Você está na página 1de 559

Carlos Ruão

«O Eupalinos Moderno»
Teoria e Prática da Arquitectura
Religiosa em Portugal
1550-1640

Volume I
Da «Ordinatio» ao «Decorum»

Faculdade de Letras
Universidade de Coimbra
2006
Dissertação de Doutoramento em Letras,
área de História, especialidade em História da Arte,
apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
sob a orientação do Professor Doutor Pedro Dias
Era de Mégara e chamava-se Eupalinos.
De bom grado me falava da sua arte, de todas as diligências e
conhecimentos que requeria, até que compreendesse tudo quanto, a seu
lado, ia observando. Via, sobretudo, o seu assombroso engenho. Através
dele parecia falar o poder de Orfeu. Aos montes de pedras e vigas que nos
rodeavam, precedia-os o seu destino monumental e, a um comando seu, os
materiais pareciam destinados ao local singular que lhe tinha sido
assinalado pelo destino favorável aos deuses! Que maravilha o seu
discurso aos oficiais. Dava-lhes ordens e números, guardando para si os
despojos das suas meditações nocturnas.

O discurso de um e os actos de outros ajustavam-se tão felizmente como se


aqueles homens fossem os seus próprios braços. Não acreditarias, ó
Sócrates, se te descrevesse o prazer que sentia na minha alma conhecer
coisa tão bem regrada.
Agora já não separo a ideia de um templo da ideia da sua construção.
Quando observo um, vejo uma acção admirável e bem contrária à mísera
natureza. Destruir e construir são de igual importância, e fazem mesmo
falta a uma e a outra, mas construir é bem mais grato ao espírito.
Oh, afortunado Eupalinos.

Paul Valéry, «Eupalinos ou acerca do arquitecto»


«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Agradecimentos

Presta-se, em primeira instância, um justo agradecimento ao Professor


Doutor Pedro Dias, nosso mestre desde os tempos finais da licenciatura, que
durante todas as fases formativas da nossa especialização em História da
Arte nos proporcionou o apoio e incentivo necessários para a realização
desta dissertação e a quem sempre seguimos como exemplo pessoal de
capacidade científica. A nossa consideração estende-se à Faculdade de
Letras da Universidade de Coimbra que nos formou durante a Licenciatura,
nos abrigou durante aos nossos tempos de Mestrado e, especificamente, nos
deu a honra de apresentar em tão ilustre instituição esta dissertação de
Doutoramento.

O longo período de desenvolvimento, redacção e maturação deste


estudo científico contou com a colaboração de muitas instituições pelas
quais igualmente se manifesta um merecido agradecimento. Neste particular
destacam-se os funcionários e direcção dos arquivos e bibliotecas citados em
texto, essencialmente, o Arquivo Nacional da Torre do Tombo, a Biblioteca
Nacional, a Biblioteca Geral e Arquivo da Universidade de Coimbra, o
Arquivo Municipal de Coimbra, o Arquivo Distrital do Porto, o Arquivo
Histórico-Municipal do Porto, o Arquivo Distrital de Évora e a Biblioteca
Nacional de Madrid. Uma palavra de gratidão é devida ao Ministério da
Ciência e Tecnologia que, através do programa Praxis XXI, apoiou esta
investigação durante o primeiro ano de laboração.

Um trabalho pessoal e isolado contém, todavia, contributos de uma


pequena comunidade. Desde logo, os nossos professores do Instituto de
História da Arte da Universidade de Coimbra a quem estendemos
reconhecimento. Os nossos colegas de curso e de mestrado destacando, a seu
tempo e acima de tudo, a Carla Alexandra Gonçalves, o João José Cardoso,
o Rui Paulo, o João Miguel Lameiras, a Teresa Desterro e a Teresa Cunha
Matos. Aos amigos que antes, durante e agora continuam connosco.

Todo o nosso esforço seria em vão se não contassemos com o


incomensurável esteio e afecto da Helena Maria Ruão da Costa Lima, Maria
Helena Ruão e Maria Alice Ruão, a quem esta dissertação é dedicada.

I
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

II
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Introdução

Desde os últimos anos da licenciatura em História da Arte que as


questões relacionadas com a teoria artística em geral nos moveram a iniciar
uma investigação histórico-artística que se direccionasse para um
entendimento das razões essenciais que conduzem a uma produção artística
consciente de um determinado autor e de seu tempo. O nosso período de
eleição situa-se entre duas épocas áureas da Arte Portuguesa – o reinado de
D. Manuel e o Barroco português, jóias artísticas por excelência da arte
nacional. O período do Renascimento e do Maneirismo, não obstante a
atenção que tem merecido nas últimas duas décadas pela historiografia
portuguesa – e salvo raras excepções – revela ainda a necessidade de
preencher grandes lacunas no que concerne ao estudo concreto da realidade
histórico-artística, monográfica e biográfica, de arquitecturas e arquitectos.
Quando nos propusemos desenvolver em Doutoramento o desejado estudo
sobre a cultura arquitectónica portuguesa entre o reinado de D. João III e a
Restauração, este objectivo centrar-se-ia no eixo principal e vanguardista da
cultura arquitectónica nacional, a arquitectura régia. Esta dissertação
pretende ser um contributo para dirimir esta realidade.

A História da Arte é uma disciplina da História. A História nasce com


o documento escrito, isto é, nasce com o desenvolvimento de uma forma
específica de linguagem seja qual for a sua forma, imagética ou gráfica. Esta
é a raiz mais profunda da cultura de um povo. A língua e a imagem
fornecem-nos a oportunidade de conhecer um «tempo» e um «ser». O nosso
entendimento pode ser mais ou menos aprofundado e conforme ao nível
interpretativo que se queira ou possa desenvolver, seja ele arqueológico,
antropológico, sociológico ou filosófico. Em todo o caso, histórico. Todavia,
a História da Arte tem, dir-se-ia, uma vantagem a seu favor. Radicando na
fonte gráfica, o seu objectivo último é a compreensão da produção imagética
de um edifício, uma pintura, uma escultura ou um ornato e das razões do seu
produtor, tendo em conta as suas circunstâncias e limitações. «A arte é filha
do seu tempo», afirmou um dos criadores da Arte Abstrata contemporânea,
Vassily Kandinsky, no seu manifesto «Do Espiritual na Arte». Quando uma
das duas fontes é inexistente, ainda assim pode e deve ser objecto de análise,
mesmo que se pense – muitas vezes erradamente – em última instância, que
a «obra de arte» possa valer por si mesma. Assim, é imperiosa a mais ampla
reconstituição histórica do «sujeito» e do «objecto».

III
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

O processo de trabalho metodológico no campo específico da História


da Arte abrange esta dupla raiz. Inicia-se, por um lado, com a recolha gráfica
de toda a obra arquitectónica em análise e, por outro, com um estudo das
fontes escritas a ele respeitantes descendo na escala – partindo dos estudos
gerais, passando pelos retratos monográficos e biográficos, até chegar à
fonte primária escrita, o documento contratual entre arquitecto e
encomendante. A partir daqui deve iniciar-se uma isenta reconstituição da
matéria de facto com objectivo de comprovar, complementar, corrigir ou
mesmo negar a realidade exposta como cientificamente verdadeira. Em
simples palavras, distinguir o trigo do joio. Foi este o caminho que se tentou
traçar, iniciando-se com a interpretação do documento contratual ou
qualquer escrito periférico que diga respeito a determinado edifício ou
autoria. Como tantas vezes se repete na nossa contemporaneidade, não se
deve tomar como dado adquirido a simples existência de um contrato de
uma obra e a intepretação que outrém dele fez. Por uma simples razão. A
História não é estanque, tal como não é definitiva em si mesma. Os
objectivos da História da Arte actual são substancialmente diferentes do que
eram, por exemplo, há três décadas atrás. Os conhecimentos actuais da
realidade artística portuguesa quinhentista e seiscentista, alimentados com
novos estudos de síntese e novas perspectivas, permitem-nos um
conhecimento que não existia quando Vergílio Correia ou George Kubler se
interessaram por este período, mesmo tomando em linha de conta que se
tenham perdido qualidades dos mestre de antanho.
A partir de uma leitura concreta da documentação arquivística
podemos, então, perfazer o caminho inverso. Recuperar todo o trabalho
científico realizado anteriormente e chegar a uma primeira fase analítica do
arquitecto ou do edifício. Este trabalho específico deve ser acompanhado por
uma experimentação, in loco, da arquitectura e por um estudo de carácter
generalista que nos permita perceber as circunstâncias históricas em que
determinada obra arquitectónica foi realizada. Os condicionalismos
culturais, políticos, geográficos ou económicos podem dizer-nos muito
acerca da natureza da obra em análise. De outra forma, a pesquisa
bibliográfica deve também incidir, dado que se trata de uma dissertação em
História, no entendimento do período artístico em que se insere. Neste
particular, tendo como matriz o «longo» Renascimento e como objectivo um
trabalho com uma forte componente teórica, para além da consulta dos
autores consagrados da História da Arte europeia e das teses gerais sobre as
problemáticas estilísticas conhecidas, procedeu-se a uma leitura, com
alguma profundidade, dos escritos teóricos quinhentistas italianos, franceses
e castelhanos acerca da arquitectura.

IV
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

A terceira fase metodológica diz respeito à construção da dissertação


propriamente dita. Depois de relida a documentação existente, os trabalhos
monográficos e as sínteses histórico-artísticas, iniciou-se uma reconstituição
particular de cada edifício ou de cada biografia. Como sempre, as limitações
do próprio trabalho conduzem a uma selecção – sempre à custa de alguma
angústia pessoal do investigador – das matérias consideradas como mais
representativas da realidade histórico-artística estudada. E, como sempre, a
necessidade de tornar objectivo um texto escrito por essência longo, deixa de
parte muita da matéria analisada que apenas subliminarmente poderá estar
presente. Um exemplo claro desta limitação foi o facto de ter sido
absolutamente necessário excluir do segundo volume um «Círculo do
Mármore» previamente planeado, levando à inclusão da informação mais
relevante dentro do estudo da arquitectura régia. Só depois de se ter fixado o
texto de carácter analítico se pode, concretamente, iniciar um estudo teórico
partindo do contexto geral da realidade histórico-artística europeia para o
particular. Também nesta circunstância, a necessidade de objectivar
conteúdos conduziu à selecção de matérias consideradas incontornáveis,
ostracizando perspectivas que podem ser dispensadas pelo seu carácter
particularizante ou pela sua extensa complexidade. O primeiro volume
dedicado a um estudo das linhas essenciais para uma compreensão mais
conceptual e teórica não poderia incluir, como aconteceu na dissertação de
Mestrado, um estudo específico sobre as ordens arquitectónicas tal como
estava planeado inicialmente. Por si só, o desenvolvimento de tal matéria
comportaria um trabalho-outro.

Propôs-se como título «O Eupalinos Moderno. Teoria e Prática da


Arquitectura Religiosa em Portugal (1550-1640)» e dividiram-se as matérias
em dois volumes distintos – Teoria: Da Ordinatio ao Decorum e Prática: Da
Corte à Província.
Interessa, desde logo, chamar a atenção para o facto de a cronologia
apresentada apenas surgir aqui como mera imposição académica na medida
em que este período não constitui, por si mesmo, uma realidade histórico-
artística homogénea. Com esta dissertação pretende-se responder a uma
questão «simplesmente complicada», citando uma célebre obra dramática de
Thomas Bernhard. Como e quando adquiriu, conscientemente, o arquitecto
português uma cultura arquitectónica de raiz moderna ? Para se encontrar
uma resposta convincente teremos que recuar aos últimos anos do reinado de
D. João III e ao início da obra nova do claustro nobre do Convento de Cristo
de Tomar – quando se percebem os primeiros traços de um verdadeiro
entendimento «moderno» da arquitectura – e estender o período até,

V
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

verdadeiramente, se ver justificada essa realidade, quer sob o ponto de vista


teórico, quer na obra arquitectónica propriamente dita. Neste particular,
bastar-nos-ia limitar a nossa investigação ao «Tratado de Arquitectura» de
Mateus do Couto (1631).

No primeiro volume, o primeiro capítulo é dedicado à questão da


historiografia artística, periodização e problemática estilística. Está ainda por
fazer um trabalho profundo sobre a História da História da Arte, tal como
tem sido realizado nas últimas décadas para o campo generalista da História.
Ou seja, discorrer sobre como o historiador da arte se viu a si mesmo e
interpretou o seu trabalho e como a disciplina foi evoluindo de acordo com a
visão da sua própria época. Neste contexto, procedeu-se a uma síntese das
principais linhas teóricas em torno da periodização histórico-artística da
realidade nacional. Partindo da historiografia portuguesa do século XX,
historia-se o nascimento da consciência de um período renascentista em
Portugal – centrado em autores como Vergílio Correia, Jorge Segurado ou
Rafael Moreira – a defesa de uma vertente maneirista, tal como a concebeu
originariamente Pais da Silva e, por último, o conceito de longa duração
conhecido por «estilo chão», definido por George Kubler, recorrentemente
aceite pela historiografia nacional, pese embora com ténues laivos de
revisionismo crítico nos últimos anos.
Partindo do pressuposto de que o conceito de Renascimento apenas
pode ser utilizado de duas formas – definindo um longo período histórico
não homogéneo entre a Baixa-Idade Média e o Barroco ou, de forma restrita,
definindo uma conjuntura específica como a de Florença nos meados do
século XV, inícios do século XVI – optou-se por, dentro da definição
estrutural, analisar os conceitos de «clássico» e Classicismo e de «maniera»
e Maneirismo, terminologias muito comuns mas demasiado abrangentes e
usadas por vezes anarquicamente. Por último, apresentam-se os propósitos
conceptuais nos quais assenta este estudo específico. Declara-se a nossa
visão do «estado da arte» do período histórico em questão e os conceitos que
seguimos – a «opção maneirista» e as suas declinações («italianismo» e
«flamenguismo»), aquilo que é e quando é que podemos falar de um
«classicismo» nacional e, por fim, da utilidade ou não da utilização de um
conceito supra-estilístico como o «estilo chão» kubleriano, optando-se por
uma visão crítica do mesmo.
O segundo capítulo, designado genericamente «Do Pedreiro a
Arquitecto», pretende, por um lado, historiar a tomada de consciência do
paradigma vitruviano de «arquitecto» e, por outro, tentar compreender a

VI
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

evolução do estatuto social partindo da base da hierarquia até ao vértice da


pirâmide.
Foi assim, necessário, antes de nos centramos na realidade portuguesa,
definir o conceito de «arquitecto» desde a Antiguidade Clássica até à Época
Moderna. Partiu-se da origem etimológica de «arquitecto» e do significante
«cânone» da Arte e da Arquitectura Antiga, sem esquecer os importantes
aspectos da posição social do arquitecto e do «mito do artista» que nos
levam até ao Helenismo, encerrando-se com uma análise aprofundada do
conceito de «arquitecto» e de «arquitectura» segundo Vitrúvio, a
«autoridade» por excelência para a Tratadística Moderna. Como é sabido, a
queda do Império Romano do Ocidente trouxe, sob o ponto de vista
específico da Antiguidade Clássica – que não da cultura em geral – um
retrocesso a um ideal artístico se se quiser «icónico» e já não de natureza
«antropomórfica». A valorização do Divino sob o Terreno, se nos concedeu
a consciência de uma «alma» – tal como a Antiguidade nos tinha dado a
consciência de um «corpo» – trouxe consigo a (re)integração do Homem no
total da Criação, ainda como a forma mais perfeita criada à semelhança de
Deus mas despojado da qualitas individual. Daí advém a anonímia artística
medieval, o trabalho em grupo, a valorização da obra-de-arte e do seu
significado sobre o seu produtor e o redimensionar da escala, agora divina.
Todavia, o mundo medievo não esqueceu, por um lado, o legado da
Antiguidade Clássica, por outro, o sonho de uma «herança perdida». Se a
necessidade onírica nos conduziu aos memorabilia e a uma visão irreal desse
passado dourado, a vigília necessita sempre de uma visão racionalista para
viver e construir o mundo. O saber medieval soube conservar, à sua maneira,
os autores antigos e utilizar o seu conhecimento em proveito próprio. Nesta
condição, não há arquitectura sem cálculo matemático e geométrico. Com a
mudança de uma visão teológica agustiniana para uma visão tomista do
mundo, com o franciscanismo e a nova valorização do homem como «filho
de Deus», renasce pouco a pouco a consciência social do mestre construtor.
Estámos, obviamente, na Baixa Idade Média, período áureo da arquitectura –
o Gótico – e da «geometria como saber» de natureza mística e transmissível
a um grupo de eleitos, como reza o mito. Sem estas e outras permissas,
nunca se teriam criado tão cedo condições para uma verdadeira renascità.
Com o Renascimento italiano inicia-se o nosso próprio «mundo». O
homem renascentista não pretende fazer simplesmente renascer a antiquità,
pretende superá-la, aculturando-a com a mais valia do Cristianismo. Partindo
desta ideia, sintetizam-se os grandes passos do Quattrocento, como a defesa
da autoritas vitruviana, o papel desempenhado pelo Humanismo e a
recuperação do estatuto social do arquitecto. No Cinquecento transalpino

VII
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

estão já criadas as condições para que o próprio Miguel Ângelo, um génio


humano, tenha como atributo il divino, bem como da arte como idea mentale
– seja ela como a concebeu Leonardo, Rafael ou Pontormo. Em última
instância, será a própria defesa do «sujeito» artístico propagada pelo
Maneirismo que irá promover o «regresso à ordem» – como defendia o
manifesto Purista assinado por Le Corbusier e Ozenfrant nos escombros da
Primeira Guerra Mundial – com o nascimento das academias da arte.
Dado que a península transalpina é foco irradiador durante este
período artístico, damos atenção, numa última alínea, a realidades receptoras
bem próximas da portuguesa como o «caso francês» e, especialmente, o
«caso espanhol», com o qual iremos conviver politicamente durante sessenta
anos.
O segundo ponto do segundo capítulo é dedicado à realidade nacional.
Tomando em linha de conta a sua designação, procede-se a um estudo a
partir da base da pirâmide – o «Pedreiro» – analisando a sua aprendizagem
em torno de um mestre, a importância da examinação para o exercício da sua
profissão e do papel do «juiz do ofício de pedreiro» dentro da estrutura
gremial, o seu estatuto social e o «regimento» que define as suas
competências. A importância deste sub-capítulo é essencial na medida em
que esta estrutura profissional e laboral de características familiares se
manteve praticamente inalterada até meados do século XX. O ponto mais
alto na carreira de um profissional de pedraria ou cantaria era comandar um
estaleiro de obras, primeiro como «aparelhador» e depois como «mestre-
mor». Ora, na circunstância portuguesa, existiu de facto uma transição entre
o mestre de pedraria tradicional e o arquitecto moderno que dedica grande
parte do seu tempo e saber a questões externas à fábrica propriamente dita.
Esta mutação inicia-se em meados do século XVI. Pese embora não seja
acompanhada com a mudança de nomeclatura – plagiando uma célebre frase
de Sylvie Deswarte, mas não o seu significado contextual – surgem já
mestres de pedraria «vestidos» de arquitecto. Foi então necessário definir o
conceito, estatuto e posição social do mestre de pedraria, o seu
conhecimento técnico-prático e, restritamente, a prática do «debuxo» como
marca de água da razão de arquitecto. Mas também os seus cargos dentro da
hierarquia régia – o «Mestre das Obras dos Paços Régios», o «Mestre de
Obras da Comarca do Alentejo», o temporário «mestre de obras» de
patrocínio régio e o antecedente do arquitecto plenipotenciário, o «Mestre de
Todas as Obras régias».
Com a entrada na segunda metade do século XVI, o conceito de
arquitecto, tal como o definiam os padrões vitruvianos, e a «consciência de
modernidade» são já uma realidade embora na sua fase de juventude. A

VIII
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

prática do «debuxo» torna-se mais corrente como prova o uso de novas


definições terminológicas da representação do projecto arquitectónico. Cabe,
a partir daqui, tomar em atenção a efectiva mudança da nomeclatura régia
que é acompanhada com uma reforma da pirâmide hierárquica. Surge nos
finais da centúria, por razões que se apontará de seguida, o cargo de
«arquitecto/engenheiro-mor» do reino, o de «Mestre das Ordens Militares» e
o ocasional «mestre de obras» de patrocínio régio. Contrariamente ao que
aconteceu na realidade italiana, onde o arquitecto nasce por si mesmo e vai
ocupar o vértice da arte da arquitectura, com estatuto social autónomo e uma
consciência de si mesmo aparte de todo o mundo mecânico em que reside o
pedreiro, aparelhador ou mestre de pedraria e das suas associações gremiais,
em França, Castela ou Portugal, a consciência de arquitecto – nascendo
igualmente num ambiente cortesão influenciado pela cultura humanista –
surgirá de um modo transitório dentro da hierarquia tradicional dos
construtores régios.

O terceiro capítulo é dedicado às questões teóricas por excelência, a


produção literária e o ensino da arquitectura.
Numa sintética introdução desenvolvem-se dois conceitos importantes
para entender a realidade arquitectónica da época, tendo como pano de
fundo a circunstância nacional analisada posteriormente: o «vitruvianismo»
e o «serlianismo». O abuso do termo «vitruvianismo» ou de cultura
vitruviana aplicados a realidades fora de Itália é o ponto de partida que
justifica esta chamada de atenção. Assim, apresenta-se o seu significado, a
procura das sua consubstanciação através dos estudos filológicos
humanistas, dos levantamentos arqueológicos promovidos pelos maiores
arquitectos italianos e, em última instância, a sua cristalização com a criação
de uma efémera academia para o seu estudo. Listam-se igualmente os
tratados de arquitectura quatrocentistas que tinham por razão o fundamento
«autoritário» vitruviano e depois a sua inevitável superação, com a procura
de uma «ordem» partindo das sínteses estilísticas do próprio Renascimento –
Serlio, Vignola e Palladio. Se o «vitruvianismo» português não passou
certamente de um sonho de historiador menos avisado, os escritos teóricos
de Sebastiano Serlio foram em tudo fundamentais para a criação e
amadurecimento da modernidade arquitectónica portuguesa. Tão
fundamentais para o mestre canteiro que copia um motivo retirado de uma
prancha serliana como para o arquitecto-mor que lecciona a «aula régia» da
arquitectura para uma ilustre nata de profissionais plenamente formados.
Nesta medida, define-se restritamente o conceito de «serlianismo» e
apresenta-se um retrato abrangente do teórico e arquitecto bolonhês através

IX
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

não só de uma nota biográfica e da sua obra arquitectónica mas,


essencialmente, da sua produção teórica, da sua fortuna crítica e da relação
entre os seus textos e o Classicismo. Relevam-se as características
fundamentais do seu trabalho – o «cânone» das cinco ordens da arquitectura
e o seu carácter alegórico e iconológico, a difícil estabilidade entre a defesa
da autoritas vitruviana e a ellettione del bello e, enfim, as noções de
«Licença» e «Modestia». Numa nota final definem-se em traços gerais as
influências visíveis do «serlianismo» em França e Espanha.

A parte umbilical do tomo primeiro – aquela para a qual foi


direccionada toda a razão de ser das matérias expostas anteriormente – surge
com o sub-capítulo «Tratadística, o Ensino e a Aprendizagem». Como em
qualquer trabalho no campo da história, surge como necessário perceber a
realidade anterior para definir o momento de viragem.
Após uma breve exposição do espólio dos tratados de arquitectura
ainda existentes nas bibliotecas portuguesas – por si mesmo outro tema
pouco explorado – inicia-se a procura de uma resposta para a questão
essencial exposta neste trabalho, acima citada. Em Portugal, o conceito
vitruviano de arquitecto e de uma nova profissão surge através da cultura
humanista. Tentaremos provar que o interesse pelos textos de Vitrúvio e
Alberti, e suas respectivas traduções, surge dentro do ambiente humanista e
numa perspectiva filológica e cultural que incorpora um interesse específico
pela literatura e cultura antigas. Embora existam exemplos isolados do uso
limitado em arquitectura dos textos vitruvianos, não foi através deles que a
arquitectura portuguesa se modernizou nem existiu em Portugal qualquer
tendência «vitruvianista» de transpor para um edifício as suas regras, por
vezes contraditórias, através das próprias ilustrações das várias edições
conhecidas. Aquilo que de substancial Vitrúvio poderia trazer à cultura do
mestre régio português foi, por interposta pessoa, diga-se os humanistas, a
consciência do paradigma vitruviano de arquitecto.
De seguida dar-se-á relevo aquela que foi a verdadeira cartilha do
período proto-renascentista português – o Medidas del Romano do
castelhano Diego de Sagredo. Este manual redigido à maneira de diálogo
clássico, o primeiro texto a ser editado fora de Itália sobre as questões da
arquitectura moderna – limitado na sua própria visão do «ao antigo» – é
sintomático e caracterizador da realidade arquitectónica portuguesa, grosso
modo, da primeira metade do século XVI. Equaciona-se o texto com o uso
do «ao romano» como declinação do nosso «Primeiro Renascimento». Esta
matéria é essencial para percebermos o salto qualitativo que representará

X
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

aquilo que se designa por «revolução serliana», omnipresente durante todo


este período quer nos textos teóricos quer na arquitectura moderna nacional.

Antes de referenciar a produção teórica portuguesa, é absolutamente


necessário considerar de que forma se verificou, em primeira instância, a
aprendizagem da linguagem renascentista até chegarmos à introdução de um
verdadeiro ensino teórico ao mais alto nível. As problemáticas em análise
são conhecidas. Mais do que a literatura artística, a vinda de artistas
estrangeiros para Portugal foi fundamental para a viragem estilística, da
mesma forma que as míticas bolsas régias para estudo de mestres
portugueses no estrangeiro pouco ou nada contaram para a evolução interna
da arte portuguesa em geral e muito menos da arquitectura em Portugal. O
exemplo de Francisco de Holanda é, neste contexto, edificante. Num outro
nível, equaciona-se a possibilidade de o ensino de raiz «científica» e de uma
«aula de matemática» leccionada pelo cosmógrafo-mor do reino, dentro do
panorama das Descobertas, poder ou não ter sido importante para a
formação no campo específico da arquitectura. Se quanto à existência de
uma «lição de moços fidalgos» proposta por Rafael Moreira nos coibimos de
nos pronunciar – por falta de elementos documentais concretos – provar-se-á
que a «aula de esfera» do Colégio de Santo Antão só depois do período aqui
em estudo se interessa especificamente por questões específicas relacionadas
com a arquitectura. O ponto de viragem, ao mais alto nível, foi a criação da
«aula de arquitectura» do Paço da Ribeira para três mestres «aprendizes» na
última década do século XVI, numa altura em que – tal como as condições
de acesso à «aula» indicam e o texto teórico de Mateus do Couto prova – a
arquitectura moderna se tinha imposto definitivamente e a profissão de
arquitecto está interiorizada pela nova geração que fará uma espécie de
estágio ou pós-graduação na «aula», proporcionando ao mesmo tempo uma
equipa especializada de profissionais a soldo régio que auxiliam o
arquitecto-mor e/ou engenheiro-mor e que vão preenchendo os cargos
inferiores dentro da hierarquia de mestres régios.

O último ponto do terceiro capítulo é dedicado à produção teórica


portuguesa. À excepção dos manuscritos anónimos adiante referidos, não
existem estudos dedicados a esta matéria para a segunda metade do século
XVI e a primeira metade do século XVII. Parecia que, para além da
especificidade dos manuais quinhentistas, não existiria nenhum tratado de
arquitectura redigido por um teórico português durante este período. Tal
realidade é completamente falsa. Com o objectivo de acompanhar as lições
da «aula de arquitectura», Mateus do Couto redigiu em 1631 um autêntico

XI
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

tratado de arquitectura que permaneceu manuscrito e incompleto. Embora,


como é sabido, o «espírito» nacional seja pouco dado a especulações
teóricas, é possível analisar a evolução e amadurecimento das ideias
modernas acerca da arquitectura através de textos mais ou menos periféricos
ou marginais.
Em primeiro lugar, o vanguardista e teórico da pintura Francisco de
Holanda. Exemplarmente estudado durante décadas por Sylvie Deswarte, os
seus textos são úteis no contexto desta dissertação sob vários pontos de vista.
Tornam visíveis o forte e incontornável impacto teórico da cultura vitruviana
em Portugal, revelam a influência directa dos textos de Sebastiano Serlio –
raiando o plágio – e fornecem-nos um curioso e «invertido» conceito pouco
tido em conta dentro da sua profusa teoria – «a pintura arquitecta». Por sua
vez, o seu manuscrito «Da fabrica que falece à cidade de Lisboa» dá-nos um
retrato cruel e desolador da realidade da arquitectura régia dos tempos
sebásticos. Enfim, neste particular, Holanda fornece-nos uma visão exacta
das valências que a cultura humanista trouxe para a arte portuguesa.
O segundo texto em análise foi já objecto de dissertação de Mestrado
por parte de Rafael Moreira. Atribuído a António Rodrigues, não se trata de
um tratado de arquitectura nem de um único manuscrito. Reúne dois textos
anónimos, o primeiro designado pelo referido historiador como «manual de
fortificação» e a segunda versão, com dedicatória e prólogo ao leitor –
portanto, pronta para publicação – intitulada «preposiçois mathematicas». A
conclusão a que neste estudo se alcança é, por razões que o próprio exporá,
substancialmente diferente da perspectiva defendida pelo historiador citado.
Denunciando por todos os poros a sua base humanística, o primeiro
manuscrito é importante substancialmente porque prova a consciência plena
do paradigma vitruviano. Contudo, apesar de ter em apenso belos desenhos
de baluartes «à italiana», de recorrer a fontes como Pietro Cataneo e de o
texto ostensivamente substituir a palavra «arquitecto» por «fortificador»,
pouco tem a ver com a arquitectura militar moderna. Por sua vez, o
«preposiçois mathematicas» abandona toda e qualquer teoria acerca da
fortificação ficando-se, na generalidade, por uma exposição dos princípios
teóricos de natureza euclidiana tal como foram enunciados por Sebastiano
Serlio. Este segundo texto não deixa de ser útil quando revela abertamente,
na sua parte introdutória, o desinteresse por parte dos mestres portugueses
pelas questões teóricas e pela transmissão do seu saber. Foram redigidos na
década de 70 do século XVI mas a sua autoria ainda não foi cabalmente
confirmada.

XII
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

De seguida, dedica-se atenção a um texto manuscrito de 1578 da


autoria do arquitecto italiano Filippo Terzi. Trata-se, muito simplesmente, de
um caderno que resume a teoria das ordens arquitectónicas segundo Vignola.
Como complemento apresenta, no essencial, alguns apontamentos avulsos
de capitéis, entablamentos e molduras arquitectónicas e pouco mais. É
essencialmente um caderno privado do arquitecto mas de difícil articulação
com os modelos arquitectónicos que Terzi pratica, dentro das tipologias do
Maneirismo italiano expostas teoricamente por Serlio.
Um texto que, segundo cremos, nunca foi citado pela historiografia
artística é o Livro Primeiro da Architectura Naval do cosmógrafo-mor João
Baptista Lavanha. O grande erudito português redigiu-o com o objectivo de
dividir a arquitectura em três campos específicos – a arquitectura «política»
ou «civil», a arquitectura militar e, num terceiro campo do qual se vê como
fundador teórico, a arquitectura naval. Tendo em conta a importância da
personalidade em questão, não deixa de ser maximamente relevante entender
como Lavanha – que, como se sabe, foi uma das primeiras escolhas para
leccionar na Academia Real Matemática de Madrid – consegue adaptar para
a arquitectura naval os conceitos mais complexos da teoria vitruviana. Com
este texto temos em português uma verdadeira reflexão sobre o âmago do
saber de raiz vitruviana de nível europeu.
Datado de 1631, o «Tratado de Arquitectura» do arquitecto régio
Mateus do Couto é a síntese não só das matérias apresentadas na «aula de
arquitectura» régia – pois foi para isso que o arquitecto o redigiu – como a
prova do amadurecimento do arquitecto português ao nível teórico. O seu
texto é, a todos os níveis, revelador. Mateus do Couto prova que o estudo
das ordens arquitectónicas era uma realidade no ambiente régio, prova que
ainda na década de 30 do século XVI Sebastiano Serlio era entendido como
o grande teórico italiano a seguir – embora cite e conheça Palladio, Vignola
ou Scamozzi – prova o longevidade da autoritas vitruviana exercitando as
suas máximas – um saber multidisciplinar e a união entre o conhecimento
teórico e prático da arquitectura – desenvolve a teoria do Belo e, entre
muitos aspectos, continua a denunciar a pouca importância dada em Portugal
ao projecto arquitectónico com isto revelando que compreende o âmago da
natureza do arquitecto. O seu escrito, inacabado, enuncia os conceitos de
arquitecto e arquitectura, define as cinco ordens arquitectónicas, desenvolve
toda uma série de problemas técnico-construtivos, trata dos modelos ideais
do templo religioso e do palácio nobre, é interrompido para aprofundar as
questões do desenho arquitectónico através de um tractado de prospectiva –
que não é outra coisa senão uma transcrição serliana – e não deixa de

XIII
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

apontar que se propunha a escrever um livro dedicada à arquitectura e


engenharia militar.
Não se conclui este capítulo sem referir que, fora da Corte, pelo
menos nas primeiras décadas do século XVII, os mestres de pedraria
dominavam já os textos serlianos ao ponto de fabricarem pequenos
«manuais de arquitectura» como se compreende pelo índice de um escrito
que pertenceu ao mestre de obras da cidade de Aveiro, Pedro de Araújo.

O quarto capítulo do primeiro volume trata de um dos mais belos


momentos da arquitectura portuguesa quinhentista. Antes da introdução em
Portugal da planta de cruz latina «tridentina» e mesmo depois das pequenas
experiências com o ideal renascentista por excelência – a planta centralizada
– no trânsito da primeira para a segunda metade do século XVI, a criação de
três novos bispados em Miranda do Douro, Portalegre e Leiria desencadeou
na Corte joanina uma discussão sobre o modelo planimétrico a utilizar. No
centro decisório estiveram, com toda a certeza, dois intervenientes, D. João
III e Miguel de Arruda, o primaz dos mestres construtores portugueses. Duas
matrizes surgiram como incontornáveis: o carácter monumental para
corresponder à dignitas do edifício e a questão estilística. A tipologia
escolhida foi a da grande obra-prima da arquitectura portuguesa de então, a
hallenkirche ou «igreja-salão» de Santa Maria de Belém, pérola do período
manuelino e da mundividência portuguesa. Todavia, face ao arrebatamento
dimensional e à profusão ornamental do templo hieronimita, preferiu-se
«modernizar» o modelo sesquiáltero em dois aspectos essenciais –
«humanizar» a escala sem descurar a monumentalidade e imprimir uma
marca estilística de raiz «antiga», de acordo com a nova arquitectura. O
resultado foi uma interpretação tipológica única no mundo, profundamente
harmoniosa e de grande clareza de composição, um autêntico modelo
nacional que alcançou, para além das catedrais de Miranda do Douro,
Portalegre e Leiria, um absoluto sucesso essencialmente a Sul, na região
mais influenciada pela arquitectura régia, entre as décadas de 50 e 80. As
variantes alentejanas revelaram-se autênticas jóias da arquitectura nacional
como demonstram Santo Antão de Évora ou Santa Maria do Castelo de
Estremoz que, por sua vez, foram repetidas em modelos ainda mais
periféricos. Todavia, muito dificilmente um arquitecto italiano
contemporâneo poderia ver nestas maravilhosas construções algo mais que o
fascínio que lhe provocava uma «obra bárbara».

XIV
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

O quinto capítulo é dedicado à Contra-Reforma e às suas influências


directas na arte e na arquitectura. As directivas tridentinas são a super-
estrutura que inevitavelmente marca, directa e indirectamente, a arte e
arquitectura a partir da segunda metade do século XVI. Nesta medida,
atenta-se às substâncias do novo moralismo, da imagética tridentina e à
teoria do decorum. As suas repercussões no campo específico da
arquitectura foram enumeradas pelas «instruções» de Carlo Borromeo, mas a
própria tratadística italiana reagiu de imediato à nova ordem, sendo o tratado
de Pietro Cataneo uma evidência. O regresso às origens da cristandade e a
uma época sem condescendências com o paganismo levou, inclusive, a que
se discutisse um retorno a ideias neo-medievalistas sob o ponto de vista
arquitectónico. Como é sabido, o Concílio de Trento promoveu três grandes
armas em resposta à reforma protestante e aos novos tempos humanistas – o
Index, o Tribunal do Santo Ofício e a Companhia de Jesus. A milícia
tridentina, ortodoxa nos princípios teológicos mas moderna na sua visão do
mundo, tratou de definir, não propriamente um estilo, mas um modo nostro
que teve na casa-mãe jesuíta romana projectada por Vignola um modelo
inspirador para o templo cristão.
Em Portugal, a Companhia de Jesus ficou intrinsecamente ligada a
dois modelos arquitectónicos diversos – a uma nova experiência de
modernização da arquitectura nacional e à imposição definitiva da planta de
cruz latina. Pese embora se conheçam as regras impostas a partir do Geral
romano e a necessidade de aprovação de qualquer planimetria, os jesuítas
sempre tiveram a capacidade, e daí a sua fortuna, de se adaptaram ao
«gosto» ou «maneira» locais. Patrocinados essencialmente por D. Henrique,
as primeiras igrejas inacianas a serem efectivamente construídas em Portugal
foram a igreja do Colégio do Espírito Santo de Évora, projectada por Diogo
de Torralva, e a igreja da casa professa de São Roque de Lisboa, de Afonso
Álvares. Os dois templos baseam-se numa planta definida por George
Kubler por church-box repetida, embora com a imposição de uma profunda
capela-mor, na igreja do Colégio de São Paulo em Braga e, muitos anos
depois, recuperada por Mateus do Couto na híbrida planimetria do templo do
Colégio de Santarém. Não obstante, São Vicente de Fora virá impor
definitivamente, a partir da década de 80, o modelo «romano» e os jesuítas
desenvolverão nas três principais cidades do país templos memoráveis – no
Colégio de Jesus de Coimbra, no Colégio de São Lourenço do Porto e no
Colégio de Santo Antão-o-Novo em Lisboa, a mais esplendorosa e
monumental igreja edificada pelos religiosos em território nacional e a única
que pereceu com o tempo.

XV
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Um dos aspectos incontornáveis quando se fala na arquitectura do


período moderno é a importância da fortificação, numa época de constantes
convulsões políticas em todo o volátil mapa geográfico europeu, de
conquistas ultramarinas e de formação e queda de impérios. A historiografia
artística portuguesa tem dedicado especial atenção ao estudo da arquitectura
e engenharia militar. Pese embora tratemos essencialmente da arquitectura
religiosa, muitos dos mestres construtores e arquitectos deste período
dedicaram-se à fortificação. Foi opção consciente não entrar em
considerações teóricas sobre a suposta influência da prática da arquitectura
militar na modelação estilística da arquitectura portuguesa religiosa. Pese
embora as limitações espaciais deste estudo e a subliminar opinião que está
presente no texto, era inevitável redigir uma pequena súmula, sintética
quanto possível. Nesta medida, um sexto capítulo é dedicado à arquitectura e
engenharia militar, definindo-se a figura em causa e traçando em linhas
gerais a realidade portuguesa, desde a criação do cargo de «mestre das obras
dos muros e fortalezas», passando pelo domínio dos mestres italianos, desde
a plenipotência de Filippo Terzi como engenheiro e arquitecto-mor do reino
português até à divisão dos cargos com o seu sucessor, Leonardo Turriani.
De facto, Miguel de Arruda, Filippo Terzi e Leonardo Turriani detinham a
mais elevada posição na hierarquia régia dos profissionais da arquitectura
pelas suas funções relacionadas com a fortificação. Todavia, Miguel de
Arruda e Filippo Terzi foram essenciais para a renovação da arquitectura
portuguesa a um nível que sobrepassa as questões do foro militar. Dado que
este primeiro tomo é dedicado a uma visão teorética da arquitectura, não nos
coibimos de recuperar um tratado de engenharia militar que muito
facilmente poderia ter sido redigido por um arquitecto português «filho» da
«aula de arquitectura» – o Teorica y practica de fortificación de Cristobal de
Rojas, editado em Madrid em 1598, aluno da Real Academia das
Matemáticas. Na realidade, a «aula» régia portuguesa formou especialistas
na área da arquitectura militar como António Simões, Henrique de França,
Diogo Paes e especialmente o grande Francisco de Frias, com vastíssima e
importante obra em terras brasileiras.

O penúltimo capítulo é respeitante ao veículo alternativo na procura


de modernizar estruturas arquitectónicas – o uso da gravura, neste período
essencialmente da gravura «nórdica». Se o dito de Pevsner de que a estampa
avulsa internacionalizou a modernidade pode ser considerado excessivo, o
certo é que desde os inícios de Quinhentos foi através do ornato avulso que
os primeiros laivos renascentistas se fizeram sentir na arquitectura nacional.
Tendo em conta os objectivos deste estudo, define-se em longa estrutura a

XVI
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

origem e características do grottesche italiano, a sua reinvenção nórdica e


plantarização no mercado através da «cartela flamenga» e a degenerescência
linguística e formal no brutesco português. A um outro nível mais relevante,
sob o ponto de vista específico, os motivos retirados da estampa flamenga,
essencialmente dos trabalhos de Hans Vredeman de Vries, tiveram um
enorme sucesso na arquitectura noroestina levando à criação de um sub-
estilo maneirista, tal como o definimos na nossa dissertação de Mestrado, a
um «flamenguismo» que está já presente como ornato na arquitectura de
Jerónimo de Ruão mas que atingirá a Norte – mas também em algumas
obras arquitectónicas da região coimbrã – a partir das obras de Manuel Luís,
sobre uma estrutura arquitectónica italianizante, uma imagem de marca
estética incontornável. Por fim, uma última palavra cabe à «arquitectura
efémera». O gosto «filipino» pela estética nórdica leva-nos a considerar a
hipótese de a célebre entrada triunfal de 1619 poder ter tido como figura
principal Teodósio de Frias, estagiário na Corte madrilena e, à época, no
topo da hierarquia dos arquitectos régios.

Num período que abrange a «união ibérica» e o domínio dos Filipes


do reino português era incontornável a questão acerca da influência da
arquitectura castelhana na realidade nacional. Trata-se, como é bem visível,
de um problema que merece um estudo ainda não realizado quer pela
historiografia portuguesa, quer pela historiografia espanhola. Não obstante,
tudo aponta para que a promessa de não ingerência nos assuntos internos do
reino que Filipe II seguiu politicamente a partir de então se estenda à
realidade artística. Existem, de facto, pontos de contacto inevitáveis em
várias circunstâncias – não falando, evidentemente, das relações inter-
regionais sempre existentes entre o Minho e a Galiza ou a Beira interior e a
Estremadura castelhana – mas tudo aponta para que nada de profundamente
fundamental se tenha verificado mesmo com a presença circunstancial em
Portugal de Juan de Herrera, Francisco de Mora ou Juan Gomez de Mora.
De facto, a análise da realidade castelhana e do nascimento do designado
«estilo severo» ou «desornamentado», que está na base do classicismo
espanhol fruto do génio de Juan de Herrera, tem bases completamente
diversas da realidade portuguesa. Pistas comparativas podem ser encontradas
em regiões fora do crivo «herreriano» onde os ideais de Trento e o
experimentalismo maneirista conduziram a arquitectura a modelos bem mais
próximos da realidade portuguesa. Não obstante, existisse ou não esta
realidade política, certamente a importação do modelo carmelita seria um
traço inevitável. A reforma carmelita promovida por Santa Teresa de Ávila
conduziu à repetição de uma tipologia quer em território castelhano quer em

XVII
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

território português. Os carmelitas descalços em Lisboa, Évora, Coimbra,


Aveiro ou Porto replicaram sempre o mesmo tipo de igreja, tomando como
modelo, acima de tudo, a igreja da Encarnação de Madrid. Apenas as
relações trans-fronteiriças centenárias trouxeram para Portugal, por razões
de mercado, um verso de «herrerianismo» plasmado na fachada retabular da
Sé de Viseu, projectada pelo mestre castelhano Juan Moreno.

O segundo volume, sub-intitulado «Prática. Da Corte à Província»


tem como objectivo traçar um retrato documental actualizado dos três mais
importantes polos de irradiação da arquitectura moderna – o Círculo Régio,
o Círculo do Granito e o Círculo do Calcário. A extensão deste tomo deve-se
ao facto de ter sido necessário proceder a um estudo analítico, biográfico e
monográfico, dos arquitectos e sua obra arquitectónica. Na realidade, tem
sido um dos maiores desafios da historiografia artística reconstituir
analiticamente as biografias de pintores, escultores e arquitectos com vista a
actualizar os seus retratos, aproveitando as novas e recentes descobertas
acompanhadas de uma releitura da bibliografia directa e indirecta já
existente. Nesta medida, em cada um dos módulos apresentados, procedeu-
se a um trabalho neste sentido, concentrando essencialmente a atenção na
obra de cariz religioso, tendo em conta o objectivo traçado.

O mais importante polo irradiador da modernidade foi, como bem se


compreende, o Círculo Régio. Inicia-se este módulo com a escolha de três
obras-paradigma do período em questão, o Claustro Nobre do Convento de
Cristo de Tomar – onde se tenta uma nova abordagem sobre o papel que
Diogo de Torralva e Filippo Terzi desempenharam na sua edificação – os
novos Paços Reais da Ribeira e a igreja de São Vicente de Fora, em Lisboa,
edifícios projectados garantidamente pelo arquitecto italiano e modelos de
excelência da nova arquitectura palatina e religiosa. Na medida em que,
salvo raras excepções – como o estudo biográfico de Pedro Nunes Tinoco
de Vítor Serrão – grande parte dos arquitectos régios nunca tinham sido
objecto de estudo particular, optou-se por uma organização da informação
recolhida tratada em biografias pessoalizadas.

O primeiro núcleo foi designado «Do Mestre ao Arquitecto: o período


de transição» e reúne sintéticos retratos biográficos de Miguel de Arruda,
Diogo de Torralva, Afonso Álvares, António Rodrigues e Jerónimo de Ruão,
mestres que moldaram a arquitectura nacional entre as décadas de 1550 a
1580. Até 1563 Miguel de Arruda é o grande nome da arquitectura
portuguesa. Embora tenha sido o primeiro «mestre dos muros e fortalezas»

XVIII
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

do reino e um especialista em questões de arquitectura militar, deu um


contributo essencial para a arquitectura religiosa com a concepção geral das
«igrejas-salão» renascentistas, sabendo-se do seu envolvimento com a igreja
de Santo Antão de Évora, com a «Sala dos Reis» de Alcobaça e,
principalmente, do risco que deu para a Misericórdia de Santarém. Diogo de
Torralva, activo entre 1528 e 1566, foi o mestre escolhido para substituir a
obra castilhiana do claustro nobre nabantino e, por isso mesmo, merece um
lugar de destaque pelo arrojado plano que traçou em Tomar. Não obstante,
uma outra virtude deve ser-lhe assacada – o projecto da primeira «church-
box» portuguesa, a igreja colegial do Espírito Santo de Évora, edificada por
Jerónimo Torres. No que diz respeito a Afonso Álvares, falecido em 1575,
procede-se a uma redefinição do seu papel à luz da nova documentação,
destacando-se a sua integração na tradição nacional construtiva dos Arruda e
Castilho mas desmistificando o retrato que a antiga historiografia dele fazia.
Exaltando-se a sua grande capacidade de trabalho, a sua obra prima foi,
como prova a nem sempre bem citada documentação jesuíta, a magnífica
igreja de São Roque em Lisboa que aprima o modelo da «church-box»
eborense. António Rodrigues foi o sucessor de Miguel de Arruda como
«mestre de todas as obras régias» e, desde grupo, foi o único a merecer
estudo por Rafael Moreira – atribuindo-lhe obra teórica e a Capela das Onze
Mil Virgens, em Alcácer do Sal. Mestre ainda controverso e não menos
enigmático, procede-se a uma releitura crítica da sua biografia. At last but
not least, Jerónimo de Ruão é a única figura que não suscita qualquer dúvida
sob a sua obra, estilo e modernidade. O filho de João de Ruão, protegido da
rainha D. Catarina e da Infanta D. Maria, com os seus trabalhos em Belém e
Carnide destacou-se pela prática de um estilo pessoal e moderno facilmente
identificável. Pese embora fosse um outsider dentro da hierarquia régia – foi
tão só «mestre de obras» do convento hieronimita – poderá ter
desempenhado um papel bem mais relevante durante as décadas
imediatamente anteriores à chegada de Terzi e à nova circunstância política
que futuros estudos, mais aprofundados e direccionados, poderão vir a
provar.

Com o segundo núcleo – «Os Mestres Arquitectos» – inicia-se, em


boa verdade, o aprofundamento das matérias que se pretendem concretizar,
centradas nos títulares da docência da «aula de arquitectura» e nos mestres
régios que ocupam, segundo tudo leva a crer, o cargo de «arquitecto-mor» –
Filippo Terzi, Nicolau de Frias, Teodósio de Frias e Luís de Frias. Nenhum
dos referidos arquitectos fora objecto de estudo biográfico – uma vez mais
descontando pequenas sínteses dos inícios do século XX – pese embora

XIX
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

exista informação suficiente que indicie a sua máxima contribuição para a


evolução da arquitectura nacional. O arquitecto italiano Filippo Terzi,
nascido em 1520 e falecido em 1597, discípulo do célebre Girolamo Genga,
foi o grande impulsionador da arquitectura de carácter italianizante em
Portugal. As viagens que realizámos a Pesaro e Urbino permitiram-nos
reconstituir abreviadamente – por razões de espaço – o seu período
formativo e a sua «obra italiana» como arquitecto e engenheiro dos Della
Rovere, duques de Urbino. Ainda hoje, os palácios ducais de Pesaro e
Urbino revelam a sua marca e a sua importância. Quando em 1576 chega a
Portugal, contratado por D. Sebastião pela sua valia como arquitecto militar,
o mestre bolonhês estaria longe de pensar que até 1597 e sob um outro
poder, contribuiria para alterar definitivamente o rosto da arquitectura
nacional. Não obstante o seu trabalho incidir sob o campo da engenharia
militar, o célebre Torreão da Ribeira, a igreja de São Vicente de Fora, o
Colégio de Santo Agostinho e o Convento de Nossa Senhora do Desterro –
que neste trabalho se reconstitui – bastam para dizer muito sobre o seu papel
central na realidade arquitectónica nacional dos finais de Quinhentos. Seu
contemporâneo e sucessor como mestre da «aula de arquitectura» e dos
paços régios lisboetas, Nicolau de Frias representa, por seu turno, a evolução
natural e «nativa» da modernidade. Autêntico «artista-arquitecto», com uma
biografia que não se restringe à própria obra arquitectónica, nota-se, passo a
passo, a sua maturação estilística tendo no Convento de Santa Clara de
Alcântara, em Lisboa – concluído pelo filho – e na reforma do Paço Ducal
de Vila Viçosa os momentos mais altos da sua carreira como grande
«tracista», qualidade directamente apreciada pelo próprio Filipe II. Teodósio
de Frias foi um digno sucessor do pai e o único arquitecto, segundo se sabe,
a completar a sua formação junto da Corte madrilena. É já o protótipo do
arquitecto moderno na sua definição restrita, um profissional de gabinete
apartado do estaleiro. A sua biografia demonstra a sua mais valia e os
contactos que manteve ao mais alto nível com as grandes personalidades
políticas e religiosas de então. Com uma obra arquitectónica centrada na
capital do reino, se a Portaria Nova do mosteiro hieronimita de Belém é
prova do seu estilo refinado, os conventos do Santíssimo Sacramento de
Alcântara e de São Domingos de Benfica – que neste estudo se lhe atribuem
– poderão coroar a sua figura de proa, entre 1610 e 1634, dentro da
hierarquia régia. Por último, num breve apontamento, refere-se o seu
sucessor, o filho Luís de Frias. Desempenhará as mesmas funções do pai e
do avô, mas pouco se conhece da sua obra arquitectónica, devendo ter
contribuído para esta circunstância o período político conturbado em que
exerceu o seu cargo (1534-1642).

XX
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

O terceiro núcleo – designado por «A Escola Régia» – arrola os mais


importantes arquitectos a trabalhar durante este período dentro da hierarquia
régia em cargos imediatamente inferiores ao de «arquiteto-mor»: Baltasar
Álvares, Pedro Fernandes de Torres, Diogo Marques Lucas, Pedro Nunes
Tinoco e Mateus do Couto. Representam, por um lado, a prova da maturação
da nova linguagem e cultura arquitectónicas e, por outro, a síntese que a
arquitectura régia fará a partir da assimilação e interpretação das regras da
tratadística italiana com algumas características de natureza técnico-
construtiva e de «gosto» nacionais. Dos profissionais acima citados, só
Baltasar Álvares e Pedro Fernades de Torres estão já formados aquando da
criação da «aula de arquitectura» e perfeitamente integrados na nova
estética. Com a excepção de Torres e de Tinoco, este estudo procede a uma
primeva síntese biográfica da importante obra arquitectónica de Baltasar
Álvares, Diogo Marques e Mateus do Couto à luz da obra e documentação
existentes.
Quando Terzi chega a Portugal e projecta para Filipe II a igreja de São
Vicente de Fora, será o experimentado mestre português Baltasar Álvares o
responsável por concretizar em pedra viva o projecto do arquitecto italiano,
sucedendo-lhe depois no cargo de Mestre das Ordens Militares até 1624. A
influência «terziana» foi fulcral na sua obra arquitectónica. De facto – e
contrariamente à «lenda» que a historiografia artística nacional criou em
torno de Afonso e Baltasar Álvares – este último saberá contribuir para a
concretização de novos modelos arquitectónicos nos monumentais projectos
para São Bento da Saúde e Santos-o-Novo. A existirem ainda hoje – tal
como Nossa Senhora da Assunção – a imagem que teriamos da arquitectura
da primeira metade do século XVII seria substancialmente diferente. Com
uma vida longa, um espírito e uma natureza propensa a projectar construções
megalómanas e uma capacidade de trabalho acima da média, Baltasar
Álvares deixará a sua marca pessoal de Santarém a Avis e será um dos
principais protagonistas da arquitectura nacional durante este período. Por
sua vez, Pedro Fernandes de Torres nunca alcançou o impacto e
protagonismo dos seus contemporâneos aqui retratados, mas merece uma
curta entrada biográfica por ter ocupado o cargo de mestre das obras
conventuais de Tomar, sucedendo a Terzi, com quem deve ter colaborado
intimamente. Impressionante é a biografia de Diogo Marques Lucas, um dos
arquitectos régios a quem a historiografia tem dado pouco relevo. Foi
certamente o arquitecto português mais influenciado por Filippo Terzi e é
dele o projecto do mais magnífico templo jesuíta em território nacional – a
destruída igreja de Santo Antão-o-Novo. Se o projecto para São Bento da

XXI
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Vitória, no Porto, foi modificado no que diz respeito ao espaço do templo –


conservando-se o claustro, na linha de influência das obras nabantina e
crúzia – e se os trabalhos como o retrocoro da igreja da Luz, em Carnide, ou
da Portaria Nova do Convento de Cristo em Tomar poderiam dar-nos apenas
uma imagem muito parcial da sua mais valia, conserva-se na totalidade uma
das suas arquitecturas mais relevantes, até agora nunca citada, a igreja
conventual de Nossa Senhora de Jesus, actual igreja das Mercês, em Lisboa.
Biografado por Vítor Serrão, Pedro Nunes Tinoco, activo entre 1604 e 1640,
chegou a ocupar o cargo de «mestre de obras» de São Vicente de Fora e
desenvolveu uma vasta obra arquitectónica na cidade de Lisboa que passa
por Santa Clara, Santa Marta, Salvador e Nossa Senhora de Jesus mas
também por algumas das mais importantes igrejas paroquiais como a
destruída igreja de São Nicolau. Todavia, a sua obra-prima é fruto de um
compromisso entre o seu risco erudito e o gosto ornamentalista da região – a
sacristia nova de Santa Cruz de Coimbra. Nesta cidade, para onde trabalhou
amiúde, deve ter sido o responsável pelo aspecto final da igreja colegial
crúzia. Pouco resta da sua obra lisboeta, mas mantém-se intacto o Convento
de Santa Marta onde desenvolve um tipo de claustro inspirado no modelo de
Santos-o-Novo, que se repete em Nossa Senhora de Jesus. O último
arquitecto sujeito a retrato biográfico é Mateus do Couto, discípulo de
Baltasar Álvares. Para além do importante e inédito «tratado» de 1631 –
trabalho teórico que resume a diversidade de matérias ministradas na «aula»
régia – da sua obra arquitectónica destaca-se a igreja do Colégio de
Santarém, uma híbrida e tardia «church-box» que releva o apego do mestre a
uma «maneira» muito particular que está presente no seu texto teórico.
Acompanhou durante longos anos algumas das mais importantes fábricas
edificadas para as Ordens Militares, sendo certo que projectou o Convento
da Encarnação, em Lisboa, e a reforma da igreja-mãe da Ordem de Avis que
a documentação identifica como do seu tempo. Falecendo apenas no
longínquo ano de 1664, Mateus do Couto revela traços idênticos aos de seu
mestre, tendo uma obra arquitectónica desigual fruto das responsabilidades
construtivas advindas dos cargos que desempenhou. Seria, porventura, dos
mestres arquitectos aqui retratados, aquele de quem menos se esperaria um
trabalho teórico como o que realizou. Todavia, esta circunstância não deixa
de nos dizer muito sobre a capacidade e conhecimentos teóricos destas duas
gerações de arquitectos que laboraram entre a década de 80 do século XVI e
os alvores da Restauração.

XXII
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Aparte da arquitectura régia, com maior ou menor contacto com a


evolução centralista, o Norte e o Centro do país tiveram a capacidade de
desenvolver um estilo arquitectónico que apresenta características bem
distintas fruto de uma evolução periférica e regional que enriqueceu o
panorama da arquitectura portuguesa durante este período. Tal como em
Espanha se encontram polos regionais que pouco ou nada absorveram do
designado severo «estilo herreriano», em Portugal, essencialmente a Norte, a
arquitectura encontrou formulários alternativos às propostas régias mas não
menos relevantes sob o ponto de vista estilístico de forma que, eles próprios,
criaram a sua própria «escola».

Na sua quase totalidade, o Círculo do Granito foi objecto de análise e


construção na nossa dissertação de Mestrado, A Arquitectura Maneirista no
Noroeste de Portugal. Italianismo e Flamenguismo. Surge como necessário
continuar a relevar uma região tão pouco (re)conhecida pela historiografia
nacional, o seu valor e originalidade intrínsecas da sua arquitectura. Novas
informações conduziram a que se tornasse incontornável escolher este polo
como o mais importante a partir do último quartel do século XVI logo
depois da arquitectura régia.
A primeira parte é dedicada ao «Vértice Dureense». Antes da
recensão biográfica dos mestres de pedraria salientam-se alguns tópicos
importantes do trabalho arquitectónico da cidade do Porto – as empresas do
bispo D. Gonçalo de Morais na Sé do Porto, das quais faz parte a edificação
da monumental obra da capela-mor ; a problemática em torno da fábrica de
São Bento da Vitória, traçada inicialmente por Diogo Marques Lucas mas
remodelada profundamente nos finais do século XVII e inícios do século
XVIII ; a obra-paradigma da igreja jesuíta de São Lourenço e o anacronismo
planimétrico de Santo Agostinho, dois templos que plasmam o «gosto» e a
estética locais.
A materialização de uma arquitectura de raiz moderna, adstrita a uma
tendência ornamentalista que se designou por «flamenguista», encontra-se
na obra de Manuel Luís. Formado na cidade do Porto mas com importantes
contactos com João e Jerónimo de Ruão, a sua biografia revela-o como um
mestre que, de alguma maneira, acompanha a vanguarda nacional desde os
inícios da segunda metade do século XVI, trabalhando em obras de carácter
«polido» e de carácter militar. A sua obra-prima do período portuense é a
capela-mor da Misericórdia do Porto, autêntica citação da obra hironimita de
Jerónimo de Ruão, à qual o mestre nortenho aplica uma profusão ornamental
que marcará, a partir daí, toda a arquitectura da região. O importante
contributo biográfico de José Ferrão Afonso veio revelar o seu trabalho

XXIII
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

como «mestre de obras do arcebispado de Braga». Aqui, pouco antes de


falecer, projecta o Convento de Nossa Senhora do Pópulo onde ainda se
conserva o espaço interno do monumental templo. Jerónimo Luís é
igualmente objecto de análise biográfica. Provavelmente seu irmão mais
novo – levantando-se a hipótese de ter trabalhado como aparelhador na obra
da Misericórdia de Lisboa, sob a batuta de Jerónimo de Ruão – foi um dos
responsáveis pela edificação do claustro circular de São Salvador/Santo
Agostinho, em Gaia, certamente projectado por João de Ruão. O pouco que
se conhece da sua obra arquitectónica não é, contudo, descartável. Trabalhou
no Convento do Espírito Santo de Santa Maria da Feira, onde ergueu a
capela-mor, e em 1600 era «mestre de obras do Mosteiro de Pombeiro».
Com a morte de Manuel Luís, Gregório Lourenço é o mais importante
profissional a trabalhar na região de influência dureense, activo entre 1576 e
1629. Será um dos mais representativos mestres do que se pode definir por
cultura «flamenguista» arquitectónica e legou-nos duas obras maiores – o
Convento de São Salvador de Moreira da Maia e a Misericórdia de Aveiro.
Para além da obra já conhecida através do estudo acima citado, deve ter
trabalhado para o bispo D. Marcos de Lisboa (1582-1591), que fez construir
nos claustros da sé portuense a Capela de Nossa Senhora da Saúde – ou de
São Vicente como é actualmente conhecida – que se integra no seu estilo
arquitectónico. O discípulo dileto de Manuel Luís foi, contudo, Gonçalo
Vaz, activo entre 1589 e 1621. Casado com uma das suas filhas, encontra-se
ligado a uma das mais magníficas fábricas desta época, o Convento de São
Salvador de Grijó, expoente da cultura «flamenguista». Foi ele que projectou
o importante edifício «filipino» da Cadeira e Relação do Porto – sendo as
suas traças revistas na Corte por Teodósio de Frias – e, como «mestre de
obras», esteve na fundação dos conventos de São Bento da Vitória e de São
João-o-Novo. Depois de uma curta viagem pela obra de Francisco Carvalho
– o primeiro mestre a trabalhar no corpo da igreja do Espírito Santo de Vila
da Feira – procede-se, pela primeira vez, à resenha biográfica de um dos
mais consagrados mestres a trabalhar no Porto na primeira metade do século
XVII, Valentim Carvalho. Sendo quase certo que foi trazido para a cidade
invicta pelo bispo D. Gonçalo de Morais para projectar a nova capela-mor da
catedral, a partir daí desenvolverá uma obra dentro dos «cânones» locais.
Tido como «mestre de pedraria», «imaginario» e mesmo «entalhador»,
tudo aponta para que se tratasse de um arquitecto no sentido moderno do
termo. Da sua obra arquitectónica cumpre destacar as duas magníficas
capelas com portais retabulares pétreos que edificou no corpo da igreja da
Misericórdia e a monumental reforma dos paços condais de Santa Maria da
Feira, sendo provável que o projecto da igreja do Espírito Santo da dita vila

XXIV
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

– da qual ficará responsável depois da morte de Francisco Carvalho – seja de


sua autoria. Não obstante a longa cronologia construtiva, um dos seus
trabalhos que ainda hoje se podem apreciar na cidade do Porto é o claustro
conventual de São João-o-Novo. Um último olhar vai para a obra de
Pantaleão Pereira, sobrinho de Gregório Lourenço, activo entre 1601 e 1649,
produto de terceira geração da «escola» dureense. A conclusão deste sub-
capítulo fornecer-nos-á um exemplo da perenidade do modelo arquitectónico
maneirista, de estrutura italianizante e ornato geométrico de raiz «nórdica»,
representado pela igreja de São João-o-Novo, obra dos finais da segunda
metade do século XVII e que se prolonga pela centúria seguinte.

Desenvolvendo um estilo arquitectónico muito próprio, o «Vértice


Minhoto» é quase integralmente caracterizado pela designada «escola dos
Lopes». Com o muito provável e avisado conselho de frei Bartolomeu dos
Mártires, nasceu em Viana do Castelo um dos primeiros modelos
«tridentinos» de todo o país, a igreja de São Domingos que, décadas depois,
será redesenhado e apurado por Mateus Lopes na igreja de São Gonçalo de
Amarante. Embora os Lopes tenham dominado o mercado arquitectónico
desde João Lopes-o-Velho a João Lopes de Amorim, como é sabido, na
década de 90 Manuel Luís instala-se em Braga e a cidade evoluirá para um
formulário diverso. Fruto deste caminho-outro é a igreja de Santa Cruz do
arquitecto Geraldo Álvares, o grande nome da arquitectura bracarense
durante a primeira metade do século XVII. Em síntese final, atende-se à
problemática em torno da cronologia da igreja de Santa Marinha da Costa,
que apresenta uma capela-mor «flamenguista», alinhando por uma estética
que pouco teve a ver com os Lopes, com a excepção do redesenhar da
fachada da Misericórdia de Guimarães promovida por João Lopes de
Amorim.
A recensão biográfica inicia-se com os três filhos de João Lopes-o-
Velho. João Lopes-o-Moço foi certamente o mestre de pedraria responsável
pela edificação conventual dominicana em Viana, vila onde seguirá as
pisadas paternas. Teve uma evolução importante a partir dos meados da
década de 80 com a célebre e muito discutida varanda do Hospital da
Misericórdia, na capital alto-minhota, e no belo projecto do chafariz de
Ponte de Lima, um leimotiv familiar. Gonçalo Lopes fixar-se-á em
Guimarães, abrindo um novo polo de influência e chegando ao cargo de
«mestre de obras da vila». São da sua lavra a igreja da Misericórdia e o
arquitravado claustro de São Francisco. O mais bem sucedido será, todavia,
Mateus Lopes que abrirá oficinas em Pontevedra e depois em Santiago. A
sua imensa obra arquitectónica encontra na igreja de São Martinho Pinário,

XXV
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

em Compostela, uma síntese da sua evolução linguística e das características


marcadamente «escolares» que nunca abandona. A partir dos finais do
século XVI, Guimarães substituirá definitivamente Viana do Castelo como
polo irradiador minhoto. Pedro Afonso de Amorim – que tinha sido
«aparelhador» da fábrica amarantina debuxada por Mateus Lopes – fixa-se
em Guimarães, acompanhando e apoiando a obra da Misericórdia e os
últimos anos de vida do sogro, Gonçalo. Todavia, João Lopes de Amorim
encarregar-se-á de prosseguir o trabalho de Gonçalo Lopes enquanto Pedro
Afonso se ocupa da reforma do claustro de Santa Marinha da Costa e da
obra conventual de Santa Clara. A grande evolução sob o ponto de vista
estilístico atinge-se com a vigência de João Lopes de Amorim, activo entre
1604 e 1656. O último dos grandes mestres de pedraria da «escola dos
Lopes» atingirá um estatuto social e profissional sem precedentes. Como
acontece com os seus contemporâneos dureenses, é já um verdadeiro
arquitecto, limitando o seu trabalho ao projecto arquitectónico e supervisão
dos estaleiros. Influenciado pelo estilo «luisino», redesenhou para a
Misericórdia uma das mais belas fachadas de recorte maneirista de toda a
região Norte, sendo também responsável pelo debuxo da casa do despacho e
do hospital vimaranenses. Fora da vila fundadora da nacionalidade, foi
contratado para erguer um lanço do dormitório do Convento de Santa Maria
do Pombeiro e, pelo início da década de 20 de Seiscentos, dava quitação dos
trabalhos de edificação do convento franciscano de Santo António, em
Viana. Enfim, dos vários discípulos de João Lopes, optou-se por um breve
apontamento acerca do até agora desconhecido Domingos Coelho, autor da
capela-mor «flamenguista» de São Dâmaso de Guimarães.

O «Círculo do Calcário» diz respeito a Coimbra e sua região de


influência. O ponto de partida é a viragem da primeira para a segunda
metade do século XVI e a sua organização é parente aos módulos anteriores
mas diversa fruto das circunstâncias que se pretendem relevar.
O primeiro ponto introdutório permite-nos traçar um breve
apontamento acerca das empresas do bispo D. Afonso de Castelo Branco
para a Sé Velha e Paços Episcopais, obras cuja autoria ainda não foi
identificada com suporte documental – alinhando no mesmo diapasão a
fábrica do Convento de Santa Ana, apoiada pelo emérito prelado.
Aproveitar-se-á esta introdução para repensar a questão em torno da autoria
do projecto da igreja de São Domingos.
Dado que o âmbito cronológico deste trabalho científico apresenta já
consubstanciada a tipologia de Diogo de Castilho para a igreja e claustro
colegiais, faz-se uma breve alusão às suas opções arquitectónicas. Se o

XXVI
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

mestre régio se encontra particularmente bem estudado, o capítulo «Joã de


Ruã archyteto» pretende contribuir para uma nova visão da obra artística do
célebre escultor normando. De facto, para além da sua influência sob o
ponto de vista ornamental e escultórico, durante mais de um século, serão
soluções «ruanescas» que terão igual fortuna na região de influência coimbrã
– das capelas centradas do Santíssimo Sacramento até à solução
arquitectónica do arco de volta perfeita e coluna no intradorso aplicada em
muitas igrejas e capelas. Tentaremos demonstrar que o mercado de João de
Ruão passou substancialmente por obras no campo da arquitectura,
chegando mesmo a traçar importantes edifícios como São Salvador, em
Gaia, e o Colégio das Artes – onde trabalhará Diogo de Castilho como
responsável pela sua edificação.
Com o falecimento dos dois mestres, em 1575 e 1580, Coimbra
parece começar a depender, no que diz respeito à sua renovação e
modernidade arquitectónica, do círculo régio. Três exemplos paradigmáticos
do novo «risco italiano» são o Colégio de Santo Agostinho, projectado por
Filippo Terzi, o Convento de São Francisco, debuxado pelo frade Vicenzo
Casale e a monumental fábrica jesuíta, ainda sem autoria definida. Face a
esta realidade, prossegue durante o último quartel do século XVI e as
primeiras décadas de Seiscentos a edificação de grande parte dos colégios
universitários, alguns ainda próximos das tipologias «castilhianas», outros
mais avançados sob o ponto de vista estilístico. Nesta perspectiva,
seleccionaram-se os edifícios mais representativos – os «castilhianos»
colégios das Artes (da Alta) e de São Jerónimo, o Colégio da Santíssima
Trindade, o Colégio de Nossa Senhora da Conceição, o Colégio do Carmo, o
Colégio de São Bento, o Colégio das Ordens Militares e o Colégio de São
Pedro dos Religiosos Terceiros.
Um dos problemas que ainda se colocam à realidade coimbrã, durante
este período cronológico, reside no facto de os principais «Mestres de
Pedraria» da cidade, pese embora se ocupem das fábricas em construção,
não surgirem identificados pelos arquivos como autores do seu projecto
arquitectónico. No capítulo dedicado aos profissionais citadinos, a questão
até se coloca ao contrário no que se refere a Jerónimo Francisco, o sucessor
de Diogo de Castilho como «mestre de obras dos paços régios».
Documentado como «tracista» do Convento de Nossa Senhora da
Natividade, em Tentúgal, e de um projecto para a Misericórdia de Coimbra,
nenhum dos edifícios chegou até nós. Pelo contrário, as fábricas onde
participa – seja em São Bernardo ou na igreja de Ancião – revelam ainda
uma fragilidade estilística e um apego à tradição coimbrã que, no limite, o
poderiam colocar como o mestre preferido de D. Afonso de Castelo Branco.

