e duas polegadas de largura.
Verdadeiramente ela seria mais cômoda, se tivesse dois pés de
comprimento esta régua aqui imaginei somente com um pé de
comprimento [...]344 (DIGGES, 1605, XII, p.1, tradução nossa).

Com isso, pode-se observar que são disponibilizadas pelo autor,


informações a respeito das dimensões da régua e das unidades de medida que
serão mobilizadas para realizar sua construção.
Consequentemente, Digges (1605), comenta sobre o processo de
construção da parte da frente da régua. A partir das instruções fornecidas pelo
autor, nota-se que o instrumento possui duas escalas (figura 3), cujo processo
de graduação em poucas palavras é expresso.

FIGURA 3: AS ESCALAS DA RÉGUA DE CARPINTEIRO

344 Em inglês, lê-se: “[…] a b c d well planned, twelve inches long, a quarter of an inch thick, and two
inches in breadth. Truly it were more commodious, if it had two foot in length. This ruler here imagined but
a foot in lenght […]” (DIGGES, 1605, XII, p.1).

1044
Fonte: Elaborado pelas autoras

Por fim, Digges (1605) apresenta informações sobre a parte de trás da


régua (figura 4), ressaltando que “Esta outra figura. i.k.l.m. é a parte traseira de
sua Régua, tendo no meio um quadrante geométrico, n.o.p.q. cuja fabricação em
poucas palavras é aqui expressa”345 (DIGGES, 1605, XIII, p.1).

FIGURA 4 – A PARTE DE TRÁS DA RÉGUA DE CARPINTEIRO

345 Em inglês, lê-se: “This other figure. i.k.l.m. is the backside of your Ruler, having in the middes a
geometrical quadrant. n.o.p.q. whose making in few words is thus expressed” (DIGGES, 1605, XIII, p.1).

1045
Fonte: Digges 1605, XII, p.2, destaque nosso.

A partir disso, é possível destacar algumas características sobre a parte


de trás da régua. Note que, o autor utiliza letras minúsculas para representar os
vértices da parte de trás do instrumento, contudo, pode-se observar que na figura
4, as letras utilizadas para representar os mesmos vértices, “iklm”, são
maiúsculas.
No que se refere as instruções sobre o processo de construção da parte
de trás da régua e do quadrante geométrico incorporado a ela, Digges (1605),
ressalta que a fabricação “[...] em poucas palavras é aqui expressa [...]” 346 .
Segundo Castillo (2016), mais detalhes a respeito dessa construção, são
fornecidos por Digges em outro tratado de sua autoria, denominado Pantometria,
publicado pela primeira vez em Londres, no ano de 1571.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir das informações fornecidas por Digges (1605), a respeito do
processo de fabricação do instrumento régua de carpinteiro, podem ser
observados itens potencialmente didáticos ao ensino de matemática presentes

346 Em inglês, lê-se: “[…] in few words is thus expressed […]” (DIGGES, 1605, XIII, p.1).

1046
nessa construção, uma vez que diversos conceitos como o de unidades de
medidas e frações, são mobilizados.
É importante ressaltar, que o estudo aqui apresentado é o recorte de uma
pesquisa maior, que tem por objetivo investigar os instrumentos régua de
carpinteiro, esquadro de carpinteiro e báculo, contidos no tratado A Booke
Named Tectonicon. Dessa forma, um próximo passo para esse estudo, que
ainda está em andamento, é realizar a reconstrução física do instrumento régua
de carpinteiro, para que assim seja possível compreender, de fato, as instruções
matemáticas e extra matemáticas fornecidas por Digges (1605).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CASTILLO, Ana Rebeca Miranda. Um estudo sobre os conhecimentos


matemáticos incorporados e mobilizados na construção e no uso do
báculo (cross-staff) em A Boke Named Tectonicon de Leonard Digges.
2016. 121f. Doutorado-Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2016.

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DIGGES, Leonard. A boke named Tectonicon. London: Iohn Daye, 1556.

DIGGES, Leonard. A geometrical practise named Pantometria. London:


Henrie Bynneman, 1571.

GILLIPSIE, Charles Coulston. Leonard Digges. Dictionary of Scientific


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KRIPKA, Rosana Maria Luvezute; SCHELLER, Morgana; BONOTTO, Danusa


de Lara. Pesquisa Documental: considerações sobre conceitos e
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1047
SAITO, Fumikazu. História da matemática e suas (re)construções
contextuais. São Paulo: Ed. Livraria da Física/SBHMat, 2015. [ISBN: 978-85-
7861-372-3]

SILVA, Isabelle Coelho da. Um estudo da incorporação de textos originais


para a educação matemática: buscando critérios na articulação entre
história e ensino. 2018. 92 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Mestrado em
Ensino de Matemática, Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do
Ceará, Fortaleza.

PAULINO, Sabrina de Sousa; ARGEMIRO FILHO, Carlos Ferreira; PEREIRA,


Ana Carolina Costa. alguns aspectos contextuais da régua e do esquadro de
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Isabelle Coelho da. A balestilha descrita na obra Chronographia repertorio dos
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de Petrus Ramus na interface entre história e ensino de matemática. Revista
Cocar, v. 13, n. 25, pp. 342-372, 2019.

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MATEMÁTICOS NA INTERFACE ENTRE HISTÓRIA E ENSINO DE
MATEMÁTICA. Boletim Cearense de Educação e História da Matemática,
[S.L.], v. 5, n. 14, p. 109-122, 25 ago. 2018.

1048
Breves considerações sobre os 23 Problemas de Hilbert

Bruno Cavalcante Martins Noronha347


Mariana Feiteiro Cavalari348

RESUMO
No ano de 1900, David Hilbert apresentou no II Congresso Internacional de
Matemáticos, 23 problemas que poderiam guiar os rumos da Matemática do
século XX. Considerando a relevância destes para a Matemática do século
passado, realizamos a presente investigação com o objetivo de identificar os 23
problemas propostos por Hilbert e tecer breves considerações sobre suas
contribuições para a Matemática no século XX. Para tanto, realizamos uma
pesquisa bibliográfica acerca da vida e obra de Hilbert, bem como, sobre os 23
problemas propostos por ele. Buscamos, também, identificar quais destes foram
solucionados, os estudiosos que desenvolveram tais soluções e as contribuições
destas para o desenvolvimento da Matemática no século XX. Dos 23 problemas
propostos, identificamos que 14 são considerados resolvidos; dois foram
parcialmente resolvidos e sete ainda se encontram em aberto. Pudemos
identificar que matemáticos provenientes de diversas nacionalidades, ao longo
de todo o século XX, se dedicaram a resolver estes problemas e destacamos a
relevância destes problemas para a Matemática, por terem contribuído para o
desenvolvimento de novos ramos desta ciência, novas técnicas e teorias.

Palavras-chave: História da Matemática. David Hilbert. Os 23 problemas de


Hilbert. Século XX.

INTRODUÇÃO

347
Licenciado em Matemática pela Universidade Federal de Itajubá (UNIFEI). bruno.cmn@unifei.edu.br
348
Docente do Instituto de Matemática e Computação da Universidade Federal de Itajubá (UNIFEI).
mfcavalari@unifei.edu.br

1049
No século XIX houve um grande desenvolvimento da Matemática de
modo que para D’Ambrosio (2005, p. 131), tal período “[...] pode ser visto como
o século da consolidação da Matemática Ocidental, desenvolvida a partir da
Antiguidade”. No final deste século teve-se “[...] um impressionante
conhecimento científico ancorado numa Matemática rigorosamente
fundamentada” (D’AMBROSIO, 2005, p. 2).
Neste contexto do final do século XIX e início do século XX, podemos
destacar o matemático David Hilbert que além de elaborar importantes trabalhos
em variadas áreas da Matemática, contribuiu para o desenvolvimento da
Matemática por meio da apresentação dos “23 problemas de Hilbert”.
Estes problemas propostos por Hilbert, em 1900, tinham o objetivo traçar
novos rumos para a Matemática que estaria por ser desenvolvida no século que
se iniciara (DA SILVA, 2007).
De fato, diversos matemáticos(as) se empenharam em solucionar esses
problemas ao longo do século XX. Desta forma, corroboramos a D’Ambrosio
(2005, p. 2), que afirma que
Os 23 problemas de Hilbert constituíram-se em algo equivalente
a um vademecum para os pesquisadores matemáticos do século
XX. A matemática aceitou o desafio de Hilbert e, durante todo
um século, os esforços resultaram na criação e no
desenvolvimento de novas teorias e de novas técnicas, que
foram incorporadas ao majestoso edifício.

Tendo como base este contexto, realizamos a presente investigação com


o objetivo de identificar os 23 problemas propostos por Hilbert e tecer breves
considerações sobre suas contribuições para a Matemática no século XX.349
Para tanto, realizamos uma pesquisa bibliográfica que inicialmente se
voltou para o estudo da vida e obra de Hilbert, e, posteriormente, foi dedicada a
identificar os 23 problemas apresentados por ele no II Congresso Internacional
de Matemáticos e a localizar informações sobre os estudiosos(as) que se
dedicaram a solucionar estes problemas.

349Este trabalho apresenta resultados parciais de uma Iniciação Científica desenvolvida, pelo
primeiro autor, sob a supervisão da co-autora, na UNIFEI.

1050
Desta forma, para apresentar os resultados desta investigação, o
presente trabalho se divide em duas partes, sendo que na primeira
apresentamos uma breve biografia de David Hilbert, evidenciando suas
principais áreas de pesquisa e na segunda, expomos os seus 23 problemas,
destacando a situação em que se encontram atualmente, os matemáticos que
resolveram tais problemas e os impactos desses problemas para o cenário
matemático do século XX.

DAVID HILBERT: uma breve biografia

David Hilbert nasceu em 23 de janeiro de 1862, na cidade de Königsberg,


na Prússia Oriental e faleceu em Göttingen, Alemanha, em 14 de fevereiro de
1943. Era filho de Otto Hilbert e Maria Therese Erdtmann, seu pai era juiz de um
condado e sua mãe, que era filha de um comerciante, era fascinada por
astronomia, filosofia e números primos.
Estudou, durante a infância, na escola Royal Friedrichskolleg, instituição
também conhecida como Collegium Fridericianum ingressando aos oito anos,
diferentemente dos outros alunos que começavam a frequentar a escola aos seis
anos de idade (O’CONNOR E ROBERTSON, 2014). Segundo estes autores em
tal escola não era ensinado Ciência e o aprendizado era voltado para a
memorização.
David Hilbert se transferiu desta instituição de ensino, para o colégio de
Wilhelm Gymnasium, onde obteve excelentes notas em Matemática, justamente
pelo fato de que era colocada ênfase no estudo da Matemática e era incentivado
o pensamento original (O’CONNOR E ROBERTSON, 2014).
Em outubro de 1880, logo após concluir seus estudos no Wilhelm
Gymnasium, ingressou na Universidade de Königsberg, e cursou em seu
primeiro semestre as disciplinas de Cálculo Integral, Teoria dos Determinantes
e Curvatura das Superfícies.

1051
Hilbert era amigo próximo de Adolf Hurwitz (1859 - 1919), professor da
Universidade de Königsberg, e de acordo com O’Connor e Robertson (2014),
esta amizade foi um dos fatores determinantes para o seu progresso
matemático. Destacamos, entretanto, que o orientador de doutoramento de
Hilbert foi outro docente da universidade, Ferdinand von Lindemann (1852 -
1939). Sua tese intitulada Über invariante Eigenschaften specieller binärer
Formen, insbesondere der Kugelfunctionen (Sobre propriedades invariantes de
formas binárias especiais, em particular das funções esféricas) foi defendida em
1884.
Posteriormente, em 1892, foi nomeado Ausserordentlicher Professor
(Professor Associado) na Universidade de Königsberg, sucedendo seu professor
e amigo Adolf Hurwitz e no ano seguinte avançou para o cargo de professor
titular.
Por influência de Felix Klein 350 (1849 - 1925), Hilbert foi convidado, a
lecionar na Universidade de Göttingen em 1895, atuando nesta instituição até o
fim de sua carreira. Em 1928, foi eleito como membro estrangeiro da Royal
Society of London e posteriormente, no ano de 1930, se aposentou (O’CONNOR
E ROBERTSON, 2014).
Segundo Weyl (1944), David Hilbert deixou um legado de pesquisas em
variadas áreas da Matemática e também na física, seus trabalhos usam uma
abordagem Matemática simples, entretanto rigorosa e profunda. O mesmo autor
afirma que Hilbert desenvolveu trabalhos acerca da Teoria dos Invariantes
durante o período de 1885 até 1893; da Teoria dos Campos Numéricos
Algébricos durante o período de 1893 até 1898, dos Fundamentos da Geometria
durante o período de 1898 até 1902 e da Matemática em geral durante o período
de 1922 até 1930; das Equações Integrais durante o período de 1902 até 1912
e, também, realizou estudos na área de Física durante o período de 1910 até
1922. Neste sentido, para Weyl (1944, p. 548, tradução nossa) “[...] a pesquisa

Ressaltamos que Hilbert era descendente científico de Felix Klein (MATHEMATICS


350
GENEALOGY PROJECT).

1052
de Hilbert deixou uma marca indelével em praticamente todos os ramos da
ciência Matemática” 351.
Em especial, destacamos que a fundamentação da Geometria elaborada
por Hilbert, influenciou o desenvolvimento da geometria 352 e, também, o da
Matemática como um todo353 (WUSSING, 1998).
Além disto, destacamos a relevância dos problemas propostos por ele no
II Congresso Internacional de Matemáticos, sendo que estes serão abordados
no item subsequente.

Os 23 Problemas de Hilbert e o desenvolvimento da Matemática do Século


XX

Os 23 problemas propostos por Hilbert, no referido evento em Paris em


1900, tinham como objetivo traçar novos rumos a Matemática que seria
desenvolvida no século XX que se iniciava naquele momento.
De acordo com Hilbert, em sua apresentação:
Se quisermos ter uma ideia sobre o possível desenvolvimento
do conhecimento matemático no futuro próximo, então
precisamos ter em pensamento as perguntas em aberto e
visualizar os problemas que a ciência contemporânea nos
apresenta, cujas soluções nós esperamos do futuro (HILBERT,
2003, p. 5).

Consequentemente, a importância de problemas no âmbito da ciência


Matemática deve-se ao fato de que através de problemas tem-se a possibilidade
do desenvolvimento de novas ferramentas que auxiliariam o seu progresso.

351 Oferecemos o trecho original “[...] Hilbert’s research left an indelible imprint on practically all
branches of mathematical science”.
352
O trabalho de Hilbert abriu um caminho para o desenvolvimento de pesquisas na área de
fundamentos da geometria que, até o final do século XX, ainda possuíam problemas em aberto
(WUSSING, 1998).
Em especial, a questões relativas à metodologia da pesquisa Matemática (WUSSING,
353
1998).

1053
Dessa forma, para este matemático um ramo da ciência continuará sendo
essencial enquanto apresentar problemas.
Os 23 problemas apresentados por Hilbert no II Congresso Internacional
de Matemáticos foram:
1. Problema de Cantor sobre a potência do Continuum
2. A não contradição dos axiomas da aritmética
3. A igualdade do volume de dois tetraedros com a mesmas
áreas da base e mesmas alturas
4. O problema da linha reta como a menor distância entre dois
pontos
5. A noção de grupo contínuo de transformações de Lie sem a
hipótese da diferenciabilidade das funções definidoras dos
grupos
6. Tratamento matemático para os axiomas da física
7. Irracionalidade e transcendência de determinados números
8. O problema de números primos
9. Prova da mais geral lei de reciprocidade em um corpo
numérico qualquer
10. A decisão sobre a resolubilidade de uma equação diofantina
11. Formas quadráticas com quaisquer coeficientes numéricos
algébricos
12. Extensão do teorema de Kronecker sobre corpos abelianos
a um domínio de racionalidade algébrica qualquer
13. Impossibilidade da resolução da equação geral do sétimo
grau através de funções de somente 2 argumentos
14. Prova da finitude de certos sistemas de funções completos
15. Fundamentação rigorosa do cálculo enumerativo de
Schubert
16. Problema da topologia de curvas e superfícies algébricas
17. Representação de formas definidas através de quadrados
18. Construção do espaço a partir de poliedros congruentes
19. As soluções de problemas regulares no cálculo de variações
são sempre necessariamente analíticas?
20. Problemas gerais dos valores de fronteira
21. Demonstração da existência de equações diferenciais
lineares tendo grupo monodrômico prescrito
22. Uniformização de relações analíticas por meio de funções
automórfas
23. Mais desenvolvimento dos métodos do cálculo de variações
(HILBERT, 2003, p. 11-12)

Podemos identificar que, de fato, muitos estudiosos se dedicaram a solucionar


estes problemas. No Quadro 1, apresentado a seguir, indicamos quais destes
problemas foram resolvidos e os estudiosos responsáveis por tais soluções.

1054
QUADRO 1 – Os 23 problemas de Hilbert e informações sobre suas soluções
Número do Situação Quem solucionou Período da
Problema solução
Problema 1 Resolvido Paul Cohen 1963 - 1964
Problema 2 Resolvido Kurt Gödel 1931
Problema 3 Resolvido Max Dehn 1900
Problema 4 Aberto
Problema 5 Resolvido Andrew Mattei Gleason, Deane 1952
Montgomery e Leo Zipin
Problema 6 Aberto
Problema 7 Resolvido Aleksandr Osipovich Gelfond e Theodor 1929/1934
Schneider (de forma independente)
Problema 8 Aberto
Problema 9 Resolvido Emil Artin 1927
Problema 10 Resolvido Yuri V. Matiyasevich 1970
Problema 11 Resolvido Helmut Hasse 1923
Problema 12 Aberto
Problema 13 Resolvido Andrey N. Kolmogorov e Vladimir I. 1957
Arnold
Problema 14 Resolvido Masayoshi Nagata 1958
Problema 15 Parcialmente
resolvido
Problema 16 Parcialmente
resolvido
Problema 17 Resolvido Emil Artin 1927
Problema 18 Aberto
Problema 19 Resolvido Sergei N. Bernstein 1904
Problema 20 Aberto
Problema 21 Resolvido Andrei Bolibruch 1989
Problema 22 Resolvido Paul Koebe 1907
Problema 23 Aberto
Fonte: Autoria própria com base em Yandell (2002)

Com base nos dados obtidos neste quadro, podemos identificar que
dentre os 23 problemas propostos por Hilbert, sete encontram-se em aberto, dois
estão parcialmente resolvidos e 14 deles são considerados resolvidos.
Destacamos que em muitas destas soluções foram utilizados conhecimentos
elaborados previamente por outros matemáticos, fato que indica, que há outros
pesquisadores que contribuíram para a resolução destes problemas de forma
indireta354.

354Como exemplo, podemos citar a contribuição de Julia Robinson (1919 - 1985) para a
resolução do décimo problema.

1055
No quadro 2, a seguir, apresentamos informações relativas à
nacionalidade dos matemáticos que resolveram tais problemas.

QUADRO 2 – Nacionalidade dos Matemáticos que resolveram os problemas


Quem solucionou País de origem
Paul Cohen Estados Unidos da América
Kurt Gödel Áustria-Hungria
Max Dehn Alemanha
Andrew Mattei Gleason, Deane Montgomery e Leo Zipin Estados Unidos da América
Aleksandr Osipovich Gelfond Rússia
Theodor Schneider Alemanha
Emil Artin Áustria
Yuri V. Matiyasevich Rússia
Helmut Hasse Alemanha
Andrey N. Kolmogorov e Vladimir I. Arnold Rússia/Ucrânia
Masayoshi Nagata Japão
Sergei N. Bernstein Ucrânia
Andrei Bolibruch Rússia
Paul Koebe Alemanha
Fonte: Própria do Autor

Pôde-se perceber, com base nas informações apresentadas nos


quadros 1 e 2, que os 23 problemas apresentados por Hilbert foram solucionados
ou parcialmente solucionados por estudiosos de diversas nacionalidades ao
longo de todo o referido século, tal qual desejava David Hilbert.
Corroboramos, então, a Cardoso (2006) que ressalta que com os 23
problemas, Hilbert destacou “[...] a importância dos problemas para o
desenvolvimento da Matemática, influenciou várias gerações de matemáticos,
muitos dos quais dedicaram grande parte das suas vidas a tentar obter uma
solução” (CARDOSO, 2006, p. 14).
Em relação as contribuições dos problemas de Hilbert para o
desenvolvimento da Matemática, Shirley (2000) afirma que as ideias de Kurt
Gödel (1906 – 1978) para a resolução do segundo problema “[...] também
contribuíram para a teoria da computabilidade de Turing” (SHIRLEY, 2000, p.
76). Já Conde (2003), ressalta que o Terceiro Problema de Hilbert, por ter sido
resolvido rapidamente, “Foi por muito tempo, considerado como um problema

1056
que não tinha o mesmo status que os demais” (CONDE, 2003, p. 41). Entretanto,
para este autor, “Tal impressão vem mudando uma vez que o mesmo vem dando
origens a desenvolvimento relevantes em outras áreas da Matemática e criando
novos problemas ainda abertos” (CONDE, 2003, p. 41).
Com relação ao 17° problema, Reznick (2000) indica que na década de
1950, portanto, mais de uma década após este problema ser solucionado, A.
Robinson (1918 - 1974) apresentou que havia uma grande conexão entre este
problema e a lógica. Tal conexão foi evidenciada por Charles Neal Delzell (1953
- ) que “[...] escreveu uma história detalhada e recente do interconjunto dos
lógicos no 17º problema de Hilbert” (REZNICK, 2000, p. 256, tradução nossa).
Assim, para finalizar, podemos destacar que a realização desta
investigação possibilitou identificar que as resoluções dos problemas e/ou suas
tentativas, possibilitaram o surgimento de novas técnicas e teorias que foram
importantes para o progresso da Matemática nos séculos posteriores.

Considerações finais

Esse trabalho que teve como objetivo identificar os 23 problemas


propostos por Hilbert, no II Congresso Internacional de Matemáticos, realizado
em Paris, em 1900 e apresentar considerações sobre seus impactos na
Matemática do século XX.
Identificamos que destes 23 problemas, que tinham como propósito traçar
os novos rumos para a Matemática do século XX, 14 deles são considerados
resolvidos, dois se encontram parcialmente resolvidos e sete encontram-se em
aberto.
Os resultados de nossa investigação permitem afirmar que os problemas
propostos por Hilbert foram importantes no cenário científico matemático, pois
mobilizaram, ao logo de todo o século XX, diversos matemáticos de variadas
nações. Além disso, destacamos que esses problemas contribuíram para o

1057
desenvolvimento da Matemática já que áreas de estudos surgiram em
decorrência da busca por suas soluções.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARDOSO, D. M. A Matemática e os seus Problemas. 2006.

CONDE, A. O terceiro problema de Hilbert. Revista Brasileira de História da


Matemática. v.3, n. 5, p. 41-59, 2001.

D'AMBROSIO, U. Um brasileiro no congresso internacional de matemáticos de 1900.


Revista Brasileira de História da Matemática, v. 3, n. 5, p. 131 – 139, 2005.

HILBERT, D. Problemas Matemáticos: Conferência proferida no 2º Congresso


Internacional de Matemáticos realizado em Paris em 1900. Tradução: Sergio R.
Nobre. Revista Brasileira de História da Matemática, v. 3, n. 5, p. 5 -12, 2003.

O’CONNOR, J. J.; ROBERTSON, E. F. David Hilbert. The MacTutor history of


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andrews.ac.uk/Biographies/Hilbert/>. Acesso em: 03 dez. 2020.

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SHIRLEY, L. Matemática do século XX: o século em breve revista. Tradução: David


Mendes, Fernando Menezes, Henrique Machado, Hussene Remane, Pedro Ávila,
Ricardo Barreiros, Rui Roboredo e Sérgio Antunes. Educação e
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WEYL, H. David Hilbert and is Mathematical Work. Bulletin of the American


Mathematical Society. v. 50, n° 9, p. 612 – 654, 1944.

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WUSSING, Hans. Lecciones de Historia de las matemáticas. Siglo XXI de España


Editores, 1998.

YANDELL, B. The honors class: Hilbert's problems and their solvers. CRC Press,
2002.

1058
HISTÓRIA DA ASTRONOMIA:
um breve estudo ao longo das antigas civilizações

Beatriz Akiria de Assis Quaresma355


Cristiane Coppe de Oliveira356

RESUMO
Esta pesquisa faz parte de um trabalho realizado como instrumento avaliativo na
disciplina História da Matemática do curso de Matemática de uma Universidade Pública
do estado de Minas Gerais. O tema escolhido foi acerca do início da Astronomia em
interface com a matemática nas antigas civilizações, tendo como objetivo destacar o
modo como a matemática era utilizada e conhecida pelas culturas de alguns povos. Em
uma perspectiva qualitativa de pesquisa, utilizou-se como metodologia a pesquisa
bibliográfica. A partir das fontes consultadas, foi possível observar o avanço do
conhecimento científico e os impactos de diferentes pensamentos para chegar no que
hoje se conhece por Astronomia e Matemática. Algumas civilizações receberam
destaque ao longo do trabalho, sendo elas: Mesopotâmia, Egito e Índia. O estudo
proporcionou a verificação de que as ideias da Astronomia sempre estiveram presentes
na humanidade, mesmo antes de ser conhecida com esse termo, tendo a matemática
como elemento essencial para a constituição de ideias nesse campo.

Palavras-chave: Matemática. Primeiras civilizações. Mesopotâmia. Egito. Índia.

INTRODUÇÃO

O interesse e a curiosidade dos fenômenos celestes não estão


relacionados apenas com a modernidade. A importância de compreender o seu
meio natural vem desde os primórdios da humanidade é denominada de
Astronomia o estudo desses fenômenos, sendo considerada a ciência mais
antiga. A palavra Astronomia é de origem grega, etimologicamente provém das

355
ICENP - UFU. beatrizfjdp@hotmail.com
356
ICENP – UFU. criscopp@ufu.br

1059
palavras astron (astro), usada para designar uma constelação ou qualquer grupo
de estrelas, que quando ligada ao termo nemo (observação) dão significado a
essa ciência (YUN, 2000).
O desenvolvimento da Astronomia aconteceu, inicialmente, no mundo
pré-histórico, pela necessidade de sobrevivência, esse povo se interessou em
observar os fenômenos que ocorriam à sua volta. De igual modo, tentou
compreendê-los num ambiente natural, observando fatos como o deslocamento
do sol em relação ao horizonte e sua relação com a “claridade” e a “escuridão”,
além das fases da Lua.
Os povos começaram a perceber que todos esses fenômenos tinham
uma regularidade de ocorrência, assim era possível determinar a passagem do
tempo. Com isso, o céu começou a ser utilizado como referência de períodos,
elaborando relógios, calendários e mapas. Kartttunen (2003 apud VOLCAN,
2007, p.5), afirma que existem indícios que há cerca de 30.000 anos atrás o
homem de Cro-Magnon já teria realizado marcações em ossos de animais
descrevendo as fases da lua.
Com esses conhecimentos sobre as mudanças no ambiente decorrentes
da influência dos astros, o homem da antiguidade percebeu que poderia utilizar
as estrelas para orientar-se em suas viagens. O advento da navegação também
foi fundamental no aprimoramento da Astronomia como corpo de conhecimento
(INPE, 2018, p.1-12). A Astronomia se tornou uma ciência útil para a sociedade
com diversas aplicações.
De acordo com Gonçalves et al. (2007), os gregos desenvolveram a
Astronomia como um ramo da Matemática, assim essas ciências sempre
estiveram presentes na história da humanidade. Vários axiomas, proposições,
teoremas, afirmações matemáticas são relacionados com observações
astronômicas. Podemos então observar, por um lado, que a Astronomia
influenciou a humanidade no passado estimulando o desenvolvimento da
Matemática. Por outro lado, a Matemática contribuiu para o desenvolvimento da
Astronomia, permitindo a quantificação e previsão de fenômenos astronômicos.