XXVII
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

O primeiro «mestre de obras da cidade de Coimbra» será Francisco


Fernandes, activo entre 1562 e 1623. Com uma capacidade de trabalho
acima da média e grande experiência à frente de um estaleiro de obras, a sua
biografia é muito bem conhecida. Responsabilizar-se-á pela construção do
Colégio do Carmo, pelo levantamento dos alicerces do Colégio de Jesus e,
com grande probabilidade, desempenhou igual função no que diz respeito ao
Colégio de São Bento, projecto ligado à arquitectura régia. Por sua vez, o
seu discípulo Manuel João, com um currículo em tudo semelhante, estará
ligado às fábricas da sacristia nova e à igreja do colégio novo de Santa Cruz
– obras nas quais Pedro Nunes Tinoco estará envolvido. O derradeiro dos
mestres biografados, António Tavares, embora pouco conhecido no que diz
respeito à sua biografia, sintetiza uma época e um estilo no debuxo da
designada «Porta Férrea» da Universidade de Coimbra. Activo entre 1624 e
1656, mantendo um traço erudito de arquitecto, não deixa de pré-anunciar o
esgotamento formal característico da segunda metade do século XVII.
Um último olhar é dedicado aos «Modelos Regionais Maneiristas»,
equacionando a questão das capelas de planta centralizada de influência
«ruanesca», a «maneira ruanesca» de reconstruir templos e capelas como
sistema de actualização da linguagem arquitectónica na região de influência
coimbrã e a perenidade tipológica e ornamental que caracterizará todo o
Seiscentos na região litoral beirã.

XXVIII
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Abreviaturas

ADE – Arquivo Distrital de Évora

ADP – Arquivo Distrital do Porto

ADVC – Arquivo Distrital de Viana do Castelo

AHMP – Arquivo Histórico Municipal do Porto

AHMVC – Arquivo Histórico Municipal de Viana do Castelo

AMAP – Arquivo Municipal Alfredo Pimenta (Guimarães)

AMC – Arquivo Municipal de Coimbra

AMG – Arquivo da Misericórdia de Guimarães

AMP – Arquivo da Misericórdia do Porto

AMVC – Arquivo Municipal de Vila do Conde

ANTT – Arquivo Nacional da Torre do Tombo

AUC – Arquivo da Universidade de Coimbra

BGUC – Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra

BMP – Biblioteca Municipal do Porto

BN – Biblioteca Nacional (Lisboa)

BNM – Biblioteca Nacional de Madrid

XXIX
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Historiografia Artística,
Periodização
e Problemática
Estilística

1
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

2
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

1.1. A problemática em torno da periodização

A História da Arte Portuguesa do século XX construiu três


paradigmas na periodização histórico-artística arquitectónica, resumidos na
relevante epígrafe de um dos trabalhos de José Eduardo Horta Correia –
«Arquitectura Portuguesa. Renascimento, Maneirismo e Estilo Chão». Este
sábio e astuto ensaio do autor, que tenta identificar as especificidades de
cada estilo, sintetizava já a importância desta tríade para a caracterização da
arquitectura portuguesa entre a segunda metade do século XVI e a primeira
metade do século XVII.

1.1.1. O paradigma renascentista

O Renascimento é o primeiro período da Humanidade com


consciência histórica de si mesmo. Este facto poder-nos-ia fazer considerar
um estudo partindo da visão dos humanistas da arquitectura «all’antico»
até ao célebre escrito de Albrecht Haupt, A Arquitectura da Renascença,
publicado entre 1903 e 1909, trabalho ainda inspirado pelo delírio
romântico e numa perspectiva mais (in)formativa do que científica.
Todavia, interessa-nos sobretudo a visão contemporânea novecentista,
analisada aqui de forma necessariamente sumária.

Será essencialmente a «escola de Coimbra» – por circunstâncias


histórico-artísticas evidentes – que realiza os primeiros estudos relevantes
com vista à caracterização da arte e arquitectura renascentista em Portugal.
Para além de textos pioneiros de Joaquim Teixeira de Carvalho – João de
Ruão e Diogo de Castilho (1921) – posteriores às célebres colectâneas
documentais de Prudêncio Quintino Garcia dedicadas aos Artistas de
Coimbra e a João de Ruão, interessa-nos particularmente a obra e
pensamento de Vergílio Correia no seu A arquitectura em Portugal no
século XVI, publicado em 1929.

Vergílio Correia parte da consciência da existência, nos inícios do


século XVI, de um renascimento literário em torno do ambiente humanista
português coincidente com a cenografia ogival da designada «arquitectura
manuelina», termo forjado por Almeida Garrett e divulgado a partir de
Rackzinski. Para o emérito historiador, a arquitectura e a escultura de
modelo italiano surge na primeira metade do século XVI como pontual e
isolado caso sem continuidade, afirmando que «a importação faz-se sem
previsão, ao acaso das predilecções dos mestres estrangeiros que a traziam,
das simpatias dos poderosos, dos estudos dos pensionistas e viajantes, da
publicação de obras didáticas ou críticas sobre a arte de construir: Não
houve uma fonte única onde os artistas, nacionais ou arreigados na terra,

3
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

bebessem ensinamentos» 1. Como justificação desta realidade refere os


clássicos exemplos construtores da modernidade arquitectónica nacional: o
Medidas del Romano de Diego de Sagredo, as viagens a terras italianas de
Duarte Coelho, Gonçalo Baião e Francisco de Holanda, as encomendas de
nobres iluminados como D. Luís da Silveira ou D. Manuel de Noronha e a
vinda de artistas estrangeiros como João de Castilho e João de Ruão – não
deixando de incluir na lista os Torralva e Filippo Terzi.

A integração do lavor «ao romano» nas estruturas góticas da


arquitectura do primeiro terço da centúria é referenciada, isolando como
«incunábulos do renascimento» o portal lateral do Palácio da Vila de Sintra
ou as obras de Nicolau Chanterenne em Lisboa, Coimbra e Évora. Não
obstante, o Renascimento «só posteriormente a 1530 deixa de ser
esporádico para a partir de 1540 tornar-se coerente». Fazendo uso da sua
extraordinária capacidade literária, Vergílio Correia utiliza o seguinte
discurso para ilustrar essa realidade: «Verifica-se então um fenómeno, para
alguns autores quasi inacreditável. Perante o avanço da arte francesa e
italiana, os velhos mestres do gótico, alguns criadores até de certas formas
manuelinas, enfileiram galhardamente com os môços. A própria posição
oficial de alguns os obrigava de resto, a seguir a corrente. Há documentos
que no-los mostram encarregando outros arquitectos mais jóvens ou
recenchegados ao país, dos trabalhos à romana que lhes eram
encomendados. Familiarizados com a arte importada não lhes foi difícil, a
breve trecho, riscar plantas e desenhar alçados. Mais custoso era afeiçoar os
cinzéis que as penas» 2. João de Ruão, João e Diogo de Castilho são os
responsáveis pela efectiva mudança estilística que se estende por todo o
panorama nacional e a todas as áreas da arquitectura religiosa, civil ou
militar – abarcando ainda a figura de Miguel de Arruda.

«E eis-nos chegados ao último ciclo do Renascimento, ao período do


classicismo, que abrange em Itália até ao fim do século XVI e entre nós se
prolonga por meio século mais» 3. Introduz-nos, deste modo, num terceiro
período do Renascimento português identificado com obras como o
Claustro nobre do Convento de Cristo de Tomar, a Universidade de Évora,
a capela-mor dos Jerónimos ou a Misericórdia de Beja e incluindo todo o
período de domínio filipino. Discorrendo sobre os mais importantes
intervenientes destaca o italiano Filippo Terzi e o português Baltasar
Álvares. Caracterizando este período, afirma prolongar-se «o renascimento
em formas clássicas de certa pureza, correspondendo à primeira fase do
barroco italiano, influenciado por Vignola e Maderna» em obras como o

1
Vergílio Correia, «A arquitectura em Portugal no século XVI», Biblos, pág. 73.
2
Vergílio Correia, «A arquitectura em Portugal no século XVI», pág. 77.
3
Cfr. Vergílio Correia, «A arquitectura em Portugal no século XVI», pág. 80.

4
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

claustro da Serra do Pilar em Gaia, Santa Engrácia de Lisboa e os Colégios


da Companhia de Jesus.

Reynaldo dos Santos na sua monumental obra Oito Séculos de Arte


Portuguesa – síntese final do seu trabalho como historiador e publicada em
1970 – dedica um capítulo à Arquitectura do Renascimento português
partindo do mesmo conceito de que o estilo moderno «entrou primeiro pela
escultura e pela mão dos franceses» como Chanterene ou Ruão, «enquanto
a arquitectura do século XVI se iniciou sob as formas híbridas pelo
plateresco dos Castilhos e artistas galegos» 4. Este hibridismo é identificado
com os trabalhos arquitectónicos de Caminha, Viana, Vila do Conde e da
Sé de Braga. Sistematizando as suas ideias, delimita os principais locais de
irradiação da Renascença portuguesa com a ressalva de que os arquitectos
portugueses «nunca assimilaram o verdadeiro espírito» da modernidade,
exemplificando com o «goticismo» de Afonso Álvares em Coimbra, Évora,
Tomar e, mais tarde, Lisboa.

Na cidade mondeguina, destaca o trabalho arquitectónico de Diogo


de Castilho e de João de Ruão, o introdutor de uma nova gramática
arquitectónica na Porta Especiosa da Sé Velha de Coimbra e, embora ainda
dentro de um gosto «plateresco», vê João de Castilho como responsável
pela vanguarda do polo de Tomar, centrado na obra do Convento de Cristo.
Se o seu projecto para o claustro principal seria, no entender de Reynaldo
dos Santos, uma obra paradigmática da nova linguagem renascentista, o
projecto posterior de Diogo de Torralva identifica o último ciclo do
Renascimento nacional. Por seu turno, o Renascimento eborense
acompanha o ambiente cortesão da jornada alentejana de D. João III, sendo
que a obra emblemática é a igreja do Convento de Nossa Senhora da Graça,
que atribui ao escultor francês Nicolau Chanterenne e a Diogo de Torralva.
Diogo de Torralva é a personagem central para o autor – «no
essencial, porque a ele tenho atribuído algumas obras mais típicas do
Renascimento» – referindo os seus trabalhos para D. Luís da Silveira em
Góis, a igreja da Graça, a capela de Valverde, a capela-mor de Belém, a
ermida de Santo Amaro e o claustro principal do Convento de Cristo de
Tomar que representa já o «segundo renascimento» 5. Destaca também o
papel de Miguel de Arruda como autor da igreja e paços de Salvaterra, da
varanda renascentista das Capelas Imperfeitas do Mosteiro da Batalha, do
pórtico da Sé de Elvas, do Paço de Xabregas, de Santo Antão, do Convento
de Santa Ana em Lisboa e co-autor da igreja da Graça em Évora.
4
Reynaldo dos Santos, Oito Séculos de Arte Portuguesa, Tomo II, pág. 175.
5
Reynaldo dos Santos, Oito Séculos..., Tomo II, pág. 183.

5
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Reynaldo dos Santos demarca para o último terço do século XVI –


sem grande consciência de causa e com alguma timidez – um período
maneirista, «embora com delimitações variáveis» pois considera que «o
termo é ambíguo» 6, concluindo que «o verdadeiro Renascimento português
é o que abrange a arte dos Descobrimentos, que se desenvolve sobretudo no
reinado de D. Manuel – é o do estilo manuelino. Mas a influência do
Renascimento italiano na arquitectura portuguesa do século XVI
evolucionou em três ciclos» 7:
1 – Período de «expressão geográfica, humanística e artística,
abrangendo o manuelino como expressão nacional».
2 – Período «de influência italiana, dos escultores franceses e
arquitectos clássicos (Castilhos, Miguel de Arruda, Diogo de Torralva)».
3 – Período do «Renascimento tardio da geração de Afonso Álvares
a Filipe Tercio».

«Tudo muda com a chegada de Terzi», afirma Reynaldo dos Santos.


Para o historiador, o arquitecto italiano será o responsável pela passagem
do Renascimento para o Barroco arquitectónico nacional e, desta forma,
Baltasar Álvares, Diogo Marques Lucas, os Frias, os Tinoco e os Couto são
considerados como expoentes do Barroco nacional, coroado pelo lavor
arquitectónico de João Antunes.

Vergílio Correia e Reynaldo dos Santos representam duas


importantes sínteses acerca do pensamento histórico-artístico português até
à obra de George Kubler. Colocando de lado as imperfeições de época – no
que concerne à facilidade com que através de atribuições mais ou menos
arbitrárias se caracteriza a obra de um arquitecto e as posteriores
informações documentais que vieram a decompor alguns argumentos
defendidos – os dois autores foram aqui escolhidos não ingénua mas
intencionalmente. Se a linha pioneira de Vergílio Correia ainda hoje é
aceite no que respeita à existência de um período inicial de influência
ornamental – um período de «primeiro renascimento» e outro de formulário
«clássico» – Reynaldo dos Santos não deixa de destacar a figura de Terzi
como o «elo mais forte» na conquista da maturidade estilística da
arquitectura portuguesa.

Na última síntese da historiografia artística portuguesa sobre este


período, Rafael Moreira faz recuar as origens da modernidade artística a
um «proto-período» ou período formativo que prepara a abertura à
6
Cfr. Reynaldo dos Santos, Oito Séculos..., Tomo II, pág. 190.
7
Reynaldo dos Santos, Oito Séculos..., Tomo II, pág. 206.

6
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

«renascità». Nesta medida, partindo do princípio de que é o Humanismo


que surge como responsável pela divulgação da nova metodologia, regista
um pré-humanismo quatrocentista coincidente com as encomendas
cerâmicas a Lucca della Robbia por parte de D. Afonso (1419-1460), filho
bastardo de D. João II, conhecedor da realidade cultural florentina
concluindo, todavia, que «estas primeiras aberturas resultam menos de uma
orientação cultural precisa e mais do espírito de abertura à novidade» 8.
O período da «redescoberta da Antiguidade» engloba todo o reinado
de D. João II e a introdução do Humanismo em Portugal por figuras como
Cataldo, sendo que a «mutação do gosto» abarca os primeiros momentos
pré-renascentistas com as obras da igreja matriz de Caminha, Vila do
Conde, Azurara ou Viana do Castelo, entre 1510 e 1514, a monumental
fábrica dos Jerónimos e os incontornáveis escultores franceses. Destaca
ainda a arquitectura militar como «factor de inovação», vendo em
Francisco de Arruda um pioneiro das influências italianas.

Segue-se-lhes a periodização tradicional, concedendo um especial


destaque ao «Renascimento de Granito», a Norte, e ao foco eborense
centrado no ambiente cortesão aquando da estada de D. João III. De
seguida, o autor define, em linhas gerais, dois períodos verdadeiramente
modernos centrados nas cidades de Coimbra e Tomar, considerando-os
como o nosso «Alto Renascimento» centrado na obra arquitectónica de
João e Diogo de Castilho – este último tido como «classicista» – e uma
última fase que denomina de «formulação e crise de linguagem»
englobando a obra de Diogo de Torralva e António Rodrigues 9.

1.1.2. O nascimento da consciência maneirista

A historiografia portuguesa não deixou de ter uma «opinião-outra»,


pioneira e de alguma maneira radical, pelo franco entendimento de Jorge
Henrique Pais da Silva que em 1955 alertava para a existência de uma
arquitectura portuguesa tipologicamente maneirista.

Sem reconhecer um período marcadamente renascentista na


Península Ibérica, na medida em que adopta uma visão purista e restrita
perspectivada a partir da arte e arquitectura do Renascimento italiano – a
opinião de que a verdadeira renascença é um fenómeno tipicamente italiano
é ainda hoje tida em conta – vê o Maneirismo como a corrente estilística
que desaloja o Plateresco castelhano e o Manuelino português, atribuindo
grande parte do crédito à arquitectura jesuítica. Para o historiador, tudo se
inicia dentro das directivas já apontadas, ou seja, com a ida de portugueses
8
Rafael Moreira, «Arquitectura: Renascimento e classicismo», História da Arte Portuguesa, pág. 309.
9
Consulte-se Rafael Moreira, «Arquitectura: Renascimento e classicismo», pág. 303-364.

7
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

para Itália, como bolseiros ao tempo de D. João III, a divulgação dos


tratados de arquitectura, essencialmente os textos de Sebastiano Serlio e a
chegada de mestres estrangeiros a território nacional.

Identifica a existência de uma corrente romana e de um estilo


«autóctone» em que «o próprio tipo português da igreja jesuítica embora se
defenda do influxo estranho quanto ao sentido espacial, evoluindo
independentemente, não deixa de por ele ser afectado na composição do
coroamento da fachada. Um dos aspectos mais interessantes deste conflito
entre o estilo autóctone e a corrente romana reflecte-se na luta travada pela
conquista do espaço entre duas torres e as volutas amparantes do frontão e
frontespício»10. Tomando sempre em linha de conta o Maneirismo
arquitectónico «contra-reformado», Pais da Silva conclui que os arquitectos
portugueses copiam ou o sistema de torres na fachada proposto por Terzi
em São Vicente de Fora ou as volutas da casa mãe jesuítica, ficando o
modelo dos torreões ganhador.

Todavia, o conceito de arquitectura maneirista é, em Pais da Silva,


muito abrangente pois inclui duas correntes, portuguesa e romana, num
todo arquitectural único e maneirista, facto que resulta da sua visão
concentracionária no modelo «inaciano» – não deixando de considerar,
contudo, a existência de um foco arquitectónico nortenho maneirista que
revela algum afastamento face à situação nacional.
Fixa igualmente uma cronologia identificando três períodos distintos
e consequentes: uma primeira fase maneirista onde as obras-paradigma são
a capela-mor dos Jerónimos, a fachada da igreja da Graça em Évora, a Sé
de Portalegre e o claustro nobre do Convento de Cristo de Tomar ; uma
segunda fase coincidente com a actividade arquitectónica da Companhia de
Jesus e uma terceira fase correspondente à fábrica de São Vicente de Fora
11
, sendo que as duas últimas etapas convergem e prolongam o Maneirismo
até ao século XVIII.

1.1.3. O «Estilo Chão» e a sua rama.

George Kubler, no seu clássico estudo Portuguese Plain Architecture


between Spices and Diamonds. 1521-1706, publicado em 1972, serve-se da
expressão «plain style» ou «estilo chão» para caracterizar um longo
período da arquitectura nacional entre o expirar do Manuelino e o dealbar
do Barroco. Define-o como «emancipação das normas académicas e das
formas italianizantes. O estilo chão português é como que uma arquitectura
vernácula, mais relacionada com as tradições de um dialecto vivo do que
10
Pais da Silva, Estudos sobre o Maneirismo, pág. 132.
11
Pais da Silva, Estudos..., pág. 23.

8
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

com os grandes autores da Antiguidade Clássica» surgindo «uma geração


antes de o estilo desornamentado ter aparecido em Espanha» 12 e
sobrevivendo-lhe temporalmente.

Para o autor, a Antiguidade da Arte da Pintura de Felix da Costa,


obra redigida entre 1685-1696, representa a teorização estilística da arte
nacional deste longo período como «documento sobre o gosto artístico de
todo o período compreendido entre os reinados de D. João III e de D. João
IV». Baliza deste modo o «estilo chão» entre 1521 e 1706 incluindo sobre a
égide desta nomenclatura as primeiras experiências renascentistas – como o
Templete do Claustro da Manga em Coimbra, Nossa Senhora da Conceição
em Tomar – as «igrejas-salão» de Miranda do Douro a Évora, a vertente
arquitectónica maneirista – a capela-mor dos Jerónimos ou São Salvador
de Grijó – o modelo jesuítico e toda a arquitectura de Seiscentos que
colapsa nas experiências proto-barrocas de João Antunes em Santa
Engrácia de Lisboa e no Bom-Jesus da Cruz em Barcelos.

Conclui que a «arquitectura chã» nacional «corresponde à atitude


experimental dos arquitectos formados na teoria do Renascimento, que se
atreveram a desrespeitar os seus preceitos a fim de obterem uma construção
útil e económica» 13. Desta forma a arquitectura portuguesa assentava em
duas traves mestras, o racionalismo e a austeridade pontuados pela
necessidade de construir modernamente mas o menos dispendioso possível.
O «estilo chão» funcionaria para Kubler como um «supra-estilo» ou como
dirá posteriormente Horta Correia, um estilo superador dos «tradicionais
conceitos estilísticos do renascimento, maneirismo e barroco, aplicáveis à
arquitectura portuguesa» 14.

A década de 80 veio contribuir para que se desenvolvessem estudos e


reflexões importantes tendo por base a teoria «kubleriana». Em 1986 José
Eduardo Horta Correia diferenciava já a «arquitectura chã» da arquitectura
maneirista através do seguinte raciocínio: «A arquitectura em Portugal
conheceu transformações substanciais nos finais do reinado de D. João III,
que acompanharam as mutações culturais coincidentes com a entrada no
período sebástico. As resoluções do Concílio de Trento, a espiritualidade
da Contra-Reforma, a militarização da política portuguesa e a unicidade
ideológica associaram-se à evolução estética e às alterações no modo de
projectar. Um tempo novo surge então para a arquitectura nacional,

12
George Kubler, A Arquitectura Portuguesa Chã entre as especiarias e os diamantes 1521-1706, pág. 3.
13
George Kubler, A Arquitectura Portuguesa Chã..., pág. 172.
14
Horta Correia, «A arquitectura – maneirismo e estilo chão», História da Arte em Portugal, pág. 93.

9
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

marcada não só pelo maneirismo italiano (ou flamengo), como sobretudo e


concomitantemente por um estilo vernacular e original, profundamente
acentuado pela cultura arquitectónica de base tratadística e pela pratica da
arquitectura militar e onde se evidenciam valores de simplicidade,
austeridade, limpidez, clareza e funcionalidade. Este estilo chão, seguindo
um percurso evolutivo específico até aos finais do século XVII, acaba por
oferecer uma eficaz resistência à aceitação do barroco» 15.

Tomando como pontos de referência Kubler e Pais da Silva,


estabelecerá diferenças de raiz entre o «renascimento, ainda a muitos títulos
experimental, da época de D. João III, de gosto italianizante», o formulário
retardatário que encontra novas formas para sobreviver, como as «igrejas-
salão», e o Maneirismo em vias de formação representado tutelarmente
pela influência de Sebastiano Serlio e da tratadística a partir da década de
50. «Ora, é precisamente no momento em que as superestruturas
ideológicas do integrismo contra-reformista tomam definitivamente conta
do poder, como o caso do reinado de D. João III, que a tendência para o
despojamento decorativo e a adopção de um frio classicismo de base
tratadística e de uma austeridade a um tempo religiosa e militar convergem
na formação de uma arquitectura diferente a que, utilizando a expressão de
Kubler, chamaremos estilo chão» 16.
Assim se depreende que Horta Correia retire da tutela «chã» o curto
e experimental Renascimento português, sendo o «plain style» agora
coincidente com a arquitectura pós-tridentina, de fundo tratadístico,
mantendo as suas características de austeridade e rigor. Por fim, não deixa
de reclamar o seu pioneirismo em relação ao «estilo desornamentado»
castelhano, reunindo-se às lições renascentistas «um certo classicismo
asséptico e um maneirismo internacional» como fontes teóricas da Arte
Portuguesa até 1580. Não obstante, acrescenta que «os novos tempos são
esteticamente dominados por valores diferentes e até contraditórios, que
convergem num estilo de sentido vernacular e de origem nacional, que vai
tender a hegemonizar a arquitectura portuguesa» – hegemonização «chã»,
bem entendido – pese embora se «localizem valores mais ortodoxamente
maneiristas em determinadas áreas territoriais ou resultantes de directrizes
da encomenda ou de uma criação mais pessoalizada» 17.

A vertente maneirista passará, para o autor, por arquitecturas de/ou


atribuíveis a Diogo de Torralva, Filippo Terzi e António Rodrigues e a
«persistências de valores locais e assimilação do decorativismo maneirista»
como a obra de Jerónimo de Ruão. Contemporânea será a vertente que

15
Horta Correia, «A arquitectura...», pág. 93.
16
Horta Correia, «A arquitectura...», pág. 94-95.
17
Horta Correia, «A arquitectura....», pág. 96.

10
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

corresponde à «afirmação dos valores essenciais do estilo chão nacional,


ensaiados nas Hallenkirchen alentejanas de raiz vernacular e plenamente
concretizadas nas novas tipologias das igrejas dos Jesuítas de Évora e
Lisboa» que «tendem, à partida, a ser hegemónicos na arquitectura
portuguesa, apesar da pluralidade e diversidade das suas expressões
originárias». Nesta vertente incluem-se as tipologias das Sés de Leiria,
Portalegre e Miranda do Douro, as experiências jesuíticas do Espírito Santo
de Évora, de São Roque de Lisboa e de São Paulo em Braga mas também
São Vicente de Fora em Lisboa, a Sé Nova de Coimbra, São Bento da
Vitória e São Lourenço no Porto, São Domingos de Benfica, o Convento
dos Agostinhos de Vila Viçosa, o Convento do Carmo de Évora até Santa
Clara-a-nova em Coimbra 18. Conclui-se, enfim, que a arquitectura da
Restauração sintetizará «todos os dados fornecidos por todas as vertentes
autóctones dos períodos anteriores, mas também pelas sucessivas
influências italianas, espanholas e flamengas, constituindo todavia um
estilo ainda mais austero e vernacular, que prolongará anormalmente o
estilo chão nacional por mais algumas décadas» 19.
O «estilo chão» percorrerá, deste modo, todo um longo período
partindo da segunda metade do século XVI em linha de continuidade com
algumas soluções «retrógradas» da arquitectura experimentadas no
Manuelino como sejam as «igrejas-salão», passando pela grande
arquitectura das ordens religiosas de Seiscentos, recebendo periférica e
pontualmente influências externas que renovam e afunilam a sua
austeridade e simplicidade linguística arquitectónica.

Em 1991 Horta Correia sintetiza a sua posição caracterizando a


arquitectura do segundo quartel do século XVI a meados do século XVII
em três pontos essenciais: «Uma certa unidade estilística centrada pela
utilização dos valores formais do classicismo; uma extrema importância e
alta qualidade no contexto das artes e da cultura portuguesa do tempo; uma
explicitação de valores autónomos, nascidos quer da acentuação de
invariantes nacionais quer da especificidade da conjuntura portuguesa» 20.
Entendendo a especificidade e a existência anterior de um período
renascentista em Portugal, coincidente com o reinado de D. João III e sem
contestar a «velha dicotomia Renascimento /Maneirismo», propõe o «estilo
chão» como estética «tendencialmente hegemónica», «de origem sebástica
e terminus indefinido» 21. Defende o Maneirismo arquitectónico «não só
como uma realidade autónoma na arquitectura portuguesa, que foge à
hegemonização tendencial da arquitectura chã, mas também como uma

18
Horta Correia, «A arquitectura...», pág. 114.
19
Horta Correia, «A arquitectura...», pág. 128.
20
Horta Correia, Arquitectura Portuguesa. Renascimento, Maneirismo e Estilo Chão, pág. 13-14.
21
Horta Correia, Arquitectura..., pág. 15.

11
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

componente importante dessa mesma situação», propondo «um subperíodo


dominado pelo estilo chão (que em si mesmo engloba algum Maneirismo),
mas onde outro maneirismo se afirma autonomamente conseguindo escapar
à tendência dominante na arquitectura nacional».
Nesta segunda abordagem, o autor tende para uma maior abertura em
relação à existência de um período maneirista, contemporâneo e autónomo
à linha «chã», admitindo inclusive contribuições daquele para esta.
Todavia, defende-se que «as manifestações episódicas de certo maneirismo
internacional não tem significado suficiente entre nós para marcarem uma
nova periodização. Por outro lado, é hoje para nós evidente que o estilo
chão feito de clareza, ordem, proporção e simplicidade não pode ser
entendido apenas (o que seria contraditório) como o nosso Maneirismo
possível. Constituindo uma situação complexa e nova na nossa
historiografia, importa aprofundá-la e utilizá-la na sua fecundidade
metodológica. Em primeiro lugar, pensamos que há entre nós situações
concretas, por vocação pessoal do artista, por gosto do encomendador ou
por tradição regional, de Maneirismo tout court, que escapa à tendência
hegemónica do estilo chão. Em segundo lugar, o próprio estilo chão acolhe
fontes teoréticas aparentemente contraditórias: um certo classicismo
asséptico e um maneirismo internacionalizado. Os tempos sebásticos são
esteticamente dominados por valores diferentes, mas que, graças à
circunstância da conjuntura lusitana, convergem num estilo peculiar e
portanto nacional e de tendência vernacular» 22.

Mais recentemente, outros autores abordaram esta problemática.


Paulo Pereira defende a necessidade de se proceder a uma reavaliação dos
conceitos kublerianos admitindo que «se, de facto, o conceito de estilo
chão é de uma utilidade inquestionável, não é menos verdade que George
Kubler, no elenco que faz das obras que se podem inscrever dentro desta
categoria» nele inclui edifícios que «correspondem a outros graus de
expressão e a outra cultura arquitectónica» 23. Tal como o tinha feito Horta
Correia, afasta da nomenclatura «chã» todo o Renascimento português –
designando-o por primeiro Maneirismo «erudito» da década de 50-60 –
«bem como os edifícios característicos daquilo que já alguém chamou o
‘classicismo monumental desornamentado’» (Paulo Varela Gomes), entre
os quais se contam as obras de um período mais tardio, conotáveis com a
época sebástica e filipina, incluindo arquitectos como Baltasar Álvares e

22
Horta Correia, Arquitectura..., pág. 42-45.
23
Paulo Pereira, «A ‘traça’ como único princípio – reflexão acerca da permanência do Gótico na Cultura
Arquitectónica dos séculos XVI e XVII», Estudos de Arte e História – homenagem a Artur Nobre de
Gusmão, pág. 190.

12
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Filippo Terzi e, claro está, São Vicente de Fora. Coloca assim fora do
«estilo chão» toda a grande arquitectura que se desenvolverá na primeira
metade de Seiscentos.
Insiste-se que a «arquitectura chã» deve ser compreendida num
«eixo de permanências e de longa duração». Explica esta linha de
continuidade partindo de um entendimento historiográfico de «longa
duração» de uma tipologia que vem do Gótico, atravessa o Renascimento,
o Maneirismo e o «Classicismo monumental desornamentado» até ao
período da Restauração, vertente «secundária (se pensarmos a partir de um
centro de gravidade vanguardista) e anónima (produzidas por mestres quase
ou totalmente desconhecidos), e de cultura gótica». De acordo com estes
princípios, recorda que o Maneirismo é, em alguns casos específicos, neo-
medieval face às normas renascentistas o que é concordante com a
expressão de que «muita da arquitectura portuguesa de quinhentos e
seiscentos (...) exprime uma relação de continuidade evidente com o
período medieval ou tardo-medieval, essencialmente por razões de natureza
empírica e de cultura prática dos mestres disponíveis. Estas razões e as
outras encontram-se e adaptam-se mutuamente».

Como exemplo de perenidade de um goticismo arquitectónico aponta


como traço evidente o conjunto das «igrejas-salão» iniciadas na fase
gótico-manuelina e prolongado em Tavira com vocabulário renascentista e
nas Sés de Leiria, Portalegre, Miranda do Douro, bem como em Santo
Antão de Évora e Santa Maria de Estremoz. Vê inclusive a permanência
das proporções góticas em São Roque, em Lisboa, bem como na origem
das igrejas dos colégios de Coimbra. Nesta ordem de ideias, defende-se um
apego ao esquema composicional gótico no que diz respeito às fachadas,
dando como exemplo o verticalismo da igreja e claustro do Mosteiro de
São Salvador de Grijó, asseverando que «estes e outros processos de
ornamentação e traçado, embora mais ‘leves’ e lisos, correspondem à
difusão através dos Países Baixos do neugotik ou do nachgotik, que
acentuavam, no quadro do maneirismo europeu (e peninsular) o prestígio
do modelo goticista» 24. O limite da referência gótica situa-o no Convento
de Santa Clara-a-Nova de Coimbra pela «frieza do conjunto, onde está
ausente qualquer depoimento acessório ou decorativo» revelando «um
apego às formas verticalizadas e contrafortadas do gótico» 25.

Paulo Pereira transcreve, como justificativa da sua tese, a posição do


mestre de obras castelhano Rodrigo Gil de Hontañon para quem «a
arquitectura é a traça com as suas regras gerais; o resto é adicionada; as
ordens clássicas não competem ao mestre arquitecto mas antes ao escultor a
24
Paulo Pereira, «A ‘traça’ como único principio...», pág.196.
25
Paulo Pereira, «A ‘traça’ como único princípio...», pág. 197.

13
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

seu mando e só se incluirão se ao arquitecto e à traça apetesçen». Conclui,


deste modo, que «do século XVI ao século XVII, muito mestres
portugueses ou a trabalhar em Portugal, defendiam e praticavam a traça
sem estilo (no feliz dizer de Fernando Marías), ou aquilo a que a história da
arte viria a apelidar estilo chão. O que importava eram os princípios da
concepção do edifício. Isto explica (...) a permanência tectónica do gótico
em plena Idade Clássica. A formação da mão-de-obra portuguesa e de
alguns mestres, no âmbito de um período de surto construtivo gótico-
manuelino, preferia estes princípios de tradição longa e segura, já testados.
Só isso explica que Afonso Álvares, considerado como um notável
arquitecto português (‘de los mejores que aqui ay’) seja assim definido por
Miguel de Torres em carta dirigida a Francisco Borja: ‘pero no es hombre
que me parece que tenga esperiencia de los edificios antigos ny de los de
fuera del reyno» 26. Esta seria, então, a razão pela qual os mestres
portugueses que formaram o «estilo chão» se sentiram atraídos pela
arquitectura militar, como terreno de experimentação mais virado para um
saber empírico do que teórico-estilístico.

No segundo ano da década de 90, A confissão de Cyrillo de Paulo


Varela Gomes aflora igualmente a questão historiográfico-estilística
partindo da seguinte preocupação: «A consciência morfológica e tipológica
da nossa arquitectura de Quinhentos e Seiscentos obriga, de facto, a que se
pense na existência de um ‘formulário’ resultante de um conjunto de regras
de projecto extremamente rígidas e sempre postas em prática. A
arquitectura portuguesa marcada pelo ‘paradigma da fábrica’ caracterizou-
se por um conservadorismo tipológico de raiz gótica que se exprimia
formalmente por regras de senho assentes em procedimentos geométricos
particulares» 27.
O autor concorda com a opinião de Paulo Pereira no facto de o saber
dos mestres e arquitectos portugueses até Filippo Terzi radicar num
conhecimento empírico, estranho à tratadística. Partindo do problema da
experimentação teórica antes da practicidade arquitectónica, que o autor vê
à maneira gótica, com «desenhos parcelas ou apenas de orientação geral (a
‘planta’ de que falam os documentos, concebidos organicamente como
instruções de obra», aponta o exemplo de António Rodrigues e os escritos a
si atribuídos como alguém «situado entre duas culturas: participava, por um
lado, da dos mestres pedreiros com o seu esoterismo, secretismo (e
sectarismo); por outro, da cultura dos tratadistas italianos que conhecia
muito bem. As duas correntes confluíram na sua obra através da
26
Paulo Pereira, «A ‘traça’ como único princípio...», pág. 198.
27
Varela Gomes, A confissão de Cyrillo. Estudos de História da Arte e da Arquitectura, pág. 28.

14
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

geometria». Assim, «o saber medieval dos mestres de obra transforma-se


nele (no tratado de António Rodrigues) em saber especulativo geométrico-
cosmológico e a geometria reverte em codificação dos métodos de projecto
tradicionais. O estilo chão ganhou a sua teoria».

Varela Gomes propõe uma diferenciação entre «estilo chão» e


Classicismo. Quanto ao primeiro não o vê como um «estilo», ou seja, como
«um conjunto de traços formais separáveis da sua prática de cada
momento. Passou a ser, isso sim, uma teoria-da-obra, da fábrica, que
sobreviveu à Aula do Paço da Ribeira instituída para Tércio, a permeou, e
veio a dominar a cultura arquitectónica portuguesa até meados do século
XVIII como se sabe. Deste modo, a expressão estilo chão, que se tem
vulgarizado» assenta «num equívoco de carácter formalista que não
contribui para esclarecer devidamente a especificidade da prática
arquitectónica portuguesa mais corrente na Idade Clássica». Opõe-se-lhe o
Classicismo que, «introduzido na teoria da arquitectura portuguesa com
Hollanda e, mais efectivamente, com Tércio e Herrera, triunfou apenas na
época de D. João V. O classicismo diferencia-se fundamentalmente do
entendimento Humanista da arquitectura (do ‘paradigma da architectura’)
por amarrar o procedimento arquitectónico à ideia de representação (e já
não por analogia): foi nessa perspectiva que os teóricos da Idade Clássica
insistiram em que a arquitectura representava a natureza (através das
Ordens), o homem (através da proporção), e, mais tarde, a função dos
edifícios ou o seu destino social» 28. Torna-se claro que, para Paulo Varela
Gomes, o conceito de «estilo chão» não é grandemente esclarecedor da
prática arquitectónica portuguesa deste período.

28
Varela Gomes, A confissão de Cyrillo..., pág. 30-32.

15
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

1.2. Os conceitos de Classicismo e Maneirismo: vantagens e


desvantagens na sua aplicação conceptual

1.2.1. Clássico e Classicismo

Considerem-se duas definições comuns para Clássico e Classicismo


sob o ponto de vista terminológico:
«Originariamente derivado do vocabulário marítimo romano,
identificando o melhor barco da frota (classis), clássico refere-se
genericamente às obras consideradas por um grupo dominante como as
melhores do seu tipo, bem como aquelas cujas qualidades são mais
duradoiras.
Na História da Arte, o termo teve múltiplos papéis; por exemplo,
refere-se ao mais típico da produção de um autor, grupo, sociedade ou
nação. Como termo a-histórico, refere-se ao absoluto e transhistórico,
qualidade superior. Por outro lado, tem sido visto como período posterior
ao arcaico ou juvenil, fase de desenvolvimento, representativo da fase
adulta de um estilo, antes do declínio. No século XX, tudo poderia ter um
período clássico. Menos comum é o seu uso como oposto ao Romantismo
(século XIX)» 29.

«Revivalismo ou retorno aos princípios artísticos e arquitectónicos


da Grécia e (mais vezes) de Roma. A palavra clássico originalmente
significava um membro da classe superior de romanos que pagavam
impostos. Foi depois aplicada, por analogia, a escritores reputados, e na
Idade Média foi estendida a todos os escritores gregos e romanos, e mesmo
às artes desse período, embora sempre no sentido de autoridade
indiscutível. Os vários revivalismos clássicos tentaram alcançar um
regresso à regra artística da lei e ordem, bem como à invocação das glórias
da Roma antiga. Embora muitas das fases da arte europeia medieval e
posterior tenham sido influenciadas pela antiguidade, o termo classicismo é
geralmente reservado aos estilos fielmente mais devedores a Grécia e
Roma». Destacam-se a «renovatio» carolíngia dos séculos VIII-IX, o
proto-Renascimento toscano do século XI e o Renascimento dos séculos
XV-XVI. «A partir do século XVI, a reinterpretação da antiguidade da
Renascença exercerá quase tanta influência nos arquitectos classicizantes
como a própria Antiguidade. Foi durante o Renascimento que se começou a
desenvolver a teoria clássica da arquitectura baseada grandemente no
confuso tratado de Vitrúvio» 30.

29
The Art of Art History: a Critical Anthology, pág. 577.
30
Dictionary of Architecture, pág. 96-97.

16
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Em sentido restrito e em sentido lato, estas duas definições reúnem


os elementos definidores que se aplicaram aos termos «clássico» e
«classicismo» ao longo dos tempos.

No célebre estudo The Classical Language of Architectura, John


Summerson afirmava ser «um erro tentar definir classicismo. Adquire toda
uma série de significados úteis em diferentes contextos e proponho-me a
considerar apenas dois, os que me serão igualmente úteis ao longo deste
livro. A primeira definição é a mais óbvia. Um edifício clássico é aquele
em que os elementos decorativos derivam directamente ou indirectamente
do vocabulário arquitectónico do mundo antigo – o mundo clássico como é
muitas vezes definido: estes elementos são facilmente identificáveis com,
por exemplo, as colunas de cinco variedades estabelecidas e aplicadas de
forma definida» 31. Todavia, afirma o historiador, esta definição nada nos
diz acerca da essência do classicismo. Para a Antiguidade Clássica, a
essência estaria na «harmonia das partes», na «proporção» dos diferentes
componentes do edifício entre si e com o todo. Nesta medida, teremos que
considerar que um edifício é «clássico» se atender a essa «proporção» e se
aludir às ordens arquitectónicas antigas 32.

De facto, os elementos essenciais para definir «classicismo» são o


uso e prática das ordens arquitectónicas greco-romanas e o seu sistema
proporcional constitutivo dos edifícios. Estes dois elementos estão
presentes em Vitrúvio. De acordo com a tradição pitagórico-platónica, o
texto vitruviano dá ênfase ao fundamento filosófico geral que assentava na
crença de que certas proporções eram perfeitas e regiam o Cosmos.
Divulga a convicção de que existe uma beleza objectiva e proporções
objectivas e perfeitas, entendidas matematicamente na medida em que o
belo é mensurável. Donde, a crença de que o corpo humano funciona como
a identidade microcósmica da perfeição universal, a própria arquitectura
depende de um cânone antropométrico. Nesta medida, a composição
consiste na «symmetria» que nasce do cálculo e concordância das suas
partes assim como da sua totalidade, conforme ao módulo estabelecido.
Não obstante, o elemento subjectivo não deixa de estar presente quando
Vitrúvio elege a «eurythmia» como a razão última a ter em conta pelo
arquitecto 33.

Partindo do escrito vitruviano, a tratadística italiana do século XVI


procurou encontrar uma regra, uma proporção exacta para cada ordem
arquitectónica. Serlio, Vignola e Palladio apresentam, cada um, a sua

31
John Summerson, The Classical Language of Architecture, pág. 7-8.
32
John Summerson, The Classicial Language..., pág. 9.
33
Cfr. Tatarkiewicz, Historia de la estética, Tomo I, pág. 55.

17
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

proposta sendo a mais radical a medida vignolesca por abandonar os


elementos arqueológicos em favor de um sistema puramente especulativo.
Não obstante, a prática arquitectónica italiana violava constantemente as
mesmas regras impostas nos seus tratados, insistindo numa dualidade entre
«regra» e «licença», ou seja, entre a necessidade de existir uma norma e a
liberdade criativa no uso dos modelos «clássicos».

Classicista é, portanto, o arquitecto que se baseia numa regra, num


sistema fixo de proporções aplicado às ordens arquitectónicas de raiz
greco-romana como elemento base da construção arquitectónica. Sendo a
arquitectura estrutura planimétrica e altimétrica, nos casos mais ortodoxos
o arquitecto tende a favorecer uma leitura purista do próprio edifício e a
secundarizar o sistema ornamental. Esta tendência, ou melhor, esta prática
conduz a uma terceira característica de certos «classicismos» – o
formalismo.

Eis, portanto, três elementos fundamentais do arquitecto tido como


«clássico»: ordem arquitectónica, proporção e a clareza formal.

1.2.2. «Maniera» e Maneirismo

É lugar comum dizer-se que na origem do termo Maneirismo está o


conceito polissémico de «maniera» vasariano. Giorgio Vasari utiliza o
termo «maniera» com diferentes conotações ao longo da sua biografia, seja
como «maneira individual» ou estilo, «maneira histórica», «maneira de um
determinado tipo» e «maneira distante do natural». Não obstante, a
terminologia caracteriza acima de tudo o elemento individual distintivo do
«estilo» de um sujeito artístico 34.

Nos inícios do século XX, a historiografia artística europeia separa


Renascimento e Maneirismo partindo de uma nova análise da pintura
quinhentista italiana. Como acontece com todas as grandes periodizações
estilísticas – como o Barroco – também o Maneirismo foi defendido como
corrente ou tendência estilística recorrente na História da Arte, por autores
como Hocke ou Blunt. Outros historiadores mantiveram um certo grau de
cepticismo, pretendendo manter a acepção de acordo com as suas
especificidades. Na sua máxima valorização, os estudos de Freedberg
chegaram a subdividir o período maneirista em quatro momentos, um
momento inaugural – «prima maniera» – um período áureo, outro tardio e
uma «contra maniera» final.

34
Sobre Vasari veja-se capítulo neste trabalho.

18
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Numa das mais recentes reflexões sobre o Maneirismo, Antonio


Pinelli define quatro pontos essenciais:
- «O Maneirismo quinhentista é definível, em síntese, como um
«stylish style», brilhante, artificioso, conceptual e aristocrático.
- As primeiras obras que apresentam de modo explícito e orgânico tais
características, aparecem em Roma, não na Toscânia, e nunca antes
da terceira década do século XVI.
- Precede a «Era da Maniera» uma fase que seria preferível não
denominar por «Primeiro Manieirismo» para não perpetuar antigos
equívocos e confusões interpretativas (tal como a «maniera» como
movimento fundamentalmente anticlássico).
- Esta fase a que chamaremos, por comodidade, de Experimentalismo
anticlássico, tem o seu cume no decénio de 1515-1525 (com
Pontormo e Rosso Fiorentino)» 35.

O ponto de partida para Pinelli continuam a ser as designadas Artes


Plásticas e, também aqui, a difícil questão da existência ou não de uma
arquitectura maneirista se fica pela global referência à dualidade entre
«natureza» e «artifício» e o gosto pelos jardins, grutas e «colpi di scena».

As características imputadas ao maneirismo pictórico estão hoje


perfeitamente identificadas. A subversão das regras e do esquema rígido da
pintura renascentista, quer em termos espaciais quer em termos pictóricos,
isto é, o desequilíbrio compositivo, o alongamento do cânone figurativo e o
uso de uma paleta não naturalista e de técnicas pictóricas diferenciadas. O
gosto pelo bizarro e pelo exótico, o refinamento excessivo e pelo
ornamento. O culto de novas temáticas e de uma arte interessada no
simbolismo, no esotérico e nos efeitos de surpresa. O abandono do
naturalismo favorecendo o estranho, o irreal e o grotesco. Em suma, uma
arte cortesã, intelectualizada e para um grupo de eleitos, nocturna e
melancólica e já não uma clara, optimista e total celebração da vida. Tudo
isto surge como consequência da relação conflituosa entre o artista e o
modelo mimético da arte, a Natureza, levando à defesa da «idea» como
campo primário do processo criativo e da valorização da imitação dos
«grandes mestres». Esta realidade conduziu os artistas maneiristas à criação
das academias de arte e à redacção de um longo corpo teórico que forneceu
ao século XVI italiano as bases para uma verdadeira teoria artística da arte.
Dentro das próprias contradições que o período maneirista encerra, o
pessimismo decorrente da fugaz «renascità» e as tendências para a
espiritualidade e o misticismo deram lugar à adopção e, em alguns casos,
submissão teórica e iconográfica da Contra-Reforma.

35
Antonio Pinelli, La Bella Maniera, pág. 51-52.

19
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

A historiografia artística sempre evitou tratar da problemática do


Maneirismo e a sua ligação com a Arquitectura. A título de exemplo, não
deixa de ser curioso que num dos trabalhos que sustentam a defesa da
existência de uma arquitectura maneirista – «Architettura in Italia. 1500-
1600» de Wolfgang Lotz – nem uma só vez o autor recorra ao termo para
caracterizar o período estilístico.
John Shearman em «Mannerism», publicado em 1967, alertava já
para a complexidade do problema – antes de referir os exemplos
tradicionais miguelangelescos da Biblioteca Laurenciana e da Capela dos
Médicis, em Florença: «É óbvio que se quisermos utilizar o termo
Maneirismo para a arquitectura, devemos fazê-lo de um modo ligeiramente
diferente. Ainda assim, se nos lembrarmos que Rafael e Castiglione tinham
a maniera como uma qualidade desejável de ser encontrada nos edifícios
antigos, torna-se claro que o seu uso neste contexto está igualmente
legitimado. Quando procuramos uma imposição semelhante da necessidade
artística sobre modelos recebidos, precisámos de um substituto para o
naturalismo, o ponto de partida nas artes figurativas.
Na arquitectura italiana de cerca de 1500, esta norma é
providenciada pelo vocabulário vitruviano, sobre o qual Bramante tinha
papel central. Com este ajustamento podemos procurar desenvolvimentos
que excedem a norma no que diz respeito ao refinamento, graça,
complexidade ou capricho. Uma obsessão como estilo pode de novo
triunfar sobre a funcionalidade. Á primeira vista, esta questão promete ser
clara no que concerne à arquitectura, uma arte essencialmente funcional, do
que na pintura ou escultura, mas a questão é de facto complicada» 36.

Um dos erros que usualmente se cometem quando se aplica o termo


Maneirismo à arquitectura, reside na tendência em optar por uma imagem
estereotipada do estilo em exemplos máximos como o Palazzo del Tè de
Giulio Romano ou o vestíbulo da Biblioteca Laurenciana de Miguel
Ângelo. Tende-se a ignorar também a limitação da arquitectura a uma
essencial funcionalidade quando se pretende, dentro de um espírito
puramente demonstrativo, aplicar à arquitectura as características do
maneirismo pictórico. Ora, faz sentido falar-se de arquitectura maneirista
quando os modelos italianos quinhentistas subvertem as normas impostas
pelo Alto Renascimento seja no abandono da ordem arquitectónica como
elemento estruturante da arquitectura em favor de uma natureza
ornamental, seja pela submissão do modelo arquitectónico ao ilusionismo
espacial. Todavia, outras características se lhe podem atribuir: a subversão
da disposição das ordens arquitectónicas em altura ; o retorno do ornato
excessivo ; a multiplicação e combinação de tipologias arquitectónicas ; o

36
John Shearman, Mannerism, pág. 70.

20
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

abandono da escala e o uso indiferenciado de dimensões não compatíveis ;


o retorno à experimentação arquitectónica ; aposta na construção de
arquitecturas descurando os aspectos de funcionalidade do espaço. Tudo
isto é visível na arquitectura italiana dos meados de Quinhentos, a par do
nascimento de um formulário que pretende seguir e fundamentar o
«classicismo».

Que a existência de duas vias em conflito – uma a favor do


experimentalismo e outra de natureza formalista – existiu em Itália durante
este período demonstrou-o Eugénio Battisti, quando identifica os
momentos essenciais em que a terminologia foi aplicada à crítica
arquitectónica. A designada terceira idade vasariana registou polémicas
contra a atitude inventiva tais como a «elaboração e contaminação dos
modelos (são célebres as várias acusações feitas a Serlio pela única razão
de ser o autor do manual mais usado para este processo associativo
baseado, por assim dizer, em variações de temas célebres) ; fuga às normas
lógicas da natureza, ou seja, dos cânones da arquitectura clássica ou como
os expõe Vitrúvio ou como são arqueologicamente. Críticas à liberdade
excessiva, independência, experimentação. Críticas à cornija do Palazzo
Farnese de Miguel Ângelo. Críticas aos grotescos, contra o uso exagerado
do rusticado nos palácios urbanos. Críticas a Bramante por produzir o
novo, à ars combinatoria classicista e intolerância tipológica e
proporcional maneirista. (se se entende o maneirismo como abuso
decorativo e antinaturalismo do desenho)» 37.

De facto, mesmo alguns dos arquitectos que abriram caminho para a


cristalização «classicista» do modelo arquitectónico renascentista, como
Vignola ou Palladio, não deixaram de praticar uma liberdade arquitectónica
na qual as suas regras teóricas pareciam não ter espaço. Tomem-se como
exemplo o Palazzo Farnese em Caprarola ou o Palazzo della Ragione em
Veneza. Não obstante, existe um enorme leque de arquitectos italianos
posteriores a Bramante cujas obras dificilmente podem ser catalogadas
como «classicistas», apostando muito claramente na experimentação e em
qualidades muito para além da clareza formal ou da manutenção de um
sistema proporcional determinado para a arquitectura – entre outros,
Baldassare Peruzzi (Roma), Bernardo Buontalenti (Florença), Michele
Sanmicheli (Verona e Veneza), Giulio Romano (Mântua), Galeazzo Alessi
(Génova e Milão), Bartolomeo Ammannati (Florença), Girolamo Genga
(Pesaro).

37
Eugenio Battisti, «Historia del concepto de Manierismo en arquitectura», Historia de la Arquitectura.
Antologia Critica, pág. 239.

21
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

1.3. Maneirismo e «Classicismo» e a circunstância


portuguesa

1.3.1. O «estado da arte» entre 1550-1650

Em 1550 encontramo-nos nos últimos sete anos do reinado de D.


João III. O período joanino foi marcado, grosso modo, por duas opções
arquitectónicas: num primeiro momento o desenvolvimento de um modelo
de raiz renascentista e, nos últimos anos, a «re-invenção» da tipologia das
«igrejas-salão» modernizada quer pela inclusão de ordem colossal de raiz
«tratadística», quer por um novo entendimento de escala arquitectónica.
A consubstanciação das experiências renascentistas encontram na
igreja da Graça de Évora e na igreja da Conceição de Tomar exemplos
máximos da sua representação arquitectónica na década de 40. Ligados
indirectamente à Coroa incluem-se igualmente os modelos coimbrãos
desenvolvidos pelo mestre de obras régio Diogo de Castilho em
consequência da reforma universitária.
Por sua vez, no final de 40, fruto da necessidade em desenvolver um
modelo de grande dimensão para as novas catedrais de Miranda do Douro,
Leiria e Portalegre, a opção recai nas «igrejas-salão», projectadas nesta
época mas apenas edificadas a partir da segunda metade do século XVI –
no caso de Miranda, existe «debuxo» desde 1547 mas em 1566 apenas está
edificado a altar-mor ; em Portalegre, a data na fachada de 1566 deve
corresponder ao início das obras que se prolongam até à década de 90 ; em
Leiria, se em 1551 existem projecto só em 1570 se inicia a construção do
corpo da igreja. Por detrás desta opção esteve certamente Miguel de
Arruda, a grande figura da arquitectura do reino até 1563. A ele se deve
imputar, com a anuência régia, a recuperação desta tipologia como prova o
seu projecto para a Misericórdia de Santarém, muito possivelmente o da
Sala dos Reis em Alcobaça, e as cartas de 1548 que o envolvem com Santo
Antão de Évora – antes da presença de Manuel Pires e Afonso Álvares de
1557.

Entre 1557 e 1580 entrámos no período sebástico. A primeira década


corresponde a dois períodos de regência até à maioridade de D. Sebastião –
D. Catarina (1557-1562) e D. Henrique (1562-1567). Nesta época
concretiza-se a edificação das «igrejas-salão» e o seu sucesso manifesta-se
pela sua continuidade por toda a região sul do território português,
geografia de acção dos arquitectos régios.
Uma das novidades da década é a «invenção» jesuíta – a Companhia
sempre foi muito apoiada por D. Henrique desde a sua instalação em
Portugal em 1540 – do modelo da «church-box» adoptado em Évora e em
Lisboa antes da chegada do novo modelo em cruz latina de raiz italiana. O

22
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

colégio do Espírito Santo de Évora fundado em 1554, só em 1566 encontra


uma planta definitiva aprovada em Roma, da autoria de Diogo de Torralva.
Por sua vez, a igreja de São Roque em Lisboa – fundada em 1553 e que D.
João III encomenda ao seu mais «estimado arquitecto» – vê apenas em
1567 abertas as suas fundações por Afonso Álvares para apenas em 1583
encontrar uma solução definitiva para a sua cobertura. A solução híbrida do
colégio de São Paulo em Braga, uma «church-box» com capela-mor
profunda, apenas arranca em 1579.
Não obstante, existe neste período uma preocupação cada vez maior
com a arquitectura militar, iniciada com D. João III a partir da criação do
cargo de «fortificador-mor» em 1548. 1562 é o ano da cerco e vitória em
Mazagão e durante praticamente toda a regência de D. Henrique verifica-se
um cada vez um maior surto de pirataria que conduz a reformas na defesa
essencialmente concentradas a sul, do Algarve a Lisboa. Durante esta
época começam a chegar a Portugal especialistas italianos em fortificação –
entre outros, Tomaso Benedetto da Ravena (1558), Pompeo Arditti e
Giovanni Maria Benedetti (1562).

Entre 1568 e 1578 estamos em pleno reinado de D. Sebastião. O


jovem monarca manifesta um profundo desinteresse pelas questões
relacionadas com a arquitectura dita «polida» – não considera, a título de
exemplo, prioritário a conclusão dos «paços régios» ou o apoio à edificação
de arquitectura religiosa. Quando se procura um templo verdadeiramente
representativo do seu reinado apenas se referencia a malograda igreja de
São Sebastião que, fruto das circunstâncias, nunca saiu dos alicerces. Nesta
perspectiva, para além da «church-box», nenhum modelo arquitectónico
novo se impõe. Recorde-se que o próprio projecto monumental para o
colégio e igreja jesuíta de Santo Antão, nunca concretizado, impunha uma
igreja de três naves.
D. Sebastião parece, por outro lado, interessado em continuar a
apostar na arquitectura militar. Com a morte de Arruda em 1563, o
monarca tem ao seu dispor António Rodrigues e Afonso Álvares, mas fará
tudo para contratar a tempo inteiro um engenheiro militar italiano. Em
1577 chega Filippo Terzi e no ano seguinte parte com o rei para Alcácer
Quibir.

O desastre africano abre caminho para a perda da independência e o


longo período filipino. Entre 1580 e 1640 Portugal está sob domínio
espanhol. Nas duas últimas décadas coincidem com uma enorme explosão
arquitectónica no reino e na cidade de Lisboa e com a manifesta influência
dos arquitectos italianos na arquitectura civil e religiosa – facto,
porventura, já inevitável a partir da década anterior, como manifesta a

23
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

própria evolução estilística demonstrada por arquitectos portugueses como


Jerónimo de Ruão ou Nicolau de Frias.

Filippo Terzi, os Jesuítas e os arquitectos formados na «aula de


arquitectura» vão fazer a arquitectura portuguesa alinhar definitivamente
pela matriz italiana. Tudo se inicia com o projecto do arquitecto italiano
para a igreja de São Vicente de Fora mas a história declara-nos a edificação
na capital do reino de três outras construções monumentais, dentro do
mesmo sistema planimétrico – São Bento da Saúde, Santo Antão e São
Domingos de Benfica. A existirem intactas na actualidade, a perspectiva
actual acerca da arquitectura do período filipino dar-nos-ia não só uma
visão estilística diferente da actual como uma imagem poderosa da
imposição do novo modelo arquitectónico – a sua fortuna é aliás, extensível
a todo o território nacional se nos concentrarmos na arquitectura jesuíta e
no sucesso que os modelos tridentinos representaram durante todo este
período.

1.3.2. A «opção maneirista», «italianismo» e «flamenguismo»

Contrariamente ao Humanismo que por todo o território europeu,


com a sua unidade linguística e fontes literárias comuns, uniformizou a
«renovatio antiquitatis», o renascimento artístico e arquitectónico é durante
praticamente todo o século XV um fenómeno tipicamente transalpino. É
sabido que alguma historiografia mais purista tende, inclusive, a ver a
«renascità» artística como um fenómeno que perde substância fora da
realidade italiana, ou melhor, dependente dos condicionalismos político-
culturais que, à época, só a Itália apresentava. Sem qualquer exagero,
podemos afirmar que nunca qualquer cidade europeia régia ou cortesã pode
mimetizar o ambiente de uma Florença, Veneza ou Ferrara quatrocentista e
muito menos a Roma quinhentista. As razões estão evidentemente ligadas
ao próprio ambiente estético gótico – quase inexistente em Itália – que
acompanhou em França, Alemanha, Castela ou Portugal os primeiros
momentos da cultura humanista. São raros os exemplos de completa
ruptura estilística na Europa coeva, verificando-se na maior parte dos
países fenómenos de continuidade e de assimilação da modernidade
renascentista italiana em tipologias autóctones mesmo durante os primeiros
anos do século XVI – sem embargo da existência de situações excepcionais
como o Palácio de Fontainebleau ou o Palácio de Carlos V em Granada.

É igualmente evidente que o período renascentista italiano foi breve


e efémero e que a gramática «moderna» assimilada pela maior parte dos
países europeus foi realizada de forma indirecta e tardiamente, ou seja, a
partir de um momento em que o próprio Alto Renascimento se eclipsava.

24
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

De igual modo, não é novidade para ninguém a importância da gravura


como fonte de renovação estética por todo território europeu, bem como a
dificuldade que existe, muitas vezes para além dos primeiros momentos, na
leitura acertada da tratadística produzida em Itália e que, na sua maior
parte, pretendia resolver questões não compreendidas pelas realidades
locais – o vitruvianismo é, nesta perspectiva, um exemplo máximo.
Todavia, a plantarização por toda a Europa da gramática renascentista, quer
através da estampa quer através dos tratados de arquitectura, fez-se já em
pleno ambiente maneirista se exceptuarmos zonas de directa influência ou
circunstâncias excepcionais 38. Uma das grandes contribuições para esta
realidade são os próprios escritos de Sebastiano Serlio. O teórico bolonhês
forneceu uma imagem do «antigo» demasiado subjectivista da realidade
arquitectónica italiana coeva mas que permitiu, pela primeira vez, fruto do
seu espantoso mas simplista entendimento, a réplica de alguns modelos e
tipologias de edifícios e ordens arquitectónicas – embora alguns dos seus
contemporâneos nunca tivessem visto com bons olhos a sua muito
particular visão da nova realidade construtiva e ela fosse até dispensável
para conhecedores directos da arquitectura italiana.

O que é recebido em Portugal durante grande parte do século XVI é


uma modernidade indirecta, primeiro de origem biscaínha e francesa e
depois através da tratadística de raiz italiana e dos primeiros contactos com
mestres arquitectos transalpinos. As primeiras experiências renascentistas
denotam claramente a dificuldade de interpretação estrutural de um modelo
arquitectónico verdadeiramente novo – dos colégios castilhianos à igreja da
Graça de Évora. Aquilo que se toma por arquitectura renascentista
portuguesa nos meados de Quinhentos é, a todos os títulos, «sui generis» e
tem mais a ver com a tentativa de construir um edifício «all’antico»,
dificilmente equiparável a qualquer modelo directamente recorrente da
península itálica, realidade que não invalida que a importância do projecto
arquitectónico tornado manifesto no «debuxo» e que o paradigma
vitruviano do arquitecto não estejam já perfeitamente compreendidos.

As primeiras experiências mais ou menos bem sucedidas sob o ponto


de vista da modernidade arquitectónica inserem-se já na segunda metade do
século XVI e coincidem com a divulgação dos textos serlianos. No entanto,
para o arquitecto português a própria noção de que existe um cânone
normativo para a arquitectura não tem absolutamente nenhum interesse
particular. A visão pragmática dos arquitectos portugueses – na linha da
tradição baixo-medieva – leva-os a considerar o estudo da geometria como
a questão central da teoria arquitectónica até Terzi e à «aula de
38
Como, a título de exemplo, a importação de um grande número de artistas das mais diversas áreas
promovida por Rudolfo II em Praga.

25
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

arquitectura» régia. O exemplo dos escritos atribuídos a António Rodrigues


são, neste sentido, paradigmáticos. Todo e qualquer corpo teórico sobre as
ordens arquitectónicas é posto de lado. O mesmo desinteresse sobrepassa
pelo historicismo da arquitectura e, todavia, cita-se e copia-se Serlio. O
mestre português não tem interesse nas discussões italianas que permitiram
definir uma «regra» para a arquitectura e muito menos a consciente prática
licenciosa a partir dela. Ora, o que verdadeiramente interessa ao mestre
português é dominar a linguagem e construir modernamente. A sua
criatividade leva-o a articular novas formas arquitectónicas. Aderindo à
gravura ou compreendendo cada vez melhor a ordem arquitectónica, a sua
imagem não abandona um certo grau de imperfeição. Todavia, no processo
de cópia e recriação, a sua atitude não está longe – embora inconsciente –
da dos arquitectos maneiristas que evitam todo e qualquer classicismo.

Tendo em conta todos os dados enumerados e para além da própria


circunstância europeia coeva, o termo Maneirismo encarna em si mesmo
uma plasticidade que permite caracterizar a situação arquitectónica e
estilística portuguesa durante este período. A sua própria ambiguidade
conceptual favorece a sua aplicação a modelos arquitectónicos de raiz
italiana fora do território transalpino, quer para determinados modelos
régios quer para determinadas opções «regionais». O experimentalismo das
décadas de 50 a 80 e a própria adopção da paternidade serliana conduzem a
arquitectura portuguesa a um contexto maneirista. De igual modo, a
arquitectura régia «pós-terziana» apresenta-nos soluções que ficam aquém
da rigidez conceptual que um «classicismo» arquitectónico português
definiu depois de São Vicente de Fora.

Nesta perspectiva, é importante fazer referência ao uso de dois sub-


conceitos, à falta de melhor termo, utilizados ao longo deste estudo – as
terminologias «italianismo» e «flamenguismo».

Com maior acutilância cada vez que nos aproximamos do final do


século XVI, a estrutura planimétrica e altimétrica dos edifícios religiosos é
cada vez mais «italianizante». Ao nível da planta, com o modelo
«tridentino» da cruz latina e, ao nível do alçado, com o abandono da
partição em naves e da coluna arquitectónica em favor da nave única com
sistema pilastral, marcação de transepto e capela-mor muito profunda. Este
modelo sintetista da arquitectura é evidentemente de raiz italiana e alcança

26
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

sucesso por todo o território nacional, suplantando o modelo da «igreja-


salão».

Por sua vez, também ligada a esta matriz maneirista está o apego por
um determinado formulário ornamental de raiz nórdica que se impõe no
ambiente cortesão e em Coimbra com a família Ruão e no noroeste
português durante todo o século XVII, caracterizado por George Kubler por
«flamenguismo». Se o modelo arquitectónico régio suprimiu grande parte
da estrutura ornamental proposta por Jerónimo de Ruão em favor de uma
leitura mais clara das superfícies arquitectónicas – embora continuando
presente essencialmente na matriz geométrica das tarjas arquitectónicas,
estuques ou superfícies retabulares – ao centro e especialmente a norte do
país, essa mesma linguagem aplicada aos caixotões das abóbadas e às
fachadas dos edifícios promoveu um verdadeiro gosto de carácter regional
oposto á severidade da arquitectura régia, sempre aplicado a planimetrias
também elas «italianizantes».

1.3.3. O «classicismo» nacional

Alguma historiografia utilizou, pontualmente, o termo «clássico» e


«classicismo» para definir alguns modelos arquitectónicos quinhentistas
portugueses, relacionando esta questão com a valorização do designado
«estilo chão». Partiu-se da ideia de que nos últimos anos do reinado de D.
João III existiu uma espécie de abandono dos valores renascentistas. De
acordo com as teses kublerianas, Rafael Moreira afirmou que será em
Miguel de Arruda «que radica a viragem da arquitectura portuguesa, nítida
após 1560, no sentido de contenção de formas, que constitui o que
podemos chamar o maneirismo nacional» e que «esse gosto, que pode ser
entendido como uma reacção à moda clássica estrangeira, era do agrado
popular e estava presente no espírito do monarca» 39. O mesmo historiador
vê a evolução da arquitectura nacional de um «progressivo desvio do
classicismo para um funcionalismo pobre sob inspiração das artes
militares». Anos depois, revendo um pouco a sua posição, considerava-se
que o «estilo chão» «representa a nacionalização do classicismo» e que
Miguel de Arruda – a principal figura por detrás dos projectos tidos como
tal – «não compreendia o clássico como valor absoluto» 40.

Esta posição merece ser alvo de alguma reflexão. Em primeiro lugar,


só se pode falar de classicismo depois de um entendimento consciente da
linguagem formalista imposta no Alto Renascimento italiano decorrente
das discussões em torno do «vitruvianismo». Até aos finais do período
39
Rafael Moreira, «A arquitectura militar», pág. 144.
40
Veja-se Rafael Moreira, «Arquitectura: renascimento e classicismo», pág. 356-357.

27
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

sebástico não existe nenhum edifício nem nenhum texto escrito que
demonstre a existência em Portugal de um conhecimento efectivo e
consciente da estética clássica transalpina. As experiências renascentistas
da primeira metade do século XVI não passaram de devaneios eruditos e
experimentalistas sem continuidade e muito pouco conformes com a
arquitectura italiana coeva. O próprio D. João III teria condições ideais
para, por exemplo, adaptar às novas catedrais um modelo «clássico» mas,
manifestamente, não o quis ou não o pode desenvolver.
Em segundo lugar, o uso da nomenclatura «anti-clássico» ou
«aclássico» para a definição das «igrejas-salão» joaninas 41 pressupõe essa
anterior consciência e prática do «clássico», no primeiro caso como reacção
e no segundo como suspensão. Ora, tal não aconteceu e, nesta medida, em
termos teóricos é uma impossibilidade «nacionalizar» o classicismo
quando o seu modelo só aparece de forma consciente e concreta a partir dos
finais do século XVI. Em terceiro lugar, a penetração tardia de uma
arquitectura de pendor «clássico» – que não da consciência de modernidade
da figura do arquitecto e a prática do «debuxo» – encontrou nas escolhas
tipológicas arquitectónicas uma condicionante real para a sua introdução
em território nacional.

De facto, Miguel de Arruda parece ser a figura fulcral por detrás dos
modelos da «igreja-salão» pensados a partir dos finais da década de 40 e
edificados durante este período. A par desta tipologia, os jesuítas
encontram na «church-box» um modelo alternativo para os seus templos
antes de se impor uma matriz de raiz italiana de planta em cruz latina com
transepto e capela-mor. É um dado concreto que as planimetrias
renascentistas projectadas na primeira metade do século XVI não se
impuseram como modelo oficial e nacional – a escala «humana» dos
modelos não foi tida em conta na dignidade monumental que se pretendia
para as novas catedrais. Se pensarmos nas duas grandes propostas para o
templo cristão imediatamente anteriores a São Vicente de Fora, os
projectos não concretizados para São Sebastião e Santo Antão, em Lisboa,
pouco tinham a ver com o modelo «clássico».

Poderemos falar de um «classicismo» nacional apenas a partir do


projecto planimétrico e altimétrico de São Vicente de Fora, da autoria de
Filippo Terzi. Incorpora as características essenciais de uso da ordem
arquitectónica – embora privilegiando o pano de parede em favor da coluna
– verso sistema proporcional, dentro da prática da arquitectura contra-
reformada e monumental considerada à época como modelo de síntese da
arquitectura «classicista». De natureza sintetista e centrando-se nas

41
Usado por exemplo em Horta Correia, Arquitectura Portuguesa..., pág. 46.

28
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

características que privilegiam a leitura espacial da arquitectura, o templo


lisboeta surge como paradigma de uma era verdadeiramente alinhada com a
prática arquitectónica quinhentista italiana.
A fortuna do modelo «classicista» encontra na cidade de Lisboa uma
prática monumental que se estende a São Domingos de Benfica e aos
malogrados templos de São Bento da Saúde e de Santo Antão, o mais rico e
«italiano» de todos. Fora da capital do reino, os Jesuítas estenderam a sua
prática a Coimbra e ao Porto, seguidos dos beneditinos e dos carmelitas,
com variantes próprias e, em alguns casos, aplicadas ao «gosto regional».

1.3.4. Da utilidade do conceito de «estilo chão» como supra-estilo

«Ao olharmos as igrejas-salões portuguesas, quer as consideremos


obra de um só autor, quer de vários, o que parece mais provável, notamos
que o aspecto essencial é de que se tratava de obras de gosto sóbrio que
anunciavam o estilo desornamentado de Espanha, precedendo-o de uma
década, associadas a arquitectos militares como, por exemplo, Afonso
Álvares e Miguel de Arruda. Afonso Álvares foi contemporâneo de Juan
Bautista de Toledo e de Francisco Paciotto. Estes dois homens
introduziram na Península Ibérica um gosto sóbrio, racional e despojado,
na prática da arte da fortificação. O equivalente das igrejas-salões
portuguesas é o Escorial» 42.
Este parágrafo é, certamente, um dos mais marcantes para a teoria
historiográfica portuguesa das últimas três décadas. Por várias razões. A
primeira, diga-se sem receios, uma razão de natureza «nacionalista» que
fornecia a Portugal uma oportunidade única de liderar uma suposta
vanguarda no que diz respeito à recepção da modernidade estilística
peninsular. Não obstante, permitiu perenizar duas importantes linhas de
pensamento – a ideia de que o despojamento encarnado pelo «estilo-chão»
se manteve em linha de longa duração, como supra-estilo, e a ideia de que
os seus principais cultores foram os arquitectos militares.
Em maior ou menor medida, este vínculo foi desenvolvido pela
historiografia portuguesa e contribuiu para abrir importantes campos de
investigação – essencialmente os estudos acerca da arquitectura militar –
mas radica num falso posicionamento vendo a arquitectura partindo de uma
base se se quiser «estética», de gosto ou tendência para a desornamentação
arquitectónica, e não de uma base «estilística», ou seja, de um estilo com
estrutura própria e objectiva.

Nunca a historiografia portuguesa fez referência ao posicionamento


de George Kubler no que concerne às teorias historiográficas da Arte e da

42
George Kubler, A Arquitectura Portuguesa Chã..., pág. 43-44.

29
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Cultura. Na sua obra A Forma do Tempo, publicada em 1962, o autor


opõem-se à visão de ciclos históricos regulares como o Renascimento, o
Barroco, o Romantismo defendendo a ideia de que o devir das sequências
formais não deve espartilhar-se em noções como a de «estilo». Segundo
Mario Perniola, Kubler «introduz na análise histórica uma preocupação
perfeitamente filosófica: a dinâmica no sentido de transcendência que
constitui o traço característico de qualquer estética da forma, manifesta-se
aqui como enquadramento da coisas singular numa série indivisível que a
mantém ligado às coisas similares que a antecedem e a seguem, e bem
assim como uma emancipação da cronologia empírica» 43. Com isto
queremos dizer que o uso da tese kubleriana de uma história aberta, de que
a fractura ou a descontinuidade cultural é uma ilusão não pode ser
equacionada num cenário em que se admite a existência de períodos
histórico-artísticos concretos.

Sem colocar em causa a central importância do estudo kubleriano,


não deixa de ser verdade que este assenta, «in modu» e «in factu», numa
falsa perspectiva se partirmos das periodizações estilísticas aceites pela
historiografia europeia. O que diferencia um templo greco-romano entre si
ou um templo românico de um barroco é a junção dos dois componentes
essenciais da arquitectura: planimetria e altimetria. Analisando-se a planta
e os alçados encontra-se a sua estrutura orgânica, a sua substância
objectiva, a sua razão de ser. Ora, a posição kubleriana faz equivaler as
«igrejas-salão» ao Escorial partindo do «desornamento» arquitectónico,
portanto, de uma razão «estética», e desconsiderando o fundamento
«estilístico» – a planta e alçados. A utilização da ordem arquitectónica por
si só não implica necessariamente uma unidade estilística entre dois
edifícios. Pensa-se não no esqueleto constitutivo mas no revestimento
carnal arquitectónico.

Não cremos que George Kubler tenha formulado esta tese apenas
tendo em conta este aspecto de simples desconstrução formal. A
perspectiva kubleriana, chamando à razão a arquitectura militar – de
Paciotto a Arruda – pretende com este facto justificar a característica
«desornamental» da arquitectura ibérica pela visão, apego e prática dos
profissionais da arquitectura à defesa de uma geometria pura. Ou seja,
dentro das teorias humanistas em que o «paradigma vitruviano» do
arquitecto se revela, em último grau, no seu conhecimento da essência da
arquitectura como «número», como projecto teórico posto em prática pelas
leis da matemática aplicada. Esteja ou não consciente esta perspectiva,
fosse ou não praticada uma arquitectura dita «chã» decorrente do

43
Mario Perniola, A estética do século XX, pág. 69.

30
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

«paradigma vitruviano» do arquitecto, continua a faltar o elemento


essencial à arquitectura portuguesa do período sebástico – o esqueleto
«moderno» (planimetria e altimetria). A comparação entre Herrera e
Paciotto / Arruda e Álvares não é valida na medida em que os primeiros
conhecem o estilo «clássico» e despojam-no enquanto os segundos
praticam um modelo arquitectónico longe das tipologias «clássicas». Neste
particular, as provas pétreas e documentais fornecem-nos razões sólidas
para tal – desde as ténues experiências renascentistas do período joanino,
ainda não forte e cabalmente documentadas, à fraca ou diminuída visão do
«antigo» que, por exemplo, um contemporâneo relevava no que diz
respeito a um Afonso Álvares.

Em Portugal, o facto de o «paradigma vitruviano» do arquitecto se


impor logo em meados da centúria – fruto da base humanística – e de
existir uma tradição erudita muito ligada à importância do conhecimento
matemático e suas aplicações – fruto da raiz «marítima» – que certamente
forneceu aos mestres próximos do ambiente cortesão uma base importante
de apoio, nenhum edifício construído em Portugal até à década de 80
manifesta uma prática arquitectónica «classicista» tal como nenhum texto o
proclama, defende ou compreende.

Por todas estas razões é hoje importante questionar o papel e a


utilidade que o termo «estilo-chão» tem como definidor da arquitectura
portuguesa e da sua evolução durante os século XVI e XVII. Depois de a
historiografia portuguesa expurgar do seu seio as primeiras experiências
renascentistas e maneiristas dos meados de Quinhentos, a arquitectura
monumental de raiz italiana dos finais da centúria e primeira metade do
século XVII, depois de desmontada a ideia de que a arquitectura jesuíta
portuguesa verdadeiramente edificada não foi projectada por Afonso e
Baltasar Álvares, esvaziando a sua importância, resta-nos questionar o
actual estado do conceito – uma falsa questão ou o perenizar de um
equívoco ?

31
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

32
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

De Pedreiro a Arquitecto

33
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

34
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

2.1. O conceito de Arquitecto da Antiguidade Clássica à


Idade Moderna

2.1.1. A Antiguidade Clássica

2.1.1.1. A origem do étimo «arquitecto»

A origem grega terminológica e conceptual de arquitecto


corresponde ao étimo latino «architecton», palavra composta por «archi»
(director de, chefe de) e «tecton» (construtor) 44. A génese mitológica
identifica-o com a figura de Dédalo, os Poemas Homéricos – a base
formativa da educação e cultura gregas – relacionam-no com o construtor
naval ou de habitação enquanto que o patriarca da História, Heródoto, no
século V a.C., usa-o para se referir aos grandes construtores do mundo
antigo, como Eupalinos de Mégara, o célebre edificador do aqueduto de
Samos. Este conceito é entendido de forma ampla e se para Eurípides o
arquitecto é aquele que elabora um projecto, para Demóstenes define
aquele que administra um teatro 45.

Não obstante, na Antiguidade Clássica existe já a consciência de que


o «architecton» é aquele que comanda a obra por oposição ao «lithologos»,
o pedreiro, aquele que executa verdadeiramente o trabalho. Isto mesmo nos
diz Platão, na Política, quando o vê como chefe de obras que se distingue
pelo seu saber e não pelo trabalho manual, bem como Aristóteles, na
Metafísica, quando distingue «architecton» de «cheirotecnnes», ou seja,
daquele que exerce um trabalho manual 46. Se o conceito de arquitecto é
abrangente, também a Arquitectura não é considerada em sentido restrito e
tanto designa a construção de edifícios («aedificatio») como de máquinas
(«machinatio»), tanto a construção de barcos como a construção de
relógios («gnononice»).

2.1.1.2. O «Kánon» da Arte e da Arquitectura

O conceito fundamental que rege toda a arte do mundo antigo é o


conceito de «symmetria», sinónimo de concordância e de proporção, onde
se consubstancia a harmonia. O mundo clássico crê que certas proporções
são perfeitas, entende o belo como uma propriedade objectiva das coisas e,
neste sentido, a «symmetria» é propriedade exclusiva da Natureza –
entendida no seu todo e da qual o microcosmos é a «figura humana» – e

44
A terminologia grega transita para a linguagem latina em três variantes distintas, como «architecton»,
«architector» expressão mais rara e de época mais tardia, e «architectus», de sentido mais lato.
45
Louis Callebat, «Architecte: histoire d’un mot», Histoire de l’Architecte, pág. 11.
46
Cfr. Louis Callebat, «Architecte: histoire d’un mot», pág. 12.

35
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

não da Arte. A procura de uma regra para toda a arte, ou seja, de um


«kánon», radicava na raiz mais profunda da cultura grega assente no
pensamento pitagórico de uma ordem criadora do Cosmos como embrião
do Todo.
No que diz respeito às artes tal como hoje as entendemos, os
arquitectos adaptaram este conceito ao seu campo de acção, estabelecendo
formas canónicas baseadas em princípios matemáticos e já no século V a.C.
as aplicavam nas construções e as traduziam teoricamente. Sabe-se que, por
exemplo, Sileno redigiu um texto intitulado «De symmetriis Corinthiis»,
Fíon o «De aedium sacrarum symmetriis» e que mesmo Ictinos, o
construtor do Parthenon, se dedicou a plasmar as suas teorias no papel. Este
hábito estendeu-se por todo o período antigo e tem semelhanças com a
própria produção de textos teóricos para o campo da pintura e escultura,
tomando por base o princípio antropométrico 47.

O entendimento das proporções matemáticas permitia que através de


um mero fragmento de um triglifo ou da metade do diâmetro inferior de
uma coluna fosse possível calcular a totalidade dimensional de um edifício
no período clássico grego. Referimo-nos, claro está, ao célebre «princípio
da secção áurea» que assentava em módulos que serviam de medida para
templos ou teatros. Todavia, é necessário apontar o facto de os criadores
gregos não se ficarem por uma posição fechada e ortodoxa das regras
canónicas. O «kánon» é sempre flexível na medida em que existe a
preocupação de evitar a rigidez matemática artificial, levando mesmo o
arquitecto à introdução de determinados artifícios construtivos para corrigir
as deformações ópticas criadas pelo globo ocular do observador e, assim,
tornar a sua contemplação mais harmoniosa para o olhar, preocupado como
estava com questões estéticas relacionadas com a visualidade – o «entasis»
da arquitectura clássica grega é o exemplo máximo desta preocupação e
não pode ser redutível a um mero artifício técnico.
A própria Escultura, por excelência a expressão artística do período
clássico, segue os mesmos princípios matemáticos na construção dos
célebres cânones de Policleto e posteriormente de Lísipo, não denunciando
nenhum uso dogmático do módulo. Aliás, o Dorífo de Policleto – o
primeiro cânone da escultura grega – tinha um carácter antropométrico não
para «facilitar o tratamento composicional, de blocos de pedra ou de
superfícies de paredes, mas exclusivamente para averiguar as proporções
objectivas do ser humano natural» 48 procurando a regra mas também a
beleza. A mesma raiz geométrico-matemática encontra-se nas palavras de
Plínio sobre Panfílo, o mestre de Apeles: «Foi o primeiro pintor com uma

47
W. Tatarkiewicz, Historia de la estética, Tomo I, pág. 280.
48
E. Panofsky, «A história da teoria das proporções humanas como reflexo da história dos estilos», O
significado das artes visuais, pág. 53.

36
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

formação esmerada em todas as ciências, sobretudo na aritmética e


geometria, sem a qual, segundo afirmava, era impossível aperfeiçoar a
arte» 49.

Todavia, como bem resumiu Giulio Carlo Argan, a Arquitectura não


foi objecto de uma preocupação específica, pelo menos em comparação
com a Escultura e a Pintura: «A principal razão deste fenómeno parece
consistir na dificuldade de distinguir a actividade artística da arquitectura,
da actividade utilitária da construção. Aristóteles considera a arquitectura
como uma arte útil, na medida em que o produto arquitectónico por
excelência, a casa, protege o Homem das intempéries. O facto de a
arquitectura não ser uma arte imitativa impediu que fosse considerada
como sendo da mesma natureza da pintura e escultura. Quanto muito
acrescentou-se à obra útil um valor de beleza que consiste no ornamento»
50
.
Neste sentido, é necessário recordar que não existe na Antiguidade
Clássica a compreensão de uma essência estética da arte. O étimo
correspondente a arte é «techne» que significa ofício, habilidade, situando-
se no terreno do «fazer». Será através da polissemia do termo «techne» que
transitará para o latim «ars» e para a actual «arte» mas a fundamentação da
arte como «bela-arte» passará pelo conceito de «mimésis» que significa
mímica, imitação, com raiz religiosa e teatral 51. A valorização que
Aristóteles promove no que diz respeito ao conceito de arte como produção
consciente, baseada num determinado grau de conhecimento, será
determinante e perdurará séculos mas, na sua época, não deixa de ser uma
especulação periférica e radical 52. O elemento estético por excelência será
a ordem arquitectónica e mais especificamente a coluna onde as suas
proporções antropométricas justificam o seu adstritamento à «mimesis»
como carácter artístico 53.

49
Rudolf e Margot Wittkower, Nascidos bajo el siglo de Saturno, pág. 14.
50
Lionello Venturi, História da crítica de arte, pág. 55.
51
Veja-se F. E. Peters, Termos filosóficos gregos, pág. 143-146.
52
Aristóteles insiste no factor intelectual da arte e no facto de não dispensar regras gerais e
conhecimentos específicos, concebendo-a de maneira dinâmica, atribuindo maior importância ao acto de
produção que ao objecto produzido. Acerca do conceito de «mimesis» consulte-se, a título de exemplo,
Valeriano Bozal, Mimesis. Las imágenes y las cosas, pág. 65-95.
53
Lionello Venturi, História da crítica..., pág. 56.

37
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

2.1.1.3. A posição social do arquitecto e o «mito do artista»

Tal como a Pintura e a Escultura, também a Arquitectura é tida como


ofício mecânico não devendo confundir-se a verdadeira posição social dos
artistas da Antiguidade Clássica com a construção dos «mitos» em torno de
algumas personalidades formadoras da expressão artística ocidental.
Autores como Platão ou Xenofonte depreciam estes ofícios tal como
quaisquer outros resultantes de trabalho manual. Plutarco afirma
claramente que se disfruta a obra e se desaprecia o seu autor enquanto
Luciano, ele mesmo iniciado na prática escultórica, desaconselha-a aos
jovens. Nesta perspectiva, a «cultura grega distingue claramente a obra de
arte como objecto independente e o artista que a produz» numa sociedade
cultural onde chegou a ser explicitamente proibido qualquer manifestação
de autoria – como aconteceu com Fídias, condenado por se auto-retratar no
escudo da deusa Atena 54.
Esta visão pejorativa do «mundo mecânico» perdurará séculos e
podemos dizer, com toda a certeza, que «a posição social do artista na
cidade-estado grega era ainda muito limitada ; caracterizava-se pela falta de
independência, metade dos direitos perante a lei e um apreço invulgarmente
baixo pela sua importância» 55, isto pela razão de existir «uma estranha
dicotomia entre o processo de individualização dos artistas, que ocorreu em
relativamente pouco tempo, e a quase total indiferença do público» 56.
Diversas vezes se usa a imagem de Hefesto como um deus rude e
denegrido pela sua própria profissão e se extrapola para todo o ofício
mecânico, preconceito transmitido desde os tempos primitivos e codificado
nos textos homéricos. Logo, o silêncio em torno do artista tinha uma causa
social, pois o artista era um trabalhador mecânico, e uma causa filosófica,
apoiada na tradição grega 57.

Se Platão recusava às artes plásticas o «daimon» fecundador da mais


valia da Poesia, será exactamente por aqui que se iniciará, embora num
círculo muito restrito, uma mudança de atitude mais favorável para as artes
no período Helenístico: «Os fragmentos das primeiras biografias gregas de
artistas, que podem ser reconstruídas a partir de citações posteriores,
nascem todos num período em que a figura do artista mal emergira da
esfera do mito ; conservam a concepção e muitos elementos dos mitos, e

54
Moshe Barash, Teorías del arte. De Platón a Winckelmann, pág. 33. Esta ideia não impediu artistas
como Teodoro de Samos de fundir o seu autoretrato em bronze, o que pode apontar para uma consciência
do seu valor e personalidade. A outro nível, ainda hoje é impossível avaliar se as assinaturas que
encontrámos na cerâmica grega representam uma consciência de autoria. Cfr. Rudolf e Margot
Wittkower, Nascidos bajo el siglo..., pág. 14.
55
Ernst Kris e Otto Kurz, Lenda, mito e magia na imagem do artista, pág. 44.
56
Rudolf e Margot Wittkower, Nascidos bajo el siglo..., pág. 14.
57
Cfr. Rudolf e Margot Wittkower, Nascidos bajo el siglo…, pág. 16.

38
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

transmitem-nos para a posteridade» 58. A construção das «lendas» em torno


de artistas como Lísipo, Apeles ou Parrásio resultou na identificação da
criatividade artística com a imaginação ou «fantasia», vista como uma
faculdade do pensamento ou como uma «imagem inata que reside na
alma».
A partir daqui começa a surgir «uma mudança significativa na
apreciação dos pintores e escultores, que se tornou mais clara quando os
artistas gradualmente começam a ser objecto de biografias. Nos escritos de
Xenócrates e Dúris, tanto quanto conseguimos reconstituí-los, podem
detectar-se sinais desta nova apreciação dos artistas» valorizados e em
contacto directo com os ambientes principescos 59. No século III a.C.
autores como Dión de Prusa, Filóstrato ou Filóstrato, «o novo», identificam
já a «fantasia» como a raiz da arte enquanto que o escultor Calístrato é o
primeiro autor a equiparar a Escultura à Poesia, isto é, a «techne» à
«mania», furor divino de que falava Platão 60 – só neste sentido é que se
forjaram arquétipos como os dos pintores Parrásio e Apeles ou dos
escultores Policleto ou Lísipo.
Todavia, este facto não passa pela Arquitectura e a razão poderá
encontrar-se no facto de, por um lado e contrariamente a alguns pintores e
escultores, os arquitectos nunca se terem sido vistos como heróis populares
61
e, por outro, a definição da arquitectura no campo da «utilidade» e não
no campo do «belo» ter dificultado essa mesma valorização.

2.1.1.4. A Arquitectura segundo Vitrúvio

Os textos gregos acerca da Arquitectura não chegaram aos nossos


dias. Existe, todavia, um testemunho da forma como o conceito foi definido
genérica e eruditamente aos tempos do período romano. Referimo-nos ao
tratado de Marco Lúcio Vitrúvio Polião, datável do século I nos finais da
República romana 62.
O De architectura é mais um discurso que um tratado. Composto por
dez livros, divide-se genericamente em três partes – os primeiros oito livros
são dedicados à construção, o livro nono ao movimentos dos astros e
construção de quadrantes e relógios (Gnomónica) e o livro décimo à
construção de máquinas para edifícios e para a guerra (Mecânica).

58
Ernst Kris e Otto Kurz, Lenda, mito e magia…, pág. 31.
59
Cfr. Ernst Kris e Otto Kurz, Lenda, mito e magia…, pág. 44-45.
60
Moshe Barasch, Teorías del arte..., pág. 40-41.
61
Lionello Venturi, História da crítica..., pág. 56.
62
A historiografia artística discute se Vitrúvio seria verdadeiramente um arquitecto de profissão ou uma
espécie de funcionário dedicado a assuntos teóricos, pertencente ao campo dos «scribae» e ligado ao
poder político e governativo.

39
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Representa não uma visão «romana» da arte da arquitectura mas


ainda um entendimento arquitectónico ligado ao paradigma greco-
helenístico, embora já evoluído no que diz respeito à valorização do
profissional e da arte da arquitectura. De facto, o paradigma vitruviano do
arquitecto será aglutinante de um novo conceito e sentido profissional. No
Capítulo 1º do Livro I, Vitrúvio enumera toda uma série de conhecimentos
enciclopédicos indispensáveis para a formação do arquitecto. A sua área de
intervenção estende-se de uma longa lista de conhecimentos teóricos à
«praxis» arquitectónica, resultando o seu estado incompleto se uma destas
componentes não for desenvolvida nem tida em causa. Ao arquitecto é
«conveniente que seja instruído, hábil no debuxo, competente em
geometria, leitor atento dos filósofos, entendido na arte da música,
documentado em medicina, ilustrado em jurisprudência e perito em
astrologia e nos movimentos do cosmos» 63.
Depois da definição conceptual, Vitrúvio passa a explicar a
específica validade de todas as áreas de conhecimento. O desenho permite-
lhe «formar uma imagem da obra a realizar», a Geometria «facilita a
prática mediante o uso da regra e do compasso, com os quais facilmente se
concretizam os desenhos dos edifícios», a Óptica o saber essencial para
conhecer e distribuir os pontos de iluminação e, para tudo, os cálculos
aritméticos são essenciais. A História fornece-lhe argumentos para
defender as opções da sua obra ao nível estilístico, a Filosofia «aperfeiçoa-
o, outorgando-lhe uma alma generosa» e confere-lhe carácter – para além
do seu intenso conhecimento da Natureza – a Música permite-lhe
familiarizar-se com «a ciência matemática dos sons e, em consequência,
ser capaz de tensar correctamente as balestas, catapultas e máquinas de
guerra», a Medicina informa-o acerca do terreno e do clima do local onde
se pretende edificar e a Astrologia permite-lhe «conhecer os pontos
cardeais: oriente, ocidente, meio-dia e setentrião; e também a estrutura do
céu, dos equinócios, dos solestícios e dos movimentos orbitais dos astros».

Em síntese, o paradigma vitruviano considera que a «ciência da


arquitectura é tão complexa, tão esmerada, e inclui tão numerosos e
diferenciados conhecimentos que os arquitectos não podem exercê-la
legitimamente a não ser a partir da infância, avançando progressiva e
gradualmente nas ciências citadas e alimentados pelo conhecimento
nutritivo de todas as artes, alcançam o supremo templo da arquitectura»
64
.

63
Vitrúvio, De arquitectura, Livro I, Cap. 1, pág. 59. Em todas as citações de Vitrúvio, utiliza-se e
traduz-se a partir da versão castelhana de Los diez libros de Arquitectura de Jose Luis Oliver Domingo.
64
Vitrúvio, De arquitectura, pág. 64.

40
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

A sua obra é ampla, polifacetada e enciclopédica e o seu eclectismo é


representativo do Helenismo e da cultura romana por extensão e
aculturação. Todavia, as medidas vitruvianas não correspondem aos
monumentos romanos e o seu texto aponta-o claramente como defensor da
corrente clássica face ao «barroquismo» helenístico, tendo em conta a
heterogeneidade estilística da época. Apresenta novidades como uma
modernização do Dórico – hipótese meramente teórica que nunca passou
do papel – mas a sua mais valia assenta bem mais na síntese que faz dos
conceitos engendrados pelo mundo clássico antigo. Se ao arquitecto é
necessária a reunião de capacidades inatas («natura»), de conhecimento
teórico («doctrina») e experiência prática («usus»), a arquitectura reúne em
si os três elementos constituintes básicos e clássicos – a «firmitas»,
«utilitas» e «venustas» serão as categorias formadoras de todo um conceito
de arquitectura que perdura até os nossos dias. Contudo, Roma nunca
admitiu que a Arquitectura, a Escultura ou a Pintura se juntassem às artes
liberais nem promoveu uma revalorização da posição social do arquitecto, e
esta visão prolongar-se-á por todo o milénio medieval.

41
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

2.1.2. A Idade Média

2.1.2.1. A herança do mundo antigo

As declinações latinas de «architecton», «architectus» e


«architector» mantêm-se durante todo o período medieval, sendo que ao
longo da Alta Idade Média a herança da Antiguidade é mais marcante no
que diz respeito à cultura e literatura do que à arte e sua prática. Neste
sentido, as terminologias mantêm-se definindo aqueles que «projectam e
que criam, que têm responsabilidades directivas». Como afirma Louis
Callebat, falar de «architectus» no período medieval é fazer referência mais
a uma «competência» que a uma profissão 65. Uma das expressões mais
utilizadas é a de «sapiens architectus» salientando o saber fazer e o
engenho do arquitecto que traça e dispõe as fundações de um edifício. Este
é o entendimento de Santo Isidoro de Sevilha, no seu Libri Etymologiarum
– obra do século VII – que considera o arquitecto como aquele que «dispõe
as suas construções sobre as fundações» não deixando de fazer alusão à
tradição clássica, quando recorre à lenda de Dédalo como o primeiro
arquitecto ou quando utiliza a tríade vitruviana da «dispositio» que traduz
por planta, «constructio» como o levantamento das paredes e «venustas»
que interpreta já não como proporção mas como ornamento 66. Durante os
séculos VIII e IX o designado «renascimento carolíngio» não deixou de
contribuir para esta linha de continuidade, incluindo nos seus programas de
estudo ideias clássicas e vitruvianas, especialmente no que diz respeito à
Música e à Arquitectura 67.

Amplamente conhecido durante o período medieval, o texto


vitruviano revelou-se completamente inútil sob o ponto de vista da sua
aplicabilidade à prática arquitectónica. Embora existindo no trabalho
medieval um formulário básico deduzido de escritos antigos, «a Idade
Média não conhece, em linhas gerais, a função do arquitecto tal como é
proposta por Vitrúvio como depositário da confiança do cliente e fora do
trabalho colectivo» 68. Um dos vários exemplos do eco, restrito e marginal,
dos escritos vitruvianos encontra-se aquando da construção do terceiro
templo de Cluny, onde se adaptam por analogia conhecimentos musicais
transpostos para a arquitectura, mas no mesmo sentido do Speculum Maius
em que Vicente de Beauvais retoma a teoria vitruviana das proporções
humanas, isto é, mais como uma fonte cultural e filológica do que como
65
Louis Callebat, «Architecte: histoire d’un mot», pág. 14.
66
Spiro Kostof, «The architect in the middle ages, east and west», The architect. Chapters in the History
of the Profession, pág. 71.
67
Cfr. W. Tatarkiewicz, Historia de la estética, Tomo II, pág. 97-104.
68
Francesco Pellati, «Vitruvio en la Edad Media y en el Renacimiento», História de la Arquitectura.
Antologia Crítica, pág. 129-130.

42
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

modelo arquitectónico. A arquitectura a que Vitrúvio nos reporta pertence


agora aos «bestiários» medievais da mesma forma que a base da arte da
arquitectura, a Geometria, já não assenta num cânone fruto de um
pensamento especulativo do mundo, mas sim num meio puro que cumpre
uma determinada função.

Na Idade Média é recorrente a imagem do «Deus arquitecto», tal


como a do «Deus escultor» ou «Deus pintor». Todavia, é importante
ressalvar que não se procede a uma valorização da arte em si mesma, nem
se compara o artista ao «Deus artifex». A filosofia medieval utiliza-a para
facilitar a compreensão da raiz divina do mundo e, por extensão, de
qualquer arte ou ofício. Isto mesmo se torna claro quando São Tomás de
Aquino se vale do exemplo aristotélico do arquitecto dizendo que a «casa
que pré-existe no espírito do arquitecto pode ser definida como idea da
casa, porque cada artista se esforça por imitar na casa (real) a forma que ele
possui na mente» sendo, deste modo, «indiscutível que o artista
conformava a sua obra, senão segundo uma idea metafísica no verdadeiro
sentido da palavra, pelo menos segundo uma representação interior ou
quase-idea pré-existente à própria obra» 69. Segundo Panofsky, este próprio
facto condiciona qualquer tentativa de autonomia da arte medieval e
mesmo perante o «naturalismo» do primeiro Gótico ou o «realismo» do
Gótico dos séculos XIV e XV, a Escolástica não vislumbrou nenhum
reconhecimento implícito ou explícito neste sentido.

Tudo isto não pressupõe que o período medieval se tenha oposto ou


mesmo condenado qualquer laivo de originalidade artística. No De clarea
de Bernensis – do século XIII – sustenta-se que a «obra de um artífice não
se considera de valor se ele não demonstra e não compreende, pela força do
seu próprio engenho, pelo menos outro tanto daquilo que aprendeu com os
outros. De facto, toda a arte é criada e entendida pela necessidade de
procura que existe no Homem, pois Deus, pelo qual todas as coisas
existem, deu aos homens a capacidade do saber» 70.

2.1.2.2. A anonímia artística medieval

A realidade da cultura arquitectónica medieval, pelo menos até ao


século XIII, assenta na anonimidade do projecto e da construção. Grande
parte dos edifícios medievais onde encontrámos marcada alguma forma de
paternidade – como «fecit», «aedificavit» ou «construit» – tem mais em
conta o encomendante, que atribui a si mesmo o processo construtivo, que
o responsável pelo projecto ou sua factura. É neste sentido que é tradicional
69
Erwin Panofsky, Idea. Contribuición a la historia de la teoría del arte, pág. 39.
70
Citado por Lionello Venturi, História da crítica..., pág. 74-75.

43
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

dizer-se que os arquitectos medievais perderam o seu estatuto «antigo» e


tornaram-se artesãos «sem-nome». A perda de consciência de autoria leva a
que os encomendantes chamem a si a realização da obra arquitectónica.
Quando o abade Suger se define como construtor de Saint Denis parte da
ideia de que Deus, criador supremo do mundo, lhe concede
patrimonialmente o projecto, a planta do templo, vendo-se a si mesmo
como autoridade religiosa e política na terra do património divino 71.

No período românico, através da documentação, podemos comprovar


que os religiosos assumem um papel primordial na consumação das suas
formas arquitectónicas, dado especialmente relevante no que concerne às
ordens beneditina e cisterciense. O paradigma desta realidade é-nos dado
pelo sonho do velho abade Baume de Gauzon e as obras de Cluny 72. A
maioria dos autores não concorda com a visão do construtor românico
como «arquitecto» no sentido moderno do termo, valendo-se de
argumentos como a pouca informação, a circunstância «mecânica» das
artes em todo o período medieval e a inexistência, para os séculos XI e XII,
de desenhos que provem uma concepção teórica da arquitectura,
considerando que se na realidade existiram, não eram sequer entendidos
como tendo valor artístico 73. R. Oursel, num sentido mais amplo, salienta
que a arquitectura românica é uma arte de «essência artesanal, baseada no
uso da experiência e no empirismo e onde o artista dilui-se na própria obra»
74
, alertando para o facto de, muitas vezes, se especular em demasia acerca
do esoterismo simbólico-matemático dos edifícios românicos como fonte
valorativa do saber do mestre construtor.

Na realidade, tudo parece começar a mudar no século XII e XIII com


a ascensão do período gótico. Esta ideia é fundamentada pela razão de
começarem a surgir múltiplas representações do construtor, sepultado
dentro dos templos e rodeado de honrarias, existindo mesmo inscrições
com os seus patronímicos, bem como referências nos documentos escritos.
Um dos primeiros exemplos desta visibilidade é Guilherme de Sens (1119),
construtor da Catedral de Canterbury mas também os franceses Pierre de
Montreuil – tido como «professor de maçons livres» – e o «architector» e
«mirificus aedificator» Lafranc, onde a sua origem «dedaélica» é esculpida
nos labirintos representados no lagedo das Catedrais de Amiens e Reims.
Também aparecem em Itália, ainda nos finais do século XI, Rainaldus,

71
Juan Esteban Lorente, Tratado de iconografia, pág. 28.
72
Gèrard Ringon, Histoire du métier d’architecture en France, pág. 15-16. O manuscrito «Le songe de
Gauzon», datado de 1180, relata o sonho do abade Baume de Gauzon que, inflamado pela aparição de
São Pedro, comanda as obras da terceira igreja de Cluny.
73
Cfr. Gèrard Ringon, Histoire du métier…, pág. 18.
74
Citado em Gèrard Ringon, Histoire du métier…, pág. 18-19.

44
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

arquitecto da Catedral de Pisa (depois de 1063) e Lanfrancus, arquitecto da


Catedral de Modena.
Mesmo sob o ponto de vista iconográfico a mudança é visível. Se até
à Baixa Idade Média as maquetas de edifícios aparecem como atributo da
Patrística da Igreja como Santo Agostinho, São Gregório Magno ou São
Boaventura, «santos fundadores de regras monásticas e, por isso,
construtores» – na linha do papa Pelágio II oferecendo a maqueta da sua
igreja a Deus ou de Justiniano em Santa Sofia de Constantinopla – no
século XIII vemos os próprios arquitectos representados com a maqueta da
sua obra, como Hugo Libergier no túmulo da Catedral de Reims (1267) ou
Peter Parler na Catedral de Ulm (1377) 75.

2.1.2.3. O Gótico e o «mestre construtor» baixo-medievo

O período gótico e a ogiva como novo paradigma arquitectónico e


tecnológico marcam o início da mudança no que se refere ao estatuto sócio-
profissional dos construtores baixo-medievos e à sua própria definição
conceptual. O Gótico idealizará um sistema de estandardização que lhe
permite simplicidade reprodutiva, diversidade linguística e identidade
estética. Isto é possível na medida em que a geometria está na base de toda
a construção, tal como provam os desenhos dos estaleiros das catedrais de
Praga e Viena, bem como o palimpsesto do século XIV de Reims 76. Até
esta altura não existe qualquer indício de volume, espaço ou perspectiva,
usando-se como base construtiva figuras geométricas simples, polígonos
regulares, especialmente o quadrado.

Kimpel realizou um estudo aturado acerca das técnicas construtivas


baixo-medievas, retirando importantes conclusões no que diz respeito quer
ao ofício de canteiro, quer ao seu modelo organizativo laboral. O seu
motivo exemplar foi a Catedral de Amiens, chegando à conclusão que por
volta de 1220 os pilares são como que pré-fabricados em pedras talhadas
sobre um modelo único. Ora isto pressupõe a presença de um desenho
exacto, em pedra ou em papel, um molde que acelera o trabalho nos
períodos invernais e a sua compreensão por parte dos oficiais pedreiros. O
autor vê aqui a «sociogénese da arquitectura moderna» 77.

No centro dos gigantescos estaleiros góticos, o «arquitecto»


medieval assume diversas tarefas como sejam a concepção da obra, a
direcção dos trabalhos e as funções de mestre de cantaria. Designado por

75
Consulte-se Juan Esteban Lorente, Tratado ..., pág. 22-23.
76
Otto von Simson, A Catedral Gótica, pág. 33.
77
Kimpel citado em Gèrard Ringon, Histoire du métier..., pág. 23-24.

45
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

«magister lathomos», «magister operis» ou «magister fabricae» 78 a sua


escolha reside não só na sua ampla experiência construtiva mas também no
seu conhecimento teórico. Por vezes, o termo qualificativo de engenheiro
(«ingeniator») aparece igualmente associado aos mestres construtores
medievais bem como «machoun» e «machinator» 79. Todavia, é necessário
ter em conta que, pelo menos até ao século XIV, alguns documentos
empregam os termos «magister operi» ou «magister fabricae» referindo-se
ao administrador ou vedor da obra 80, embora existam exemplos de
acumulação das duas funções.
Em 1261 o dominicano Nicolas de Biard fornece-nos uma visão
fascinante e ao mesmo tempo algo mordaz do estatuto do «mestre
construtor» baixo-medievo: «Nas construções é costume haver um mestre
principal que manda na obra somente com as mãos, mas às vezes, ou
simplesmente nunca, suja-as e recebe salários mais elevados que os
demais». «Os mestres que transportam na mão o bastão de comando dizem
aos outros: tens de cortar aqui e aqui não trabalhes nada em absoluto, mas
recebem maior compensação, tal como os prelados de hoje em dia» 81. O
«magister operis», por oposição ao «operarius» que executa, é não só o
tracista como o principal responsável pelas obras.

A arquitectura gótica sempre foi um modelo em constante evolução e


de longo período construtivo. Prolongando-se as obras por décadas e
décadas, a sucessão de vários mestres construtores coincide, muitas vezes,
com mudanças nas planimetrias, quer por evolução estilística quer por
questões funcionais. Também por este motivo, pese embora se defina de
forma clara a figura do mestre construtor, é ainda impossível pensarmos
numa identidade total entre a elaboração e realização centrado-nos numa
única autoria.

2.1.2.4. A «geometria como saber»: de Villard de Honnecourt às


vistorias à Catedral de Milão

O designado Livre de Portraiture de Villard de Honnecourt, datável


da segunda metade do século XIII, é um documento precioso para
tomarmos em linha de conta a base do conhecimento teórico arquitectónico
baixo-medievo e a sua estrutura especulativa assente na Geometria.
De biografia ainda pouco esclarecida, Honnecourt foi um mestre
construtor francês viajado e conhecedor da arquitectura do seu tempo –
78
Giovanni Coppola, «L’architecte et le project de construction au bas moyen âge», Histoire de
l’architecture, pág. 49.
79
Jean Gimpel, «Villard de Honnecourt, arquitecto e ingeniero», em Villard de Honnecourt. Cuadernos,
pág. 31.
80
Spiro Kostof, «The Architect in the Middle Ages, East and West», pág. 83.
81
Citado em História de la arquitectura. Antología crítica, pág. 176.

46
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

tendo chegado a realizar uma viagem à Hungria – admitindo-se a sua


participação da construção de Saint Quentin na região da Picardia francesa.
O seu escrito demonstra que teve a possibilidade de estudar textos árabes e
gregos traduzidos em latim, por exemplo os Elementos de Euclides bem
como, e muito possivelmente, Vitrúvio 82 que parece presente na natureza
dos desenhos, na descrição de vários engenhos e nas referências à
Medicina, sendo possível que tivesse igualmente entrado em contacto com
o «De re militare» de Flavius Vegetius Renatus.

O manuscrito está fragmentado, não está organizado de forma


coerente, inclui desenhos de várias «mãos» mas é suficientemente
representativo da sua função: «Ao preparar o manuscrito (o autor) deve ter
pensado numa finalidade mais formal que a simples composição de um
memorandum para o servir nas suas (próprias) futuras necessidades pois no
primeiro fólio dirige-se ao leitor ou público anónimo e pede-lhe que
utilizem os seus debuxos e rezem pela sua alma» 83. Nele, a arquitectura
está sujeita a leis matemáticas universais e o arquitecto é essencialmente
um geómetra, recomendando que os arquitectos se sirvam igualmente de
conhecimentos práticos, da «force» 84. O seu aspecto mais original reside
essencialmente na sua proposta de uma «art de portraiture» que consiste
em desenhar figuras humanas e mesmo animais a partir de formas
geométricas completamente abstractizadas pelo autor e afastadas de
qualquer modelo natural. Quando afirma que todas as figuras «procedem
da geometria» parece dizê-lo no sentido em que a geometrização lhe
permite «trabalhar facilmente» e não propriamente reflectindo a velha
consciência clássica dos fundamentos geométricos 85.

É necessário ter em conta que quando pretende reproduzir alçados,


planos ou cortes de edifícios, Honnecourt não se vale de uma geometria
rigorosa. Bechmann preocupou-se por compreender o saber do mestre
francês através do seu texto e debuxos, concluindo que para o autor a
Geometria é essencialmente «praxis» construtiva de figuras, não a
concebendo no sentido demonstrativo actual. A não existência de um
sistema métrico uniforme é compensada pela reprodução de uma fórmula
geométrica simples, facilmente reproduzível em qualquer dimensão e que

82
Contrariamente à posição tradicional que aponta para o desconhecimento de Vitrúvio durante a Idade
Média, basta lembrar que entre os séculos X e XV os beneditinos copiaram, pelo menos, 55 vezes o texto
vitruviano. Não seria difícil a Honnecourt encontrar na abadia beneditina da sua terra natal um desses
exemplares. São visíveis as influência vitruvianas nas formas geométricas das figuras e animais e nas
receitas técnicas essenciais que apontam para a fundação e levantamento das paredes, no capítulo 1º do
Livro III. Cfr. Jean Gimpel, «Villard de Honnecourt, arquitecto e ingeniero», pág. 33.
83
Moshe Barasch, Teorías del arte..., pág. 77.
84
Cfr. W. Tatarkiewtz, Historia de la estetica, Tomo II, pág. 161.
85
Opinião expressa por Moshe Barasch, Teorías del arte..., pág. 77.

47
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

«assegura a identidade entre execução e concepção» 86. Foi, todavia,


necessário encontrar uma norma, um padrão, um sistema de proporções que
pudesse ser claramente legível. A título de exemplo, Honnecourt fornece-
nos medidas absolutas em pés mas «apenas usa estas medidas aritméticas
num desenho técnico; nos seus projectos arquitectónicos confia em
exclusivo na geometria» 87. Com bem sintetizou Panofsky, o que
verdadeiramente interessa ao mestre francês é «um método expedito do
desenho que pouco tem a ver com as proporções» e onde «a figura já não se
mede em absoluto», ou seja, através de um módulo, mas onde as linhas são
essencialmente orientadoras 88.

As célebres actas resultantes das reuniões em Milão, no ano de 1391


e anos subsequentes, de mestres italianos, franceses e alemães, acerca da
construção da Catedral italiana são também um documento incontornável
para compreender, por um lado, a confiança que o mestre gótico tem nas
figuras geométricas e, por outro, a razão para essa mesma confiança assente
no paradigma da «ars sine scientia nihil est», segundo as palavras do
mestre francês Jean Mignot. Entende-se que a arte é o conhecimento
prático adquirido pela experiência enquanto a ciência é a capacidade de
avaliar as razões que determinam a prática da arquitectura por meios
racionais, isto é, geométricos 89.
«O método da construção projectado na Idade Média encontra a sua
aplicação prática no processo do modulo geométrico realizado a partir de
uma rede regular de quadrados e de triângulos no interior dos quais são
medidos os planos de elevação do edifício» 90. O mestre da Catedral de
Milão exemplifica as formas «ad quadratum» e «ad triangulum» que foram
adoptadas na fábrica, não deixando de ser sintomático que nesta discussão
os mestres alemães – como apontou Spiro Kostof – defendam que a figura
geométrica assegura não só a correcção estrutural como a estética. Na acta
de 25 de Janeiro de 1400 os mestres consultados, pretendendo justificar a
sua opção pela construção das torres exemplificam-na nos seguintes
termos: «Antes do mais, para completar a mencionada igreja e o transepto
de modo que correspondam a um quadrado, segundo as leis da geometria,
assim que para a solidez e perfeição do zimbório, seria melhor que a

86
Roland Bechmann, «Los debujos técnicos del cuaderno de Villard de Honnecourt», pág. 47. Por sua
vez, Moshe Barasch, Teorias del arte..., pág. 77, considera que a falta de rigor geométrico denuncia que o
texto não se destinava a uma futura execução de qualquer obra específica mas apenas a uma recolha de
notas várias, provavelmente com o objectivo de preparar iniciados.
87
Otto von Simson, A Catedral…, pág. 39.
88
Erwin Panofsky, O significado nas artes..., pág. 60.
89
Spiro Kostof, «The Architect of the Middle Ages, East and West», pág. 86.
90
Giovanni Coppola, «L’architecte et le project de construction au bas moyen âge», pág. 60-61.

48
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

construção tomasse como modelo Deus Nosso Senhor, que no paraíso se


senta ao centro, enquanto que em seu redor se situam os quatro
evangelistas segundo o Apocalipse» 91. O fundamento divino da Geometria
é cabalmente assumido.

Nos finais do século XV, Matthias Roritzer dá-nos igualmente o seu


contributo para desvendar os particulares conhecimentos geométricos
medievais, começando por apontar o objectivo a que se propõe: «Assim,
começando a partir da pedreira de onde se extrai a pedra, explicarei em
que proporções se deverá executar a obra segundo os fundamentos
geométricos, dividindo o projecto com a ajuda do círculo com a finalidade
de conseguir as justas dimensões» 92. O construtor da Catedral de
Regensburg demonstra-nos como obter o alçado a partir da planta por meio
de um único quadrado, do qual deduz todas as proporções do edifício,
dando como exemplo como construir um pináculo de acordo com a
proporção do edifício 93.

Mesmo sob o ponto de vista iconográfico o mestre construtor baixo-


medievo faz-se representar já não como um «arquitecto prático»,
simbolizado com a maça na mão ou a vara de medir – como Gerlanus em
S. Filiberto de Tornus, no século XI, ou o mítico Mestre Mateo em
Santiago de Compostela – mas como um «arquitecto especulativo» com a
vara, o esquadro e o compasso, visível na Catedral de Chartres ou na
Catedral de Soissons ou mesmo no Campanário de Florença na obra
escultórica de Andrea Pisano (c. 1340). Para além das célebres associações
ao labirinto «daedálico», a sepultura de Hugo de Libergier funciona como
o arquétipo da época – o mestre é representado bem vestido com os seus
atributos profissionais, a maqueta, a vara de medir, o esquadro e o
compasso 94.

2.1.2.5. A «literatura de oficina»

Este belo título de Moshe Barasch enuncia e resume o tipo de


literatura produzida a partir do século X como produção teórica destinada
às oficinas e aos seus artífices, prescrições essenciais que ensinam e
orientam a execução dos trabalhos. Tal como afirma o autor, «as oficinas
da Idade Média dependiam exclusivamente do ensino oral e as tradições
podiam transmitir-se mediante a cópia directa dos modelos que o mestre
91
Citado em Historia de la arquitectura..., pág. 178.
92
Citado em Jéssica Jaques Pí, La estética del románico y el gótico, pág. 99.
93
Consulte-se Otto von Simson, A Catedral…, pág. 33-36. Spiro Kostof, «The Architect in the Middle
Ages, East and West», pág. 87, chama a atenção para o facto de este trabalho ser tardio, posterior aos
textos albertianos.
94
Sobre estas questões veja-se Juan Esteban Lorente, Tratado..., pág. 23-25.

49
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

proporcionava. Nos últimos e mais dinâmicos tempos de crescente


comércio, de grandes encargos e de gentes (incluindo os artistas)
transladando-se de um sítio para outro, os velhos métodos de estudo
tornaram-se insuficientes, tiveram que complementar-se com os escritos
que recompilavam o conhecimento» 95. Esta realidade acompanha,
evidentemente, o ressurgimento das cidades, o início da construção de
gigantescas catedrais góticas, a constante migração de numerosas hordas de
oficiais e a proliferação de encomendas no campo artístico.

São claramente representativos desta nova realidade artística


manuais como o Heraclius sobre as cores e as artes dos romanos, de um
autor romano do século XI – que se dedica a ensinar a preparação das cores
para escrita e iluminação de manuscritos, o talhe de pedras semi-preciosas
e técnicas no campo da torêutica – o Manual do pintor do Monte Athos,
dividido em três partes – a primeira dedicada a questões técnicas como a
preparação de pigmentos, a segunda dedicada à iconografia religiosa e a
terceira à correcta colocação das imagens no templo. O modelo máximo da
literatura oficinal medieval encontra-se com o De diversis artibus,
provavelmente redigido por um beneditino que viveu no Noroeste da
Alemanha e datável da primeira metade do século XII. Dividido em três
livros, o primeiro é dedicado à pintura, o segundo à arte do vidro e o
terceiro ao metal, à fabricação dos instrumentos musicais e ao talhe de
pedras preciosas, entre outros assuntos. Este texto é caracteristicamente
medievo, reunindo um amplo e enciclopédico saber onde o autor se vê a si
mesmo como um artesão experimentado e dominador de toda uma série de
matérias específicas concebendo o texto «para o seu uso imediato. Nunca
se pretende elucidar questão teórica alguma. O seu único propósito é guiar
o artesão, tanto na aquisição do conhecimento necessário para o seu
trabalho, como para a aplicação prática das técnicas aprendidas» 96. De
qualquer forma, o manuscrito não deixa de ter presente que a finalidade de
todos estes trabalhos, do fundir de um sino à construção de um orgão, é a
«ornamentação da igreja», o embelezar a casa de Deus.

Concluindo, «o manuscrito de Villard é só um exemplo, muito


característico, de um fenómeno comum presente na oficina baixo-medieva.
O livro de modelos não era só uma fonte fundamental para os artistas e
seus discípulos na oficina, mas também um importante catalisador de
transmissão de imagens, capaz de assegurar um grau de unidade aos
produtos das oficinas que utilizavam tais livros de modelos. Resultou assim
num importante instrumento no estabelecimento dos usos artísticos. Ao
longo dos séculos devem ter-se perdido numerosos livros de modelos, mas
95
Moshe Barasch, Teorías del arte…, pág. 69.
96
Cfr. Moshe Barasch, Teorías del arte…, pág. 74.

50
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

os que sobreviveram constituem um sensacional testemunho de uma forte e


vigorosa tradição» 97.

2.1.2.6. O desenho medieval e as suas modalidades

Um dos problemas que se colocam acerca da conceptualização do


«mestre construtor» medieval relaciona-se com a questão do projecto
arquitectónico. Sendo o desenho a prova cabal de uma actividade
especulativa por detrás da prática construtiva, a sua existência no período
gótico encerra um entendimento arquitectónico «pré-moderno». Ora, sabe-
se com alguma propriedade que os desenhos arquitectónicos se banalizaram
durante esta época e, embora se tenham perdido quase na totalidade, há
circunstâncias que explicam esta realidade. Giovanni Coppola apresenta-
nos várias razões para este facto como a prática de desenhar directamente
nos muros, no solo ou mesmo em suportes de madeira e de metal. Portanto,
a utilização de outros suportes faz com que esta questão tenha que ser
recolocada numa perspectiva diferente do entendimento moderno. Também
é quase certo que os desenhos não eram apreciados esteticamente com
aptidão para serem preservados ou mesmo coleccionados. Não obstante,
existem fragmentos de desenhos em papel das Catedrais de Estugarda e
Winchester, datados do século XIV, de grandes dimensões, logo muito
frágeis 98.
Em todos os estaleiros góticos existiam «lojas de risco», onde o
mestre e os seus aparelhadores traçavam as pedras fundamentais que depois
eram copiadas pelos oficiais. Estas «traças» eram frequentemente
realizadas nas próprias paredes do edifício, conservando-se vestígios
importantes, por exemplo, em Santa Maria de Belém, em Lisboa 99. Por sua
vez, os desenhos que ainda hoje se conservam gravados nos muros de
catedrais de Itália, França e Inglaterra são em escala 1/1, ou seja, de
tamanho natural.
Quando se pretende esclarecer e tornar mais compreensível o
projecto arquitectónico são realizadas maquetes. Se já Vitrúvio apontava os
méritos deste método – sublinhado posteriormente por Alberti – durante
toda a Idade Média a representação tridimensional do edifício a construir
está claramente presente na Pintura e Escultura e com mais visibilidade no
período gótico. Honnecourt fala-nos na fabricação de uma maqueta e planta
(«mole») como elementos importantes na interacção entre o executor e o
encomendante 100.
97
Cfr. Moshe Barasch, Teorías del arte…, pág. 80.
98
Giovanni Coppola, , «L’architecte et le project de construction au bas moyen âge», pág. 55.
99
Pedro Dias, «Os artistas e a organização do trabalho nos estaleiros portugueses de arquitectura, na
época dos Descobrimentos», Actas do Congresso Internacional de História. El Tratado de Tordesilhas y
su epoca, pág. 542.
100
Veja-se Roland Bechmann, «Los debujos técnicos del cuaderno de Villar de Honnecourt», pág. 48.

51
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Nos finais do século XII, o De aedificiis de Alexandre Neckam,


definindo conselhos práticos acerca das regras de construção, apresenta
desenhos esquemáticos mas claros e de fácil execução que se fundamentam
no círculo e no triângulo equilátero, no rectângulo e no quadrado, seguindo
as prescrições da geometria euclidiana 101. O «caderno» de apontamentos
de Villard de Honnecourt acompanha a maior frequência de desenhos que
se verifica a partir do século XIII, pese embora apresente características
bem específicas e direccionadas para um conhecimento teórico e
instrumental no qual «a existência de poucos planos, sobretudo de alçados,
que resulta numa representação parcial do edifício, a falta de escalas ou
cotas e mesmo a comparação entre os debuxos e os edifícios reais prova
uma não concordância directa» 102. De tudo isto resulta que o construtor
medieval, não tendo um registo preciso da construção, tem sobretudo uma
«visão intencional» do que se pretende realizar e esta é a substancial
diferença em relação à radical mudança que se dará com o Renascimento.

2.1.2.7. A posição social do mestre construtor e os grémios


medievais

A Idade Média herdou da Antiguidade a classificação das sete Artes


Liberais que serviram «não só de classificação global do saber humano,
mas também de currículum para as escolas monásticas» tendo o seu auge
no período carolíngio 103. A Arquitectura durante todo o período medieval
continua a ser entendida como arte mecânica por oposição às artes liberais
do «trivium» – Gramática, Dialéctica e Retórica – e do «quadrivium» –
Geometria, Aritmética, Astronomia e Música, divisão típica de «uma
mentalidade intelectual que investe no conhecer e no contemplar» 104.
A partir do século XII, este saber revelou-se inadequado aos novos
tempos e tentou-se uma combinação entre este sistema e a tríade filosófica
da Lógica, Ética e Física. Com o auge das Universidades aposta-se em
novas temáticas como a Filosofia, a Medicina, o Direito e a Teologia,
ficando as designadas artes liberais como matérias preliminares do
conhecimento 105. Nesta época Hugo de São Vítor chegou mesmo a definir,
por oposição às artes liberais, sete artes mecânicas: «venatio», «medicina»,
«agricultura», «navigatio», «lanificium», «theatrica» e «armatura». Esta
última compreende a Arquitectura, como a que subministra o refúgio 106.

101
Giovanni Coppolla, «L’architecte et le project de construction au bas moyen âge», pág. 51.
102
Gèrard Ringon, Histoire du métier…, pág. 22.
103
P. O. Kristeller, El pensamiento renacentista y las artes, pág. 190.
104
W. Tatarkiewcz, Historia de la estetica, Tomo II, pág. 174.
105
Cfr. P. O. Kristeller, El pensamiento renascentista..., pág. 190-191.
106
W. Tatarkiewcz, Historia de la estetica, Tomo II, pág. 203.

52
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

As artes em geral continuam confinadas à sua definição «servil» e


aos grémios artesãos onde os pintores se encontram associados aos
preparadores de tintas, os escultores aos ourives e os arquitectos aos
carpinteiros e marceneiros. Todavia, a ligação da Arquitectura às artes do
«quadrivium», essencialmente à Geometria, não deixa de trazer algumas
vantagens em relação à posição dos mestres construtores que, pese embora
sem estudos académicos superiores, usufruem de um certo prestígio e
estima profissional. Para o construtor, o uso de figuras geométricas simples
– seguindo na maioria dos casos a triangulação e a quadratura – cumpria
fins práticos face à exiguidade instrumental, limitada por vezes ao
compasso e à corda, mas repetindo, em linha de continuidade, proporções
utilizadas desde a Antiguidade 107. Valem-se essencialmente da sua
habilidade e transmitem geracionalmente o seu saber, prática tão
importante que chegou a ser legislada a sua não transmissão fora da sua
área profissional pelo grémio parisiense em 1268, contribuindo para
mitificar a sabedoria e as próprias construções do Gótico final.
O mesmo sentido proteccionista e de classe se infere do Regimento
de Regensburg de 1456, quando se aponta o facto de que «nenhum mestre
tem o direito de ensinar os usos e práticas do seu mester sem ter em conta
as práticas e usos e controlar se o iniciado não tiver uma aprendizagem
conforme a tradição» 108. A associação gremial é o constituinte social que
arregimenta a família ligada a tudo o que diz respeito à construção, do
projecto à sua edificação. Como qualquer outra profissão, existem regras,
cargos e hierarquias a cumprir, definidas tão rigidamente que se mantêm ao
longo do período histórico-artístico subsequente. Se analisarmos as regras
de construção em Inglaterra para cerca de 1430 não é difícil encontrar toda
uma série de preceitos que relacionam o «mestre de pedraria» e o «oficial»
dentro da lógica hierárquica de trabalho, saber e competências. Assim, o
mestre deveria zelar e aceitar o aspirante a «oficial» por pelo menos sete
anos – período mínimo de formação – deve fazer-lhe justiça e dar-lhe o
suficiente para viver 109, não o obrigar a trabalhar de noite mas exercendo o
poder de despedir quem não tiver capacidade para desempenhar tal função.
Por sua vez, o «oficial» deve realizar o seu trabalho fielmente, confiar no
mestre e no seu calendário de pagamento de salários, não prejudicar a
corporação e, tal como o instrutor, participar na assembleia gremial em
todos os seus afazeres. Se o «oficial» deve obediência ao «mestre», este
deve não só ser fiel ao encomendante como não deve apropriar-se da obra
de um seu semelhante 110.

107
Cfr. W. Tatarkiewcz, Historia de la estetica, Tomo II, pág. 174.
108
Reproduzido em Historia de la Arquitectura..., pág. 176.
109
O regimento de Regensburg de 1456 aponta claramente o facto de que o mestre não deveria receber
dinheiro do aprendiz pela instrução.
110
Historia de la Arquitectura…, pág. 176-177.

53
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Concluindo, «os grémios interessavam-se pelo homem em todos os


seus aspectos: vigiavam as obrigações religiosas dos seus membros,
dirigiam a formação dos aprendizes, supervisionavam os contratos,
fixavam o trato com os clientes e inclusive tinham jurisdição sobre os seus
filiados. Para além disso, olhavam pelo bem estar físico e moral dos seus
constituintes» dentro de um sistema rígido onde tudo era controlado, não
deixando espaço para o culto da personalidade e a valorização individual
111
.

O mestre maior tem toda uma série de colaboradores a quem delega


determinadas funções e responsabilidades mas continua a ser, no terreno, o
responsável máximo da construção efectiva e não apenas o tracista teórico
112
. Ele é o cume de uma intrincada e complexa pirâmide de sub-mestres,
aparelhadores e oficiais que colaboram entre si dentro de um organigrama
gremial e corporativo. Contudo, a «arte da geometria», embora a um nível
inferior da «inteligência liberal», permite-lhe consideração sócio-
profissional e aproxima-o de um conceito claramente moderno de tal forma
que alguns deles estão já mais próximos do «arquitecto» moderno, que do
«mestre» medievo.

111
Cfr. Rudolf e Margot Wittkower, Nascidos bajo el signo…, pág. 20.
112
Spiro Kostof, «The Architect in the Middle Ages, East and West», pág. 92.

54
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

2.1.3. O Renascimento e Maneirismo

2.1.3.1. O caso italiano

É na «renascità» italiana que a historiografia artística vê o


nascimento e a definição do artista moderno. O cânone leonardesco ilustra
sabiamente a nova Era, dentro da doutrina neoplatónica do Cosmos vivo e
da mensagem vitruviana do Livro III 113. Não obstante, será imprescindível
lermos este período tendo em conta duas vertentes: a «renovatio hominis»,
ou seja, a preocupação em renovar e recentrar a visão do mundo no próprio
Homem promovida pelo Humanismo e a «renovatio antiquitatis», como
regresso a um passado de ouro do pensamento, arte e cultura dessa mesma
humanidade – a Antiguidade Clássica – procurando não só recuperar esse
mesmo legado mas superá-lo dentro da nova estrutura cristã 114.
É durante este período que a arte deixa de ser considerada uma
actividade manual, «mechanica», para ser vista como uma actividade
intelectual, «liberalis». A defesa da sua nobreza residiu no simples
argumento de que na base estrutural da arte se encontra um pensamento
especulativo e um conhecimento «científico» centrado na perspectiva e no
desenho e projecto preparatórios. Fruto do contacto com os meios
humanísticos, os artistas do Renascimento puderam desenvolver esta teoria,
fundamentá-la e construir um «corpus» teórico a par do trabalho artístico.

2.1.3.1.1. O conceito de arquitecto no «Quattrocento»

Desde meados do século XIV que o legado terminológico antigo


surge com algum relevo na literatura e documentação italiana da época,
pese embora ainda não se defina claramente sob o ponto de vista funcional,
o arquitecto moderno. Encontrámo-lo no período pré-renascentista em
Petrarca quando em 1360 faz uso do termo em língua vulgar – «architetto»
– num pequeno tratado acerca das artes que o célebre poeta italiano redigiu
115
, sendo que a verdadeira novidade entronca no facto de se utilizar já o
paradigma vitruviano como definidor de arquitecto, o mesmo acontecendo
com o seu contemporâneo Boccacio 116.
A situação mantém-se durante a centúria seguinte, embora muitas
vezes referida sem que esteja ainda totalmente associada a uma profissão
que na prática, embora excepcionalmente, está já claramente definida.
Veja-se o caso de Federico de Montefeltro, Duque de Urbino, conhecedor
113
André Chastel, Arte y humanismo en Florencia en la epoca de Lorenzo el magnifico, pág. 153
114
Na extensa lista de bibliografia que se aconselharia no desenvolvimento destas questões, consulte-se, a
título de exemplo, a obra clássica de P. O Kristeller, El pensamiento renascentista..., pág. 17-84.
115
Cfr. Spiro Kostof, «L’architecte: histoire d’un mot», pág. 15.
116
Em relação a este assunto, consulte-se Francesco Pellati, «Vitruvio en la Edad Media y en el
Renacimiento», pág. 129-130.

55
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

dos clássicos e amigo de Alberti que, numa carta de 10 de Junho de 1468,


elogia a arquitectura como uma arte nobre fundada na ciência e na
habilidade, mas utiliza o termo «architettore» de forma administrativa e
não como referência ao projectista, ou mesmo ornamentalista, do seu
palácio ducal. Essa missiva referia-se à escolha de Luciano Laurana para
prosseguir com as obras do palácio ducal iniciadas em 1447 e que o mestre
supervisionará entre 1468 e 1472, mas os documentos relacionados com a
fábrica definem-no ainda como o «capo-maestro» e «ingegniero» 117.
«Ingeniere» é também a designação de Bernardo Rosselino quando é
chamado para comandar as obras de reedificação de São Pedro do
Vaticano, terminologia que aliás se mantém no estaleiro romano até aos
tempos de Bramante.

O «paradigma do arquitecto» no Quattrocento encontra a sua


consumação na figura do florentino Filippo Brunelleschi (1377-1446).
Educado como ourives, dentro do sistema tradicional, é tido como o mítico
inventor da perspectiva na arte – que a fundamenta como «ciência» – e jaz
no centro da catedral florentina sob a inscrição «Phillipus Architectus» da
autoria de Carlo Marsuppini 118. É um dos três artistas de «charneira»,
juntamente com Donatello e Masaccio. Sabe-se que a arquitectura
«brunelleschiana» é mais uma reforma do que uma revolução sob o ponto
de vista formal e estrutural da arquitectura. Embora tenha estudado as
ruínas antigas, investigado as suas planimetrias e sistemas técnico-
construtivos, a sua obra arquitectónica, de São Lourenço à Capela Pazzi,
deve mais aos esquemas das basílicas românicas como a igreja florentina
dos Santos Apóstolos e ao próprio Baptistério de Florença que ao estudo
arqueológico das ruínas clássicas, levando historiadores como Gombrich a
considerar que «a reforma de Brunelleschi constitui um paralelo das
reformas humanistas também no aspecto de estar mais interessada na
eliminação de práticas corrompidas do que num começo inteiramente
novo»119.
Quando o seu biógrafo António Manetti, matemático e astrónomo, se
propõe a definir o seu génio artístico centra-se não na imagem do
arquitecto vitruviano mas no «paradigma platónico» decorrente do
humanismo ficiano, onde a dignidade do arquitecto assenta nas «verdades
eternas» da Geometria 120. Queremos com isto dizer que a definição do
conceito de arquitecto fez-se essencialmente por via especulativa, ligada
aos ambientes humanistas e cortesãos e não por uma tomada de consciência
117
Leopold Ettlinger, «The emergence of the Italian architect during the fifteen century», The Architect.
Chapters in the History od the Profession, pág. 119.
118
«Quantum philipus architectus arte deadalea valuerit, cum huius celeberrimi templi mira testudo, tum
plures machinae divino ingenio ab eo adiventae documento». Attilio Pizzigoni, Brunelleschi, pág. 181.
119
Ernst Gombrich, O legado de Apeles, pág.196.
120
André Chastel, Arte y humanismo..., pág. 147.

56
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

por parte dos mestres de pedraria italianos de uma condição profissional e


social nova. Nesta perspectiva, o modelo será Vitrúvio e o principal
tradutor e teorizador contemporâneo da «renascità» italiana será Leon
Battista Alberti.

2.1.3.1.2. O conceito vitruviano de arquitecto

O conceito vitruviano de arquitecto assentava como uma luva no


ideal humanista da época, fruto da exigência de um saber multi-disciplinar,
e funcionou como motor de arranque para a consubstanciação da nobreza
da profissão da qual todos, do mais simples diletante ao príncipe, procuram
tirar partido e vangloriar-se do seu saber. A exigência vitruviana ao nível
dos conhecimentos é hercúlea e torna indispensável ao praticante da
arquitectura um domínio de áreas tão vastas como a Filosofia, a História, a
Medicina, a Óptica, a Jurisprudência, a Música ou a Astrologia e onde o
entendimento da geometria e do desenho é estrutural. Da teoria à prática,
todos estes ramos são necessários para que formada «uma imagem a
realizar» ela se concretize numa verdadeira súmula de conhecimento.
Vitrúvio não se coíbe de afirmar que a «ciência da arquitectura é tão
complexa, tão esmerada, e inclui tão numerosos e diferenciados
conhecimentos que os arquitectos não podem exercê-la legitimamente a
não ser a partir da infância, avançando progressiva e gradualmente nas
ciências citadas e alimentados pelo conhecimento nutritivo de todas as
artes, alcançam o supremo templo da arquitectura» 121. Coteje-se a
diferença abissal entre esta definição com as exigências que Cennino
Cennini em 1437, no seu Libro dell’arte, propunha ao artista novo: «A
vossa vida devia reger-se sempre como se estudasses teologia, filosofia ou
as demais ciências, quero dizer, comer e beber com moderação pelo menos
duas vezes por dia, escolher comidas ligeiras mas substanciais e vinhos
suaves» e «não disfrutar em excesso da companhia das mulheres» 122.

A influência do texto vitruviano, mesmo antes das suas edições


críticas, é já visível na teoria artística italiana e será mesmo utilizado em
outros contextos artísticos como a Escultura ou a Pintura, servindo de fonte
especulativa. Tome-se em linha de conta os célebres «Commentari» do
ourives e escultor florentino Lorenzo Ghiberti, falecido em 1455 : «No
primeiro livro recolhe memórias da Antiguidade, traduz Vitrúvio, Plínio e
outros; para definir pintor e escultor, baseia-se na definição de arquitecto
de Vitrúvio, introduzindo modificações; no terceiro livro inspira-se em
Alhazen e na óptica antiga e medieval; no segundo livro critica os melhores

121
Vitrúvio, De arquitectura, pág. 64.
122
Citado por Rudolf e Margot Wittkower, Nascidos bajo el signo..., pág. 25.

57
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

pintores do século XIV, seus conhecidos» 123. Como afirma Anthony Blunt,
«no que se refere à pretensão de conhecimento de outras matérias da
ciência, é provável que a rivalidade que existia entre arquitectos e pintores
empurrasse estes últimos a uma maior audácia. Vitrúvio tinha exigido do
arquitecto que estivesse familiarizado com diferentes formas de saber. A
partir de Ghiberti, os escritores renascentistas repetem a mesma exigência»
incorporando as mesmas disciplinas «vitruvianas» na sua lista de
conhecimentos indispensáveis 124. O paradigma vitruviano é assim
adaptado a outras expressões artísticas e ajuda a promover a consciência
por parte do artista das suas faculdades. Mas será através do trabalho
teórico de Leon Battista Alberti que a «autoritas» vitruviana encontrará a
sua tradução plena.

2.1.3.1.3. O «arquitecto humanista» segundo Leon Battista Alberti

Leon Battista Alberti (1402-1472), arquitecto, filósofo e teórico de


arte facultou ao Quattrocento italiano um modelo tratadístico que se
revelou essencial para compreendermos a revolução artística que se
processou nos tempos modernos. É o verdadeiro «homem renascentista» e
o principal responsável pela criação de uma nova teoria da arte. Teve uma
formação universitária e próxima dos círculos humanistas sendo, portanto,
um intelectual, longe da formação tradicional das oficinas artísticas como
muitos dos seus contemporâneos como Brunelleschi ou Michelozzo.
Escreveu três textos fundamentais – De pittura, De scultura e De re
aedificatoria – todos publicados postumamente e que funcionaram como
modelo para a tratadística artística moderna. Se os dois primeiros são
praticamente originais – o primeiro não tem mesmo quaisquer precedentes
documentais – o seu tratado acerca da Arquitectura é claramente de
inspiração vitruviana mas tendo em conta as aspirações e entendimento
modernos.
O De pictura (1436) contribuiu para a fundamentação da arte da
pintura como «ciência» baseada na perspectiva, teorizando a descoberta de
Brunelleschi e seguindo uma linha de pensamento próxima dos escritos de
Leonardo da Vinci. A arte da pintura é nobre e antiga, baseia-se na
geometria, na óptica e na perspectiva e o pintor é-nos apresentado pelo
autor como «uomo buono et docto in buone lettere» 125. Para Alberti a linha
condutora que une as três expressões artísticas é já o fundamento
matemático-geométrico, a proporção e a disposição das partes 126.

123
Lionello Venturi, História da crítica..., pág. 85.
124
Anthony Blunt, La teoría de las artes en Itália (del 1450 a 1600), pág. 67.
125
Rudolf e Margot Wittkower, Nascidos bajo el signo…, pág. 26.
126
Sobre as questões e fontes da estética albertiana consulte-se, a título de exemplo, W. Tatarkiewtz,
História de la estetica, Tomo III, pág. 100-114.

58
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

O que verdadeiramente nos interessa analisar, ainda que de modo


breve, é o De re aedificatoria, concluído em 1452 mas só publicado em
1485. Redigido em Roma na altura em que Alberti trabalhava na Corte
papal, «segue a linha do tratado de Vitrúvio, compila a experiência do
estudo directo dos monumentos antigos e constitui o fundamento do
classicismo arquitectónico do Renascimento» 127, mas não envereda
cegamente pelas suas propostas, distanciando-se em termos estéticos e
expressando as opiniões e os interesses da sua época. Tem inclusive
consciência das limitações do texto vitruviano dizendo-nos que é um
«autor muito competente, mas tão castigado pelo tempo que em múltiplas
passagens faltam muitas coisas» 128 propondo-se ele próprio a estudá-las.
Referia-se, evidentemente, à dificuldade de conciliar as normas do texto
com os vestígios arqueológicos romanos. Não deixa mesmo de enunciar o
princípio renascentista da superação da Antiguidade quando considera que
a própria arquitectura alcançou a magnificência e perfeição na Itália do seu
tempo.
O seu interesse pela arquitectura é altamente especulativo,
destacando a nobreza do profissional como homem decoroso e intelectual,
distinguindo o arquitecto como teórico e o executante que lhe «serve de
ferramenta». Define clara e distintamente os dois aspectos da realização de
uma obra arquitectónica, o desenho e a sua materialização, mas tudo
começa no «debuxo» que utilizando a geometria, as suas linhas e ângulos,
nos dá o «aspecto do edifício» tomando «uma determinada proporção, uma
disposição decorosa e agradável» que «nasce na mente e não depende do
material» 129. Não deixa de colocar a questão da formação do arquitecto em
termos vitruvianos no que concerne à multi-disciplinaridade do seu
conhecimento – a «arquitectura não está ao alcance de todos» pois o
arquitecto «deve estar dotado de uma inteligência excepcional, de amplos
estudos, de apurada experiência e de critério e prudência irrepreensíveis».
Se a arquitectura nasce da necessidade e utilidade, o arquitecto deve
«julgar adequadamente o que é conveniente», recordando a teoria do
«decoro» da retórica ciceroniana – já presente em Vitrúvio – mas insistindo
na prudência e no realismo: «O arquitecto deve propor o seu trabalho,
dirigir a obra, falar com os cidadãos notáveis, não deve meter-se em
empresas irrealizáveis» 130.