1060
Assim, esta pesquisa visou investigar a origem e os avanços que a
Astronomia realizou ao longo da humanidade, perpassando por algumas
civilizações que contribuíram para que os estudos dessa ciência se
desenvolvessem. Essa busca deu-se pelo caminho metodológico e qualitativo
da pesquisa bibliográfica. Ao longo deste trabalho serão apresentadas as
principais ideias dos astrônomos que viveram em algumas civilizações, sendo
elas: a Mesopotâmia, Egito e Índia. Os elementos que serão compartilhados são
oriundos de um trabalho final desenvolvido na disciplina de História da
Matemática em um curso de licenciatura em Matemática em uma Universidade
pública no estado de Minas Gerais.

PRIMEIROS REGISTROS

A história da Astronomia apresenta visões e inspirações de diferentes


povos, todas concebidas a partir de observações do céu. Desde a pré-história o
homem observou que haviam variações dos climas, dos aspectos das plantas,
dos frutos e que todas tinham relação com as estações do ano. Assim, ele
começou a registrar os fenômenos celestes, principalmente os movimentos
aparentes do Sol, da Lua e das constelações.
Para se compreender de que modo a Astronomia era praticada pelos
povos da pré-história, tem-se a arqueoastronomia, que estuda os conhecimentos
astronômicos ligados pelas culturas pré-históricas, por meio de registros antigos
como a arte rupestre e os monumentos de rochas dos povos antigos, que já eram
capazes de elaborar textos escritos.
Segundo Afonso e Nadal (2014, p. 53):

As descobertas da arqueoastronomia também podem ser úteis


para o astrônomo documentar antigos eventos celestes, tais
como a aparição de um cometa muito brilhante, a explosão de
uma supernova, a conjunção de planetas ou, até mesmo, a
possibilidade do estudo da desaceleração secular da rotação da
Terra através de registros de eclipses.

1061
Por meio desse estudo, descobriu-se indícios de marcações das fases
da lua. O primeiro calendário lunar da história (Figura 1) registrado em uma talha
de ossos do Paleolítico (35 000 anos a.C.), que foi encontrado nos abrigos
Blanchard. As taças representariam exatamente as diferentes fases e posições
da Lua a partir do local onde o objeto foi descoberto, dessa forma o homem de
Cro-Magnon buscava decifrar as mensagens do céu (MARSHACK, 1972).

Figura 19: Osso do homem de Cro-Magnon

Fonte: (Moreira, 2017)

Outro registro que foi encontrado por escavações no Congo, perto da


fronteira com Uganda na região vulcânica foi o Osso de Ishango (Figura 2),
acredita-se que “esse osso havia sido utilizado por uma mulher a mais de 20.000
anos, como sendo uma espécie de calendário de seis meses baseados no ciclo
da lua para acompanhar o ciclo menstrual” (OLIVEIRA, 2012, p. 21).

1062
Figura 20: Osso de Ishango

Fonte: (Moreira, 2017)

De acordo com o INPE (2018, p.1-10), as primeiras civilizações


começaram a surgir há cerca de 5.500 anos, principalmente em quatro regiões:
na Mesopotâmia, atual Irã e Iraque, por volta do ano 3500 a.C.; com os
sumerianos no rio Nilo, atual Egito, em torno de 3100 a.C.; nas margens do rio
Indus, localizado atual Índia, por volta de 2500 a.C.; e em torno do rio Amarelo,
atual China, em cerca do ano 2000 a.C. Nesse período o homem associava os
fenômenos celestes com divindades, buscando explicações mitológicas para os
acontecimentos.
Pode-se observar que as sociedades da Mesopotâmia, Hindu e do
Antigo Egito tinham proximidade entre elas, influenciando no avanço muito
parecido, inclusive para desenvolvimento de outras como a da Grécia Antiga. A
seguir, será apresentado um recorte do desenvolvimento da Astronomia ao
longo de algumas das civilizações mencionadas.

ASTRONOMIA NA MESOPOTÂMIA

Na Mesopotâmia, uma planície fértil entre os rios Tigre e Eufrates, os


babilônios foram um dos primeiros povos a estudar a Astronomia. Segundo INPE

1063
(2018, p. 1-11), no começo os sumerianos observaram os astros por interesses
místicos, contudo, posteriormente passaram de astrólogos a astrônomos. Essa
mudança na análise dos fenômenos celestes ocorreu no primeiro milênio antes
de Cristo, os Babilônios conseguiram registrar a presença de cinco planetas
visíveis a olho nu, sendo eles: Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno.
Com isso, surgiram as primeiras aplicações de métodos matemáticos
para definir as variações observadas nos movimentos da Lua e dos planetas.
Esse movimento foi essencial na história da ciência na Mesopotâmia, foi possível
determinar período da lunação, o período do movimento do Sol, a inclinação da
trajetória anual do Sol pela eclíptica, e ainda observaram que a velocidade da
Lua em seu movimento ao redor da Terra não era constante. Começaram a
prever eclipses, comprovaram que os planetas são encontrados sempre numa
mesma região do céu, entre outras constatações.
De acordo com Roque (2012, p. 41), os cálculos astronômicos da época
eram realizados através do sistema sexagesimal posicional, com a simbologia
distinta. Os astrônomos dessa civilização, introduziram uma primeira possível
representação para o zero, ou seja, uma coluna vazia. Observe o exemplo que
a autora apresenta:

Figura 21: Representação do número com reparador

Fonte: (Roque, 2012, p. 41)

O símbolo usado como separador pode ser confundido com “zero”, que
conhecemos hoje, em uma função no sistema posicional. Porém, ele não poderia
ser usado como último algarismo e nem apresentar o resultado de um cálculo.

1064
Assim, antes mesmo do zero ser definido como um número, o que aconteceu
anos depois, ele tinha semelhanças com o separador (índice de uma casa vazia)
nas operações aritméticas (ROQUE, 2012, P. 42).

A ASTRONOMIA NO EGITO ANTIGO

Assim como a civilização já apresentada, o Egito também contribuiu


fortemente para a Astronomia, apesar de suas observações celestes não serem
rigorosas (LOPES, 2001). Isso aconteceu porque esse povo associava os
planetas e estrelas com deuses, como, por exemplo: o Sol, representado pelo
“deus Ra”, Júpiter como “a estrela resplandecente”; Saturno como “estrela
oriental que atravessa o Céu”; Marte “Hórus vermelho”; Mercúrio como “a estrela
da manhã (Tiu-Nutiri) e da tarde (Uati)” (NEVES, 2001 apud MARTINS; et al,
2019).

Saber quando a estação das chuvas estava prestes a chegar era


vital e o estudo da astronomia se desenvolveu para fornecer
informações sobre o calendário. [...] À medida que a sociedade
se tornava mais complexa, era necessário manter registros e
fazer cálculos à medida que as pessoas trocavam seus bens.
Surgiu a necessidade de contar; a seguir, escrever e numerar
foram necessários para registrar as transações (O’CONNOR;
ROBERTSON, 2000).

Dessa forma, os egípcios focaram seus estudos em astronomia com o


interesse principal de suprir as necessidades da época, como exemplo: as
enchentes do Rio Nilo; as construções das Pirâmides, com suas faces voltadas,
com grande precisão, para os quatro pontos cardeais, principalmente de Órion
(HORVATH, 2008; TOURINHO, 1950; KEYS, 1994 apud MARTINS; et al 2019).
Segundo Faria (2014), um outro destaque aos egípcios foram os
calendários, inicialmente lunar, variando entre 29 e 30 dias. Além disso, em torno
de 2150 a.C. essa civilização dividiu a noite em 12 horas “sazonais” com base
no nascimento de algumas estrelas ao anoitecer. Inicialmente eles dividiram o

1065
dia em 10 horas, com duas horas a mais no crepúsculo. No século XII a.C. as
horas sazonais passaram a serem fixas, há indícios de que as durações dos dias
tinham 24 horas, onde 6 horas era para a noite e 18 horas para o dia.

ASTRONOMIA NA ÍNDIA

A Astronomia indiana também é uma das mais antigas, sendo que o


estudo dessa ciência nasceu aproximadamente no terceiro milênio a.C.,
acredita-se que a matemática e a geometria, bem como seus avanços, foram
frutos das pesquisas que envolviam a Astronomia. Nessa época, a astrologia,
“ciência” vizinha (não entraremos no mérito em discutir se a astronomia é ou não
uma ciência, pois não faz parte do escopo do trabalho), foi responsável por parte
dos estudos, uma vez que necessitava de informações confiáveis dos corpos
celestes e, assim, incentivou o desenvolvimento da Matemática (O’CONNOR;
ROBERTSON, 2000).
Os autores ainda ressaltam que assim como no Egito, a religião
contribuiu para que as pesquisas astronômicas indianas fossem realizadas, isso
aconteceu devido a necessidade de que as crenças religiosas ocorressem nos
momentos corretos, para isso os calendários deveriam ser exatos. A matemática
indiana era uma ciência aplicada, buscando resolver problemas do cotidiano da
civilização.
De acordo com Roque (2012), as referências encontradas nos anos 500
d.C., mostram uma nova abordagem da astronomia. Os conceitos místicos
passaram a ser estudados com mais rigor, a ideia de demônios causando as
fases da Lua, ou ainda um eclipse ao cobrir a Lua ou o Sol ou sua luz, foram
substituídas por uma teoria moderna dos eclipses. Nesse contexto, a autora
afirma que as referências:

[...] mostram que havia, nesse período, uma intensa atividade


matemática expressa sobretudo pela elaboração de tratados
astronômicos que também foram influenciados por obras

1066
gregas, devido ao contato com o império romano. Os autores
integravam elementos de sua tradição matemática – como
conceitos sobre a astronomia e o calendário, bem como o
sistema posicional decimal – a outros componentes, adaptados
das obras gregas – como a trigonometria plana, os modelos
cosmológicos geocêntricos (como os de Ptolomeu) e a
astrologia (ROQUE, 2012, p.189).

Ainda nesse sentido, O’Connor e Robertson (2000) apontam que a


educação na Índia era um respaldo das famílias, mesmo quando a pessoa tinha
aptidão em aprender. Dessa forma, essas famílias desenvolviam o
conhecimento acerca de astronomia e matemática e passavam esse
aprendizado de geração em geração. Além disso, os autores reforçam que nesse
período tanto a Matemática quanto a Astronomia se desenvolveram
separadamente.
Apesar disso, alguns estudiosos escreviam seus trabalhos, sem o
interesse de textos para a educação de pessoas fora da família, nem com o
objetivo de terem ideias inovadoras em astronomia. O interesse pautava-se na
religião, pois a Astronomia era considerada de origem divina e cada família
permaneceria fiel as revelações do assunto apresentadas por seus deuses. A
matemática, entretanto, era considerada apenas uma ferramenta para realizar
cálculos astronômicos. A ideia era contribuir para o avanço matemático, assim o
estudo da astronomia seria mais maleável (O’CONNOR; ROBERTSON, 2000).

CONSIDERAÇÕES

Existem questões que a Matemática ainda não consegue comprovar,


tais como: quem somos? Por que estamos aqui? De onde viemos? Para onde
vamos? Estamos sozinhos no Universo? E todas essas perguntas se tornam
ainda mais fortes quando estudamos o céu. Este trabalho objetivou
compreender, brevemente, como as civilizações começaram a formular o

1067
conhecimento que envolvia a Astronomia, além de verificar a importância que a
Matemática teve durante este processo para o desenvolvimento dessa ciência.
Além disso, por meio desse estudo foi possível observar como a
interação entre diferentes civilizações foi essencial para a divulgação do
conhecimento científico. É notório que esses estudos iniciais foram essenciais
para que hoje pudéssemos discutir temas como o heliocentrismo, o formato da
terra, e até mesmo a expansão do Universo.
As primeiras civilizações foram responsáveis por mostrar o caminho do
conhecimento, sem elas não seria possível falarmos de Tales de Mileto (~624-
546 a.C.), Aristarcos de Samos (310-230 a.C.), Ptolomeu (87-150 d.C.), Nicolau
Copérnico (1473 - 1543), Johannes Kepler (1571 - 1630), Galileo Galilei (1564 -
1642), Isaac Newton (1643 - 1727), Albert Einstein (1879-1955), Cecilia Payne
(1900-1979), dentre outros cientistas que tornaram possível o conhecimento que
temos hoje acerca do que entendemos por Universo.
Espera-se que a partir do conhecimento construído ao longo deste
estudo, da origem e ideias que fizeram e fazem parte da humanidade, instigue e
inspire, não somente os estudiosos da história da Astronomia, mas também
professores e futuros professores, tanto em Matemática, quanto em outras áreas
da ciência. E que haja interesse em abordar o tema, com o objetivo de ampliar e
discutir as primeiras ideias que as civilizações tinham do universo em sala de
aula.

REFERÊNCIAS

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História da Astronomia no Brasil. v. 1. Recife: Cepe, 2014.

FARIA, R. C. de. Modelagem causal da astronomia antiga. Dissertação


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Paulo. 2014.

GONÇALVES, F. I. R.; MAGALHÃES, L. M. A.; PEREIRA, S. C. R. Matemática


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1068
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Introdução à Astronomia e
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<http://www.inpe.br/ciaa2018/arquivos/pdfs/apostila_completa_2018.pdf>.
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Orbes dos Planetas e seus movimentos da Antiguidade a Copérnico.
Dissertação (Mestrado em História da Ciência). Pontifícia Universidade Católica
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MARSHACK, A. As raízes da civilização: os primórdios cognitivos da


primeira arte, símbolo e notação do homem. 1. ed. New York: McGraw-Hill,
1972.

MARTINS, M. R.; BUFFON, A. D.; NEVES, M. C. D. A Astronomia na


antiguidade: Um olhar sobre as contribuições chinesas, mesopotâmicas e
egípcias. Revista Valore, Volta Redonda,4 (1), p. 810-823, 2019.

MOREIRA, H. Introdução Nosso curso, 2017. Disponível em: <


https://slideplayer.com.br/slide/10218904/>. Acesso em: 30 set. 2020.

O’CONNOR, J. J.; ROBERTSON, E. F. Uma visão geral da matemática


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_____________________ . Uma visão geral da matemática indiana, 2000.


Disponível em: <https://mathshistory.st-
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OLIVEIRA, C. C. de. Saberes e fazeres etnomatemáticos de matriz africana.


Rio de Janeiro: CeaP, 2012.

ROQUE, T. História da Matemática – Uma visão crítica, desfazendo mitos


e lendas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012.

VOLCAN, S. B. Uma introdução à Mecânica Celeste. 1. ed. Editora do IMPA,


Rio de Janeiro, 2007.

Yun, J. L. Astronomia, 2000. Disponível em:


<http://www.oal.ul.pt/oobservatorio/vol10/n10/pagina2.html>. Acesso em: 15
set. 2020.

1069
HISTÓRIA DA MATEMÁTICA:
elaboração de uma bibliografia por meio da experiência de um professor

Carlos Roberto de Moraes357


Angelica Raiz Calabria358

RESUMO
Este trabalho refere-se a um projeto que tem por finalidade desenvolver uma obra
específica em História da Matemática e que está sendo elaborado pelos professores
doutores Carlos Roberto de Moraes, Sergio Roberto Nobre e Angelica Raiz Calabria.
Nosso objetivo é escrever esse material por meio das notas de aulas da disciplina de
História da Matemática lecionadas pelo Professor Sergio, como também se basear em
suas pesquisas na área de História da Matemática. Num primeiro momento, temos as
notas de aulas desse professor e suas orientações para podermos proceder e iniciar o
trabalho. Nesse sentido, junto com o professor Sergio, buscamos formar um material
diferenciado, no qual pretendemos utilizar fontes confiáveis, indicadas por esse
professor, e que tenhamos um resultado distinto do que encontramos atualmente nas
bibliografias referentes a História da Matemática. Nessa perspectiva, conjecturamos
estar contribuindo com a escrita da História da Matemática e acrescentando referências
bibliográficas referentes a historiografia matemática em língua portuguesa e de autores
brasileiros, ou seja, este trabalho está inserido no Eixo Temático – História da
Matemática.

Palavras-chave: História da Matemática. Livro Texto. Professor Sergio Roberto Nobre.

INTRODUÇÃO:

O presente trabalho está sendo idealizado pelos professores doutores


Carlos Roberto de Moraes e Angelica Raiz Calabria, atuantes na área de História
da Matemática, junto com o professor doutor Sergio Roberto Nobre, que foi
orientador desses professores em seus estudos de pós-graduação na área de

357 Centro Universitário da Fundação Hermínio Ometto (FHO - UNIARARAS).


crmoraes63@gmail.com.
358 Doutora em Educação Matemática – área de História da Matemática.
angel_raiz@yahoo.com.br

1070
História da Matemática, especificamente em História da Matemática no Brasil.
Portanto, este trabalho pertence ao Eixo Temático – História da Matemática.
Tanto o professor Carlos quanto a professora Angelica, no período em
que realizavam a pós-graduação, fizeram estágio docência na disciplina de
História da Matemática lecionada pelo professor Sergio Roberto Nobre, no curso
de Matemática da Universidade Estadual Paulista (UNESP) campus Rio Claro.
Ambos auxiliaram esse professor em sua disciplina bem como elaboraram uma
aula expositiva aos alunos. Em razão dessa experiência com o professor Sergio
e, também, em contato com as aulas de História da Matemática, foi proposto ao
professor Sergio a elaboração de uma bibliografia geral de História da
Matemática que fosse baseada em suas aulas e experiências (tanto como
pesquisador como professor). Assim, pretendemos escrever a História da
Matemática sob a ótica do professor Sergio Roberto Nobre, principal autor desse
material historiográfico.
Outra finalidade desse material é o de complementar a bibliografia, em
língua portuguesa, referente a livros que contemplem conteúdos gerais em
História da Matemática, publicados por autores brasileiros, de forma que esses
conteúdos se apresentem bem estruturados e detalhados, produzidos através
de fontes confiáveis.
O projeto e tem o intuito de preparar um livro-texto que não sirva apenas
para simples consulta daqueles que apreciam conhecer um pouco mais sobre
História da Matemática, mas que seja utilizado como bibliografia para os alunos
do curso de graduação de Matemática que tenham como disciplina a História da
Matemática.

TEMA DA PESQUISA: Elaboração de Bibliografia sobre tópicos de História


da Matemática por meio da experiência de um professor

A área de investigação em História da Matemática, especificamente,


História da Matemática no Brasil, surgiu por uma sugestão do professor Ubiratan

1071
D’Ambrosio, que sempre esteve presente na comunidade internacional de
historiadores da ciência e da matemática, desde a década de 1970. Esse
professor defendia a ideia de renovar a escrita da história da ciência e, para
tanto, anunciou que era indispensável a constituição de uma comunidade
científica de historiadores da ciência, em especial, da História da Matemática
(NOBRE, 2007).
No Brasil, a área de História da Matemática foi se manifestar no final da
década de 1980 e início da década de 1990. Nobre (1997) destaca como sendo
o marco do início ao “profissionalismo” do pesquisador em História da
Matemática, o trabalho de doutorado de Clóvis Pereira da Silva, defendido na
USP em 1989, e com outros trabalhos de doutorado, que estavam sendo
realizados no exterior por pesquisadores brasileiros, relacionados ao tema em
História da Matemática. Dentre estes pesquisadores estavam a professora Circe
Mary Silva da Silva Dynnikov, Fernando Raul de Assis Neto, Seiji Hariki, Sergio
Roberto Nobre, Carlos Ziller Camenietzki. Assim, com a dissertação de
doutoramento de Clóvis e destes pesquisadores e mais a influência do professor
Ubiratan, podemos dizer que, no Brasil, começa o reconhecimento da área de
História da Matemática como campo de investigação.
Pelo exposto, vimos que o professor Sergio Roberto Nobre, foi um dos
responsáveis pelo desenvolvimento da área de investigação em História da
Matemática no Brasil. Além disso, é notório sua repercussão como pesquisador
na comunidade científica internacional. Nesse sentido, reunindo toda sua
experiência tanto de pesquisador como professor, consideramos que
produziremos um material específico em História da Matemática bem
estruturado e com informações confiáveis. Dessa forma, apresentaremos a
seguir uma nota biográfica do professor Sergio e, posteriormente, alguns
aspectos acerca da história da escrita da História da Matemática.

1072
Nota Biográfica do Professor Doutor Sergio Roberto Nobre359

Figura 1: Prof. Sergio Roberto Nobre

Fonte: Lattes, 2020.

O professor doutor Sergio Roberto Nobre graduou-se em Licenciatura em


Matemática pela Universidade de Campinas (UNICAMP), em 1982. É Mestre em
Educação Matemática pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus
Rio Claro/SP (1989) e Doutor em História da Matemática pela Universidade de
Leipzig (Alemanha) (1994). Além do mestrado e doutorado, também realizou o
pós-dourado na Ludwig-Maximilians-Universität-München (LMU), na Alemanha,
concluído em 2000 e o concurso de livre-docência pela UNESP, campus Rio
Claro, em 2001.
Iniciou sua carreira docente como professor de Desenho Técnico
Industrial, na Escola SENAI e, também, na rede de ensino particular, ambas
instituições na cidade de Campinas. Ingressa como professor no Ensino Superior
no ano de 1986 na UNESP – campus de Rio Claro, como Auxiliar de Ensino e,
atualmente, é Professor Titular nesta mesma instituição.
Além de professor, também trabalhou em cargos administrativos como
vice-diretor e diretor do Instituto de Geociências e Ciências Exatas (IGCE) da
UNESP – campus de Rio Claro, no período de 2009 a 2013 e de 2013 a 2017,
respectivamente. Atualmente é vice-reitor da UNESP. Foi, também, tutor do
PET-Matemática do curso de graduação em Matemática da UNESP – campus
de Rio Claro.

359 Informações obtidas através do Currículo Lattes do Professor Doutor Sergio Roberto Nobre.

1073
Participa como membro da Sociedade Brasileira de História da
Matemática (SBHMat), na qual foi secretário-geral e presidente; da Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e da Sociedade Brasileira de
História da Ciência (SBHC) e é editor da Revista Brasileira de História da
Matemática.
Dentre prêmios e títulos, foi concedido ser membro efetivo da Academia
Internacional de História da Ciência. Possui 20 artigos publicados em periódicos
e 22 livros publicados/organizados ou edições, além de inúmeras outras
publicações bibliográficas. Orientou e supervisionou 19 trabalhos de iniciação
científica, 17 mestrados, 16 doutorados e 3 pós-doutorados. Sua linha de
pesquisa é em História das Ciências e História da Matemática; História e
Educação Matemática e História da Matemática no Brasil.
A intenção de apresentar alguns aspectos da vida acadêmica e
profissional do professor Sergio e, principalmente, no que diz respeito a sua linha
de pesquisa, é buscar evidenciar a sua contribuição na elaboração de um
material que envolva a História da Matemática. A seguir, versaremos,
resumidamente, a história da escrita da História da Matemática, destacando os
principais períodos e obras que envolvem essa área do conhecimento.