Leon Battista Alberti define, deste modo, o conceito de arquitecto


moderno mas não trata ainda de algumas questões pertinentes – não o vê
sob o ponto de vista profissional e nada diz acerca do treino do arquitecto e
127
Giulio Carlo Argan, Renacimiento y Barroco. I De Giotto a Leonardo da Vinci, pág. 183.
128
Alberti, De re aedificatoria, Livro VI, Capítulo 1, pág. 243. Utilizou-se a edição em castelhano de
Javier Fresnillo Nuñez.
129
Alberti, De re aedificatoria, Livro I, Capítulo 1, pág. 61.
130
Consulte-se Alberti, De re aedificatoria, Livro IX, Capítulo 10 e 11, pág. 400-406.

59
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

da prática construtiva 131. Não obstante, a imagem que o autor nos


apresenta é a do «arquitecto humanista», artista e intelectual e não a de um
«arquitecto profissional». Isto mesmo se depreende pelas suas próprias
propostas arquitectónicas, fruto de uma educação superior que privilegia a
«renovatio antiquitatis» aos aspectos do projecto e «praxis» arquitectónica.
A reforma do Templo Malatestiano de Rimini parte do arco triunfal romano
e das arcarias dos aquedutos romanos, a igreja de Santo André de Mântua é
levemente influenciada pelo modelo da Basílica de Constantino, enquanto
que a igreja mantuana de São Sebastião têm por base o exercício em torno
da planta centralizada baseada no quadrado e na cruz grega. Mesmo
quando fixa a tipologia do palácio senhorial para os Rucellai de Florença,
parte de um princípio teórico em que as proporções do edifício devem
equivaler ao prestígio intelectual do seu dono.
Neste sentido, «para Alberti, a arquitectura representa uma certa
concepção do espaço, mas representa, ao mesmo tempo, as grandes ideias
históricas que determinaram as diferentes concepções do espaço. Para ele,
o edifício é sempre um objecto, embora seja um objecto ideal e absoluto,
que expressa uma concepção do mundo, como natureza e como história: o
edifício ideal é o monumento como forma plástica unitária expressiva de
valores ideológicos e históricos». Esta concepção não invalida que a sua
obra arquitectónica não possa ser considerada como «um elaborado
conjunto de tipologias monumentais e como fundamento tipológico da
arquitectura clássica do Cinquecento» 132.

2.1.3.1.4. A posição social do arquitecto

Uma das grandes conquistas do Renascimento assenta no


reconhecimento da nobreza das artes, na sua valorização bem como na
insistência da liberalidade profissional de quem as pratica e consequente
ascensão na hierarquia social. Para esta realidade foi decisivo o argumento
de que na base da arte estava a «ciência», ou seja, um conhecimento
matemático-geométrico indispensável para o seu claro domínio e
entendimento, saber este que sustentará uma nova visão da arte. Se isto é
claro essencialmente na defesa da arte da pintura, não deixou de ser
utilizado quer no que diz respeito à escultura, quer à arquitectura, como
prova a carta de 1468 de Federico Montefeltro, duque de Urbino:
«Estimámos que é conveniente cobrir de honra e louros os homens dotados
de talento e qualidades, especialmente aqueles que sempre foram
apreciados pelos antigos e modernos, pela capacidade de construir
fundamentada na aritmética e na geometria; duas partes essenciais das

131
C. Wilkinson, «The new professionalism in the Renaissance», The Architect. Chapters in the History
of the Profession, pág. 126.
132
Cfr. Giulio Carlo Argan, Renacimiento y Barroco..., pág. 190.

60
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

sete artes liberais por causa da sua certeza imediata actividade exigente de
grande saber e grande talento, pela qual nós temos a mais alta estima» 133.
Assim, a aproximação às artes liberais faz-se pela presença, no
conhecimento da arte da arquitectura, de um saber especulativo, assente na
geometria e na aritmética, princípios fundadores dessa mesma arte.

Será, por ventura, importante recordar que o arquitecto é, entre os


artistas, aquele que está mais próximo dos centros de poder, o mais culto e
influente seja no seu campo específico de actuação, seja influenciando o
avanço dos campos artísticos parentes, como bem provam os exemplos de
Brunelleschi e de Bramante. Na mesma perspectiva, Giulio Carlo Argan
exemplifica esta condição com os projectos renascentistas em torno da
«cidade ideal», a um tempo uma invenção artística (arquitecto) e política
(príncipe). A importância desta intenção é justificada pelas raízes culturais
que a sustentam, que elevam a posição social do arquitecto, conduzindo
quer às utopias políticas do governo perfeito, quer à cidade militar como
modelo da «urbe» humanista 134.

A necessidade de um reconhecimento profissional e liberal do artista


foi bem mais substancial para o caso do pintor e do escultor na medida em
que, no que diz respeito à arquitectura, o problema nunca se pôs com tanto
ênfase e circunstância. A razão essencial radica no facto de o pintor e o
escultor serem considerados trabalhadores mecânicos, terem uma formação
dentro do sistema tradicional dos mesteres e, por esta razão, a luta pelo
abandono do vínculo mecânico ter sido mais premente. Da mesma maneira
existia uma formação idêntica no que diz respeito ao pedreiro e mestre-
pedreiro mas não foi a partir desta perspectiva que se evoluiu para o
conceito moderno de arquitecto. Verdadeiramente, a nova figura de
arquitecto nasce a partir de cima e não como uma reivindicação própria dos
«mestres-pedreiros». Não obstante, a própria necessidade da defesa,
fortificação e ostentação palaciana ou religiosa por parte da classe dirigente
sempre colocou o mestre-pedreiro numa posição bem acima das suas
congéneres.
Ora, o argumento de base matemática, e por extensão geométrica,
que justificou o discurso de Leonardo da Vinci ou de Alberti para a defesa
da nobreza da arte da pintura é basilar – diríamos inato – na arquitectura.
Dito de outra maneira, desde cedo que «os arquitectos estão convencidos
que a arquitectura é uma ciência e que o edifício é o resultado de um
sistema de relações matemáticas. A ordem são as proporções do corpo

133
Chastel citado por Gérard Ringon, Histoire du métier..., pág. 31.
134
Consulte-se Giulio Carlo Argan, Classico e anti-clássico. O Renascimento de Brunelleschi a Bruegel,
pág. 58-60.

61
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

humano» 135 e tudo isto lhes é relevado e confirmado por Vitrúvio. Mas a
profunda reverência do Renascimento em relação às proporções é vista «ao
contrário da Idade Média, não como um expediente técnico, mas como a
realização de um postulado metafísico» ou especulativo e, nesta
perspectiva, «os conhecimentos artísticos desenvolveram as proporções
para lá das proporções medievais» 136. Logo, «assumir o papel de
intelectual significa, para o artista, reivindicar nova dignidade pessoal mas
também reconhecer a arte como valor das novas classes de poder ; a
tratadística tem, portanto, um papel a desempenhar» como uma «via de
colóquio com a história e a antiguidade, define um código que responde às
novas linguagens artísticas» conclui Manfredo Tafuri 137.

Alguns artistas relevantes no campo da arquitectura ocupam já no


século XV posições sociais importantes, como Ghiberti e Brunelleschi, mas
não podemos extrapolar um ganho a partir da própria consciência de
«arquitecto». Pelo contrário, tratava-se de uma situação que decorria do seu
papel como personagens centrais da vida artística e social da Florença
quatrocentista, o que não impediu Brunelleschi de ter sido preso em 1434 e
de ter que pagar uma coima por não estar inscrito na «guilda» dos «maestri
di pietre e legnami» ao ser encarregado das obras da Catedral de Florença
138
.
Leopold Ettlinger traça de forma cabal a grande mutação
renascentista nos finais do século XV: «As oficinas de pedreiros medievais
foram uma empresa cooperativa combinando muitas habilidades. A
Renascença herdou esta organização, como muitas outras coisas do período
precedente. Mas havia uma diferença. O capo-maestro medieval, que
recebeu a sua aprendizagem na oficina, estava familiarizado desde cedo
tanto com o tradicional vocabulário formal como com as suas
possibilidades estruturais e limitações. Tinha os seus livros de modelos e
podia contar com a experiência de gerações no que diz respeito aos
métodos de construção. Mas, nos inícios do século XV, uma introdução de
novas formas baseadas nas ruínas clássicas trouxe, necessariamente, uma
divisão do trabalho. O desenhador de uma igreja ou palácio no novo estilo
sabia tudo acerca dos detalhes e proporções clássicas, mas ignorava a parte
construtiva já que não tinha formação oficinal nesta área. Assim, precisava
de ajuda de um construtor para realizar as suas ideias. Normalmente o
emprego de um construtor era mais ou menos simples, até porque
Brunelleschi, Alberti e outros apenas mudaram a aparência das suas igrejas
e palácios. De facto, os pedreiros e construtores adaptaram-se mais
135
Rudolf Wittkower, Los fundamentos de la arquitectura en la edad del humanismo, pág. 145.
136
Cfr. Erwin Panofsky, O significado nas artes..., pág. 62.
137
Manfredo Tafuri, «Tratadística, tipologia, modelos», Historia de La Arquitectura. Antologia Critica,
pág. 207.
138
Rudolf e Margot Wittkower, Nascidos bajo el signo…, pág. 21.

62
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

rapidamente às suas tarefas que os arquitectos desenhadores que levaram


muito tempo a discernir as necessidades estruturais dos edifícios. Este
problema ainda surgia nos inícios do século XVI e o destino de Bramante e
de São Pedro é o último exemplo desta dicotomia» 139.

Neste contexto, vale a pena considerar a tradição italiana do «artista-


arquitecto» para a qual chamou a atenção Catherine Wilkinson. Se através
desta designação já poderíamos nela considerar Giotto ou Giovanni
Pisanno agora, «equipado com o conhecimento da perspectiva, das
matemáticas e dos despojos da arquitectura Romana, um artista poderia
tornar-se um arquitecto» 140. Assim aconteceu com Brunelleschi e
Bramante, o primeiro o lendário «inventor» da perspectiva pictórica e o
segundo um pintor especializado em perspectiva arquitectónica. Esta
tradição é suportada pelos cabais exemplos de Miguel Ângelo, de Rafael,
de Baldassare Peruzzi, de Giulio Romano ou de Jacopo Sansovino e
estende-se até à época de Bernini, não demonstrando nenhum deles
desconhecimento e inexperiência nestas funções. Segundo a mesma autora,
o próprio Vasari parece desprezar os Sangallo – que vê como um exemplo
de arquitectos na linha tradicional e familiar de aprendizagem – face a
Bramante e a Miguel Ângelo, artistas conscientes de que o verdadeiro e
moderno fundamento da arquitectura é o «disegno».

2.1.3.1.5. O paradigma do arquitecto no «Cinquecento»

Donato Bramante (1444-1514) encarna na perfeição a figura do


arquitecto «moderno». Se Brunelleschi tinha re-inventado o «antigo»,
Bramante re-inventa o «clássico». Urbinense com sólida formação teórica
no campo da geometria e da perspectiva, ultrapassa os efeitos
«antiquizantes» da arquitectura italiana através de uma consciência
depurada e formalista do modelo arquitectónico clássico que ele próprio
sintetiza na sua obra romana, nunca deixando de conferir à sua prática o
sentido plástico e escultórico que unifica a tríade artística vasariana. A
planta em cruz grega inserida num quadrado da Basílica de São Pedro do
Vaticano marcará uma nova era para toda a arquitectura – modelo
gigantesco e heróico «renascido», encarna o rigor matemático, a busca pela
perfeição e a harmonia última nascida do «disegno» que o Renascimento
procurou, alcançou e superou. Chega a Roma em 1499 e irá promover a
depuração e simplificação da imagem da Antiguidade concebendo o espaço
arquitectónico como se se tratasse de um pintor 141.

139
Leopold Ettlinger, «The emergence of the Italian Architect during the fifteenth century», pág. 121.
140
Catherine Wilkinson, «The new professionalism in the Renaissance», pág. 135.
141
Giulio Carlo Argan, Renacimiento y Barroco…, pág. 35.

63
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Bramante foi o primeiro teórico e arquitecto a tornar visível o mundo


enigmático e perdido enunciado no escrito vitruviano. Conseguiu-o,
paradoxalmente, com ele e renunciando-o. Este facto está amplamente
expresso em toda a literatura arquitectónica da época para quem Bramante
não só igualou como superou a Antiguidade. Se Vitrúvio era a referência,
Bramante é a evidência. É essencialmente reconhecido por ter recuperado
do passado o Dórico no «tempietto» de San Pietro in Montorio – baseando-
se nas teorias vitruvianas e nas ruínas de tipo circular – fixando a sua
tipologia, mas também realizou na sua obra romana o Jónico e o Coríntio
de forma correcta, partindo dos modelos fixados essencialmente no
Anfiteatro flaviano, vulgarmente conhecido por Coliseu. Se considerarmos
o exemplar bramantesco do Coríntio que fixa para o interior de São Pedro
do Vaticano, vemos a sua evolução perfeitamente atingida, superando as
tipologias antiquizantes quer de Brunelleschi, quer de Alberti. Segundo
concluiu Denker Nesselrath, «não podemos definir Bramante como
vitruviano nem copista do Antigo. Todavia, na formulação das ordens
clássicas, ele teve em conta os edifícios antigos, sujeitando-as em primeiro
lugar a modificações pessoais e com atenção a exigências estéticas no seu
contexto arquitectónico» 142.

Mais do que em Vitrúvio ou Alberti, a «praxis» arquitectónica do


Cinquecento encontrará na arquitectura bramantesca um modelo vivo de
trabalho. As preocupações formalistas dos arquitectos e dos teóricos da
arquitectura tomam um caminho idêntico ao que o arquitecto urbinense
propôs e sintetizou pela primeira vez. Daí que Sebastiano Serlio o coloque
como «arquétipo» da nova arquitectura do seu tempo embora se preocupe
mais em formular um sistema regular de ordens arquitectónicas que tenha
em conta, por um lado, uma relação interna de proporções entre si e, por
outro, uma preocupação estética assente no seu próprio juízo arquitectónico
arquitecto do que no gosto vitruviano ou bramantesco.
Não deixa de ser curioso, e sintomático da própria época, o juízo que
alguns dos seus contemporâneos fazem acerca da obra de Bramante.
Segundo Eugenio Battisti, «as opiniões dividiam-se: por um lado, os
defensores da arte moderna elogiavam-no, por outro lado, lamentava-se a
sua total irreverência em relação aos monumentos que já existiam ou àquilo
que ele poderia tomar por base, isto é, censurava-se que se impusesse o
novo sem tomar em consideração o velho» 143.

142
Denker Nesselrath, «Bramante e l’ordine corinzio», L’emploi des ordres dans l’architecture à la
Renaissance, pág. 89.
143
Eugenio Battisti, Renascimento e Maneirismo, pág. 212.

64
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

2.1.3.1.6. A síntese vazariana e as artes do «disegno»

Arquitecto, pintor e teórico das artes, Giorgio Vasari (1511-1574)


redigiu e fez publicar em 1550 – e posteriormente numa segunda edição
aumentada, em 1568 – a primeira biografia moderna da História da Arte, as
Vite de più eccelenti Architteti, Pittori et Scultori Italiani. Este enorme
elogio às artes e aos artistas confirmou também a denominação de uma
época, a «rinascità» como consciência épocal e histórica de um
rejuvenescimento da cultura antiga miscigenada na matriz católica. Se a
primeira edição é quase inteiramente decorrente de um autor com formação
humanista, a segunda edição demonstra já algum compromisso com
determinadas correntes de pensamento contemporâneas não escapando, por
exemplo, à linha reformista católica tridentina. A tese vazariana é clara –
considera a arte do seu tempo como superior à da Antiguidade, marcando o
espírito superlativo de superação artística alto-renascentista e maneirista,
chegando mesmo a prever a sua decadência 144.

O texto vazariano não se destina aos artistas mas aos diletantes da


arte, «não é um livro teórico, é uma biografia onde a narração de Vasari
tem implícita uma atitude teorizante, se bem que esta atitude tenha que ser
vista nas entrelinhas» 145, ou seja, de forma indirecta e interpretativa,
quando desenvolve conceitos importantes como os de «grazia» e de
«giudizio» que caracterizam a época, decorrentes de um admirador da
elegância de Rafael e da «terribilità» como um discípulo de Miguel
Ângelo, como o foi Vasari.
O dado de maior relevo será a definição da essência comum dos três
campos artísticos em torno do conceito de «disegno»: «O desenho, pai das
nossas três artes, arquitectura, escultura e pintura, procedendo do
intelecto, extrai da pluralidade de aspectos das coisas um juízo universal,
semelhante a uma forma ou ideia de tudo o que existe na natureza, a qual é
perfeita nas suas medidas». «Posto que deste conhecimento nasce um certo
conceito e juízo, e se forma na mente aquilo que expressado logo com as
mãos se chama desenho, pode-se concluir que este desenho não é outra
coisa que a expressão visível e explicação do conceito que se tem no
espírito, e do que alguém imaginou na mente e elaborou na ideia» 146. A
definição de «disegno» é dupla: em termos restritos refere-se à
representação ou produção física de uma imagem que exige habilidade e
destreza mas em termos espirituais e especulativos identifica-se com a
«ideia mental», como «uma forma ou uma ideia de todas as coisas que há

144
Lionello Venturi, História da crítica..., pág. 104.
145
Moshe Barasch, Teorías del arte..., pág. 173-174.
146
Citado em Renacimiento en Europa, edição de Joaquim Garriga, pág. 273.

65
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

na natureza» 147. Será exactamente com esta definição que Vasari irá
contribuir decisivamente para a caracterização da arte de uma época que se
vê a si própria como capaz de superar a Natureza, o modelo mimético da
Arte.

Sem nos desviarmos do contexto, é importante esclarecer que


Giorgio Vasari não abandona nem substitui o conceito de «imitazione» pelo
conceito de «disegno» como fundamento da Arte. A Natureza continua a
ser a raiz de toda a perfeição e a arte do seu tempo, segundo o pensamento
vazariano, atinge a máxima conformidade com o modelo natural. Trata-se,
na realidade, de superar a mera imitação e procurar seleccionar do
arquétipo a «boa regra, a melhor disposição, a medida adequada, o desenho
perfeito e a graça divina» que estão por detrás do conceito de belo 148.
Neste sentido, o «disegno» como elemento espiritual é a sua causa
primeira, na medida em que a Arte provém da mente, sendo a Natureza a
causa segunda, identificando-se com a «idea» platónica e a «forma»
aristotélica 149. Neste sentido, partindo do conceito de «disegno», articula-
se um sistema coerente que unirá os três campos artísticos e se
institucionalizará durante séculos. Se aquilo que une um escultor, um pintor
e um arquitecto é a partilha de uma mesma essência, com frequência
encontrámos mestres que dominam todo o espectro artístico sendo o
exemplo acabado a figura «divina» de Miguel Ângelo. Não obstante a
enorme discussão em torno da «paragone» das artes, a maioria dos autores
como Vasari, Vicenzo Danti ou Gabrielle Paleotti, não deixa de considerar
que a mais nobre das três artes é a Arquitectura. O «artista-arquitecto» está
definido.

O conceito de «disegno» como fundamento da arte e a sua dupla


definição será cristalizado pelo pintor e teórico Federico Zuccari (1542-
1609) no seu escrito L’ Idea de pittori, scultori et architetti publicado em
Turim em 1607. Encontramo-nos já muito afastados da visão renascentista
formulada por Alberti ou Leonardo e da defesa do fundamento cientifico-
matemático como raiz artística e, nesta perspectiva, Zuccari não se coíbe de
afirmar, por exemplo, que a pintura não é filha da Natureza mas sim do
«disegno». Se o «disegno esterno» é muito simplesmente o debuxo sobre
papel, o «disegno interno» é não «matéria, nem corpo, nem sentimento,
nem substância» mas «uma forma, uma ordem, uma regra, o verdadeiro
propósito da mente», não puramente espiritual pois identifica-se quer com a
imagem na mente do artista quer com a sua materialização no papel 150. A

147
Cfr. Moshe Barasch, Teorías del arte…, pág. 179-180.
148
W. Tatarkiewtz, História de la estetica, Tomo III, pág. 250.
149
Sobre estas questões consulte-se, a título de exemplo, E. Panofsky, Idea..., pág. 64-66.
150
Citado em Moshe Barasch, La teoría del arte..., pág. 245.

66
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

sua formulação leva-o a considerar que o «disegno interno» existe não só


no Homem mas também nos Anjos e em Deus, elevando-o à potência
metafísica.

Vasari e Zuccari transportaram a sua teoria para o ensino das artes e


da arquitectura, constituindo as primeiras academias artísticas e rompendo
definitivamente com o ensino corporativo.

2.1.3.1.7. As Academias da Arte

Se os fundamentos geométrico-matemáticos apontavam já para uma


nova concepção social do artista e uma demarcação dos corporativismos
mecânicos, a definição da essência artística como «disegno» valorizou em
definitivo o artista como intelectual, autonomizou-o liminarmente e definiu
uma nova metodologia de ensino. Como afirma Pevsner, «a nova
concepção da posição social do artista implicava necessariamente uma
nova concepção de educação artística» 151. Se até este período os métodos
tradicionais não foram questionados, com o Primeiro Renascimento, a
perspectiva e a própria metodologia muda seguindo o belo enunciado de
Leonardo da Vinci – «estuda primeiro a ciência e depois segue a prática
nascida dessa ciência».

As primeiras academias italianas não surgem directamente ligadas às


artes. No ano de 1531, como grupo não organizado, surge em Siena a
«Academia Rozzi» mas a primeira reunião de intelectuais verdadeiramente
institucionalizada, veiculada ao Humanismo e oficializada por um governo
é a de 1541 e ficou conhecida como «Academia Florentina», tutelada pela
figura do filósofo neoplatónico Marsilio Ficino. É necessário referenciar
ainda a constituição da «Academia Vitruviana» (1540), fundada por
Claudio Tolomei com o propósito de resolver as contradições entre o texto
antigo e as «rovine» arqueológicas, embora não se tratasse de uma
instituição de ensino da arte da arquitectura.

A primeira academia artística foi criada por Giorgio Vasari – não


obstante este mesmo autor referir que uma primeira academia informal,
uma espécie de pequena escola para estudantes de pintura e escultura,
independente das normas e restrições das corporações, tenha sido fundada
em Florença por Lorenzo de Medicis muitos anos antes, com o objectivo
imediato de estudar e desenvolver as novas linguagens artísticas partindo
dos modelos antigos sendo aí que, por exemplo, Miguel Ângelo realizou a

151
Nicolau Pevsner, Las academias de arte, pág. 37.

67
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

sua aprendizagem sob a alçada metodológica do escultor Bertoldo 152. Para


compreendermos a intenção de Vazari na criação da primeira academia
artística e a revolução que promoveu, teremos que recordar alguns factos
relacionados com a organização profissional do artista em Florença até aos
inícios da segunda metade do século XVI.
Os escultores e pintores pertenciam aos grémios e companhias,
respectivamente, os primeiros às «arte dei fabricanti» porque lavravam a
pedra e os segundos às «arte dei medici, speziali e merciai» na medida em
que trabalhavam com pigmentos. Existia igualmente desde o primeiro
quartel do século XIV a Companhia de São Lucas, da qual faziam parte
pintores e escultores e artistas afins, corporação religiosa com objectivos
caritativos no qual regulamento (1386) nenhuma questão tocante à arte era
referida. O grémio impunha que todos os artistas deviam pertencer à
companhia e o próprio Vazari aparece no rol nominativo na primeira
metade do século XVI.

Aproveitando um momento em que as organizações tradicionais se


encontravam fragilizadas e contando com o apoio do Grão Duque de
Florença, Giorgio Vasari convoca uma reunião e oficializa a criação da
academia a 31 de Maio de 1562. Ficará conhecida como «Academia del
Disegno» e será a tradução prática das teorias artísticas vazarianas. As
regras desta nova associação inclinam-se para o ensino das artes para o
qual são eleitos, em cada ano, três «visitatori» com o objectivo de iniciar
jovens artistas na arte do «debuxo». Concluída a aprendizagem, o mestre
deverá propô-lo como membro da academia, sendo que a aprovação se
baseava numa prova de desenho apresentada pelo proponente. Todavia,
este tipo de ensino não pressupunha uma substituição da preparação
técnico-prática residente no âmbito oficinal. Tratava-se, isso sim, de uma
aprendizagem complementar baseada no conhecimento de disciplinas
auxiliares e úteis ao desenvolvimento das artes, como a Geometria ou a
Anatomia, programadas pelo regulamento de 1563. Pouco depois, em 1571,
todos os escultores e pintores florentinos são libertos por decreto da
pertença a qualquer grémio «mecânico». A «Academia del Disegno» será
«a primeira deste tipo que serviu de modelo a parecidas instituições
posteriores em Itália e outros países. As Academias da Arte seguiram a
pauta das academias literárias que já estavam à algum tempo a funcionar, e
substituíram a velha tradição das oficinas por uma espécie de formação

152
Coloca-se de parte toda a problemática em torno da inscrição «academia leonardi vinci» e o relato da
reunião particular entre Leonardo e vários estudiosos, revelado por Luca Pacioli. Refira-se ainda uma
gravura de Agostino Veneciano com a inscrição «Academia de Baccio Bandinelli em Roma – 1531» que
Nicolau Pevsner não vê igualmente como um grupo verdadeiramente organizado. Cfr. Pevsner, Las
academias..., pág. 39-41.

68
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

regular que incluía temas científicos tais como a geografia e a anatomia»


153
.

Antes do final de Quinhentos uma outra academia surge em território


italiano, impulsionada por Federico Zuccari, a «Academia de São Lucas»
em Roma, instituída a 14 de Novembro de 1593. Agora, insiste-se
preferencialmente na discussão de temas especulativos sobre Arte e na sua
dimensão educacional. Como liminarmente concluiu Pevsner, «Vazari ao
acentuar o representativo e Zuccari ao acentuar antes de tudo a função
educativa de uma academia traçaram as duas principais funções sob as
quais se fundam as academias futuras» 154.

Quer em Florença, quer em Roma, os arquitectos, pintores e


escultores faziam parte das Academias. É importante recordar que os
arquitectos, ao contrário dos seus congéneres das artes plásticas, não se
encontravam enquanto tal arregimentados, o que comprova o aparecimento
a partir de cima de uma nova realidade e não a ascensão social de «mestre
de pedraria» a arquitecto. Se quisermos utilizar uma comparação imediata,
«a diferença fundamental entre os grémios e as academias consistiu no
facto de que estas últimas trataram as artes como temas científicos, sendo
ensinado tanto a teoria como a prática, enquanto que as corporações se
contentavam com fixar e perpetuar uma tradição técnica» 155.

153
P. O. Kristeller, El pensamiento renacentista…, pág.197-198.
154
Cfr Nicolau Pevsner, Las academias..., pág. 57.
155
Anthony Blunt, La teoría de las artes..., pág. 73.

69
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

2.1.3.2. O caso francês

Pese embora a primeira utilização do termo «arquitecto» surja dentro


de um cenário literário – na obra em prosa de Christine de Pisan em 1404 –
só em 1523 o engenheiro militar Dominique de Coustonne, desenhador do
primeiro modelo de Chambord, é tratado como «architect» 156. Esta
pretensa novidade não impediu, todavia, uma forte resistência à entrada de
um novo conceito e valorização profissional dentro da circunstância
artística francesa, dominada por uma organização do trabalho assente numa
associação gremial poderosa e lida em termos medievais onde o mestre
pedreiro se mantém como líder incontestado e principal mestre de obras
régio 157.
Foi com Francico I (1494-1547) que se consubstanciou a importação
de artistas e obras renascentistas e a construção e reedificação de castelos e
palácios reais como Blois, Chambord, Saint Germain en Laye e
especialmente Fountainbleau dentro dos parâmetros da nova arquitectura.
A migração para território francês de mestres italianos com o objectivo de
trabalhar a soldo do monarca, quer em Paris quer para o seu palácio em
Fountainebleu – entre os quais se contam, para além de Leonardo e da
breve presença de Andrea del Sartro e Vignola, Sebastiano Serlio, Rosso
Fiorentino e Primaticcio – não beliscou a organização corporativa dos
poderosos mestres «maçons» franceses que continuam a dominar as obras
régias, como Gilles le Breton, «mestre das obras reais» entre 1528-1547.
Pese embora os esforços de Serlio e as traduções de Vitrúvio (1547) e de
Alberti (1553), só com Delorme se institucionalizará verdadeiramente a
profissão de arquitecto e se impõe a evolução linguística e arquitectónica
renascentista.

O arquitecto francês Philibert Delorme (1510-1570) foi o verdadeiro


introdutor da modernidade renascentista em França com seu Le premier
tome de l’architecture, redigido cerca de 1567. É considerado um dos mais
importantes tratados do Renascimento, dividido em nove livros,
influenciado por Vitrúvio, Alberti e Serlio: «Para além de ser pleno de
erudição, o tratado destaca-se, como afirmação do valor pessoal, por
concentrar-se nas próprias obras de Delorme e sobre a profissão do
arquitecto em geral, funcionando também como guia prático da construção
à época», não deixando de dar importância à estereotomia, ou seja, à arte
do corte dos canteiros – por ele tratada anteriormente no manual das
Nouvelles inventions pour bien bastir – vinculado à tradição da cantaria
medieval francesa, acerca da qual afirma tratar-se de «uma das principais
aplicações da geometria à arquitectura e uma técnica essencial para o
156
Louis Callebat, «Architecte: histoire d’un mot», pág. 15.
157
Cfr. Yves Pouwels, «L’ arquitecte, humaniste et artiste», Histoire de l’Architecte pág. 77-79.

70
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

desenvolvimento de uma arte nova, liberta de todo o empirismo medieval»


158
.
Revela no Livro I a tradição vitruviana já plenamente arreigada,
recomendando a quem desejar erigir um edifício a inalienável presença de
um arquitecto «judicioso, douto e esperto, que seja versado em Filosofia,
Matemáticas e também em Histórias, para ser consciente do que faz e
conhecer as causas e desenvolvimento de tudo o que concerne à
arquitectura, e que entenda igualmente acerca do desenho, para mostrar e
fazer compreender a todos com imagens e desenhos as obras que pretende
realizar. Simultaneamente deve conhecer a perspectiva, tanto para realizar
os seus desenhos como para saber ilustrar com precisão os edifícios,
segundo a situação e características de cada uma das partes» 159. Todavia,
dá já menor importância ao conhecimento da Medicina, da Retórica e das
Leis, embora saliente o papel dos conhecimentos no campo da Filosofia
natural, que lhe permitem conhecer as características da zona, da topografia
à propriedade dos ventos. Não deixa de aconselhar o arquitecto a ser
«adestrado na sua arte desde a juventude, e que tenha estudado as ciências
que são necessárias à arquitectura, como entender a Aritmética (refiro-me
à sua prática e teoria), a Geometria (também a teoria, mas mais a prática
com suas linhas, que consistem na sua verdadeira razão de ser),
similarmente a Astrologia, Filosofia e outras disciplinas, como foi dito, e
em especial ser muito versado na questão das simetrias, para ajustar as
medidas e proporções a tudo, sejam fachadas de casas ou partes das
construções» 160. O encomendante poderá confiar-lhe o seu encargo
tranquilamente se o arquitecto demonstrar conhecer e dominar todo este
leque de saberes, ao qual não devem faltar os conhecimentos musicais que
lhe permitem tratar de todas as questões relacionadas com a acústica dos
edifícios.

Philibert Delorme nasceu no seio de uma família de construtores de


Lyon e aprendeu dentro do sistema tradicional. A viagem a Itália em 1533
permitiu-lhe aperfeiçoar a sua formação e operar «a fusão do novo estilo
italiano com as tradições medievais locais» 161. Representa claramente a
ideia do arquitecto que se generalizará por toda a Europa quinhentista, já
despojada da densa erudição vitruviana e orientada para questões única e
exclusivamente aplicáveis à «praxis» arquitectónica 162. Nunca descura a
158
Dora Wiebenson, Los Tratados de Arquitectura. De Alberti a Ledoux, pág. 74-76.
159
Excerto publicado em Fuentes y documentos para la Historia del Arte, Vol. IV, pág. 500.
160
Cfr. Fuentes y documentos..., Vol. IV, pág. 501.
161
Consulte-se breve biografia em Anthony Blunt, Arte y Arquitectura en Francia. 1500-1700, pág. 89-
101.
162
Pese embora defenda que todo o arquitecto deve ter um bom carácter, um dos exemplos que denota de
forma evidente o crivo vitruviano é a crítica à necessidade de ser versado em leis e em retórica, na
circunstância de resultarem pleitos ou necessitar de convencer o encomendante da mais valia do seu
trabalho. Afirma que «basta que esteja atento às ordenanças e costumes dos lugares» para evitar

71
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

importância dos problemas técnicos e a sua formação como mestre pedreiro


deu-lhe, segundo Catherine Wilkinson, a autoridade que faltara a um Serlio
ou um Primaticcio no confronto com os oficiais de pedraria franceses 163.
Para Delorme, «o que deu ao arquitecto como profissional a sua definição
foi um conjunto de relações, profissionais e sociais, com aqueles com os
quais contacta: o patrão, o operário, o administrador e oficiais do programa
de construção» 164.
O autor francês apresenta-nos no seu escrito de 1567 uma visão
muito avançada da arquitectura que o leva inclusivamente a opinar contra
os excessos decorativos da sua época, considerando que «seria muito
melhor que o arquitecto se equivocasse nos ornamentos, nas medidas e nas
fachadas do que naquelas regras fundamentais da natureza, que se referem
à comodidade e ao uso e proveito dos habitantes. A decoração, beleza,
enriquecimento das habitações servem só para satisfazer o olhar, mas
nada trazem à saúde humana. Nunca houve um erro tão grave como
permitir à maioria introduzir ornamentos na habitação; por outro lado,
saber distribuir bem e dispor comodamente é obra e faculdade de poucos
arquitectos» 165.
Uma das suas mais famosas originalidades foi a invenção de uma
sexta ordem arquitectónica – tida como uma espécie de ordem francesa ou
maneira francesa de compor uma ordem à maneira antiga – partindo da
origem material dos primeiros modelos construídos a partir de troncos de
árvores. Assim, faz incluir elementos decorativos de inspiração vegetalista
ao longo do fuste das colunas, dividindo-o em sectores e aplicando este
sistema a toda e qualquer tipologia modular do Dórico ao Coríntio.
Exemplo tipificado da transição entre o construtor gótico e o mestre
moderno, Philibert Delorme «faz a apologia de um saber filiado no modo
antigo, conciliando os saberes práticos extraídos dos mestres geómetras
medievais para a complexa construção estereotómica das arcarias em pedra
com os modelos formais de um classicismo marmório aprendido nas ruínas
romanas, suportados por minuciosos desenhos de levantamento de bases,
capitéis, arquitraves e cornijas. Procurando demonstrar uma erudição de
classe que o estatuto social lhe conferia, o antigo aprendiz de construtor
tornado primeiro desenhador-arqueólogo, depois arquitecto militar e mais
tarde ministro de obras do rei e ministro da doutrina de Deus, ia citando
alguns clássicos mas nunca deixou transparecer qualquer simpatia ou
deferência pelos artistas seus contemporâneos de Roma, apesar de com
alguns ter convivido e com outros ter aprendido» 166.

problemas com os juizes e que não é necessário apenas mostrar a sua mais valia, explique o projecto ao
patrão, seguindo neste sentido a opinião de Alberti.
163
Catherine Wilkinson, «The new professionalism in the Renaissance», pág. 137-138.
164
Cfr. Catherine Wilkinson, «The new professionalism in the Renaissance», pág. 124-125.
165
Citado em Historia de la Arquitectura..., pág. 261.
166
Domingos Tavares, Philibert Delorme, profissão de arquitecto, pág. 81.

72
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

2.1.3.3. O caso espanhol

2.1.3.3.1. O conceito de arquitecto e a consciênca da modernidade

A designação de «arquitecto» surge pela primeira vez em castelhano


no ano de 1526 firmada no «Medidas del Romano» de Diego de Sagredo.
Para o tratadista, o arquitecto é o «principal fabricador», o «ordenador de
edifícios» instruído nas artes liberais que trabalha quer com o engenho,
quer com o espírito, diferenciando-o do «canteiro» que labora com o
engenho e com as mãos 167.
No entanto, durante a primeira metade do século XVI, salvo raras
excepções, o título de «arquitecto» não aparece ligado aos grandes mestres
castelhanos. No plano literário, até cerca de 1560 os profissionais da
arquitectura são tidos como «mestres» ou mesmo «canteiros» e, fora as
inscrições latinas ligadas ao ambiente humanista, apenas se podem apontar
duas excepções de relevo. Em 1536, Diego de Siloé aparece-nos como
«mestre arquitecto», como debuxador de traças e director de obras de
arquitectura – mas igualmente como «canteiro» no que concerne à sua
função na obra – e em 1546 o francês Pierres Bedel surge como «mestre de
arquitectura» a trabalhar em Aragão 168. Fernando Marías chama a atenção
para o facto de a terminologia «arquitecto» ser usada, desde muito cedo,
para o caso dos ensambladores e entalhadores, título que se mantém
equívoco até bem dentro de Seiscentos. O início da mudança é
representado por Francisco de Villalpando que se assume como «jeometra
e architecto» na sua tradução dos Livros III e IV de Sebastiano Serlio em
1552 e que banalizará a nomenclatura através do texto do arquitecto e
teórico italiano.

No plano prático, a historiografia castelhana considera que a viragem


pode recuar até ao ano de 1537, quando Carlos V designa Alonso de
Covarrubias e Luis de Vega para dirigir as obras do Alcácer de Madrid,
Toledo e Sevilha. O título documental é ainda o de «mestre» mas as
faculdades são já as de verdadeiros arquitectos 169. Pouco depois, em 1546,
as funções ficam determinadas por D. Iñigo Lopez de Mendoza – para a
Alhambra, Granada – e encontram-se unidas as funções de «arquitecto» e
«mestre de obras» na pessoa de Pedro Machuca que assume a função de
traçador e projectista, ascendendo ao cargo a partir de posição inferior.

167
Sobre Diego de Sagredo, consulte-se o capítulo a ele dedicado neste trabalho.
168
Cfr. Fernando Marías, El largo siglo XVI. Los usos artísticos del Renacimiento Español, pág. 497.
169
Martin González, El artista en la sociedad española del siglo XVII, pág. 55.

73
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

O ponto de não retorno, que faz coincidir função e título, é o de Juan


Bautista de Toledo, nomeado em 1561 «arquitecto régio» secundado por
Juan de Herrera, seu colaborador e substituto, que nos surge como
«arquitecto de sua majestade» e «arquitecto geral».

De forma brilhante, os historiadores da arte Agustin Bustamante e


Fernando Marías resumem a situação espanhola no que concerne à
introdução e assimilação da nova linguagem renascentista: «Temos que
diferenciar duas correntes distintas que se sobrepõem, de um ponto de vista
cronológico, que se entrecruzam, no âmbito da arquitectura espanhola do
século XVI. Uma gótica quanto à técnica, concepção espacial e estruturas
planimétricas e murais, mas empregando também uma decoração
plateresca, isto é, tomada de repertórios de ornamentação clara – uma
tendência proto-renascentista ou, inclusive, pré-renascentista. Outra,
surgida cerca de 1520 fundamentalmente com Siloe e Machuca, onde os
componentes e estruturas clássicas do muro aparecem recobertas de
decoração plateresca mas na qual – e por isso é plenamente renascentista –
as planimetrias dos edifícios iniciam a cópia dos modelos tipológicos da
Antiguidade. Uma e outra partilham o uso de uma decoração plateresca,
mas no verdadeiramente arquitectónico opõem-se de forma violenta e
absoluta. E, de facto, os arquitectos do estilo ornamentado renascentista,
passariam de imediato a desornamentá-lo, deixando paredes e componentes
nús de decoração, e as suas obras constituíram os primeiros expoentes
desse estilo desornamentado, classicista, que apenas identificamos com
Juan Bautista de Toledo e Juan de Herrera» 170.

Um dos aspectos muito interessantes da circunstância espanhola diz


respeito à consciência estilística manifesta em alguns dos escritos
produzidos durante este período. Lázaro de Velasco, tradutor de Vitrúvio e
o continuador de Siloé na fábrica da catedral de Granada, escreve em 1577:
«Há diversas tipos de templos acomodados ao uso Cristão, que são o modo
Romano que em Espanha se usou, ou o modo tedesco ou da Alemanha, que
dizem ao Moderno, ou o uso Romano, que agora se pratica estando na
maneira antiga que é armando sobre o redondo ou quadrado, como o fez
Bramante e outros italianos práticos, ou com pilastras ou naves
desembaraçados e escombrados como os de Espanha» 171. Aqui estão, de
forma claramente exposta, o Românico como o «modo romano que se

170
Agustín Bustamante e Fernando Marías, «As medidas de Diego de Sagredo», Sagredo.Medidas del
Romano, pág. 75-76.
171
Citado em Fernando Marías, «Las iglesias de planta central en España», L’ Église dans l’Architecture
de la Renaissance, pág. 133.

74
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

usou», o Gótico ou «modo tedesco e moderno» e o «uso romano»


renascentista, manifestando-se uma acutilante consciência histórica.

2.1.3.3.2. O ensino da arquitectura

A nova realidade importada de Itália não impôs um total abandono


do ensino tradicional que se mantém necessário quanto mesmo essencial.
De facto, a formação tradicional ligada a uma «oficina» e a um ensino de
carácter familiar e geracional, continua a marcar toda uma hierarquia desde
o simples aprendiz até ao mestre de pedraria.
Fernando Marías distingue dois níveis de ensino anteriores à etapa
final, seja ela a de aparelhador ou de mestre de pedraria. Num primeiro
nível está o simples canteiro «como produto da oficina ou do sistema
familiar» constando a sua aprendizagem no saber «talhar a pedra segundo
os moldes e contramoldes» podendo, a partir daí, ser empregado como
oficial e receber um ordenado. Num segundo nível encontra-se o oficial de
cantaria que teria, necessariamente, de ter um mestre que «transmite o seu
saber ao aprendiz ou já ao canteiro, portanto, oficial. O que aprendem
alguns aprendizes é a arte da traça da montea e com eles pode trabalhar
como mero canteiro ou como mestre simétrico de cantaria ou mestre
geométrico» 172.
Sabe-se que o ensino era de natureza empírica e se dava importância,
em continuidade com a tradição medieval, aos aspectos mais mecânicos do
ofício. Num documento de 1553, um mestre canteiro comprometia-se a
ensinar «o dito ofício de cantaria, molduras e tres monteas de capillas,
escarçana e panel y medio punto», ou seja, três modelos de cortes de pedra
para três tipos de cobertura 173. Dentro deste tipo de ensino, a formação de
«mestre de pedraria» recorre a alguns conhecimentos teóricos básicos, no
campo da geometria e da matemática, patentes e fundamentais na «praxis»
arquitectónica. Esta é a situação tradicional de aprendizagem na viragem da
primeira para a segunda metade de Quinhentos. Prova desta tradição é a
obra de Alonso de Valdevira e o seu «Livro de cortes de cantaria» que não
é nada mais do que um manual prático de estereotomia, ensinando a arte do
talhe dos materiais para construir os mais diversos elementos
arquitectónicos. Num texto anónimo de 1550 dirigido ao príncipe Filipe
afirma-se claramente que ninguém poderia ser bom arquitecto se não
tivesse tido uma aprendizagem de «oficial» 174.

172
Fernando Marías, El largo Siglo XVI..., pág. 503.
173
Fernando Marías, El largo Siglo XVI..., pág. 455.
174
Fernando Marías, El largo Siglo XVI..., pág. 496.

75
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

É exactamente com Toledo e a fábrica do Escorial que se transfere


para Espanha a prática do desenho rigoroso de conjunto e detalhes. Ao
arquitecto competia traçar as planimetrias gerais, que desenha, dimensiona
e assina mas, por vezes, algumas traças parciais de elementos detalhados
são de outra autoria como provam, no estaleiro escorialense, os trabalhos
conhecidos dos aparelhadores Lucas de Escalante e Pedro de Tolosa 175.
Toledo chegou a requisitar dois ajudantes e, para cumprir este objectivo,
recebe 200 ducados anuais para trazer consigo dois discípulos que o
auxiliem na execução das traças e modelos – Jeronimo Gili, um «mestre
entalhador», era um deles, o outro Juan de Herrera. Este contexto evoluiu
de tal forma que, em Espanha, surgirá a figura do «traçador» definido como
ofício próprio.

Entrando pela segunda metade do século XVI, a exigência de um


ensino teórico mais substancial parece introduzir-se dentro dos planos
programáticos do ensino dito «tradicional». Em 1567 Hernan Ruiz, «o
moço», firmava contrato com dois mancebos para lhes ensinar «a arte de
cantaria, dando-lhes a cada um três lições cada semana de traça de
arquitectura e perspectiva» aparecendo assim reforçado o ensino no campo
teórico através do estudo da geometria e da perspectiva bem como do
desenho arquitectónico. O próprio trabalho teórico de Hernan Ruiz,
largamente inspirado nos escritos de Serlio e próximo dos trabalhos
franceses e nórdicos coevos, supera já o ensino dentro da linha tradicional
da estereotomia 176. Este exemplo não é ingénuo na medida em que Hernan
Ruiz teve uma formação «oficinal» tradicional, evoluindo a partir de uma
especialização a título pessoal. Outro documento que aponta para a
incorporação de um novo receituário dentro da aprendizagem tradicional,
datado de 1568, aponta para a importância de na «arte de fabricação de
obras de cantaria» ser conveniente o estudo da «aritmética teórica e
prática e geometria e fazer diferentes traças de edifícios em volumes
pequenos». Segundo Fernando Marías esta exigência está de acordo com as
propostas de Rodrigo Gil de Hontañón que mantém o tipo de ensino
anterior mas incorporando novas matérias 177.

De tudo se pode concluir que em Espanha, durante o século XVI, se


mantém o ensino tradicional dentro de uma «oficina» onde a base da
aprendizagem consistia essencialmente num rudimento teórico baseado na
aritmética e na geometria e na prática do talhe de cantaria. Mas a
emergência da nova cultura arquitectónica renascentista fez com que,

175
Martín González, «Formas de representación en la arquitectura clasicista española del siglo
XVI»,Herrera y el Clasicismo, pág. 22.
176
Consulte-se Alfredo Morales, Hernan Ruiz “el Jovem”, pág. 129-159.
177
Fernando Marías, El largo Siglo XVI... , pág. 455-456.

76
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

pouco a pouco, o ensino incluísse um «corpus» teórico mais elevado que,


não obstante, mantém a base anterior. A consciência da nova profissão e de
um novo tipo de ensino nascerá a partir de cima sem pôr de lado a prática
arquitectónica tradicional mas modificará, pouco a pouco, toda a pirâmide
hierárquica.

O preâmbulo aos leitores do ourives e escultor ourives Juan de Arfe


y Villafañe no manual De Varia Commensuracion para la Escultura y
Arquitectura, publicado em 1585, alertava para essa necessidade teórica na
preparação do moderrno oficial de arquitectura: «En la Arquitectura solo
digo las ordenes antiguas, y modo de guardar los uivos, y composiciones
balaustrales, mostrando las proporciones que en ello se debe tener,
reservando al eleligir (que es tambien gracia particular, en que vnos
acierton mejor que otros) para que cada vno lo siga segun su talento: solo
lo que es arte, y proporcion fui mi intento escrivir, porque es cosa
importantissima para todo, que el Artifice sepa lo que haze, porque no
sabiendo, aunque sea dibuxador diestro, y de ingenio claro, no harà cosa
substancial, sino mendosa, y sujeita à correccion» 178.

2.1.3.3.3. A «traça» e o desenho arquitectónico

Só com a chegada de Itália de Juan Bautista de Toledo nos anos 60 é


que se generalizará o emprego do desenho arquitectónico rigoroso,
sistemático e pormenorizado. Até aqui a prática aponta para esquemas
planimétricos básicos e simplificados, de aspecto genérico, introduzindo-se
por volta dos anos 20 algumas medidas directórias nos debuxos
relacionados com a obra de Pedro Machuca no Palácio de Carlos V em
Granada. Desde o Gótico que se encontram alçados exteriores e interiores
traçados de forma genérica e completados por detalhes arquitectónicos
variados de molduras de capitéis a entablamentos, mas tratavam-se de
modelos básicos. Este tipo de desenho algo livre mantém-se fora dos
ambientes mais eruditos em torno da Corte castelhana.

Com o Escorial, primeiro com Juan Bautista de Toledo e depois com


Juan de Herrera, define-se um desenho arquitectónico onde a planimetria,
altimetria e todos os detalhes arquitectónicos estão criteriosamente
pensados e transpostos para papel com suas respectivas medidas. A
presença e a importância da «traça» é uma mudança fundamental que leva
Martin Gonzalez a considerar existir em Espanha uma especialização
superior nesta área. Francisco de Mora, que aprendeu e acompanhou
Herrera foi, essencialmente, um tracista e o seu sobrinho Juan Gomez de

178
Juan de Arphe y Villafañe, De Varia Commensuracion para la Escultura y Arquitectura, fl. 2.

77
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Mora seria nomeado «mestre maior e traçador maior». No século XVII, a


título de exemplo, frei Nicolas de la Purificación é mencionado unicamente
como «tracista» 179. De salientar que quando falamos de traçadores nos
referimos a todo o género de trabalhos que passam, para além do projecto
arquitectónico, pelo desenho de retábulos, de arquitectura efémera,
tumulária e estatuária.

Não deixa se ser curioso, como veremos, que João Baptista Lavanha,
no seu escrito sobre a arquitectura naval, redigido nos finais do século XVI,
faça uma muito original crítica aos arquitectos que se ficam pelo domínio
da «traça», descurando os conhecimentos técnico-práticos da sua profissão
– uma clara inversão da circunstância tradicional.

2.1.3.3.4. A Academia Real Matemática

O ensino superior da arquitectura surgiu em Espanha nos finais do


século XVI sob o patrocínio de Filipe II. Face ao tradicional ensino
universitário, o monarca concentrou em Madrid um ensino de carácter
politécnico com a criação da «Academia Real Mathematica» em 1582 180.
O responsável pelo programa de estudos foi Juan de Herrera. Não obstante
nunca ter sido posto em prática na sua totalidade, formulou-se um
programa monumental e profundamente ambicioso – publicado em 1584 –
com o objectivo de formar especialistas em áreas tão diversas como sejam
Aritméticos, Geómetras, Mecânicos, Astrólogos, Gnómicos, Cosmógrafos,
Pilotos, Perspectivistas, Músicos, Arquitectos, Pintores, Fortificadores,
Niveladores e Artilheiros.

Numa breve análise aos vários programas específicos, para a quase


totalidade dos ramos, o estudo matemático-geométrico é imprescindível.
Para além do Arquitecto, que deveria especializar-se tendo em conta o
paradigma «vitruviano-albertiano» de conhecimento, partilhado pelos
Fortificadores – versados cumulativamente em armamento bélico – o
conhecimento de Vitrúvio é fulcral para a maior parte das disciplinas, do
estudo da perspectiva aos niveladores e artilheiros 181. Formados na
Academia Real foram, a título de exemplo, o engenheiro militar Cristobal

179
Martin Gonzalez, El artista en la sociedad..., pág. 61.
180
Rafael Moreira defende a tese de que na génese da criação da Academia espanhola está a viagem de
Filipe II, acompanhado por Herrera, a Portugal inspirando-se na lição régia de matemática, cosmografia e
naútica, dentro da tradição portuguesa de ensino que recuava, pelo menos, a Pedro Nunes. Consulte-se
Rafael Moreira, «A aula de arquitectura do Paço da Ribeira e a Academia das Matemáticas de Madrid», II
Simpósio Luso-espanhol de História da Arte, pág. 65-77.
181
Cfr. Ignacio Gonzalez Tascón, «La formación de los técnicos», Felipe II. Los ingenios y las máquinas,
pág. 49.

78
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

de Rojas e Juan Gomez de Mora que chegou ao cargo de «traçador-mor»


do reino. Para além da formação de arquitectos e fortificadores, a
instituição impulsionou igualmente a tradução e produção teórica de textos
por parte dos professores e estudantes formados. Exemplo disso mesmo é a
«Teoria e pratica de fortificacion» de Cristobal de Rojas ou as traduções
dos Elementos de Euclides por Ondèriz.

O plano formulado por Herrera não equivale, de modo algum, ao


modelo italiano do ensino artístico. Como concluiu Fernando Marías «se,
em Itália, as academias, com os seus propósitos representativos e
educativos, rompiam as ligações com os grémios, em Espanha, a academia
madrilena tende a acumular as novidades italianas com a tradição
controladora das confrarias gremiais, em certo sentido suplantando-as, mais
que opondo-se e enfrentando-se directamente»182.

Tal como veremos para a circunstância portuguesa, a realidade


francesa e espanhola apontava para linhas de continuidade que em Itália, de
forma ruptural, deixara de existir com a modernidade renascentista, quer no
que diz respeito à importância e manutenção de uma cultura que não
abandona os conhecimentos práticos adquiridos e decorrentes da tradição
baixo-medieva, quer ao tipo de influência que os tratados de arquitectura
ou o novo tipo de ensino praticado penetram nas estruturas coevas. Os
países mais ocidentais da Europa comungam de uma mesma realidade onde
a compreensão da estética e cultura arquitectónica transalpina se realiza
paulatinamente, nunca pressupondo um abandono completo de tradições
locais fortes e de uma leitura muito própria do Renascimento.

182
Cfr. Fernando Marías, El largo Siglo XVI..., pág. 473.

79
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

2.2. A realidade portuguesa entre 1550 e 1640

2.2.1. O Pedreiro

2.2.1.1. Aprendizagem

Seguindo uma longa tradição, tal como em todos os restantes


mesteres, a aprendizagem do ofício de pedreiro passaria por um período
formativo em torno de um mestre e da sua oficina. O costume impunha a
celebração de um contrato de trabalho entre o mestre e o progenitor ou
responsável pelo futuro aprendiz, sendo importante salientar que cada
mestre pedreiro poderia trazer consigo não mais do que dois iniciados
durante o mesmo período formativo.

Embora não abundante, a documentação da época, no que concerne a


esta matéria, é elucidativa. Sobejamente conhecido é o contrato celebrado
em Coimbra, a 1 de Maio de 1581 183, no qual o «arquitecto Jerónimo
Francisco obriga-se a ensinar o ofício de pedreiro a um filho de Pero
Francisco, lavrador». O contratado é Manuel, mancebo de vinte anos de
idade, ao qual o mestre se dispõe ensiná-lo por tempo de quatro anos e
meio, «de maneira que saiba lavrar pedraria chã e de moldura». Durante
este período, toda a educação e responsabilidade educativa transita do pai
para o mestre de pedraria que se ocupará da sobrevivência, alimentação e
vestuário do novo pupilo pois deverá «darlhe os aljmentos que ouver
mester e vjstilo e calcado como djto he e no fim dos ditos annos a lhe dar a
ferramenta segundo costume para com ella poder trabalhar». Em caso de
fuga do aprendiz, a responsabilidade será do patriarca que se obriga a trazê-
lo de novo para junto do mestre de modo a completar a sua aprendizagem.
Semelhante contrato foi por nós identificado numa «obrigação e
ensino de aprendiz entre Manuel Dias e Domingos» lavrada a 6 de
Dezembro de 1604 184. Neste caso o mestre de pedraria Manuel Dias
concerta-se com Domingos António, lavrador e tio de Domingos, mancebo
órfão de 18 anos, para «aver de ensinar o seu offício de pedreyro» durante
quatro anos e meio. O mestre compromete-se a dar-lhe de «comer e beber e
vestido e calçado de cotio para elle trabalhar, somte estoupa de linho lhe
não dara elle mestre, por que sua maj fiquara com essa obriguasão de lhe
dar toda a roupa e linho que for necessario». Concluída a aprendizagem,
dar-lhe-á «seu jornal como sendo bom obreiro» bem como «no fim dos

183
AUC, Notas do tabelião António Martins, Livro 72, fls. 47vº-48vº. Publicado por António de Oliveira,
«Estrutura social de Coimbra no século XVI», A Sociedade e a Cultura de Coimbra no Renascimento,
pág. 86-87.
184
ADP, Fundo Notarial, 1º Cartório, 3ª Série, Livro nº 124, fls. 145-147. Publicado em Carlos Ruão,
«Juizes do ofício de pedraria da cidade do Porto (1548-1628)», Museu, pág. 24-26.

80
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

ditos quatro anos e mo dous mil res em dro de contado he ferramta como he
uso e costume se dar a semelhantes aprendizes» para que possam exercer a
sua profissão, isto para além dos 600 reais, a meio da sua colaboração com
o mestre, «pera ajuda de hu ferragoulo querendo o elle trazer». Uma vez
mais se faz alusão ao facto de o tio ficar com a responsabilidade de resgatar
o sobrinho em caso de abandono contratual bem como ao facto de, em caso
de casamento do aprendiz, se manterem todas as suas regalias no que toca
ao direito de ter «cama en que durma e lhe dar estoupa de linho lavada»
para nela se recolher.

Outro contrato de «servidão», até agora nunca publicado, aponta para


a mesma ordem das coisas. A 7 de Novembro de 1612 185, em Lisboa, o
pedreiro Agostinho de Freitas compromete-se a ensinar Bento, órfão e
menor, por um período de quatro anos e meio e com obrigações idênticas
aos contratos anteriores. António Lopes, morador no termo de Aldeia
Galega, tutor do menor, contrata-se com o mestre pedreiro que se obriga a
«dar ensinado do ditto seo ofo assi e da manra que o elle sabe não lhe
escondendo couza algua delle pera que no fim dos dittos quatro annos e
mejo o ditto Bento seja tambem oficial do ditto ofo que pera onde for possa
por elle ganhar sua vida e não o dando ensinado o tera em sua casa a sua
custa delle Agostinho de freitas tanto tempo ate que o ditto Bento seja
tambem oficial como ditto he e per cada dia que assi o tiver em sua casa
lhe pagara aquilo que se paga a hu bom obreiro no ditto ofo», dando-lhe
«sua ferramenta costumada no tal ofo e assi hu chapeo e huas botas e assi
durante os dittos quatro annos e mejo lhe dara de vestir e calsar roupa
lavada cama em que durma e comer e bom tratamto de sua pessoa de modo
que o ditto Bento passe bem e não mal».
Acautelam-se, deste modo, todas as condições para que exista da
parte do aprendiz e do mestre um duplo comprometimento, sendo que a
excepção é uma vez mais ditada pela circunstância de o aprendiz abandonar
as suas obrigações, para a qual se comutam penas e apontam
responsabilidades. Em caso de fuga do aprendiz, o seu tutor António Lopes
compromete-se, à sua própria custa, a trazê-lo de volta para «acabar o
tempo q faltar» ou a indemnizar o próprio mestre pedreiro no que ele se
sentir lesado. Se a constante alusão a esta situação nos pode levar a pensar
que tal era um hábito corrente, deveremos talvez interpretar esta condição
mais como uma salvaguarda contratual da parte do mestre pedreiro no que
respeita aos seus próprios interesses.

185
ANTT, Cartório Notarial de Lisboa, nº 9/A, Livro 55, fls. 55vº-57vº. Citado mas não publicado em
Vítor Serrão, «Documentos e protocolos notariais de Lisboa referentes a artes e artistas portugueses
(1563-1650)», Boletim da Assembleia Distrital de Lisboa, pág. 19.

81
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Conclui-se deste modo que nos contratos de ensino do ofício de


pedreiro, para a segunda metade do século XVI e inícios do século XVII, o
prazo estabelecido para a aprendizagem era de quatro anos e meio, durante
o qual caberia ao mestre pedreiro iniciá-lo na arte de lavrar pedraria. Ao
cumprimento do tempo estipulado juntava-se-lhe a fidelidade ao mestre.
Pelo próprio livro segundo das Posturas Gerais de 1571 186 se impunha que
«nenhum oficial mecânico recolha em sua casa obreiro ou aprendiz que
estiver com outro até acabar o tempo» da aprendizagem. Posteriormente –
tal como se depreende pelo contrato de 1604 – querendo o recém oficial
ficar a cargo do mestre, este teria obrigação de lhe pagar a sua jorna,
podendo escolher trabalhar para outrém ou por conta própria depois de
provar, através de um exame, a sua habilidade e aptidão profissional. Estes
contratos de aprendizagem representam uma norma para todo este período.
As condições são semelhantes na Espanha coeva, desde a relação contratual
entre partes, a juventude dos aprendizes, as responsabilidades dos mestres e
a duração do contrato que, em média, se situa nos quatro anos 187.

É importante salientar que muito raramente os nomes dos aprendizes


reaparecem na documentação como agentes profissionais individuais, o que
aponta para que, na maioria dos casos, os oficiais fiquem a trabalhar sob a
alçada do mestre na sua oficina 188. Dados marginais na documentação
fornecem-nos provas de que os mestres pedreiros traziam consigo, não
raras vezes, oficiais e criados. Todavia, são muitos os exemplos em que um
filho ascende, quase por hereditariedade, a um cargo desempenhado pelo
pai ou familiar próximo ou que um discípulo melhor preparado ocupa o
lugar do mestre à frente de um obra ou de um cargo profissional, seja ele de
natureza privada ou de natureza pública. Certo é que a natureza gremial e
familiar da profissão não é destruída, bem pelo contrário, mantém-se até
bem perto dos nossos dias.

Dada a lógica mesteiral, as características específicas do ensino de


um determinado ofício e a hereditariedade passiva das profissões –
amplamente provada não só pelas inúmeras famílias de pedreiros, mestres
pedreiros e mesmo arquitectos – a aprendizagem da profissão de pedreiro
através da celebração de um contrato entre aprendiz e discípulo pressupõe
apenas uma excepção à regra. Queremos com isto dizer que era de todo
186
Livro dos regimetos dos Officiaes Mecanicos da mui nobre e sepre leal cidade de Lixboa , publicado e
comentado por Vergílio Correia, pág. 236.
187
A duração dos contratos, pese embora a média de 4 anos, poderia estender-se até 6 anos, sendo que a
média de idades dos aprendizes se situava entre os 12 e os 16 anos. Cfr. J. J. Martin Gonzalez, El artista
en la sociedad española..., pág. 17. Por sua vez, Fernando Marías, El Largo Siglo XVI..., pág. 453-554,
salienta o facto de os contratos nunca durarem menos de três anos, sendo a norma de idades entre os 14 e
15 anos. Conhecem-se exemplos de aprendizes com nove anos (com contrato de cinco) e mesmo de 12 –
como o célebre contrato entre o pintor Velasquez e Francisco Pacheco.
188
Fernando Marías, El Largo Siglo XVI..., pág. 454.

82
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

inútil o lavrar de um contrato notarial entre pai e filho ou entre parentes


próximos na medida em que todas as condições de ensino e aprendizagem,
bem como de protecção e cumplicidade estariam, à partida, consignadas.
Esta é claramente a justificação para a existência de tão poucos contratos
registados em protocolo. De facto, a regra será o filho aprender o ofício das
mãos do próprio pai. A lógica familiar e hereditária impõe-se em toda a
escala e constitui uma tradição muito própria da organização social e
profissional durante todo este período. Não será por demais lembrar os
Ruão, os Castilho, os Arruda, os Frias ou os Tinoco para termos a visão de
mais de uma centúria. Um caso paradigmático é o do mestre de pedraria
Diogo Gonçalves que criou uma autêntica legião de oficiais pedreiros, nada
mais nada menos que cinco dos seus descendentes: Belchior Lourenço,
António Lourenço, Salvador Nunes, Francisco João e Gregório Lourenço
prolongando-se o oficio a uma terceira geração representada por Pantaleão
Pereira, filho de Francisco João 189.

A aprendizagem tinha um carácter técnico-prático na linha de um


ensino tradicional transmitido oralmente e tendo em conta o conhecimento
empírico do mestre. Esta situação é típica deste período e podemos valer-
nos de alguns exemplos espanhóis para tornar isto claro. Num contrato de
1553 redigido em Cuenca, o mestre Juan Gutiérrez de la Hoceja
compromete-se a ensinar «el dicho ofício de canteria, moldurar y tres
monteas de capillas, escarçana y panel y medio punto», ou seja, ensinar
três tipos de corte de pedra para três tipos de cobertura 190. Isto é
caracteristicamente decorrente de um ensino remanescente baixo-medievo
que se mantém até bem dentro do século XVI. Se as informações nos
contratos de aprendizagem, no que concerne ao tipo de ensino, são
praticamente nulas, as cartas de examinação para a prática do ofício de
pedreiro levam-nos a esta conclusão, como analisaremos de seguida.

Todavia, em meios mais evoluídos – e já na segunda metade de


Quinhentos – surgem nos contratos obrigações relacionadas com um ensino
de natureza mais especulativa como o acordo em 1567 entre Hernán Ruiz,
o Moço, e os irmãos Juan e Lorenzo Rodriguez onde, para além da arte de
cantaria, receberiam «tres liciones cada semana de traça de alquititura e
perspectiva» ou o de 1568 em que Francisco de Goycoa se comprometia a
ensinar Bartolomé de Anchia, filho do mestre Juan de Anchia, a arte «de
arquitectura de fabricacion de obras de canteria» e tudo o que achar
«conveniente para la arismetica teorica y platica e jumetria e contrahacer
diferentes trazas de edificios en volumes pequeños cortando en yeso y en
189
Veja-se Carlos Ruão, «A actividade do arquitecto maneirista Gregório Lourenço: uma desconhecida
família de mestres de pedraria», Museu, pág. 47-74.
190
Fernando Marías, El Largo Siglo XVI..., pág. 455.

83
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

otras cosas enseñandole los bayleles e cortes de piedras para cerrar


qualquier buelta, asi de capillas romanas como de obra francesa y
pechinas y capialçados» 191. Estes exemplos da documentação castelhana
parecem-nos coincidentes com a formação que revela já um mestre de
pedraria como Gregório Lourenço pelos anos oitenta do século XVI, se
tomarmos em linha de conta a sua obra arquitectónica, num ambiente
periférico ao círculo régio mas já revelador de uma cultura bem mais
evoluída e moderna. Contudo, de uma forma geral, ao nível do profissional
«mecânico», o ensino fica-se pelos entendimentos ancestrais da geometria
básica e pela prática das noções básicas do talhe da pedra e ornamentação,
para além da obra de alvenaria.

Se a aprendizagem é o momento inicial para o exercício da profissão


de pedreiro de cantaria ou alvenaria, em última instância, a examinação
marca a conclusão da fase formativa e a condição «sine qua non» para
entrar «legalmente» no mercado de trabalho, tendo como objectivo o
exercício da sua profissão integrado numa equipa de oficiais ou abrir uma
oficina de pedraria privada.

2.2.1.2. Examinação

Nenhum oficial de pedraria poderia exercer a sua profissão sem que


primeiro demonstrasse a sua capacidade e domínio no corte da arte da
cantaria ou das técnicas da alvenaria, as duas componentes do seu trabalho,
através de um exame avaliado por um mestre pedreiro. Este exame é uma
condição essencial para o exercício profissional do ofício de pedraria, surge
como consciência profissional de classe e é motivo de controlo por parte do
poder mesteiral e municipal.

A examinação estava estritamente regulamentada. Se se tomar como


exemplo as posturas gerais dos mesteres para a cidade de Lisboa, de 1572,
verifica-se que alguns capítulos dizem exclusivamente respeito a esta
questão. Delibera-se que nenhum oficial possa desempenhar a sua profissão
sem primeiro ser examinado e sem que a sua carta de examinação seja
confirmada pela Câmara 192. Todos os oficiais reprovados numa
examinação só poderiam ser de novo avaliados passados seis meses após a

191
Cfr. Fernando Marías, El Largo Siglo XVI..., pág. 455-456.
192
«Que nenhum official mecanico ponha tenda nesta cidade sem primeiro ser examinado
Foy acordado que nenhum official mecanico ponha tenda de seu officio nesta cidade ou em seu
termo sem primeiro ser examinado pelos examinadores de seu officio e sem a carta de examinação ser
confirmada pela Camara e o que o contro fezer ou lhe for prouado do tronco onde estaraa quatro dias
pagaraa dous mil rs a metade para as obras da cidade, e a outra para quem o accusar». Livro dos
Regimentos..., pág. 234.

84
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

primeira prova 193 e qualquer oficial de fora da cidade e seu termo, caso não
apresentasse a devida carta de examinação, devia sofrer uma reavaliação,
registando-se seguidamente a consequente autorização camarária 194.
Atente-se que todo e qualquer exame dependia da avaliação de dois «juizes
do ofício», na presença de um escrivão 195.

No 34º capítulo do Regimento dos Oficiais Mecânicos da cidade de


Lisboa 196 fixa-se um modelo para a examinação de qualquer oficial que
pretenda exercer a profissão de pedreiro. A sua relevância justifica a sua
total transcrição:
«E todo o official que se quiser examinar de officio de pedreiro de
Pedraria faraa huã escada cõ seu mainel traçada e contrafeita e
assentada:
Item faraa hu portal quadrado cõ seu sobrarco capialçado:
Item traçaraa e contrafaraa huã coluna Dorica cõ sua vasa e
capitel:
E toda a obra acima dita faraa contrafeita em barro e os
examinadores o verao obrar de mãos para lhes constar de sua sufficiencia:
E o que se quiser examinar de Aluenaria deve saber conhecer a terra
e lugar onde começar a obra segundo que o terremeto for e o lugar em que
houuer de fundar, e saberaa abrir os alicerces conuenientes aa obra que
ha de fazer:
Item deue saber laurar hua fiada de cabeça bem lagrimada e
igoalada e rebocada e farta de cal e sendo no verão agoada assi como
fezer cada fiada:

193
«Que não examinem dahi a seis meses os q não achare sufficietes
Foy acordado que quando algum official de qualquer officio se poser a examinar se não souber
fazer como deue as peças de sua examinação dahi a seis meses o não tornarão a examinar e passados os
ditos seis meses então se poderaa poer outra vez a examinação e sendo apto lhe passarão sua carta, e
não o sendo o tornarão outra uez a mandar aprender outros seis meses e assi o forão tantas vezes
quantas acharem que não sabe fazer como deue o que se contem em seu exame e os examinadores que
assi não fezerem, e antes do dito tempo o tornarem a examinar pagarão dous mil rs a metade para a
cidade e a outra para quem os acusar e se algus officios particularmente teuerem per seus regimetos que
o dito exame se torne a fazer antes dos ditos seis meses guardarsea o que assi for ordenado pelos taes
regimetos». Livro dos Regimentos..., pág. 239.
194
«Que os officiaes que forem examinadores fora desta cidade se tornem nella a examinar
Foy acordado que nenhum official mecanico q fora desta cidade for examinado seia ousado
poer tenda sem de nouo ser examinado pelos examinadores de seu officio que nesta cidade para isso são
eleitos, e sem sua carta de examinação ser trazida aa Camara para nella ser registrada como se faz aos
que de nouo nesta cidade se examinão e poendo tenda sem assi de novo se examinar encorreraa nas
penas dos officiaes que poem tenda sem serem examinados atras declarados». Livro dos Regimentos...,
pág. 241. Esta norma encontra eco na nova carta de examinação que foi passada a Pedro Gonçalves, de
Aveiro, a 26 de Setembro de 1612, em Coimbra. Cfr. AMC, Registo, nº 13, fl. 102.
195
«Que os examinadores não examine persi soos senão juntos
Foy acordado q nenhum dos examinadores de qualqr officio q seia examine per si soo official
algum senão sendo ambos juntos cõ o escriuão de seu cargo e qualquer dos examinadores que o cõtrº
fezer pagara dous mil rs a metade para a cidade e a outra para quem o accusar e a tal examinação não
seraa valiosa». O Livro dos Regimentos..., pág. 239-240.
196
Livro dos Regimetos..., pág. 105-106.

85
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Item deue saber dar seus terços aa cal segundo a obra que fezer e
segundo for a cal mais forte ou menos forte:
Item ha de saber muj fazer hua chimine e dar lhe seu conto cõ sua
regoa e prumo segundo sua largura e altura:
Item ha de saber fazer hu portal de tijolo e hua janela e hua
cantareira e fechar tudo como a cada obra pertence e tudo mto bem
acabado e feito segundo se então vsar:
Item sabera bem talhar e fazer hua beira e sobrebeira como deue
fazer qualquer boõ official:
E sendo caso que o que se quiser examinar de aluenaria souber
laurar hu peitoril de pedra e huas sedas e huas couceiras, e hus boulhões e
hu cunhal por serem peças q pertencem a aluenaria 197 podera ser
examinado das ditas peças cõ a dita aluenaria. E não o sabendo laurar
sera examinado somente de aluenaria».
O regimento inclui ainda um exame de taipeiros, tendo estes de estar
habilitados a saber fazer um «cunhal de tijolo e huã taipa cõ seu formigão
e hu alicerce bem fundado e daraa rezão da terra e da tempera della».

Desta forma, declara-se que o oficial que quiser realizar o seu exame
de «pedreiro de pedraria», ou seja, no ramo da cantaria deverá em
primeiro lugar demonstrar o seu saber através da realização de uma escada
com o seu «mainel» 198, um portal quadrangular com seu «sobrearco
capialçado» 199 e uma coluna em estilo Dórico – com a sua base e capitel –
a partir de modelos de barro. Tudo isto diz respeito a peças de cantaria
básicas – portais, janelas, escadas e colunas.
Por sua vez, do exame no campo da alvenaria faz parte a
demonstração do conhecimento do terreno para fundamento da obra, o
lançamento dos respectivos alicerces e o lavrar de uma fiada de «cabeça 200
bem lagrimada e igoalada» rebocada e caiada. Para além de ter que fazer
uma chaminé, portal e janela de tijolo, deverá saber telhar uma beirada –
«beira e sobrebeira» – de telhado. Refere-se, em complemento, a
possibilidade de se realizar um exame suplementar se o oficial tiver alguma
experiência com algumas peças de cantaria.

Encontram-se nos arquivos portugueses inúmeras cartas de


examinação onde se descrevem, de forma sucinta, as provas pelas quais o

197
Há aqui um erro na redacção do texto, pois as peças referidas pertencem ao campo da cantaria, seja o
lavrar de um cunhal, peitoril ou mesmo de uma «couceira» sobre as ombreiras da porta, à maneira de
degrau.
198
O termo «mainel» é aplicado aos «pilaretes» que dividem as janelas verticalmente em duas ou mais
luzes mas é também, como é o caso, aplicado para «corrimão».
199
De «capialço», ou seja, corte oblíquo na parte superior da porta ou janela para dar mais luz ao interior.
200
Referente a «cabeçaria», as pedras de alicerce grosseiramente aparelhadas.

86
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

candidato era avaliado e qual a sua especialização dentro do ofício 201. No


que diz respeito ao ofício de pedreiro, o exame distingue claramente duas
vertentes profissionais, isto é, a especialização em alvenaria ou em cantaria
embora os examinados possam acumular as duas áreas de construção.
Evidentemente que o exame no campo da alvenaria é o mais acessível e o
mais generalizado – embora de maior responsabilidade ao nível construtivo
– tal como a dupla preparação nos dois campos é mais visível por parte dos
candidatos preparados em lavrar obra de cantaria ou esquadria.

Numa breve análise a cartas de examinação referentes à cidade do


202
Porto , todas datadas do ano de 1553, Gaspar Branco era aprovado para
fazer obra de «alvenaria de pedra e barro e pedra e cal e assim de
telhados» e obra de esquadria, que incluía a realização de «um arco
redondo» e outro «de terça ponte com seu escação com sua moldura» ;
João Gonçalves era avaliado na obra de «alvenaria, com seus cunhais
prumados a cordel, direitos» e num «portal de cunhais a prumo e de toda a
mais obra daqui para baixo» ; Sebastião Pires teve que provar saber fazer
«obra de esquadria chã com sua moldura» e «qualquer obra de alvenaria
que se lhe estiver e arcos de meio ponto e terço ponto». Por fim, Gil
Afonso obteve aprovação na obra de alvenaria através da feitura de um
«portal chão com seus recates e assim de janelas da mesma sorte e um
arco redondo chão».
Na mesma linha, o arquivo da cidade de Coimbra regista mais de
uma centena de cartas de examinação a partir dos meados do século XVI.
Considere-se alguns significativos exemplos entre 1572 e 1574: Simão
Dias realiza exame de «alvenaria de pedra e cal e barro até altura de doze
palmos pouco mais ou menos e um portal tosco da mesma alvenaria» 203 ;
Jorge Nunes fica preparado para fazer «alvenaria de cal e barro e
guarnição coisas direitas e fazer portais de tijolo e cantareiras e caniçar e
telha e fazer chaminés com outeiro com tanqueiro» 204 ; António João
servirá a cidade em obra de «alvenaria de cal e barro até dez palmos e
doze de altura e fazer ombreiral de pedras direitas que chamam cheias e

201
No caso concreto da examinação, as comparações com a vizinha Castela parecem não apontar para o
mesmo caminho. Apesar de Fernando Marías, El Largo Siglo XVI..., pág. 458, admitir que não está
absolutamente claro que aos aprendizes espanhóis se lhes exija um exame institucionalizado, o mesmo
autor faz o reparo de que desde os Reis Católicos existem algumas prescrições a esse respeito - para os
pintores - e que as ordenanças municipais de 1543 de Madrid também se ocuparam em nomear
examinadores anuais sob pena de o examinado não poder exercer o seu ofício. Tudo isto leva-o a concluir
que a aprendizagem oficialmente institucionalizada não seria necessária para se ser pedreiro e que temos
que vê-la como produto da oficina ou do sistema familiar à qual os mestres os dariam, eles próprios, por
aptos.
202
Já publicadas em Carlos Ruão, «Juízes do Ofício de Pedraria da Cidade do Porto (1548-1628)», pág.
7-29.
203
AMC, Registo, nº 3, fl. 141.
204
AMC, Registo, nº 3, fl. 164.

87
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

rebocar e telhar um valadio» 205 ; Mateus Gomes poderá «fazer paredes até
dez palmos de altura e vinte chã telhados e a fazer fornos para cozer» 206 ;
Manuel Pires especializa-se em «alvenaria chã e guarnecer e caniçar e
fazer algerozes de tijolo e telha e portais de pedraria e janelas» 207.

Como facilmente se pode depreender, as informações são esparsas e


pouco específicas, revelando apenas exames de aptidão do foro técnico
descritos genericamente e nunca referindo qualquer preparação teórica, o
que evidentemente não estava em causa, nem era uma exigência a este
nível de formação profissional. As cartas portuenses aludem a um exame
de esquadria onde o proponente terá que realizar um arco redondo e um
arco «de terça ponte», isto é, gótico, o que coincide com a cronologia de
uma época de mudança artística para uma região excêntrica (1553). Grande
parte das cartas de examinação referem-se a exames de alvenaria, ao saber
fazer paredes, portais de tijolo, chaminés e mesmo «fornos para cozer»,
portanto, a aspectos não estilísticos mas sim prático-construtivos. Parece
existir também uma especialização dentro do exame geral do oficial de
pedraria. O ofício de «ladrilhador» é analisado por juizes oficiais pedreiros
como se pode concluir pelo exame de Ascenso Correia, a 26 de Junho de
1622, aprovado pelos mestres pedreiros António João e Manuel Fernandes
208
.
É de supor que nas oficinas a transformação e adaptação à nova
estrutura estética, ao nível da aprendizagem – partindo primeiro da
assimilação da gramática decorativa renascentista – não exigiu uma
transformação radical da prática construtiva, o que permitiu a absorção da
novidade sem uma reordenação oficinal.

Com o passar do tempo as cartas de examinação deixam de fazer


referências específicas às provas realizadas durante a avaliação do oficial
habilitado, o que dificulta, manifestamente, uma análise de uma possível
evolução dos exames em causa. A título de exemplo, leia-se o documento
que autoriza António Tavares, o futuro mestre de obras da cidade de
Coimbra, a exercer a sua profissão: «Aos 23 de Dezembro de 624 foi
passada carta do ofício de pedreiro de cantaria e alvenaria a António
Tavares de Santa Clara por posse de Manuel João e Jorge de Celas
E mais jurou fazer verdade ao povo e se obrigou a servir a cidade e pagar
para as festas e jogos dela e renunciou para isso todos os privilégios a que
chamar se possa e assinou» 209.

205
AMC, Registo, nº 3, fl. 165vº.
206
AMC, Registo, nº 3, fl. 217.
207
AMC, Registo, nº 3, fl. 291vº.
208
Veja-se AMC, Registo, nº 18, fls. 270-270vº.
209
AMC, Registo, nº 19, fls. 41-41vº.

88
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

2.2.1.3. O Regimento dos Pedreiros

Os pedreiros, unidos com os carpinteiros, arregimentavam-se em


torno da Bandeira de São José, dentro dos organigramas corporativos dos
ofícios mecânicos com Regimento e Compromisso próprios, aprovados a
24 de Agosto de 1501 e confirmados, por alvará régio, a 26 de Abril de
1503 210. Tendo como pano de fundo a organização dos mesteirais na
procissão do Corpo de Deus, o regimento de 1501 fixa regras laborais, de
organização e hierarquia profissional para os diversos ofícios tornando-se
obrigatória a eleição de dois «juizes examinadores» do ofício de pedraria –
e outros dois para a carpintaria – dois «mordomos» e um «escrivão». A 27
de Julho de 1514 211 determina-se que em cada ano se elejam vinte oficiais
e de entre estes, dois para «vedores» – vereadores camarários – dois para
«juizes examinadores» e dois para «mordomos». A 15 de Janeiro de 1584,
por necessidade de hierarquização dos cargos a ocupar dentro da «bandeira
gremial», decide-se que os oficiais ocupem em primeira instância o cargo
de «mordomo» e só depois preencham o de «juiz» do seu ofício. No mesmo
sentido, defende-se o direito ao voto circunscrito apenas a oficiais já
detentores de carta de examinação.

O Compromisso defende a renúncia à eleição de privilegiados, a não


ser que renunciem a estes, retirando assim a imunidade aos oficiais que
poderiam recorrer no caso de serem condenados nalgum incumprimento
das suas funções gremiais. Outra preocupação tem a ver com o atropelo,
passe-se a expressão, entre pedreiros e carpinteiros. Se a 10 de Julho de
1529 se determinava que os pedreiros elejam apenas pedreiros, a 24 de
Janeiro de 1548 212 exigia-se que os pedreiros e carpinteiros não se
encarregassem de obras uns dos outros, sendo da competência dos juizes de
cada ofício acudir à resolução de casos deste tipo. Em 1584 explicita-se
melhor a confusão existente entre os pedreiros e carpinteiros e a constante
troca de funções entre eles. Grande parte do exame dos carpinteiros refere
obrigações comuns aos dois ofícios, em pé de igualdade, no que toca a não
terem mais de dois «criados aprendizes para que os possão melhor
ensinar» e de cada qual se ocupar apenas de obras respeitantes à sua
especialização.

210
Consulte-se Franz-Paul Langhans, As Corporações dos Ofícios Mecânicos. Subsídios para a sua
história, Vol. I pág. 258-286.
211
Franz-Paul Langhans, As Corporações dos Ofícios Mecânicos..., pág. 261.
212
Cfr. Franz-Paul Langhans, As Corporações dos Ofícios Mecânicos..., pág. 263.

89
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

2.2.1.4. Juiz do Ofício de Pedreiro

O Regimento e Compromisso de 24 de Agosto de 1501, confirmado


pelo monarca a 26 de Abril de 1503 213 institui a eleição de dois juizes do
ofício de pedreiro, dois mordomos e um escrivão como organigrama
essencial dentro da organização e hierarquia gremial, desempenhando todos
papeis específicos – os juizes examinam os aspirantes a oficiais e vistoriam
obras, os mordomos são responsáveis pela receita e despesa relacionadas
com a associação gremial e o escrivão é o responsável pela redacção dos
registos. A eleição de dois juizes do ofício de pedraria torna-se
indispensável para «examinarem os oficiais e julgarem as obras», sendo
esta a posição mais elevada dentro da estrutura mesteiral, tanto que no ano
de 1584 se aponta a necessidade de os oficiais ocuparem primeiro o cargo
de «mordomo» e só depois o de juiz do seu ofício.
Para além da examinação dos candidatos, os juizes do ofício são
responsáveis pela execução do que cada oficial terá que pagar para a festa
do dia do Corpo de Deus ou para qualquer outro evento. Desde 1501 a
existência de uma coima de cem reais é imposta como pagamento do não
cumprimento da anuidade na sua função de juiz 214.

Este cargo sofreu uma profunda regulamentação através das


«posturas gerais» de 1572, assentando o seu preenchimento num sistema
rotativo anual. Durante o mês de Janeiro existe a obrigação de proceder à
eleição dos juizes e examinadores dos seus ofícios para esse ano para,
posteriormente eleitos, tomarem juramento perante os vereadores da
Câmara 215. Determina-se também que os juizes examinadores que tivessem
preenchido o cargo durante um ano o não exerçam de novo, a não ser
passados três anos a contar do último dia em que prestaram tais funções,
salvo raras excepções, como a existência de poucos oficiais qualificados
para ocupar tal posição 216.

213
Tomamos em linha de conta o Regimento e Compremisso da bandeira do bem aventurado São Joseph
dos offiçios dos carpinteiros e Pedreiros desta Cidade de Lisboa copiado do original antigo anno de
1684 que colige toda a documentação anterior, publicado em Franz-Paul Langhans, As Corporações dos
Ofícios Mecânicos. Subsídios para a sua História, Vol. I, pág. 258-286.
214
Cfr. Franz-Paul Langhans, As Corporações dos Ofícios Mecânicos..., pág. 259.
215
«Que os Ivizes dos officiaes mecanicos fação suas eleições per Janeiro de cada hum anno
Foi acordado que os juizes dos officiaes mecanicos fação a eleição de outros juizes e
examinadores de seus officios no mes de janeiro de cada hum anno, e dentro do dito mes virão os que
forem eleitos aa Camara tomar juramento, onde serão assentados no liuro da veração pera todos
juntamete começarem a fazer suas diligencias no principio do anno, como a cidade faz nos mais officios
que são de sua eleição, que todos se fazem no mes de Janeiro e porem os que per regimento ou costume
antigo teuerem de elegerem seus officiaes em outro tempo do anno guardarão seu regimento e costume,
não parecendo melhor aa cidade fazerem a dita eleição no mês de Janeiro». Livro dos Regimentos...,
pág. 233.
216
«Que os que sairem por juizes hum anno o não seião dahi a tres
Foy acordado que os juizes examinadores q sairem hum anno não siruão o mesmo cargo dahi a
tres annos cõtados do dia em q acabarem seu anno, saluo se em algum officio houuer tão poucos

90
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Dentro da sua hierarquia profissional, a obrigação fulcral é a


avaliação dos candidatos a oficiais pedreiros. Nesta circunstância todo e
qualquer examinado tem o direito de contar com a presença e avaliação
conjunta dos dois juizes do ofício 217. O exame não deixa de acautelar
determinados e pontuais favorecimentos quando se impõe que nenhum juiz
examinador avalie parentes, «criados» ou aprendizes por si formados 218.
Para além de realizarem os exames aos proponentes, os juizes do
ofício de pedraria desempenham igualmente funções de utilidade pública,
impondo-se que vistoriassem obras respeitantes à sua área profissional e
que, em caso de erro ou deficiência laboral por parte destes, abrissem um
processo de execução de uma pena ou condenação 219. Quando requeridos,
são «medidores» de obras públicas e privadas, obrigação de não somenos
importância e que leva mesmo à chamada dos próprios arquitectos régios
em obras de valor acrescentado.

A importância deste cargo profissional é, a todos os títulos, evidente


não só pelo facto de representar a mais alta hierarquia dentro da
arregimentação mas também pelo facto de, na maior parte dos casos, ser
preenchido por importantes mestres pedreiros da região em causa. Prova da
relevância do cargo e da luta para o conseguir é a acusação e embargo que
os oficiais pedreiros e carpinteiros fizeram em Lisboa, a 13 de Março de
1575 220, acerca da «eleição dos Juises do offiçio com votos de aprendizes e
Obreiros que não são examinados» e estes votarem por «amisade e

officiaes que seia necessario tornar aos mesmos antes do tempo e o mesmo se guardaraa nos escriuães
de cada officio, saluo se não houuer outro do dito officio que saiba escreuer, porque então serviraa ate
outra eleição em que o aja e o que dito he assi acerca dos juizes examinadores e escriuão, se estenderaa
nos officios que per seus regimetos não teuerem outra cousa em particular e a eleição q doutra manrª se
fezer não serea valiosa». Livro dos Regimentos..., pág. 238-239.
217
«Que os examinadores não examine persi soos senão juntos
Foy acordado q nenhum dos examinadores de qualqr officio q seia examine per si soo official
algum senão sendo ambos juntos cõ o escriuão de seu cargo e qualquer dos examinadores que o cõtrº
fezer pagara dous mil rs a metade para a cidade e a outra para quem o accusar e a tal examinação não
seraa valiosa». Livro dos Regimentos..., pág. 239-240.
218
«Que os examinadores não examine seus paretes ou criados
Foy acordado que nenhum examinador examine seu filho, parete, cunhado, ou criado e quando
qualqr dos sobreditos se quiser examinar faraa petição a Camaraa para lhe ser dado hum dos juizes do
anno passado qual aa cidade bem parecer para o examinar em lugar do examinador suspeito e qualquer
dos examinadores q o contrº fezer pagaraa dous mil rs a metade para as obras da cidade e a outra para
quem o accusar e a tal examinação não seraa valiosa». Cfr. Livro dos Regimentos..., pág. 240.
219
«Que os Juizes dos officios mecanicos visitem as tendas dos officiaes
Foy acordado que todos os Juizes, ou veedores dos officiaes mecanicos seião obrigados visitar
as tendas de seus officiaes e fazer correição cõ o escriuão de seu cargo de trinta em trinta dias, ou de
quinze em quinze se per seu regimento o tiuerem assi ordenado, e cada uez que necessario for e as obras
que acharem que não são feitas como deue as trarão aa Camara, ou as leuarão aos almotacees das
execuções para se fazer nellas execução conforme as posturas da cidade e todas as vezes que a dita
diligencia fezerem, virão a esta Camara dar conta de como a fezerão e do que acharem para se saber o
que irão fazer saber ao vereador das execuções que tem o pelouro dellas e os que assi não fezerem
pagarão do tronco dez cruzados, a metade para as obras da cidade, e a outra para quem os accusar».
Livro dos Regimentos..., pág. 233-234.
220
Cfr. Franz-Paul Langhans, As Corporações dos Ofícios Mecânicos..., pág. 267.

91
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

interesse» de uns poucos, assinalando-se que tais funções «são as mais


emportantes que ha nesta Cidade dos offiçiais por que por elles se avalião
as obras que são de muito pros se provem as ruinas e derribação os
edifiçios ruinosos e se determinão quase todas as duvidas das
propriedades e com seu pareçer se dão as mais das sentenças», sendo
portanto necessário «elegeremsse offiçiais exprimentados afasendados e de
sans conciençias».

Os arquivos municipais portugueses registam documentalmente a


anual eleição dos juizes do ofício de pedraria, das quais a seguinte nota é
em tudo paradigmática: «Aos sete dias de janro de mil seiscentos e seis anos
na casa da camara desta cidade do porto pelo juiz e vereadores atras
declarados foi dado juramto dos santos evangelhos a gpar glz e a anto de
sousa para que este presente ano sirvão de juizes do offiçio de pedros
fazemdo verdade no que toca a examinacoes e vesturias e mais cousas
tocantes a seu offo guordando as partes seu direito que prometterão fazer e
asinarão» 221.

Apresenta-se, de seguida, uma recolha documental dos mestres de


pedraria eleitos durante este período pelas cidades do Porto e Coimbra,
sendo que em alguns anos apenas se regista a eleição de um e noutros,
certamente em substituição, a comprovação de mais de dois oficiais por
ano:

Cidade do Porto

1548 Gonçalo Moniz Simão Gonçalves


1549 Álvaro Fernandes Fernão Afonso
1566 Sebastião Fernandes Fernão Gonçalves
1575 Francisco Fernandes Sebastião Fernandes
1588 António de Sousa Francisco João
1599 Gaspar Gonçalves Manuel Dias
1605 Manuel Dias Manuel André
1606 Gaspar Gonçalves António de Sousa
1607 Gonçalo Vaz
1610 Gonçalo Vaz Pantaleão Brás
1613 Manuel André Valentim Carvalho
1614 Roque Nunes Francisco Carvalho
1616 Pantaleão Pereira Valentim Carvalho
1620 Francisco Carvalho António de Sousa

221
AHMP, Vereações, nº 37, fl. 20. Publicada em Carlos Ruão, «Juizes do Ofício de Pedraria da cidade
do Porto», pág. 27.

92
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

1622 António de Sousa Valentim Carvalho


1625 Sebastião Álvares Pantaleão Pereira
1627 Pantaleão Pereira Francisco Carvalho

Cidade de Coimbra

1572 António Fernandes


Sebastião Simões Sebastião Pais
1573 António Fernandes
1574 António Fernandes
1575 António Fernandes António Moniz
1579 António Rodrigues
1595 Francisco Machado
1603 António Nunes Belchior da Fonseca
1609 Tomás Carvalho
1614 Manuel João Pedro Francisco
Manuel João Ascenso da Fonseca
1616 Manuel João Pedro Francisco
1617 Manuel João Pedro Francisco
1619 Pedro Francisco
1622 António João Manuel Fernandes
Pedro Simões
António João Pedro Fernandes
1624 Manuel João Gonçalo Jorge
1625 Manuel João Gonçalo Jorge
1626 Manuel João Gonçalo Jorge
1628 Gonçalo Jorge
António Tavares Manuel Duarte
1629 António Tavares Manuel Duarte
1630 António Tavares Manuel Duarte
1634 Manuel Duarte
1636 Manuel Duarte
1638 Manuel Duarte António Tavares
1642 João Nunes

Num cotejo entre as regras escritas e a prática profissional torna-se


claro que a esmagadora maioria das cartas de tomada de posse e juramento
profissional datam de Janeiro, sendo portanto a eleição no início de cada
ano, mas nem sempre se cumpre a exigência sabática de três anos sem
ocupar o cargo, mesmo quando existem oficiais devidamente qualificados
para o efeito. Na esmagadora maioria dos casos, o cargo estava preenchido

93
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

por dois juizes do ofício de pedraria na sua maior parte documentados em


obras importantes nas respectivas cidades. É o caso de Gonçalo Vaz,
Francisco Carvalho e Valentim Carvalho no Porto e de Manuel João ou
António Tavares em Coimbra – adiante biografados – e que funcionam já,
na sua maior parte, como verdadeiros projectistas de obras arquitectónicas.

A eleição de juizes do ofício de pedreiro não se fica pelos principais


centros urbanos. Mesmo em vilas como Guimarães se registam eleições
deste tipo como a de Augusto Coelho e Cristóvão Fernandes que, em 1606,
prestam juramento como «juizes do ofisio de pedreiros» 222.

2.2.1.5. A oficina de pedraria e a organização do trabalho

O local de aprendizagem e de especialização de cada profissional de


pedraria é a «oficina». Mais do que um lugar físico, devemos entender
«oficina» como um local de aprendizagem em torno de um mestre, dentro
de um sistema hierarquizado, onde vários aprendizes trabalham a soldo de
um mestre pedreiro normalmente dentro de um sistema familiar. A
«oficina» tanto pode dizer respeito a uma pequena loja que o mestre
pedreiro mantém aberta a expensas próprias – recebendo encomendas e
vendendo os seus produtos tal como qualquer outro profissional – como a
um estaleiro de obras onde, rodeado de uma equipa de oficiais, todos
trabalham dentro de um esquema rígido e profissional hierarquizado.

Considerou-se anteriormente que os contratos de aprendizagem são


excepcionais face à tradicional estrutura profissional de cariz familiar, que
se mantém inalterável ao longo de todo este período, quer se trate dos mais
altos dignatários da pedraria régia, quer dos oficiais regionais que laboram
fora dos círculos importantes. Neste sentido – deixando de fora o acesso a
um conhecimento que é substancialmente diverso – não há grandes
diferenças entre os Lopes, os Ruão ou os Frias.

Durante a totalidade deste período em análise a organização do


trabalho não sofreu mudanças significativas, nem mesmo com o
aparecimento da «figura do arquitecto». Ao nível construtivo, no topo da
hierarquia sócio-profissional situa-se o «mestre de obras», responsável por
toda a equipa de oficiais e pela supervisão do todo da fábrica. É importante
colocar-se totalmente de lado a ideia de que o «mestre de obras» é um
iletrado inflexível às novidades emergentes e que apenas assegura a sua
posição fruto de uma longa experiência profissional. Nada de mais errado.
Em obras de importância superior – como a batalhina ou a hieronimita de
222
AMAP, Vereações, Livro 4-2-68, fl. 189. Citado em A L. Carvalho, «Os mesteres de Guimarães»,
Revista de Guimarães, pág. 55.

94
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Belém na primeira metade do século XVI – o mestre de pedraria é uma


figura de grande prestígio, com privilégios e ordenados elevados. O seu
saber é essencialmente prático mas acompanhará e assimilará a evolução
linguística que se verifica entre os finais do século e os inícios de
Quinhentos. Por vezes, os grandes estaleiros têm empreitadas simultâneas
da responsabilidade de diferentes mestres de pedraria e estes últimos
chegam mesmo a delegar o seu trabalho junto do estaleiro e dos oficiais de
pedraria a um discípulo experimentado – o «aparelhador».

O «aparelhador» é a segunda figura num estaleiro construtivo,


responsabilizando-se por fazer os «contramoldes e marcos dos tamanhos
que se hão de tirar das pedras» bem como vigiar e orientar o trabalho dos
canteiros. Podem, ocasionalmente, realizar traças parciais, detalhes, perfis,
formas de capitéis, pequenos «fragmentos de arquitectura», mas a sua
principal função é a de execução da fábrica arquitectónica.

Durante o século XVI e XVII este cargo mantém-se preponderante


em obras de alguma relevância mas a condição de «aparelhador» evolui ao
nível de exigência teórica. Tome-se como exemplo – medidas as
respectivas distâncias – o documento redigido pelo arquitecto Juan Gómez
de Mora, de 1 de Abril de 1620 223, relativo ao exame de candidatos ao
cargo de «aparelhador» das obras da Alhambra de Granada e comparem-se
as exigências:
«1. Examinou-se Francisco de Potes, mestre de obras, e se achou ser
pessoa na qual concorrem as partes necessárias para dar muito boa conta
de tudo tocante à Geometria e Aritmética, por cujo meio se alcança todo o
género de medidas, e por elas o valor do todo e partes de uma obra, assim
para avaliação da pedra lavrada e assentado dela, como para empreitadas
e compra de materiais, que tudo se alcança por meio da conta e ração e
demais coisas forçosas ao exercício deste ofício, no que deu muito boa
conta, e por sua pessoa traça vastamente o necessário e no que toca á
execução fez muitas obras nesta corte, em Valhadolid e outras partes, e
para tudo o que se pode oferecer ao serviço de sua majestade, assim em
Granada como nas demais partes do Reino.
2. Juan Fernandez de Palaçios, mestre de cantaria, o qual não sabe
de medidas nem conta coisa nenhuma, que é o principal fundamento em
que consiste a razão e arte de fabricar, nem de traça, não faz por sua mão
o necessário para o dito ofício, que é uma das partes que se requerem para
o bom exercício deste ofício, por tocar-lhe traçar em forma grande as
partes da arquitectura para os moldes e contramoldes por donde pelos
quais se hão de seguir os demais oficiais que estão debaixo de seu

223
Publicado em E. Rosenthal, El Palacio de Carlos V en Granada, pág. 312-313.

95
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

governo, como tudo consta das perguntas que se lhe fizeram e quanto ao
seu ministério de cantaria, faz o necessário, e nada mais».

A esta autêntica comparação entre o «bom e o mau aparelhador»


acresce a seguinte advertência, segundo as palavras do arquitecto: «Não
somente se deve considerar que a pessoa a quem se der (o cargo) saiba a
teórica da arte, mas também a plástica que se requer para o conhecimento
e inteligência do valor dos materiais e sua bondade, qualidade, peso e
medida, avanços e taxas e empreitadas e pagas dos oficiais de diferentes
ministérios, de que se compõe, ao pôr em execução qualquer obra, que sem
o conhecimento destas coisas ditas, é fácil faltar ás partes de que deve ser
adornada a pessoa a quem se encarregar o ofício de aparelhador, sendo o
guia por onde se governam todas as pessoas de oficiais, canteiros,
carpinteiros, marceneiros e a distribuição da Fazenda, e de toda a gente
que está debaixo da sua ordem».

O «aparelhador» é, deste modo, o mestre de pedraria responsável


pela direcção do estaleiro, devendo dominar uma base teórica que lhe
permita executar os moldes da obra ou mesmo traças parciais bem como
conhecer os métodos construtivos, os materiais e administrar superiormente
toda a equipa de oficiais. É o que acontece com as obras da Misericórdia de
Aveiro, nos inícios de Seiscentos, quando Gregório Lourenço, autor do
projecto, delega no irmão Francisco João as funções de «aparelhador»,
dirigindo a fábrica na sua ausência, dividido que estava entre a supervisão
dos estaleiros de Moreira da Maia e Aveiro.

Na base da pirâmide situava-se o pedreiro, a força laboral por


excelência. Experimentado em cantaria e/ou alvenaria o oficial de pedraria
poderia trazer consigo, não raras vezes, criados e obreiros e dispunha de
privilégios vários. Uma tabela de salário de um pedreiro e de um obreiro de
1522 dá-nos uma efectiva percepção da sua situação:

«Item. Não levará mais hum pedrº por um dia de jornall dandolhe de
comer de trinta rs
E não lhe dando de comer levará çimqueta rs secos
E mais aguçarlheão a ferrameta, segdo costume

Item. Hum obreiro equanto não for êjeminado, não levara mais de
jornall por hum dia de trimta rs
E damdolhe de comer, não levara mais de vinte rs» 224.

224
A L. Carvalho, «Os mesteres de Guimarães», pág. 56.

96
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

A par dele, outros mesteres, como os cabouqueiros, ferreiros e


carpinteiros eram basilares para a construção arquitectónica.

Como sabiamente concluiu Pedro Dias para a passagem do século


XV ao XVI, «os grandes estaleiros marcam as modas e a consequente
evolução estilística. A criação das escolas regionais e a sua expansão ficam
ligadas à organização do trabalho e ao sistema de aprendizagem, isto é, à
transmissão pessoalizada dos conhecimentos e ao nomadismo permanente
dos oficiais» 225. Esta realidade é tão abrangente que mesmo durante a
centúria seguinte, as escolas regionais continuam a desenvolver-se tendo
em conta estes mesmos parâmetros.

225
Pedro Dias, «Os artistas e a organização do trabalho nos estaleiros portugueses de arquitectura, na
época dos Descobrimentos», pág. 534.

97
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

2.2.2. Do Mestre de Pedraria a Arquitecto

2.2.2.1. O mestre de pedraria «vestido» de arquitecto

2.2.2.1.1. Conceito, estatuto e posição social do mestre de pedraria

Os finais da Idade Média apontam já para uma mudança irreversível


no que diz respeito à propriedade do mestre de pedraria que não só ganha
consciência de si próprio, como atinge privilégios que o colocam fora da
tradicional e errada visão do anonimato baixo-medievo.
Se tomarmos em conta a organização do trabalho num estaleiro
medieval como o de Santa Maria da Vitória, na Batalha, verifica-se que o
«mestre de obras», figura máxima na escala profissional dos mestres da
pedra, é alguém com um saber técnico-prático incluído numa classe que
ainda não se constitui como «um corpo homogéneo tanto em especialidade
como em riqueza» sendo «o génio inventivo um valor precioso» na sua
distinção 226. A consciência de si mesmo revela-se claramente no privilégio
de deixar a sua assinatura/retrato na célebre mísula da Casa do Capítulo
batalhina.
Por sua vez, em Santa Maria de Belém, nos inícios de Quinhentos,
quer Diogo de Boutaca quer João de Castilho comandam – este último
como «mestre» e «empreyteiro» – toda uma plêiade de oficiais de média e
baixa condição onde se verifica uma especialização clara por «diferentes
tipos de tarefas, como aparelhadores, imaginadores ou lavrantes de
romanos ou grutescos», supervisionando toda a fábrica numa equipa em
que se verificam sub-empreitadas dada a monumentalidade da obra 227.
Pese embora a evolução linguística entre a Batalha e os Jerónimos, a
posição do «mestre de pedraria» é idêntica, embora assumindo cada vez
mais protagonismo bem como privilégios e responsabilidades.

Ser mestre de pedraria e trabalhar para um monarca é, em si mesmo,


uma garantia de prestígio. Isso mesmo provam as enormes benesses que os
Arruda e os Castilho colectam junto de D. Manuel e D. João III durante a
primeira metade do século XVI, das mais simbólicas às mais significativas
em termos económico-profissionais. Para além dos cargos que atingem no
círculo profissional – através de altos ordenados em reais e géneros – são
tidos como «moços de câmara» e «cavaleiros fidalgos», recebem regalias
como a de «andar de mula e cavalo» e privilégios de vária índole, desde
tenças a dispensas de cumprir determinados regimentos e ordens 228. Mais
do que todas estas condições, ao mestre de pedraria régio é-lhe concedida a
226
Saul Gomes, O Mosteiro de Santa Maria da Vitória no século XV, pág. 96.
227
Pedro Dias, Os portais manuelinos do Mosteiro dos Jerónimos, pág. 27.
228
Sobre estas questões basta consultar os inúmeros documentos publicados nos tomos de Sousa Viterbo.

98
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

frequência do ambiente cortesão, explicar e discutir o seu trabalho com as


altas esferas do estado e sofrer a influência do emergente ambiente
humanista.
São, aliás, os humanistas que irão contribuir decisivamente para
divulgar a nova figura vitruviana do «arquitecto» e a cultura pelo «antigo»
como modelo para uma nova era. É importante considerar que o mestre de
pedraria/arquitecto nunca teve necessidade de pleitar a favor da «nobreza»
e «ingenuidade» da sua arte e esta circunstância muito deve ao paradigma
vitruviano – tão valorizado durante o Renascimento que o exercitar a
arquitectura chegou a ser visto como ocupação de reis e príncipes. Será no
tempo de João de Castilho e de Miguel de Arruda que o paradigma do
«arquitecto» surgirá em potência, décadas antes de se impor
verdadeiramente, ocupando o mais alto patamar da hierarquia profissional
da arte da edificação.

O introdução da linguagem renascentista em Portugal é, assim,


acompanhada pela emergência de um novo estatuto sócio-profissional. Mas
a figura do «arquitecto» não se impôs na primeira metade do século XVI,
tal como a própria arquitectura «all’antico», mesmo tendo em conta
algumas experiências vanguardistas sem continuidade. Curiosamente, os
primeiros criadores de obras «modernas» realizadas no ambiente peninsular
são necessariamente artistas estrangeiros e, provadamente, com um
conhecimento da realidade italiana por via francesa, nórdica ou espanhola.
Esta visão é partilhada por Machuca e Covarrubias em Castela e por
Miguel de Arruda e João de Castilho em Portugal.

2.2.2.1.2. A prática do «debuxo» na primeira metade do século XVI

Desde os finais da Idade Média que se regista a prática do


acompanhamento de determinada construção através da redacção de
«apontamentos» da obra, breves notas instrutórias entregues aos
empreiteiros segundo uma avaliação prévia de um mestre de obras,
incluindo um orçamento e muitas vezes medidas e dimensões. Usuais são
igualmente os «regimentos» régios que delimitam as formas de
procedimento em relação a determinado trabalho específico ou a
determinada função que cabe desempenhar. Tanto os «apontamentos»
como os «regimentos» incluiriam por vezes pequenos desenhos
esquemáticos, na sua maior parte referentes a planimetrias gerais ou a
pormenores arquitectónicos. Esta é uma realidade clara para o reinado de
D. Manuel.

99
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

É importante ter em conta que, no que diz respeito às grandes


empreitadas régias, existia já um trabalho teórico prévio, designadamente
no campo dos projectos debuxados que eram enviados à Corte para
sofrerem aprovação ou correcção régias. É provável que a prática da
utilização de desenhos preparatórios se tenha generalizado a partir do
reinado de D. Manuel (1495-1521). Embora não se tenham conservado, a
documentação manuelina fala em «debuxos» e «amostras» referindo-se,
com toda a probabilidade, a simples desenhos de natureza esquemática que
serviriam para tornar mais legíveis os vários «apontamentos» escritos que
acompanhavam os contratos. Esta prática não substituiu outras como as
«lojas de risco» – que certamente evoluíram em direcção ao ornato
renascentista – e a realização de maquetes.
Um dos raros desenhos conservados deste período data de 1502 e é
respeitante a uma obra a realizar em Alcácer Ceguer, da autoria de Pero
Vaz 229, funcionando quer como prova da prática desta realidade quer como
denúncia da falta de escala e de rigor que só anos mais tarde – com a
ascensão da figura do arquitecto – este trabalho teórico alcançará. A
própria documentação com grande dificuldade pode funcionar como
importante objecto de trabalho na reconstituição desses mesmos desenhos
na charneira medievo-renascentista – embora se deva colocar a ressalva de
nem sempre o que era estabelecido em contrato se cumpria e que mesmo os
relatos escritos deixavam, muitas vezes, largas margens de manobra
utilizadas arbitrariamente pelos mestres na concepção estética da obra.
Obras como o «Livro das Fortalezas» de Duarte D’Armas, de 1510,
fornecem-nos igualmente a oportunidade de analisar a falta de rigor sob o
ponto de vista do desenho arquitectónico «moderno» e a ausência de uma
transposição realista do representado.

A nomeação de Diogo de Arruda para mestre de obras da Comarca


do Alentejo em 1521 define as suas obrigações como «prouer e ver as
obras que se na dita comarca fizerem cada vez que o mandarmos e assy de
emleger, debuxar e ordenar quaesquer cousas que mandarmos fazer de
nouo e asy recebelas mesmo depois de feitas e examinalas e velas se uam
na perfeiçam que deuem dir» 230. Assim, deve «debuxar» e ordenar sobre
tudo o que de raiz se fizer, vistoriar os trabalhos e examiná-los depois de
realizados. Parece claro que a existência de um desenho preliminar é
importante para a aprovação de determinado trabalho, mas esta notícia nada
nos diz sobre o seu grau de simplicidade ou complexidade.

229
Reproduzido em Pedro Dias, A Arquitectura dos Portugueses em Marrocos. 1415-1769, pág. 57.
230
Cfr. Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo I, pág. 50-51.

100
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Um documento manuelino que nos pode servir como paradigma é o


célebre «auto da obra de Sam Dominguos da cidade de Coimbra» lavrado
a 3 de Agosto de 1521 – ano da morte de D. Manuel – referente à obra do
madeiramento das duas naves colaterais do antigo e destruído mosteiro e
que inclui um «apontamento» escrito e uma planta. O documento refere
que «lhe foy dada ao dito juiz hua amostra da obra do dito mosteiro de
Sam Dominguos asy da nava que já estaa feita como das que estam por
fazer, a quall amostra o dito juiz mandou que se metese no auto quando
fose pera sua alteza todo uer». Mais se afirma que «a quall amostra que o
dito PeroAnes, mestre dos paaços, apresentou no dito juiz, que he a que
aquy vay adyante, he feita por o dito Pero Anes, mestre». Acompanha o
auto referente à arrematação da empreitada do madeiramento uma planta
sumária 231.

Ainda durante o reinado de D. Manuel a documentação revela a


optimização linguística que acompanha os tempos pré-renascentistas,
estética imposta pelos mestres de pedraria nas primeiras décadas do século
XVI. Podemos valer-nos de um contrato fora do círculo régio para provar
esta mesma realidade. O contrato de cerca de 1514 mas apenas conhecido
por documento de 1614 entre João Lopes, o Velho e a Sé de Lamego
declara explicitamente que o dito mestre «acabe os portaaes na maneira e
modo que eram comecados com seus emtabollamentos os quaes
emtavollamentos sam d’obra Romana com seus emcorroamentos segundo
estam debuxados em hum padrom que foy amostrado a Sua Senhorja» que,
por sua vez, tinha em suas mãos a «mostra» da obra 232. Repare-se que, no
que diz respeito à obra de cantaria «ao romano», o mestre apresentou um
«padrom», ou seja, um modelo em pedra do entablamento a esculpir – um
detalhe arquitectónico.

Outro contrato que identifica a prática do «debuxo» é o de 2 de


Janeiro de 1529, dedicado à obra da capela-mor da igreja de Góis e das
moradias nobres do seu patrono, D. Luís da Silveira, segundo projectos do
jovem mestre Diogo de Torralva. Se no que se refere à capela-mor gótica

231
No centro da planta diz-se: «Sñor. Estas duas naves, que sua alteza manda que se forrem, levam
quatrucentas hoytenta peças de tavoas e doze lõguuras de tavoas, sendo de xii palmos de cõprido que sã
de bordos ha tres tauoas quada bordo ceto L bordos he mais leuã ambalas naves de cordões noveta he
oito cordões grosos seguudo os outros da nave do meo que ha mister xxxii bordos dãdo tres peças quada
bordo: ha qui nesta higreja fiquam duas quapelas pera forar he hua delas ha mister madeirada de nouo
he mais hua esteira do quoro que parece da higreja, por que ha outra esta jaa forrada he os frades
quiserã que todo fora em receita he o juiz nã quis dezedo que sua alteza nã mãdaua mais que as duas
naves». Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo I, pág. 34-36.
232
Reproduzido em Rafael Moreira, A arquitectura do renascimento no sul de Portugal. A encomenda
régia entre o Moderno e o Romano, apêndice documental, pág. 37.

101
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Diogo de Castilho se comprometia a fazer «duas sepulturas pelo theor de


hua amostra que se pera yso fez que esta asynada pello dito diogo de
torralva», a descrição dos trabalhos a realizar na casa particular observa
que foram ordenados «hus debuxos que dello sõ feytos pello dito diogo de
torralva» sendo que «as voltas sera polla ordenãça do debuxo» – incluindo
os arcos das varandas «segundo forma do debuxo serã chãfrados cõ sua
volta Redomdo» – e as «culunas cõ suas vasas e capites bem laurados ao
Romano de allgua boa obra e as colunas serã Redomdas e Imteyras» 233.
Ora, se a existência de «debuxos» preliminares não pode ser posta em
causa, daqui não se pode depreender que a mera introdução da nova
linguagem proto-renascentista pressuponha, à partida, uma maior exactidão
na representação gráfica do motivo arquitectónico.

Neste período de transição da linguagem gótica para a renascentista,


as obras em que intervém João de Castilho acolhem as mesmas expressões
já utilizadas anteriormente. No contrato de 1533 para as obras no Convento
de Cristo de Tomar, referem-se os «emlegimentos e debuxos» – para além
dos apontamentos descritivos – e em 1547 em documento régio dirigido ao
prior do convento declara-se que se «farse-á um debuxo de enlegimento por
pitipee do refeitório em que venham as portas e janelas e frestas tudo
muito certo e assinado por medida no debuxo» 234. Todavia, é
manifestamente exagerado ver na existência de uma escala – o «petipé» – a
presença do desenho arquitectónico moderno mas simplesmente uma
preocupação por um maior rigor, algo relevante em toda e qualquer obra de
patrocínio régio de elevada importância.

Durante a década de 40, as referências à existência de «debuxos» e


«amostras» multiplicam-se, desde o «debuxo do moestro novo» da Serra do
Pilar nas mãos de frei Brás de Braga (1542) até ao «debuxo» que João de
Ruão projecta para o Colégio das Artes e que André de Gouveia envia para
a Corte (1548). Um dos documentos mais representativos do maior uso das
fontes gráficas é o contrato redigido a 15 de Dezembro de 1547 235 para a
feitura da Sé de Miranda do Douro. Segundo as palavras do bispo, o mestre
de pedraria Gonçalo de Torralva «me deu com o debuxo e apontamentos
pera a obra desta see de Myrãda», qualificado dois anos depois como
«sumptuoso» e comparável aos projectos de Salamanca e Évora. Se,
aparentemente, esta nota não traz qualquer novidade face ao generalismo
do termo aplicado, alude-se às medidas do templo e mesmo à existência de
um desenho descritivo. Face às críticas à monumentalidade do projecto –
233
Publicado por Vergílio Correia, Um túmulo renascença. A sepultura de D. Luís da Silveira em Gois,
pág. 31-37.
234
Beatriz Bueno, «De quanto serve a Ciência do Desenho no serviço das obras de el-rei», Actas do
Universo Urbanístico Português, pág. 275.
235
Publicado em Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo III, pág. 134-135.

102
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

dado que alguns eram do parecer que a «ygreja se podera fazer alguo mays
pequena sem yr contra a ordem do debuxo» – o bispo defende que a fábrica
se poderá fazer «do mesmo tamanho que esta no debuxo, vystas as medidas
delle» enquanto que se confirma a existência de um desenho em alçado
quando se refere parecer «inconveniente haver tantas janelas» em terras de
temperaturas baixas. Planimetria e altimetria faziam parte dos «debuxos»
propostos para um dos novos edifícios diocesanos joaninos.
Mesmo as obras a realizar no espaço ultramarino, como o regimento
joanino de 1549 que o fidalgo Tomé de Sousa recebe com o objectivo de
fundar e fortificar a cidade de Salvador, declara que seria segundo «as
traças e amostras» que consigo leva 236.

Como bem viu Beatriz Bueno, «no reinado de D. João III a prática de
utilização do desenho, na concepção e orientação das obras, parece
consolidada, sobretudo num momento em que as encomendas régias
passaram a pautar-se no gosto ao Romano, sendo essencial para o estudo
das medidas e proporções. O fato de desconhecermos a existência de
desenhos arquitectónicos do período nos impede de assegurar o grau de
rigor e precisão empregados na sua confecção. No entanto, é possível
formular a hipótese que a presença da escala gráfica (o petipé) e, portanto,
das medidas no próprio debuxo, assim como a familiaridade com a sintaxe
clássica mais erudita, os encaminhasse para precisão, em busca das
proporções harmônicas» 237.

2.2.2.1.3. O conhecimento técnico-prático do mestre de pedraria

Vimos já as exigências que a um oficial de pedraria eram requeridas


para passar no exame de avaliação técnico-prático. Para além de conhecer
os materiais e os locais onde fundar uma obra, deveria saber erguer os
alicerces e pés-direitos bem como chaminés, telhados e no caso dos
canteiros, lavrar a pedraria para janelas, portais, escadas e estruturas de
suporte como arcos e colunas. Todos estes elementos construtivos básicos
eram dominados pelo mestre pedreiro responsável pelo ensino e pela sua
transmissão dentro dos trâmites da hierarquia tradicional da profissão.

Não é difícil sustentar a existência de uma tradição construtiva


nacional que se prolongou por todo o século XVI e primeira metade do
século XVII e que nunca parece ter abandonado os mestres de pedraria
mesmo com o aparecimento da figura do «arquitecto». De facto, os usos de
novos instrumentos como o «debuxo» e a nova linguagem renascentista

236
Beatriz Bueno, «De quanto serve a Ciência do Desenho no serviço das obras de el-rei», pág. 277.
237
Cfr. Beatriz Bueno, «De quanto serve a Ciência do Desenho no serviço das obras de el-rei», pág. 275-
276.

103
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

não conduziu em Portugal – tal como em Espanha ou França – a um


abandono da cultura geométrica baixo-medieva que estaria na base da
tradição construtiva. Durante grande parte de Quinhentos a mutação
estética ficou-se, grosso modo, mais pelo ornato do que pelos componentes
estruturais da arquitectura. Alguns elementos de continuidade estão clara e
distintamente presentes na arquitectura «moderna», como as abóbadas de
aresta ou o uso de contrafortes para suportar pés-direitos em igrejas e
claustros. Se a coluna renascentista se impôs sem grande dificuldade –
embora «desregrada» – determinadas soluções novas, como a abóbada de
meia laranja ou a planta de cruz latina de raiz «romana» muito tardiamente
foram traduzidas em escala e obra pétrea. A solução encontrada para as
novas catedrais joaninas por Miguel de Arruda e a arquitectura régia é,
neste particular, paradigma da época.

Desconhece-se qualquer manual de construção redigido por mestres


portugueses durante este período. Partindo do princípio de que em Portugal
as tradições estereotómicas de raiz baixo-medieva se mantiveram numa
linha idêntica à de Castela, esses escritos dar-nos-iam uma visão mais
aproximada dessa tradição construtiva que assimila, necessariamente,
algumas permissas decorrentes da normatividade renascentista. Um dos
únicos textos que nos dá ideia da base dessa tradição construtiva é um
manuscrito dos finais do século XVII que pertenceu ao mestre calafate João
Francisco Maria, dado a conhecer por Paulo Varela Gomes 238.

Dividido em quatro partes, o pequeno manual revela o uso exclusivo


de fontes quinhentistas bem como assinala as suas deficiências no que diz
respeito à compreensão das ordens arquitectónicas na sua primeira parte:
cita Vignola e as cinco ordens mas usa as edições quinhentistas de Vitrúvio
e de Sagredo para explicitar apenas o dórico e o jónico. Para além da
terceira e quarta partes, onde trata da lenda fundadora das ordens e das
regras de projecção «ad quadratum», interessa-nos particularmente o
segundo capítulo dedicado aos instrumentos construtivos.
Nele destaca os «frontões – frontespícias ou ensenas ou sobrejanelas
de gualarias ; arcos de volta abatida de vários tipos (sapaineis, ou seja, de
volta em segmento de círculo; sarapainelados, quer dizer, em asa de cesto),
vergas de portas e janelas, arcos e janelas perspectivadas (de escorso que
sam os q se formão fora da excoadria), janelas de engra (ou seja, de
esquina) escadas de quatro lances em volta de um quadrado, e em caracol»
239
. Extrapolando o texto, o referido historiador defende a existência em
Portugal até D. João V de «um entendimento da construção onde se

BGUC, Reservados, códice 3056.


238
239
Paulo Varela Gomes, Arquitectura, Religião e Política em Portugal no século XVII. A Planta
Centralizada, pág. 215.

104
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

fundiam as atribuições práticas, o conhecimento teórico e os conceitos


específicos de arquitectos, engenheiros e pedreiros» que ajudam a perceber
as características específicas da arquitectura portuguesa 240.

Mais significativo do que as dificuldades que o mestre de pedraria


fora do círculo régio mantém acerca das novas regras impostas pela nova
cultura da teoria arquitectónica italiana, é o facto de os arquitectos régios
manifestarem uma particular apetência pela manutenção do conhecimento
de questões técnico-práticas da arquitectura cumprindo em larga medida o
«paradigma vitruviano». Se, como veremos, João Baptista Lavanha
criticava os ditos «tracistas» que se tinham por arquitectos e se a «lição» de
arquitectura de Mateus do Couto apresentada na aula régia não descurava o
conhecimento do terreno da construção, em 1660, o arquitecto João Nunes
Tinoco redigia as Taboadas Gerais para com facilidade se medir qualquer
obra do officio de Pedreiro assim de cantaria como de alvenaria com
outras varias curiozidades da geometria pratica, fixando regras e medidas
para todos os elementos construtivos 241.

Tinoco começa por apresentar as «medidas geraiz de Portugal» e as


taboadas básicas para as pedrarias (simalhas, friso, arquitraves, capitéis,
bases, simácios, etc.), «xilhares» de cunhais, pedestais, pilares, botaréus,
sobrearcos e forros, «lagedos» de toda a sorte, lavrados ou toscos, paredes
de pedra e cal ou taipa, abóbadas de tijolo «dobradas ou singelas, telhados
de toda a sorte, assim mouriscos emsopados ou valadios, frontais de tejolo,
pano de chemine» e outros. De seguida trata mais largamente de todas as
medições nas suas «aduertencias geraiz de uso que se pratica na Corte de
Lxª e em todo o reyno de Portugal sobre a medição das obras» sendo que
«tudo o q tocar a alvenaria, feita com cal, pedra, e tijolo vay a braças, e a
pedraria ou cantaria laurada ou tosca vay a varas». É sobretudo um
manual técnico que compila informação sobre a medição de simples
elementos arquitectónicos e outros mais complexos, incluindo algumas
regras matemáticas como, por exemplo, o «reduzir facilmte palmos cubicos
ou solidos a bracaz de alvenaria ou telhados de terra ou dentulhos» ou
«como se estenderam linhas circulares» para medir abobadamentos. Trata
igualmente do uso de figuras geométricas para medições de volumes. Não
deixando de aplicar o seu saber aos madeiramentos, telhados, ladrilhos e
«medidas de agoa», inclui uma nota erudita com a transcrição da «taboada
de Alberto Dureiro».

Como bem conclui Paulo Varela Gomes, esta obra insere-se numa
vasta tendência europeia, menos «romana» e mais nacionalista, de
240
Cfr. Paulo Varela Gomes, Arquitectura, Religião e Política em Portugal no século XVII..., pág. 219.
241
BN, Reservados, códice 5116.

105
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

produção teórica, «cujo objectivo principal é situar a arquitectura no campo


da proeza técnica muito mais do que no conhecimento e uso das ordens.
Trata-se de uma cultura de pedreiro, profundamente ligada às tradições
profissionais e culturais – e a modelos formais e técnicos – vindos da Idade
Média» 242. O trabalho de João Nunes Tinoco não desagradaria a Rodrigo
Gil de Hontañon nem a Philibert Delorme.

2.2.2.2. A hierarquização régia dos cargos de «mestre de pedraria»

2.2.2.2.1. O «Mestre de Obras dos Paços Reais»

Nas primeiras décadas de Quinhentos não existia em Portugal um


sistema centralizador no que diz respeito ao principal responsável pelas
obras patrocinadas pelo monarca. Sabe-se que D. Manuel se rodeava de
pessoas que entendiam de arquitectura e que D. João III era mesmo um
amante da arte de edificar, discutindo projectos com os principais mestres
régios que tinha ao seu dispor. Todavia não existia uma hierarquia entre os
diversos cargos estatais. Nesta circunstância, o cargo de «Mestre de Obras
dos Paços Reais» é o primeiro que nos poderá oferecer uma hierarquização
dos oficiais de arquitectura mais relevantes do reino. Partimos,
evidentemente, do princípio de que os reis portugueses mantêm ou
escolhem para mestres de pedraria das suas casas reais as personagens mais
esclarecidas para cumprir esta função.

Durante quase todo o século XVI, o monarca português não teve


moradia fixa, embora D. Manuel tenha edificado junto ao rio Tejo o célebre
Paço da Ribeira, pelo menos antes de 1505, mas os seus descendentes
pouco parecem tê-lo utilizado. Sabe-se que D. João III passou longas
temporadas em Almeirim e Tomar e que chegou a instalar-se durante vários
anos na cidade de Évora, rodeado da sua horda de humanistas. Mesmo D.
Sebastião, em Lisboa, nunca abandonou o gosto de pernoitar nos velhos
paços da Alcáçova e só com Filipe II se decide reedificar e aumentar a
magnificência dos paços régios. Mesmo em Coimbra, até à venda dos
terrenos à Universidade, o monarca manteve uma residência e um mestre
pedreiro responsável por eventuais obras novas ou de manutenção.

A documentação destaca alguns dos aposentos régios em Santarém,


Muge, Almeirim, Salvaterra, Évora e Coimbra e refere a nomeação do
respectivo «mestre de obras» dos paços reais. Podemos verificar estas
nomeações através da seguinte listagem:

242
Paulo Varela Gomes, Arquitectura, Religião e Política em Portugal no século XVII..., pág. 214.

106
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Mestre de Obras dos Paços Reais de Santarém

1504 – Pero Nunes


1526 – Pedro de Arruda
1543 – Miguel de Arruda

Mestre de Obras dos Paços de Almeirim e Muge

1543 – Miguel de Arruda

Mestre de Obras dos Paços de Santarém, Salvaterra e Almeirim

1543 – Miguel de Arruda


1565 – António Mendes
1581 – Baltasar Álvares

Mestre de Obras dos Paços de Almeirim e Salvaterra


1581 – Baltasar Álvares
1631 – Mateus do Couto

O cargo de mestre de pedraria dos paços de Santarém teve, na


primeira metade do século XVI, alguma relevância, tendo sido preenchido
a partir de 1504 por Pero Nunes, aí morador, recebendo por cada ano um
moio de trigo como «mestre da pedraria das nossas obras dos paços da
dita vila e das outras obras que nella mamdamos fazer» 243. A partir de
1526 sucede-lhe Pedro de Arruda, irmão de Miguel de Arruda, subindo o
pagamento em géneros para dois moios de trigo 244. Com a chegada em
1543 de Miguel de Arruda ao cargo de mestre dos paços escalabitanos, já
como «cavaleiro de minha casa, mestre de minhas obras» e mantendo-se o
pagamento anterior, a responsabilidade é extensível a outras moradias da
região do Tejo. Entre Miguel de Arruda e Baltasar Álvares, António
Mendes ocuparia o cargo no que se refere aos Paços de Santarém,
Salvaterra e Almeirim.

Porém, parece-nos que posteriormente à concentração promovida por


D. João III na figura de Miguel de Arruda e com a morte deste em 1565 – e
posteriormente ao período de convulsões que levou à união dinástica – esta
nomeação passa a ser mais uma fórmula de premiar o trabalho de
arquitectos próximos da Corte que nunca tiveram acesso ao cume da
hierarquia. Só assim se percebe que Baltasar Álvares 245 e o seu discípulo
243
Cfr. Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo II, pág. 200-201. É provável que o cargo se estendesse
também aos paços de Almeirim, dado que Pero Nunes é assim declarado num outro documento de 1519.
244
Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo I, pág. 75.
245
Baltasar Álvares é nomeado já mestre das obras de Santarém, Almeirim, Salvaterra e ainda do
Mosteiro da Batalha em 1581, tendo direito a um pagamento de dois moios de trigo. Tal como se diz no

107
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

directo Mateus do Couto – este como «arquitecto, do officio de mestre das


obras dos paços de Almeyrim e Salvaterra, mosteiro da Batalha e
comarqua de Alentejo», numa altura em que é já Mestre das Ordens
Militares, tendo direito a três moios de trigo e a 10.000 reais de salário
anuais 246 – surjam nomeados para este cargo, que não deixa de ter
importância remuneratória.

No que diz respeito aos paços reais de Évora e Coimbra, também a


sua relevância se esgota na primeira metade do século XVI. No caso
eborense, a mudança da Corte joanina para a cidade na década de 30
pressupôs a reconstrução dos aposentos régios, valorizando-se a nomeação,
mas com o falecimento de Diogo de Torralva em 1566, dilui-se a sua
importância :

Mestre de Obras dos Paços Régios de Évora

1514 – Martim Lourenço


1525 – Diogo de Arruda
1531 – Francisco de Arruda
1548 – Diogo de Torralva

A reforma manuelina dos Paços Reais de Évora coincide com a


nomeação de Martim Lourenço, em 1514, e na sequência de circunstâncias
anteriores, «por sabermos delle que he tall oficiall de seu oficio que nesto
nos seruyra bem e como a nosso seruiço compre, temos por bem e o damos
ora daquy em diante por mestre das nosas obras da pedraria que se em a
nosa cidade deuora e paços della, asi e per a maneira que o elle deue ser e
o eram os outros mestres das obras nos semilhantes lugares» 247. A carta
régia indica expressamente que o ordenado será de 6.000 reais anuais e que
se trata de um acrescento de dois mil reais face aos quatro mil que já
colectava. Esta circunstância foi excepcional – e deve estar relacionada
com obras importantes – na medida em que, quer Diogo de Arruda em
1521, quer Francisco de Arruda em 1531 recebem apenas os 4.000 reais
que o próprio Martim Gonçalves recebia à cabeça. Uma vez mais, a
nomeação em 1548 de Diogo de Torralva representava já mais um prémio
profissional do que uma responsabilidade em obras relevantes.

Se posteriormente ao período «joanino» o cargo de Évora se esgota


na figura de Diogo de Torralva, o mesmo parece acontecer em Coimbra, na
circunstância com Diogo de Castilho, embora um dos seus discípulos ainda
usufrua das mesmas condições:
documento, é-o «pelos trabalhos que fez para D. Henrique». Veja-se Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo
I, pág. 16.
246
Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo I, pág. 546-547.
247
Veja-se Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo II, pág. 90.

108
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Mestre de Obras dos Paços Reais de Coimbra

1517 – Marcos Pires


1524 – Diogo de Castilho
1575 – Jerónimo Francisco

Se poucas ou nenhumas obras se vulto se podem referenciar depois


da valência de Diogo de Castilho, é sabido que Filipe II venderia
definitivamente os paços régios conimbricenses à Universidade.

Verifica-se que durante o reinado de D. Manuel e D. João III estas


distinções profissionais distribuem-se por relevantes oficiais de arquitectura
régios. Não obstante, o «Mestre de Obras da Comarca do Alentejo» parece
assumir mais responsabilidades e protagonismo.

2.2.2.2.2. O «Mestre de Obras da Comarca do Alentejo»

O cargo de Mestre de Obras da Comarca do Alentejo teve uma


importância enorme ao longo do século XVI, sendo desempenhado por
profissionais altamente qualificados numa região onde a arquitectura régia
se impôs e apostou fortemente. Os mestres nomeados para esta função
foram os seguintes:

1521 – Diogo de Arruda


1531 – Francisco de Arruda
1548 – Diogo de Torralva
1566 – Manuel Pires
1570 – Afonso Álvares
1580 – Baltasar Álvares
1631 – Mateus do Couto

Deve ter sido criado por D. Manuel com o objectivo expresso de


colocar sobre um único profissional o controlo de todas e quaisquer obras
que se realizavam numa zona geográfica de enorme importância. Isto
mesmo se depreende pelo alvará régio que descreve com alguma minúcia
estas condições. Assim, Diogo de Arruda é a partir de 1521 «mestre de
todalas nosas obras, que mãdamos fazer em todo Alemtejo, com o qual
careguo nos praz que ele tenha e aja de nos de tença em cada huu ano, em
quanto nosa merce for» 12.000 reais, sendo «obrigado a seruir, prouer e
ver as obras que se na dita comarca fizerem cada vez que o mandarmos e
asy de emleger, debuxar e ordenar quaesquer cousas que mandarmos fazer
de nouo e asy recebelas mesmo depois de feitas e examinalas e velas se

109
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

uam na perfeiçam que devam dir» 248. O documento é claro no assumir


totais responsabilidades por parte do mestre no projectar, supervisionar e
avaliar todas as obras da região. É importante referir que, a par desta
nomeação, Diogo de Arruda é também eleito «medidor de obras do reino»
sejam elas referentes a «muros, igrejas e mosteiros». Parece evidente a
tentativa régia de, através deste cargo, arrumar a questão relativa a uma
grande franja do território nacional privilegiado pela Corte e iniciar a
concentração e controlo de todas as construções arquitectónicas assente
numa pequena elite de mestres régios que seguem directamente as
directivas dos monarcas portugueses. Este é o primeiro momento em que
em Portugal se verifica uma tentativa de controlo efectivo e de
hierarquização profissional.

As condições e responsabilidades, sempre a par da nomeação para


«medidor de obras do reino», mantêm-se inalteráveis com a contratação de
Francisco de Arruda em 1531 e de Diogo de Torralva em 1548 – juntando-
se-lhe ao cargo de mestre de obras dos Paços de Évora – mas a partir do
falecimento de Torralva em 1566, a remuneração baixa para os 10.000
reais, numa altura em que o cargo passa para as mãos do «mestre das obras
do cardeal Iffate dom Anrrique» Manuel Pires e depois em 1570 para o seu
sucessor, o «mestre das obras das fortificações» Afonso Álvares 249.

Veja-se que a relevância da função leva ao seu preenchimento por


Diogo e Francisco de Arruda, Diogo de Torralva ou Afonso Álvares que, à
época, ocupam altos cargos dentro da hierarquia profissional. Todavia, com
a ascensão do período filipino, as atenções da arquitectura régia no que diz
respeito à região alentejana irão concentrar-se na criação de um novo cargo
directamente dependente das Ordens Militares que dominam a geografia do
sul do País. As próprias nomeações de Baltasar Álvares e Mateus do Couto
coincidem quase temporalmente com a de «mestre das obras das Ordens de
Santiago e Avis», numa época em que este cargo apenas vale, tal como
aconteceu com os anteriores, mais como um prémio profissional para estes
últimos, dada a diferença substancial de ordenado.

Meramente emblemático para o século XVI e XVII – contudo


representativo de reconhecimento profissional e certamente de honra
pessoal – tendo apenas como objectivo premiar a aptidão e a suficiência

248
Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo I, pág. 50-51.
249
Com a morte de Manuel Pires em 1570, Afonso Álvares não só é nomeado Mestre de Obras da
Comarca do Alentejo como o ordenado de 10.000 reais como também mestre das obras da «água da
cidade de Évora», pelo qual receberá 8.000 reais ano. Cfr. Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo I, pág. 13.

110
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

profissional, é o cargo de «Mestre de Obras do Mosteiro da Batalha» numa


altura em que a fábrica perdeu definitivamente a importância de outrora. Só
assim se compreende que os supracitados Baltasar Álvares, em 1581, e
Mateus do Couto, em 1631, recebam ainda a benesse de serem nomeados
seus supervisores, mais de cem anos depois de as obras terem sido
praticamente abandonadas – se quisermos levar em linha de conta a ida de
Diogo de Boutaca para comandar a fábrica dos Jerónimos e as pontuais
intervenções posteriores de João de Castilho. Neste sentido estão já as
nomeações em 1533 de Miguel de Arruda e em 1563 do sobrinho Dionísio
de Arruda. Todos têm direito a um rendimento em géneros – um moio de
trigo – para além do usufruto do regimento e provisões aderentes ao cargo.

2.2.2.2.3. O «Mestre de Obras» de patrocínio régio

O século XVI abre com a colocação da primeira pedra na obra do


Mosteiro de Nossa Senhora de Belém (1501). Os Jerónimos são a aposta
manuelina para a construção de uma «obra-poder» com todo o simbolismo
que D. Manuel pretendia. Interrompendo as obras do Mosteiro da Batalha,
o monarca português chama para comandar o estaleiro lisboeta o principal
responsável pela fábrica batalhina, Diogo de Boutaca. Todavia, será a partir
de 1517, com a chegada do mestre João de Castilho, que a obra hieronimita
atinge pleno fulgor. As obras em Belém e posteriormente no Convento de
Cristo de Tomar fazem de João de Castilho o maior oficial da arte da
arquitectura durante as últimas décadas do período manuelino e o período
inícial «joanino».

Não há razões para duvidar que as obras emblemáticas do regime


estão nas mãos de João de Castilho, o grande nome da arquitectura da
primeira metade do século XVI e um dos principais responsáveis pela
transição do formulário do Gótico final em versão «manuelina» para a
modernidade renascentista – impressa quer nos Jerónimos quer em Tomar.
E, contudo, João de Castilho nunca foi nomeado para nenhum dos cargos
principais em poder dos Arruda e dos Torralva junto da Corte. Mas foi-o
certamente para os Jerónimos e para Tomar.

Com a chegada ao poder de D. João III, a principal obra de


patrocínio régio passa a ser a fábrica do Convento de Cristo de Tomar.
Depois de ter tido como principais responsáveis Diogo de Arruda e João de
Castilho – este último autor da quase totalidade da obra renascentista do
mosteiro – entra-se na segunda metade do século XVI tendo como mestre
de obras Diogo de Torralva entre 1554 e 1566. Também o estaleiro
nabantino terá a preferência de Filipe II, que não deixa de realizar os
sonhos do malogrado primo para Tomar e Lisboa, designadamente, a

111
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

conclusão do Claustro Nobre do Convento de Cristo e a Igreja de São


Vicente de Fora – projecto que substituiu o da Igreja de São Sebastião do
período sebástico. Mas, se durante o período filipino o principal
responsável da fábrica é, em termos práticos, o principal arquitecto do reino
– Filippo Terzi – o mesmo não aconteceu durante os períodos joanino e
sebástico, dada a reorganização da hierarquia dos profissionais da arte da
arquitectura régia.

De facto, a necessidade de um controlo centralizador das obras


régias, essencialmente no que diz respeito à defesa e fortificação do reino,
levará a que D. João III chame para encabeçar toda a pirâmide de mestres
da arquitectura a figura de Miguel de Arruda.

2.2.2.2.4. O antecedente do «Mestre de todas as Obras Régias»

Foi a primeira tentativa de centralizar numa só pessoa o poder de


decidir acerca dos mais importantes problemas arquitectónicos que se
colocavam à arquitectura régia de então, embora essa concentração só se
venha a consubstanciar verdadeiramente na figura do arquitecto italiano
Filippo Terzi. Referimo-nos à nomeação de Miguel de Arruda em 1548
para «mestre das obras dos muros e fortalezas». D. João III justifica-a do
seguinte modo: «Vendo eu como he necessario os muros e fortalezas que
até agora são feitos nos luguares de meus reinos e señorios serem
repairados em maneira que estem sempre como conuem a meu seruiço e a
bem delles, E como pera as obras que se ouuerem de fazer nos ditos muros
e fortalezas e asy pera quaes quer outros muros e fortalezas que de nouo
cumprir que se fação he necessario hauer mestre das ditas obras, por
confiar de Miguel Darruda, caualro fidalguo da minha casa, que polla
abelidade e esperiencia que tem das ditas obras me seruirá no dito
carreguo de mestre dellas» 250.

Justifica-se este antecedente pela importância do cargo e pela


anuidade espectacular de 80.000 reais por ano, incomparavelmente superior
ao cargo de mestre de obras da Comarca do Alentejo, arrematado por
Diogo de Torralva nesse mesmo ano de 1548. A importância de Miguel de
Arruda para a arquitectura portuguesa da época é indiscutível, chegando
mesmo a supervisionar os trabalhos que João de Castilho conduzia no
Convento de Cristo, tendo plenos poderes em matérias relacionadas com a
fortificação. Não obstante, Torralva tinha uma palavra a dizer no que dizia
respeito a questões fora do âmbito da arquitectura militar e será o seu

250
Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo I, pág. 72-73.

112
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

projecto que será aplicado nas obras de preferência do monarca no


Convento de Cristo em Tomar.

Porém, esta mudança é muito significativa já que na viragem da


primeira para a segunda metade do século XVI coincide com o
entendimento dos novos modelos arquitectónicos italianos e de uma nova
estética por parte de Miguel de Arruda e de Diogo de Torralva plasmada
em pequenas obras de profunda erudição. Ora, se no caso de Miguel de
Arruda o entendimento do modelo arquitectónico renascentista é ainda
parco face a Diogo de Torralva, a situação muda definitivamente no caso
do seu sucessor António Rodrigues a tratar-se do autor da Capela das Onze
Mil Virgens de Alcácer do Sal.
Pese embora o facto de Afonso Álvares aparecer na documentação
como especialista em obras de fortificação – com o título de «mestre das
fortificações de meus reinos» – o sucessor de Miguel de Arruda, entre 1565
e 1590, será António Rodrigues e nesta circunstância o alvará régio de
nomeação assume então a mudança definitiva, dando-o como «mestre de
todas as minhas obras».