Breve história dos textos específicos de História da Matemática

A finalidade de se constituir um livro-texto específico em História da


Matemática, se inicia com o propósito de contribuir com a própria escrita da
História da Matemática e de produzir uma bibliografia com informações
necessárias para que aquele que consultar esse livro-texto possa conhecer
como foi o desenvolvimento da Matemática com o decorrer dos anos até os dias
atuais, além de poder contribuir como material a ser utilizado nas disciplinas de
História da Matemática ofertadas em cursos de graduação em Matemática.
Realizando rapidamente uma pesquisa com relação aos livros de História
da Matemática, tanto os específicos quanto aqueles de história de determinadas

1074
áreas da matemática, observamos que existe um número reduzido de obras
escritas por autores brasileiros. Em sua grande maioria, são produções de
autores estrangeiros e, geralmente, é utilizado o original ou suas traduções.
Embora esses livros sejam tradicionais, com bons conteúdos e os mais
consultados, tanto como material básico como para pesquisa, acreditamos que
se faz necessário contribuir à literatura de História da Matemática com
bibliografias em língua portuguesa e de autores brasileiros.
Dessa forma, além das pesquisas específicas em História da Matemática,
com suas diversas vertentes, consideramos relevante conhecer como se deu o
surgimento dos primeiros textos relativos à escrita da História da Matemática,
para que possamos, eventualmente, compreender a forma com que são
apresentados atualmente. Para tanto, nos basearemos em Nobre (2002), onde
o autor nos fornece informações relevantes sobre os textos específicos da
historiografia da matemática.
Nessa perspectiva, Nobre (2002) nos disserta que os primeiros textos
específicos sobre História da Matemática, de maneira semelhante ao que
consultamos atualmente, foram elaborados a partir do século XVII. No entanto,
na Grécia Antiga, há evidências de que Pitágoras (c.580-500) tinha um
determinado interesse pela história das ciências e estima-se que produziu algo
relacionado a esse tema. Porém, nada se conclui, visto que não foi encontrado
fontes que pudessem comprovar tal fato.
Com relação ao período anterior a era Cristã, o único texto específico
sobre História da Matemática foi elaborado por Vitruvius (séc. I a.C.),
denominado Dez livros de arquitetura, no qual o autor relata episódios
relacionados à história das ciências e da matemática. A obra de Vitruvius pode
ser considerada o mais antigo texto relacionado à história da matemática que foi
preservado até os tempos de hoje em sua forma original. (NOBRE, 2002)
Ainda no período que antecede a era Cristã, Nobre (2002) nos diz que há
relatos de outros textos que abordavam assuntos sobre história das ciências e
da matemática, os quais foram elaborados pelo neoplatônico Proclus (c.420-
485), em sua obra Comentários sobre o primeiro livro dos Elementos de

1075
Euclides, onde escreve sobre a existência de dois textos escritos por Eudemus
(4° séc. a.C.) e Geminus (c. 70 a.C.), os dois da ilha de Rhodes.
Outras produções que aparecem aspectos históricos matemáticos são em
enciclopédias, as quais são produzidas desde o século IV a.C. Nessas
produções também são encontradas importantes informações relativas à
historiografia da matemática. Destacamos Diogenes Laertius (≈ séc. III), filósofo
grego, que escreveu um modelo de dicionário no qual continham notas
biográficas sobre os pensamentos e as teorias de filósofos de destaque da
Grécia antiga. (NOBRE, 2002)
O período entre os séculos IV e VI “é marcado pela produção de textos
cujo objetivo central era explicar o pensamento filosófico científico predominante
no período áureo na Grécia. Muitos desses textos são acompanhados de
importantes informações históricas” (NOBRE, 2002, p.10). Nesse período, o
pensador romano de destaque foi Santo Agostinho (354-430) que em alguns
fragmentos de sua obra aponta a relevância da matemática para o conhecimento
e para situações práticas. Além desse pensador, no ramo da matemática, a
ressalva foi para as traduções de Nicomachus de Gerasa (≈ 100 A.D.) realizadas
por Boethius (c. 480-524).
Ainda de acordo com Nobre (2002), a época áurea do desenvolvimento
da história das ciências e da matemática, pode-se dizer, aconteceu na
Renascença, por volta dos séculos XV e XVI, com a invenção da imprensa,
possibilitando a publicação de novas edições das obras clássicas dos
pensadores gregos, como os textos de Euclides, Arquimedes, Pappus,
Ptolomeu, entre outros.
Um dos aspectos relacionados, também, com as pesquisas em história
da matemática diz respeito ao tema biografias de personagens famosos. Já
mencionamos Diogenes Laertius como aquele que registrou diversas dessas
biografias, no entanto, antes dele, Porphyrius (234-?), conhecido por seus
trabalhos na área da filosofia, e seu aluno Iamblichus (≈240-325), com
importantes produções em matemática, escreveram um dos mais antigos textos
biográficos sobre Pitágoras. Em seguida, entre os séculos XVI e XVII foram

1076
produzidos alguns textos biográficos e destacaremos seus autores, que são
relevantes para historiografia das ciências e da matemática. Dentre eles estão:
Giorgio Vasari (1511-1574); Bernardino Baldi (1533-1617); Vincenzo Viviani
(1622-1703) e Niccolò Gherardini (?-1678). (NOBRE, 2002)
As homenagens póstumas dos indivíduos que fizeram parte do
movimento científico, pode ser considerada uma outra maneira de divulgar a
historiografia da matemática. Essas homenagens alcançam seu auge a partir do
século XVII, as quais eram representadas através da publicação das obras
desses indivíduos ou de algum trabalho que ainda não havia sido publicado em
vida.
Diversas pesquisas em história da matemática relacionam-se com os
trabalhos científicos dos jesuítas. Aqueles que elaboravam os textos
matemáticos, buscavam apresentar aos interessados em suas obras uma
perspectiva histórica acerca do conteúdo abordado e dentre esses trabalhos
estão as obras catalográficas, nas quais continham importantes informações
sobre suas atividades. Os jesuítas também contribuíram com a cronologia
histórica da produção dos textos de história da matemática e um deles foi
Christoph Clavius (1538-1612) que elaborou uma edição comentada da obra
Elementos de Euclides e em sua introdução dedica um de seus capítulos ao
início do conhecimento matemático, detalhando a ordem cronológica dos fatos
históricos. (NOBRE, 2002)
Por volta do século XVI, muitos autores de livros com aspectos de textos
escolares, desenvolviam os seus prefácios utilizando assuntos históricos
relativos aos temas apresentados. Dentre esses autores destacamos o filósofo
humanista e protestante calvinista Petrus Ramus (1515-1572); John Wallis
(1616-1703), renomado matemático inglês e o filósofo e matemático Christian
Wolff (1676-1754). (NOBRE, 2002)
Essa parte inicial, apresentada por nós anteriormente, descreve a forma
com que os textos sobre a escrita da história da matemática se desenvolveram.
Contudo, alguns autores procuraram elaborar livros específicos em história da
matemática. De acordo com Nobre (2002), o livro “Histoire des mathématiques”

1077
de Jean Étienne Montucla (1725-1799) é o mais conhecido e, também, o
precursor por apresentar uma estrutura de escrita da história e serviu de modelo
para a elaboração de livros posteriores.
No período entre os séculos XVII e XVIII, foram publicados outros livros
específicos em história da matemática, antes do livro de Montucla. No entanto,
dentre as bibliografias referentes ao tema história da matemática, a obra do
francês Montucla é considerada a mais relevante e comentada desse período.
Com relação ao Brasil, o primeiro texto específico de História da
Matemática é evidenciado por Martins (2015), dissertando sobre Eugênio de
Barros Raja Gabaglia (1862-1919), o autor do livro O mais antigo documento
mathematico conhecido (Papiro Rhind), trabalho publicado no Rio de Janeiro,
em 1899, e pode ser considerada a primeira obra publicada no Brasil dedicada
somente a História da Matemática.
Diante do exposto, o nosso objeto central é elaborar um livro-texto com a
orientação do Professor Sergio Roberto Nobre e que este apresente aspectos
de um livro específico em História da Matemática, em sequência cronológica e
com atividades/questões que sejam teórico-reflexivas baseadas nas atuais
pesquisas da área de História da Matemática. Apresentaremos, junto com os
conteúdos históricos matemáticos, aspectos, principais acontecimentos e
descobertas na área das ciências que envolva a contextualização social e
cultural do momento comentado e notas biográficas dos personagens
relacionados a esses conteúdos.
Além do livro apresentar conteúdos que façam parte da História da
Matemática em seu âmbito geral, nosso material terá uma parte significativa da
produção da História da Matemática no Brasil, que estará destacada em meio
aos conteúdos de história da matemática de âmbito geral, ressalvando a
importância desse campo de investigação para a historiografia da matemática.
Nesse sentido, este trabalho está estruturado, a priori, da seguinte
maneira:
1) Caminhos da Humanidade: um passeio pela História;
2) “Elementos Matemáticos” contidos no trabalho humano;

1078
3) A produção científica dos povos considerados à margem do mundo
ocidental;
4) Desenvolvimento científico na pré-história
5) Conteúdo histórico-científico:
a. Egito e Babilônia.
b. Grécia: as mitologias e a origem do pensamento científico
c. Mundo Romano: personagens e obras matemáticas.
d. China: matemática no mundo oriental.
e. Matemática na Índia
f. Matemática no Oriente Médio – o mundo islâmico
g. Europa:
i.Feudalismo, Cristianismo e as primeiras universidades;
ii.Tradução de obras gregas;
iii.Personagens Matemáticos;
iv.Renascimento: personagens e acontecimentos sócio-científicos;
v.Séculos XV e XVI: Matemática e seus personagens;
vi.Séculos XVI e XVII: construção teórica de alguns ramos da Matemática;
vii.Racionalismo: metade do século XVI – final do século XVIII (início da
institucionalização científica);
viii.Construção dos Métodos Infinitesimais
ix.Cálculo Diferencial e Integral: Newton e Leibniz
x.Séculos XVIII e XIX: iluminismo e desenvolvimento científico.
6) A Matemática desenvolvida no início do século XIX até o século XX.
7) Mulheres na Matemática.
8) História da Matemática no Brasil.

FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

No que diz respeito aos fundamentos teórico-metodológicos, estes ainda


estão em fase de pesquisa e estamos realizando a investigação de materiais e

1079
fontes para o início da elaboração do livro-texto e seguindo as orientações do
professor Sergio Roberto Nobre e nos baseando em suas notas de aulas e,
também, em sua vasta experiência (nacional e internacional) como professor
(graduação e pós-graduação) e pesquisador no campo de investigação em
História da Matemática e História da Matemática no Brasil.

RESULTADOS ESPERADOS

A priori, os resultados que temos são as diretrizes de nosso trabalho e o


aceite do professor Sergio Roberto Nobre para a elaboração do material. No
momento, estamos estruturando o projeto e em busca de material. Esperamos
que o material final seja um livro bem estruturado e com conteúdo de qualidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LATTES. Sergio Roberto Nobre. Disponível em:


<http://lattes.cnpq.br/4586329424897878>. Acesso em: 20 de outubro de 2020.

MARTINS, J. O livro que divulgou o Papiro Rhind no Brasil. (Dissertação:


mestrado). 232 f. Instituto de Geociências e Ciências Exatas – Unesp – campus
Rio Claro. Rio Claro: 2015.

NOBRE, S. R. Introdução à História da História da Matemática: das origens ao


século XVIII. In: Revista Brasileira de História da Matemática. V. 2. N. 3. P. 3-
43. (Abril/2002).

______. A Investigação Científica em História da Matemática em Portugal e no


Brasil: a caminho para sua consolidação como área acadêmica. In: Anais do II
Seminário Nacional de História da Matemática e II Encontro Luso-Brasileiro de
História da Matemática. Editor: NOBRE, S. R. 23 a 26 de março de 1997. Rio
Claro/SP: Cruzeiro Editora e Artes Gráficas, 1997. p 4 -10.

_______. Ubiratan D’Ambrosio e o movimento científico e institucional da


História da Matemática no Brasil. In: Ubiratan D'Ambrosio: conversas,
memórias, vida acadêmica, orientandos, educação matemática,

1080
etnomatemática, história da matemática, inventário sumário do arquivo pessoal.
Wagner Rodrigues Valente (org.). São Paulo: Annablume; Brasília: CNPq,
2007.

1081
O PROCESSO DE MULTIPLICAÇÃO PRESENTE NO “TABULEIRO DE
XADREZ” DE JOHN NAPIER (1550-1617)

Jeniffer Pires de Almeida360


Ana Carolina Costa Pereira361

RESUMO
Entre os séculos XV e XVII, com as grandes navegações e a chegada da Idade
Moderna, houve a necessidade de uma matemática mais complexa e, simultaneamente,
prática, que favorecesse o avanço tecnológico e comercial. Tal acontecimento veio a
inspirar os matemáticos da época, que mostravam a preocupação por técnicas práticas
de computação, a fim de facilitar os cálculos, entre eles, John Napier (1550 – 1617).
Napier possui diversos escritos que estavam de acordo com a necessidade de sua
época, porém ressaltamos, aqui, o Rabdologiae, publicado em 1617. Esse tratado
apresenta três instrumentos, sendo eles: as Barras de Calcular (Rods), o Promptuário
(Promptuary) e o Tabuleiro de Xadrez para Aritmética de Localização (Location
Arithmetic). A partir desse último, estamos realizando uma pesquisa qualitativa de cunho
documental, com base na tradução de William Frank Richardson, de 1990, que fora
publicada por Rice, González-Velasco e Corrigan, em 2017, sustentada por um estudo
bibliográfico a respeito do contexto histórico em que o autor e a obra estavam inseridos,
juntamente com os conhecimentos matemáticos do instrumento. Nesse sentido, temos
por objetivo apresentar o Tabuleiro de Xadrez de Napier para a operação de
multiplicação, além de perpassar por alguns processos referentes à sua construção, que
também exibem diversos conceitos matemáticos que podem ser explorados, como
adição, subtração e potenciação, expondo o instrumento como um provável
potencializador pedagógico para o ensino da matemática.

Palavras-chave: Tabuleiro de Xadrez. Multiplicação. John Napier.

INTRODUÇÃO

360 Universidade Estadual do Ceará (UECE). jeniffer.almeida@aluno.uece.br.


361 Universidade Estadual do Ceará (UECE). carolina.pereira@uece.br.

1082
A partir da segunda metade do século XV, a Europa passara por um
processo de transição que marcou toda a história, principalmente, no que diz
respeito às ciências. Com as navegações já consolidadas, houve um avanço no
comércio e, por consequência, a ascensão da burguesia, que buscava por
atividades práticas e não só de especulações abstratas.
Todas essas questões influenciaram diretamente no desenvolvimento
matemático, como no comércio, que agora necessitava de uma matemática mais
complexa e menos favorável a erros. Essa necessidade por atividades práticas
inspiraram os matemáticos dos séculos XVI e XVII, que mostravam uma
preocupação por técnicas práticas de computação, como John Napier.
Nessa época, proliferaram oficinas dedicadas à fabricação de
instrumentos que facilitavam a resolução de problemas matemáticos. Esses
dispositivos eram apresentados, muitas vezes, por meio de tratados que
“forneciam instruções para construção e uso de um instrumento específico e
apresentavam ainda a validação matemática do instrumento” (SAITO, 2015,
p.189).
Entre esses tratados, destacamos o Rabdologiae, Seu Numerationis Per
Virgulas Libri Duo: cum appendice de expeditíssimo Multiplicationes
promptuario, quibus acessit e arithmeticea localis liber unus Rabdologiae 362, de
John Napier, publicado em 1617, mesmo ano de sua morte363. O objetivo da
publicação não se diferencia muito das outras que o autor publicou, de cunho
matemático, que seria o de reduzir e facilitar as operações aritméticas.
Na obra, o autor apresenta três instrumentos: a Barra de Calcular, o
Promptuário e o Tabuleiro de Xadrez, sendo o último nosso objeto de pesquisa.
Dessa forma, este trabalho apresenta um estudo que envolve a manipulação do
tabuleiro de xadrez, com base no método da Aritmética de Localização, para a
operação de multiplicação, além de percorrer por algumas técnicas de sua

362Pode ser traduzido como: “Rabdologia, dois livros de contar dinheiro com varetas: com um
apêndice do prontuário de multiplicação muito rápida com a adição de um livro de Aritmética
local” (Napier, 2017, Frontispício, tradução nossa).
363 Para maiores informações sobre o detalhamento do tratado, vide: Martins e Pereira (2018).

1083
construção, buscando expor o instrumento como um possível potencializador
didático para o ensino de matemática.

METODOLOGIA

Esta pesquisa se deteve em utilizar um conjunto de metodologias, entre


as quais, uma se baseou em uma abordagem qualitativa, visto que foi realizado
um estudo amplo sobre o objeto de pesquisa. Sobre isso, Prodanov e Freitas
(2013, p.70) informam que “a interpretação dos fenômenos e a atribuição de
significados são básicos no processo de pesquisa qualitativa”.
Outro método utilizado foi o documental, que, segundo Kripka, Scheller
e Bonotto (2015, p. 244), é aquele “em que os dados obtidos são estritamente
provenientes de documentos, com o objetivo de extrair informações neles
contidas, a fim de compreender um fenômeno”. Assim, foram examinados
artigos, livros e sites que discorrem sobre o contexto histórico, a biografia de
John Napier e a descrição do tratado Rabgologiae.
Contudo, este estudo foi elaborado baseado na tradução de William
Frank Richardson, de 1990, publicada por Rice, González-Velasco e Corrigan
(2017), em que foi feita uma tradução para o português do excerto utilizado do
tratado, a fim de compreender melhor alguns aspectos presentes.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

O método Aritmética de Localização permite realizar as operações


básicas da matemática, como adição, subtração, multiplicação e divisão,
utilizando um Tabuleiro de Xadrez. Mas, para o seu manuseio, é preciso,
primeiramente, compreender alguns processos de sua construção.
Para a estruturação do Ábaco Bidimensional364, é preciso, antes de tudo,
determinar o tamanho do número que o usuário deseja operar, para que, a partir
disso, as laterais de um tabuleiro quadrado qualquer possam ser divididas em
tantas partes iguais forem necessárias, conforme Napier (2017, p.736, tradução

364 Outra forma de nomear o tabuleiro de xadrez.

1084
nossa). Ou seja, quanto maior for o número desejado, mais divisões as laterais
do tabuleiro irão conter.

Suponha um tabuleiro quadrado, com marcando


o canto mais próximo de você, o canto da sua esquerda, o
canto mais distante de você, e o canto à sua direita. Pegue o
lado divida-o em tantas partes iguais que você desejar, tal
como 18, 24, ou mais, de acordo com o número de contadores
que você deseja que o tabuleiro tenha. (...) Pegue o lado e
os outros lados e divida-os no mesmo número de partes.

Após realizar as divisões, o autor explica que devem ser desenhadas


linhas de um dos lados para o seu lado oposto, a partir das interseções desses
compartimentos entre eles mesmos, “de modo que o tabuleiro fique dividido,
horizontalmente e verticalmente, em pequenos quadrados, que chamaremos de
posições” (ALMEIDA, PEREIRA, 2020, p.44). No tratado, Napier (2017) dá um
exemplo de um tabuleiro em que seus lados foram divididos em 24 partes iguais,
de acordo com a Figura 1.

1085
FIGURA 1: TABULEIRO DE XADREZ DE JOHN NAPIER

Fonte: Napier, 2017.

Para o preenchimento das subseções contidas no ábaco, Napier (2017,


p.736, tradução nossa) esclarece:

Marque o lado direito a partir de para e de para com


letras do alfabeto e com números, cada um o dobro do último.
(...) Faça o mesmo no lado esquerdo, de para e de para
, deixando de cada lado uma margem suficiente para
acomodar os números.

Assim dizendo, cada letra grifada dentro do tabuleiro corresponde a um


número à sua margem. Essas correspondências são importantes para entender

1086
o procedimento de conversão dos números comuns 365 para o que o autor
denomina de números de localização ou alfabéticos.
Napier (2017) descreve duas formas de realizar a mudança de um
número natural para o alfabético, porém iremos nos deter a uma delas, a qual
utiliza o processo de divisão por dois. Para esse método, é preciso realizar
sucessivas divisões por meio do número dado e de seus restos, de modo que,
se o número fornecido for ímpar, devemos colocar uma peça na posição a e, em
seguida, subtrair uma unidade desse número e dividir o restante por dois, caso
contrário, se o número fornecido for par, nenhuma peça deve ser colocada na
posição a e será feita somente a divisão com ele.
E assim continuamente, sempre dividindo por dois e, se o resultado for
ímpar, subtraindo uma unidade e colocando uma peça naquela posição, mas, se
o resultado for par, não colocando nada, até que o número dado seja totalmente
usado, chegando à unidade, na qual deve ser colocada uma peça na posição
alcançada. Para melhor compreensão, iremos representar o número 15.
Já que o número fornecido é um número ímpar, devemos colocar uma
peça na posição a e subtrair uma unidade para realizar a divisão com o resultado,
isto é, iremos dividir o número 14 por 2, tendo como resposta o valor 7, que,
novamente, é um número ímpar, da mesma forma, colocaremos uma peça na
posição referente a ele, no caso, a posição b e subtraindo 1 e dividindo por 2,
temos o número 3, também ímpar, após colocar uma peça na posição c,
referente a ele, realizaremos o mesmo processo anterior, chegando ao valor 1,
em que devemos associar uma peça na posição alcançada, a saber: a posição
d. Portanto, teremos usado todo o número e, por meio das peças colocadas no
tabuleiro, dispomos da representação alfabética abcd para o número 15 (Figura
2).

FIGURA 2: TABULEIRO DE XADREZ NA CONVERSÃO DE UM


NÚMERO COMUM PARA O ALFABÉTICO

365 Como o autor denomina os números naturais.

1087
Fonte: Elaborado pelas autoras.

Para reverter a mudança de um número de localização para o comum,


o autor também descreve duas maneiras, mas iremos abordar uma delas, que
utiliza a adição. Para essa técnica, devemos encontrar os números
correspondentes às letras expressas no número alfabético. Ou seja, dado um
número expresso como dcba, os números relativos a essas posições são d 8, c
4, b 2, a 1 (Figura 2) e, ao somá-los, o total será 15, que é o número fornecido.
Em relação aos números em sua forma alfabética, o escritor destaca dois
métodos que são relevantes para trabalhar-se com eles, a técnica de posição e
abreviação. Segundo Napier (2017, p.732, tradução nossa), “posição significa
que os componentes dos números na notação local devem ser marcados com
contadores conforme necessário”366, isto é, ao converter um número natural para
o de localização, as letras correspondentes encontradas devem ser indicadas no
tabuleiro, com peças.
No que diz respeito ao método de abreviação, o autor explica que
“significa que dois contadores em uma determinada posição são substituídos por
um na próxima posição superior”367 (NAPIER, 2017, p.732, tradução nossa), isso
significa que, se um número em sua forma alfabética possuir duas letras iguais,

366 Em inglês, lê-se: position means that the components of numbers in local notation nare to be
marked with counters as required (NAPIER, 2017, p.732).
367 Abbreviation means that two counters standing in a certain position are to be replaced by one

in the next higher position.

1088
essas podem ser trocadas por uma só letra, sendo a última posterior à primeira.
Por exemplo, para abreviar o número abbd, substitua as duas letras b por uma
única c, assim o número em sua forma abreviada é acd. É interessante notarmos
que esse processo não altera o valor do número.
Outro processo essencial para o manuseio do aparato são as formas
como as peças postas nele são movimentadas. Conforme Napier (2017, p.736,
tradução nossa), existem dois modos em que esses movimentos podem ser
realizados, o reto e o diagonal, cujo primeiro é comparado à movimentação da
torre e o segundo à do bispo, no jogo tradicional de xadrez:

o movimento ou deslocamento no tabuleiro é de dois tipos: reto


e diagonal. O movimento reto é paralelo aos lados, como a torre
se move no xadrez. (...) O movimento diagonal prossegue de um
canto da placa para a diagonal no canto oposto ou então é
paralelo a esse movimento, conforme o bispo se move no
xadrez.368

Ainda em relação ao movimento das peças no tabuleiro, o autor denota


dois axiomas e, apoiado neles, lista uma série de corolários que auxiliam o
usuário nesse processo. Porém, iremos tratar somente dos axiomas e corolários
que têm relação com a operação de multiplicação no tabuleiro.
No primeiro axioma, Napier (2017, p. 739, tradução nossa) relata que
“no movimento reto (como o movimento da torre), o valor de cada espaço é o
dobro do anterior, seja para a esquerda ou para a direita”. Melhor dizendo, se
observarmos na Figura 2, por exemplo, todos os quadrados de a a h, à esquerda
ou à direita, aumentam duas vezes em relação ao anterior.
No segundo axioma, temos que “todos os quadrados na diagonal entre
duas letras idênticas têm o mesmo valor do número anotado em qualquer
margem e devem ser marcados (pelo menos potencialmente) pelas mesmas
letras” (NAPIER, 2017, p. 739, tradução nossa). Portanto, se relacionarmos o
segundo axioma ao primeiro, somos capazes de preencher todo o tabuleiro.

368Em inglês, lê-se: Motion or progress on the board is of two types: Direct and diagonal. Direct
motion is parallel to the sides, as the rook moves in chess. (...) Diagonal motion proceeds from
one corner of the board to the diagonally opposite corner or else is parallel to this motion, as the
bishop moves in chess (NAPIER, 2017, p.736).

1089
Quanto ao uso do tabuleiro para a operação de multiplicação, Napier
(2017, p.741, tradução nossa) explica:

Use contadores ou giz para marcar um dos dois números a ser


multiplicado na margem inferior direita ( ) e o outro na
margem inferior esquerda ( ). Marque-os fora da área do
tabuleiro mas nos números reais ao lado das letras. Então, a
partir desses dois números marcados com contadores ou giz nas
margens, prossiga para marcar com contadores todos os
ângulos comuns no tabuleiro. (Figura 1)

Assim sendo, ao determinar os números que iremos operar, precisamos


convertê-los em números de localização, para, a partir disso, marcarmos um
deles em uma margem e o outro na outra margem do tabuleiro, utilizando o
método de posição. Após isso, devemos realizar o movimento reto partindo de
cada posição indicada com as peças no tabuleiro, de modo a encontrar os pontos
de interseção desses movimentos para prosseguir com a operação. Napier
(2017) executa um exemplo em seu tratado, no qual multiplica o número 19 por
13, para melhor entendimento, iremos exemplificar esse mesmo caso.
Para multiplicar 19 por 13, mudaremos esses números para a
numeração local, que são, respectivamente, abe e acd, baseados nisso,
colocaremos peças em cada uma das posições encontradas e movimentaremos
as mesmas de modo reto ou paralelo às laterais, de forma a encontrar os ângulos
comuns criados com esses movimentos, como veremos na imagem a seguir
(Figura 3).

FIGURA 3: TABULEIRO DE XADREZ NA OPERAÇÃO DE


MULTIPLICAÇÃO

1090
Fonte: Napier, 2017, grifos nosso.

As peças colocadas no tabuleiro (Figura 3) formam um retângulo e esse


retângulo já denota o produto múltiplo desejado, porém precisamos resgatar
esse número da sua forma local para a comum e, para isso, utilizamos,
primeiramente, o método de abreviação, movendo as peças de forma diagonal,
da seguinte maneira.
Existe uma única peça na diagonal aa, portanto, transfira a mesma para
a margem direita, de igual modo, com as diagonais bb e cc. Na diagonal dd,
temos duas peças, substitua as mesmas por uma única peça na diagonal ee,
usando o processo de abreviação. Com isso, terá as três peças na diagonal ee,
transfira uma delas para a margem direita e abrevie as outras duas, de maneira
que uma peça seja colocada na diagonal ff e transfira a mesma para a sua
margem direita, já que é única. Na margem gg, também, possui uma única peça,
portanto, transfira a mesma para a sua margem direita, da mesma forma, com a
peça contida na diagonal hh (Figura 4).

1091
FIGURA 4: TABULEIRO DE XADREZ COM O PRODUTO DA
MULTIPLICAÇÃO

Fonte: Napier, 2017, grifos nosso.

Finalizando todos esses procedimentos, veremos que existem


contadores nas margens a 1, b 2, c 4, e 16, f 32, g 64, h 128. Dessa forma, basta
somarmos os números encontrados e acharemos o resultado 247 como produto
de 19 por 13.
Apoiados no que foi discutido, percebemos que o Tabuleiro de Xadrez
de Jonh Napier é um grande potencializador didático, pois elenca conhecimentos
matemáticos, raciocínio lógico, conversão de números binários, que juntos
podem fazer com a execução do processo de multiplicação seja possível. Além
disso, podemos notar que o processo de sua construção ainda se apropria de
diversos conhecimentos matemáticos, tais como adição, subtração e
potenciação.

CONCLUSÃO

A partir desse trabalho prévio a respeito do Tabuleiro de Xadrez de John


Napier, foi possível perceber que a utilização desse instrumento pode ser voltada
para o ensino, já que ele se apropria de diversos conhecimentos matemáticos,
tanto em sua construção como em seu manuseio, no que diz respeito à operação
de multiplicação.

1092
Todavia, esta pesquisa ainda deve continuar, de modo a adentrar em
outras operações que o autor realiza utilizando o instrumento, tal como a
subtração e extrações de raízes quadradas, para que, com isso, possamos
realizar atividades utilizando o aparato.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Napier para a multiplicação. Revista história da matemática para
professores, v. 6, n. 2, p. 43 - 56, 31 dez. 2020.