113
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

2.2.3. O Arquitecto

2.2.3.1. O conceito de arquitecto e a «consciência de


modernidade»

Será a partir da publicação do «Medidas del Romano» de Diego de


Sagredo que o termo «arquitecto» se torna conhecido por toda a Península
Ibérica, embora a efectivação bem como o seu uso corrente apenas se torne
visível perto dos finais do século XVI. Pensamos ter sido João de Ruão o
primeiro a fazer uso consciente do étimo (1567) segundo a sua concepção
moderna e vitruviana 251. De qualquer modo, só na viragem para o século
XVII se generalizam e se definem verdadeiramente as suas funções, para a
qual contribuiu decisivamente o ensino régio.

Será quase desnecessário recordar que o significado moderno de


«arquitecto» só é exequível se o ligarmos à consciência de um trabalho
especulativo antecedendo e desconectado da «praxis» arquitectónica. No
início da segunda metade do século XVI o principal mestre de pedraria
régio é Miguel de Arruda, tendo sido nomeado em 1548 fortificador-mor
do reino com amplos poderes no que tocava a todas as obras régias,
acumulando o cargo com o de mestre dos paços reais de Santarém,
Salvaterra, Almeirim e Muge. Não obstante, teve que partilhar os louros do
sucesso com Diogo de Torralva, responsável pelas mais revolucionárias
obras arquitectónicas dos finais do período joanino. Se é certo que quer
Arruda quer Torralva desempenham já um papel de projectista e
superintendente de trabalhos arquitectónicos a partir de uma «traça», não
podemos inferir daqui que as condições para a existência de uma
consciência moderna de arquitecto estejam completamente preenchidas. As
suas funções são já as de um arquitecto moderno mas, se se quiser, ainda
fora de uma consciência de causa. Glosando uma célebre expressão,
podemos considerar que os mestres deste período de transição são uma
espécie de «mestres de pedraria vestidos de arquitecto».

O «Auto da Avé Maria» composto por António Prestes cerca de 1560


demonstra bem o nível de consciência que existe em Portugal da «figura do
arquitecto» moderno na entrada da segunda metade da centúria – com uma
dose crítica que manifesta algo recente e ainda não bem aceite. Segundo
Sylvie Deswarte, é «peça alegórica que põe em cena o diabo, um gentil-
homem que constrói o castelo de Salut com a ajuda de um mestre de obras,
Bom Propósito, e de três pedreiros, Bom Trabalho, Bom Serviço e Bom
Zelo ; mas as alusões à actualidade aparecem nessa máquina alegórica. O

251
Sobre João de Ruão ver capítulo neste trabalho.

114
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

diabo faz-se passar por um arquitecto italiano, que fala castelhano,


vangloriando-se das suas construções em Roma, do seu conhecimento de
Serlio, citando a tradução de Villalpando. Fala da confusão teórica que
reina em Portugal, do mau emprego das ordens arquitectónicas.
Finalmente, o gentil-homem substitui os outros fazendo destruir o castelo
em construção para seguir os planos do arquitecto». O velho mestre é
despedido e inicia-se o novo projecto da «Fortaleza da Salvação» mas «o
ridículo é atingido quando a obra fica por fazer» 252.

Para além da prova directa do conhecimento dos escritos serlianos, a


sátira parece reflectir a circunstância portuguesa nos inícios da segunda
metade do século XVI, revestido-se assim de enorme relevo. Analisem-se
os dados. Em primeiro lugar opõe o tradicional mestre de pedraria,
experiente em questões práticas e o arquitecto italianizado, conhecedor de
uma nova linguagem estética mas aparentemente sem experiência qualquer
no campo construtivo. Este último centra a sua mais valia nos
conhecimentos teóricos e na sua «obra realizada na própria cidade de
Roma», desconhecida pelos intervenientes mas importante factor para levar
o nobre a seguir as suas determinações. A mudança conduz à destruição da
obra e pretende provar a incapacidade do «arquitecto» em matérias práticas
da edificação. A mensagem é clara na crítica à nova posição do arquitecto,
tido como teórico e inexperiente na prática face ao mestre pedreiro.

Várias são as conclusões que podemos retirar deste retrato do


Portugal arquitectónico da época. Por um lado, os escritos de Sebastiano
Serlio – na versão castelhana de Villalpando – são conhecidos de forma
generalizada e a nova figura do arquitecto é reconhecida na sua verdadeira
acepção, ou seja, como representante de uma nova teoria arquitectónica
dimanada e praticada em Itália. Por outro, a diabolização do arquitecto e do
seu saber declara-nos, clara e inequivocamente, que aquilo que representa
não é visto com bons olhos. Resta saber se esta descrença retratava o
«gosto do povo» que não entende a nova linguagem ou um conflito a mais
altas instâncias entre o mestre tradicional e o arquitecto. Seja como for,
pensamos que a peça teatral parece provar acima de tudo que a nova figura
do arquitecto – e tudo aquilo que representa – embora conhecida, não se
impôs ainda definitivamente no panorama nacional. Note-se que não se
deve ver aqui uma espécie de conflito ideológico entre a defesa de um
modelo nacional contra o modelo italiano, na medida em que apenas o
«arquitecto» se faz valer dos seus conhecimentos teóricos «italianizados»
para provar a sua mais valia e justificar o modelo ultrapassado que estaria a
ser aplicado pelo mestre pedreiro.
252
Sylvie Deswarte, «Francisco de Holanda ou le Diable vêtu à l’italienne», Les traités d’architecture de
la Renaissance, pág. 341.

115
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Pese embora a situação de privilégio de Miguel de Arruda, que falece


em 1563 – e com menor visibilidade António Rodrigues e Afonso Álvares
no hiato sebástico do decénio de 70 – terá que esperar-se pelo final do
século para que surja, «in factu» e «in situ», a concentração de poderes em
torno de um definido, verdadeiro e plenipotenciário arquitecto-mor, com
largas responsabilidades em todas as áreas da arte da arquitectura e da
engenharia civil e militar – Filippo Terzi. O arquitecto italiano será o
responsável pela articulação de uma equipa de profissionais especializados
– a partir da «aula de arquitectura» dos Paços Régios – que têm como
principal função auxiliar o vértice superior da hierarquia profissional.

2.2.3.2. A prática do «debuxo» na segunda metade de Quinhentos

2.2.3.2.1. Definições terminológicas da representação do projecto


arquitectónico

A documentação quinhentista revela-nos toda uma terminologia


relacionada, directa e indirectamente, com a existência de trabalhos
preparatórios orientadores do projecto arquitectónico. Se nos casos
particulares dos «apontamentos» e «regimento» estamos em presença de
descrições e orientações escritas, designações como «amostra», «debuxo»,
«modelo», «traça» ou mesmo «planta» são indicativas da existência de um
documento gráfico, seja ele em que suporte for. É, desde logo, importante
considerar que os étimos mais frequentemente utilizados são «amostra» e
«debuxo» designando um desenho preparatório, sumário ou não, referente a
uma planimetria ou a um pormenor arquitectónico. Não obstante, a
semântica quinhentista é muito genérica e por vezes polissémica, mesmo
nos casos de instrumentos régios.

Beatriz Bueno chamou a atenção para o facto de o Dictionarium


Latino Lusitanicum do padre Jerónimo Cardoso, publicado em Coimbra no
ano de 1570, incluir os termos «apontamento», «amostra», «debuxo»,
«risco de pena», «pranta» e «traça» mas encontrando-se ausentes
expressões de raiz italiana como «disegno», «modello», «idea» ou
«arquitecto», acertadamente justificando esta realidade por não estarem
ainda assimilados – dir-se-ia mais exactamente generalizados – pela língua
portuguesa e pela maioria dos profissionais 253.
Nesta circunstância, deve entender-se que apenas alguns eruditos se
preocuparam em definir terminologicamente determinados conceitos sendo
Francisco de Holanda o mais avançado no que concerne às exposições
especulativas. Distingue «debuxo» de «desenho» contribuindo para a

253
Beatriz Bueno, «De quanto serve a Ciência do Desenho no serviço das obras de el-rei», pág. 268.

116
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

dimensão maneirista deste: «Chamo desenho aquela ideia criada no


entendimento criado, que imita ou quer imitar as eternas e divinas ciências
incriadas, com que o muito poderoso Senhor Deus criou todas as obras
que vemos; e compreende todas as obras têm invenção, ou forma, ou
fermosura, ou proporção, ou que a esperam de ter, assim interiores nas
ideias, como exteriores na obra» 254. Por seu turno, o manuscrito da
Biblioteca Nacional restringe-se a uma definição vitruviana mais comum,
embora erudita, de «debuxo», aconselhando o arquitecto a saber «debuxar
por q por helle amostre ho seu cõseito e que amostre como he tam
nesesario hao fabricar como cada hua das outras couzas q o
emtemdimento declarou» 255. É exactamente na prática do «debuxo» que
radica o conceito moderno de arquitecto.

Dada a existência de um grande uso de terminologias que se referem


ao projecto arquitectónico na documentação quinhentista, urge esclarecer e
definir o seu verdadeiro significado. No seu «capitolo das partes que ha de
ter ho Arquiteto» o manuscrito da Biblioteca Nacional define já quatro
espécies de representação – «pramta», «montea», «perfice» e «prespetiva»:
«Polla momtea amostrara ho allevantado hou has allturas de
fortalleza cõforme a proporsão do sytio
Polla preffice amostrara as grossuras dos muros de q ha de sser
sercumdada a fortalleza ho quall perfice não o podera fazer se não tiver
feito permeiro a pramta e a momtea por q por a pramta se amostra as
grossuras he pela momtea se amostra as allturas
Comvem ao q houver de fazer proficão de arquiteto 256 emtemder a
prespetiva para q por ella amostre ho esterior he o ymterior do edeficio
escursado para q escuse de fazer despeza em modello de pau hou de sera
hou de tra» 257.

Datável dos finais do século XVI, o «Livro Primeiro da Architectura


Naval» de João Baptista Lavanha fornece-nos já com todo o rigor, um claro
esclarecimento conceptual dos termos em voga 258. O cosmógrafo-mor
começa por definir a «planta» como «hum simples debuxo da fabrica, q
representa a commu secção dos Planos, e por esta se conhece o lugar das
partes da obra, e seus comprimentos, e larguras, medindosse nella suas
capacidades». Trata-se, portanto, da representação planimétrica do edifício
incluindo o «petipé», ou seja, a escala.

254
Citado em Beatriz Bueno, «De quanto serve a Ciência do Desenho no serviço das obras de el-rei», pág.
269.
255
BN, códice 3675, fl. 10vº.
256
A palavra «forteficador» encontra-se riscada.
257
BN, códice 3675, fl. 11.
258
Cfr. João da Gama Pimentel, «O Livro Primeiro da Architectura Naval, de João Baptista Lavanha»,
pág. 266-267.

117
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

A «montra» – ou «montea» – é «uma levantada image da fronte ou


dos lados da fabrica, e esta mostra as alturas, q na Planta se não podem
ver». Torna-se evidente que se refere ao alçado, à representação altimétrica
da arquitectura. Representação igualmente sectorial é o «perfil» definido
como «uma representação da grossura, sacada, encolhimentos, e
profundidade das partes interiores do edifício».
As duas simulações mais exactas da arquitectura são, todavia, a
representação em perspectiva e a maqueta. A «perspectiva» é «a figura de
toda a fabrica como se representa à vista segundo a sua postura e à dos
olhos. He esta parte agradable, e pa q se veja debuxado todo o edificio em
papel, muy necesaria». Por seu turno, o «modello» – a maqueta – é «a
perfeita image de todas as partes da obra, Costumasse fazer de madeira,
de gesso, de Barro, de Cera, e de cartão, e nelle estão comprehendidas
todas as quatro Partes, porq no Modello se ve, a Planta, a Montra, o
Perfil, e a Perspectiva».

É importante salientar que o cosmógrafo-mor parece insistir na


relevância da existência de, pelo menos, uma das duas últimas formas de
representação quando considera a «perspectiva» como «muy necesaria» e
insiste na prática da maqueta, advertindo – quando se refere concretamente
ao arquitecto naval – ser conveniente, para evitar erros, se «faça o Modello
no ql primeiro os emmende, e este perfeito lhe sirva de molde, e exemplar,
pello ql fabrique todos os Navios daqlle genero, e grandeza». Embora
recomendando ao arquitecto a prática das cinco maneiras de projectar,
refere que muito raramente se faz uso da maquete apresentando a seguinte
razão: «Mas como o modello custe tempo, e dinheiro, hasse por mal
gastada a despesa de ambos, e não se faz cõsideração do mto q importa a
fabrica de uma não da Jndia, para com cem cruzados mais (q he p q pode
custar o modello) fazerse acertada e se erros».

Não deixa de ser estranho que em Portugal quase nenhum desenho se


conserve sobre as obras arquitectónicas realizadas durante este período.
São várias as hipóteses que se colocam acerca deste mistério sendo fácil
dizer-se que, porventura agrupadas em pastas ou ficheiros específicos,
foram destruídas pelo terramoto, algo que – embora possa ter sido possível
– não faz muito sentido na medida em que não se encontram igualmente
fora do centralismo régio, portanto, em regiões periféricas. A
documentação prova que os desenhos existiam e que se faziam várias
cópias que ficavam nas mãos do mestre construtor, do monarca ou
provedor régio e mesmo do encomendante religioso. Este tipo de trabalho,
certamente a partir do último terço do século XVI, incluiria vários debuxos

118
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

– valendo-nos de um exemplo espanhol para além do Escorial, sabe-se que


do projecto que Juan de Herrera fez para o «Ayntamiento de Toledo» nos
ficaram três plantas, dois alçados e seis traças particulares referentes a
pormenores arquitectónicos, incluindo abóbadas e arcos, capitéis e bases
259
. Não nos parece credível que em Portugal se tenha mantido o
desinteresse «medieval» por este tipo de representação.

Embora admitindo que os exemplares para uso dos mestres


construtores em pleno estaleiro se tenham perdido, o centralismo régio
patrocinava a sua concentração e a própria cultura da época valorizava a
arquitectura e o debuxo. Em Espanha, confere-se tanto valor e significado
aos desenhos arquitectónicos que chegam a ser reunidos aquando do
falecimento do arquitecto, como aconteceu com Herrera ou Bergamasco.
Permanece ainda um mistério a quase inexistência de traças de Terzi,
Nicolau ou Teodósio de Frias.

2.2.3.2.2. A «praxis» do desenho arquitectónico na segunda metade


do século XVI

A prova da existência de uma consciência de arquitecto moderno


radica na prática de um desenho arquitectónico rigoroso, tornando visível a
base teórica e especulativa preponderante na nova realidade arquitectural.
Um dos mais limitativos problemas que se colocam neste particular, reside
na não preservação de elementos gráficos que nos permitiriam uma análise
directa – para os primeiros sessenta anos de Quinhentos – face à enorme
dificuldade em discernir o verdadeiro significado de termos abrangentes
como «amostra» ou mesmo «debuxo», essencialmente numa época em que
a prática arquitectónica e o interesse pela tratadística nos fornecem também
pistas muito pouco conclusivas. Por outro lado, o desenho dar-nos-ía o
confronto do «projectado» face ao efectivamente «construído» bem como
salientaria as características estilísticas de cada arquitecto. A sua
inexistência coloca, assim, grandes dificuldades de análise.

Se nas décadas de 40 e 50 as referências a «amostras» e «debuxos»


se generalizam na documentação da época, só no período sebástico surgem
os primeiros exemplos concretos, embora excepcionais, de uma prática
moderna de projecto arquitectónico. É desde logo importante recordar que
não existem provas evidentes de uma política concreta formativa de
arquitectos e engenheiros militares portugueses em terras italianas. Mesmo
que se coloque a hipótese de Diogo de Torralva, António Rodrigues,
Baltasar Álvares, Baltasar Arruda e Simão de Ruão – estes dois últimos
259
Martin González, «Formas de representación en la arquitectura clasicista española del siglo XVI», pág.
28.

119
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

documentados – aí terem estagiado, os resultados não são visíveis sob o


ponto de vista arquitectónico. Bem pelo contrário, verifica-se uma situação
inversa. A partir de meados da década de 60 a presença de engenheiros
militares italianos a trabalhar para o reino português é uma constante. D.
Sebastião tentará por todos os meios contratar Filippo Terzi e a posição dos
especialistas portugueses é sempre subalterna em relação aos congéneres
mediterrânicos até à Restauração. A presença italiana deve ter acelarado o
rigor do desenho e da «traça» arquitectónica.

Embora de natureza excepcional, os exemplos concretos de desenho


arquitectónico datados da década de 70 denunciam já a qualidade e o rigor
da prática teórica existente em Portugal. Nesta condição estão os célebres
desenhos atribuídos ao fortificador e «mestre das obras del’rei» para a ilha
da Madeira, Mateus Fernandes. Revelando uma concepção rigorosa e
moderna são «bastante significativas as técnicas de representação
empregadas, tais como escala (o petipé), papéis cortados, parcialmente
colados e movíveis, permitindo uma eficiente visualização das propostas»
260
. A única planta assinada pelo fortificador é a planta do Funchal e faz
parte de uma série onde se destaca a planimetria da «Fortaleza que se faz
na ilha de São Miguel na cidade de Ponta Delgada». Neste caso, mesmo
que se admita que o «debuxo» seja de Mateus Fernandes, a concepção do
projecto ficou a dever-se a Tommaso Benedetto da Pesaro e a Pompeo
Arditti que, em 1567, se deslocaram à ilha para planear o seu sistema
fortificativo e instruir o mestre português.

Também o códice da Biblioteca Nacional – depois de toda uma série


de ilustrações decalcadas dos tratados de Serlio e Cataneo essencialmente
dedicadas às matemáticas aplicadas – inclui nos últimos fólios consistentes
desenhos de um baluarte «à italiana», provando que esta prática poderá ter
sido impulsionada pela arquitectura militar, numa altura em que o estado
aposta claramente nesta área.

Todavia, temos que esperar pela década de 80 e 90 para vermos na


realidade portuguesa a sua efectiva generalização por toda a hierarquia
régia e relacionar a existência de uma prática de um desenho arquitectónico
rigoroso, sistemático e pormenorizado com a criação de uma estrutura
superior – a «aula de arquitectura» régia.

260
Beatriz Bueno, »De quanto serve a Ciência do Desenho no serviço das obras de el-rei», pág. 278.

120
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

2.2.3.3. A hierarquia dos mestres arquitectos portugueses

2.2.3.3.1. O «arquitecto/engenheiro-mor» do reino de Portugal

É com o arquitecto italiano Filippo Terzi que surge em Portugal, de


forma bem definida, a centralização das mais altas responsabilidades da
arquitectura nacional nas mãos de um só profissional. A nomeação de 1590
dá-o como «mestre de todas as minhas obras que se fizerem à custa de
minha fazenda», havendo respeito «aos serviços que me tem feitos felipe
tercio meu Architecto e egenheiro e a sua sufficiencia e boas partes a boa
conta que de si tem dado nas causas de sua provisão» 261. Deve dizer-se
que esta nomeação tardia se ficou a dever ao falecimento de António
Rodrigues embora, na prática, Terzi desempenhe à quase uma década as
funções de arquitecto-mor do reino. Isto porque este cargo deve ser
equacionado com outros que o arquitecto já desempenhava desde os
primeiros anos da década de 80, designadamente, o de Mestre de Obras das
Ordens Militares e de Mestre de Obras do Convento de Cristo de Tomar, a
partir de 1584, bem como o de máximo responsável pelas fábricas de São
Vicente de Fora e dos Paços da Ribeira. Este dado é incontornável e
explica o facto de ter que ser visto como plenipotenciário no reino
português mesmo antes de ascender oficialmente ao mais alto patamar
profissional.

Filipe II colocará nas mãos do arquitecto italiano todos os cargos


importantes que dizem respeito à arquitectura e engenharia militar,
auxiliado ou, se se quiser, secundarizado por dois dos mais experimentados
arquitectos da época, Nicolau de Frias e Baltasar Álvares, para além da
ajuda de toda a hierarquia de arquitectos que se especializam na Corte e
que atendem às «lições» do mestre italiano na «aula de arquitectura» dos
Paços da Ribeira. Durante quase uma vintena de anos, o arquitecto italiano
ensina e supervisiona todas as obras régias – num papel ao tempo sem
paralelo e novo na realidade nacional, equivalente ao que Juan de Herrera
desempenha em Castela que, do mesmo modo, convive com os engenheiros
militares italianos que trabalham para a união dinástica.

O desaparecimento de Filippo Terzi em 1597 coincide com uma


nova divisão de funções, separando-se novamente as águas entre o
arquitecto e o engenheiro-mor. Dada a importância que adquire o cargo de
«engenheiro-mor», de Castela transita para Portugal outro italiano,
Leonardo Turriani, única e exclusivamente para tratar das questões
relacionadas com a fortificação, dado que se afirma no auto de nomeação

261
Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo III, pág. 97-98.

121
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

que deve servir de «engenheiro geral e não de Arquiteto por ser este o
cargo de que lhe faço merce» 262. Todavia, se se mantém no topo da
hierarquia – colectando anualmente 260.000 reais – diz-se expressamente
que o engenheiro-mor não terá qualquer jurisdição em matérias do foro da
arquitectura civil.

É importante referir dois dados importantes subsequentes ao período


«terziano». Se todo o organigrama hierárquico se mantém, polarizam-se
cargos por vários arquitectos, definem-se campos específicos profissionais
e descentralizam-se altas funções directivas – dominadas essencialmente
pelas famílias Frias e Tinoco mas também passando por outros arquitectos
de formação régia, como Diogo Marques Lucas ou Mateus do Couto. Por
outro lado, começam a surgir na lavra documental, à falta de melhor
expressão, nomeações livres para «arquitecto régio» com a anuidade de
50.000 reais, portanto, muito superiores às auferidas pelos «aprendizes da
aula de arquitectura» e sem preencherem propriamente uma vaga num dos
principais cargos régios, aumentando porventura o leque de profissionais
disponíveis para um trabalho mais teórico e especulativo – uma espécie de
«arquitecto sem pasta».
A primeira nomeação é a de Domingos da Mota a 28 de Julho de
1601 , segundo as palavras do monarca, «auendo respeyto a imformação
263

que me foy dada da suficiemcia e abelidade que Domingos da Mota tem na


arquetetura e me poder logo seruir no que se lhe encarregar, ey por bem
de lhe fazer merce de o tomar por meu arqueteto e que tenha e aja de
ordenado cada anno sinquoenta mil rs». Pouco depois, a 21 de Fevereiro
de 1603 264 Teodósio de Frias – recentemente chegado de Madrid – recebe
a mercê «do lugar de arquitteto, que vagou per fallecimento de Domingos
da Motta» com direito à mesma anuidade. A continuidade desta excepção à
regra dá-se a partir de 11 de Novembro de 1610 265 quando Luís de Frias
recebe nomeação régia «do luguar de meu architeto que vagou polla
promoção de theodosio de frias, seu pai, ao cargo de mestre das obras de
meus paços desta cidade de Lixboa».

Partindo do topo representado pela figura do «arquitecto/engenheiro-


mor» podemos, de seguida, reconstituir a pirâmide profissional em torno da
hierarquia da arquitectura régia.

262
Cfr. Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo III, pág. 147.
263
Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo III, pág. 187.
264
Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo I, pág. 390-391.
265
Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo I, pág. 381.

122
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

2.2.3.3.2. O «Mestre das Ordens Militares»

Foi essencialmente através da criação de cargos imediatamente


inferiores ao de arquitecto-mor que se organizaram os arquitectos formados
na Corte, sendo a mais importante a nomeação para o cargo de Mestre de
Obras das Ordens Militares.

De formação medieval, a Ordem de São Bento de Avis (1166), a


Ordem de Santiago (1172) e a Ordem de Cristo (1319) – resultante do
legado templário português – são as três grandes associações militares de
carácter laico, mas com ligação umbilical aos princípios religiosos, regidos
pelas correspondentes «regras de cavalaria». Inicialmente, os cavaleiros das
Ordens de Avis e de Cristo tinham um carácter monástico mas, se em
tempos de D. Manuel são dispensados do voto de castidade, com D. João
III as respectivas instituições passam a património da Coroa, perdendo essa
mesma característica depois da reforma de frei António de Lisboa. A morte
de D. Jorge, duque de Coimbra e mestre das Ordens de Santiago e Avis,
abrirá a oportunidade para que D. João III formulasse o pedido junto do
Papado com vista a ser nomeado administrador deste fabuloso poderio
económico que se estendia por uma larga mancha do território nacional,
circunstância deferida em 1551 – depois de em 1522 já ter conseguido bula
papal em reconhecimento do mestrado de Cristo 266. De facto, o
adstritamento deste imenso património veio aumentar os rendimentos da
Coroa. O mestrado de Avis era o mais vasto, incluindo essencialmente todo
o Alto Alentejo. O mestrado de Santiago espraiava-se pelas linhas do Tejo,
Sado e Guadiana, incluindo Palmela, Setúbal, Alcácer-do-Sal e toda a
região algarvia. Por fim, o mestrado de Cristo concentrava-se a norte do
Tejo e especialmente na região Centro, de Tomar a Idanha-a-Nova.

Para administrar todo este vasto património geográfico foi criado por
D. João III um órgão judicial, com poderes apartados do Desembargo do
Paço, a Mesa da Consciência e Ordens com regimento a partir de 1558 e
posteriormente reformado em 1608. Dado o imenso território e o necessário
controlo para o gerir, administrar e supervisionar, os monarcas não
deixaram de apontar um arquitecto régio que supervisionasse todas as obras
que correspondiam aos respectivos mestrados. Todavia, esta nomeação só
se tornará efectiva a partir do período filipino. Com responsabilidades
directas pelas construções religiosas e civis, quer do campo da arquitectura
quer da engenharia, foi criado o cargo de Mestre de Obras das Ordens de
Avis e Santiago que, apesar de ter estado aglutinado com o do mestrado de

266
Sobre esta matéria consulte-se Veríssimo Serrão, História de Portugal, Vol. IV, pág. 292-298.

123
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Cristo nas mãos de Filippo Terzi passa, a partir de 1597, a contar com um
profissional único:

Mestre das Obras das Ordens de Avis e Santiago

1584 – Filippo Terzi


1597 – Baltasar Álvares
1629 – Mateus do Couto

A importância de tal cargo justificava o pagamento de um salário


anual de 80.000 reais. Nos casos de Baltasar Álvares e Mateus do Couto
deve contar-se o acrescento de 10.000 reais anuais por serem igualmente
Mestre de Obras da Comarca do Alentejo.

Se o cargo anterior parece ser especificamente criado nos finais do


século XVI, o de Mestre de Obras da Ordem de Cristo teve como
antecedente a figura do responsável máximo pelos trabalhos na casa-mãe, o
Convento de Cristo de Tomar, que, desde cedo, se responsabilizava por
supervisionar outras obras sob a sua alçada. A anuidade era idêntica ao dos
outros dois mestrados, 80.000 reais, mas extingue-se com a conclusão da
reforma do Convento de Cristo, sendo a partir de 1640 mais um cargo
honorário do que verdadeiramente representativo de trabalhos em curso.

Embora não institucionalizado, este importante lugar encontra como


primeiro antecedente o período entre 1548 e 1551, aquando das reformas
renascentistas de João de Castilho embora a documentação pouco nos diga
acerca do seu rendimento anual. A presença em 1557 de Diogo de Torralva
com uma provisão de 100.000 reais é excepcional e definida nos seguintes
termos: «ey por bem e me praz que Dioguo de torralua caualeiro fidalguo
de mynha casa que ora mando ao dito conuento pera ter carguo das obras
que nelle mando fazer tenha e aja pera seu mantimento e ordenado a
rezam de cem mil reaes por anno todo o tempo que teuer carguo nas ditas
obras» 267. Tratava-se, evidentemente, de uma soma avultada, relacionada
com a edificação do novo projecto para o claustro principal. Depois de um
período de interregno durante os meados de 60 e a década de 70, a obra
arranca definitivamente nos inícios dos anos 80 e o cargo de Mestre de
Obras do Convento de Cristo de Tomar institucionaliza-se com uma
anuidade de 80.000 reais:

267
Cfr, Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo III, pág. 130.

124
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Mestre de Obras do Convento de Cristo de Tomar

1584 – Filippo Terzi


1597 – Pedro Fernandes de Torres
1616 – Diogo Marques Lucas
1641 – Pero Vaz Pereira
1644 – Jerónimo Rodrigues

As ordens impostas a Filippo Terzi em 1584 prolongam-se para


todos os seus seguidores, servindo o «officio de mestre das obras do
convemto da uilla de tomar com o officio tera e auera em cada hum anno o
mantimento e ordenado e mais proes e precalços asi e da maneira que as
pesoas que antes delle tiueram o dito officio» com a obrigação de que
residir na vila em tempo de obras ou de as visitar três vezes por ano em
caso de não se justificar a sua presença contínua 268. Com o falecimento de
Terzi o cargo transitará para Pedro Fernandes de Torres que a ele renuncia
em 1616, oportunidade de ouro para que Diogo Marques Lucas, saído da
«aula de arquitectura», seja encarregado de concluir a enorme reforma
maneirista do Convento de Cristo.

Deve recordar-se que se o arquitecto italiano acumulava este cargo


com o dos outros mestrados militares, a partir da sua morte, Pedro
Fernandes de Torres sucede-lhe nas obras de Tomar mas perde os cargos
correspondentes a Avis e a Santiago para Baltasar Álvares, de mais alta
responsabilidade se atendermos à breve conclusão das obras do claustro
principal e à vasta região em causa. Depois das breves presenças de Pero
Vaz Pereira e de Jerónimo Rodrigues – meramente honoríficas – o cargo é
declarado extinto a partir de 1648.

O mestre de obras do Convento de Cristo não se limitava às


competências respeitantes às obras tomarenses, dado que os mestres
estenderam o seu trabalho a outras fábricas sob alçada da ordem. Exemplo
disso mesmo é a deslocação em 1602 de Pedro Fernandes de Torres, na
condição de mestre da Ordem de Cristo com vista a inspeccionar as obras
do Colégio de Tomar em Coimbra 269.
Toda esta informação é importante na medida em que delimita de
uma forma clara, por um lado, a importância das próprias figuras dentro da
hierarquia dos próprios arquitectos régios – mantendo a lógica
mestre/discípulo – bem como a sua mais valia em cotejo com os seus
contemporâneos.

268
Diga-se que o alvará de nomeação do arquitecto italiano não menciona a quantia atribuída mas o da
sua substituição e os subsequentes referem a soma de 80.000 reais. Cfr. Sousa Viterbo, Dicionário...,
Tomo III, pág. 96.
269
Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo I, pág. 357.

125
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

2.2.3.3.3. O «Mestre de Obras» de Patrocínio Régio

Sempre o monarca desejou ter perto de si e da sua Corte os mais


avançados profissionais na área da arquitectura e fortificação. Se os
interesses no campo da defesa justificavam que a figura máxima da
hierarquia fosse especializada em arquitectura e engenharia militar, esta
muitas vezes acumulava para si obras dentro do conceito restrito e
tradicional de arquitecto, responsabilizando-se pelos palácios régios e pelas
construções religiosas por ele patrocinadas. Ora, sabemos que foi
exactamente assim que aconteceu com Filippo Terzi quando, nos inícios da
união dinástica, desempenhou todos os cargos mais importantes do reino de
Portugal, ocupando o vértice da hierarquia profissional no que diz respeito
às «obras de regime» que Filipe II patrocinou.

Já nos referimos à conclusão das obras do Convento de Cristo de


Tomar, impulsionadas pelo monarca habsburgo – que devem ser tidas em
conta como de patrocínio régio – concluídas entre a intervenção de Terzi e
o período regido por Diogo Marques Lucas. Não obstante, na capital do
reino, o monarca vai apostar na reconstrução quase integral dos Paços
Régios da Ribeira e na edificação de São Vicente de Fora. Estas duas
fábricas irão proporcionar a institucionalização de dois dos mais
importantes cargos profissionais a que qualquer arquitecto régio, saído ou
não da «aula de arquitectura», poderia almejar. De facto, salvo raras
excepções, duas famílias iriam preencher durante todo o século XVII estes
cargos – os Frias nos Paços da Ribeira e os Tinoco em São Vicente de
Fora, mas tal só acontecerá, uma vez mais, depois da morte de Terzi:

Mestre de Obras dos Paços Reais da Ribeira

1580 – Filippo Terzi


1597 – Nicolau de Frias
1610 – Teodósio de Frias
1634 – Luís de Frias
1641 – Teodósio de Frias Pereira

As obras dos paços reais lisboetas sofreram especial atenção desde o


primeiro momento em que Filipe II pensou na visita ao reino e na sua
estadia em Lisboa 270. Não existe o alvará régio que nomeie directamente
Terzi para o cargo, mas toda a documentação acerca das reformas das
moradias régias informa-nos do papel principal que representou o
arquitecto italiano e em 1597 a nomeação de Nicolau de Frias refere
claramente que ele desempenhará as funções que «tinha e auia Felippe
270
Filipe II ainda não tinha chegado a Portugal e já encomendava aos seus arquitectos que realizassem
levantamentos do estado dos paços régios portugueses como Santarém, Almeirim ou Salvaterra.

126
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Tercio, per cujo fallecimento vagou» 271. O seu usufruto valia ao arquitecto
60.000 reais por ano e se para Nicolau de Frias será um prémio merecido e
provavelmente desejado, a partir daí manter-se-á na família, passando de
pai para filho e funcionando como o patamar mais elevado a que os Frias –
profissionais eruditos e especialistas em projectos e desenho arquitectónico
– ascendem geracionalmente, mantendo-se o ordenado e o estatuto de
mestre arquitecto das moradias régias.

Algo de idêntico acontece com o cargo de Mestre de Obras de São


Vicente de Fora. A confirmação da sua existência surge somente após a
morte de Terzi e da nomeação de Baltasar Álvares, pese embora o mestre
português conduza o estaleiro desde o primeiro momento:

Mestre das Obras de São Vicente de Fora

1582 – Filippo Terzi


1597 – Baltasar Álvares
1624 – Pedro Nunes Tinoco
1641 – João Nunes Tinoco

Uma vez mais, Filippo Terzi é figura incontornável nos primeiros


momentos da edificação, sendo muito provável que Baltasar Álvares, um
especialista da «velha escola», funcionasse ainda em tempos do arquitecto
italiano como um autêntico chefe do estaleiro vicentino. A parte mais
substancial da construção ficou a dever-se à sua vigência, entre 1597 e
1624, ano da nomeação de Pedro Nunes Tinoco. Todavia, só por altura da
nomeação de João Nunes Tinoco somos informados que a anuidade era de
70.000 reais e que era «outro tanto como tinha o dito seu pay» 272.
Também neste caso, a sequência de nomeações de Pedro Nunes
Tinoco, João Nunes Tinoco e Luís Nunes Tinoco indica claramente um
exercício de privilégio e reconhecimento desta família de arquitectos régios
junto da Corte.

A conclusão que se pode tirar é inquestionavelmente óbvia. Nas


fábricas de patrocínio régio encontramos os mais relevantes arquitectos
entre a segunda metade do século XVI e a primeira metade do século XVII.
Não obstante as obras em curso, na maior parte das vezes, alguns cargos
prolongam-se premiando mesmo alguns arquitectos quando o seu trabalho
é já mínimo e o cargo se transforma numa espécie de título honorífico. Se
através das funções e cargos que desempenham se pode medir e avaliar, em
271
Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo III, pág. 385.
272
Cfr. Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo III, pág. 113.

127
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

cotejo, a mais valia de uns em relação a outros, toda esta informação é


igualmente importante na medida em que delimita de uma forma clara o
papel de cada arquitecto régio dentro da hierarquia profissional, mantendo-
se a lógica ancestral mestre/discípulo e familiar na escolha sucessória.

A Mesa da Consciência e Ordens era responsável pela nomeação dos


mestres arquitectos que ficariam encarregados dos edifícios das ordens
militares enquanto que as obras de patrocínio régio directo tinham como
principal responsável a figura do Provedor de Obras Régias que tomava a
seu cargo a nomeação do mestre supervisor tendo em conta o exercício do
«officio de provedor de todas as obras, paços, mosteiros, egrejas,
hospitaes e das obras que se fizerem nos meus paços e nas casas da India e
Mina n’esta cidade de Lisboa, como em quaesquer outras partes de meus
reinos, que se hajam de pagar à custa da minha fazenda» 273. Esta
informação é igualmente útil para circunscrever determinadas obras sem
documentação directa ao responsável eleito pelo monarca para a respectiva
função.

273
Freire de Oliveira, Elementos..., Tomo IX, pág. 530.

128
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

A Tratadística e o Ensino da
Arquitectura

129
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

130
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

3.1. Tratados e Teóricos da Arquitectura

3.1.1. O Vitruvianismo

3.1.1.1. O significado do Vitruvianismo

Recuperado pelo humanista Poggio Bracciolini na biblioteca do


Mosteiro de Monte Cassino em 1414, o texto vitruviano ocupou filólogos
humanistas e arquitectos sendo continuamente estudado, em conformidade
com o grande interesse pela Antiguidade que desperta a partir do
Quattrocento e a procura de um saber especulativo e ideológico que
possibilitasse uma prática fundamentada da arquitectura «ao antigo» e
conduzindo ao aparecimento de um género novo – o tratado de
arquitectura.
Até esta data, todos os textos relacionados directa ou indirectamente
com a arquitectura versavam sobretudo sobre questões tecnológicas e de
engenharia. Como afirma Dora Wiebenson, os «interessados pela
arquitectura não estavam preparados para enfrentar nem a difícil tarefa de
traduzir para uma terminologia moderna uma linguagem e uma profissão
olvidada, nem com uma estética arquitectónica baseada, em grande medida,
em modelos, técnicas e um sistema de desenho ornamental que
desconheciam. O trabalho de tornar inteligível Vitrúvio e de formular a
partir dele os princípios da arquitectura clássica, recairá em primeira
instância nos eruditos humanistas, arqueólogos, antiquários, filólogos e
gramáticos» 274.

Em boa verdade, o vitruvianismo mais não foi de que a tentativa de


tornar legível a teoria acerca das três ordens arquitectónicas enunciadas por
Vitrúvio, através da qual se pensava poder reconstituir de forma definitiva
a arquitectura antiga. Não deixa de ser irónico que o escrito, a um tempo
inatacável como fonte histórica e sinónimo de autoridade especulativa,
fosse bem mais objecto de opacidade do que de clarificação em matéria
arquitectónica. Neste sentido, os seus objectivos só seriam cumpridos
quando os teóricos e/ou arquitectos puseram de lado a contradição entre o
texto clássico e a matéria arqueológica, apresentando um modelo, quer
teórico quer prático, partindo de uma síntese pragmática fosse ela
puramente especulativa – como no caso de Vignola – prático/experimental
– como no caso de Palladio ou teórico-prática como no fundamental texto
de Sebastiano Serlio. Por si mesmo, o vitruvianismo nunca deixou de ser
um problema muito mais do foro teórico e especulativo – e nesta medida de

274
Dora Wiebenson, Los Tratados de Arquitectura..., pág.11.

131
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

importância central para o jargão humanista – do que uma via para


recuperar e «superar» a mítica arquitectura da idade perdida.

Na generalidade, a própria arquitectura do Quattrocento permaneceu


aquém das questões e postulados colocados pelo vitruvianismo e bem mais
próxima do experimentalismo e dos vestígios arqueológicos o que, num
mundo «coríntio-compósito» como aquele que caracterizava os fragmentos
da arquitectura antiga romana, parecia tornar improvável um renascimento
do Dórico e do Jónico. Neste sentido, sem Vitrúvio não só estas duas
ordens permaneceriam inidentificáveis como nunca Bramante poderia ter
reconstituído no «tempietto» o mítico Dórico 275.

Não devemos confundir vitruvianismo com classicismo. Como


salienta Forssman, enquanto que o classicismo se entende como uma
«tomada de posição intelectual e criativa nos confrontos com a herança
clássica, o vitruvianismo representa o aparato conceptual de que cada
arquitecto se serve para conseguir fazer compreender-se. Nesta época do
vitruvianismo, a arquitectura foi uma arte de representação, e para entender
o seu discurso é necessário estudar a linguagem das ordens e ler os textos
dos teóricos, se não nos quisermos arriscar a introduzir na interpretação
histórica as ideias modernas de estilo e de função e não compreender bem o
que o arquitecto pretende conscientemente exprimir» 276.

3.1.1.2. As edições e traduções modernas de Vitrúvio

Em plena época de experiências práticas de abordagem a uma nova


linguagem arquitectónica, as edições de Vitrúvio alcançaram gradual
importância empenhando-se os homens da Renascença na sua publicação,
tradução e reconstituição textual através de ilustrações.

A primeira edição latina do «De architectura» ficou a dever-se a Fra


Giovanni Sulpitius (1434-1515), editada em Roma em 1486 e 1492:
«Sulpitius, um gramático com conhecimentos de arquitectura e engenharia
muito limitados, teve a fortuna de acometer a difícil tarefa de editar o texto
vitruviano. Na sua edição seguiu os manuscritos mais conhecidos mas viu-
se forçado a deixar espaços em branco para os termos gregos, os epigramas
e as ilustrações (só inclui uma, um círculo). Com todas as suas deficiências,
esta edição atraiu, não obstante, a atenção dos eruditos com mais
experiência técnica, que prosseguiram trabalhando na obra vitruviana
durante o século seguinte» 277.

275
Erik Forssman, Dórico, Jónico e Coríntio na arquitectura dos séculos XVI-XVIII, pág. 95.
276
Erik Forssman, Dórico, Jónico e Corintio..., pág. 96.
277
Comentário de Lucia Stadter em Dora Wiebenson, Los Tratados de Arquitectura..., pág. 53.

132
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Depois desta primeira edição em língua latina e sem ilustrações,


surge a primeira edição ilustrada de Fra Giovanni Giocondo (1434-1515),
editada em Veneza no ano de 1511. Humanista, arquitecto e engenheiro,
trabalhou em Nápoles, Veneza e Roma, onde chegou a ser nomeado como
arquitecto de São Pedro do Vaticano. Foi o primeiro autor que tentou
produzir uma edição crítica do texto vitruviano utilizando, para esse
objectivo, vários manuscritos. Corrigiu erros e reconstituiu as partes
textuais em língua grega. A importância desta edição reside, em grande
parte, nas quase centena e meia de ilustrações que acompanham o texto,
incluindo um glossário dos termos arquitectónicos 278.

A partir daqui as traduções multiplicam-se. Impulsionado por Rafael,


Fabio Calvo traduz o texto vitruviano para italiano em 1511, e em 1521
aparece a importante edição «cesariana» e na qual se irão basear as edições
seguintes de Francesco Durantino (Veneza, 1524) e de B. Caporali
(Perugia, 1536), mas de todas elas, a que mais fortuna obteve foi mesmo a
do pintor e arquitecto milanês Cesare Cesariano (1483-1543), publicada em
Veneza no ano de 1521.
Cesariano tinha estudado na sua terra natal com Bramante e a sua
edição é não só historicamente relevante por ser redigida em língua
vernácula, mas também por ser a primeira a incluir um comentário ao texto
original. Segundo Carol Krinsky, «as suas ilustrações são de uma riqueza
sem precedentes, nas edições do texto vitruviano. O formato, o conteúdo e
as ilustrações teriam grande influência nas edições de Vitrúvio posteriores
que se realizaram não só em Itália como em França e na Alemanha. O
comentário, embora incorrecto do ponto de vista do estudioso moderno
contém, no entanto, muita informação sobre os artistas e gostos locais e
sobre certos acontecimentos e personalidades dessa época no norte de
Itália. As ilustrações são um exemplo de como se interpretavam fora de
Roma, em diferentes cidades, os preceitos do arquitecto clássico, criando
assim as variantes locais do estilo renascentista» 279.

As edições ilustradas e comentadas encontram o seu refinamento no


projecto quinhentista do humanista Daniele Barbaro (1514-1570). Filólogo
e matemático, com profundos conhecimentos teológicos e aristotélicos,
Barbaro faz publicar em Veneza no ano de 1556 – com uma segunda
edição aumentada e revista em 1567 – aquela que é considerada o culminar
da tradição vitruviana renascentista. Contou com a excelência participativa
de Andrea Palladio não só nas ilustrações como no usufruto dos seus
conhecimentos arqueológicos. Denotando um conhecimento profundo do
texto e produzindo em acompanhamento um comentário aristotélico,
278
Cfr. Dora Wiebenson, Los Tratados de Arquitectura..., pág. 53-54.
279
Citado em Dora Wiebenson, Los Tratados de Arquitectura..., pág. 55.

133
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

«Vitrúvio é tão só o ponto de partida do qual Barbaro se lança a uma


dissertação filosófica sobre as artes muito mais ampla. Nesta concede-se à
arquitectura um destaque proeminente posto que está baseada nas
matemáticas e, portanto, se aproxima ao intelecto puro. A um nível inferior,
o comentário estende-se abarcando outros temas mais práticos relacionados
com a construção e as máquinas», conclui David Rosand 280.

Vitrúvio irá impulsionar a criação de textos originais produzidos no


Quattrocento italiano dentro do espírito humanista da época onde se
contam os textos de Filarete, Trattato di architettura, F. Grapaldi, De
Partibus Aedium, Francesco Colonna, Hypnerotomachia Poliphili, Luca
Pacioli, Divina Proporcione e sobretudo o De re aedificatoria de Leon
Battista Alberti, publicado em Florença em 1485. Dirigindo-se a um
público culto de entendidos mais do que aos arquitectos e construtores seus
contemporâneos, com a sua bagagem ético-política preconizavam um novo
tipo de arquitecto-intelectual que se pretende encarnar e pôr em prática. Na
sua maioria, caracterizam-se decididamente pelo intelectualismo da estética
humanista e renascentista, sobressaindo as concepções dos três géneros
artísticos assim como o mito da Antiguidade e, inclusive, a ideia de uma
beleza objectiva codificada numa espécie de gramática normalizada 281.

3.1.1.3. Os tratados de arquitectura quatrocentistas

O primeiro texto original redigido em Itália posterior à revolução


albertiana foi o «Livro architettonico» de Antonio Averlino (1400-1465),
dito Filarete, redigido pelo arquitecto e escultor florentino entre 1460-1465
quando integrava o círculo de Milão a trabalhar para Francesco Sforza.
Existem vários manuscritos e sabe-se que a versão final consistia em vinte
e cinco livros dos quais três deles são dedicados ao desenho. Toma a forma
de diálogo – à maneira dos diálogos platónicos, certamente uma influência
do humanista Filelbo, amigo pessoal de Filarete – entre Filarete e o filho
de um príncipe e trata da edificação de uma cidade ideal, a Sforzina, e de
outra portuária designada por Plousiapólis.

No dizer de John Onians, é «o primeiro tratado de arquitectura


escrito em língua romance e representa a primeira tentativa de formular
uma teoria coerente da arquitectura directamente relacionada com o mundo
cristão moderno. A originalidade das suas ideias é o resultado tanto da sua
ignorância como da sua independência. Carecendo de um profundo
conhecimento da teoria e prática arquitectónicas que acompanhava Alberti,
viu-se obrigado a formular as suas próprias leis de desenho e aplicação das
280
Em Dora Wiebenson, Los Tratados de Arquitectura..., pág. 71.
281
Cfr. Renacimiento en Europa, pág. 28-29

134
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

formas arquitectónicas» 282. Anthony Blunt, por sua vez, destaca a sua
paixão pela Antiguidade e não deixa de considerar que, de alguma maneira,
as suas ideias são parentes às teses albertianas na medida em que, tal como
ele, é anti-medieval e defende a disposição regular na arquitectura e a
importância do urbanismo, concretamente na amplitude das praças das
cidades 283.
Filarete parece transpor para o seu tratado as concepções florentinas
de um Michelozzo. O paradigma vitruviano encontra-se na sua formulação
e ilustração das três ordens arquitectónicas ou «ragioni da chiese, o voui
dire tempij, secondo dice Vitruvio»: o severo Dórico, o Coríntio decorativo
e diligente e o Iónico, ao qual atribui uma qualidade inferior em relação aos
modelos anteriores 284. Todavia, só esta última ordem arquitectónica é
representada com um correcto capitel fazendo expressa referência à origem
bizantina dos cânones proporcionais do corpo humano. «Deve salientar-se
que no tratado de Filarete, (argumento aprofundado e verificável nos seus
edifícios), a distinção teórica entre as diferentes qualità de colunas não
constitui uma definitiva diferença morfológica, quando se fala em diferença
de proporções (como mais tarde em Francesco di Giorgio) e não sem
resíduos medievalistas e discordância entre rigidez teórica e liberdade
prática» 285.

Francesco di Giorgio Martini (1439-1501), escultor, pintor e


arquitecto contribuiu igualmente para o produção teórica italiana, tentando
encontrar uma interpretação moderna das ideias canónicas vitruvianas. O
seu «Trattati di architettura, ingegneria e arte militare» é, na realidade,
composto por dois textos distintos, um sobre arquitectura – anterior a 1476
– e outro sobre engenharia civil e militar, posterior a ter tido acesso a uma
versão mais completa do texto vitruviano. Foi muito possivelmente
inspirado nas ideias e textos do mítico Mariano Taccola do qual se sabe ter
concebido um tratado ilustrado para construtores cerca de 1419 intitulado
«De ingenis» e anos depois o «De machinis» (1449). Representantes do
ambiente sienense «escreveram descrições pragmáticas de estruturas que
também ilustraram, fazendo-o de maneira a que qualquer mestre de obras
ou carpinteiro pudesse entender. A sua analogia mais próxima à linguagem
prática é Vitrúvio, e os seus tópicos são estruturas civis e militares,
chaminés, túneis, moinhos e bombas» 286.

282
Citado em Dora Wiebenson, Los Tratados de Arquitectura..., pág. 49.
283
Anthony Blunt, La teoria de las artes..., pág. 57-60.
284
Resultando, muito provavelmente, de convições medievais. Cfr. John Onians, Bearers of meaning. The
classical orders in Antiquity, The Middle Ages and the Renaissance, pág. 164.
285
Arnaldo Bruschi, «L’Antico e il processo di identificazione degli ordini nella seconda metà del
Quattrocento», L’emploi des orders dans l’architecture a la Renaissance, pág. 25.
286
Cfr. Gustina Scaglia, «The development of Francesco di Giorgio’s Treatises in Siena», Les Traités de
l’Architecture de la Renaisasance, pág. 91.

135
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Trata de um sem número de questões relacionadas com as ordens


arquitectónicas, o desenho, os requisitos do bom arquitecto ou a
planificação de cidade e inventos militares. A influência vitruviana-
albertiana é claramente visível na tripartição das ordens que classifica de
forma curiosa sendo o Dórico (baixo), o Iónico (médio) e o Coríntio (alto)
considerando o capítel coríntio o modelo mais evoluído. Isto quer dizer
que, segundo Arnaldo Bruschi, certamente Martini no final dos anos 80 não
distingue as ordens pela morfologia dos elementos como o capitel, mas
pela proporção da coluna e dos capitéis (em si mesmos) – confundido o
Dórico e o Iónico e não distinguindo o Coríntio do itálico. É significativo,
então, que o seu texto – mesmo interpretando os elementos descritos por
Vitrúvio, abunde de imprecisões, ambiguidades e sobreposições de
significados no emprego da terminologia das ordens» 287. O autor desenha
já o Dórico com métopas e triglifos mas não o destaca na sua descrição
nem o considera capital como acontecerá com Bramante.

George Hersey e Susan Ryan consideram que «os trattati se


destacam, pela importância que neles lhe é concedida, à analogia humana
com a arquitectura e pelas intrincadas fórmulas matemáticas empregadas;
ambas teriam de ter-se em consideração no desenho dos edifícios.
Francesco foi o primeiro tratadista que ilustrou integralmente os requisitos
funcionais dos diferentes tipos de edifícios civis. Exerceu uma grande
influência em Leonardo, que possuiu e anotou um exemplar do tratado» 288.
Não obstante, e tal como em outros casos – do qual Alberti é
representativo – parece existir um distanciamento entre as ideias teóricas de
Francesco di Giorgio e as suas realizações práticas 289. Nos anos 70
edificou a fachada do Palácio de Urbino partindo de soluções que, embora
funcionais e engenhosas, são ambíguas interpretações do «antigo»,
parecendo derivar mais da observação de exemplos romanos combinados
com a visão albertiana, na linha do círculo urbinense como centro destas
mesmas experiências, do que da sua teoria 290.

Um dos exemplos da confusão reinante em torno das ordens


arquitectónicas aparece já editado na centúria seguinte. Em 1509 o frade
Luca Pacioli fez publicar em Veneza, em conjunto com o famoso «De
Divina Proportione», um curto «Tratatto sull’ architettura» no qual

287
Consulte-se Arnaldo Bruschi, «L’Antico e il processo di identificazione degli ordini nella seconda
metà del Quattrocento», pág. 35-36.
288
Cfr. Dora Wiebenson, Los Tratados de Arquitectura..., pág. 52.
289
Sobre esta matéria veja-se F. Paolo Fiore, «Gli ordini nell’architettura di Francesco di Giorgio»,
L’emploi des Ordres a la Renaissance, pág. 59-67.
290
Arnaldo Bruschi, «L’Antico e il processo di identificazione degli ordini nella seconda metà del
Quattrocento», pág. 37.

136
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

considera, ao Capítulo VI, que as três ordens vitruvianas «iónica, dórica e


coríntia quanto às suas bases e estilóbatos, realizam-se do mesmo modo,
mas os seus capitéis são diferentes». Na mesma linha de Filarete, parece
fazer a distinção entre os capitéis coríntio e dórico partindo única e
simplesmente do sistema decorativo: «Assim, salvo a coluna iónica de
capitel bem reconhecível, aqueles entendidos como coríntios, dóricos e
toscanos parecem ser caracterizados pelos capitéis com folhagens de
diferentes complexidades. Esta posição é muito confusa nos últimos vinte
anos do século. À consciência da ideia de Vitrúvio justapunha-se a prática
como mero ornamento ou solicitação cultural e não como princípio
normativo» 291. Será relevante recordar que a importância do texto de
Pacioli reside, acima de tudo, no facto de nos fornecer – dado o seu
contacto com um sem número de artistas e teóricos, de Alberti e Piero a
Leonardo – uma certa imagem da cultura artística nos inícios do século
XVI 292, apontando claramente para a inexistência de um pensamento
vitruviano claro e unívoco.

Como concluiu Arnaldo Bruschi, partindo da enorme variedade e


liberdade de comportamento face ao vitruvianismo, de Filarete a
Cesariano, «é difícil afirmar e estabelecer até que ponto se tratam de
tomadas de posições – estritamente pessoais – originadas pela interpretação
mais ou menos correntes ou subjectivas de Vitrúvio ou da observação sobre
monumentos antigos particulares relacionados com a exposição de ideias
que circulavam em ambientes culturais particulares». Esta ideia é tão forte
que mesmo na versão vitruviana de Cesar Cesariano publicada em 1521 –
portanto numa época posterior às «invenções» bramantescas – se
conservam ideias anteriores e ultrapassadas, ainda arreigadas à fase
«lombarda-bramantesca». O mesmo se pode dizer em relação ao Vitrúvio
segundo Fra Giocondo, apresentando-se um gravado com seis diferentes
tipos de capitéis e bases, pondo em confronto as três ordens vitruvianas
com três modelos alternativos e Cesariano não suplanta as práticas
quatrocentistas quando utiliza proporções variáveis para qualquer um dos
géneros arquitectónicos.

A época do vitruvianismo declina progressivamente e este processo


inicia-se logo com Alberti e com as primeiras críticas ao texto vitruviano e,
definitivamente, ao longo do século XVI, onde a sua obscuridade e
inaplicabilidade permitiu encontrar uma outra via – essencialmente

291
Arnaldo Bruschi, «L’Antico e il processo di identificazione degli ordini nella seconda metà del
Quattrocento», pág. 39-40.
292
John Onians, Bearers of meaning…, pág. 224.

137
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

especulativa – para definir uma regra arquitectónica entre as diversas


ordens, ao mesmo tempo que a «licença» ganhava igualmente terreno.
Restaram duas ideias fundamentais: o princípio da «autoridade» de
Vitrúvio, por razões históricas, e o paradigma da figura do arquitecto, por
razões de estatuto sócio-profissional.

Em boa verdade é importante recordar que, mais do que os teóricos,


serão essencialmente os escultores e arquitectos que contribuem
decisivamente para desenvolver os modelos das ordens arquitectónicas que
estão na base da teoria vitruviana, partindo de tentativas onde se
multiplicaram durante o Quattrocento modelos «mistos» ou «de fantasia» –
essencialmente os «corintizantes» – e outros inspirados directamente na
Antiguidade, como é o caso de Giuliano da Sangallo, firmando-se uma
grande variedade morfológica e proporcional e enorme fragmentação, tal
como nos próprios textos se verificava 293.
Temos que levar em linha de conta que durante esta centúria é
certamente difícil identificar quem tinha, de facto, capacidade para
identificar os registos arqueológicos com as descrições vitruvianas das
ordens. A proliferação de modelos «desregrados» parece apenas apontar
para o gosto de reproduzir elementos arquitectónicos «all’antico» sem
grandes preocupações em diferenciar morfologicamente os seus
constituintes e, neste sentido, a preferência vai essencialmente para o
Coríntio – modelo tido por mais evoluído e «romano» – e para as suas
variantes «compósitas» e «corintizantes» não reconduzíveis ao cânone
vitruviano e prevalecendo até Bramante. De facto, «como se nota por todo
o Quattrocento – como se deduz dos tratados e obras – as diversas partes
das obras são consideradas isoladamente. Não é clara a associação
conceptual e a correlação entre a diferente morfologia dos elementos com
específicas proporções e sintaxes próprias de construção. É difícil,
portanto, poder afirmar com segurança que estes múltiplos tipos de capitéis
folheados fossem considerados, por exemplo, como variantes possíveis do
Coríntio ou pertencendo a outra ordem ou como capitéis, genericamente,
all’antica» 294.

293
Cfr. Arnaldo Bruschi, «L’Antico e il processo di identificazione degli ordini nella seconda metà del
Quattrocento», pág. 41.
294
Arnaldo Bruschi, «L’Antico e il processo di identificazione degli ordini nella seconda metà del
Quattrocento», pág. 13.

138
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

3.1.1.4. Filologismo, Arqueologia e a Academia Vitruviana

Desde o Quattrocento que se tentava encontrar um modelo para a


arquitectura antiga. A sua definição não era clara e o mesmo se poderá
dizer quanto à sua forma exacta, disposição ou proporção de cada ordem
arquitectónica, a sua origem histórica e a sua função numa sociedade cristã.
Estas interrogações tentaram ser solucionadas por duas vias distintas – a
filológica e a arqueológica.

No primeiro caso, os tratadistas defenderam a autoridade de Vitrúvio


em relação a esta matéria, concretamente em relação às ordens
arquitectónicas, tentando estabelecer as suas proporções, defendendo a sua
origem antropomórfica e indicando um possível uso semântico das
mesmas. Todavia, mesmo quando perfeitamente identificados, os
princípios vitruvianos estavam em desacordo com o mundo coríntio-
compósito imperial romano dos vestígios arqueológicos. Marcado por
graves contradições e incongruências internas que afectavam a forma, as
proporções e até o significado iconológico tornava-se questionável o
número de ordens e até a validade do sistema.

Um caminho-outro parecia apontar para melhores resultados na


recuperação do modelo arquitectónico perdido. Tratava-se da vertente
arqueológica que se inicia ainda no Quattrocento – com artistas como
Francesco de Giorgio Martini, Andrea Mantegna ou Fra Giocondo – e se
acentua nos primeiros anos da centúria seguinte com Bramante, Rafael,
Peruzzi, Serlio e Palladio. Recorde-se que a necessidade de um
levantamento arqueológico consistente levou mesmo Leão X a encarregar
Rafael e a sua equipa para superintender as Antiguidades e reconstituir
planimetricamente a Roma antiga. Esta tradição é seguida por Antonio da
Sangallo, o Moço, e por Baldassare Peruzzi, mestre de Serlio.

No século XVI foram essencialmente dois os principais centros de


estudos vitruvianos: Roma e Veneza. Em Roma, Antonio da Sangallo, o
Moço, realiza medições de ordens arquitectónicas e estuda a disposição da
casa romana antiga, chegando mesmo a escrever uma introdução ao texto
vitruviano. Por sua vez, o irmão Giovanni Battista da Sangallo legou duas
traduções manuscritas de Vitrúvio ilustradas com verdadeiros desenhos
arqueológicos, já bem longe da versão «gótica» de Cesare Cesariano 295.
Para Sylvie Deswarte, «a abundância de desenhos arqueológicos

Sylvie Deswarte, «Francisco de Hollanda et les études vitruviennes en Italie», A Introdução da Arte da
295

Renascença na Península Ibérica, pág. 231-232.

139
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

testemunha as investigações e a dificuldade destes homens encontrarem


uma norma, fazendo coincidir o texto de Vitrúvio e os vestígios
arqueológicos. Esta dificuldade está na origem do maneirismo em
arquitectura, abrindo a porta a experimentações, sobretudo no domínio
gráfico» 296.
*

Em 1542 é criada em Roma a Accademia della Virtù ou Academia


Vitruviana por iniciativa do humanista Claudio Tolomei. Se inicialmente
foi fundada com a ampla finalidade de traduzir para italiano a literatura,
gramática e vocabulário latino, a partir de determinada altura os objectivos
centram-se no texto vitruviano. Tolomei redigiu um programa específico
em vários pontos que manifestam os campos em que se deveria intervir –
«um comentário latino sobre as passagens obscuras de Vitrúvio, uma nova
edição crítica, um léxico latino e grego dos termos utilizados na obra, uma
edição reescrita em bom estilo latino, uma tradução em toscano seguido de
um léxico de termos utilizados, uma colecção de princípios e exemplos
tomados de Vitrúvio e um estudo dos edifícios antigos de Roma, assim
como de esculturas, medalhas e obras de engenharia hidráulica e militar»
297
. Pretendia-se assim uma obra megalómana que estudasse e fizesse editar
uma reunião de todas as declinações possíveis do vitruvianismo, abarcando
a arqueologia, o léxico e a tradução e – na defesa de uma cultura não
restrita à arquitectura – que incorporasse igualmente a escultura, a
cerâmica, a epigrafia.
Porém, se o trabalho nunca foi realizado na sua totalidade, restam
algumas consequências importantes como a participação de Vignola,
encarregado de medir e desenhar antiguidades, e a obra do arquitecto,
arqueólogo e erudito francês Guillaume Philander (1505-1565) que redigirá
um comentário a Vitrúvio em 1544. Philander foi discípulo de Sebastiano
Serlio e integrou a Academia Vitruviana em 1539. Redigiu o seu texto em
Latim e é um dos primeiros exemplos do «arquitecto-erudito» quinhentista,
com experiência quer no campo filológico quer no arqueológico que o
levou a optar por uma posição de excelência face ao texto em análise, bem
perceptível nas suas próprias palavras: «Purguei-o de tantos erros que me
atrevo a afirmar que a minha interpretação é de todo consistente, salvo em
certos lugares que nem sequer Apolo podia ter decifrado» 298.

Andrea Palladio, Galeazzo Alessi e o espanhol Juan Battista de


Toledo foram alguns dos arquitectos que privaram com a Academia, bem
como Daniele Barbaro que rematará as edições vitruvianas com um
296
Sylvie Deswarte, «Francisco de Hollanda et les études vitruviennes en Itálie», pág. 230.
297
Cfr. Dora Wiebenson, Los Tratados de Arquitectura..., pág. 62-63.
298
Citado em Dora Wiebenson, Los Tratados de Arquitectura..., pág. 63.

140
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

trabalho de profunda erudição e cuidado. Se de Roma resultaram todos


estes trabalhos, em Veneza, a obra dos humanistas Trissino e Cornaro e o
ruptural texto de Sebastiano Serlio atingiram o mais alto resultado teórico
que suplantará o próprio vitruvianismo em favor de uma criação original
encarnada pelo Maneirismo e Classicismo(s).
De facto, Manfredo Tafuri considera que Claudio Tolomei e a
Academia Vitruviana, com a clara intenção de resolver os antagonismos
entre o texto e os vestígios arqueológicos antigos, abrem caminho para a
designada «polivalência da classicidade» definindo duas vias opostas. Por
um lado, a constituição de uma norma que se institucionaliza léxica e
formalmente, conduzindo a Vignola, e por outro a exploração «licenciosa»
e «herética» de Sebastiano Serlio que leva a Du Cerceau ou Vries,
internacionalizando-se quer a «regra» quer a «licença», ambas recebidas e
sintetizadas 299.

No que concerne à «praxis» arquitectónica, a nova atitude italiana


perante o vitruvianismo perfila-se logo a partir da década de 90 nos
trabalhos levados a cabo por um Giuliano da Sangallo. Na sua Igreja dos
Carceri nota-se já uma tentativa de uniformidade e correcção do emprego
das ordens arquitectónicas, pese embora ainda o sistema proporcional
manter uma clara liberdade criativa, partindo dos modelos retirados do
Coliseu e de Alberti para construir um sistema coerente 300. Todavia só
com Bramante e o «tempietto» de San Pietro in Montorio surge a primeira
definição correcta do Dórico, bem como a tradução prática da sucessão das
ordens clássicas.

3.1.1.5. Para além de Vitrúvio: a procura da «ordem» nos tratados


quinhentistas italianos

O primeiro tratado de arquitectura «independente» do vitruvianismo


foi redigido por Sebastiano Serlio. Estudaremos de seguida, e de forma
mais aprofundada, a sua importância para a teoria e prática arquitectónica
quinhentista mas é, desde logo, importante mencionar a relação que existe
entre o texto serliano e o vitruvianismo.
Serlio foi o primeiro autor que, não deixando de exigir a respectiva
reverência à «autoritas», contribuiu decisivamente para substituir a linha
do vitruvianismo por uma regra abstracta construída. Se no seu Livro III
ainda se encontra um certo «vitruvianismo radical» na medida em que é
através dele que se poderá avaliar a boa e má arquitectura, o Livro IV é
bem mais «flexível e conciliatório», como considera Mario Carpo, onde

299
Manfredo Tafuri, «Tratadística, tipologia, modelos», pág. 207.
300
Arnaldo Bruschi, «L’Antico e il processo di identificazione degli ordini nella seconda metà del
Quattrocento», pág. 41.

141
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

«no confronto com a antiguidade não vitruviana» Serlio censura Vitrúvio


quando, por exemplo, se refere ao Dórico 301. Não obstante permaneça o
paradigma vitruviano este perde no confronto com a Antiguidade. A
«herança vitruviana transmite aos modernos um registo de critérios
objectivos – num certo sentido, técnicos. O discurso serliano acerca da
semplicità evoca novos valores, novas motivações – talvez, uma nova
ideologia que em parte se sobrepõe e em parte se diferencia em relação ao
princípio tradicional (vitruviano) da mimesis realista» 302.

Se Serlio teve que se desviar do vitruvianismo para constituir um


sistema proporcional para as ordens arquitectónicas – que apesar de tudo
permitirá ainda um grau subjectivo na sua aplicação – Giacomo Barozzi da
Vignola foi ainda mais longe, partindo de um pressuposto puramente
especulativo e matemático determinado na Regolla delli cinque ordini
d’architettura, publicado em Roma em 1562.
No prólogo do seu tratado, Vignola afirma: «Procurei retirar uma
regra, na qual eu me sossegasse com segurança, de agradar a todos os
homens de juízo nesta arte em todo, ou pelo menos em grande parte, e isto
só servindo-me das coisas que me ocorrem sem ter posto nelas outro olhar.
Pelo qual olhando mais adentro, que todo o nosso sentido se compadesse
nesta proporção, e que as coisas desagradáveis estão fora dela, como
muito bem na sua ciência provam sentidamente os músicos, e tomando este
trabalho muitos anos, e reduzi sob uma breve e espedita regra que possa
valer para as ditas cinco ordens da arquitectura» 303.

Como afirma Christof Thoenes, «para chegar a esta nova concepção,


teve que recusar a crença renascentista naquelas leis objectivas das
proporções que os artistas tinham tentando redescobrir mediante o estudo
dos edifícios antigos e de Vitrúvio. Em seu lugar, Vignola subordinou as
medições contraditórias dos elementos individuais a uma regra matemática
puramente pragmática e, no fundo, totalmente subjectiva». «Estabeleceu
uma relação constante entre o pedestal, a coluna e o entablamento válida
para todas as ordens (4:12:3) e definiu todas as dimensões individuais dos
componentes da ordem em relação com o raio da respectiva coluna
(«módulo»). Isto permitiu ao leitor adaptar qualquer ordem a uma
determinada altura mediante um simples cálculo matemático» 304.

A fortuna do sintetismo teorizado pelo arquitecto italiano levou a que


o seu tratado tivesse um enorme êxito à época, sendo considerado pela
301
Cfr. Mario Carpo, La maschera e il modello. Teoria architettonica ed evangelismo nell’
Extraordinario Libro di Sebastiano Serlio, pág. 37.
302
Cfr. Mario Carpo, La maschera e il modello..., pág. 42.
303
Citado em Dora Wiebenson, Los Tratados de Arquitectura..., pág. 169.
304
Citado em Dora Wiebenson, Los Tratados de Arquitectura..., pág. 168.

142
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

historiografia artística parte integrante de três estados evolutivos distintos –


«parte do subjectivismo maneirista, concretiza o academismo clássico e
ensaia a rebelião e liberdade formal do barroco» – onde a sua primeira
versão, como é sabido, inclui subversivamente a coluna salomónica ou
torsa.

Andrea Palladio fecha o triângulo supremo da tratadística


quinhentista. Os «Quattro Libri dell’Architettura» publicados em Veneza
em 1570 são o resultado da sua formação humanística e de um espírito de
forte pragmatismo e carácter enciclopédico, realizando um aprofundado
estudo e levantamento das ruínas romanas que lhe foi de grande utilidade
quer para a sua teoria quer na prática arquitectónica. Tinha uma refinada
consciência do «antigo» seja na perspectiva de estilo ou da proporção. As
medições das evidências arqueológicas permitem-lhe não discutir ou
completar o texto vitruviano mas antes evitá-lo a si e a todas as suas
contradições. Como bem observou Ackerman, era bem mais um «não
maneirista» que um «anti-maneirista» e neste sentido, a tradição vitruviana
permite-lhe rejeitar certas liberdades de interpretação que observava nos
seus contemporâneos 305. Nesta medida se pode considerar que praticava
uma arquitectura «classicista» remontada a partir do «memorabilia»
arqueológico, bem visível no paradigmático uso do Jónico, não deixando
de incorporar nos seus modelos arquitectónicos, por um lado, o carácter
sensual e luminoso da arquitectura veneziana e, por outro, algumas
conotações maneiristas no Palazzo Valmarana ou na Villa Rotonda – bem
típicas da época, nem colocando de lado as exigências tridentinas se
tomarmos em linha de conta as preocupações com a axialidade presentes
em San Giorgio Maggiore 306.
Desta maneira, Ackerman pode afirmar que Palladio «teorizou aquilo
que não pratica. Não escapando a um certo compromisso com a leitura de
Vitrúvio e devedor, textual e metodologicamente, a Serlio e Vignola fixa
uma convenção que se expressará por duas grandes linhas: a admiração
pela antiguidade e a utilização canónica das ordens».