KRIPKA, R. M. L.; SCHELLER, M. e BONOTTO, D. L. Pesquisa Documental:


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expeditíssimo Multiplicationes promptuario, quibus acessit e arithmeticea localis
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PRODANOV, Cleber Cristiano; FREITAS, Ernani César de. Metodologia do


Trabalho Científico: Métodos e Técnicas da Pesquisa e do Trabalho
Acadêmico. 2. ed. Novo Hamburgo: Editora Feevale, 2013. 277 p.

SAITO, F. História da matemática e suas (re)construções contextuais. São


Paulo: Editora Livraria da Física, 2015. 259 p.

1093
OS POTENCIAIS OPERACIONAIS PRESENTES NO INSTRUMENTO
PROMPTUARIO DE JOHN NAPIER (1550-1617) - PÔSTERES

Pedro Henrique Sales Ribeiro369


Davi Souza Cavalcante370
Ana Carolina Costa Pereira 371

RESUMO
Durante a Idade Moderna, período que se iniciou no século XV, inúmeras modificações,
de cunho político, social, científico e econômico, ocorreram. Essas mudanças se deram
pela quebra do padrão que se tinha estabelecido durante a Idade Média e, assim, ao
romper com o modelo anterior, novas necessidades foram postas. Como tentativa de
sanar essas necessidades e com a criação da imprensa, houve uma disseminação de
tratados científicos. Dentre esses tratados, podemos encontrar o Rabdologiae, Seu
Numerationis per Virgulas, publicado em Edimburgo, no ano de 1617 e de autoria do
escocês John Napier. Essa obra aborda três instrumentos matemáticos para cálculos
aritméticos, são eles: as Barras de Calcular, o Promptuario e o Tabuleiro de Xadrez para
a aritmética de localização. Dessa forma, esta pesquisa tem o intuito de expor os
potenciais de operar que estão presentes no instrumento Promptuario e, para isso, está
amparada em uma metodologia qualitativa, de cunho descritivo, adjunta a uma pesquisa
documental e bibliográfica, já que foi utilizada a obra original, em sua versão traduzida
para o inglês, por William Frank Richardson, em 1990, como também nos valemos do
livro The Life and Work of John Napier, publicado em 2017 e do livro John Napier: Life,
Logarithms and Legacy, de 2014. Com isso, foi possível identificar as grandes
capacidades operacionais que esse instrumento possui, bem como compreender as
razões pelas quais ele não foi largamente difundido em seu período. Assim, podemos
perceber que esse aparato, ainda que tenha sido concebido com a intenção de sanar a
necessidade de uma parte da sociedade do período, a de realizar multiplicações longas,
foi pouco explorado no contexto em que estava inserido.

Palavras-chave: Promptuario. Instrumento Matemático. História da Matemática.


John Napier.

369 Universidade Estadual do Ceará (UECE). henrique.ribeiro@aluno.uece.br.


370 Universidade Estadual do Ceará (UECE). davi.cavalcante@aluno.uece.br.
371 Universidade Estadual do Ceará (UECE). carolina.pereira@uece.br.

1094
INTRODUÇÃO
As transformações ocorridas no continente europeu, entre os séculos XV
e XVII, impactaram a forma como a sociedade encarava as problemáticas que
surgiam. Essas problemáticas derivaram, principalmente, das mudanças de
cunho político, econômico e científico que aconteceram.
As modificações citadas trouxeram consigo, também, grandes
necessidades, uma vez que se instauraram novos padrões, que, como resultado,
exigiram, de igual modo, a implantação de novos métodos, para que fosse
possível atingir certos objetivos, que, em períodos anteriores, não eram
relevantes.
Dentre esses novos padrões, podemos destacar a expansão comercial
e as consequentes vendas que passaram a ocorrer em larga escala, junto ao
processo de industrialização que estava acontecendo, o que demandava dos
comerciantes uma capacidade de calcular mais robusta do que as que estavam
sendo utilizadas até então.
Ainda, nesse período, a ciência moderna passou a se moldar e

podemos dizer que, mais do que o rompimento total com o passado, a


ciência moderna parece ter se constituído numa tensão entre saberes
antigos e modernos, entre as novas possibilidades de conhecer a
natureza [...] e o conhecimento estabelecido que, embora fosse
criticado, não fora totalmente descartado de uma hora para outra
(SAITO, 2015, p. 165).

Assim, tendo em vista as necessidades apresentadas e o contexto em


que estavam inseridas, alguns teóricos passaram a expor os seus
conhecimentos a partir da escrita de tratados, de maneira a divulgar para a
sociedade suas ideias e invenções, que poderiam ser utilizadas como forma de
sanar as carências que estavam presentes naquele contexto.
Dentre essas ideias e invenções, é possível apresentar os chamados
“instrumentos matemáticos”, que são “artefatos que eram utilizados por
diferentes segmentos do saber para medir aquilo que Aristóteles denominava
“quantidades” notoriamente, ângulo e distância” (SAITO, 2019).

1095
Um dos teóricos que podemos destacar é o escocês John Napier,
nascido no ano de 1550, na cidade de Edimburgo e que, durante a sua vida,
escreveu diversas obras contendo conteúdos matemáticos, inclusive
instrumentos, como o tratado Rabdologiae, Seu Numerationis Per Virgulas...,
publicado em 1617, no mesmo ano da morte do autor.
A obra citada aborda a construção e a utilização de três instrumentos
matemáticos para operações algébricas. São eles: as Barras de Calcular,
conhecidas, popularmente, como Barras de Napier; o Promptuario e o Tabuleiro
de Xadrez para a performance da aritmética de localização.
Por mais que esse tratado contenha esses três instrumentos, esta
pesquisa está pautada somente no instrumento Promptuario, um instrumento
composto por um conjunto de varetas horizontais e verticais e uma caixa, que
permite o cálculo de multiplicações longas e difíceis, de uma forma ágil.

METODOLOGIA
Este estudo está amparado por uma metodologia qualitativa, de cunho
descritivo e que se baseia, principalmente, em uma pesquisa documental, isto é,
“aquela em que os dados obtidos são estritamente provenientes de documentos,
com o objetivo de extrair informações neles contidas, a fim de compreender um
fenômeno” (KRIPKA, SCHELLER e BONOTTO, 2015, p. 244).
O documento original escolhido foi apenas um excerto, o apêndice, do
tratado Rabdologiae, Seu Numerationis Per Virgulas..., que se encontra entre as
páginas 85 e 102 dessa obra, em sua versão em latim, publicada no ano de
1617, na cidade de Edimburgo.
No entanto, utilizamos a versão em inglês, traduzida por William Frank
Richardson, em 1990 e que está contida no livro The Life and Works of John
Napier, que tem a autoria de Brian Rice, Enrique González-Velasco e Alexander
Corrigan, publicado no ano de 2017. Nessa versão em língua inglesa, o excerto
que aborda a construção e a utilização do instrumento Promptuario está entre as
páginas 713 e 726.

1096
Além disso, valemo-nos, também, de uma pesquisa bibliográfica, que,
nas palavras de Gil (2008, p.50), “é desenvolvida a partir de material já
elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científico”, sendo o
referencial bibliográfico o próprio livro citado acima, The Life and Works of John
Napier, bem como a obra John Napier: Life, Logarithms and Legacy, escrita pelo
matemático Julian Havil e publicada em 2014.
RESULTADOS E DISCUSSÕES
Entre as diversas invenções de Napier, estão os seus três instrumentos
voltados para cálculos algébricos, que foram, segundo o autor, desenvolvidos,
especialmente, “para o benefício daqueles que preferem operar com os números
naturais como eles são” (NAPIER, 2017, p. 653, tradução nossa)372, o que revela
certa preocupação do matemático quanto àqueles que utilizavam esses
números, ditos como naturais, no seu cotidiano.
Desses três instrumentos matemáticos, podemos destacar o
Promptuario, um aparato formado por um conjunto (Figura 1), composto por uma
caixa desenvolvida por Napier e um determinado número de varetas verticais e
horizontais, que seguem uma construção373 matemática, descrita pelo autor no
tratado, para que possam ser utilizadas na realização das operações.

372 Em inglês, lê-se: “for the benefit of those who prefer to operate with the natural numbers as they are”
(NAPIER, 2017, p. 653).
373 Quanto à construção, vide: Ribeiro; Cavalcante; Pereira (2020).

1097
FIGURA 1: O CONJUNTO QUE COMPÕE O INSTRUMENTO PROMPTUARIO

Fonte: Napier (2017, p. 714, 715, 719).

Sua utilização funciona a partir da sobreposição dessas varetas, cuja


vareta horizontal, que é aberta em determinados lugares, cobre a vareta vertical,
a qual é graduada com os múltiplos dos dez algarismos. Assim, após a
sobreposição, somente os números que estão expostos pelos furos da horizontal
serão utilizados para o resultado.
Quanto à utilidade do instrumento, o inventor afirma que, “com sua
assistência, todas as multiplicações, por mais longas e difíceis, podem ser
executadas fácil e rapidamente” (NAPIER, 2017, p. 713, tradução nossa) 374 ,
indicando-nos a existência de um grande potencial para a realização da
operação de multiplicação, considerando o contexto em que esse aparato foi
concebido.
Além disso, é ressaltada também a capacidade do instrumento de
conseguir efetuar divisões, mas sendo, para isso, necessário “primeiro ser
convertido em multiplicações com a ajuda de senos, tangentes e secantes ou
das tabelas no (nesse) livro” (NAPIER, 2017, p. 713, tradução nossa)375, logo, é

374 Em inglês, lê-se: “With its assistance, all multiplications, however long and difficult, can be carried out
easily and quickly” (NAPIER, 2017, p. 713).
375 Em inglês, lê-se: “first be converted into multiplications with the help of sines, tangents, and secants or

else the Tables in [this] book” (NAPIER, 2017, p. 713).

1098
mostrado, da mesma forma, um outro potencial existente, já que, com o mesmo
instrumento e apenas realizando transformações trigonométricas, pode-se fazer
uma outra operação distinta.
Ademais, da própria concepção do autor, ainda podemos encontrar
outras afirmações que enfatizam a importância do instrumento, partindo do ponto
de vista de suas capacidades de operar. Nas palavras de Rice, González-
376
Velasco e Corrigan (2017, p. 44, tradução nossa) , o Promptuario é
“provavelmente o mais poderoso dispositivo de Napier”, o que nos revela o
quanto esses autores reconhecem a relevância desse aparato, dado o seu
contexto.
Outra colocação que demonstra as potencialidades desse instrumento é
a de Havil (2014, p. 137, tradução nossa) 377
, segundo ele, “podemos
sensatamente descrever [o Promptuario] como um computador analógico”,
indicando, portanto, uma grande importância desse dispositivo, principalmente,
quando analisado o contexto em que ele está inserido e o desenvolvimento das
tecnologias que estavam ocorrendo no período.
Contudo, mesmo com todas as características positivas que foram
apontadas, “durante séculos, o Promptuario foi pouco conhecido ou apreciado,
e apenas as instruções de Napier em latim para sua construção estavam
prontamente disponíveis” (RICE; ENRIQUE GONZÁLEZ-VELASCO;
378
CORRIGAN; 2017, p. 44, tradução nossa) , demonstrando que,
provavelmente, houve uma baixa disseminação ou aceitação do apêndice do
tratado de Napier, que aborda esse instrumento matemático.
Entretanto, existe uma versão construída (Figura 2) do Promptuario e que
está exposta no Museu Arqueológico de Madri, ela é a única conhecida que tem
semelhanças com o original, que foi construído por Napier e foi reidentificado, no

376 Em inglês, lê-se: “probably the most powerful of Napier’s devices” (RICE; GONZÁLEZ-VELASCO;
CORRIGAN; 2017, p. 44).
377 Em inglês, lê-se: “we can reasonably describe as an analogue computer” (HAVIL, 2014, p. 137).
378 Em inglês, lê-se: “For centuries the Promptuarywas little knownor appreciated, only Napier’s

instructions in Latin for its construction being readily available” (RICE; GONZÁLEZ-VELASCO; CORRIGAN;
2017, p.44).

1099
ano de 1988, pelo engenheiro americano Erwin Tomash (RICE, GONZÁLEZ-
VELASCO, CORRIGAN, 2017).

FIGURA 2: O PROMPTUARIO EXPOSTO NO MUSEU DE MADRI

Fonte: Rice; González-Velasco; Corrigan (2017, p. 470).

Quanto à primeira versão do instrumento, construída pelo próprio Napier,


Rice; González-Velasco; Corrigan (2017, p. 45, tradução nossa)379 expõem que,
“embora ele estivesse claramente muito orgulhoso de seu Promptuario, não há
indicação de que ele o tenha usado durante seus cálculos [de logaritmo]”,
levando-nos a entender que o autor não desenvolveu o aparato pensando em
sanar as suas necessidades, mas sim as da sociedade do período.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dessa forma, utilizando-se a pesquisa documental para compreender os
aspectos que estão presentes na obra original, como a opinião do autor quanto
ao seu próprio instrumento e valendo-se, também, de uma pesquisa bibliográfica

379Em inglês, lê-se: “even though he was clearly very proud of his Promptuary, there is no indication that
he used it during his calculations”.

1100
em livros que exploram a vida e os trabalhos de Napier, foi possível identificar as
grandes capacidades de operar que o Promptuario possui.
Ao analisar o contexto histórico e o conteúdo que estão expostos no
referencial teórico adotado, concluímos que o aparato foi posto como uma
tentativa de superar as necessidades relativas à realização de cálculos longos
de multiplicação, uma vez que esse instrumento tem o potencial de efetuar essa
operação em poucos segundos.
Mesmo com a existência de uma grande capacidade operacional, vimos
que o Promptuario foi pouco utilizado e esse fato pode ter inúmeras explicações,
como a baixa disseminação do apêndice que abordava o instrumento ou o
grande destaque que foi dado às Barras de Calcular, que estão dispostas nos
dois primeiros livros do Tratado em questão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GIL, A. C. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6. ed. São Paulo: Atlas S.A,
2008.

HAVIL, J. John Napier: Life, Logarithms, and Legacy. New Jersey: Princeton
University Press, 2014.

KRIPKA, R. M. L.; SCHELLER, M. e BONOTTO, D. L. Pesquisa Documental:


considerações sobre conceitos e características na Pesquisa Qualitativa. IN:
CONGRESSO IBERO-AMERICANO EM INVESTIGAÇÃO QUALITATIVA, 4.,
2015, Aracaju. Anais. Aracaju: Ludomedia. 2015. p. 243-247

NAPIER, J. Rabdologiae, Seu Numerationis Per Virgulas: cum appendice de


expeditíssimo Multiplicationes promptuario, quibus acessit e arithmeticea localis
liber unus. In: RICE, B.; GONZÁLEZ-VELASCO, E.; CORRIGAN, A. The Life
and Works of John Napier. Cham: Springer, 2017. p. 652-749.

RICE, B.; GONZÁLEZ-VELASCO, E.; CORRIGAN, A. The Life and Works of


John Napier. Cham: Springer, 2017.

RIBEIRO, P. H. S; CAVALCANTE, D. S; PEREIRA, A. C. C. O procedimento de


construção das varetas do promptuario de John Napier (1550-1617). Boletim
Cearense de Educação e História da Matemática, v. 7, n. 21, p. 112-121, 10
dez. 2020.

1101
SAITO, F. A reconstrução de antigos instrumentos matemáticos dirigida para
formação de professores. Educação: Teoria e Prática, [S.L.], v. 29, n. 62, p. 571-
589, 19 dez. 2019. Departamento de Educacao da Universidade Estadual
Paulista – UNESP. http://dx.doi.org/10.18675/1981-8106.vol29.n62.p571-589.

SAITO, F. História da matemática e suas (re)construções contextuais. São


Paulo: Editora Livraria da Física, 2015. 259 p.

1102
REFLEXÕES SOBRE A HISTORIOGRAFIA DA MATEMÁTICA

Carlos Antonio Assis de Oliveira380


Vinícius Linder381

RESUMO
Este trabalho visa trazer breves reflexões metodológicas sobre uma parcela do fazer
historiográfico da matemática no Brasil. Uma razoavelmente recente tradução, em 2007,
do livro "A history of mathematics" de Florian Cajori de 1894 nos parece sintomático de
uma historiografia cujos paradigmas ainda parecem remeter à práticas e concepções
defasadas em termos do que é feito atualmente em História da Matemática. Neste breve
texto, buscamos dar ênfase a tais distinções teórico-metodológicas, em vista a contribuir
com a criticidade na produção da História da Matemática no Brasil e em seu ensino.
Destacamos aqui duas distinções: entre "History" e "Heritage", proposta por Grattan-
Guiness (2004b) e entre História Social e Conceitual, esta última bastante conhecida no
campo da História da Ciência, sobre a qual damos nossa visão particular. Além disso,
procuramos discutir a contribuição da aplicação destas reflexões nos quatro eixos
temáticos propostos pelo presente seminário. Por fim, destacamos a impossibilidade da
neutralidade no que concerne à metodologia, de forma que a consciência de posição do
pesquisador se torna imprescindível para a boa produção de seu trabalho.

Palavras-chave: Historiografia da Matemática. História da Matemática. História


Social da Matemática. História Conceitual da Matemática.

INTRODUÇÃO

Desde o século XIX, vemos um aumento exponencial nas publicações sobre a


História da Matemática. É neste século que podemos identificar o surgimento de

380
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). carlosroot4@gmail.com
381
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). lindervinicius@gmail.com.

1103
diversas concepções teórico-metodológicas presentes ainda hoje em parte da
historiografia da Matemática no Brasil.
Uma ilustração do legado do século XIX pode ser vista pela publicação do livro
"A history of mathematics" de Florian Cajori, em 1894. Esse livro serviu como
fonte historiográfica para os livros de História da Matemática de Boyer e de Eves,
amplamente utilizados no Brasil. Para termos ideia, no prefácio à primeira edição
de seu livro, Boyer diz sobre o livro de Cajori: “still is a very helpful reference
work” (BOYER, 2012, p. xi) e no comentário das referências diz: “One of the most
comprehensive, nontechnical, single-volume sources in English” (ibid., p. 472)
O livro contém informações defasadas, como, por exemplo, não mencionar os
novos livros da Aritmética de Diofanto encontrados em língua árabe na década
de 1970, apesar da última edição ser de 1991. Além disso, o livro contém
algumas frases com teor racista. Por exemplo, sobre os Árabes, vemos: “Thus a
Semitic race was, during the Dark Ages, the custodian of the Aryan intelectual
possessions” (CAJORI, 1999, p. 112).
Destacamos o livro de Cajori, pois, no ano de 2007, o livro recebeu sua primeira
tradução para o português publicada no Brasil, sendo esta baseada na 5ª edição,
de 1991. Apesar das diversas mudanças no decorrer das 5 edições, a
perspectiva historiográfica continua a mesma. Parece incoerente, portanto, a
necessidade da tradução dessa obra enquanto fonte historiográfica atual.
Nos últimos trinta anos, nota-se o surgimento de uma nova concepção
historiográfica em História da Matemática. Essa nova perspectiva sobre a história
de nossa disciplina visa dar maior ênfase sobre como as questões sociais estão
relacionadas às diversas práticas matemáticas no decorrer da história.
Visto as considerações acima, este trabalho tem como objetivo mostrar como a
História da Matemática se beneficiaria com maiores discussões, e debates,
sobre questões teórico-metodológicas, visando superar a dicotomia entre o
internalismo e o externalismo.

DISTINÇÃO ENTRE AS PERSPECTIVAS ‘HISTORY’ E ‘HERITAGE’

1104
Uma caracterização muito útil, metodologicamente falando, para o
estabelecimento de uma análise crítica das perspectivas historiográficas em
História da Matemática são os conceitos apresentados por Grattan-Guinness
(2004). Segundo este autor, as concepções historiográficas podem ser
tipificadas pela relação das noções passadas com as noções presentes. O autor
define duas maneiras de se conceber a História da Matemática, que são: a
concepção de “History” e a concepção de “Heritage. A primeira tem como
principal objetivo dizer o que aconteceu no passado. Já a segunda, tem como
objetivo dizer como nós chegamos onde estamos.
Para responder a primeira pergunta, precisamos buscar compreender todo o
contexto em que algum conceito matemático foi desenvolvido. Sendo necessário
saber sua pré-história e outras ideias concorrentes que se desenvolviam
paralelamente; construir uma cronologia da progressão da utilização de
determinado conceito; analisar se tal desenvolvimento teve impacto desde sua
criação ou se a influência só começou alguns anos, ou décadas, após sua
concepção. Algumas questões levantadas são: Por que tal conceito se
desenvolveu de determinada maneira e não de outra? Quais os fatores
socioculturais que influenciaram tanto a criação quanto a circulação de um
conceito matemático? Outra característica que marca tal concepção é a ênfase
na distinção entre uma determinada noção e sua aparente similaridade com a
noção atual que temos da mesma, por exemplo, o conceito de função utilizado
por Euler e o conceito contemporâneo de função, que é atribuído a N. Bourbaki.
Já para a segunda pergunta, devemos nos concentrar no impacto que um
conceito específico teve sobre os trabalhos posteriores, focando-se
especialmente na forma que eventualmente esse conceito possa ter tomado, ou
incorporado, em contextos posteriores. A análise histórica é feita com os
conceitos tendo seu sentido atual, onde procura-se enfatizar as similaridades
que o conceito contemporâneo teria com o conceito no passado, seja esse
passado muito distante ou não. Por exemplo, estabelecer uma relação direta
entre o conceito de função de Fourier e o nosso. Frequentemente, as respostas

1105
para a pergunta levantada costumam ser da forma “O caminho principal que o
conceito seguiu até nós foi…”. Assim, temos implícita uma ideia de linearidade
das ideias matemáticas, sendo cada época subsequente responsável por
desenvolver um pouco mais os conceitos, que teriam surgido num passado,
frequentemente, muito distante.
Grattan-Guinness (2004) faz questão de destacar que, ambas as concepções
são legítimas mas que atendem a propósitos diferentes, ou seja, não existe uma
hierarquia entre esses modos de se fazer história, a escolha vai depender das
especificidades da problemática em questão. O que o autor ressalta é que não
podemos confundir essas duas abordagens do fazer historiográfico —seja
confundindo herança com história (frequentemente a visão dos matemáticos)
seja confundindo história com herança (mais associada a historiadores).
Em síntese, podemos dizer que a diferença epistemológica entre essas duas
categorias se dá pelo fato de que a história se concentra no desenvolvimento de
um determinado conceito, enquanto a herança avalia o impacto deste conceito
sobre os entendimentos posteriores a ele.

HISTÓRIA CONCEITUAL VERSUS HISTÓRIA SOCIAL

A primeira questão que temos que esclarecer é a seguinte: a escolha do título


desta seção foi uma provocação. Durante nossa argumentação, vamos tentar
desconstruir exatamente a ideia de oposição que supostamente existiria entre
estes dois conceitos, pois consideramos que essa dicotomização gera mais
problemas que soluções.
O fato destas reflexões terem sido iniciadas pelos autores há relativamente
pouco tempo, coloca-nos algumas limitações relacionadas à escolha da melhor
nomenclatura para expressar nossas ideias. Para maior clareza, ilustramos na
figura 1 um esboço das ideias a serem apresentadas.

1106
Figura 1 - Concepções em linha

Fonte: Elaborado pelos autores.

Vamos agora às explicações dos termos utilizados. Para uma caracterização dos
tipos de pesquisas dos pontos A e B (internalista e externalista), lançamos mão
das perspectivas de Roque (2012). Roque (2012) procura definir a abordagem
internalista tal qual aquela exposta como um desenvolvimento de conceitos
guiados por necessidades internas à matemática, focando em resultados e
provas. Tal abordagem se encontra por exemplo na história da matemática
desenvolvida por Boubarki na década de 1960. Sobretudo a partir dos anos
1980, influi sobre a historiografia da matemática a ênfase de uma abordagem
que contextualiza seus aspectos educacionais, sociais e institucionais. Sob o
impulso de diversas forças, iniciava-se, assim, uma fase de maior preocupação
com as práticas culturais, contrabalançando o papel preponderante que os
conceitos tiveram para os historiadores das gerações anteriores (ROQUE, 2012,
p. 482). Tal abordagem distingue-se assim da anterior, caracterizando-se por
sua externalidade.
Nessa perspectiva, procuramos localizar essas abordagens como extremos de
um segmento que opõe a história social e a história conceitual, de onde podemos
supor um ponto central, objetivo dessa mediação.
A questão chave aqui é a caracterização do que seria o Ponto Central. Esse
ponto está intimamente relacionado com os objetivos do pesquisador. Ele teria
como principais propriedades o fato de, primeiro, não estar previamente fixado,
sendo função do pesquisador ater-se a um objetivo e, segundo, ser impossível
de ser alcançado, pois caso um pesquisador ideal conseguisse realizar tal

1107
trabalho, os pesquisadores que o lessem, no caso, nós, interpretaríamos esse
trabalho como sendo levemente inclinado para o social ou para o conceitual.
Ao determinarmos qual seria nosso Ponto Central, nós estaríamos definindo
onde seriam colocados os parênteses, limitando, assim, os tipos de orientações
metodológicas a serem seguidas na pesquisa. Além disso, fazendo uma
analogia com o conceito de limite no ponto, as pesquisas escolhidas poderiam
se aproximar o tanto quanto queiramos de Ponto Central, mas nunca alcançá-lo.
Por isso seu símbolo na Figura 1 não é preenchido.
Ao fazermos a descrição acima, levamos em consideração, por questões
didáticas, a concepção descrita por uma reta. Na realidade, essa é apenas uma
das maneiras que podem ocorrer, talvez a menos comum. O que julgamos ser
mais plausível de representar a realidade é a Figura 2.

Figura 2 - Concepções limite

Fonte: Elaborado pelos autores.

Destacamos que os pontos A e B, assim como o Ponto Central, não são fixos.
Agora a diferença é que esses pontos não seriam mais definidos pelo
pesquisador, por isso sua representação na figura aparece como um ponto
preenchido, nos remetendo a ideia de conjunto fechado, onde é possível
alcançar tal ponto.

1108
Outra característica a ser ressaltada é que, por alguma especificidade da
pesquisa que estiver sendo realizada, os pontos A e B podem estar mais
próximos do Ponto Central, sem nunca alcançá-lo, do que os limites dos
parênteses, exatamente como na figura.
Feito essas considerações, podemos dizer que a tentativa de alcançar o Ponto
Central seria exatamente a superação do paradigma conceitual versus social.
Em termos dialéticos, se considerássemos o paradigma conceitual como uma
tese e o social como sua antítese, teríamos como resultado de nossa síntese o
que chamaremos de paradigma socioconceitual, que apesar de ser originado
dos paradigmas anteriores, não seria mais nem conceitual e nem social, seria
um amálgama com identidade própria.
Salientamos que a construção deste novo paradigma é estabelecido pelos limites
dos parênteses expressados nas figuras, e não pelos pontos A e B. Se o novo
paradigma dependesse apenas de A e B, ele seria único. Mas, como nós
definimos que os parênteses são colocados ao escolhermos o Ponto Central,
isso implica que para cada Ponto Central diferente, criamos um novo paradigma
diferente. Ou seja, o que chamamos de paradigma socioconceitual, na verdade
são infinitos, claro que nem todos devem ser importantes para a História da
Matemática.

REFLEXÕES SOBRE UMA “MÁ-HISTÓRIA”

O primeiro ponto a ser discutido é caracterizar o que estamos chamando de “má-


história”. Má-história seria a utilização inadequada do ferramental metodológico
por parte do pesquisador, fazendo com que seus resultados de pesquisa sejam
altamente questionáveis ou até mesmo absurdos. Assumimos que essa alegada
utilização inadequada da metodologia é feita inconscientemente, de maneira
tácita, já que não seria plausível supor a escolha deliberada de um método de
pesquisa histórico inapropriado.

1109
Nossa intenção não é fazer uma caça às bruxas, ou criar uma lista de requisitos
para boas práticas metodológicas. Nosso objetivo é chamar atenção para o
exercício de sempre estarmos realizando reflexões acerca de nossas
metodologias, buscando maneiras de aperfeiçoá-las, ou de trocá-las quando
necessário.
Para tornarmos a discussão mais concreta, vamos citar exemplos para cada eixo
temático proposto pela SNHM. Em História da Matemática, temos questões
relacionadas ao anacronismo histórico. Dizer que os rudimentos do conceito de
função podem ser encontrados nos tabletes de barro babilônios (BAUMGART,
1992, p.83), dizer que os egípcios já tinham métodos para fazerem uma
aproximação de π (CAJORI, 1999). O anacronismo aqui é mais sutil, ele reside
na confusão, que ainda ocorre, entre o fato de culturas da antiguidade terem
métodos empíricos para aproximarem áreas circulares com o fato de conceber
a existência de uma constante, irracional, que pode ser aproximada por números
racionais. É comum encontrarmos historiadores da matemática alinhados com a
perspectiva de herança com esses pensamentos.
Em História e Epistemologia da Matemática, temos o tipo de pesquisa que
assume a existência de uma única epistemologia da Matemática nos dias atuais,
assumindo tacitamente que esse pensamento possa ser estendido para todos
os períodos históricos. Esse raciocínio é encontrado com certa facilidade entre
matemáticos. A principal justificativa para isso é que, na atualidade, a
Matemática, para muitos deles, é dotada de uma linguagem universal.
Em História da Educação Matemática, um dos principais exemplos vem da
análise de livros didáticos. Não tão raro, pesquisadores utilizam metodologias de
análises de livros atuais para a análise de livros históricos. Isso parece se
relacionar a uma aparente indistinção ou desconhecimento de metodologias
específicas de análise de livros históricos.
Em História no Ensino de Matemática, podemos ver alguns autores que tratam
a História da Matemática como adendo, fonte de curiosidades e anedotas
(CAJORI, 1999, p.1-3). Apesar de hoje em dia a grande maioria dos cursos de
licenciatura terem uma disciplina para o curso de História da Matemática, não é

1110
incomum encontrarmos professores sem formação adequada em História da
Matemática, o que parece refletir no fato apontado.
Para evidenciarmos o quão comum são esses erros, nós, os autores, já
cometemos todos eles. Aliás, os exemplos foram retirados de experiências
próprias. Isso só foi melhorado com a entrada na pós-graduação em História da
Matemática e longas discussões e leituras com orientadores, pares, colegas e
etc.
Como ambos os autores deste trabalho estão interessados em pesquisas
comumente classificadas como História Social, não nos sentimos capazes, e
nem no direito, de indicar boas práticas ou pesquisas na área conceitual. Na área
social, os estudos de Gert Schubring (2005), Carlos Gonçalves (2010), Tatiana
Roque (2012), Fumikazu Saito (2015), dentre muitos outros382 nos mostram uma
concepção de História da Matemática que considera as questões sociais como
fundamentais ao entendimento das práticas matemáticas históricas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O fato desse trabalho ser incipiente nos impede de fazer asserções mais
significativas. No entanto, podemos expor o que seriam nossas primeiras
impressões sobre esta reflexão.
Reconhecemos que utilizar a nomenclatura “internalismo e externalismo” é um
tanto problemática, pois ela remete a uma discussão que é da História das
Ciências no geral e traz, também, por consequência, a bagagem teórica desses
conceitos. Uma proposta futura é pensar em nomes mais adequados à
discussão.
Assim, a estrutura de apresentação escolhida tem como função tornar as ideias
mais claras possíveis. Nossa concepção, nesse sentido, aproxima-se do

382
Basta olharmos para a lista de participantes da comissão científica da própria SNHM.

1111
paradigma pós-moderno, onde a construção de narrativas únicas e universais
não são sustentadas.
Gostaríamos de frisar a impossibilidade de uma escolha metodológica ser
neutra. Assim, destacamos que o objeto descrito como “centro” neste trabalho,
pode, e deve, ser realocado de acordo com as intenções do pesquisador, desde
que isso seja feito de maneira explícita e consciente. Fazendo com que o
paradigma da dicotomização entre história conceitual e social seja substituído
pelo paradigma da história socioconceitual.
Feito essas considerações, resumimos nosso trabalho parafraseando a famosa
frase de Marx: Os Historiadores da Matemática têm apenas “metodologizado” o
mundo; a questão é, porém, “substanciá-lo”383

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOYER, C. B.; MERZBACH, U. C. História da matemática. Trad. de Helena
Castro. 3ª ed. São Paulo: Blücher, 2012

BAUMGART, J. Tópicos de História da Matemática para uso em sala de aula:


Álgebra. Trad: Hygino Domingues, São Paulo: Atual, 1992.

CAJORI, F. A history of mathematics. American Mathematical Soc., 1999.

GRATTAN-GUINNESS, I. The Mathematics of the Past: Distinguishing its


History from Our Heritage. In: Historia Mathematica. Vol. 31, nº 2. 163-185,
2004a.

GONÇALVES, C.; POSSANI, C. Revisitando a descoberta dos


incomensuráveis na Grécia Antiga. Matemática Universitária, n. 47, p. 16-24,
2010.

ROQUE, T. História da Matemática – Uma visão crítica, desfazendo mitos e


lendas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2012.

SAITO, F. História da Matemática e suas (re)construções contextuais .


SBHMat/Livraria da Física. São Paulo. 2015

383
Entendam essa frase como um convite a discussões metodológicas mais refinadas, não
como um ataque aos historiadores. Historiadores matemáticos de todo o mundo, uni-vos!

1112
SCHUBRING, G. Conflicts between generalization, rigor and intuition. Number
Concepts Underlying the Development of Analysis in the 17th-19th Century
France and Germany. New York: Springer. 2005a.

1113
RELAÇÃO GEOMÉTRICA NO PROBLEMA 24 DO PAPIRO DE RHIND E NA
REGRA DE SINAIS “MENOS VEZES MENOS DÁ MAIS”

Lucas Queiroz Cordeiro de Moura384


Viviane de Oliveira Santos385

RESUMO
Este trabalho é parte do projeto de pesquisa do Programa Institucional de Bolsas de
Iniciação Científica (Pibic) “A álgebra e as operações numéricas fundamentadas pela
geometria ao longo da História da Matemática”, realizado pelo Grupo de Pesquisa
História da Matemática e Educação Matemática da Universidade Federal de Alagoas
(Ufal). Ao estudar como a álgebra e as operações numéricas foram fundamentadas pela
geometria ao longo da história da matemática, muitos se surpreendem em perceber
como a geometria estabelece o alicerce do que conhecemos hoje como álgebra e com
a base geométrica das operações numéricas. A pesquisa teve como foco aspectos
históricos da álgebra e aritmética e uma análise dos problemas dessas áreas buscando
relações com a geometria, foram resolvidos alguns problemas aritméticos e algébricos
sendo feitos de forma geométrica tanto pele matemática que utilizamos hoje, como as
resolvidas pelos antigos. Para resolver tais questões, tivemos auxílio de régua e
compasso e o software GeoGebra. Dentre os problemas da pesquisa, neste trabalho
vamos abordar um problema encontrado no Papiro de Rhind e veremos uma
demonstração da conhecida regra de sinais da multiplicação “menos vezes menos dá
mais”, a qual geralmente é atribuída a Diofanto de Alexandria.

Palavras-chave: História da Matemática. Aritmética. Álgebra. Geometria.

INTRODUÇÃO

Este trabalho é parte do projeto de pesquisa do Programa Institucional


de Bolsas de Iniciação Científica (Pibic) “A Álgebra e as operações numéricas
fundamentadas pela Geometria ao longo da História da Matemática”, realizado

384
Universidade Federal de Alagoas (Ufal). E-mail: lucasmoura.qc@gmail.com

385
Universidade Federal de Alagoas (Ufal). E-mail: viviane.santos@im.ufal.br

1114
pelo Grupo de Pesquisa História da Matemática e Educação Matemática da
Universidade Federal de Alagoas (Ufal).
O objetivo da pesquisa foi compreender a aritmética e a álgebra por meio
do estudo de problemas encontrados ao longo da história da matemática,
analisando aspectos históricos destes problemas e suas respectivas soluções,
tendo como o foco principal estudar os problemas de aritmética e álgebra que
podem ser resolvidos geometricamente.
Um dos motivos da importância do estudo da História da Matemática é
ampliar o conhecimento dos futuros professores no sentido de entenderem a
álgebra como processo geométrico e a importância da geometria na
fundamentação matemática. É bastante comum alunos serem considerados
bons na álgebra e nas operações numéricas, porém têm dificuldades na
geometria. Isso ocorre, na maioria das vezes, pelo fato de que a álgebra e a
geometria estão sendo entendidas como ideias isoladas, o que não acontece ao
longo da história. (D’AMBROSIO, 2007, p. 402).
Dentre os problemas da pesquisa, escolhemos apresentar neste
trabalho um problema encontrado no Papiro de Rhind e uma prova geométrica
da conhecida regra de sinais da multiplicação “menos vezes menos dá mais”.

METODOLOGIA

O primeiro passo dessa pesquisa foi identificar a abordagem da álgebra


e aritmética ao longo da História da Matemática e, com isso, foram coletados
previamente os problemas de álgebra e aritmética que foram abordados
geometricamente antes do século XVI. Para essa coleta, foram utilizados alguns
livros, artigos, trabalhos de conclusão de curso e dissertações de História da
Matemática. Além disso, devido o tema da pesquisa ser extenso, optou-se por
escolher problemas de civilizações diferentes.

1115
Em seguida, foram realizadas pesquisas de problemas ditos aritméticos
ou algébricos para explorar a resolução de forma geométrica. Sempre que foi
possível, utilizamos a régua, o compasso e o software GeoGebra.

RESULTADOS

Por ser uma pesquisa extensa, escolhemos dois problemas específicos


de diferentes épocas. Os problemas foram do conhecido “Método da Falsa
Posição” encontrado no Papiro de Rhind e uma demonstração geométrica da
conhecida regra de sinais “menos vezes menos dá mais”, que geralmente é
atribuída a Diofanto.
Os problemas foram escolhidos com o intuito de reforçar a importância
da geometria para compreender melhor alguns problemas. No caso do problema
do Papiro de Rhind, usaremos uma construção geométrica usando uma
matemática mais conhecida atualmente, e a demonstração geométrica da regra
de sinais da multiplicação será feita como auxílio para reforçar uma
demonstração algébrica.

O Papiro de Rhind e o conhecido “Método da Falsa Posição”

De acordo com Roque (2012), temos informação sobre matemática


egípcia por meio poucos papiros, entre eles o Papiro de Rhind, datado de cerca
de 1650 a.E.C. e escrito em hierático. Ele foi copiado pelo escriba egípcio Ahmes
e, por isso, também é chamado de Papiro de Ahmes. O escocês Alexander
Henry Rhind o comprou no Egito, por volta de 1850, e atualmente encontra-se
no British Museum.

Em seu estado original o papiro teria aproximadamente 5,5


metros de comprimento por 33 centímetros de largura. Está
escrito em hierático, da direita para a esquerda, em tintas preta
e vermelha e foi copiado por um escriba chamado Ahmes. É
também conhecido por papiro de Ahmes (BOYER, 2001), cuja

1116
denominação pode ser encarada como uma homenagem ao
escriba copista. (MARTINS, 2015, p. 28).

Medeiros e Medeiros (2004) ressalta que o Papiro de Rhind é um dos


documentos mais antigos que podemos encontrar o que conhecemos como
“Método da Falsa Posição”.
Sobre o “Método da Falsa Posição”, há divergências sobre sua origem,
de acordo com Medeiros e Medeiros (2004, p. 5):

É muito difícil traçar a origem exata do método da falsa posição.


Tanto os autores quanto as datas de importantes documentos
da História Antiga da Matemática são de atribuições bastante
imprecisas. Certo é que tanto no antigo Egito quanto na China,
o referido método era há muito conhecido, ainda que com
denominações diversas e com distintas convicções quanto à sua
validade e generalidade. Como já afirmamos acima, um dos
documentos mais antigos que faz referência ao método da falsa
posição é o papiro Rhind, compilado pelo escriba Ahmes por
volta de 1650 a.C. Esse texto, entretanto, é um relato de
conhecimentos bem mais antigos e não da exata autoria de
Ahmes. Fica, portanto, difícil precisar os verdadeiros autores das
idéias ali expostas, assim como a época dos seus surgimentos.

Porém, segundo Bertato (2018, p. 13):

Nossa tradução pode decepcionar aqueles que estão


convencidos, baseados na quase totalidade dos livros que
tratam do conteúdo matemático do Papiro em questão, de que
as “equações” do Papiro são resolvidas via Método da Falsa
Posição. De fato, não se pode constatar literalmente que para
resolver as equações dos problemas “h” (aHá) seja empregada
pelo escriba qualquer suposição de valor. Encontramos sim, nas
resoluções dos problemas aritméticos e dos problemas “h”, uma
hábil manipulação de decomposição aritmética dos números,
multiplicações por mínimo múltiplo comum (ou apenas múltiplo
comum), soma direta de coeficientes da “h” e consecutiva
divisão da constante por tal soma. Talvez, devido a tais
constatações, autores como Moritz Benedikt Cantor (1829 –
1920) e Orro Eduard Neugebauer (1899 - 1990), tenham
concluído que o método de resolução das equações examinada,
empregado pelos antigos egípcios, se dava via coeficientes,
isolando a incógnita, exatamente como faria um estudante de
álgebra elementar dos dias de hoje.

1117
Mesmo com essa divergência histórica, esses tipos de problemas são
importantes e podem ser resolvidos de diferentes formas, inclusive com uma
matemática que utilizamos atualmente.
Bertato (2018, p. 13) ressalta que dentre os críticos da abordagem dos
mencionados acima, e/ou defensores do “Método da Falsa Posição”, podemos
evidenciar Léon Rodet (1850 – 1895), Eric Peet (1882 – 1934), Arnorld Buffum
Chace (1845 – 1932) e Marshall Clagett (1916 – 2005). As traduções
correspondentes por esses estudiosos mencionados são efetuadas com a chave
de leitura da “Falsa Posição”. Com isso,

[...] trechos que poderiam ser traduzidos por ‘multiplique por x’


são traduzidos por “suponha x”, “assuma x”, “opere com x” e
similares. Até mesmo onde nada consta acerca sobre
expressões no original, tais tradutores costumam introduzir
alguma expressão que induz a falsa posição. (BERTATO, 2018,
p. 13).

Vejamos o Problema 24: “Uma quantidade, 1/7 desta adicionada a esta,


fica 19. Qual a quantidade?” do Papiro de Rhind, apresentado por Lyra (2019)
em forma algébrica e geométrica.
𝒙
Numa linguagem atual, temos 𝒙 + 𝟕 = 𝟏𝟗. Se 𝒙𝟎 = 𝟕 for nossa falsa
𝟕
posição, teremos 𝟕 + 𝟕 = 𝟖. O “Método da Falsa Posição” nos leva a pensar “que

número devemos multiplicar o 8 para chegarmos em 19?”, encontrando o


resultado desejado.
𝒙 𝟖𝒙
Feito no GeoGebra, foi escolhida a função 𝒚 = 𝒙 + 𝟕 = e marcados os
𝟕

pontos desejados (Figura 1). Para um certo 𝒙𝟎 = 𝟕, temos um 𝒇(𝑿𝒐) = 𝒚𝟎 = 𝟖,


e para resolver o problema precisamos encontrar 𝒙 quando 𝒚 = 𝟏𝟗. Há diversas
formas de se chegar ao resultado, porém todas são basicamente de proporção.

1118
Figura 1: Gráfico do problema 24

Fonte: Lyra, 2019, p. 17.

A construção geométrica foi feita usando semelhança de triângulos


(Figura 2). A semelhança de triângulos (OA’A e OB’B) ocorre por causa dos
ângulos. A inclinação da reta forma o ângulo 𝛼, os segmentos AA’ e BB’ são
perpendiculares ao eixo-x e, portanto, formam um ângulo de 90°. Logo, pela
propriedade da soma dos ângulos internos de um triângulo que é igual a 180°, a
semelhança ocorre porque os três ângulos possuem mesma medida.

Figura 2: Proporção do problema 24

Fonte: Lyra, 2019, p. 18.

1119
𝟕 𝟖 𝟏𝟑𝟑
A proporção encontrada será a = 𝟏𝟗 → 𝟖𝒙 = 𝟏𝟑𝟖 → 𝒙 = . Portanto,
𝒙 𝟖

esse é o valor procurado.


Segundo Roque (2012), o “Método da Falsa Posição” pode fornecer uma
maneira de resolver equações aritmeticamente, ou seja, sem procedimentos
algébricos, e foi usado em diversos momentos da história. Medeiros e Medeiros
(2004) complementa que a essência de tal método consiste em erros e acertos.

Diofanto de Alexandria e a demonstração da regra de sinais

Em Saito (2015), a aritmética, geometria, astronomia e a música eram


as ciências consideradas na época de Platão. Aritmética e a geometria eram
áreas distintas, pois a primeira era definida como ciência dos números e a outra
era a ciências das figuras, conhecida por geometria plana. A astronomia era a
ciência dos sólidos em movimento e a música era a ciência das proporções e
razões. Segundo Platão, astronomia e música eram consideram ciências irmãs.
Ele não explorou a fundo os conceitos matemáticos, se limitou a encontrar sua
classificação das ciências e a sua importância em relação à natureza.
A matemática grega tinha pouco interesse em questões práticas e
aritméticas de contagem e medida, sendo prioritariamente geométrica. Os
antigos historiadores dizem que os primeiros matemáticos gregos foram Thales
de Mileto e Pitágoras de Samos, sendo que ambos aprenderam matemática com
os egípcios e com os babilônios. (BERLINGOFF; GOUVÊA, 2008).
Antes de escrevermos sobre Diofanto e seus métodos de resolver as
equações lineares, observamos que os antigos possuíam outros métodos
diferentes da forma que fazemos hoje em dia, pela falta do simbolismo. Segundo
Eves (2004), G.H.F Nesselmann distinguiu a notação algébrica em três métodos:
álgebra retórica que era escrito por extenso, álgebra sincopada que continha
abreviações e álgebra simbólica que é utilizada atualmente, formada por
símbolos.
Segundo Roque (2012), acredita-se que Diofanto viveu no século III
podendo ser contestada essa data, embora também tenha vivido na Alexandria,

1120
não se pode confirmar que era grego, apesar de seu texto ser escrito nessa
língua.
Sobre o tratado “Aritmética” (em grego, significa “ciência dos números”),
Garbi (2010, p. 123) afirma que: “é uma obra-prima, pioneira no tratamento do
difícil tema a que hoje denominamos Teoria dos Números, e não deixa qualquer
dúvida de que seu autor era um gênio do mais alto nível”.

A parte que nos chegou da Aritmética de Diofanto mostra que a


obra não é propriamente um tratado de Álgebra, mas uma
colecção de problemas para cuja solução se recorre à Álgebra;
de facto, Diofanto formula e procura solucionar cerca de 130
problemas de diversa natureza. As soluções levam à formulação
de equações de primeiro e de segundo grau. Um caso ocorre
que pede solução por uma equação de grau 3 (GAMAS, 2013,
p. 64).

A origem dessa regra de sinais da multiplicação geralmente é atribuída


a Diofanto de Alexandria. No livro I da sua obra “Aritmética”, aparece de forma
explícita a regra: “Menos multiplicado por menos é mais e menos por mais é
menos” (DIOFANTO DE ALEXANDRIA, 2007, p. 22 apud HILLESHEIM;
MORETTI, 2016, p. 234). Porém, segundo Boyer (2010) apud Hillesheim e
Moretti (2016), ele não apresenta uma justificativa para tal regra.
Como a origem da regra de sinais da multiplicação é encarregada a
Diofanto, a sua construção geométrica gera contradições, de acordo com alguns
autores, essa construção geométrica é designada também a Diofanto. Porém,
Hillessheim e Moretti (2016) afirma que no século XVI, o matemático Simon
Stevin (1548 – 1629), em sua obra “Aritmética” (1585), demonstra uma regra de
sinais e ainda complementa com a construção geométrica. Neto (2008) ressalta
que a construção geométrica aparece apenas como auxílio epistemológico para
a distributividade e para confirmar a regra dos sinais.
A construção geométrica produto (𝒂 − 𝒃)(𝒄 − 𝒅), pode ser encontrada
em Garbi (2010), na qual aparece no desenvolvimento do produto que
(−𝒃)(−𝒅) é igual a +𝒃𝒅, ou seja, a conhecida regra menos vezes menos dá
mais.

1121
Figura 3: Demonstração da regra de sinais por Diofanto.

Fonte: Garbi, 2010, p. 124.

Observa-se na Figura 3 que a área do retângulo de lados 𝒂 e 𝒄 é a soma


das áreas dos 4 retângulos nele contidos. Com isso,
𝒂𝒄 = (𝒂 − 𝒃)(𝒄 − 𝒅) + 𝒃(𝒄 − 𝒅) + 𝒅(𝒂 − 𝒃) + 𝒃𝒅
Segundo Garbi (2010), Euclides já havia demonstrado que os produtos
𝒃(𝒄 − 𝒅) e 𝒅(𝒂 − 𝒃) eram 𝒃𝒄 − 𝒃𝒅 e 𝒂𝒅 − 𝒃𝒅, respectivamente. Logo
(𝒂 − 𝒃)(𝒄 − 𝒅) − 𝒃𝒅 + 𝒃𝒄 − 𝒃𝒅 + 𝒂𝒅 + 𝒃𝒅 = 𝒂𝒄
(𝒂 − 𝒃)(𝒄 − 𝒅) = 𝒂𝒄 − 𝒂𝒅 − 𝒃𝒄 + 𝒃𝒅
Isso mostra que no desenvolvimento do produto (𝒂 − 𝒃)(𝒄 − 𝒅) a parcela
correspondente a (−𝒃)(−𝒅) é +𝒃𝒅, pois:
(𝒂 − 𝒃)(𝒄 − 𝒅) = 𝒂𝒄 + 𝒂(−𝒅) + (−𝒃)𝒄 + (−𝒃)(−𝒅)
Garbi (2010, p. 125) comenta que:

Alguns livros de Matemática dizem que a regra dos sinais é uma


convenção, não um teorema. Isso, precisa ser recebido com
cuidado e bem entendido: trata-se de uma convenção que
somos obrigados a estabelecer se quisermos a propriedade
distributiva do produto em relação à soma valha também
para números negativos e essa é a essência da prova de
Diofanto.

Segundo Hillesheim e Moretti (2016, p. 245), o exemplo de Stevin mostra


a geometria como apoio da aritmética, contribuindo para verificar como a regra

1122
funciona. Além disso, comenta que para Glaeser (1981), essa demonstração de
Stevin “pode servir de base para o desenvolvimento geral de (𝒂 − 𝒃) × (𝒄 − 𝒅) =
𝒂𝒄 − 𝒂𝒅 − 𝒃𝒄 + 𝒃𝒅. No entanto, observamos que nesse período histórico a regra
− × −= + só é usada como um procedimento transitório”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o objetivo de mostrar aspectos históricos da álgebra e aritmética e


suas relações com a geometria, verificamos que os conteúdos mencionados
podem ser abordados de forma conjunta e não como ideias isoladas.
No problema do Papiro de Rhind, utilizamos uma geometria mais
conhecida atualmente, já para a demonstração da regra de sinais da
multiplicação, utilizamos uma geometria da época. Para os problemas
resolvidos, ressalta-se a importância da construção geométrica, pois em ambos
os casos pode-se facilitar o entendimento e auxiliar na resolução de problemas
ditos aritméticos e/ou algébricos por meio da geometria.
Para as construções geométricas, o uso da régua e compasso, e o
software Geogebra, foram necessários para a resolução dos problemas
supracitados no trabalho.

REFERÊNCIAS

BERLINGOFF, W. P.; GOUVEIA, F. Q. A matemática através dos tempos.


São Paulo, SP: Edgard Blucher, 2008.

BERTATO, F. M. A falsa (su-)posição? Tradução dos problemas 24, 25, 26 e


27 do Papiro de Rhind. Edição Especial da Revista Brasileira de História da
Matemática, v. 18, n° 36, p. 11-29, 2018.

D’AMBROSIO, B. S. Reflexões sobre a História da Matemática na Formação


de Professores. In: NOBRE, S. (org.). Revista Brasileira de História da
Matemática - an internationational journal on the History of Mathematics,
Especial nº 1 – Festschrift Ubiratan D’Ambrosio, p. 399-406, 2007.

1123
EVES, H. Introdução à história da matemática. Tradução: Hygino H.
Domingues. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004.

GAMAS, C. Diofanto de Alexandria e os primórdios da Álgebra. Imprensa


da Universidade de Coimbra. Coimbra, 2013. Disponível em:
https://digitalisdsp.uc.pt/jspui/bitstream/10316.2/29941/5/Espacos%20do%20Pe
nsamento_artigo3.pdf?ln=en. Acesso em: 22 dez. 2020.

GARBI, G. G. A rainha das ciências: um passeio histórico pelo


maravilhoso mundo da matemática. 5ª edição revisada e ampliada. São
Paulo: Editora Livraria da Física, 2010

HILLESHEIM, S. F.; MORETTI, M. T. A regra dos sinais: alguns elementos


importantes do seu contexto histórico. In: BRANDT, CF.; MORETTI, MT. (orgs.)
Ensinar e aprender matemática: possibilidades para a prática educativa
[online]. Ponta Grossa: Editora UEPG, 2016, pp. 233-254. Disponível em:
http://books.scielo.org/id/dj9m9/pdf/brandt-9788577982158-12.pdf. Acesso em:
05 mar. 2021.