305
J. Ackerman, Palladio, pág. 131.
306
J. Ackerman, Palladio, pág. 149.

143
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

3.1.2. O «Serlianismo»

3.1.2.1. O restrito significado de «serlianismo»

Os textos teóricos de Sebastiano Serlio nunca foram objecto de um


estudo por parte dos seus contemporâneos. Nesta circunstância, a forja de
um conceito como o de «serlianismo» não tem o mesmo sentido que o
«vitruvianismo», antes pelo contrário. De facto, os escritos serlianos foram
os primeiros a tentar uma síntese que evitava grande parte das contradições
entre o texto vitruviano e os vestígios arqueológicos da Antiguidade. Não
sendo arquitecto de profissão nem um dos grandes vultos do seu tempo, de
alguma maneira, os italianos nunca perdoaram o sucesso dos seus textos
teóricos. Mesmo em termos práticos, Serlio nunca suscitou um movimento
arquitectónico como acontecerá com o «palladianismo» em Inglaterra.
Nesta perspectiva, devem colocar-se as maiores das reservas na
delimitação, ou melhor dizendo, na utilização de tal terminologia e defini-
la naquilo que verdadeiramente representa.

É sabido que, em Itália, a realidade teórico-prática da arquitectura era


bem mais complexa do que a que o «mundo serliano» traduzia. Assim
sendo, os seus escritos sempre interessaram mais a diletantes do que a
profissionais da arte da arquitectura. Não obstante reflicta, de alguma
maneira, o que se passava no ambiente arquitectónico veneziano, opiniões
negativas como as de Vasari seriam generalizadas entre a nata dos
«vitruvianistas» e especialmente em Roma. Para a arquitectura italiana – e
mesmo para resolver os problemas colocados pelo «vitruvianismo» – Serlio
pouco ou nada resolveu em definitivo, pese embora tenha estabelecido
«canonicamente» o sistema das cinco ordens arquitectónicas ou tenha
«traduzido» para termos cristãos a arquitectura antiga. Os puristas
preferiram Vignola, com um sucesso sem precedentes na região
transalpina.

Fora de Itália a importância dos textos serlianos é incontornável,


embora quase nunca no sentido de estudo especulativo. Aliás, uma das
preocupações de Serlio foi riscar da tratadistica a erudição argumentatória
que caracterizava a literatura artística italiana acerca da arquitectura, evitar
equívocos e tomar como adquirida a sua própria visão teórica. Apostando
no poder da estampa, dá-nos uma visão particular da arquitectura do seu
tempo, não um retrato completo da realidade italiana.

144
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Sebastiano Serlio nunca foi um arquitecto profissional. Mesmo em


França, a sua influência tendo em conta a «praxis» arquitectónica é muito
reduzida. No entanto, está presente como a primeira imagem aproximada
da modernidade. O lado imagético dos livros III e IV e do Libro
Estraordinario forneceriam nos territórios francês, espanhol e português
modelos para a renovação arquitectónica. Só neste sentido se pode falar de
«serlianismo».

Escultores, pintores e mestres de pedraria encontravam nas pranchas


serlianas motivos suficientemente válidos para reproduzirem um modelo
«clássico», avant la lettre, que através de Vitrúvio, Alberti ou mesmo
Sagredo não conseguiam reproduzir. Inconscientemente, contribuíram para
tornar ainda mais subjectiva e experimental essa mesma tendência
«maneirista» para a combinação de estruturas e modelos arquitectónicos
que se plantarizaram por toda a Europa. Fora dos círculos régios, não só
mas essencialmente, as lâminas serlianas foram fundamentais para impor a
nova linguagem.

Não obstante, esta visão restrita do «serlianismo» não invalida que


Serlio não fosse lido nas esferas intelectuais, dentro do interesse humanista
pelo saber multi-disciplinar e pela atracção particular que as matérias da
arquitectura suscitavam junto dos mais altos responsáveis político-
culturais. O mesmo se pode dizer no que concerne a inspirações ou mesmo
cópias «serlianas» directas em obras projectadas por arquitectos régios.
Apesar de arquitectos como Delorme, Toledo ou Herrera terem
conhecimentos suficientemente mais aprofundados do que os enunciados
pelo autor italiano, nada os impedia de, pontualmente, recorrer a elementos
arquitectónicos propagados por Serlio. Mas pouco mais do que isso.

De alguma maneira, quando falamos de «serlianismo», referimo-nos


no essencial a uma visão da arquitectura dos tempos modernos parcial,
redutora mas efectivamente útil fora da região transalpina, suscitada a partir
da visualidade serliana e que permitiu que, de retábulos e claustros, a nova
arquitectura de raiz italiana se impusesse em toda a Europa. Embora Serlio
nos conceda uma visão permissível e subjectiva da arquitectura do seu
tempo essa é, em si mesma e por mais paradoxal que pareça, a grande
vantagem e riqueza dos seus livros. Assim, o «serlianismo» representará,
de alguma maneira, aquilo que Serlio pretendia – exortar e divulgar a nova
realidade arquitectónica.

145
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

3.1.2.2. Sebastiano Serlio (1475 - Ω 1554)

3.1.2.2.1. Dados biográficos e obra prática

Sebastiano Serlio é o mais importante tratadista do século XVI fora


de Itália, quer pela sua influência, quer pelo facto de os seus livros acerca
da arquitectura servirem de modelo à maior parte dos tratados posteriores.
Filho de um obscuro pintor, Serlio nasceu em Bolonha em 1475 e morrerá
em França em 1554.
É tradicionalmente aceite que a sua formação inicial se deu no
campo da pintura. Sabe-se que por volta de 1510-1511 está em Pesaro
como pintor de perspectivas onde debuxou diversos trabalhos como um
sarcófago-relicário de São Terêncio para a Catedral e outros pequenos
trabalhos, sendo muito possível que tenha conhecido Girolamo Genga, que
Serlio mencionará posteriormente no seu Livro II e que poderá ter sido a
sua primeira grande e determinante influência para o seu futuro trabalho
teórico 307. Por volta de 1515 regressa a Bolonha onde contacta com
humanistas como Achille Bochi e especialmente o especialista em teoria da
arquitectura Alessandro Manzuoli. É exactamente neste período que se
inicia a sua mítica relação com o pintor e arquitecto Baldassare Peruzzi,
com quem trabalhará durante alguns anos e que o levará consigo para
Roma. Peruzzi foi essencial para a sua maturação mas o saque à cidade
coincidirá com o fim do seu período romano e a sua autonomização em
relação ao mestre.
Em 1528 decide instalar-se em Veneza, entrando em contacto com os
humanistas Pietro Bembo e Giangiorgio Trissino bem como com a obra de
Jacopo Sansovino e de Lorenzo Lotto. Foi durante o seu período veneziano
que Serlio fez publicar os seus primeiros trabalhos teóricos acerca da
arquitectura. Embora não seja muito citado pela historiografia artística,
nesta fase chegou a realizar um importante conjunto de projectos artísticos
– em 1528-31 projecta o tecto da livraria do Palácio Ducal, em 1531 uma
fonte para os jardins da Villa Imperiale para Francesco Maria della Rovere
(Pesaro), para além de ser consultado acerca do projecto para o teatro do
Palácio do Porto em Vicenza bem como da decoração do Palácio Zen e da
obra do Convento de San Salvatore. Em 1538 debuxa o altar da Virgem
para o Oratório de Santa Maria in Galliera, Bolonha 308.

De igual forma, o artista e teórico bolonhês não deixou de cultivar os


seus mais elevados relacionamentos. Sabe-se que em 1537, quando
Francesco Maria della Rovere retorna à sua cidade depois da sua visita a

307
Sabine Frommel, Sebastiano Serlio. Architetto, pág. 14, aponta mesmo relações entre os «arcos
triunfais» de Genga para Urbino em 1509-10 e a futura «cena satírica» serliana.
308
Cfr. Sabine Frommel, Sebastiano Serlio. Architetto, pág. 16-23.

146
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Veneza foi acompanhado, entre outros, por Tiziano e Serlio e que este
último estabeleceu ligações de amizade com a própria corte dos Gonzaga
em Mântua.
A sua amizade com Baldassare Peruzzi e a relação íntima entre os
dois fica bem patente no facto de, quando em 1536 mestre Peruzzi falece,
grande parte do seu espólio artístico ter sido legado a Serlio, segundo os
relatos de Vasari e Cellini. O próprio Peruzzi tinha a intenção de redigir
uma obra monumental que incluiria um estudo profundo das ruínas
romanas e esses manuscritos – que Serlio posteriormente vendeu a Jacopo
Strada – poderão ter sido a base dos próprios textos serlianos, segundo nos
diz Vasari 309. Anthony Blunt considera que o sucesso de Serlio, ao nível
teórico e prático, deve muito mais às influências «peruzzianas» e
venezianas do que a Bramante dado que demonstra que a sua visão acerca
da arquitectura não é «puramente clássica. Embora admirasse Bramante, o
seu verdadeiro mestre em Roma foi Peruzzi, que era menos vitruviano na
sua actividade e que se fazia notar mais pela ingeniosidade dos seus planos
do que pela exactidão dos seus alçados» 310.

O futuro de Sebastiano Serlio, a partir da década de 40 e até ao final


da sua vida passará por França. Chega aos palácios reais de Fontainebleau
em 1541 e ficará com o título de «pintor e arquitecto ordinário do rei». O
período francês de Serlio segue as pisadas do grande Leonardo da Vinci e
de outros artistas italianos. Nunca deve ter concretizado, ao nível
construtivo, aquilo que provavelmente ansiava mas a sua intervenção em
terras gálicas não deixou de ser assinalável. O castelo de Ancy-le-Franc,
Santo Elói dos Ourives, em Paris, o colégio do cardeal de Tournon, o
castelo de Rossillon, o palácio de Auzerre e o castelo de «Rosmarino».
Projectou ainda para Ippolito d’Este, Il Grand Ferrare e Fontaine-Chaalis
311
.
A historiografia artística revela-nos que, muito provavelmente,
devem ter existido problemas entre o arquitecto e a poderosa agremiação
dos mestres-pedreiros franceses. Por certo sabemos que, com a morte de
Francisco I, o seu sucessor Henrique II volta-se para os artistas franceses e
em 1548 Philibert Delorme é «superintendente dos pedreiros reais»,
ocupando o cargo máximo e Serlio perde os seus privilégios indo para
Lyon por volta de 1549-50, morrendo poucos anos depois.

Pela sua visão e entendimento arquitectónicos, Serlio teve um papel


importante «no desenvolvimento da arquitectura francesa porque
acostumou os franceses ao idioma dos mestres italianos do século XVI.

309
Consulte-se Julius Schlosser, La literatura artistica, pág. 350.
310
Anthony Blunt, Arte y arquitectura en Francia..., pág. 78-79.
311
Sobre estes assuntos consulte-se Sabine Frommel, Sebastiano Serlio..., pág. 27-32.

147
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Mas a sua personalidade artística não era bastante forte para impor um
estilo no país adoptivo. Muitos arquitectos, sobretudo nas províncias,
utilizavam o seu tratado como um dicionário, por assim dizer, mas se por
um lado utilizavam muitas palavras soltas, não sabiam como combiná-las
para formar uma frase» 312. É importante considerar que nem Du Cerceau
nem Delorme o citam nos seus trabalhos teóricos e só mesmo Philander, no
seu comentário ao texto vitruviano, reconhece a seu valor, chegando a
incluir no seu livro desenhos de portais muito próximos dos serlianos 313.
Aliás, tirando os livros III e IV, todos os outros escritos foram redigidos e
alguns editados no período francês. Se por um lado, Serlio não muda o seu
discurso no que concerne à teoria italiana sobre as ordens e as proporções
modernas, o autor não deixa de considerar alguns pressupostos do próprio
gosto francês, bem visíveis no Livro VI e mesmo no Libro Estraordinario,
onde ao lado de colunas clássicas se encontram motivos retirados da
tradição gótica francesa e lombarda.

3.1.2.2.2. A fortuna crítica a Serlio e o Classicismo

Grande parte dos contemporâneos que se referem a Serlio têm uma


opinião pouco abonatória em relação ao seu trabalho e chegam mesmo a
utilizar como argumento o facto de o teórico bolonhês ter plagiado os
trabalhos do mestre Baldassare Peruzzi que lhe legou grande parte do seu
espólio 314. Esta informação é, provavelmente, mais importante do que
pode fazer supor pois aqueles «sentiram que Serlio era estranho a seus
problemas: os sinais da presença de Serlio nos tratados de Vignola,
Palladio e Scamozzi são escassos. Pior ainda: Vasari, em relação a Serlio, é
indiferente, Cellini, desconfiado, Lomazzo, desdenhoso. Comparado aos
filósofos clássicos, Serlio permanece um mestre de marcenaria, e empírico,
e pior, o patrono dos arquitectos broncos, práticos de construções apenas
por experiência material e ouvir dizer, sem nenhuma invenção própria», se
pegarmos nas vorazes palavras de Lomazzo 315.
O raciocínio de Giulio Carlo Argan assenta no facto de, sob um
determinado ponto de vista, esta crítica ser justificada dado que o espírito
analítico e a redutibilidade de tudo o que estuda a mera questão empírica –
mesmo no que diz respeito a aspectos como a geometria e a perspectiva – é
oposto às preocupações especulativas que estão por detrás da construção do
Classicismo. Ora, a grande diferença entre os textos serlianos e as
preocupações de um Alberti ou mesmo de um Vignola radicam no evitar
por parte do teórico bolonhês aquilo que é essencial para os outros – a
312
Anthony Blunt, Arte y arquitectura en Francia..., pág. 83.
313
Giulio Carlo Argan, Clássico anticlássico..., pág. 478.
314
John Onians, Bearers of meaning..., pág. 264, salienta o facto de Vasari, Cellini e Lomazzo terem
contribuído para a imagem negativa de Serlio como plagiador de Baldassare Peruzzi, seu mestre.
315
Cfr. Giulio Carlo Argan, Clássico anticlássico..., pág. 341.

148
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

visão da arquitectura como valor absoluto e abstracto, como actividade


intelectual «ideal» que mimetiza o antigo.
Em relação ao Alto Renascimento, o teórico italiano é um «não
científico» e «compreende-se, portanto, que Serlio, fora desses limites
dialéticos, perca a possibilidade de conceber seu tratado como
desenvolvimento sistemático, não conseguindo assumir as exigências
teóricas do classicismo contemporâneo e refletindo posições dos gostos
mais variados, sem compreender, junto com os pressupostos intelectuais
destas, a necessidade intríseca de oposição; ao contrário, embora toda a sua
obra seja orientada por um vago classicismo – identificado com o verbo
vitruviano, mas ampliado até se confundir com o próprio conceito de arte –
a maneira formal romana conserva, diante desse ideal de classicismo, um
valor meramente contingente» 316.

Todavia, como assevera Grassi, «afirmar que o tratado de Serlio é


um repertório de exemplos práticos sem nenhum valor teórico é exacto no
sentido em que carece de formulação verbal de novos princípios, mas o
significado teórico está implícito nos próprios exemplos, proporções e
modelos, no sentido de um organismo sistemático de linguística
arquitectónica» 317.

Assim, mesmo que se suponha que os textos serlianos foram


divulgados pela Europa como a imagem final do Classicismo, o seu autor é
tudo menos isso. Quando, a título de exemplo, refere no Livro III o
Tempietto de Bramante – fixando o ideal clássico renascentista – a sua
interpretação pouco tem que ver com o Classicismo. Se para Bramante a
arquitectura é o resultado de uma realidade construtiva, formal, portanto
plástica, Serlio pensa-a unicamente a partir do efeito visual e não da
dialéctica «forma e efeito», interessa-se pela visualidade e não pelo ideal.
Esta perspectiva tem a ver com a preferência por parte de Serlio pela
«busca veneziana de luz e atmosfera» do que pela «rigorosa plástica
clássica».
Face ao Classicismo de Bramante, Serlio aproxima-se bem mais de
Baldassare Peruzzi e da arquitectura veneziana de Sanmicheli ou de
Sansovino. Os seus textos demonstram claramente esta visão e embora não
formule explicitamente um anticlassicismo assumido, Serlio tem
consciência da distância que o separa do Classicismo dando-se uma
liberdade e uma variedade que lhe permite a «licença» do seu Livro
Estraordinario.

316
Giulio Carlo Argan, Clássico anticlássico..., pág. 342.
317
Citado em Renacimiento en Europa, pág. 367.

149
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

3.1.2.2.3. A produção teórica

Desde o Quattrocento que se tentava encontrar um modelo para a


arquitectura clássica. A sua definição não era clara e o mesmo se poderá
dizer quanto à sua forma exacta, disposição ou proporção de cada ordem
arquitectónica, à sua natureza histórica e função numa sociedade cristã.
Para responder a estas questões utilizaram-se dois campos distintos, o
filológico e o arqueológico. No primeiro campo, os tratados defendiam a
«autoritas» vitruviana em relação às ordens no que dizia respeito à sua
proporção e origem antropomórfica, partindo da tríade Dórico, Jónico e
Coríntio. Chegado ao Renascimento sem ilustrações e deixando em aberto
a sua forma efectiva, os princípios definidos por Vitrúvio estavam em
desacordo com a realidade «coríntio-compósita» do mundo Imperial
romano antigo que poderia ser estudado em Itália. Marcado por graves
contradições e incongruências internas que afectam a forma, as proporções
e até o significado iconológico, o texto vitruviano revelava-se insuficiente e
teve que ser confrontado com os dados arqueológicos. Menos ortodoxo
porque com opiniões mais discutíveis, Sebastiano Serlio será o primeiro a
arrumar e canonizar uma linguagem «clássica», abrindo o caminho para os
textos e medidas de Palladio ou Vignola.

O primeiro trabalho dado a publicar à imprensa consistia num


conjunto de nove lâminas dedicadas ao Dórico, Iónico e Coríntio (1528).
Todavia, o seu monumental projecto de sete livros acerca da arquitectura –
ou oito livros se considerarmos as lâminas com alguns comentários que
dedicou à Arquitectura Militar – só foi iniciado com a publicação, em
1537, do Livro IV – dedicado às Ordens Arquitectónicas – autêntico
arquétipo dos tratados subsequentes. Três anos depois é publicado o Livro
III, em 1545 os Livros I e II e em 1547 o Livro V sendo a série
interrompida com a publicação, em 1551, do Libro Estraordinario
dedicado aos portais arquitectónicos. Postumamente foi publicado o Livro
VII, editado em 1575 por Jacopo Strada, permanecendo manuscritos o
Livro VI – do qual existem duas versões, uma em Nova Iorque e outra em
Munique – e o Livro VIII, manuscrito acerca dos acampamentos militares
romanos, em Munique. A primeira edição conjunta data de 1619 e reúne os
cinco primeiros volumes acompanhados do Libro Estraordinario.
De forma breve podemos afirmar que o Livro I é dedicado à
Geometria, o Livro II à Perspectiva, o Livro III à Arquitectura Antiga, o
Livro IV às Ordens Arquitectónicas, o Livro V aos Templos, o Livro VI à
Arquitectura Doméstica e o Livro VII aos Acidentes Arquitectónicos –
tratando de problemas vários que se colocam aos arquitectos como a
construção de edifícios em terrenos irregulares, projectos para sistematizar

150
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

edifícios assimétricos, ou outros – enquanto que o Libro Estraordinario nos


fornece variados modelos de portais arquitectónicos.

Os Livros IV e III publicados respectivamente em 1537 e 1540


foram, indubitavelmente, os escritos sobre teoria arquitectónica que mais
influenciaram a arquitectura europeia coeva. Face aos anteriores textos
teóricos mais propensos a um estudo filológico dentro da lógica do
Vitruvianismo, o carácter eminentemente prático, a sua legibilidade e o
abandono de questões dificilmente percebidas sem o acompanhamento da
imagem levaram a que os textos serlianos fossem rapidamente difundidos,
divulgando e satisfazendo as necessidades técnico-práticas da nova
arquitectura. Serlio pôs de lado a sapiência humanística e a erudição dos
tratados anteriores apresentando em autêntico manual de arquitectura
dirigido a todos os potenciais clientes, dos aprendizes aos profissionais de
arquitectura, concedendo grande relevo ao aspecto gráfico. O seu
pragmatismo evidente é também a sua grande fortuna pois a característica
fundamental do seu tratado é a aplicabilidade dos modelos que apresenta.
Serlio apresentará com eles, a toda a Europa, um modelo de arquitectura
moderna mesmo para os profissionais que desconheciam a realidade
italiana.

No preâmbulo ao leitor do seu Livro IV, Serlio começa por afirmar a


quem se destina o seu trabalho: «Se eu me decidi a dar algumas regras de
arquitectura, foi com o pressuposto que não somente os elevados e subtis
engenhos as entenderiam mas também os medianos podem ser delas
participantes, segundo o que mais ou menos seriam à tal arte inclinados»
318
. Esta posição justifica o sucesso dos textos serlianos junto dos mais
variados interessados, sejam eles arquitectos dispostos a aprender uma
nova linguagem arquitectónica ou simples diletantes acerca da moderna
arte «all’antico». Abandonando determinadas questões especulativas que
preocupavam os grandes teóricos do Alto Renascimento, apresenta-nos as
suas próprias soluções para alguns problemas – como o das ordens
arquitectónicas que sistematiza pela primeira vez – redigindo um texto de
fácil leitura e compreensão acompanhado por estampas ilustrativas e das
quais dependem grande parte do seu sucesso.

318
Sebastiano Serlio, Tercero y Quarto Libro de Architectura, Livro IV, fl. IIII, segundo a tradução de
Villalpando, Toledo, 1552.

151
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

3.1.2.2.4. O «Cânone» das cinco ordens da arquitectura

A lâmina inserta no livro IV, intitulado Regole generali de gli edifici,


cioé thoscano, dorico, iónico, coríntio et composito, com gli essempi
dell’antiquita che, per maggior parte concordano com la doutrina di
Vitruvio e publicado em Veneza por Francesco Marcolini em 1537, é
certamente uma das imagens paradigmáticas da nova arquitectura do
período moderno. É a primeira imagem do dogma clássico da arquitectura
sem sê-lo verdadeiramente, na medida em que não deixa de se afirmar
como uma interpretação livre, pessoal e mesmo algo inexacta para aqueles
arquitectos seus contemporâneos que procuravam uma resolução
impossível entre o texto vitruviano e as pesquisas arqueológicas. Neste
sentido, o atrevimento do escrito serliano é uma autêntica «fuga para a
frente» dada a irresolubilidade das teorias vitruvianas.

Dedicado ao duque de Ferrara Ercole II, encontra as suas fontes de


inspiração em Vitrúvio, Alberti mas também em Pacioli e nas teorias
musicais de Gaffurio para além dos estudos arqueológicos e modelos
arquitectónicos de Baldassare Peruzzi e muito possivelmente num tratado
sobre ordens arquitectónicas, manuscrito de autor ignoto, perdido mas com
uma versão copiada até cerca de 1520-1530 que se encontra na Biblioteca
Nacional de Paris 319. Genialmente, perfilha as sugestões iconológicas de
cada ordem que se haviam desenvolvido de modo incipiente no círculo de
Bramante e seus discípulos, cristalizando as atribuições vitruvianas e
favorecendo o seu emprego à arquitectura religiosa.
Grande parte do sucesso dos textos serlianos passa pelo
entendimento da arquitectura como arte visual, produzindo pranchas com
debuxos arquitectónicos que permitiram uma legibilidade literária da
arquitectura praticamente ausente na literatura anterior. É, igualmente, a
assunção da ordem arquitectónica enquanto elemento definidor e
caracterizador do edifício – e já não meramente decorativa ou adorno
antiquizante como, por exemplo, para Leon Battista Alberti 320– em que
cada coluna é um diâmetro mais alta em relação à anterior (do Toscano =
1:6 ao Compósito = 1:10). É a codificação cabal das ordens arquitectónicas
em termos gráficos e literários, isto se contarmos com a sua descrição
textual que acompanha a imagem.
Este é claramente um dos aspectos em que Sebastiano Serlio é
inovador – encara a arquitectura a partir do desenho arquitectónico, vê o
arquitecto como aquele que concebe, projecta e desenha no papel a sua
obra, colocando de parte todas as questões relacionadas com os problemas

John Onians, Bearers of meanings…, pág. 263.


319
320
Consulte-se, a título de exemplo, a opinião de Juan Ramirez, Cinco lecciones sobre Arquitectura y
Utopia, pág. 215-216.

152
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

técnicos da arquitectura, dos materiais aos pormenores da construção 321.


Neste particular, é um homem do seu tempo, partindo da síntese vazariana
das artes em torno do «disegno» e vendo-se a si mesmo como o portador da
nova arquitectura de Bramante e dos seus seguidores.

3.1.2.2.5. O carácter alegórico e iconológico das ordens

Uma das originalidades do tratado serliano foi o de transferir o


sentido alegórico e iconológico antigo das ordens arquitectónicas –
partindo das atribuições vitruvianas – para a nova superestrutura cristã: «Os
antigos dedicaram todos os edifícios aos deuses, aplicando-os àqueles que
mais lhe pertencerem segundo a sua natureza, sendo robusta ou delicada.
E assim a obra Dórica dedicaram a Júpiter, Marte, Hércules e a estes se
lhe faziam os templos Dóricos porque foi tomada da forma do homem, e a
Iónica a Diana, Apolo e Baco, o qual participa também da forma matronal
ou mulheril, porque tem dele robusto e delicado. Diana por ser mulher é
delicada mas por exercitar-se na caça, participa do robusto. E assim
também Baco. Mas a maneira Coríntia por ser tomada da forma de um
corpo de donzela, quiseram que fosse dedicada à deusa Vesta, a principal
das virgens. Mas nesta nossa época, no meu parecer, deve proceder-se de
outra maneira, não nos desviando muito dos Antigos quanto à aplicação
dos edifícios. Quero dizer que, seguindo o costume dos nossos cristãos
constituiremos, por meu parecer, os edifícios sagrados segundo a sua
espécie, primeiramente aos deuses e a seus santos, e os edifícios profanos,
públicos como secretos, principais ou acessórios feitos para os homens,
segundo o seu estado e profissão» 322.
Desta forma, Serlio realiza a transposição iconológica para a
gramática cristã. O Dórico, dedicado a Júpiter, Marte ou Hércules é agora o
estilo proposto para templos dedicados a Jesus Cristo, São Pedro, São
Paulo, São Tiago, São Jorge «ou qualquer outro santo cuja profissão, não
só tenha sido de homem de guerra, mas que também tenha sido delicado e
humilde bem como forte e robusto ao dar a sua vida pela fé em Cristo». O
Iónico, apolíneo e dionisíaco, deverá ser utilizado para «todos aqueles
santos que tenham sido em parte robustos e fortes e em parte delicados e
humildes. E assim todas aquelas santas que foram casadas ou tenham
chegado a velhas de autoridade». Partindo do mito virginal da origem do
Coríntio, Serlio aconselha-o para templos consagrados a Nossa Senhora e a
«todos os santos e santas que tenham vida virginal ou vidido calmamente»,
sendo portanto preferencial para edifícios conventuais. Agora, tal como à

321
Um excelente resumo sobre estas questões encontra-se em John Onians, Bearers of meaning..., pág.
263-286.
322
Sebastiano Serlio, Tercero e Quarto Libro d’Architectura, Livro IV, fl. IIII-V.

153
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Escultura e à Pintura, à Arquitectura é atribuído o poder de expressar o


carácter das coisas e seus donos.

Outro aspecto relevante e pioneiro da obra serliana é a constituição


de um verdadeiro léxico arquitectónico, vocabulário essencialmente
adaptado da retórica antiga, especialmente de Cícero. Isto não só se revelou
muito útil no que concerne à descrição das obras, como o levou a aplicar
conceitos como o de «melhor período» ou «melhor estilo», isolando o Alto
Renascimento estilisticamente. Há toda uma nomenclatura de descrição,
caracterização e avaliação das ordens arquitectónicas que nasce da
oposição retórica entre o «decoro» e o «licença» e que evolui assim que nos
dirigimos do Toscano para o Compósito.
Assim, o Toscano é sinónimo de solidez e desornamento, sendo a
mais forte e rústica de todas as ordens e aconselhável para assuntos de
fortificação, o Dórico é ainda marcado pelas mesmas características de
robustez mas indicado, acima de tudo, para qualquer pessoa de espírito
vivo e espartano. Se o Iónico é a primeira das ordens refinadas, indicado
para os homens de letras, para vidas mais espirituais que físicas, a ordem
virginal e pura por natureza é o Coríntio, sinónimo de adorno, de
decorativo e de pura elegância. Por último, o Compósito é a ordem da
«licença» por excelência, admitindo as mais irregulares e livres
combinações formais sendo, por consequência, a mais híbrida de todas as
ordens arquitectónicas.

3.1.2.2.6. A autoridade vitruviana e a «ellettione del bello»

Para Sebastiano Serlio, o princípio da autoridade vitruviana é ainda o


garante da infalibilidade da «regra» em relação aos próprios modelos
arqueológicos do mundo antigo, da mesma maneira que um dos critérios da
qualidade arquitectónica é a conformidade com as regras vitruvianas 323.
Não obstante, se Vitrúvio é o modelo quer para a visão acerca da
arquitectura antiga quer para a avaliação da obra moderna, no texto serliano
não é mais do que um critério, um pressuposto teórico.
Não existe nenhuma submissão às regras vitruvianas nem uma
aceitação total e comprometida com o texto antigo. Ao longo dos seus
escritos não poucas vezes o arquitecto bolonhês utiliza-o para criticar os
antigos e modernos 324, serve-se dele como se se tratasse de um valor ético

323
Cfr. John Onians, Bearers of meaning…, pág. 264-265.
324
Serlio chega a considerar que os arquitectos que não seguem Vitrúvio são heréticos, mas não deixa de
dizer que o texto vitruviano é limitado em muitas questões, como quando discorre acerca do Arco de Tito,
em Roma. Cfr. Anthony Blunt, La teoria de las artes…, pág. 154. Referindo-se, por exemplo, ao teatro de
Marcelo, afirma: «Não me parece que um arquitecto moderno, servindo-se do exemplo de um edifício
qualquer que seja, justifique o seu pecado (e por pecar entendo infringir as regras de Vitrúvio). Se este

154
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

e normativo mas não deixa de sublinhar a determinada altura – quando trata


da obra toscana – que «porque Vitrúvio nem outro arquitecto viu tudo
aquilo que eu vi e li, não deu nenhuma regra de estilobato que é o
pedestal» a essa mesma ordem. A própria ordem compósita – teorizada
como «itálica» por Alberti – é introduzida por Serlio como «aprovada com
a autoridade das obras Romanas antigas». Ora este argumento revela a
nova visão quinhentista no que concerne ao juízo acerca da arte e da
beleza. Dito de outra forma, acima de tudo Serlio confia no seu próprio
julgamento – «giudicio» – nos seus próprios juízos de valor e promove uma
selecção do belo – «ellettione del bello». É o próprio teórico que afirma
que os seus escritos são já um resultado de uma selecção promovida pela
sua excelência.

3.1.2.2.7. «Licenza» e «Modestia»

«A alma dilacerada pela imposição de uma regra». Desta forma


define Mario Carpo aquele que é considerado o escrito teórico paradigma
da poética maneirista. Sebastiano Serlio tinha sido o responsável pela
formulação final e «clássica» das cinco ordens arquitectónicas, baseando-se
no princípio especulativo da autoridade da arquitectura antiga e no seu
juízo de valor que lhe proporcionava a selecção dos melhores modelos.
Todavia, com a publicação em 1540 do Libro Estraordinario Serlio reflecte
sobre um dos comportamentos mais em voga na sua época, exactamente a
quebra dessas mesmas regras em favor de uma gramática arquitectónica
livre, artificiosa e «desregrada» tão típica do Maneirismo 325.

Giulio Carlo Argan destaca o facto de o teórico italiano aceitar neste


escrito, definitivamente, uma distinção entre o construtivo e o decorativo,
optando claramente pelo estudo de fragmentos decorativos, tentando
resolver o contraste entre os resultados teóricos a que chegou e a própria
circunstância francesa em que se integrava, pois «aplicando um motivo
crítico às formas clássicas, determinadas dogmaticamente, chegara a
conferir aquelas uma liberdade que o classicismo negava. Partira do
classicismo e chegara ao anticlassicismo. O gosto francês, ao contrário,
partia de formas góticas e tentava reduzi-las ao clássico» 326.

Serlio vai considerar que quando o arquitecto se encontra num estado


de «furore arquitettonico» – um estado mental transitório – é dado a
caprichos ou a criações bizarras e produz «opera bestiale», por oposição às

arquitecto licencioso não justifica que se faça o mesmo pois, salvo se a razão não nos dita o contrário,
devemos seguir sempre o ensinamento de Vitrúvio como regra e guia infalível». Cfr. Livro III, capítulo 4.
325
Sobre este assunto, consulte-se John Onians, Bearers of meaning…, pág. 280-282.
326
Giulio Carlo Argan, Clássico anticlássico..., pág. 351.

155
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

«opera regolare» atentas às regras da arquitectura. O argumento que


apresenta para esta alteridade é sofístico: «Se não fosse a extravagância de
alguns homens não reconheceríamos a contenção de outros». Este
argumento prova a consciência da regra e da «licença» arquitectónica, a
coexistência das duas realidades e a perfeita ambiguidade maneirista entre
a consciência da moderação e da estultícia.

O Libro Estraordinario apresenta-nos toda uma gama de soluções


arquitectónicas resultantes deste estado de espírito alterado, manifesto
essencialmente a partir da gramática do rusticado e do compósito, nas quais
se incluem toda uma série de proporções mistas e «desregradas» de portais
arquitectónicos característicos da arquitectura maneirista e das obras de
Baldassare Peruzzi, Girolamo Genga ou de Giulio Romano que Serlio
conheceu bem e que ele próprio levou à prática arquitectónica. É
constituído por uma antologia de 50 pranchas de portais monumentais de
carácter mais ou menos «licencioso» antecedido por um prefácio onde
Serlio, de forma ambígua, denuncia os erros arquitectónicos que ele próprio
faz questão em representar e divulgar.

Manfredo Tafuri vê esta pequena mas paradigmática obra como um


momento de superação do naturalismo humanista, numa altura em que se
retorna a um modelo anti-naturalista colectivo para o qual o texto serliano
também contribuiu: «A difusão dos modelos de Serlio pode explicar-se
muito bem por tudo o que eles tinham de respeito mimético aos processos
mais inquietantes da tal temida natureza. O rústico como mescla da obra
humana e obra natural» 327. O marcado anti-classicismo é, desta forma,
evidente já que «os elementos fundamentais da concepção plástica do
classicismo – a coluna e o vazio – já não são pensados em função de uma
relação absoluta com a representação do espaço, mas em relação às suas
possibilidades de variação cromática do plano, compreendendo-se que, na
inversão desses princípios clássicos fundamentais, esteja implicada também
a reversão do conceito clássico de beleza como equilíbrio simétrico de
valores plásticos» 328.

Mario Carpo recentrou a teoria serliana partindo da análise do Libro


Estraordinario colocando no centro da sua teoria arquitectónica o conflito
entre a «modestia» e a «licenza» que está já potencialmente presente no
Livro IV. Mas, tentando resolver uma questão onde se apresenta um
«modelo a não seguir», o autor afirma que «mesmo a composição mais
licenciosa do livro não compromete completamente o reconhecimento de

327
Manfredo Tafuri, «El mito naturalista en la arquitectura del siglo XVI», Historia de la Arquitectura.
Antologia Critica, pág. 243.
328
Giulio Carlo Argan, Clássico anticlássico..., pág. 353.

156
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

uma articulação regular essencial, subjacente à composição, não sendo


menos legível» 329. Esta posição resulta do facto de não considerar que a
«licenza» se opõe à «regra» mas sim à «modestia» 330. A ambiguidade do
texto resulta no facto de se fazer a apologia do arquitecto «bestiale» ao
mesmo tempo que se considera que, para ele, está fechada a via vitruviana
caracterizada pelo «modesto architetto». No final da vida, Sebastiano
Serlio manifesta o profundo desconforto maneirista na necessidade de
elevar e tentar resolver questões terrenas a um nível de uma religiosidade
conflitual.

3.1.2.3. Breve nota sobre o «serlianismo» em França e Espanha

França

Sebastiano Serlio viveu, projectou e publicou textos teóricos em


terras gaulesas mas não teve a influência que se poderia pensar para a
instauração da linguagem arquitectónica de pendor italiano, nem ele nem
qualquer dos artistas italianos que esteve na região – esse papel coube
essencialmente a Philibert Delorme.

Os nomes maiores da arquitectura francesa não seguem Serlio e


grande parte conhecia a realidade italiana de forma directa. Os artistas
italianos, na sua maioria, vindos para França na altura do reinado de
Francisco I não tiveram poder para afrontar os plenipotenciários mestres
pedreiros franceses. Sob o ponto de vista prático, apenas se encontram ecos
directos em obras como a do Hôtel Carnavalet, em Paris, de Pierre Lescot,
iniciada em 1545, que segue o modelo do «Grand Ferrare» do teórico
italiano. Sob o ponto de vista teórico, o Livre d’Architecture de Jacques
Androuet du Cerceau (1555) revela no seu projecto para o castelo de
Charleval uma variante do modelo serliano para completar a fábrica do
Louvre. É evidente que escritos como Le premier tome d’Architecture de
Delorme, redigido cerca de 1567, manifestam o conhecimento da
tratadística serliana, dentro do conhecimento geral do qual fazem parte
Vitrúvio e Alberti. Todavia, os dois casos enunciados são exemplificativos
do limitado contributo que o trabalho teórico-prático de Serlio encontra na
realidade dos mestres franceses ligados ao ambiente régio com a própria
especificidade que tivemos ocasião de referir anteriormente.

329
Mario Carpo, La maschera e il modello..., pág. 17.
330
Para ele a «regra» tem um significado teórico ligado à transcrição em termos proporcionais de um
objecto (arquitectónico) representado em escala variável. Cfr. Mario Carpo, La maschera e il modello...,
pág. 22-23.

157
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

De facto, a influência serliana verifica-se com maior exactidão nos


centros periféricos e regionais, menos informados mas também mais aptos
a aplicar livremente e avulso motivos retirados dos seus tratados –
especialmente dos livros III, IV e do Libro Estraordinario. Alguns destes
modelos são de grande qualidade arquitectónica como o portal do Capitole
de Bachelier, em Toulouse, mas na sua maior parte resultam da tentativa de
actualização linguística típica de mestres de pedraria que anseiam construir
«ao antigo». Como concluiu Anthony Blunt, «Serlio jogou um papel
importante no desenvolvimento da arquitectura francesa, porque habituou
os franceses ao idioma dos mestres italianos do século XVI mas a sua
personalidade artística não era bastante forte para impor um estilo a um
país adoptivo. Muitos arquitectos, sobretudo na província, empregaram o
seu tratado como um dicionário, por assim dizer, mas se muitas vezes
copiavam palavras soltas, não sabiam como combiná-las para formar uma
frase» 331.

Espanha

Quando em 1552 o geómetra e arquitecto Francisco de Villalpando


faz publicar em Toledo a sua tradução dos livros III e IV, Sebastiano Serlio
é já conhecido pelo ambiente arquitectónico régio castelhano e num país
onde, tal como em Portugal, genericamente e num primeiro momento, a
actualização quinhentista da linguagem arquitectónica foi essencialmente
livresca. É um dado adquirido que os arquitectos e mestres da retabulária
espanhóis revelam inspirar-se directamente nas pranchas serlianas desde o
célebre Cobarrubias no aparelho rusticado da Porta Nova de Bisagra (1559)
a Juan de Juni no retábulo da Antiqua, na Catedral de Valhadolid (1550-
1562).

Se, na segunda metade do século XVI, o «herrerianismo» não


deixava grande espaço para a existência de um experimentalismo
arquitectónico em torno das obras de patrocínio ou influência régias, nas
regiões periféricas espanholas a presença de Serlio e da matriz italianizante
foi uma constante, essencialmente a sul, nas obras de Alonso de Valdevira,
Hernán Ruiz, «o moço», ou de Francisco de Castillo, «o moço». A título de
exemplo, Castillo esteve em Itália, mas a sua obra da década de 70 é
grandemente influenciada pelo Serlio do livro IV e Libro Estraordinario.
Obras como as do Castelo Nou de Torredembarra, perto de Tarragona
(1565-1578), de Miquel Mani e Pere Blai ou os claustros das cartuxas de
Portacoeli (1588), de Guillem del Rey, e Ara Christi, demonstram
igualmente inspirações directas da imagética serliana.

331
Anthony Blunt, Arte e Arquitectura en Francia..., pág. 83.

158
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

O mestre sevilhano Hernán Ruiz, se utiliza gramática serliana na sua


obra arquitectónica, mesmo os seus manuscritos teóricos revelam a
influência do autor italiano quando apresentando quatro colunas dóricas
idênticas, sob o ponto de vista formal, lhes atribui não as proporções
serlianas para o dórico, jónico, coríntio e compósito 332.

Sob o ponto de vista do seu estudo teórico, os textos serlianos não


deixam de estar presentes nas grandes bibliotecas dos artistas como Juan de
Herrera, ao lado dos textos fundadores e comentados de Vitrúvio, de
Alberti, Vignola ou Palladio. Não obstante o «herrerianismo» eliminar da
teoria e da prática arquitectónicas grande parte das questões suscitados
pelos textos italianos em favor de uma visão purista, estrutural e despojada
da arquitectura, não restam dúvidas que os textos são conhecidos e
estudados.
Um aspecto em que Serlio produziu um trabalho inovador, muito
tido em conta pela historiografia artística espanhola, diz respeito às
intenções de cristianizar os significados da arquitectura «ao antigo».
Segundo Fernando Marías, «o modalismo vitruviano das ordens –
traduzido em termos cristãos por Serlio – tinha sido adoptado com agrado
em Espanha, pois atribuía-se às ordens um valor sacro significativo que
justificava, se fosse necessário, o seu emprego em função da sua eloquência
no que concerne à dedicação de uma igreja ou à qualificação do
proprietário de um edifício palaciano. Mas pretendia-se ir mais além.
Sintomáticas são as propostas do anónimo tratadista do príncipe Filipe 333
ou a insistência de Lázaro de Velasco em manter a tipologia cruciforme
para os templos, ou inventar novas formas emblemáticas (das triangulares
para os edifícios dedicados à Santíssima Trindade às naves para templos
dedicados a São Pedro). Existia uma clara vontade de deixar claro o
vocabulário arquitectónico sobre o vocabulário ou sintaxe do código
clássico» 334.

Um texto que manifesta a clara presença e compreensão de


Sebastiano Serlio é o célebre De varia commensuracion para la esculptura
y architectura, publicado em 1585, por Juan de Arfe y Villafañe.
Conferindo às ordens arquitectónicas as proporções serlianas, Villafañe vai
dar especial relevo a três tipos de modelos construtivos «ao antigo»,
definidos por Fernando Marías como «motivo adintelado» para o Dórico, o
«sintagma albertiano» para o Jónico e a «serliana» consignada ao Coríntio:
«Com este texto, o último hispânico de Quinhentos apresenta-nos uma
visão de pleno entendimento das ordens. O motivo adintelado e a

332
Cfr. Fernando Marías, El Largo Siglo..., pág. 428-429.
333
Veja-se capítulo neste trabalho.
334
Fernando Marías, El Largo Siglo..., pág. 568-569.

159
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

importância concedida às três ordens vitruvianas confirmam a compreensão


dos dois aspectos da ordem salientados por Vitrúvio, a sua função tectónica
e antropomórfica proporcional; o sintagma albertiano e a serliana, por sua
vez, estabeleciam a necessidade de apresentar a imagem tectónica da ordem
quando se empregam estruturas baseadas no uso do arco» 335.
De facto, o uso do «motivo serliano», embora de forma esporádica,
surge logo na La Calahorra granadina, no claustro do Mosteiro de São
Jerónimo de Lupiana de Covarrubias (1535) ou no pátio do hospital de
Honrados Viejos de Ùbeda, de Valdevira (1548-1581). A sua fortuna passa
mais como motivo isolado, como composição ornamental em retábulos,
estruturas decorativas ou janelas mas o seu uso correcto encontraria no
destruído palácio todelado de Diego de Vargas, projectado pelo próprio
Francisco de Villapando cerca de 1557 um exemplo de máximo valor, tal
como a herança serliana é claramente visível no Escorial, na Galeria dos
Convalescentes de Toledo, projectada cerca de 1564 336.

Ao nível erudito, o grande destaque a partir das últimas décadas do


século XVI vai para Vignola que atinge um grande sucesso em terras
castelhanas. Não será por mero acaso que o «regrado» Juan de Herrera
insistiu com Patrizio Cascesi ou Caxés para traduzir o texto do arquitecto
italiano em 1593, dentro da política de traduções ligadas aos estudos
académicos reais madrilenos.

Não obstante, a longevidade de Serlio não deixa de fazer sentido


mesmo quando a partir das primeiras décadas do século XVII se inicia a
crítica à própria arquitectura «classicista» tal como a entendia Herrera e os
seus discípulos. O jesuíta Jean Charles de la Faille (1597-1652),
cosmógrafo real e catedrático de matemáticas dos Estudos Reais do
Colégio Imperial de Madrid – que vêm substituir a Academia Real das
Matemáticas – autor em 1636 de um tratado de arquitectura, não deixa de
envolver directamente Serlio na sua crítica à teoria arquitectónica moderna:
«Os arquitectos modernos não tiveram melhor regra porque alguns deles,
como Sebastiano Serlio, gastam um livro ou dois a ensinar os fundamentos
da geometria e perspectiva, outro a juntar as antiguidades e pedaços de
colunas e edifícios antigos que se encontram em Roma e fora dela, e outro
ainda sobre portais. Outro de traças de diferentes igrejas. O que têm em
comum de melhor ordenado são as proporções das ordens, embora elas
variem conforme o seu estado, todavia com pouca diferença, fundando-se
em alguns pedaços de colunas antigas pois muitas delas não têm outro
fundamento senão o uso e é de espantar que temos posto mais força em
conformar-nos com as fábricas dos antigos que com as suas vestimentas,
335
Fernando Marías, El Largo Siglo..., pág. 422-423.
336
Sobre o «motivo serliano» veja-se Fernando Marías, El Largo Siglo..., pá. 424-425.

160
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

como se se não pudessem encontrar mil géneros de adornos e proporções


no edificar como se encontraram modos diferentes no vestir; como se vê
nos godos, os quais para desgraçar os nomes dos romanos derrubaram
todas as suas fábricas e introduziram um género novo de edificar que
agora se chama gótico, e se vê em muitas igrejas antigas como são em
Espanha as de Toledo e de Burgos» 337.

Optando pelas medidas das ordens arquitectónicas propostas por


Andrea Palladio, não deixa de recomendar que os sistemas ornamentais
tomem como exemplo o livro VI – o Libro Estraordinario – de Serlio e
mesmo Vignola, numa altura em que, segundo Marías, se realiza a união
entre a tradição hispânica e o classicismo «na sua versão ornamentada, que
surgia por esta altura na corte madrilena e que resultava de aproximações
italianas e flamengas, mais do que das romanas contemporâneas» 338.

337
Citado em Fernando Marías, El Largo Siglo..., pág. 561.
338
Cfr. Fernando Marías, El Largo Siglo..., pág. 562.

161
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

3.2. A Tratadística, o Ensino e a Aprendizagem em


Portugal

3.2.1. A divulgação dos Tratados de Arquitectura

3.2.1.1. Os Tratados de Arquitectura nas bibliotecas portuguesas

A existência de bibliotecas privadas de artistas é uma realidade para


este período. Se no caso português não existe ainda uma prova documental
de uma biblioteca privada de um arquitecto – embora nos pareça inegável a
sua existência no caso dos mais ilustres arquitectos régios – em Castela este
facto está amplamente documentado, pertencendo a Juan de Herrera o
recorde neste particular com cerca de 750 títulos 339. São a um tempo
específicas e heterogéneas em matéria de interesses científicos, na linha dos
indicadores vitruvianos básicos e amplos para a formação nesta área.
Não restam dúvidas de que também os artistas e arquitectos
portugueses tinham ao seu dispor, e com plena actualidade, a grande
maioria dos textos publicados do Norte da Europa a Itália. Sabe-se que
Francisco de Holanda possuia cópias de Serlio e de Vasari e que Gonçalo
Baião trouxe de Itália uma edição de Alberti. Não é muito importante a
inexistência de documentação que justifique a existência de literatura
adquirida pelos arquitectos a título privado – o que apenas se verifica em
casos excepcionais – na medida em que eles estavam disponíveis quer na
Corte para a «aula régia de arquitectura», quer nas instituições religiosas
como Santa Cruz de Coimbra, o exemplo escolhido para ilustrar esta
mesma realidade. Possuía um rol considerável de literatura artística,
especialmente de arquitectura, a par de colectâneas de estampas avulsas e
em série, muito úteis aos artistas, demonstrando uma enorme preocupação
pela actualidade estética 340.

Mandroux-França recolheu o espólio existente respeitante aos


tratados de arquitectura depositados nas bibliotecas portuguesas, provando
a existência das mais diversas e importantes referências em Portugal da
tratadística europeia desde Vitrúvio aos autores nórdicos. Algumas destas
edições encontram-se assinadas e outras comentadas à margem do texto, o
que denunciam o seu uso e estudo. Segundo Formosinho Sanchez, as
bibliotecas nacionais contam um total de cerca de setenta exemplares do
texto vitruviano 341.
339
Fernando Marías, El Largo Siglo XVI..., pág. 512.
340
Dado singular é o episódio da ida a Roma de frades crúzios e da compra de uma estampa de Giulio
Bonasone sobre o «Juízo Final» de Miguel Ângelo, utilizada posteriormente numa tabuinha pintada por
um artista local.
341
Cfr. Formosinho Sanchez, «O De Arquitectura de Vitrúvio. Numa recolha bibliográfica manuscrita
existente em Portugal», pág. 164-165.

162
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

A título de exemplo, contem-se as edições latinas de 1522, editadas


em Florença, a edição de Cesar Cesariano de 1521 de Vitrúvio, sendo as
mais numerosas as traduções italianas, francesas e espanholas da segunda
metade do século XVI, destacando-se a edição de Daniele Barbaro (1566).
Encontram-se igualmente presentes as edições latinas ou em vulgar da obra
teórica de Alberti, da edição florentina de 1485 à de Paris de 1512, das
traduções italianas de 1546 (Veneza) e 1550 (Florença) 342.

Em maior número situam-se as obras de Sebastiano Serlio. Os


incontornáveis Livros IV e III, na edição veneziana original de 1537-1540,
de Francesco Marcolini, o Livro I e II na tradução de Jean Martin (Paris,
1545) e as lionesas de 1551 e 1560 do Livro Estraordinario são disso
exemplos supremos. Contam-se ainda publicações seiscentistas como as de
1600 e 1619 de Giacomo da Franceschi 343. Estranha-se, todavia, a rara
presença da tradução espanhola de Villapando que certamente circulou em
grande número, amplamente conhecida em Portugal – como prova o Auto
de António Prestes – e que teve três edições castelhanas, vendendo cerca de
3000 exemplares num espaço de duas décadas.

As edições nórdicas como os livros do francês Jacques Androuet du


Cerceau – dos seus «Livres d’Architecture» (1615 e 1648) ao «Le plus
excellents bastiments de France» (1607) – ou as «Variae Architecturae
Formae» de Vredeman de Vries 344, bem como as colectâneas de gravados,
justificam o conhecimento e a prática em Portugal das interpretações que
conduziram ao «flamenguismo» e ao gosto «nórdico» que se faz sentir a
partir das últimas décadas do século XVI.

Uma boa parte dos volumes dispersos pelas bibliotecas nacionais


denunciam a sua pertença a instituições importantes como Santa Cruz de
Coimbra, São Roque ou o Convento da Graça em Lisboa. Um exemplo
justificativo desta realidade encontra-se registado no espólio crúzio.

342
Consulte-se Mandroux-França, «L’image ornamentale et la litterature artistique importées du Xve au
XVIIIe siècle: um patrimoine meconnu des biblioteques et musées portugais», Boletim da Biblioteca
Municipal do Porto, pág. 148.
343
Cfr. Mandroux-França, «L’image ornamentale et la litterature artistique importées du Xve au XVIIIe
siècle: um patrimoine meconnu des biblioteques et musées portugais», pág. 149.
344
Mandroux-França, «L’image ornamentale et la litterature artistique importées du Xve au XVIIIe
siècle: um patrimoine meconnu des biblioteques et musées portugais», pág. 152.

163
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

3.2.1.1.1. Um exemplo: a Biblioteca do Mosteiro de Santa Cruz de


Coimbra

O acervo bibliográfico dos cónegos regrantes de Santa Cruz de


Coimbra, durante o período que aqui se analisa, constava de centenas de
volumes dedicados às mais diversas áreas, da Teologia às Ciências mas
também às Artes. Em 1827 o mosteiro contava com 22.354 volumes
expostos na biblioteca edificada a partir de 1528 pelo arquitecto Diogo de
Castilho. Com a extinção das ordens monásticas, o património livresco de
Santa Cruz encontra-se distribuído por variadíssimas instituições – algumas
particulares – das quais se salientam as colecções que integram o núcleo
crúzio da Biblioteca Municipal do Porto e os volumes que se encontram na
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. A sua identificação é
relativamente fácil na medida em que todos os livros se encontram
marcados com o selo crúzio.

Partindo das informações insertas na Bibliotheca setecentista de D.


Pedro da Encarnação, um longo índice sobre o acervo de Santa Cruz,
Joaquim Teixeira de Carvalho pode isolar os volumes relacionados com a
Arquitectura que o mosteiro, à época, tinha em seu poder. A partir desta
informação podemos identificar os seguintes títulos, apenas publicados até
1650, relacionados, directa ou indirectamente com a arquitectura:

Diego de Sagredo
Medidas del Romano, agora nuevamente impressas, e añadidas
de muchas pieças y figuras muy necessarias a los Officiales que
quierem seguir las formaciones de las Basas, Colunnas, Capiteles, y
otras pieças de los edificios antiguos. En Lisbona por Luiz Rodriguez,
1541.

Sebastiano Serlio
Dell’ Archittetura Libri VII. In Vicenza, per Iacomo de Francheschi.
1618.

Il primo Libro d’Architettura di Sebastiano Serlio Bolognese.

Le premier Libre d’Architecture de Sebastian Serlio, Bolognois, mis


en Langue Françoyse, par Iehan Martin, Secretaire de Monseigneur le
Reverendissime Cardinal dè Lenoncourt. A Paris 1545.

Tercero e quarto Libro de Architectura. En los quales se trata de las


maneras de como se pueden adornar los hedificios ; con los exemplos de

164
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

las Antiguidades. Agora nuevamente traduzido de Toscano en Romance


Castellano por Francisco Villalpando Architecto. En Toledo, en casa de
Iuan de Ayala. 1552.

Pietro Cataneo
I quattro primi libri di Archittetura. In Venegia in Casa de Figliovoli
di Aldo. 1554.

Albrecht Durer
De Vrbibus, Arcibus, Castellisque condendis, ac muniendis rationes
aliquod praesenti bellorum necessitati accommodatissimae : nunc recens è
Lingua Germanica in Latinam traductae. Parisiis ex Officina Christiani
Wecheli, 1535.

Antonio Labacco
Libro appartenente a l’Archittetura: nel qual si figurano alcune
notabili Antiquita di Roma. Impresso en Roma in casa dell’ Autore
negl’ani del Signore 1557.

Samuel Marolois
Fortification, ou Architecture Militaire, tant offensive que defensive.
1615. Hagae Comitis, ex Offic. Henrici Hondii. Premiere et Second Partie.

Opera Mathematica. (Ou) Œuvres Mathematiques traictes de


Geometrie, Perspective, Arquitecture, et Fortification, par Samuel
Moralois. Auxquels sont ajoints les fondements de la Perspective, et
Architecture de I. Vredman Vriesse. Augmentée, et corrigée em divers
endroicts, par le mesme Auteur. Ibd. 1614.

Geometrie, contenant la Teorie et Practique d’icelle necessaire à la


Fortification. Ibid. ex. Offic. H. Hondii. Arnhemii, apude Ioannem
Ianssonium.

Ars Perspectiva, quoe continet Theoriam et Practicam ejusdem


Authore Samuele Maroloiso. 1615. Hagoe Comitis Hollandiae apud H.
Hondium, Anhemii, apud Johannem Janssonium.

Vicenzo Scamozzi
L’Idea della Architettura Vniversale, divisa in X. Libri. Parte prima
contiene Libri 1. 2. e 3. Parte Seconda contiene il Lib. 6. 7. e 8. In Venetia.
1615. per Giorgio Valentino.

165
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Giacomo Barozzi da Vignola


Regolla delle cinque Ordini d’Architettura di M. Iacomo Barrozzio
da Vignola.

Regla de las cinco Ordenes di Architectura de Iacome de Vignola.


Agora de nuevo traduzido de Toscano en Romance por Patritio Caxesi
Florentino. Pintor y Criado di Su Magestad. En Madrid, en Casa del
Auctor. 1593.

Vitrúvio
De Architectura Libri, ad Augustum Caesarem accuratissimi
conscripti ... Adjectus etiam Sexti Iulii Frontini de Aquaeductibus Vrbis
Romae Libellus. Item ex Libro Nicolai Cusani Cardin. De Staticis
Exeperimentis fragmentum Argentorati in Officina Knoblochiana per
Giorgium Machaeropioeum. 1554.

Hans Vredeman de Vries


Perspective. Henricus Hondius sculpsit, et excud. Lugduni
Batavorum. 1604.

O bibliógrafo afirma que neste último volume se encontrava outra


obra sobre o mesmo tema, a «Perspectiva» de De Vries, em holandês,
dedicada ao príncipe de Orange em 1605 e ainda outro livro que em francês
diz no frontispício:
Maniere de bien bastir, edifier, fortifier, et munir Chasteaux,
fortresses, Villes, et autres Places, Antuerpiae apud Gerardum de Jode.
1580. Mr Hans von Schillé Ingenieur et Geographe inventor.

Para além das obras directamente relacionadas com a Arquitectura


ou redigidas por arquitectos englobando outras questões, é importante
destacar a informação de que o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra
possuía, apensa ao volume de arquitectura de Vignola, o «ritratto della
famosiss. Fabrica della Chiesa di S. Pietro di Roma in Vaticano
rappresentata com le sue misure proportionate, tanto nella parte fatta
Secondo il Disigno del famossimo Michel Angelo Bonnaroti, quanto nella
parte aggiunta, che contiene parte della Chiesa, Sacrestia, Coro per il
Clero, Portico, Loggia per la Benedittione, Campanili, e Facciata
disegnata e fatta da Carlo Maderni Architteto nel felice Pontificato di N. S.
P. P. Paolo V. Romae 1613. Mathaeus Greuter Sculpsit» 345.

345
Joaquim Teixeira de Carvalho, A Livraria do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, pág. 97.

166
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

D. Pedro da Encarnação refere ainda todo um conjunto de volumes


com séries e colecções de gravuras como, a título de exemplo, «Hum Livro
de forma oblonga, que contem 68 folhas de Estampas numeradas, e
ajuntadas por hu curioso, e devoto Padre deste Mosteyro. Estão
encadernadas em folhas de pergaminho com solfa, em q se vem duas
estrophes do Hymno: Iste Confessor» 346. Para além deste exemplo o autor
conta ainda mais quatro volumes com 105, 94, 94 e 161 estampas dizendo
que este último tem no primeiro fólio uma representação da «Alma no fogo
do Purgatorio», referindo especificamente uma outra gravura representando
Nossa Senhora do Carmo.

Assumindo que grande parte dos títulos foram adquiridos, em maior


ou menor proximidade, no período em que foram publicados, o acervo é de
uma importância inalienável para verificarmos a actualidade em matérias
relacionadas com a prática arquitectónica disponível no mosteiro para
consulta dos próprios artistas.

346
Cfr. Joaquim Teixeira de Carvalho, A Livraria do Mosteiro..., pág. 98-99.

167
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

3.2.2. O Humanismo e a cultura vitruviana

3.2.2.1. A tradição filológica humanista portuguesa e a literatura


vitruviana

Encontra-se actualmente bem estudada a implantação e o impacto do


Humanismo em Portugal. Da produção teórica à reforma do ensino
universitário, a chegada de Cataldo a Portugal (1485), o regresso de Sá de
Miranda de Itália (1526), a publicação do «Epistola Plinii» de Martinho de
Figueiredo (1528), a «Oratio pro rostris» de André de Resende ou a
reforma da Universidade de Coimbra (1535-37) – e nesta a criação do
Colégio das Artes em 1547 – são alguns dos passos mais significativos
desta realidade.

O conhecimento e interesse pela teoria artística e arquitectónica


italiana em Portugal passou pelo seu uso e inclusão na totalidade dos
conhecimentos humanistas que tinham por base o estudo das fontes da
Antiguidade e dos textos que, de uma forma ou de outra, recuperavam esse
mesmo arquétipo cultural, tidos como fonte de todo o conhecimento
ocidental. Esta circunstância levou a que o primeiro interesse por escritos
como o de Vitrúvio se fizesse sentir nos ambientes de estudo das letras
clássicas, dentro de um perspectiva epistemológica geral e muito pouco
preocupada com uma leitura teórico-artística das fontes face ao seu uso e
importância – portanto, tido como qualquer outro texto antigo, como fonte
para um saber filológico, em sentido restrito, e cultural, em sentido lato.

É importante recordar que o nascimento do interesse pelo «antigo» e


o início da cultura humanista se situa ainda num ambiente gótico.
Exemplificativo desta situação é o facto de algumas das personalidades
humanistas dos últimos anos do século XIV e inícios do século XVI como
D. Diogo de Sousa, arcebispo de Braga, D. Diego Ortiz de Villegas, bispo
de Viseu ou mesmo Garcia de Resende – profundos conhecedores e
cultores da «bela antiguidade» – terem financiado e patrocinado obras
arquitectónicas de carácter ainda medievalizante. Como bem viu Pedro
Dias, «a estética renascentista não era assimilada na sua vertente plástica,
mesmo por aqueles que a praticavam e defendiam nos campos literários,
filosófico e político» 347.

Na literatura produzida pelos humanistas portugueses existem


poucos ecos do conhecimento de textos ligados às artes e à arquitectura,
destacando-se, de forma evidente, Vitrúvio como suma autoridade
347
Pedro Dias, «Notas para o estudo do emprego das ordens clássicas nos claustros quinhentistas de
Coimbra», Munda, pág. 4.

168
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

conservada desde a Antiguidade. A mais antiga referência ao texto


vitruviano encontra-se no inventário da biblioteca do arcebispo de Braga D.
Jorge da Costa (1485-1501), que esteve em Roma, pelo ano de 1500 como
«Betruvio de Architectura» 348. Se quisermos verificar o seu uso textual
encontramo-lo logo em Francisco de Melo no seu «De Incidentibus in
humidis» (1515-1520), a propósito do peso da cal, como observou Rafael
Moreira.

Com mais propriedade, o escrito vitruviano é referenciado nas


«orações de sapiência» da Universidade de Coimbra.
O discurso académico do humanista Hilário Moreira vale-se do seu
saber exemplificando, a dado momento, que «também o conhecido Vitrúvio
agradecia muito aos pais porque tinham entendido ser seu dever educá-lo
e instruí-lo nas artes liberais» 349. Mais explícito é Pedro Fernandes que
em 1550 se refere às artes nos seguintes termos, fazendo uso de fontes bem
mais actuais que a especificamente «vitruviana», assentes na mais valia do
estudo da Geometria : «Se repararmos em si, descobriremos ser muito
grande o que acompanha a geometria. Embora não me refira aos templos
augustíssimos dos deuses imortais, aos edifícios sumptuosos, cidades e
fortalezas bem protegidas, singular elegância das colunas – obras
Coríntias, Dóricas, Iónicas e Toscanas – aos limites dos campos, à
indústria dos agricultores e camponeses, embora não me refira àquele que
ousa afirmar que nada na terra existe sem uma certa medida geométrica,
porventura o grande Sócrates não a julgava extremamente necessária para
a estratégia militar ! Com efeito, costumamos fazer uso dela para a
colocação de acampamentos, ocupação de territórios, aumento e retirada
de batalhões e, finalmente, para a disposição das máquinas. Numa
palavra, sem a geometria não podem subsistir nem as vantagens, nem
mesmo a forma e beleza de todas as coisas, a qual reside nas proporções,
graça e simetria de todas as partes» 350.

No ambiente eborense, a «oração de sapiência» de Francisco de


Melo (1535) ao enumerar o «homo ad circulum» e o «homo ad quadratum»
valia-se do conceito de Protágoras, imagem central para o Renascimento,
podendo mesmo revelar – como afiançou Rafael Moreira – o conhecimento
da edição vitruviana de Cesar Cesariano, que inclui duas pranchas
ilustrativas deste princípio tornado imortal por Leonardo da Vinci e o

348
Rafael Moreira, A arquitectura do Renascimento no Sul de Portugal..., pág. 287.
349
Albino de Almeida Matos, Oração de sapiência de Hilário Moreira, citado em Pedro Dias, «Aspectos
da recepção das correntes estilísticas em Coimbra durante o Século XVI», A Sociedade e a Cultura de
Coimbra no Renascimento, pág. 121.
350
Maria Pinto Alvelos, Oração de sapiência de Pedro Fernandes em louvor de todas as Artes e
Ciências, citado em Pedro Dias, «Aspectos da recepção das correntes estilísticas em Coimbra durante o
Século XVI», pág. 121.

169
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

pensamento albertiano através da reprodução dos conceitos de


«commoditas», «necessitas» e «concinnitas» 351.

É dentro deste espírito filológico e cultural que fazem sentido as


encomendas que o infante D. Luís, irmão de D. João III, encarregou para as
traduções de Vitrúvio e Alberti.
D. Luís (1506-1555) é uma das lendas do ambiente humanista régio.
Conselheiro do irmão, amante das artes, das letras e da guerra, foi aluno de
Lourenço de Cáceres e de Pedro Nunes e chegou mesmo a redigir um
tratado sobre a quadratura do círculo e um outro escrito intitulado «Tratado
dos modos, proporções e medidas» 352. Tinha um interesse particular pela
Música e a Arquitectura, áreas intrinsecamente ligadas às matemáticas.
Como grande soldado que foi – participou na conquista de Tunes em 1535
– supervisionou projectos de fortificação e conheceu Benedetto da
Ravenna. Segundo Sylvie Deswarte, a viagem de Francisco de Holanda a
Itália poderá ter fornecido ao infante, seu protector, uma fonte directa de
informações militares 353. Partiu também da sua iniciativa a construção da
famosa «loggia» rusticada que em 1550 é adaptada a igreja da Misericórdia
de Beja, símbolo de um conhecimento arquitectónico erudito.

A primeira tradução encomendada pelo infante foi a do De


architectura de Vitrúvio ao matemático e cosmógrafo Pedro Nunes, seu
preceptor 354. Todavia, este facto por si só nada nos diz sobre as verdadeiras
motivações que levaram à sua tradução.
Pedro Nunes traduziu Vitrúvio mas também Sacrobosco, Pubáquio e
Ptolomeu. Henrique Leitão chama a atenção para o facto de o texto
vitruviano ter tido uma «grande importância científica no século XVI e no
qual se tratam, entre outras, diversas questões de mecânica. Pedro Nunes
refere-se a esta obra em algumas ocasiões, mas sempre circunscrevendo-se
aos temas científicos que são tratados no Livro IX» 355. Ora, o Livro IX
fala-nos, na introdução, das invenções de Pitágoras e de Arquimedes e, nos
seus capítulos, das seguintes matérias:
Capítulo 1 – O universo e os planetas
Capítulo 2 – As fases da lua
Capítulo 3 – O curso do sol através do zodíaco

351
Cfr. Rafael Moreira, A arquitectura do Renascimento no sul de Portugal..., pág. 236.
352
Cfr. Sylvie Deswarte-Rosa, «Espoirs et désespoir de l’infant D. Luis», pág. 246.
353
Sylvie Deswarte-Rosa, «Espoirs et désespoir de l’infant D. Luis», pág. 264-265.
354
Tal como este afirma na introdução ao «De Crepusculis liber unus». Cfr. Sylvie Deswarte, «Francisco
de Hollanda et les études vitruviennes en Italie», pág. 238. Segundo Rafael Moreira, é provável que Pedro
Nunes tivesse usado a edição latina de 1522, sendo posteriormente o seu texto levado por Juan de Herrera
para Madrid, devendo tratar-se do «pedro nuñez lusitano de arquitectura» segundo consta na lista
bibliográfica de Francisco de Mora, seu discípulo.
355
Cfr. Henrique Leitão, «Pedro Nunes, Leitor de textos antigos e modernos», Pedro Nunes e Damião de
Góis. Dois rostos do Humanismo português, pág. 45.

170
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Capítulo 4 – As constelações setentrionais


Capítulo 5 – As constelações meridionais
Capítulo 6 – Informações genéricas sobre Astrologia
Capítulo 7 – Descrição dos analemas
Capítulo 8 – Modelos de relógios e nomenclatura de inventos

Não há que duvidar que estas matérias são, com toda a propriedade,
as principais motivadoras de uma tradução, assuntos que interessavam quer
ao infante quer ao cosmógrafo régio.
Será numa perspectiva global da geometria como fonte disciplinar –
e não tendo em conta razões específicamente declinadas da arquitectura
«antiga» – que levam Pedro Nunes a colocar a par da Cosmografia e da
Astronomia, a Arquitectura na listagem das disciplinas algébricas inserta
no seu Livro de Álgebra.

Em 1552 o De re aedificatoria de Alberti ocupava o humanista


André de Resende, mencionando na sua História da Antiguidade da Cidade
de Évora que tinha a seu cargo igualmente uma tradução de dois livros
respeitantes a aquedutos 356. Se nenhuma destas traduções chegou a ser
dada à estampa – nem se sabe, com propriedade, se chegaram a ser
concluídas – é certamente dentro desta perspectiva humanista que devem
ser vistas e não como fruto de uma orientação específica para o campo da
arquitectura com preocupações de ordem eminentemente técnico-práticas.
Não nos parece que no Portugal de meados de Quinhentos existisse
um conhecimento claro que permitisse, porventura, ter como objectivo
imediato na tradução dos textos latinos para o português mais do que
preocupações de ordem especulativa e dentro do espírito humanista. Este
argumento tem sido negligenciado em favor de um interesse pioneiro por
parte da arquitectura nos ambientes cortesãos portugueses, o que não é
correcto dado que a visão mais fiel será vê-lo dentro de uma pluralidade de
saberes dos quais fazem partes os estudos da Geometria e, por
consequência, o interesse pela Arquitectura.

Rafael Moreira considera a hipótese de João de Barros ter sido o


primeiro humanista português a redigir um tratado de arquitectura
intitulado «Da instrutura das cousas» – texto que fazia parte de um
trabalho mais alargado, entretanto perdido, sob a designação de «Sfera» –
notando que a utilização do termo «instrutura» é um neologismo vitruviano

356
A menção à tradução albertiana é feita pelo seu biógrafo em 1593. A tradução do texto sobre
aquedutos pode reportar-se ao trabalho de hidráulica de Julio Frontino. Pode ser a obra que Juan de
Herrera levou para Espanha se a identificarmos com o «de la coserbación de los aquedutos en português»
que de novo aparece no rol de Francisco de Mora, segundo afirma Rafael Moreira, «A aula de
arquitectura do Paço da Ribeira e a Academia de Matemáticas de Madrid», pág. 73.

171
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

de «structura», ou seja, «máquina» 357. Não seria, evidentemente, um


tratado de arquitectura no sentido exacto do termo, com preocupações
estilísticas e estéticas, antes fazendo eco de um campo marginal da
arquitectura, provavelmente ligado à construção em sentido lato. Dele é
igualmente a mais antiga referência impressa a Vitrúvio, que aparece do
«Rópica Pnefma» dado à estampa em 1532.