LYRA, V. H. C. Um estudo sobre a história e aplicações do método da


falsa posição. Trabalho de Conclusão de Curso (Matemática), Universidade
Federal de Alagoas, Maceió, 2019.

MARTINS, J. O livro que divulgou o papiro Rhind no Brasil. Dissertação de


mestrado, Universidade Estadual Paulista, Instituto de Geociências e Ciências
Exatas, 2015.

MEDEIROS, C. F. de. MEDEIROS, A. O método da Falsa Posição na História e


na Educação Matemática. Ciência & Educação, v. 19, n. 3, p. 54-557, 2004.

NETO, R. F. Menos vezes menos dá mais: observações históricas sobre o


conceito de números negativos. Revista de Educação Matemática e
Tecnológica líbero-Americana. Universidade Federal de Pernambuco e Pós-
Graduação em Educação Matemática e Tecnológica. Pernambuco, v. 2, n. 1, p.
1-22, 2011.

ROQUE, T. História da matemática: uma visão crítica, desfazendo mitos e


lendas. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

SAITO, F. História da matemática e suas (re)construções contextuais.


Livraria da Física, 2015.

1124
1125
ASPECTOS DO DESENVOLVIMENTO DA ARITMÉTICA NA
EUROPA DO SÉCULO XIII

José dos Santos Guimarães Filho386


João Cláudio Brandemberg387

RESUMO
A partir de uma pesquisa preliminar construída de indagações referentes aos métodos
aritméticos utilizados e divulgados na Europa do século XIII, objetivamos, neste artigo,
apresentar alguns aspectos historiográficos para o desenvolvimento da Aritmética da
Europa do século XIII. Para este fim, fizemos uma pesquisa bibliográfica, da qual foi
possível, observar alguns aspectos históricos que permitiram um cenário mais acessível
para a divulgação de métodos aritméticos desconhecidos pela maior parte da Europa.
Buscamos, dessa forma, na historiografia atualizada meios para construir um discurso
que possibilite de forma adequada visualizar este cenário. Para tanto, buscamos em
autores como, Potro (2000); Garbi (2009); Saito e Dias (2013), Beltram, Saito e Trindade
(2014) e Saito (2015), subsídios teóricos e metodológicos para construir nossa
investigação. Podemos, dessa forma, observar aspectos como, a ruptura do império
romano em parte ocidental e oriental, que ocasionou desenvolvimentos científicos em
escalas diferentes, fazendo, com que, o desenvolvimento científico ocidental
acontecesse posteriormente ao oriental, bem como, o período de estabilidade que se
encontrou Leonardo Fibonacci, permitindo uma divulgação maior dos seus trabalhos em
relação aos matemáticos anteriores a ele.

Palavras-chave: Europa do século XIII. Historiografia atualizada. Aritmética.

INTRODUÇÃO

Ao pesquisar sobre métodos aritméticos na Europa do século XIII em


bancos de dados de teses e dissertações da CAPES, bem como em repositórios

386
Universidade Federal do Pará (UFPA). js_guima@hotmail.com
387
Universidade Federal do Pará (UFPA). brand@ufpa.br

1126
como o CREPHIMat388, observamos a necessidade de estudos que tangem a
aritmética europeia do século XIII. Pois, os trabalhos encontrados tratam em sua
maioria de métodos aritméticos de períodos posteriores, observamos, ainda, a
falta de investigações historiográficas mias atualizadas do século XIII na Europa.
Assim, apresentamos neste artigo alguns pontos que nos permitem
investigar aspectos historiográficos da Aritmética estudada e divulgada na
Europa do século XIII, a qual, em um estudo preliminar, apresenta conflitos 389,
haja vista que os métodos já instituídos usavam, em sua maioria, o ábaco para
efetivação dos cálculos. No entanto, no início do século XIII, temos a divulgação
de métodos que utilizavam as cifras indianas, bem como, o sistema de
numeração posicional Hindu, trazidas por Leonardo Fibonacci (1180 – 1250). Um
melhor entendimento dos aspectos entorno dessa Aritmética, neste período, nos
permitirá uma visualização do contexto, proporcionando uma melhor
compreensão deste objeto.
Esse artigo, não tem como finalidade, exaurir as possibilidades de
análise do período ora apresentado, no entanto, de apresentar alguns aspectos
historiográficos para o desenvolvimento da Aritmética da Europa do século XIII.
Desta forma, para desvelar os possíveis aspectos para a propagação da
aritmética na Europa do século XIII, fizemos uma pesquisa bibliográfica, na qual,
obtivemos informações, no que tange, a uma construção histórica do cenário
profícuo para a divulgação dos algarismos indo-arábicos, bem como, da
ampliação da Aritmética, evidenciando alguns pontos que julgamos importantes
para esse momento preliminar. Para esse fim, buscamos na historiografia
atualizada meios para construir um discurso que possibilite de forma adequada
visualizar este cenário.
Nessa busca encontramos autores como Potro (2000); Garbi (2009);
Saito e Dias (2013), Beltram, Saito e Trindade (2014) e Saito (2015) entre outros.
A partir dessas propostas, podemos perceber alguns fatos interessantes, como
a ruptura do Império Romano, dividindo-o em parte oriental e parte ocidental, o

388
Centro Brasileiro de Referência em Pesquisa sobre História da Matemática (http://www.crephimat.com)
389 No sentido de divergências de ideias, assim como, das necessidades práticas.

1127
que ocasionou desenvolvimentos diferentes, sejam estes políticos, culturais,
sociais, religiosos, econômicos e científicos, entre outros aspectos que serão
apresentados nas seções seguintes. Primeiramente apresentamos a
historiografia atualizada, a qual, teremos como critério de análise e escrita, em
seguida apresentamos alguns aspectos historiográficos da divulgação e
consolidação da Aritmética na Europa no século XIII.

UM POUCO DA HISTORIOGRAFIA ATUALIZADA

Ao propor uma investigação da consolidação dos Métodos Aritméticos


da Europa do século XIII, se torna inevitável uma reescrita do passado com a
intencionalidade de evidenciar tais métodos, bem como, o que estava em seu
entorno. Beltram, Saito e Trindade (2014) Apresentam que esta intencionalidade
é evidente, pois toda narrativa da história é historiograficamente orientada, sendo
assim, o discurso que será construído não será neutro, mas isso não faz dessa
pretensa reescrita da narrativa histórica tendenciosa, apenas que teremos o
intuito principal de desvelar os aspectos do desenvolvimento da Aritmética dentro
de uma determinada malha histórica.
Desta maneira, optamos pelo critério de escrita da história com
características mais atualizadas, este critério de escrita será nomeado a partir
daqui como historiografia atualizada390, tendo como fundamento os trabalhos de
Saito e Dias (2013), Beltram, Saito e Trindade (2014) e Saito (2015) entre outros.
Com a finalidade de contextualizar a Aritmética, fazemos uso destes critérios
mais atualizados, pois estes permitem questionar sobre o processo de
construção do conhecimento, construindo explicações para as ações dos
matemáticos e outros personagens contemporâneos, que puderam contribuir
para a consolidação da ciência no recorte histórico investigado (SAITO, 2015).

390 Termo apresentado por Saito (2015).

1128
A historiografia atualizada, permite contextualizar o conhecimento
matemático com base em três esferas de análise histórica, são estas: contextual,
historiográfica e epistemológica. Permitindo observar aspectos internos e
externos, assim como, aspectos contínuos e descontínuos da consolidação do
conhecimento (BELTRAM, SAITO E TRINDADE, 2014).
Silva (2020), apresenta que,

A esfera contextual é mobilizada no início de uma investigação


sobre um documento original, em que o pesquisador busca onde
e quando ele foi escrito e o que estava acontecendo nessa
determinada região e época. A esfera historiográfica é
mobilizada no estudo crítico do que já foi escrito sobre esse
material, buscando as razões pelas quais ele foi produzido nesse
período. Por fim, a esfera epistemológica objetiva conhecer os
conceitos e conteúdos que estão inseridos na obra dentro do seu
próprio contexto (SILVA, 2020, p. 45).

A autora ainda comenta, que a mobilização dessas esferas não possui


uma ordem hierarquizada, deixando claro ainda que possa ser necessário
mobilizar mais de uma dessas esferas conjuntamente. Estas esferas de análise
permitem “emergir do próprio processo histórico novas questões
epistemológicas que podem ser trabalhadas pelo educador matemático” (SAITO,
2013, p. 4).
Vale ressaltar que não criticamos os métodos tradicionais, apenas, não
compõem nossos interesses para essa proposta. No entanto, buscamos articular
questões que surgem do processo de construção do conhecimento
epistemologicamente contextualizado, permitindo não apenas a compreensão
da natureza do conhecimento, como também, os meios pelos quais foram
consolidados, transmitidos e divulgados. Assim, apresentamos na seção
seguinte, alguns aspectos da consolidação e divulgação de uma matemática
desconhecida pela Europa do século XIII.

ASPECTOS HISTORIOGRÁFICOS

1129
Para este artigo apresentamos alguns pontos que nos permite de forma
ainda que preliminar investigar sobre aspectos historiográficos sobre a Aritmética
na Europa no século XIII, a qual, observamos ser consolidada paralelamente
com as cifras indianas, bem como, com o sistema de numeração posicional
destes, instituído, posteriormente ao longo da história humana, como um sistema
universal.
Para um melhor entendimento dos aspectos da consolidação da
Aritmética na Europa do século XIII, rememoramos um pouco do cenário
anterior, esclarecendo que, embora o Império Romano tenha atingido seu
apogeu no século II, a corrupção interna e a tomada das fronteiras pelos
bárbaros, ocasionou a ruptura do Império em parte Ocidental e parte Oriental
(GARBI, 2009).
Estas duas partes passaram por períodos de instabilidade científica, pois
vivenciaram intensos momentos de guerra. O ocidente, consegue de forma mais
tardia seu desenvolvimento científico em relação ao oriente, para esse, restou a
responsabilidade de reerguer um novo centro científico. Este centro, chamado
de Casa da Sabedoria (Bait al-hikma), foi instalado em Bagdá no período de
califado, permitindo o crescimento científico posterior na Europa, bem como,
viajantes como Leonardo Fibonacci irem para o oriente possibilitando o contato
com uma aritmética prática e comercial desconhecida em grande parte da
Europa (POTRO, 2000; GUIMARÃES FILHO, 2018).
É no oriente que observamos uma das obras que permite o estudo mais
conciso da Aritmética na Europa, este livro, que de acordo com Eves (2011) dá
origem a palavra álgebra, intitulado de Hisab Al-jabr Wa’l Muqãbalah de autoria
de Al-khowarizmi (708 – 850), permitiu que estudiosos do ocidente como
Leonardo Fibonacci aprofundasse seus estudos em matemáticas não divulgadas
na Europa.
Vemos ainda em Garbi (2009) que,

1130
Foi na extensa fronteira entre os mundos cristão e muçulmano
que os europeus, realizando transações comerciais com os
árabes, tiveram seus primeiros contatos com um outro tipo de
Aritmética. A obra de Al-khwarizmi exerceu grande influência na
matemática europeia durante os últimos séculos da idade média
(GARBI, 2009, p. 24).

Consequentemente, percebemos que a matemática, preservada e


desenvolvida no oriente, proporcionaram, em anos mais tarde, o
desenvolvimento de uma Aritmética europeia, a qual, tem como um dos maiores
entusiastas, divulgador e contribuinte, Leonardo Fibonacci.
Observando alguns séculos anteriores a Leonardo Fibonacci, temos na
Europa tradutores mulçumanos e judeus, os quais, segundo Potro (2000), não
foram meros tradutores, no entanto, estudiosos que contribuíram para o
fortalecimento e desenvolvimento da Aritmética europeia, bem como, outras
áreas da matemática. Assim, cria-se em Córdoba um clima semelhante ao de
Bagdá, o que permitiu formar escolas de matemáticas, astronomia, medicina e
botânica, nas quais, já se faziam conhecidos muitos dos autores árabes em todo
o século IX, os quais, não eram apenas estudados, mas, comentados, testados
e comprovados. Dando continuidade nesses estudos, temos no século X, a
Escola de Astronomia Andaluzes, a qual, têm membros importantes como Ibn al
Samh e Al-Zahrawi que foram mestres da aritmética e da geometria, os quais,
escreveram sobre aritmética prática e aritmética comercial e esta última foi
intitulada de Al-Muawalat (POTRO, 2000).
Posteriormente, temos Leonardo Fibonacci, que Castillo (2007)
apresenta como, o primeiro matemático medieval, que traz após suas viagens
em 1202, não somente, uma álgebra e uma Aritmética desconhecida pela
maioria, no entanto, os algarismos e o sistema numérico decimal e posicional
dos Hindus, os quais, apresentaram muitas vantagens em relação a outros
sistemas e outros algarismos, sufocando da aritmética os algarismos romanos e
otimizando muitas atividades práticas, como foi o comércio, bem como, a própria
Aritmética, seja essa, prática, comercial ou mercantil. Vale ressaltar ainda, que
a aritmética oriental, tal qual, as cifras indianas, não foram consolidadas de

1131
imediato, pois havia uma resistência por parte da igreja, a qual, endemoninhava
tudo o que vinha do oriente (WUSSING, 1998).
Leonardo Fibonacci, reuniu em seu tempo os conhecimentos
acumulados e iniciou uma série de publicações de livros, dos quais, o primeiro e
mais divulgado é o Liber Abaci, publicado pela primeira vez em 1202, tendo uma
repercussão considerável. Mesmo com a resistência da igreja, suas ideias foram
amplamente aceitas na Itália e posteriormente na Europa, chamando a atenção
de eruditos da época como João de Palermo (1208 – 1289), assim como, da
corte, e o rei Frederico II (1194 – 1250), que passa a ser um financiador da
divulgação e implementação desse sistema numérico posicional decimal e suas
cifras, assim como, da Aritmética apresentada por Leonardo Fibonacci
(GUIMARÃES FILHO e BRANDEMBERG, 2017). Como consequência temos
que o Liber Abaci, ofusca algumas obras importantes para o medievo, como o
Al-Muawalat (POTRO, 2000). Observamos, assim, evidentes otimizações nos
cálculos aritméticos, proporcionando cálculos mais rápidos e sofisticados,
permitindo resolver problemas práticos mercantis e de outras naturezas
posteriormente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o exposto, podemos mesmo que de forma parcial, fazer algumas


considerações em relação a Aritmética na Europa no século XIII. Assim,
evidenciaremos alguns pontos. Inicialmente o contraste social vivenciado pós
separação do Império Romano, o qual, engessou ambos os lados, no que tange
a propagação do conhecimento, ocasionando o insucesso de um “bum” científico
com a divisão do Império e a destruição da biblioteca de Alexandria.
A partir desse momento, temos um período intenso de guerras no
Oriente, as quais, não perduraram por tantas décadas. Ao passo que, surgiram
alguns califas que encabeçaram um resgate científico de muitos manuscritos
como os Elementos de Euclides, que por sua vez, garantiram o estudo destes

1132
na Europa. Percebemos, assim, que os grandes investimentos em estudos e
traduções feitas no oriente, contribuíram diretamente para o avanço matemático
Europeu de forma mais tardia, mas, não menos intensa.
Um desses avanços são os algarismos indianos e a implantação do
sistema de numeração posicional decimal, aceito na Casa da Sabedoria e
disseminado em meio ao povo árabe, que comumente faziam uso desse sistema
no comercio ou de forma prática. Passados alguns séculos ficaram conhecidos
como Aritmética Comercial ou Mercantil e a Aritmética Prática, influência dessa
última herdada dos hindus.
Outro aspecto a ser evidenciado é o êxito das publicações de Leonardo
Fibonacci em particular o Liber Abaci, obra essa que inicia apresentando as
cifras indianas, como segue: “O primeiro capítulo começa. São as nove figuras
dos indianos 9 8 7 6 5 4 3 2 1 e assim, com essas nove figuras, e para elas, este
é o sinal de 0, que é chamado em árabe de zephirum, se forma qualquer tipo de
número” (LEONARDO PISANO, 1857, p. 2, tradução nossa). Como já
observado, essas novas cifras, bem como, o sistema numérico posicional,
permitem com que a Aritmética pudesse alavancar, com estudos mais profundos
viabilizados por essas cifras e novo sistema numérico.
Podemos acordar, após todas essas articulações que os aspectos para
a inserção e consolidação da Aritmética na Europa no Século XIII, foram
múltiplos, pois tais aspectos iniciam no momento de califado oriental,
preservando-se obras clássicas, da mesma maneira, a construção e
aprofundamento de outros conhecimentos, os quais, chegam na Europa com os
tradutores nos meados do século IX até Leonardo Fibonacci, o qual, não
partilhava do mesmo período de instabilidade que seus antecessores,
contribuindo não apenas com o seu Liber Abacci, no entanto, com outras obras
de sua autoria. Todas construídas com maestria, permitindo tanto o estudo mais
conciso da Aritmética como a divulgação dos algarismos e sistema hindu de
numeração posicional.

1133
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BELTRAN, M. H. R.; SAITO, F.; TRINDADE, L. S. P. História da ciência para


formação de professores. São Paulo: Ed. Livraria da Física;
CAPES/OBEDUC, 2014.

CASTILLO, R. M. Fibonacci: El Primer Matemático Medieval. 2ª ed. Coleção


– La matemática em sus personajes. Espaha: Nivola, 2007.

EVES, H. Introdução à História da Matemática. 5ª ed. – Tradução Hygino H.


Domingues. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2011.

GARBI, Gilberto Geraldo. O Romance das Equações Algébricas. 3ª ed rev. e


ampl. São Paulo, SP: Ed. Livraria da Física, 2009.

GUMARAES FILHO, José dos Santos; BRANDEMBERG, João Cláudio. Um


estudo do Liber Quadratorum (1225) e suas potencialidades para o ensino de
Matemática. REMATEC/Ano 12/n. 26/set.-dez. 2017, p. 71 – 85.

GUIMARÃES FILHO, José dos Santos. Um estudo do Liber Quadratorum


(1225) de Leonardo Fibonacci (1180 – 1250) e suas Potencialidades para o
Ensino de Matemática. (Dissertação de Mestrado). Belém-PA, 2018.

POTRO, Betsabé Caunedo. El Arte Del Alguarismo Em La Europa Medieval. In:


POTRO, Betsabé Caunedo; LLAVE, Ricardo Córdoba De La. El Arte Del
Alguarismo: um libro castellano de aritmética comercial y de ensayo de
moneda del siglo XIV. Junta de Castlla y León, Espanha: 2000.

SAITO, Fumikazu; DIAS, Marisa da Silva. Interface entre História da


Matemática e ensino: uma atividade desenvolvida com base num documento
do século XVI. Ciência e Educação, v.19, no1, p. 89-111, 2013.

SAITO, Fumikazu. História da Matemática e Educação Matemática: Uma


proposta para atualizar o diálogo entre historiadores e educadores. In: Actas VII
Congreso Iberoamericado de Educación Matemática, 3979-3987. Montevideo:
FISEM/SEMUR, 2013.

SAITO, Fumikazu. História da matemática e suas (re)construções


contextuais. São Paulo: Ed. Livraria da Física/SBHMat, 2015.

SILVA, Isabelle Coelho Da. A articulação entre história e ensino de matemática


a partir de textos originais: considerações iniciais para o educador matemático.
In: PEREIRA, Ana Carolina Costa (Org.). Ensino e história da matemática:
enfoques de uma prática. Fortaleza: EdUECE, 2020. p. 40-56.

1134
WUSSING, H. Lecciones de história de las mathemáticas. Madri: Siglo XXI,
1998.

1135
1136
INSERÇÕES DE HISTÓRIA DA MATEMÁTICA EM LIVROS
DIDÁTICOS DE MATEMÁTICA DOS ANOS FINAIS DO ENSINO
FUNDAMENTAL

Wilza Maria A. L. Teixeira391


Aline Bernardes392

RESUMO
O presente trabalho relata uma pesquisa de mestrado, em andamento, que tem como
objetivo mapear e descrever as inserções de História da Matemática em livros didáticos
de matemática, aprovados pelo PNLD 2020, para os anos finais do Ensino Fundamental.
Será realizada uma pesquisa documental cujas fontes primárias serão 4 coleções
selecionadas entre as 11 coleções de livros didáticos de Matemática, aprovadas na
edição do PNLD 2020. Os dados para a análise serão obtidos a partir da identificação
de inserções de História da Matemática nessas coleções, que podem ser qualquer
informação que remeta ao passado, desde narrativas sobre o surgimento e o
desenvolvimento de conceitos matemáticos como, também, informações biográficas
sobre um matemático. Em seguida, os dados de cada inserção encontrada serão
registrados através de um questionário, utilizando o aplicativo Google Forms. O
questionário possui questões padronizadas (em sua maioria) e questões abertas. As
últimas questões trazem um conjunto de categorias de análise, visando classificar as
inserções com dois objetivos: avaliar os tipos de narrativa histórica e as funções
didáticas da inserção. Esperamos, com esta pesquisa, vislumbrar que História da
Matemática os estudantes da educação básica têm tido acesso por meio dos livros
didáticos. Esperamos, também, comparar os resultados alcançados com aqueles
apresentados em pesquisas anteriores, que apontam que a história presente nos livros
didáticos pouco contribui para o ensino da matemática.

Palavras-chave: História da Matemática. Ensino de Matemática. Livro didático.


Programa Nacional do Livro e do Material Didático. Ensino Fundamental.

391
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e-mail: wilza_maria@yahoo.com.br. O presente
trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior –
Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.
392
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), e-mail: aline.bernardes@uniriotec.br

1137
INTRODUÇÃO: motivações, objetivo e contexto

Nas últimas décadas, muitas pesquisas têm discutido o uso de História


da Matemática (HdM) no ensino de Matemática em todos os níveis, incluindo a
formação de professores (e.g. FAUVEL e MAANEN, 2000; FRIED, 2014;
MIGUEL e MIORIM, 2011; SAITO, 2018). Paralelamente, outras pesquisas
apontam um aumento de inserções de elementos históricos em livros didáticos
de matemática da educação básica (e.g. VIANNA, 1995; BIANCHI, 2006;
PEREIRA, 2016). Tais elementos variam desde datas e nomes de matemáticos
importantes ao longo da história a narrativas sobre a gênese e/ou
desenvolvimentos de conceitos matemáticos.
Sabemos que o livro didático é um importante recurso didático-
pedagógico para o professor. Além disso, é amplamente utilizado no país, devido
ao alcance do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD). O
PNLD avalia, compra e distribui para as escolas públicas de todo o país - a partir
das escolhas das obras aprovadas pelos professores - livros didáticos para todos
os anos do Ensino Fundamental e do Ensino Médio. Desse modo, muitos
estudantes da educação básica têm acesso a HdM apresentada nos livros
didáticos de Matemática aprovados pelo PNLD.
Por outro lado, sabemos também que os livros de HdM que são
referências nos programas de formação de professores para a educação básica
não contemplam as discussões da historiografia da matemática e das ciências,
dos últimos quarenta anos. Grattan-Guinness (2014) e Saito (2018) apontam
para a necessidade de ir além do conteúdo matemático da fonte e de considerar
o contexto cultural e social no qual a fonte se insere.
Diante das considerações acima, uma questão que tem sido colocada
no âmbito das discussões do grupo de pesquisa CHEMat (Coletivo de História
no Ensino de Matemática), do qual as autoras deste artigo fazem parte, é: qual
é a HdM que aparece nos livros didáticos de Matemática e que os estudantes da

1138
educação básica das escolas públicas têm tido acesso por meio dos livros
didáticos aprovados pelo PNLD?
A edição do PNLD 2020 avaliou coleções de livros didáticos dos anos
finais do Ensino Fundamental. Essa foi a primeira edição do PNLD que se
baseou na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para essa etapa da
Educação Básica. Com isso, a avaliação considerou se as coleções colaboram
para o desenvolvimento das competências e habilidades listadas na BNCC para
a referida etapa da Educação Básica. (BRASIL, 2019)
Desse modo, o objetivo da pesquisa foi delimitado para: “mapear e
descrever as inserções de HdM em livros didáticos de matemática dos anos
finais do Ensino Fundamental, aprovados pelo PNLD 2020”. Esperamos, com
isso, ter uma visão mais ampliada do uso, dos tipos de narrativas e das
finalidades pedagógicas da história apresentada nesses livros didáticos.
Por inserção de HdM, consideramos:

qualquer tipo de informação que remeta ao passado, a qual pode


abordar momentos do desenvolvimento histórico dos conceitos,
informações biográficas de matemáticos, livros ou outra
publicação importante, datas de acontecimentos, dentre outras
informações. (HAUBRICHS; BERNARDES, 2020, p. 2)

Pretendemos apresentar o estado atual de uma pesquisa de mestrado


em andamento com o objetivo acima. A investigação aqui relatada é parte de
uma pesquisa maior desenvolvida pelo grupo CHEMat, o qual tem analisado
coleções de livros de matemática do Ensino Médio aprovados pelo PNLD 2018.

PESQUISAS ANTERIORES: o que temos aprendido?

Destacamos nesta seção alguns trabalhos anteriores que analisaram


inserções de HdM em livros didáticos de Matemática. Começamos por destacar
a pesquisa de mestrado de Vianna (1995). Esse pesquisador apresentou o
registro de 50 inserções de história presentes em uma coleção analisada de 5ª
a 8ª séries - atuais 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental. Quatro categorias foram
estabelecidas para a análise: i) motivação - pequenos textos apresentados como

1139
anedotas, lendas e outros; ii) informação - inserções que informam datas e
biografia de matemáticos; iii) estratégia didática - inserções que propiciam ao
estudante o desenvolvimento de raciocínio matemático e iv) como parte
integrante do desenvolvimento do conteúdo (uso imbricado).
Vianna (1995) verificou que dentre as inserções, apenas 3%
representavam a categoria estratégia didática, enquanto as demais, 40% foram
classificadas como motivação, 44% informação e 6% uso imbricado. De acordo
com o observado pelo autor, a história presente nos livros não tinha relação com
o conteúdo a ser ensinado e não contribui para o ensino de matemática. No
entanto, sua presença era relevante por outros motivos como: para se
compreender a natureza da matemática e seu aspecto cultural.
Outro trabalho que gostaríamos de destacar é a dissertação de Bianchi
(2006). O objetivo geral da pesquisa foi comparar e analisar a forma com que a
HdM vinha sendo inserida em livros didáticos no decorrer das avaliações
realizadas nas edições do PNLD 1999, 2002 e 2003. Para tal, ela utilizou como
fonte primária de pesquisa 3 edições de duas coleções de livros para os anos
finais do Ensino Fundamental, aprovadas nesses ciclos de avaliações do PNLD.
A autora também analisou os guias, dos referidos ciclos, como fontes
secundárias. Bianchi iniciou a determinação das categorias de análise
baseando-se em Vianna (1995). Porém, ao perceber que tais categorias não
contemplariam o quantitativo e os tipos de menções da HdM contidas nas
coleções a serem analisadas, a pesquisadora fixou como categorias de análise:
informação geral; informação adicional; estratégia didática e flash ( para a parte
teórica) e informação, estratégia didática e atividade sobre HdM (para as
atividades).
Bianchi (2006) observou que houve um aumento de menções de uma
edição para outra na maioria das categorias de análise. Além disso, ela observou
mudanças relativas a alguns fatos históricos e complementação de outros, o que,
segundo a pesquisadora, demonstrou a preocupação, dos autores, em manter a
História da Matemática nos livros didáticos. Embora Bianchi tenha observado
acréscimo de elementos históricos nos livros, assim como Vianna (1995), ela

1140
observa que a categoria “estratégia didática” é a menos utilizada na parte teórica
e nas atividades. A autora observa, também, que a história precisa ser mais
relacionada com o conteúdo matemático e não apenas servir como leitura
adicional.
Pereira (2016) apresenta em sua dissertação a análise de 6 coleções de
livros didáticos do Ensino Médio, aprovados pelo PNLD 2015. As categorias de
análise utilizadas pela autora para analisar a função didática das menções
históricas - como a pesquisadora se refere - presentes nos livros foram: i) HdM
e estratégia didática - menções à HdM apresentadas em textos de forma
expositiva ou atividades que conduzam o aluno à compreensão do conteúdo
matemático e propiciem o desenvolvimento do raciocínio matemático; ii) HdM e
elucidação dos porquês - menções à HdM apresentadas, geralmente, em forma
expositiva, com o intuito de mostrar ao aluno o porquê do desenvolvimento de
alguns conhecimentos matemáticos; iii) HdM e elucidação dos para que - são
menções históricas que mostram a utilidade de conteúdo específicos e suas
aplicações na própria matemática e em outras áreas, em um determinado tempo
ou em épocas diversas e iv) HdM e formação cultural geral - nessa categoria as
menções históricas trazem Informações de forma mais geral, porém
relacionadas à matemática, como biografia de matemáticos.
Foram identificadas, nas coleções analisadas por Pereira, 294 menções
à HdM, sendo 265 em forma de textos expositivos e 24 em forma de atividades.
A pesquisadora, também, observou que o uso de HdM como estratégia didática
ainda é a categoria menos utilizada. A autora defende um maior número de
inserções nessa categoria, que é a mais interessante do ponto de vista didático.
A pesquisa de Pereira (2016) é um dos referenciais teóricos de nossa pesquisa.
As categorias para analisar as funções didáticas de inserções de HdM também
serão utilizadas em nossa pesquisa, cujas fontes primárias serão algumas
coleções dos anos finais do Ensino Fundamental.
Através dos resultados dos estudos apresentados, observamos que a
categoria de inserções que menos está presente nos livros didáticos, desde o

1141
primeiro estudo, é a estratégia didática, que é a categoria mais interessante do
ponto de vista do ensino de matemática.

METODOLOGIA: corpus documental da pesquisa e como as


inserções de HdM serão mapeadas

A pesquisa será desenvolvida segundo uma abordagem qualitativa -


uma vez que se utiliza da pesquisa bibliográfica e da pesquisa documental - e
segundo uma abordagem quantitativa - uma vez que métodos estatísticos serão
aplicados para quantificar e comparar informações extraídas dos dados. A
pesquisa bibliográfica tem como objetivo fazer um estudo sobre os trabalhos
anteriores, que analisaram inserções de História da Matemática em livros
didáticos. Já a pesquisa documental é o principal instrumento utilizado na
pesquisa, que tem como fontes primárias os livros didáticos de Matemática dos
anos finais do Ensino Fundamental, aprovados pelo PNLD 2020.
O PNLD 2020 aprovou 11 coleções de Matemática para os anos finais
do Ensino Fundamental, totalizando 44 livros. Dado o prazo para concluir uma
pesquisa de mestrado, foi necessário realizar um recorte nesse corpus
documental inicial. Assim, escolhemos 4 coleções, totalizando 16 livros para
análise, tendo como critério para a seleção, as coleções com maior número de
exemplares adquiridos nesta edição do programa, segundo dados estatísticos
do PNLD 2020. (BRASIL, 2020)
.
Quadro 1: Coleções de livros selecionados para análise.

Autor Título da obra

José Ruy Giovanni Júnior e Benedicto Castrucci A conquista da Matemática

Maria Regina Garcia Gay e Willian Raphael Silva Araribá mais – Matemática

1142
Edwaldo Bianchini Matemática – Bianchini

Luiz Roberto Dante Teláris Matemática

Fonte: Adaptado do Guia de Livros Didáticos - PNLD 2020 (BRASIL, 2019).

A coleta de dados será realizada em duas etapas. Primeiramente, as


inserções serão identificadas em cada livro. Em seguida, dados de cada inserção
serão registrados por meio de um questionário com preenchimento via Google
Forms, o qual foi adaptado a partir do questionário elaborado pelo grupo
CHEMat, voltado para coletar dados de inserções de HdM em livros de
Matemática do Ensino Médio, aprovados pelo PNLD 2018 (HAUBRICHS;
BERNARDES, 2020).
Não descrevemos as diferentes partes do questionário a ser usado para
a pesquisa neste texto, ao invés disso, destacamos duas de suas adaptações e
apresentaremos dois conjuntos de categorias que serão usados para classificar
as inserções. As principais adaptações no questionário foram:
i) nos conteúdos matemáticos dentro dos quais a inserção está
localizada: uma lista de conteúdos foi elaborada a partir dos objetos de
conhecimento e das respectivas habilidades apresentadas na BNCC (BRASIL,
2018) para o Ensino Fundamental anos finais. Os conteúdos foram agrupados
de acordo com a unidade temática a que pertencem: números, álgebra,
geometria, grandezas e medidas e estatística e probabilidade, conforme disposto
no quadro abaixo.

Quadro 2: Conteúdos relacionados às Unidades Temáticas

Unidade Temática Conteúdos

Números e Operações Sistemas de numeração, Números naturais,


Divisibilidade, Números inteiros, Números racionais,
Números reais, Contagem.

1143
Álgebra Propriedades da igualdade, Partição, Linguagem
algébrica: variável e incógnita, Expressões algébricas,
Sequências, Proporcionalidade, Equações polinomiais
do 1º e 2º grau, Sistema de equações polinomiais de 1º
grau, Funções, Razão entre grandezas.

Geometria Geometria plana: área de figuras planas e perímetro,


Ângulos e retas, Teorema de Tales, Triângulos: ângulos,
congruência e semelhança, Relações métricas no
triângulo retângulo, Trigonometria no triângulo retângulo,
Transformações geométricas: Homotetia, translação,
reflexão e rotação, Geometria espacial: poliedros,
planificações e vistas ortogonais, Plano cartesiano:
pontos, distâncias entre pontos e retas, Construções
geométricas, Circunferência: arcos, ângulos centrais e
ângulos inscritos.

Grandezas e Medidas Geometria espacial métrica, Grandezas e suas medidas,


Figuras planas: perímetros, áreas, plantas baixas e
vistas aéreas, Medida do comprimento da circunferência
e área do círculo, Ângulos: medidas e usos.

Estatística e Estatística; probabilidade.


Probabilidade

Fonte: Adaptado da BNCC, (BRASIL, 2018).

ii) elaboração de uma lista prévia com os nomes de matemáticos,


passíveis de serem mencionados nas inserções de HdM de livros didáticos dos
anos finais do Ensino Fundamental. Tal lista será elaborada a partir de um
pequeno estudo piloto. Para isso, 4 livros serão selecionados: um livro de cada
ano e de coleções diferentes. Será feita uma listagem de todos os nomes
mencionados nas inserções de HdM encontradas nesses 4 livros. O objetivo de
elaborar tal lista é evitar perguntas de resposta aberta e com possíveis variações
para o nome do mesmo matemático.
Além das questões que visam registrar dados das inserções, o
questionário possui duas questões que oferecem categorias de análise. O
primeiro conjunto de categorias “avalia criticamente a narrativa histórica contida

1144
na inserção” (HAUBRICHS; BERNARDES, 2020, p. 10). Quatro categorias foram
propostas pelo grupo CHEMat, não necessariamente disjuntas duas a duas, para
classificar as inserções: a) a narrativa é composta de uma sequência de
episódios/eventos de locais e/ou tempos distintos, b) a narrativa é focada em
apenas um episódio/evento, c) a narrativa contém meramente informações
biográficas de um ou mais personagens e d) a narrativa contém meramente a
menção de algum elemento histórico (nome próprio, local ou data) ligado a um
conceito matemático. O objetivo de fazer esta classificação é identificar se as
inserções se aproximam de uma historiografia de vertente mais tradicional ou
mais atualizada para a HdM.
O segundo conjunto é baseado nas categorias apresentadas por Pereira
(2016), não necessariamente disjuntas duas a duas, com o objetivo de analisar
as funções didáticas das inserções de HdM. São elas: a) estratégia didática, b)
elucidação dos porquês, c) elucidação dos para quê ou d) formação cultural
geral. A análise proporcionada por essas categorias nos possibilitará saber, por
exemplo, se a HdM presente nos livros didáticos de Matemática, anos finais do
Ensino Fundamental, contribui diretamente para o ensino dos conceitos
matemáticos (estratégia didática).
Cada inserção de HdM é considerada um “respondente” do
questionário. O quantitativo de inserções que Pereira (2016) encontrou (quase
300) nas 6 coleções de Ensino Médio, analisadas por ela, nos leva a estimar que
em cada livro podemos encontrar cerca de 15 a 20 inserções. Como 16 livros
serão analisados, o questionário será respondido cerca de 350 vezes. Ao final
da coleta de dados, teremos uma tabela com cerca de 350 linhas para ser
analisada.

ESTÁGIO ATUAL DA PESQUISA, PRÓXIMOS PASSOS E RESULTADOS


ESPERADOS

1145
Neste momento, estamos trabalhando na finalização do questionário de
coleta de dados, deixando-o adaptado a nossa pesquisa, já que a versão original
foi elaborada para coleta de dados dos conteúdos de livros didáticos do Ensino
Médio pelo grupo CHEMAT. Ao mesmo tempo, estamos localizando as
inserções presentes nas coleções selecionadas para o início dos registros das
mesmas, assim que finalizada as alterações do questionário.
Finalizadas as etapas acima descritas, iniciaremos a coleta de dados,
onde serão registradas no questionário as inserções mapeadas nos livros.
Concluídos tais registros, será realizada a análise dos dados, segundo critérios
acima descritos.
Como citado anteriormente, esperamos ao fim de nossa pesquisa, ter
uma visão ampliada do uso, dos tipos de narrativa e dos fins didáticos da História
da Matemática presentes nos livros didáticos de Matemática para os anos finais
do Ensino Fundamental.
Esperamos, também, que os resultados apresentados contribuam, para
despertar no professor da educação básica um olhar mais crítico para a história
da matemática e seu uso no ensino. Além disso, este estudo poderá contribuir
para pesquisadores interessados em pesquisar e ampliar os horizontes dentro
dessa temática e para professores de cursos de formação de professores de
matemática que tenham interesse em debater o tema da articulação entre
história e ensino.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BIANCHI, M. I. Z. Uma reflexão sobre a presença da História da Matemática
nos livros didáticos. 2006, 103p. Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-
graduação em Educação Matemática), Universidade Estadual Paulista, Rio
Claro-SP.
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília,
2018.
______. Ministério da Educação. PNLD 2020: matemática – guia de livros
didáticos/ Ministério da Educação – Secretaria de Educação Básica – Fundo
Nacional de Desenvolvimento da Educação. Brasília, DF: Ministério da
Educação, Secretaria de Educação Básica, 2019.

1146
BRASIL. Ministério da Educação. (2020). Programas do Livro – Dados
Estatísticos/Ministério da Educação - Fundo Nacional de Desenvolvimento da
Educação, Brasília, DF: Ministério da Educação e Cultura. Disponível em:
<https://www.fnde.gov.br/index.php/programas/programas-do-livro/pnld/dados-
estatisticos.> acesso em 23/07/2020.
HAUBRICHS, C; BERNARDES, A. Inserções de história em livros didáticos
de matemática: elaborando um instrumento de coleta de dados. Disponível
em:
<https://www.17snhct.sbhc.org.br/resources/anais/11/snhct2020/1599695763_
ARQUIVO_9305592694d752e40f9fd060e1153369.pdf> acesso em:
27.12.2020.

FAUVEL, J.; MAANEN, J. van. History in Mathematics Education - The ICMI


study. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 2000.

FRIED, M. N. History of mathematics in mathematics education. In:


MATTHEWS, M. R. (Ed.). International Handbook Handbook of Research in
History, Philosophy and Science Teaching. Dordrecht, Heidelberg, New York,
London: Springer, 2014. cap. 21, p. 669–703.

GRATTAN-GUINNESS, I. The mathematics of the past: distinguishing its


history from our heritage. Historia Mathematica, v. 31, p. 163–185, 2004.

MIGUEL, A.; MIORIM, M. A. História na Educação Matemática: propostas e


desafios. 2 a ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011, 208 p. (Coleção
Tendências em Educação Matemática).

PEREIRA, E. A História da Matemática nos livros didáticos de Matemática


do Ensino Médio: conteúdos e abordagens. Programa de Pós-Graduação
em Ensino de Ciências - Mestrado Profissional, Universidade Federal de
Itajubá, Itajubá, 2016.

SAITO, F. A Pesquisa Histórica e Filosófica na Educação Matemática.


Revista Eventos Pedagógicos, v. 9, n. 2 (24. ed.), p. 604-618, 2018.

VIANNA, C. R. Matemática e História: Algumas relações e implicações


pedagógicas. 1995. 228p. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade
de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1995.

1147
OS OBSTÁCULOS EPISTEMOLÓGICOS EM GUY BROUSSEAU E A
EMERGÊNCIA DA MATEMÁTICA PURA NO SÉCULO XIX

Vinicius Linder393

RESUMO
A intenção deste trabalho é apresentar uma reflexão sobre o uso da história no ensino
de matemática. Tomando como ponto de partida os obstáculos epistemológicos na
teoria de Guy Brousseau (1997), problematizamos sua aplicação a um determinado
episódio da história da matemática, a saber, a emergência da matemática pura no
século XIX. A exemplo das críticas feitas por Schubring (2018) e Radford (1997) a um
papel passivo da história em seu uso no ensino, entendemos que tais estudos possuem
uma abordagem limitada da história, uma vez que negligenciam seu papel ativo, além
da constituição de seus elementos sociais. Em vias de contribuir para este debate,
apresentamos aqui uma reflexão dos aspectos do uso da história no ensino de
matemática, ao produzir um tensionamento entre a teoria de Brousseau e a história
social da emergência da matemática pura. Tal abordagem visa refletir sobre a validação
da abordagem histórica de Brousseau para o ensino de matemática, uma vez que esta
remete a um suposto paralelismo entre o processo formativo e o histórico.

Palavras-chave: História da Matemática, Ensino de Matemática, Obstáculos


Epistemológicos.

INTRODUÇÃO

Neste texto, traremos como pano de fundo a relação entre o ensino e história da
matemática ou, de certa forma, as metodologias de uso da segunda na primeira.
Admitimos aqui que tal uso, como o é comumente concebido, nos parece no
mínimo questionável.

393
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). lindervinicius@gmail.com

1148
De maneira geral, concordamos aqui com Radford (1997) no que este apresenta
dois tipos comuns de abordagem da história da matemática no ensino. O
primeiro estaria ligado à apresentação de anedotas históricas. Tal abordagem se
utiliza de episódios históricos, no sentido de trazer uma “contextualização” e
“motivação” ao conteúdo tratado. A segunda se refere à maneira específica de
enxergar a história como “um imenso arsenal de problemas cronologicamente
ordenados a serem “importados” à sala de aula, para que os alunos os resolvam”
(RADFORD, 1997, p. 26). Ainda que tais abordagens possam ter seus ganhos
na relação com os alunos, as entenderemos aqui como tratamentos superficiais
dados à história.
Radford apresenta então uma terceira abordagem possível à história no ensino:
“uma espécie de laboratório epistemológico, no qual explora-se o
desenvolvimento do conhecimento matemático” (ibid., 1997, p.26). Tal
abordagem nos oferece uma problemática particular, relativa à relação entre o
saber moderno com o saber do passado.
Uma abordagem específica de tal questão encontra-se na teoria do
desenvolvimento cognitivo de Piaget (1971). Em sua epistemologia genética,
Piaget apresenta uma tese particular sobre tal relação adotando a chamada “lei
biogenética”, na qual justifica sua teoria, que afirma o paralelismo entre a
organização racional do conhecimento na história e nos processos formativos.
No que concerne ao ensino da matemática, tal visão foi adotada principalmente
por Guy Brousseau, em sua Didática da Matemática (1983). Ao aproximar-se da
questão do papel do erro em matemática, Brousseau tomará como base de sua
abordagem a teoria dos obstáculos epistemológicos de Gaston Bachelard
(1938/1975). Bachelard defende que o progresso da ciência realiza-se em uma
sequência de rupturas psicológicas, processo que nos leva do conhecimento
fenomenológico ao abstrato. Anteriores às rupturas, haveriam períodos de
estagnação, caracterizados pela presença de obstáculos epistemológicos.
Brousseau aproximará então as teorias de Piaget e de Bachelard, de forma a
incorporá-las em uma visão renovada sobre o papel do erro. Na concepção de

1149
Brousseau, os erros individuais de um aluno podem refletir, diretamente,
obstáculos encontrados na história da matemática.
O objetivo deste breve ensaio é problematizar a teoria de Brousseau, aplicando-
a a um episódio específico da história da matemática, a saber, a emergência da
matemática pura na Prússia, no século XIX, à luz de seu contexto social.

OS OBSTÁCULOS EPISTEMOLÓGICOS

A noção de obstáculo epistemológico é introduzida por Gaston Bachelard, na


primeira metade do século XX. Em sua obra, A Formação do Espírito Científico,
Bachelard descreve a construção do conhecimento da ciência por meio de fases,
avançando do concreto para o abstrato.
Tal formação se dá portanto especificamente por três fases: (1) o estado
concreto, no qual o espírito se entretém na contemplação da natureza, louvando
a unidade do mundo, (2) o estado concreto-abstrato, no qual ocorre a
geometrização da natureza, um passo adiante à abstração e finalmente (3) o
estado abstrato onde são construídos conhecimentos subtraídos à intuição do
espaço real, voluntariamente desligados da experiência.
A cada um desses estados, é atribuída uma qualidade metodológica, de forma
que a transição de um estado a outro pode ser atravancada pelo estado anterior.
Dessa forma, a construção do conhecimento científico pode encontrar
impossibilidades na própria forma de concebê-lo. No fundo, o ato de conhecer
dá-se contra um conhecimento anterior, destruindo conhecimentos mal
estabelecidos, superando o que, no próprio espírito, é obstáculo à
espiritualização (BACHELARD, 1996, p.17). À essas objeções da construção do
conhecimento identificam-se os obstáculos epistemológicos de Bachelard.
A aplicação de tal conceito ao campo da educação é amplamente sugerida pelo
autor: “A noção de obstáculo epistemológico pode ser estudada no
desenvolvimento histórico do pensamento científico e na prática da educação.
Em ambos os casos, esse estudo não é fácil” (ibid., p.21).

1150
Na educação matemática em especial, o conceito de obstáculo será adotado
sobretudo a partir da obra de Guy Brousseau (1997). Este autor francês
questiona o papel do erro no aprendizado dos alunos de maneira específica, em
detrimento de uma abordagem do erro como a ignorância ou o acaso individual.
Ao abordar tal questão, Brousseau traça um paralelo entre a epistemologia
genética de Piaget e os obstáculos epistemológicos de Bachelard.
Os obstáculos aos quais Brousseau se refere são classificados pelo autor em
três categorias de origem: (1) ontogênico, os quais surgem por limitações físicas
do estudante no momento do desenvolvimento; (2) didáticos, as quais dependem
das escolhas do projeto didático do sistema escolar e; (3) epistemológicos, dos
quais não se pode nem se deve fugir, em razão de seu caráter formativo na
produção de conhecimento em questão. Estes podem ser encontrados na
história dos próprios conceitos (BROUSSEAU, 1997, p. 86-87).
A questão é proposta por Brousseau tendo em vista a possibilidade de se
contornar tais obstáculos. É interessante, contudo, que os obstáculos
epistemológicos sejam aqueles classificados enquanto “incontornáveis”. Este
caráter de necessidade é justificado pela orientação histórica de tais obstáculos
no desenvolvimento dos conceitos em questão.
Brosseau então definirá condições sob as quais tais conceitos aplicam-se:

– the obstacles in question are truly identified in the history of mathematics;


– they have been traced in students’ spontaneous models;
– the pedagogical conditions of their “defeat” or their rejection are studied with precision
in such a way that a precise didactical project can be proposed to teachers;
– the assessment of such a project can be considered positive. (BROUSSEAU, 1997, p.
93)

E estabelece, por fim, uma espécie de “receita” de pesquisa relacionada à sua


teoria, sob a qual os pesquisadores devem encontrar erros recorrentes dos
alunos e identificar seus obstáculos correspondentes na história.
Tal estratégia revela, entretanto, uma visão relativamente limitada da história. A
história para Brousseau parece ser um produto acabado, uma narrativa dos fatos
passados, que podem assim serem resgatados tais como ocorreram. Esta

1151
posição específica é apontada por Schubring (2018) como proveniente do fato
de que aparentemente o autor “não integra uma peça chave da concepção de
Bachelard: a noção de ruptura entre o conhecimento sensível e o conhecimento
científico” (SCHUBRING, 2018, p. 32).
Na visão histórica de Brousseau, parece haver uma clareza quanto à
possibilidade de correspondência dos obstáculos do desenvolvimento científico
com a construção dos mesmos conhecimentos a nível de sala de aula. Tal
relação parece remeter diretamente à conjectura de correspondência entre
ontogenia e filogenia, presente sobretudo na Epistemologia Genética de Piaget,
cuja hipótese fundamental supõe um paralelismo entre o progresso da
organização lógica e racional do conhecimento e os correspondentes processos
psicológicos formativos (PIAGET, 1971, p. 13).
Esta posição de Piaget seria reforçada sobretudo a partir de sua obra de 1983,
em parceria com Rolando Garcia, Psychogenesis and the History of Science. Tal
obra trata de estudos comparativos nos campos da mecânica, geometria e
álgebra, afirmando a invariância dos instrumentos no desenvolvimento histórico
e individual, cuja ação identifica processos e mecanismos comuns.
Tal posição específica da história possuirá uma ampla crítica (FRANCO e
COLINVAUX-DE-DOMINGUEZ, 1992; RADFORD e FURINGHETTI, 2002;
ROGERS, 2008; SCHUBRING, 2018), bem como produções tributárias destas
obras (SIERPINSKA, 1994; SFARD,1995). É perante o debate estabelecido por
essas obras que pretendo aqui apresentar uma breve análise de um momento
específico da história e suas possíveis relações com os conceitos acima.

A EMERGÊNCIA DA MATEMÁTICA PURA

No século XIX, ocorre na matemática uma mudança de paradigma na qual a


ontologia de seus objetos de estudo deixa de estar necessariamente atrelada
aos fenômenos da realidade. Nesta nova concepção da matemática, emerge
uma ciência “pura”, distinta pelo caráter abstrato de seus objetos.

1152
Esse tipo de objeto torna-se central na matemática sobretudo a partir do século
XIX. Anteriormente, sobretudo durante os séculos XVII e XVIII, a matemática se
estabelece enquanto ferramenta de leitura e manipulação dos fenômenos da
realidade, a partir do determinismo científico de Newton (1643-1727). Nesta
concepção, a realidade e a natureza poderiam ser determinadas através de suas
relações de causalidade, as leis naturais, expressas por suas equações
matemáticas.
É preciso observar que a relação entre realidade e natureza estabelece aqui uma
reciprocidade. Ao passo que a natureza é determinada por suas leis
matemáticas, os objetos da matemática por sua vez são compreendidos a partir
de sua identidade com as condições do real. Designa-se aqui uma ontologia
específica, caracterizada por seu substancialismo.
A partir do início do século XIX, entretanto, parece ocorrer uma virada neste
cenário. A emergência de uma “nova” matemática, posicionada sobre uma nova
base epistemológica, começaria a se formar na Prússia. Assentada nos valores
neo-humanistas, projeta-se a legitimação de uma matemática “pura”, cujos
conceitos fundamentais deviam ser definidos por meio de outras definições
claramente explicitadas e nunca se basear em intuições (ROQUE, 2012, p. 419).
No interior desta mudança de episteme, portanto, aparentemente reside a
superação de um obstáculo epistemológico, no sentido dado por Bachelard.
Conceitos como os números negativos, por exemplo, não seriam aceitos por sua
desconexão com a ontologia estabelecida a partir do paradigma quantitativo.
Possibilidade de inferências mais abstratas como as geometrias não-euclidianas
não seriam ao menos possíveis na concepção matemática pré século XIX.

A MATEMÁTICA PURA É UM OBSTÁCULO EPISTEMOLÓGICO?

A análise de aplicação do conceito de obstáculo epistemológico à situação


histórica descrita na seção anterior deverá aqui passar por uma avaliação dos
aspectos sociais do episódio em questão. Tentaremos, assim, trazer aqui

1153
algumas reflexões pertinentes ao âmbito da história social da emergência da
matemática pura, de forma a problematizar a aplicação referida.
Em um artigo de 1981, Schubring discute o papel da matemática pura como
ferramenta no processo de institucionalização da matemática na Prússia. Em
linhas gerais, tal processo se dará a partir de meados do século XVIII, mas terá
seu desenvolvimento sobretudo no início do século XIX.
Tal processo demandaria o reconhecimento social da atuação de uma
comunidade científica e sua contrapartida institucional. A emergência de uma
matemática “pura”, independente de suas aplicações bem como o
desenvolvimento de uma metodologia específica legitimariam o processo de
institucionalização da matemática e sua consequente autonomia científica. A
renovação da visão interna sobre os princípios e metaconcepções da
matemática assim se fazia necessária.
É de se notar que a matemática desenvolve-se, até a passagem do século XVIII
para o XIX, majoritariamente na França, sempre atrelada ao contexto das
ciências naturais, sobretudo a partir da tradição determinista do pensamento
iluminista. No ideário revolucionário francês, a justificativa para qualquer
empreendimento teórico permanecia atrelada à sua relevância para a resolução
de problemas de física ou de engenharia (ROQUE, 2012, p. 416).
O contexto institucional na França foi ainda mais decisivo na origem do chamado
“declínio” francês. Após a revolução, a política de remunerações privilegiaria
quase exclusivamente o ensino, em detrimento da pesquisa científica. Tal
situação, de forte cunho político, teria consequências diretas à matemática
francesa.
O contrário, contudo, acontecia na Prússia. As reformas educacionais de
Wilhelm Von Humboldt teriam atuação especial no desenvolvimento de uma
cultura científica, centrada sobretudo nos valores neo-humanistas e no conceito
de Bildung, onde despontaria o “imperativo da pesquisa” em todas as cadeias de
ensino (incluindo os ginasiais).
O desenvolvimento do “imperativo da pesquisa” nas universidades, bem como
da profissionalização nas universidades prussianas concentraram suas

1154
atividades inicialmente na filologia (SCHUBRING, 1981, p. 117), uma vez que o
desenvolvimento do espírito era mais enfatizado, em detrimento da expansão
pela produção de novos conhecimento. A extensão da metodologia filológica às
ciências matemáticas marcará assim uma maneira “nova” de fazer matemática,
alinhada com os valores neo-humanistas, com foco formativo.
A obra de Jacobi (1804-1851) é um bom exemplo do ideal não utilitário da
ciência, reflexo da cultura do período. Sua frase: “é honorável à ciência não ter
uso”394 é bem conhecida e sintetiza as ideias que queremos aqui descrever: .
Além de Jacobi, podemos destacar neste cenário a figura de August Leopold
Crelle (1780-1855), cuja defesa de uma matemática pura se encontra também
nessa perspectiva de formação espiritual dos indivíduos.
É neste ambiente intelectual que surgirão esforços para a disciplinarização e
institucionalização da matemática enquanto uma ciência autônoma. Schubring
(1981) mostra que no período de 1817 a 1850 intentou-se o estabelecimento de
uma instituto politécnico em Berlim, cuja função principal seria a efetivação da
profissionalização e institucionalização da matemática como uma ciência
moderna. A construção de tal independência dependia necessariamente da
estruturação de uma disciplina independente, a qual se encontrava na
matemática pura.
Ficam evidentes, desta forma, a maneira com que fatores externos determinaram
a institucionalização e consequentemente, a emergência de uma matemática
pura. Desta forma, esta surgiria neste cenário com uma intencionalidade: a
construção de uma metodologia científica autônoma, justificada por sua
necessidade institucional. A superação de seus aspectos internos, nesta visão,
nos parecem secundários.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

394
Curiosamente Goethe, uma das figuras mais importante do romantismo alemão, apresenta
fragmento semelhante em sua obra Máximas e Reflexões, de 1833: “Como quer alguém
aparecer como mestre em sua matéria quando não ensina nada de inútil?”

1155
Dadas as devidas considerações, retornamos à problemática inicial, a qual
considera a emergência de uma matemática pura enquanto obstáculo
epistemológico. Um olhar menos atento aos fatores sociais envolvidos poderia
certamente admiti-los, uma vez que do ponto de vista conceitual, há uma espécie
de impossibilidade à construção das ideias devido à epistemologia adotada.
Entretanto, é curioso que as motivações históricas estejam afastadas de tais
preocupações.
Ademais, é preciso comentar alguns pontos pertinentes ao tema. A teoria de
Brousseau procura posicionar o papel do erro como elemento constitutivo do
aprendizado. Tais considerações interessam e muito ao âmbito do ensino, uma
vez que posicionam o erro no centro da reflexão e não mais o relegam a uma
marginalidade. Contudo, é intrigante a expectativa de paralelismo que a teoria
de Brousseau propõe entre os obstáculos encontrados na história da produção
do conhecimento científico e as dificuldades encontradas pelos alunos.
Tal paralelismo inegavelmente remonta um ambiente de aceitação da lei
biogenética, hipótese sob a qual o desenvolvimento dos indivíduos replicaria as
etapas principais percorridas pela espécie. Tal hipótese vigorou sobretudo entre
o final do século XIX e o início do século XX. Concordamos aqui em uma
preocupação expressada por Schubring, no sentido de que “o conceito de
obstáculo epistemológico tem reanimado a chamada lei biogenética, em
particular em estudos que investigam o uso da história no ensino da matemática”
(SCHUBRING, 2018, p. 38).
Concluímos ao salientar aqui a importância de se desenvolverem estratégias
efetivas de integração entre história e ensino. Acreditamos aqui na perspectiva
de Radford (1997), o qual é enfático em defender a análise histórico-
epistemológica na educação matemática, sob uma perspectiva cultural. Assim,
seria preciso entender as negociações e concepções culturais que transpassam
os conceitos, de forma a obter destas as informações necessárias ao
entendimento do desenvolvimento do saber matemático

1156
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico: contribuição para
uma psicanálise do conhecimento, Tradução Esteia dos Santos Abreu. - Rio de
Janeiro: Contraponto, 1996.

BROUSSEAU, Guy. Theory of Didactical situations in mathematics;


traduction M. Cooper, N. Balacheff, Rosamund Sutherland et Virginia Warfield.
1997.

FRANCO, Creso; COLINVAUX-DE-DOMINGUEZ, Dominique. Genetic


epistemology, history of science and science education. Science & Education,
v. 1, n. 3, p. 255-271, 1992.

FURINGHETTI, Fulvia; RADFORD, Luis. Historical conceptual developments


and the teaching of mathematics: From phylogenesis and ontogenesis theory to
classroom practice. Handbook of International Research in Mathematics
Education, Lawrence Erlbaum, New Jersey, p. 631-654, 2002.

PIAGET, Jean. Genetic Epistemology. Columbia University Press, 1971.

PIAGET, Jean. and GARCIA, Rolando. Psychogenesis and the History of


Science, New York: Columbia University Press,1989

RADFORD, Luis. On psychology, historical epistemology, and the teaching of


mathematics: Towards a socio-cultural history of mathematics. For the learning
of mathematics, v. 17, n. 1, p. 26-33, 1997.

ROGERS, Leo. The biogenetic law and its influence on theories of learning
mathematics. Research in Mathematics Education, v. 2, n. 1, p. 225-240, 2000.

ROQUE, Tatiana. História da matemática: uma visão crítica, desfazendo mitos


e lendas - Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

SCHUBRING, Gert. The conception of pure mathematics as an instrument in the


professionalization of mathematics. Social history of nineteenth century
mathematics. Birkhäuser, Boston, MA,. p. 111-134. 1981

SCHUBRING, Gert. Conflicts between Generalization, Rigor and Intuition.


New York: Springer, 2005

SCHUBRING, Gert. Os números negativos: exemplos de obstáculos


epistemológicos? - São Paulo: Editora Livraria da Física, 2018.

1157
STOMACHION: UMA ABORDAGEM SOBRE A HISTÓRIA DA
ANÁLISE COMBINATÓRIA – PÔSTER DIGITAL

Paula Francisca Gomes Rodrigues395


Área: História no Ensino da Matemática.

RESUMO
Este trabalho objetiva explorar a História da Matemática no âmbito da Análise
Combinatória e verificar que o Stomachion de Arquimedes é o primeiro registro de
estudos sobre o tema. Desejamos aproximar a História da Matemática aos alunos de
forma a mostrar que a Matemática é ciência em transformação e que pode ser utilizada
como recurso didático. Assim, trazemos a resolução do Stomachion e, através de
nossos estudos sobre o tratado, propomos sua utilização em atividades do Ensino
Básico, haja vista ser uma fonte de estudos sobre Geometria, Análise Combinatória e
Raciocínio Lógico. O trabalho foi desenvolvido através de pesquisas bibliográficas onde
analisamos livros digitais e impressos, dissertações, artigos e obras publicadas em sites
oficiais sobre a História da Combinatória e o Palimpsesto de Arquimedes. O livro Códex
Arquimedes, de Reviel Netz e William Noel, é base para a investigação proposta.
Finalizamos este trabalho desmistificando que o Stomachion seja apenas um jogo e que
pode ser empregado como núcleo de desenvolvimento de outras áreas matemáticas.

Palavras-chave: Arquimedes; Stomachion; Análise Combinatória; Geometria;


Ensino Básico.

INTRODUÇÃO

Nos últimos trinta anos o interesse pela História da Matemática vem se


consolidando como fonte investigativa e de conhecimento para o
desenvolvimento da Educação Matemática, segundo Lopes e Alves (2014, p. 2).
Novas descobertas em documentos e textos antigos ajudam a constituir os

395
Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). paula.fibbonacci@hotmail.com.

1158
passos que nos trouxeram até o que conhecemos hoje ou até mesmo modificar
o que se acreditava correto, além de introduzir novas ferramentas matemáticas.

Com a evolução da matemática questões antigas e sofisticadas


receberam soluções triviais (quanto mais avançado na
matemática, mais ferramentas tornam fáceis algumas
resoluções), em contraparte à suas antigas resoluções. Estudar
as soluções dadas à época dos problemas faz parte da
introdução de ferramentas novas ao ensino. Isto é, o uso das
ferramentas e instrumentos pelos antigos estudiosos permite
uma perspectiva diferente da forma como o problema foi
originalmente abordado. (SILVA, 2020, p.16)

O Stomachion de Arquimedes é um grande exemplo disso.


Despretensiosamente era considerado apenas um jogo de quebra-cabeças
semelhante ao Tangram Chinês mas teve seu nível de importância elevado ao
de modificador da História da Matemática quando o perdido Palimpsesto de
Arquimedes, conhecido como Códex C, reapareceu em 1998 e foi leiloado no
mesmo ano. O comprador, que permanece anônimo, cedeu a obra ao Museu
Walters no Estados Unidos para que a obra pudesse ser restaurada e lida.
Apesar de todas as atenções estarem voltadas para o tratado de O
Método contido no palimpsesto, quando finalmente o Stomachion pode ser lido
e interpretado, descobriu-se que Arquimedes havia estudado Combinatória
através dele e que aquele registro era o mais antigo estudo de Combinatória
existente e remontava há mais de 2000 anos. Esta dissertação visa aplicar esse
tratado tão importante em atividades do Ensino Básico de Matemática, de acordo
com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e o Currículo Referência de
Minas Gerais, bem como criar uma cronologia sobre os estudos em Análise
Combinátoria, trazer a resolução do Stomachion e sua tradução da língua inglesa
para a língua portuguesa.

1159
FIGURA 1 – TABULEIRO QUE REPRESENTA O STOMACHION

Fonte: https://culturacientifica.com/2019/10/23/el-puzzle-stomachion-y-
el-palimpsesto-de-arquimedes-1/. Acesso em 01/01/2021.

Tratamos da história de vida e obra de Arquimedes de Siracusa. Além


de um breve histórico sobre suas contribuições para a Matemática e Física como
O Método, A Quadratura da Parábola e Sobre A Esfera e O Cilindro e
destacamos seus feitos como grande colaborador do rei na defesa de sua ilha,
a Sicília.
Em seguida, faz-se necessária a abordagem do processo de produção
do palimpsesto que abriga o texto de Arquimedes, destacamos a existência e
destino dos Códices A e B que também continham tratados do matemático, os
caminhos percorridos pelo Códex C até o Museu Walters, o estado em que se
encontrava e as técnicas empenhadas para sua restauração e leitura. Nessa
parte, trazemos a história do Stomachion e a descoberta de que se tratava de
um tratado sobre Combinatória.
O trabalho prossegue com uma revisão bibliográfica da história da
Análise Combinatória de modo a investigar a teoria de que o tratado de
Arquimedes foi o primeiro registro de estudos sobre o tema e produzir conteúdo
para esse ramo tão pouco estudado. Assim, revisitamos registros chineses do
século XVII a.E.C. até a formalização da teoria combinatória a partir do século
XVI E.C. chegando ao século XIX E.C. com a Teoria das Gavetas.
Passando a próxima parte, iniciamos os estudos para a resolução do
problema do Stomachion: “De quantas maneiras o quadrado do Stomachion
pode ser remontado a partir de suas 14 peças?”. Para isso, com o auxílio do
tratado traduzido e de informações contidas sobre ele em um manuscrito árabe,
estudamos as 14 peças, suas relações de semelhança e congruência, a relação

1160
de comensurabilidade com o quadrado e as interações entre as peças na
formação do mesmo.
Sequencialmente, propomos aplicações do Teorema de Pick e do
cálculo de áreas a partir de determinantes como atividades enriquecedoras para
o ensino do cálculo de áreas, aplicando ambos nas áreas das figuras do
Stomachion. Apresentamos, também, uma sequência didática para estudo da
Permutação Simples através do Stomachion. Tais atividades sugeridas são
baseadas na BNCC e no Currículo Referência e, acrescentamos desafios do
Stomachion, aplicações do Stomachion e Tangrans via software gratuito Peces.
De acordo com BRASIL (1998, p. 79), o uso de alguns softwares disponíveis
também é uma forma de levar o aluno a raciocinar geometricamente.
Finalizamos destacando a riqueza de aplicações do tratado no processo
de ensino-aprendizagem fornecendo novas sugestões didáticas aos professores
e ressaltando importância da História da Matemática no desenvolvimento da
disciplina, a fim de humanizá-la e aproximá-la dos estudantes do Ensino Básico.

Consideramos importante que o futuro professor entenda a


evolução da matemática como parte de um processo sócio
cultural, entendendo como a matemática está ligada à cultura
humana. Para que a matemática escolar seja compreendida
como resultado da ação humana de entender e explicar o mundo
e suas experiências nele, o ensino da matemática nas escolas
teria que enfatizar a natureza contextual da disciplina.
(D’AMBROSIO, 2007, pág. 400)

REFERENCIAL TEÓRICO

Arquimedes (287 – 212 a.C.) costumava utilizar as areias de Siracusa


(ilha da Sicília) para traçar seus diagramas e realizar seus cálculos e
comparações. Comunicava-se com seus amigos estudiosos através de cartas
onde lhes contava a respeito de suas descobertas e propunha reflexões. Graças
a esses registros enviados a diversos locais do Mediterrâneo, os trabalhos de
Arquimedes puderam sobreviver ao saque após a tomada de Siracusa.

1161
A História nos diz que existiram três códices com os trabalhos de
Arquimedes, conhecidos como Códex A, Códex B e Códex C. Todavia, apenas
o Códex C sobreviveu ao tempo e chegou até nós. Além de ser a única fonte de
O método e Stomachion, contém, ainda, Corpos Flutuantes, é também o mais
antigo manuscrito dos tratados de Arquimedes. O Códex C como o conhecemos
hoje teve seu conteúdo manuscrito em 975 d.C. (século X) e foi convertido em
códex no século XII. (NETZ; NOEL, 2009, p.137)
Até se analisar o último vestígio do Stomachion, sabia-se que
Arquimedes trabalhou com um jogo composto por catorze peças que, juntas,
formavam um quadrado e cujo objetivo seria construir certas formas geométricas
a partir delas. Relatos da Antiguidade sobre o jogo sugerem que Arquimedes
não o teria inventado, mas que teria se interessado por ele e feito uma série de
reflexões matemáticas a seu respeito.
Em 1899, um acadêmico alemão chamado Suter deparou-se com um
manuscrito em árabe do século XVII que citava um certo “Stumashiun de
Arquimedes”. Essa versão trazia um texto muito curto, contido em duas folhas,
mas que foi fundamental para complementar a página restante no Palimpsesto.
O manuscrito trazia a construção do Stomachion (figura 1).

Figura 2 - Diagrama no manuscrito árabe

Fonte: NETZ, R., NOEL, W. e ACERBI, F., 2004.

A partir das técnicas de recuperação de imagens, fotografias com luz


ultravioleta, William Noel, o curador do Museu Walters e sua equipe,

1162
conseguiram extrair do palimpsesto grande parte do tratado sobre o Stomachion,
assim, veio à tona um significado mais intrigante que o de apenas um jogo de
quebra-cabeças (figura 2):

“Como o assim chamado Stomachion tem uma variada teoria de


transposição das figuras com as quais é formado, achei
necessário: primeiro, especificar, em minha investigação a
respeito da magnitude da figura inteira, cada uma das figuras em
que é dividido por qual [número] é medido; e posteriormente
também quais são os ângulos, considerados pelas combinações
e somados juntos; tudo isso dito com o propósito de descobrir a
montagem das figuras que surgiriam, quer os lados resultantes
das figuras estivessem em uma linha quer estivessem
ligeiramente fora dela, mas de tal forma a passar despercebido
aos olhos. Pois considerações como essas são intelectualmente
desafiadoras; e, se estiver um pouco fora de linha, sendo ao
mesmo tempo despercebido pela visão as figuras que são
compostas não devem por essa razão ser rejeitadas.
Por isso então, não há um pequeno número de figuras
compostas a partir delas, devido a ser possível rotacioná-las em
um outro lugar de uma figura igual e equiangular, transposta para
assumir uma outra posição; e novamente também com duas
figuras, tomadas juntas sendo iguais e semelhantes a uma única
figura, e duas figuras tomadas juntas sendo iguais e
semelhantes a duas figuras tomadas juntas – então, como
resultado da transposição, muitas figuras são criadas.”
(ARQUIMEDES, tradução de William Noel, 2004, p. 93-94)

FIGURA 3 - ELEFANTE MONTADO COM AS PEÇAS DO STOMACHION

Fonte: https://www.mat.uc.pt/~jaimecs/matelem/stomachion.html. Acesso em


13/07/2020.

Associando a leitura do tratado do Stomachion e de sua construção no


manuscrito árabe, chegou-se à conclusão de que os estudos de Arquimedes
sobre a geometria das peças, suas rotações e transposições não objetivavam
formar figuras mas sim, determinar o número de combinações possíveis das

1163
mesmas dentro do quadrado, ou seja, de quantas maneiras podemos arranjar
as peças do Stomachion de modo que sempre formem um quadrado.
Uma luz sobre o assunto foi lançada e indicava que os cientistas
estavam diante de um marco sobre os estudos sobre Análise Combinatória: seu
primeiro registro.
Leibniz definiu a análise combinatória como “o estudo da colocação,
ordenação e escolha de objetos” em 1666, já em 1818, Nicholson sentenciou-a
como ”o ramo da matemática que nos ensina a averiguar e expor todas as
possíveis formas através das quais um dado número de objetos podem ser
associados e misturados entre si.” (VAZQUEZ; NOGUTI, 2004, p. 4)
Biggs (1979, p. 110) afirma que os princípios de contagem são bem
evidentes e são fatos de experiências diárias, os quais até pouco tempo não
haviam recebido um status formal e não é possível rastrear o histórico de suas
origens. No entanto, o autor nos fornece alguns exemplos memoráveis que
persistiram ao longo do tempo, numa tentativa de estabelecer onde os mais
antigos surgiram. Uma certa cantiga de ninar presente em livros infantis do
século XX tem sua primeira referência datada em 1730 mas guarda semelhanças
com enigmas mais antigos, como um problema contido no Liber Abaci de
Fibonacci em 1202 e ao Problema 79 do Papiro Rhind de aproximadamente 1650
a.C.
A teoria combinatória e sua formalização apenas ocorreram a partir do
fim século XVI quando da necessidade de se calcular probabilidades em jogos
de azar. Entre os matemáticos que se dedicaram ao assunto, temos Blaise
Pascal (1623-1662), Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), Pierre Fermat (1607-
1655), Abraham de Moivre (1667 – 1754), Jacob Bernoulli (1655-1705), Leonard
Euler (170-1783) e Johann Peter Gustav Lejeune Dirichlet (1805 – 1859).
(GONÇALVES, 2014, p. 15-18)
Portanto, confirmada a teoria de que o Stomachion realmente se tratava
do primeiro registro de Combinatória da história, Arquimedes é colocado como
pioneiro também neste ramo da Matemática.

1164
A partir deste ponto, busca-se aplicar as descobertas sobre o
Stomachion no Ensino Básico de Matemática, de acordo com o que propõe a
BNCC e o Currículo Referência de Minas Gerais.

METODOLOGIA

Este trabalho trata-se de uma pesquisa bibliográfica sobre a História da


Matemática no âmbito da Análise Combinatória, a vida e obra de Arquimedes,
os registros do Stomachion no Códex C e em um manuscrito árabe e na solução
proposta por Fan Chung e Ron Graham e da possibilidade de se desenvolver
atividades para o Ensino Básico de Matemática a partir do Stomachion e dos
recursos aplicados em sua resolução. Para isso, destacamos as consultas aos
trabalhos de Reviel Netz e William Noel no livro Códex Arquimedes, no artigo
Towards a Reconstruction of Archimedes’ Stomachion, em parceira com Fabio
Acerbi, aos livros Introdução à História da Matemática de Howard Eves e The
Roots Of Combinatorics de Norman L. Biggs e aos Parâmetros Curriculares
Nacionais.
O levantamento bibliográfico foi realizado por meio da procura de livros,
artigos e dissertações que abordassem o Stomachion como um problema de
Análise Combinatória e o referenciassem como marco da História da
Matemática. Para isso, filtramos obras em Inglês e Português sobre a História
da Análise Combinatória antes e após publicação do artigo de Towards a
Reconstruction of Archimedes’ Stomachion em 2004.

ANÁLISE DE DADOS

Através das informações coletadas no levantamento bibliográfico


constatamos que antes do trabalho de Arquimedes no Stomachion haviam
apenas registros que indicavam a utilização dos princípios aditivo e multiplicativo

1165
de contagem no Problema 79 do Papiro Rhind de aproximadamente 1650 a.C. e
no Livro Chinês das Mutações (ou I Ching) também da mesma época. Após isso,
apenas a partir no século XVI d. C. que a Análise Combinatória começa a ser
estudada, desenvolvida e formalizada, segundo Biggs.
Com a descoberta do Códex C de Arquimedes e da aplicação das
tecnologias de análise de imagens no mesmo, pode-se encontrar o Stomachion
e ler seu conteúdo. Nesta leitura, Noel constatou que Arquimedes não estava
interessado na infinidade de figuras que se podiam formar com as peças do
Stomachion e sim, verificar a quantidade de maneiras em que podiam ser
organizadas de maneira a formar um quadrado. Arquimedes então, pontua uma
série de características do Stomachion e analisa uma série de interações entre
as peças como semelhança, congruência e simetria e comensurabilidade entre
suas áreas e a área do quadrado para, a seguir, solucionar o problema
combinatório envolvido.
Em nosso trabalho, além de produzirmos a primeira versão em
Português do tratado do Stomachion a partir do tratado traduzido da língua grega
para a inglesa por William Noel, produzimos sua resolução com o auxílio dos
estudos de Arquimedes e da solução proposta por Chung e Graham utilizando
as ferramentas matemáticas disponíveis a Arquimedes na época.
Analisando a revisão bibliográfica e os dados produzidos na solução,
percebemos que os recursos empregados podem ser aplicados no Ensino
Básico de Matemática já que tratam de Geometria Básica, Raciocínio Lógico e
Análise Combinatória. Neste sentido, propusemos uma série atividades de
aplicações do Stomachion em sala de aula, dentre elas, atividade voltada ao
ensino da Análise Combinatória que pode ser trabalhada por professores de
Ensino Médio. Trata-se de uma abordagem sobre o tema da Permutação
Simples e Fatorial onde o uso de fórmulas não é necessário para a resolução
do exercício. Objetivamos que os alunos reconheçam o problema como um
problema de contagem e sejam capacitados a resolver problemas elementares
que envolvam Permutação Simples.

1166
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Constatamos com base no levantamento bibliográfico que o Stomachion


é o registro mais antigo conhecido de Análise Combinatória, datando do século
III a.C e que a matemática empregada por Arquimedes é facilmente reproduzível
atualmente e concorda com as diretrizes da BNCC e do Currículo Referência de
Minas Gerais para o ensino básico da disciplina e sua vertente de História da
Matemática.
Por meio da pesquisa desenvolvida durante a elaboração do trabalho
podemos verificar, ainda, como a História da Matemática é rica e explica o
surgimento de todo o conteúdo estudado por alunos do Ensino Básico e agrega
valor à obra de pesquisadores, mostrando que o conhecimento é construído
através de experimentos e teorias pela humanidade.
Ademais, os estudos confirmam a desmistificação do Stomachion ser
apenas um jogo e que pode também ser empregado como núcleo de
desenvolvimento de outras áreas matemáticas, além da lúdica, verificando a
polivalência das obras de Arquimedes.
Ao final do trabalho, buscamos enfatizar tais aplicações a partir de
propostas para atividades e problemas a fim de agregar mais valor às estratégias
de ensino-aprendizagem, além de produzir mais conteúdo sobre tão importante
tratado de Arquimedes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BIGGS, N. L. The roots of combinatorics. 1. ed. London: Surrey Twzo Oex. 1979.
Vol 6. p.109-136.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares


nacionais: Matemática. Brasília: MEC/SEF, 1998, 88 p.

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CHUNG, F. e GRAHAM, R. A tour of Archimedes’ Stomachion. Disponível em:
<http://www.math.ucsd.edu/~fan/stomach/>. Acesso em 08/09/2020.

D’AMBROSIO, B. S. Reflexões sobre a História da Matemática na Formação


de Professores. Revista Brasileira de História da Matemática, Ohio,
Especial, n. 1, p. 399- 406, 2007. Disponível em: <
http://rbhm.org.br/issues/RBHM%20-%20Festschrift/33%20-%20Beatriz%20-
%20final.pdf>. Acesso em 23/09/2020.

GONÇALVES, R. R. S. UMA ABORDAGEM ALTERNATIVA PARA O ENSINO


DE ANALISE COMBINATÓRIA NO ENSINO MÉDIO. p. 15-17. 2014.

LOPES, L. S.; ALVES, A. M. M. A história da matemática em sala de aula:


propostas de atividades para a educação básica. In: Encontro Regional de
Estudantes de Matemática da Região Sul - EREMAT, Bagé, RS, 2014, p. 2.
Disponível em:
<https://eventos.unipampa.edu.br/eremat/files/2014/12/MC_Lopes_013591550
31.pdf>. Acesso em: 09 set. 2020.

NETZ, R. e NOEL, W. Códex Arquimedes. 1. ed. Rio de Janeiro: Record,


2009. Vol 1. 320 p.

NETZ, R., NOEL, W. e ACERBI, F. Towards a Reconstruction of Archimedes’


Stomachion. SCIAMVS 5, Kyoto, v.5, p. 67-99, dez. 2004.

SILVA, J. G. G. Uma Abordagem Histórica e Combinatória do Stomachion.


2020. 33 p. Monografia (Licenciatura Plena em Matemática). Universidade
Federal da Paraíba, João Pessoa. 2020.

VAZQUEZ, C. M. R. e NOGUTI, F. C. H. ANÁLISE COMBINATÓRIA:


ALGUNS ASPECTOS HISTÓRICOS E UMA ABORDAGEM PEDAGÓGICA.
In: VIII Encontro Nacional de Educação Matemática, Pernambuco, jul. 2004, p.
4. Disponível em:
<http://www.sbem.com.br/files/viii/pdf/05/1MC17572744800.pdf>. Acesso em:
25 jul. 2020.

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