Não obstante, para conhecermos os verdadeiras limitações da


utilização do texto vitruviano, podemos recorrer ao «Roteiro de Goa a
Diu» de D. João de Castro. Como observou Rafael Moreira, o célebre
humanista e navegador português segue Vitrúvio nos seus prefácios –
também no «Roteiro do Mar Vermelho» – cita-o e utiliza nomeclatura e
conceitos vitruvianos como o de proporção.
No contexto específico da arte de marear e defendendo que não é
suficiente, por si só, a experiência para fazer ciência – tratando, portanto do
binómio teoria-prática – cita-se Vitrúvio do seguinte modo: «Esta ciência
ou maneira de navegar está mal repartida pelos homens, que ou se põe em
idiotas, os quais por longo tempo e continuo exercício alcançaram muitas
particularidades, posto que com todos seus trabalhos nunca chegam a
ganhar autoridade em seu ofício, ou em pessoas que sem nenhuma
experiência, tendo muito cópia de letras e grande prática na ciência das
matemáticas, alcançaram a sombra desta arte e não a verdadeira ciência.
Logo como diz Vitrúvio, aqueles que numa cousa e na outra aprenderam,
como homens armados de todas as armas, mais asinha poderão alcançar
com autoridade aquilo que faz a seu caso e propósito» 358.

Um outro curioso e manifesto exemplo do uso de expressões «ao


antigo» descontextualizadas surge-nos quando aplica à escultura oriental
expressões como «istorias de romano», «lavrado de romano» ou «obra de
romano». Paulo Varela Gomes considera que humanistas como o referido
autor, «com romano ou romaniscos queriam significar não só este género
de escultura mas também o facto de haver nela um conteúdo mitológico-
narrativo, como sucedia com os grotescos renascentistas» 359. Fruto de um
interesse erudito, o termo «romano» é manipulado, conferindo-se-lhe uma
plasticidade que pretende cumprir um objectivo específico. De facto,
«confrontado com as realidades do Oriente, a autoridade que emanava do
De Architectura foi relativizada ao ponto de perder o seu poder, e até – por
reacção – de criar a estranha ideia de uma superioridade estética» 360.
357
Veja-se Rafael Moreira, «Arquitectura», XVII Exposição Europeia de Arte, Ciência e Cultura, pág.
311 e também em A arquitectura do Renascimento no Sul de Portugal..., pág. 290-291.
358
Citado em Silva Dias, Os Descobrimentos e a problemática cultural do século XVI, pág. 85.
359
Paulo Varela Gomes, Ovídio Malabar ou Uma Nave da Índia fabricada em Lisboa, pág. 5.
Agradecemos ao autor a consulta deste texto nunca publicado.
360
Rafael Moreira, «D. João de Castro e Vitrúvio», Tapeçarias de D. João de Castro, pág. 52.

172
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Parece-nos incontornável afirmar que Vitrúvio – e mesmo as teses


vitruvianas divulgadas por Alberti – foi amplamente conhecido pelos
humanistas portugueses mas permaneceu como referência erudita de um
mundo iluminado pela nova consciência da renascença. No entanto, pouco
impacto teve ao nível da teoria e prática arquitectónica como prova a
arquitectura régia – mesmo considerando a inspiração de algumas pranchas
de Cesar Cesariano. Nem o poderia ter, dadas as manifestas dificuldades
em transpor para a «praxis» arquitectónica o texto vitruviano. Se mesmo a
própria arquitectura italiana abandonou o vitruvianismo a favor de uma
nova teoria arquitectónica de raiz especulativa – levando à auto-extinção do
próprio vitruvianismo – muito dificilmente o escrito serviria a um mestre
português durante a primeira metade do século XVI para projectar um
edifício.
Nesta circunstância, o conhecimento generaliza-se apenas com a
publicação do «Medidas del Romano» do castelhano Diego de Sagredo em
1526 embora só Sebastiano Serlio fornecerá uma ideia do «antigo»
aplicável pela grande maioria dos mestres desconhecedores, de forma
directa, da realidade italiana.

Torna-se justo observar se as primeiras obras arquitectónicas


portuguesas modernas da primeira metade do século XVI ecoam o
conhecimento da tratadística erudita. A resposta é clara e distintamente
negativa. Desde os portais renascentistas na igreja matriz de Caminha,
datados de 1511, aos primeiros sistemas decorativos que João de Castilho
usa em Vila do Conde, Braga, Lisboa e mesmo em Tomar até à construção
dos primeiros claustros renascentistas, estamos em presença da entrada da
modernidade arquitectónica por via decorativa que não estrutural, fruto
essencialmente de mestres biscaínhos e franceses que, em estruturas
góticas, usam uma linguagem que aos poucos dominam. O mundo que
Sagredo representa está presente, mas será necessário esperar pela vinda a
Portugal do mestre italiano Francesco da Cremona para termos em Portugal
– e numa situação marginal – uma obra arquitectónica verdadeiramente
renascentista.

173
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

3.2.2.2. O «não-vitruvianismo» em Portugal

É incontornável que os humanistas liam e conheciam Vitrúvio tal


como davam mais atenção a certos capítulos do que outros, discutiam a sua
terminologia e serviam-se dele como fonte citada na sua longa lista de
autores antigos. Não obstante, a opacidade da sua teoria arquitectónica
nunca favoreceu os arquitectos ou teóricos da arquitectura. Se em Portugal
algo foi verdadeiramente compreendido do texto vitruviano, pouco passou
das ilustrações. Daí que se deva falar de um «não-vitruvianismo»
português.

Não existe nenhuma informação histórico-artística que indique, de


forma clara e distinta, um interesse pelo «vitruvianismo» em Portugal –
facto que não deve ser confundido com o interesse pelo «antigo». O
interesse por Vitrúvio faz parte de uma visão alargada e ampla que o
erudito humanista português teve pela cultura dessa «antiguidade perdida».
Cita-se Vitrúvio da mesma forma que Cícero ou Quintiliano, como fonte
histórica referente e referenciável a uma base cultural que se pretende
recuperar, reavaliar e adaptar ao mundo moderno.
As causas do «vitruvianismo», isto é, o tornar legível o texto original
seja através de um estudo filológico e/ou arqueológico e a sua reconstrução
moderna, está ausente em Portugal. Os trabalhos de um André de Resende
acerca das «antigualhas» romanas eborenses portuguesas, por exemplo,
devem apenas a esse estado de «stupor» pela Antiguidade Clássica e nada a
Vitrúvio. Os textos humanistas portugueses limitam-se a citar fontes
antigas como exemplo de erudição e sem qualquer preocupação pelas
questões que o texto vitruviano coloca sob o ponto de vista arquitectónico-
construtivo ou da teoria arquitectónica.

Em termos práticos, se o interesse por Vitrúvio surge da «mítica»


descoberta da versão «monte-cassiniana» em 1414, o texto permaneceu
«inútil» em termos práticos para o entendimento da arquitectura antiga,
pese embora os esforços por conciliar o texto com o trabalho arqueológico.
Mesmo as duas edições fundamentais do texto vitruviano ilustradas – a de
Fra Giocondo e a de Cesare Cesariano – pouco ajudaram a esclarecê-lo sem
que se renunciasse a algumas «normas» vitruvianas e se imaginassem
outras para colmatar as falhas do texto no que diz respeito à reconstituição
das ordens arquitectónicas. Não será por acaso que em 1530-1540 as
deficiências eram ainda assinaláveis, abrindo caminho ao primeiro tratado
que – embora referindo a «autoritas» vitruviana – não é simplesmente um
«comentário» ao texto antigo – o Livro IV de Sebastiano Serlio.

174
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Tudo isto não invalida que as edições ilustradas de Vitrúvio e


principalmente o «manual» de Sagredo não tenham desempenhado um
papel importante na aprendizagem, fragmentada e não estruturada, dos
novos modelos arquitectónicos. Só neste sentido se poderá considerar,
como afirma Rafael Moreira, que os textos de referência «vitruviana»
contribuíram para a renovação arquitectónica portuguesa e só nesta
perspectiva se pode dizer que «coube ao vitrúvio-cesariano juntamente
com o mais acessível Sagredo, o papel pioneiro de iniciar na linguagem
técnica e estrutural do Renascimento os arquitectos portugueses dos anos
de 1525-40». Mais do que à literatura artística e arquitectónica será com a
vinda para Portugal de escultores, pintores e arquitectos estrangeiros que se
promoverá uma verdadeira mudança e só a partir da segunda metade do
século XVI – com raras excepções – os mestres de pedraria «vestidos de
arquitectos» terão uma visão aproximada da nova estética italiana.

3.2.3. De Sagredo a Serlio: a influência da tratadística em


Portugal

3.2.3.1. O «Medidas del Romano» de Diego de Sagredo

A 2 de Maio de 1526 é editado em Toledo o Medidas del Romano de


espanhol Diego de Sagredo, a primeira obra sobre arquitectura redigida em
língua vernácula em toda a cristandade – exceptuando a edição em italiano
de Vitrúvio de Cesar Cesariano. Escrito paradigma da realidade europeia da
primeira metade do século XVI fora de Itália, o texto sagrediano obteve um
enorme sucesso quer na Península Ibérica quer em terras gaulesas, sendo
objecto de várias edições acrescentadas e modernizadas. Desde a primeira
edição toledana, ainda publicada em caracteres góticos, a importante
presença de ilustrações contribuíram para uma leitura mais inteligível da
nova linguagem apresentada.
O escrito sagrediano segue regras tradicionais da literatura da época
«à antiga», redigido em forma de diálogo entre o pintor León Picardo e
Tampeso – que se identifica com o próprio Sagredo – incorporando um
extenso rol de autores e a dedicação do texto a uma personalidade ilustre –
na circunstância o arcebispo toledano D. Alonso de Fonseca. Embora não
recorra directamente a Vitrúvio, funda-se na «autoritas» vitruviana como
razão e prestígio de um mundo novo. De bom tom com o Humanismo, as
fontes citadas são múltiplas mas as que verdadeiramente serviram de
consulta para a sua redacção foram os incontornáveis textos vitruviano e
albertiano 361.

Fernando Marías e Agustin Bustamante, «Las medidas de Diego de Sagredo», Sagredo. Medidas del
361

Romano, pág. 64.

175
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

As informações biográficas acerca da vida e obra de Diego de


Sagredo revelam um homem de charneira que pretende ser um humanista
letrado mas que vive ainda num universo anterior, num tempo contraditório
de mudança. Deve ter nascido por volta de 1490 em Burgos ou Yunclillos
de Toledo. As primeiras notícias dão-no como camarista da Universidade
de Alcala de Henares (1512) e posteriormente capelão do cardeal Cisneros
(1517). Aceitando o seu próprio testemunho literário, deve ter estado em
Itália – Florença e Roma – entre 1518 e 1521/22, ano em que surge
documentado na Catedral de Toledo trabalhando como desenhador de
arquitecturas efémeras. Se a sua obra imortalizadora foi publicada em
1526, é possível que Sagredo tenha morrido na peste de 1527 362. Conhece-
se o círculo de intelectuais com os quais privou: León Picardo – um dos
intervenientes das «medidas» – Cristobal de Andino e essencialmente o
escultor Filipe Bigarny, introdutor da linguagem renascentista em Burgos.
Esteve também muito próximo de importantes figuras do clero castelhano
como o cardeal Cisneros e o renovador artístico D. Alonso da Fonseca,
arcebispo de Toledo, a quem dedica o seu livro.

Fernando Marías e Agustin Bustamante – que analisaram e


estudaram criteriosamente as «Medidas del Romano» – concluíram que o
escrito é um tratado «pré-arquitectónico» na medida em que se limita a ser
uma introdução ao léxico clássico sem aprofundar a sua sintaxe. Isto é,
oferece-nos um novo vocabulário que se identifica, não com um novo
sistema construtivo baseado num cânone novo, mas com um programa
decorativo que pretende aplicar-se a sistemas arquitectónicos góticos. Uma
das provas irrefutáveis do não entendimento da matriz clássica é o facto de
entender a ordem arquitectónica em termos ornamentais. Um arquitecto seu
contemporâneo que quisesse edificar uma obra à maneira antiga não
encontraria nenhuma das essenciais normas clássicas no seu escrito. É um
texto que encerra em si mesmo um paradoxo, pois se se apresenta como
arquitectónico não supera a categoria, ficando longe do modelo «clássico»
que, nesse período, Machuca e Siloé já praticavam em Espanha 363.

Todavia, a validade e a importância do texto sagrediano justifica-se


por evidentes razões, desde logo, pelo seu claro objectivo pedagógico-
didático pretendendo justificar uma nova realidade estilística – o «ao
romano» – valendo-se da autoridade de Vitrúvio e do seu próprio trabalho
de humanista diletante e arquitecto decorador de estruturas efémeras,
rompendo de vez, fora de Itália, com as tradições tardo-góticas e abrindo
caminho a uma literatura mais especializada e esclarecedora.

362
Fernando Marías e Agustín Bustamante, «Las medidas de Diego de Sagredo», pág. 12-19.
363
Consulte-se Fernando Marías e Agustín Bustamante, «Las medidas de Diego de Sagredo», pág. 8-9.

176
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Dentro das suas mais valias destaca-se o seu contributo para a


oposição entre o arquitecto visto como um humanista e ciente do «antigo»
e o mestre pedreiro visto como um oficial mecânico, definindo-se assim os
dois campos de trabalho, de uma forma não discriminatória, ilustrados por
comentários como o seguinte: «Atenta bem nisto: não tenhas a presunção
de misturar romano com moderno, nem queiras criar novidades aplicando
os lavores de um peça em outra, ou dando aos pés as molduras da cabeça.
Pois conheço eu tal como tu um paroquiano da arte que numas janelas que
tomou para o peitoril as mesmas molduras do lintel. Pois que dizer de
outro que com soberba de saber tomou as medidas do capitel à base,
dizendo que aí lhe parecia muito bem e que os antigos o mesmo tinham
feito se se tivessem disso recordado. Outros, não em menor número,
aplicam aos embasamentos as coroas e dentilhões dos entablamentos» 364.

A novidade do texto sagrediano assentava na divulgação de uma


nova estética arquitectónica, um novo estilo que o autor traduz pela palavra
«romano». Apresenta-o como um conjunto de medidas que se aplicam e
pré-determinam alguns dos seus principais componentes, como bases,
capitéis e molduras, mas não se formula uma verdadeira teoria de uma
ordem arquitectónica. Um dos interlocutores do diálogo, Picardo,
identifica-o genericamente como ornato, decoração, mas o alter-ego de
Sagredo vai mais além e vê o «romano» como utopia da conjugação entre
«as obras da natureza e a fantasia do homem»: «Para ele, já não é só a
decoração ou o léxico a base do novo estilo e introduz três novos
parâmetros de juízo: a conveniente morfologia do vocabulário, quer dizer,
que cada parte deve ter uma forma preceptiva na sua configuração e na sua
combinação com as demais; a medida dessas formas interrelacionadas
proporcionalmente; e, por último, as formas arquitectónicas – à albertiana –
susceptíveis por si mesmas, como colunas, arcos ou frontões, de constituir
uma decoração» 365.

Fernando Marías e Agustin Bustamante chamam a atenção para o


facto de embora o «romano» seja, à época, tradicionalmente utilizado como
sinónimo de moldura arquitectónica ou ornato, portanto, não se referindo a
um edifício mas a um «modo» estilístico, pouco tempo depois autores
como Lazaro de Velasco – que traduz Vitrúvio cerca de 1550-1567 – ou
Juan de Arfe (1585-1587) têm já uma percepção clara do «romano» como
adjectivação arquitectónica: «Que a arquitectura romana foi imitada
decorativamente durante certo período e, sobretudo, por alguns dos nossos
arquitectos é um facto indubitável. Mas, também é verdade que, quase
contemporaneamente, se possuía uma imagem do romano e do antigo
364
Diego de Sagredo, Medidas del Romano, fl. IV. Tradução nossa.
365
Fernando Marías e Agustín Buatamante, «Las medidas de Diego de Sagredo», pág. 76-77.

177
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

muito mais rica e completa e, em definitivo, estritamente arquitectónica»


366
. Concluem assim que Sagredo se situava numa posição intermédia entre
os góticos «platerescos» e os arquitectos «ao romano» como Siloé.

À boa maneira da época, o autor não escapa à apresentação das raízes


eruditas que fundamentam o novo estilo, essencialmente através da
pronúncia euclidiana de base como fundamento científico da nova estética.
Assim, o novo estilo assenta na «proporção» mas não deixa de cair num
autêntico poço de contradições quando dá mais atenção à sua unidade
modular do que às inter-relações proporcionais entre os membros ou as
partes entre si. Isto porque o cânone sagrediano se é antropomórfico, a sua
preferência vai para o modelo de Filipe Bigarny que entra em contradição
com as medidas enunciadas pelas próprias fontes antigas, essencialmente
Vitrúvio, Gaurico e mesmo com o contemporâneo Luca Pacioli. Sagredo
descreve o módulo vitruviano (1/10) e o de Gaurico (1/9) mas não deixa de
afirmar que os «modernos autênticos» devem preferir o 9 e 1/3 utilizado
pelo escultor Bigarny, logo, aconselhando um cânone de raiz medieval e
utilizado na generalidade do Quatrocentos 367. Neste particular é um
homem do seu tempo, de formação medieval, descobrindo as luzes de um
mundo novo que ainda não compreende na sua totalidade.
Não é difícil verificarmos que Sagredo se baseou essencialmente na
tradição vitruviana-albertiana para a construção da sua teoria das ordens
arquitectónicas. No capítulo IV encontrámos as «medidas» propostas pelo
autor para a nova ordem estética. Inicia a sua análise pelas molduras das
cornijas, para as quais apresenta medidas uniformes para todos os cinco
géneros de colunas antigas que propõe: o Dórico, o Jónico, o Toscano, o
Coríntio e a coluna Ática. Uma vez mais, parte especialmente da linguagem
vitruviana, mas parece contradizer a sua própria regra quando trata o
balaústre como um género moderno e desconhecido da Antiguidade.
Concebe o balaústre não como peça autónoma mas como de conjunto, sem
medidas pré-determinadas e que pode ser utilizado quer em candelabros
quer em colunas «monstruosas». A influência albertiana está claramente
presente na caracterização dos capitéis – no Dórico, Jónico e Coríntio – não
deixando de utilizar graficamente as ilustrações «vitruvianas» de Cesariano
e mesmo de Fra Giocondo. Considera que o capitel coríntio poderá
apresentar variantes como o «itálico» e o «fantástico» e no que diz respeito
ao entablamento – que acertadamente divide em arquitrave, friso e cornija
– não o concebe como membro dependendo da ordem arquitectónica
aplicada, o que torna claro as limitações «clássicas» do texto sagrediano 368.
366
Fernando Marías e Agustin Bustamante, «Las medidas de Diego de Sagredo», pág. 75.
367
Sobre este assunto consulte-se Fernando Marías e Agustin Bustamante, «Las medidas de Diego de
Sagredo», pág. 79-89.
368
Não segue a proposta albertiana das três ordens arquitectónicas, nem as proporções estabelecidas. O
seu estranho «cânone» apoia-se em Volterrano (a partir de Plínio) modificando o Jónico e para as estrias

178
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Marías e Bustamante apresentam um conclusão inequívoca: «No seu


sistema a ordem da coluna clássica dilui-se; se a ordem é para o
vitruvianismo o elemento básico e organizador do edifício, para Sagredo
não: é sim o elemento fundamentalmente decorativo mais que instrumental
e modular» 369. Logo, não existe ainda uma consciência total da ordem
arquitectónica – base, coluna, entablamento – e as próprias estampas que
ilustram o texto provam este facto. É exactamente por esta razão que os
autores acima referidos o catalogam como um tratado «pré-serliano». O
que lhe interessa sobretudo é oferecer ao novo arquitecto uma indumentária
decorativa que possa usar, manipular e aplicar ao edifício a construir 370.
Reflectindo sobre o impacto na arquitectura castelhana do texto
sagrediano, apesar do sucesso que as reedições manifestam, os autores
referidos duvidam da sua utilidade em larga escala. Começam por afirmar
que não se pode falar de «sagredismo» pois a sua influência foi difusa na
arquitectura da época – encontrando apenas ecos na «escola» de Bigarny –
e embora presente nas bibliotecas de Toledo ou Herrera, as referências
teóricas ao texto ficam-se pelo enciclopedista Pedro Mexia e o teórico-
ourives Juan de Arfe: «Com tudo isto, não queremos dizer que as Medidas
del Romano não tiveram êxito mas sim que este é muito difícil de constatar.
O caminho seria comprovar se, através da sua publicação, se produziu uma
mudança nas medidas dos elementos arquitectónicos, ao romano, tomando
em linha de conta a aplicação das tabelas e conselhos do autor, tanto nas
construções bidimensionais dos edifícios, como nos retábulos espanhóis.
Isto é, se as medidas cumpriram o seu objectivo escrito: ser um registo de
medidas para aqueles que querem edificar ao modo antigo».

3.2.3.2. Sagredo em Portugal e o entendimento do «ao romano»

3.2.3.2.1. As edições portuguesas do «Medidas del Romano»

O Medidas del Romano foi objecto de três edições portuguesas


sucessivas, uma em 1541 e duas em 1542, saídas em Lisboa da prensa do
livreiro Luís Rodrigues. Seguindo de perto a edição primeva toledana,
apresentam novidades sob o ponto de vista gráfico, quer no que diz respeito
ao frontispício quer no que respeita às ilustrações do texto. Apresenta um
frontispício italiano, de raiz maneirista, decalcado de um livro veneziano de
1536, novas letras capitais e ao nível textual, destacam-se as adendas
francesas manifestas na inclusão de alguns galicismos, como «dorique» ou

parte das medidas do «vitrúvio» de Cesar Cesarino. Consulte-se Fernando Marías e Agustin Bustamante,
«Las medidas de Diego de Sagredo», pág. 95-124.
369
Diego de Sagredo, Medidas..., pág. 121.
370
Entre outras, Sagredo refere algumas regras «clássicas» como as correcções ópticas, a redução
dimensional das colunas quando sobrepostas, os portais de proporção dupla.

179
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

«corinte» 371. Não obstante, leva em linha de conta as modificações


introduzidas na primeira edição francesa que contrariamente ao que se
poderia pensar – não ajudam a clarificar o texto sagrediano.

A iniciativa da publicação coube ao livreiro e impressor Luís


Rodrigues, tido como o introdutor do estilo renascentista na imprensa
portuguesa: «A verdadeira importância da edição de Rodrigues reside na
tradução dos acrescentos franceses ao texto castelhano, de forma que para a
península ibérica ambas as partes resultaram desde então inseparáveis. Em
certo sentido, e demonstram-no as edições castelhanas posteriores,
Rodrigues invalidou a primeira edição castelhana e converteu a sua no
modelo a seguir a partir daí pelos impressores espanhóis» 372.
Documentado entre 1530 e 1554, foram-lhe confiadas edições dos
principais humanistas portugueses como André de Resende, João de
Barros, Damião de Góis, Garcia de Resende e o cosmógrafo régio Pedro
Nunes. Sabemo-lo viajado por Castela e Paris sendo de todo provável que a
edição portuguesa servisse um mercado mais vasto, o ibérico, dado que as
três impressões são em castelhano 373. O pouco espaço temporal entre as
edições – 10 de Junho de 1541, 15 de Janeiro e 15 de Junho de 1542 –
provam a visão comercial e ilustram o sucesso alcançado pela obra.

3.2.3.2.2. Sagredo e a realidade da arquitectura portuguesa no virar


da primeira para a segunda metade do século XVI

Impõe-se, desde logo, saber qual a validade de Diego de Sagredo


para a arquitectura portuguesa da década de 40-50. A resposta orienta-se
em dois sentidos distintos. Devemos começar por afirmar que, para a
arquitectura portuguesa de raiz erudita, a influência do texto sagrediano é
praticamente nula e está extinta e ultrapassada na viragem para a segunda
metade do século XVI. É importante também apontar o facto de não ser
conhecido qualquer comentário ou elogio às Medidas del Romano em
textos dimanados dos círculos eruditos, o que poderá pressupor que não era
tido nem achado como fonte clara da verdadeira «antiguidade» que se
queria renascida.

Francisco de Holanda parece incluir o próprio Sagredo nas críticas


aqueles que considera como os «corruptores do cânone vitruviano» e no

371
Cfr. Fernando Marías e Agustin Bustamante, «Las medidas de Diego de Sagredo», pág. 33-35. Rafael
Moreira avança a hipótese de Diogo de Torralva poder ter sido consultor técnico do livreiro, tendo em
conta a «adaptação dos desenhos e tradução dos acréscimos para castelhano».
372
Fernando Marías e Agustin Bustamante, «Las medidas de Diego de Sagredo», pág. 35. A edição de
Juan de Ayala de 1549, o mesmo que editará Sebastiano Serlio, segue a edição lisboeta e não a original
toledana.
373
Fernando Marías e Agustin Bustamante, «Las medidas de Diego de Sagredo», pág. 50.

180
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

célebre Auto da Avé Maria de António Prestes apresentam-se críticas a


ideias sagredianas 374 mas estas referências indirectas são um pouco vagas,
referindo-se a uma realidade visível de fraco entendimento das ideias
vitruvianas.

Se, grosso modo, Diego de Sagredo representa um mundo «proto-


renascentista» de ornatos e balaústres perfeitamente visível nas primeiras
décadas do século XVI, são pouco numerosas as obras onde podemos
encontrar ecos directos do manual sagrediano em Portugal. Na igreja da
Misericórdia de Lisboa, em 1534, o projectista utilizou capitéis de fantasia
com cabeças de carneiro muito próximos dos que se estampam no Medidas
del Romano (fl. Diiij verso), bem como colunas com bases à maneira de
patas de leão 375. Também próxima da linguagem sagrediana se encontra a
gramática renascentista que João de Castilho começa por introduzir no
Convento de Cristo em Tomar mas não se vislumbra uma influência directa
do tratado.

Fora dos círculos cortesãos, a utilidade do texto foi inequívoca para a


primeira metade do século XVI – considerem-se os portais proto-
renascentista minhotos – e continuará a ser utilizado até bem dentro da
segunda metade, não tanto para a arquitectura sob o ponto de vista
estrutural – nem o poderia ser face à nova realidade – mas através das artes
complementares como a escultura e, a um nível mais amplo, a arte
retabular quer em pedra, quer em madeira. No fim de um dos exemplares
da obra que descansa em Évora, incluem-se receitas de estofado e gesso,
em letra sebástica, o que prova que circulava entre decoradores e
entalhadores, como bem observou Rafael Moreira 376. Com isto queremos
dizer que em níveis culturais inferiores e com poucas ligações ao
conhecimento erudito, a aprendizagem da nova gramática renascentista fez-
se muito por culpa de «manuais de instruções» como o texto sagrediano, a
par das estampas e gravuras que circulavam pelo País. Neste sentido, seria
muito pouco provável que numa «oficina» como a de um Pero de Frias – na
qual deu os primeiros passos o filho Nicolau – este texto fosse
desconhecido. Este exemplo não é de todo ingénuo dado que a formação de
Nicolau de Frias, como de muitos outros mestres de pedraria e arquitectos,
se fez muito próxima da arte de lavrar a pedra e a madeira.

A este nível só a legibilidade do texto de Sebastiano Serlio e as


estampas nórdicas e maneiristas conseguirão, a partir da segunda metade da
centúria, destronar o ornato «ao romano» e a insipidez arquitectónica

374
Fernando Marías e Agustin Bustamante, «Las medidas de Diego de Sagredo», pág. 51-52.
375
Jorge Segurado, Da igreja manuelina da Misericórdia de Lisboa, estampa xxi.
376
Rafael Moreira, «Arquitectura», pág. 345.

181
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

renascentista sagrediana. Podemos relacionar directamente o entendimento


«sagrediano» do Renascimento com aquilo que nos documentos
contemporâneos se designava por «ao romano». Esta relação directa
assenta no facto de quer o texto quer a nomeclatura terem uma visão
fragmentária e acima de tudo decorativa ou ornamental da arquitectura
renascentista.

Embora o Medidas del Romano possa servir para caracterizar um


estádio inicial de penetração do formulário renascentista ainda parcamente
inteligível – e num ambiente goticizante – o seu uso deverá ter encontrado
muito mais sucesso junto a mestres escultores ou mesmo ourives. Fora
deste mundo fica, de forma evidente, toda a teoria enunciada por Diego de
Sagredo.

3.2.3.3. O «ao romano» como declinação do nosso «Primeiro


Renascimento»

A chegada da modernidade arquitectónica a Portugal identifica-se


claramente através da conjugação do «ao romano» e para a qual muito
deve ter contribuído – ou se se preferir, definido – o texto sagrediano.
Segundo os dados documentais conhecidos, a terminologia aparece pela
primeira vez em Espanha cerca de 1494 e 1505 e pouco depois em
Portugal, aquando de uma visitação à Igreja de São Martinho do Peso, no
Mogadouro. A 20 de Novembro de 1507 377 os visitadores crúzios mandam
fazer «pintar a parede do dito altar de boõas pinturas e tintas de obra
romana ou de imagens qual mais lhe prouver».

Fernando Marías e Agustin Bustamante fornecem-nos uma leitura


clara na qual o «ao romano» designava, essencialmente, um sistema
decorativo: «O uso desta terminologia estava destinada a estabelecer uma
clara eleição referente a uma decoração ou sistema de molduras específicas,
a um vocabulário concreto, numa altura em que poderia livremente optar
por um outro, o moderno ou gótico. Não aparece como referência a um
edifício mas sim como mera precisão de um modo estilístico, eleito de entre
as opções disponíveis; quando o modo romano se tornou completamente
usual e já não uma inovação, este uso restritivo perderá a sua vigência» 378.

Rafael Moreira considera que «provavelmente, a expressão teria


começado por definir as molduras típicas dos relevos clássicos (cimas,
equinos, escócias, toros, filetes, etc), tão diferentes dos bojudos colunelos

377
Pedro Dias, Visitações da Ordem de Cristo de 1507 a 1510. Aspectos artísticos, pág. 43.
378
Comentário em Fernando Marías e Agustin Bustamante, «Las medidas de Diego de Sagredo», pág. 74-
75.

182
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

dos chambrantes góticos; e só depois passaria a designar os ornatos que as


decoravam (óvulos, dardos, pérolas) estendendo-se aos motivos que
preenchiam os seus campos decorativos – os «motivos lombardos» (mais
do que verdadeiros «grotescos», com que muitas vezes são erradamente
confundidos) quer na horizontal (enrolamentos de acantos, com «putti» e
pássaros, medalhões ou vasos) quer na vertical (os montantes ou
pendurados, constituídos por pares de objectos diversos presos a uma fita
ou talo central emergente de um vaso ou amarrado a uma argola) –, até
acabar por ser aplicado aos temas icónicos normalmente associados a
estes» 379.

Pese embora a polissemia do termo, podemos definir dois grandes


significados para o «ao romano». Na generalidade, a obra «romana» refere-
se a um motivo decorativo ou ornamental ou a uma moldura arquitectónica
– embora a linguagem seja plena de ambiguidades. Na documentação
referente ao estaleiro hieronimita de Belém, são usuais expressões como
«uma coluna que leva em si um romano» que tanto pode significar uma
moldura como um ornato, enquanto que no contrato de João Lopes-o-Velho
com a Sé de Lamego se fala na conclusão dos «portaees na maneira e
modo que eram comecados com seu emtabollamentos os quaes
emtavollamentos sam d’obra Romana com seus emcorroamentos». Se no
contrato de 1529 380 para o solar de D. Luís da Silveira, em Gois – obra
projectada por Diogo de Torralva – a referência a «culunas cõ suas vasas e
capiteis bem laurados ao Romano de allgua boa obra e as colunas serã
Redomdas e Imteyras», ou a «colunas e vasas e capiteis de pedra dãçãa e
serã muy be lauradas ao Romã e as colunas Redomdas» pode parecer
revelar uma consciência estrutural do novo estilo, a documentação dos anos
60 e 70 referente a obras de João de Ruão confirma a tendência inicial e
geral ao enunciar dois postigos «de muldura Romana» para a obra da igreja
de Bouças de Matosinhos ou o «romano da abobeda» da capela de São
Domingos de Coimbra 381.

Podemos tomar como exemplo máximo desta realidade o contrato de


João de Castilho para a obra do claustro nobre em 1533 382:
«A crasta prjncipall tera dallto ss. de lageamento ate o ponto da
abobada trjnta e cinquo pallmos, e estas abobadas com seus emtulhos
Respalldos e portas ao liuel terã de grosso dous pallmos nos tardozes e os
Respalldos sera de pedra e call e posto que a ordenança e emlegimento
destas abobadas este emlegido com cruzeiros e chaues não serã senã de
379
Rafael Moreira, «Arquitectura: Renascimento e Classicismo», pág. 315-316.
380
Publicado por Vergílio Correia, Um túmulo renascença..., pág. 31-37.
381
Cfr. Documentação publicada por Quintino Garcia, João de Ruão. Documentos para a biografia de
um artista, pág. 81-83.
382
Publicado em Vieira Guimarães, O Claustro de D. João III em Thomar, pág. 50-52.

183
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

berço em volta Redonda com seus arquos somente em direito dos botareus
da dita crasta, os quaes mouerão das Represas asy como vã ordenados no
dito debuxo, e averã suas çimalhas a Roda de que as ditas abobadas ã de
mouer dambas as partes e serão dalgua boa moldura lavradas que be
pareça ao Romano e terão de sacada hu pallmo e dalto hu pallmo e tres
dedos, e o asento dellas sera por çima do ponto dos arcos e na outra parte
no mesmo direito dos ditos arcos serã lavrados dallgua boa obra chã ao
Romano, e terã de largo dous pallmos e dalto meo pallmo e as quatro
capelas que se ã de fazer nas quatro engas da dita crasta, serão pelo theor
e ordenança do debuxo com sua cruzarja ao Romano, com sua talha muy
ordenada e a chave prjncipal serã tres palmos e meo, e as outras de tres
pallmos».

O «ao romano» é significante e significativo, grosso modo, da


realidade arquitectónica portuguesa da primeira metade das primeira do
século XVI, antes da verdadeira tomada de conhecimento da ordem
arquitectónica clássica, como definidor de um novo estilo artístico ainda
não conhecido na sua amplitude. Em realidade, como há muitos anos
observou Pedro Dias, «as ordens arquitectónicas chegaram a Portugal
sobretudo através dos próprios artistas, durante o primeiro período de
vigência da estética de raiz clássica e daí as incorrecções praticadas pelos
construtores nacionais ou nacionalizados. Não tendo ideia do conceito de
ordem clássica, limitam-se a utilizar elementos isolados para fazerem
aquilo a que chamavam obra de romano» 383, situação que apenas muda
com a chegada de Sebastiano Serlio.

Numa outra perspectiva, Paulo Varela Gomes, partindo da segunda


Década da Asia e de outros textos – D. João de Castro para descrever os
templos de Elefanta e de Kaneri utiliza expressões como «istorias de
romano» ou «lavrado de romano» – apresenta-nos um curioso uso da
própria cultura «antiga» num contexto de defesa contra o «moderno» que
não deixa de alargar o usufruto de uma cultura humanista atenta a uma
linguagem ligado ao «romano» e «vitruviano»: «Por paradoxal que isso
possa parecer, a exuberante decoração indiana serviu a defesa do
Renascimento contra o moderno. Elogiando o romano da Índia, tinha-se em
mente a defesa do romano em Portugal. De facto, as apreciações
humanistas da arte hindu mostram claramente que a introdução de uma
gramática ornamental romanista na arquitectura portuguesa não foi
entendida na época como tendo trazido mais sobriedade ou mais
383
Pedro Dias, «Notas para o estudo do emprego das ordens clássicas nos claustros quinhentistas de
Coimbra», pág. 7.

184
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

simplicidade à arquitectura (conceitos que são do séc. XX ou italianos).


Pelo contrário, como tem sugerido Rafael Moreira e se pode também
demonstrar pelo sucesso espanhol do plateresco ou o sucesso, entre nós, do
tratado de Sagredo, o romano era antes de mais uma decoração culta, por
oposição ao naturalismo bruto do gótico final» 384.
A partir da segunda metade do século, o termo entra em declínio
como definição específica de um sistema decorativo sendo substituído pelo
termo «grotesco», numa altura em que a estética renascentista se impõe
definitivamente.

3.2.3.4. A «revolução serliana». A segunda metade do século XVI e


a teoria praticada como modernidade

3.2.3.4.1. O conhecimento teórico de Serlio

O contacto nacional com a obra de Sebastiano Serlio, concretamente


dos dois primeiros livros publicados – Livro III e IV – dá-se ainda na
primeira metade do século XVI. No seu «Da Pintura Antiga» Francisco de
Holanda vangloriava-se de ter sido o introdutor dos textos serlianos em
Portugal. Falando dos modernos, afirma no capítulo 43º que «o último
destes é Bastião Serlio, bolonhes, que escreveu da arquitectura, o qual me
deu na cidade de Veneza o seu livro da sua própria mão» 385. Não obstante
o auto-elogio, este facto deve coincidir com a generalização da obra do
teórico italiano, essencialmente a partir da segunda metade do século XVI
impulsionada pela tradução castelhana de Francisco de Villapando que,
misteriosamente pouco representada nos fundos actuais, entre 1552 e 1573
foi reproduzida em cerca de 3.000 exemplares.
A vasta lista de edições serlianas depositadas nas bibliotecas
portuguesas demonstra e acompanha a importância da obra e a longevidade
da sua influência. Conhecidas em Portugal foram as edições dos Livros III
e IV publicadas em Veneza e reeditadas em 1544 e 1551, a edição dos
cinco primeiros Livros de 1551, 1559, 1562 e 1569 enquanto que o Livro
VII só aparece no século seguinte, na sua edição veneziana de 1600, 1619 e
1663. Encontra-se igualmente a edição original dos Livros III-IV e dos
Livros I e II, (Paris, 1545). Um dado curioso, talvez justificável pelo facto
de ser mais acessível ao uso comum, é o facto de se conservarem raros
exemplares das edições castelhanas de Villalpando – apenas através de
reedições de 1563 e 1573 – certamente das mais divulgadas.
Circularam ainda edições nórdicas dos Livros III e IV editadas por
Pierre Coeck van Aelst (1539) e o «Libro Estraordinario» (Lyon, 1551) –
referência obrigatória para portais, retábulos e certamente para a
384
Paulo Varela Gomes, Ovído Malabar..., pág. 16.
385
Francisco da Holanda, Da Pintura Antiga, pág. 83, segundo a edição de José Feliciano Alves.

185
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

arquitectura efémera. Aliás, as gravuras deste último tomo encontram-se


ainda apensas à edição latina dos cinco primeiros livros (1569) e na dos
sete livros de arquitectura de 1589. Quanto às edições seiscentistas
generalizaram-se as de Giacomo da Franceschi (Veneza, 1600 e 1619) 386.

Bem mais visível do profundo sucesso do texto serliano em Portugal


é o recurso que António Prestes faz da sua obra, identificando-a com a
figura do novo arquitecto de raiz italiana que se impunha no país. No Auto
da Avé Maria testemunha-se o conhecimento do Livro IV de Serlio
chegando a transcrever-se – recorrendo à edição castelhana de Villalpando
– pequenos excertos e identificando a fonte:
«en toscano
muy ala suma
la escrevi al no perfuma
della el gran Sebastiano
fue la tinta, yo la pluma

y en siglos de edad dorada


por Villapando en España
fue traduzida y sacada
del Toscano, es sublimada
su traduction cosa estraña» 387.

A própria produção teórico-artística portuguesa utilizou, apreendeu e


plagiou Serlio, justificando-o como a mais importante fonte de inspiração
da tratadística italiana – De Francisco de Holanda a Mateus do Couto e
mesmo no manuscrito perdido de Pedro de Araújo.
Se se poderia esperar uma atitude desta natureza apenas por parte dos
iniciados na nova linguagem renascentista, sem acesso directo à realidade
vanguardista italiana, esta teoria cai por terra logo com a obra teórica de
Francisco de Holanda. Embora o autor tente disfarçar a sua fonte primeva,
a dependência de Holanda em relação à obra serliana, do qual afirma ter
recebido da própria mão, é já aglutinadora. Quando pretende definir as
ordens arquitectónicas segundo Vitrúvio, utiliza as medidas e proporções
do teórico bolonhês bem como o seu discurso valorativo, do «robusto» ao
«delicado». Como bem viu Sylvie Deswarte, chega a colocar na boca de
Miguel Ângelo passagens inteiras retiradas de Serlio, para além de se
inspirar nela em alguns desenhos que reproduz nos seus trabalhos 388.

386
Veja-se Marie Therese Mandroux-França, «L’image ornamentale et la litterature artistique importées
du Xve au XVIIIe siècle: um patrimoine meconnu des biblioteques et musées portugais», pág. 149.
387
Citado em Sylvie Deswarte, Les enluminures de la «Leitura Nova». 1504-1552, pág. 143.
388
Confira capítulo neste trabalho.

186
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Atente-se a um dos vários fragmentos que Deswarte utiliza como


termo de comparação, concretamente ao Toscano, retirado do Livro IV do
autor italiano e reproduzido no Da Pintura Antiga 389: «Quer-se que a
toscana seja a setima parte da sua grossura (com basa e capitel) tomada
na parte de baxo, chamada imoscapo; a altura da basa da metade
d’aquella grossura; e assi será o capitel, outro tanto a altura do
arquitrave, outro tanto a do zoforo ou friso, e outro tanto a da cornija, a
qual parece que hum pouco furta o simasio ao freso. Tem os membros de
pouca obra.
Quer-se para portas de cidades e fortalezas, e pontes, e portos, ou
moles de caises com obra rustica mizclada».
Veja-se agora a fonte original serliana:
«fol. 6vº
La colonna Thoscana doversi far di sette parti la sua altezza com la
base e’l capitello, togliendo tal misura ne la grossezza sua da basso.
(Ill. fol. 7)
Imo Scapo, cio è la grossezza de la colonna ne la parte da basso)
L’altezza de la base sai per la metà della colonna...
L’altezza del capitello sai come la base.
fol. 7vº
L’architrave sia di tanta altezza...
Il fregio dia d’altre tanta altezza,
(Ill. fol. 7 : zoforo, detto fregio)
& similmente la cornice...
(ill, fol. 7vº)
per esser questa opera molto soda & semplice di membri...
fol. 5
al parer mio, conviene a porte di cittá,
a porte di mare & altri simili
l’opera rustica ... meschiata ... sai piu conforme à la Thoscana, che
ad alcun’altra».

Para além das ordens arquitectónicas, outros exemplos estendem-se a


referências a arquitectos e personalidades importantes da arte italiana de
então, retiradas directamente do capítulo XI e da dedicatória serliana ao
duque de Ferrara, Ercole II do Livro IV.
Os manuscritos datáveis de meados da década de 70 denotam iguais
influências. O códice da Biblioteca Nacional recorre aos Livros I e II,
dedicados à Geometria e Perspectiva, chegando a mencionar «Sebastianus
Serlio bolonhes todas as feguras que escrusou no livro da prespectiva q
fez». Por sua vez, no «preposições matemáticas», o teórico bolonhês está

389
Cfr. Sylvie Deswarte, «Francisco de Holanda et les études vitruviennes en Italie», pág. 273-274.

187
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

presente até ao plágio, partindo-se essencialmente dos seus escritos para


compor um discurso euclidiano básico para a arquitectura. Embora outras
fontes, como Vitrúvio e Cataneo, sejam bem visíveis e o manuscrito
português desenvolva muitas das proposições serlianas – manifestando um
claro domínio das matérias que trata – as próprias ilustrações são na sua
maior parte devedoras ou copiadas frontalmente dos textos transalpinos.

A longevidade da sua influência não perde actualidade durante as


primeiras décadas do século XVII, como prova o «tractado de architectura
que leo o mestre e architº Matheus do Couto» datável de 1631. Os textos
serlianos – concretamente os Livros I, II, III e IV – são a base do
conhecimento teórico do arquitecto português. Citando o Vitrúvio de
Daniele Barbaro, Alberti, Palladio e Scamozzi, a regra geral que segue para
constituir a sua teoria da ordem arquitectónica depende quase
exclusivamente do escrito serliano – preferindo-o às opções propostas por
Palladio ou Scamozzi – justificando, de forma cabal, que mesmo ao nível
do ensino «régio», o texto serliano continua a ter posição incontornável no
ensino português da arquitectura moderna. Recorde-se que o escrito do
arquitecto régio serviria de apoio à «aula» de arquitectura régia e que data
dos inícios da década de 30 do século XVII, justificando também a este
nível, a influência que se observa ao nível da prática arquitectónica. O facto
de o arquitecto português citar longamente o texto albertiano e o texto
vitruviano comentado por Daniele Barbaro demonstra o domínio das
matérias teórico-práticas da arquitectura e só valoriza a importância de
Sebastiano Serlio quando as suas medidas são preferidas às demais –
Mateus do Couto chega mesmo a afirmar que só utiliza determinada
indicação de Palladio por os textos serlianos dela não tratarem. Como
afirma o autor a determinado momento, «Serlio colheo das melhores
antiguidades».
Um outro texto que poderá ter por base os escritos serlianos é o
perdido «manual de arquitectura» do arquitecto Pedro de Araújo, redigido
num ambiente periférico. Se tomarmos em conta o índice conhecido,
poder-se-á afirmar que grande parte das matérias teriam certamente
Sebastiano Serlio como referência prioritária:
1 – «Da Geometria» – inclui (Discurso contra os ociosos...; Prólogo
em louvor da architectura ; Da necessidade da arte de edificar ; Do modo
de proceder n’estes seis livros...)
2 – Das cinco ordens de columnas
3 – Da perspectiva
4 – Da mathematica
5 – Da fortificação
6 – Dos templos

188
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

3.2.3.4.2. O conhecimento prático de Serlio

Se o designado primeiro Renascimento português não teve uma


verdadeira consciência da ordem arquitectónica, servindo-se muitas vezes
de modelos próximos do manual prático de Diego de Sagredo como veículo
de inspiração do vocabulário clássico, salvo raríssimas excepções, «é com
Serlio que a ordem passa a ser entendida como cânone arquitectónico. Será
pelo estabelecimento de séries morfológicas de capitéis, primeiro, e pela
reconhecimento dos sistemas de proporções utilizados (ou não) em função
das ordens canónicas, depois, que poderemos estabelecer com rigor
científico estes importantes aspectos formais do nosso Renascimento»,
vertido já em Maneirismo pois «deixou muitas marcas profundas e de que
fizemos, tal como os franceses, primeiro uma leitura clássica, mas que
acabou por ser, como para vários países do mundo, um dos grandes
veículos do Maneirismo, em concorrência com a tratadística flamenga»,
segundo as sábias palavras de Horta Correia 390.
A presença da literatura de Sebastiano Serlio na arquitectura
portuguesa é não só vasta como aglutinante, atingindo quer obras de
carácter erudito, quer obras de carácter regional. As ilustrações serlianas
funcionaram para os mestres fora do círculo régio como uma «nova
cartilha» linguística, central para a imposição, compreensão e renovação da
modernidade arquitectónica. Das simples pranchas de portais e janelas, ao
designado «motivo serliano» ou à representação mais ou menos fidedigna
das ordens arquitectónicas, os Livros III e IV foram fontes essenciais para a
arquitectura nacional desde os meados do século XVI. A sua marca está
bem visível até mesmo na residual produção teórica portuguesa. Sebastiano
Serlio revela-se estrutural como fonte para a ornamentação arquitectónica,
para a compreensão da ordem arquitectónica «clássica» e como manual
teórico-prático de acessível entendimento para toda a franja de
profissionais. Como vimos anteriormente, a aposta na imagem gráfica, o
discurso claro sobre a áurea Antiguidade que se pretende reencontrar e a
simplicidade de escrita e da apresentação das normas da nova arquitectura
contribuiram para que, também em Portugal, a síntese moderna da nova
arquitectura se tenha realizado sob a sua égide. A perenidade do seu
formulário e as próprias características intrínsecas da arquitectura nacional
viveram durante século e meio com os escritos de Serlio entre mãos. Se a
visibilidade de algumas normas «vignolescas» servem de excepção à regra,
no seu todo, Vignola, Palladio e muito menos Scamozzi – todos eles bem
conhecidos nas altas esferas da arquitectura régia – não só nunca tiveram
espaço para se impôr, como nunca destronaram o teórico bolonhês como
fonte primária directa do «modernismo», estavamos tentados a dizer

390
Horta Correia, Arquitectura Portuguesa..., pág. 34.

189
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

«maneirismo» em Portugal. Considerou-se, e provar-se-á de seguida, que a


produção teórico-artística portuguesa conhecida utilizou, valorizou e
plagiou em toda a linha os tratados de Sebastiano Serlio – desde os escritos
sobre geometria e perspectiva à teoria das ordens arquitectónicas. Ora, a
sua influência directa é inatacável quando nos debruçamos sobre a
arquitectura nacional entre a segunda metade do século XVI e a primeira
metade do século XVII.

Tendo consciente que esta temática, por si mesma, mereceria um


estudo tão alargado quanto aquele que aqui se apresenta, numa breve
síntese, o uso do célebre «motivo serliano» fornecer-nos-á um ponto de
partida 391. Remontando as suas longínquas origens à capela Pazzi de
Filippo Brunelleschi, o artifício construtivo de triplo vão constituído por
lintel, arco semi-circular e lintel foi amplamente utilizado durante o período
maneirista italiano por arquitectos como Giulio Romano ou Andrea
Palladio, encontrando na arquitectura veneziana um local propício para o
seu amplo desenvolvimento. Sebastiano Serlio encarregar-se-á de o
imortalizar no seu tratado e por toda a Europa funcionará como «leitmotiv»
da nova arquitectura.
Podemos encontrar o «motivo serliano» espalhado por todo o País,
desde versões mais primárias e isoladas como no colégio eborense jesuíta
ou na fachada de Santa Maria de Setúbal, até ao seu uso como estrutura
base de alçado. Está também presente na designada Quinta das Torres em
Azeitão ou na capela de Bom Jesus de Valverde, em Évora. Como
constituinte de piso térreo encontra-se na nave da igreja do Espírito Santo
de Évora e é «maxima moralia» no pano de parede do claustro nobre do
Convento de Tomar, duas obras ligadas ao arquitecto régio Diogo de
Torralva. Como demonstrou George Kubler há quase meio século 392, as
pranchas serlianas do Livro IV (fl. XXXI) e Livro III (fl. LXXIIvº) foram
fundamentais para debuxar uma das obras-primas da arquitectura europeia
deste período. Um outro erudito uso do mesmo motivo encontra-se na
capela das Onze Mil Virgens, projectada por António Rodrigues. Releve-se
o facto de todas estas obras serem devedoras a «traças» de mestres e
arquitectos régios. O melhor exemplo regional é, com toda a certeza, a
fachada da igreja colegial do Carmo, em Coimbra, datada dos finais do
século XVI. Mesmo o arquitecto italiano Filippo Terzi – discípulo de
Girolamo Genga, um dos grandes mestres do maneirismo transalpino – que
conclui uma boa parte do claustro nobre do Convento de Cristo de Tomar,
não dispensa o «motivo serliano» como estrutura base para projectar o
claustro do colégio crúzio de Santo Agostinho em Coimbra. A própria

391
O seu uso em grande escala por Palladio e a fortuna do «Palladianismo» levou a que a historiografia
inglesa o designe por «motivo palladiano»
392
Cfr. George Kubler, Arquitectura portuguesa chã..., pág. 16 a 26.

190
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

arquitectura régia chegou a reinventar o «motivo serliano», conferindo-se


um aspecto no mínimo original, transformando os lintéis laterais em
amplos janelões rectangulares como se observa nos claustros do
Sacramento de Alcântara e de São Domingos de Benfica – duas obras
certamente projectadas por Teodósio de Frias. A fortuna da «serliana»
pode ser também avaliada como motivo avulso nas estruturas retabulares
maneiristas, quer como componente cenográfico de um motivo figurativo,
quer como pequeno ornato ou micro-arquitectura, como se encontra, a
título de exemplo, nos baldaquinos de coroamento dos púlpitos da igreja
crúzio do Colégio de Santo Agostinho.

O seu maior contributo sob o ponto de vista tratadístico, ainda muito


pouco estudado, diz respeito ao uso e compreensão das ordens
arquitectónicas tal como foram sintetizadas pelo teórico italiano. Foi
através de Serlio, e só a partir dele, que grande parte dos arquitectos e
construtores portugueses entenderam o sistema da ordem arquitectónica
clássica. Em Portugal, tudo se iniciou pela representação do Coríntio que
vem substituir os capitéis «corintizantes» ou de «invenzione» de raiz
sagrediana, depois pelo Jónico e finalmente pelo Dórico e Toscano que só
aparece verdadeiramente legível a partir dos finais do século XVI. Se este
entendimento pode parecer, à partida, contrário à lógica normal das coisas,
a evolução foi claramente esta, onde a imagem «al’antico» conduziu a uma
progressão inversa na escala das ordens, à semelhança do que aconteceu na
Itália de Quatrocentos.
A evolução dos capitéis corintizantes para o Corínto foi atingida
rapidamente e através do modelo proposto por Serlio. Contudo, como
ordem ornamental por excelência, esta evolução fez-se em grande escala
através das estruturas retabulares quinhentistas, em pedra ou madeira.
Bastar-nos-ia uma breve análise à escola de Coimbra e à oficina de João de
Ruão para provar esta realidade. Por sua vez, o Jónico foi a ordem
arquitectónica que mais fortuna alcançou na arquitectura da segunda
metade do século XVI, na Corte através da obra de Jerónimo de Ruão mas
com mais propriedade nos círculos coimbrão e nortenho. Todavia, quer o
Jónico castilhiano quer o Jónico «luisino» portuense e da minhota escola
dos Lopes nunca atingiram o grau erudito da tratadística italiana. Existe
uma razão simples que justifica esta realidade – por um lado a sua
dificuldade de execução técnica em todos os seus componentes, por outro,
a facilidade com que a própria ordem arquitectónica pode ser reproduzida
apenas usando os elementos base do capitel, especialmente quando
integrado numa superfície parietal. Por esta razão, um estudo aprofundado
do Jónico nacional provará o seu «desregramento» ou «licença» face aos
modelos italianos. Por último, essencialmente a arquitectura régia utilizou
com rigor o Dórico, muitas vezes dispensando os fustes canelados,

191
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

portanto, conferindo-lhe um aspecto «pseudo-toscano». A ordem dórica tal


como o Livro IV a enuncia encontra-se transcrita nos capitéis e pilastras da
igreja da Graça em Setúbal – da provável autoria de António Rodrigues –
mas o exemplo máximo é mesmo a fachada de São Vicente de Fora.
Filippo Terzi conferiu às pilastras lisas do frontispício as medidas e
molduras do Dórico serliano. No que diz respeito aos entablamentos, a
tripartição em arquitrave friso e cornija é usada desde muito cedo, partindo
igualmente do texto serliano, embora o friso contínuo e desornamentado
seja o mais comum e a cornija, por natureza, mais fiel e ornamentada.
Recorre-se, todavia, a modelo único para qualquer das ordens
representadas, evitando as propostas múltiplas compósitas. No que diz
respeito às bases, em todas as regiões, o modelo estandardizado da «base
ática» é solução aplicada a qualquer uma das ordens. Embora muitas
claustros e estruturas arquivoltadas de igrejas assentem em colunas
«pseudo-toscanas», é de extrema dificuldade encontrar uma transcrição
clara das normas serlianas tal como enunciadas no Livro IV. Uma excepção
à regra encontra-se, contudo, no interior da igreja de Nossa Senhora do
Pópulo, em Braga, riscada pelo mestre portuense Manuel Luís. Enfim, a
utilização do rusticado ou do almofadado rústico seguiu as directivas
serlianas e foi essencialmente utilizado pela arquitectura militar. Apenas no
Alto-Minho, a arquitectura dita «polida» teve um carinho especial pelo
rusticado, fruto da arte da «escola» dos Lopes.
A utilização avulsa das estampas dos livros de Sebastiano Serlio
encontra também grande divulgação através da sua aplicação a portais e
janelas um pouco por todo o território nacional. Essencialmente na segunda
metade do século XVI, os Livros III e IV – mas também o Livro
Estraordinario – forneceram motivos replicados insistentemente em
galerias claustrais ou fachadas retabulares. Dos colégios universitários de
Coimbra aos claustros de São Gonçalo de Amarante ou Santa Marinha da
Costa em Guimarães, os portais de cantaria rematados por cimalha ou por
frontão triangular serviram para decorar espaços com a nova linguagem
italiana, posteriormente reforçada com as influências «nórdicas». Um
exemplo do duplo uso dos textos serlianos, quer no que diz respeito ao
ornato, quer no que diz respeito às regras arquitectónicas encontra-se, por
exemplo, no portal da igreja de São Salvador de Moreira da Maia, riscada
por Gregório Lourenço – o mestre nortenho utilizou a solução estrutural
serliana de compor um par de colunas sob pedestal único e aplicou ao terço
inferior das colunas um motivo geométrico de molduras octogonais e
hexagonais retirado da lâmina XIII do Livro III. Um bom exemplo como
nas primeiras décadas de Seiscentos, o escrito do teórico bolonhês
continuava a ser bem utilizado nos círculos fora da Corte, local onde Serlio
era ainda a fonte teórica básica para completar a formação dos «aprendizes
de arquitectura» da aula régia da Ribeira.

192
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

3.2.4. O ensino da Arquitectura em Portugal: da aprendizagem


do «antigo» à «aula de arquitectura»

3.2.4.1. A aprendizagem do «antigo»

3.2.4.1.1. A vinda de artistas estrangeiros para Portugal

É facto irrefutável que a introdução das fórmulas renascentistas em


Portugal se ficou a dever mais à vinda de arquitectos e artistas estrangeiros
do que ao estudo e entendimento da mesma estética através dos textos
teóricos ou à existência de uma diáspora artística. Na realidade, a partir da
segunda década de Quinhentos chegam a Portugal vários artistas,
essencialmente biscaínhos e franceses atraídos pelo enorme mercado
suscitado pelo ambiente dos Descobrimentos e com a sua riqueza aplicada
em obras de regime como os grandes estaleiros nacionais de Belém ou
Tomar.

Na primeira metade do século XVI, a imposição de modelos


arquitectónicos modernos é visível mas fatalmente episódica. Recorde-se
alguns dos exemplos mais significativos.
Se exceptuamos a problemática em torno da vinda de Andrea
Sansovino a Portugal, um dos arquitectos estrangeiros que mais poderia ter
contribuído para a divulgação de uma verdadeira arquitectura de raiz
renascentista foi o italiano Francesco da Cremona. Veio trabalhar para o
cardeal D. Miguel da Silva, prelado de formação humanista que tinha
desempenhado as funções de embaixador de Portugal no Vaticano entre
1505 e 1525 – chegando a contactar com grandes vultos do Renascimento
como Rafael e Ticiano e a quem Baldassare Castiglione dedicou o célebre
Il libro del cortegiano. O mestre italiano foi o responsável por obras
verdadeiramente fundadoras da nova arquitectura como o claustro da Sé de
Viseu (1528), a capela de São Miguel-o-Anjo e a igreja de São João da Foz
do Douro, no Porto, seguindo a tradição das igrejas quatrocentistas
italianas, repousando o seu plano sobre os esquemas de Alberti, com corpo
rectangular de três naves e cinco tramos e uma galilé a antecedê-lo.
Destaca-se o entablamento dórico em que se apoia a cúpula da capela-mor,
certamente o primeiro testemunho do emprego correcto das ordens
arquitectónicas no nosso país 393.
Todavia, e não podemos deixar de o afirmar, não existem reflexos
directos e evidentes dos seus modelos na arquitectura nacional. Atente-se e
repita-se que se está a raciocinar tendo em conta a época e numa

393
Sobre Francesco da Cremona consulte-se o pioneiro estudo de Rafael Moreira, «D. Miguel da Silva e
as origens da arquitectura do Renascimento em Portugal», Mundo da Arte, pág. 5-23.

193
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

perspectiva da plantarização de um novo formulário arquitectónico.


Francesco da Cremona é, por mais que não o queiramos ver desta forma,
um caso isolado e mesmo os contactos com mestres italianos a partir da
centralidade da Corte relacionam-se, acima de tudo, com questões do foro
da arquitectura militar e defesa das praças avançadas do Império.

Um dos balões de ensaio a que podemos recorrer para verificar a


penetração do novo formulário renascentista é a realidade coimbrã da
primeira metade do século XVI, com a chegada à cidade de Nicolau
Chanterenne, Odart, João de Ruão e os irmãos Castilho entre muitos outros
nomes pulverizados pela documentação. Sem pôr em causa a importância
da obra de João de Castilho e Nicolau Chanterenne em Coimbra e Belém,
concentremo-nos em João de Ruão e Diogo de Castilho que ficam pela
cidade e que se responsabilizaram por obras de carácter eminentemente
arquitectónico.
Diogo de Castilho é o grande mestre de pedraria entre a década de 30
e 70 na cidade de Coimbra. A construção dos colégios universitários que
projectou e supervisionou, bem como os dois debuxos não concretizados
para o importante Colégio da Companhia de Jesus demonstram o seu papel.
Não obstante, está provado que a sua passagem da linguagem tardo-gótica
para a renascentista foi suave e em linha de continuidade. O modelo da sua
obra-prima, a igreja do Colégio da Graça na rua da Sofia teve por base
Santa Cruz de Coimbra que o mestre fez evoluir para as novas formas
renascentistas. O designado «modelo castilhiano» de claustro é mais uma
«envolução» da época do que uma influência de modelos mais avançados
estilisticamente como o de Francesco da Cremona em Viseu.

É actualmente incontornável a visão da obra do mestre normando


João de Ruão para além das fronteiras da estatuária. Ainda na primeira
metade do século XVI realizou um conjunto de obras que revelam, de
alguma maneira, um entendimento avançado do formulário moderno. O
templete do Claustro da Manga e a «Porta Especiosa» são obras ímpares do
Primeiro Renascimento nacional. Se não seguem ainda as normas
tratadísticas não são, pelo contrário, obras de um mestre que desconheça a
linguagem italiana, dado que o seu aspecto é claramente quatrocentista.
Edificadas na primeira metade da década de 30, o templete incorpora ainda
um lado medievalizante na inclusão de um articulado de arcos botantes,
despidos da sua função estruturante, entre o corpo central e as quatro
capelinhas. Por sua vez, a «Porta Especiosa» traduz à maneira antiga um
arco triunfal em que os esquema de «loggias» sobrepostas faz recordar
exemplares posteriores de Urbino e Nápoles mas mantendo a mesma
característica: a transposição de uma obra antiquizante para uma nova

194
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

função sem ligação a modelos arquitectónicos concretos e verdadeiramente


assumidos.

No ambiente cortesão, destacam-se as figuras de João de Castilho e


Miguel de Arruda. Pese embora sejam responsáveis por alguns dos
melhores exemplos do Primeiro Renascimento nacional, a consciência da
modernidade ainda não se encontra presente na sua plenitude, sendo as suas
produções arquitectónicas obras ainda marcadamente experimentalistas.
O primeiro edifício pensado como um todo dentro da ideologia e
estética moderna surge dentro do ambiente cortesão e relaciona-se com o
episódio da ida da corte joanina para Évora – a obra-paradigma do «estado
da arte» é a igreja do Convento de Graça de Évora, datável de cerca de
1535 e da autoria provável de Miguel de Arruda. Outros trabalhos dentro
do mesmo espírito são a igreja de Bom Jesus de Valverde, a «loggia» do
mercado de Beja, a igreja de Nossa Senhora da Conceição de Tomar.
Todavia, nenhum destes edifícios reflecte ainda a influência de um
conhecimento claro da nova arquitectura quinhentista dimanada
imageticamente, a título de exemplo, pelas estampas serlianas e muito
menos por qualquer tratadística italiana pós-vitruviana.

Podemos seguir a evolução do Primeiro Renascimento português –


bem como as suas limitações – através da sua figura mais representativa,
João de Castilho. Realizou a transição entre a realidade gótica para a
modernidade renascentista sem nunca ter mais do que informações
indirectas acerca do novo estilo que desenvolve. Partindo da obra
nabantina, como afirma Rafael Moreira, «a genialidade de Castilho
manifesta-se no modo como, munido de escassa informação artística, sem
referências eruditas a Itália como modelo e ignorando o culto do antigo, foi
capaz de criar uma maneira de conceber e compor estruturas espaciais,
murárias e planimétricas mais de acordo com a ideia de romano do que até
então se fizera» 394. Tomar, dos claustros de Santa Bárbara e da Hospedaria
ao destruído projecto para o claustro nobre, aponta para uma evolução
linguística que nasce fruto de uma experiência pessoal e não de uma
compreensão das fontes teóricas renascentistas. Não obstante, se João de
Castilho ultrapassa já a linguagem sagrediana – Rafael Moreira vê a
influência de Cesariano na Igreja de Nossa Senhora da Conceição 395 –
ainda não chega a entender Serlio.

Rafael Moreira, A arquitectura do Renascimento no sul de Portugal..., pág. 534.


394

Rafael Moreira, A arquitectura do Renascimento no sul de Portugal..., pág. 560, vê a influência em


395

um dos tipos de átrio da casa romana no Livro VI, capítulo 3.

195
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

3.2.4.1.2. Realidade e quimera na problemática das viagens de


aprendizagem a Itália

Tornou-se praticamente uma lenda da historiografia portuguesa as


bolsas que D. João III teria destinado para a ida e aprendizagem em Itália
de artistas portugueses que, formados na modernidade artística e
arquitectónica transalpina, regressariam e tornar-se-iam no factor de
desenvolvimento da nova estética. Todavia, os dados concretos que se
conhecem tratam não de artistas mas de outras áreas ligadas ao Humanismo
português. Essa realidade é faltalmente quimérica. Foi, de facto, uma
importação da realidade humanística que se quis imputar à arte.

As provas existentes da presença de portugueses em Itália na


primeira metade do século XVI não referem nenhum dos principais mestres
de pedraria/arquitectos régios nem sequer futuros praticantes da arte de
edificar. Os parcos exemplos tratam de diletantes da arte com formação
humanística, da qual resulta o seu específico interesse. É importante dar
relevância a este aspecto para pôr de lado quaisquer confusões em relação a
esta matéria, dado que a prática constante da arquitectura difere de um
interesse esporádico pela mesma – de muito agrado e aplicabilidade para
quem tinha interesses no campo da matemática e geometria ou fascínio
pelo «antigo». Tomemos como exemplo duas personagens amplamente
citadas – Gonçalo Baião e Duarte Coelho.

Fidalgo dureense e corregedor do Porto, Gonçalo Baião 396 era


cavaleiro da casa do infante D. Henrique e esteve em Itália provavelmente
depois de 1540 397. O episódio mais conhecido trata da realização de uma
monumental maqueta do Coliseu de Roma para D. João III, segundo o
próprio informa em 1547: «Quanto as cousas que eu dise a V. A que vyra
em Italia e em outras partes, nomeandolhe alguas que eu entendy podellas
fazer em sua perfeiçã dellas, dey huu apontamento a V. A em Almeirim e
me dise que folgaria de as ver; que lhe fezese o Culuseu de Roma em huu
modello pequeno, o qual eu faço em grandura de trinta palmos em roda e
tenho muita parte delle feito e vay em sua perfeiçã e asy as outras cousas
que jaa farã todas acabadas se a obra do Culuseu nã fora em sy tamanhya

396
Os dados fundamentais sobre Gonçalo Baião foram publicados em Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo
I, pág. 92-97. O autor considera ser provável que seja o mesmo que cerca de 1555 é tesoureiro-mor da
casa de Ceuta.
397
Rafael Moreira colocou a hipótese de ser ele o «certo home engenhoso, natural da cidade do porto q
andara muito em França e Itália» e que D. Manuel enviara aos Açores com o desenhador Duarte
D’Armas em 1501.

196
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

feita de cousas muy pequenas que sã necessarias pera se bem ver e


entender; traguo oficiaeis ate tudo acabar» 398.
Que o interesse de Gonçalo Baião pela antiguidade é real prova-o
também – não só os desenhos de pormenor que deve ter recolhido em
Roma para fabricar o modelo – a posse de livros acerca da arquitectura,
tendo-lhe pertencido um exemplar assinado da edição latina de 1512 do De
re aedificatoria de Alberti 399.
O documento que refere a sua viagem à península itálica dá conta de
uma vistoria que realizou ao mosteiro das freiras clarissas de Vila do
Conde, onde relata ao monarca como estudou a forma de canalizar água
para abastecer o complexo e a necessidade se concluir a cercadura de um
dos jardins. Quer por esta visita quer pela sua presença no mosteiro da
Conceição de Matosinhos – onde afirma ter dado ordens, entre outras, para
se lajear o alpendre à porta da igreja, fazer um púlpito e outras obras no
refeitório – nada indica que tivesse prática na arquitectura sendo de todo
provável que fosse uma espécie de visitador a mando régio com
conhecimentos na área.

No que concerne a Duarte Coelho, já falecido em 1553, também com


grande dificuldade se poderá considerar um praticante da arte
arquitectónica. Foi essencialmente um navegador com carreira firmada na
Índia entre 1509-1527, considerando Rafael Moreira que deve ser a ele que
se refere Tristão Vieira de Castro quando afirmava que «veo ter a Galiza,
donde passou ás guerras de Nápoles, e peregrinou muitos annos fora da
pátria, aonde aprendeo a arte da fortificação e Arquitectura» 400.
Sabe-se que em 1529 acompanhava João de Castilho em vistorias a
algumas praças de África tido como «pesoa que amdou muyto em Italia e
em outras partes, omde vio fortalezas e comcertos dellas e assy muros
dallguas cidades e villas, em tall ordenança quall comveem pera toda
seguridade e outras cousas semelhantes de gramde concerto e segurança e
tem experiencia e conhecimento destas cousas e da maneira em que se
podem milhor segurar e fazerse» 401. O documento é explícito sobre o seu
papel de consultor no campo da defesa militar, fruto da sua experiência, e
por essa mesma razão é indicado para acompanhar o mestre Castilho.

Em última instância, os viajantes a Itália que tinham interesses por


estas matérias seriam acima de tudo diletantes com interesses particulares e
diversificados em relação à arquitectura, inflamados pelo conceito
398
A 26 de Fevereiro de 1553 D. João III concede-lhe uma tença anual de 20.000 reais tendo em conta «a
despesa que fez no Coliseu e outras cousas de meu serviço, que fez por meu mando». Sousa Viterbo,
Dicionário..., Tomo I, pág. 522.
399
O exemplar encontra-se na Biblioteca Municipal do Porto. BMP, Reservados, Y-1-50.
400
Rafael Moreira, A arquitectura do Renascimento no sul de Portugal..., pág. 466-467.
401
Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo I, pág. 215-216.

197
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

vitruviano que apaixonava reis e humanistas mas nunca profissionais da


área específica em causa, como prova cabalmente Francisco de Holanda.

Provavelmente, a personalidade que mais vincou esta «quimera» foi


Francisco de Holanda, também ele mais um intelectual que se vê a si
mesmo como equivalente ao artista-arquitecto «à italiana» do que um
verdadeiro profissional 402. Nos finais da década de 30 partiu para Itália e aí
contactou com grandes figuras do Renascimento italiano, destacando-se o
seu histórico encontro com o «divino» Miguel Ângelo. Não deixou de
recolher inúmeras informações acerca da arte e cultura italianas,
impulsionado pelos seus mestres humanistas. Sylvie Deswarte – a quem se
deve o profundo estudo que hoje temos da obra «holandiana» – demonstrou
que o português tinha já uma formação importante antes de empreender a
sua viagem – conhecia o tratado de Alberti e o Epigrammata Antiquae
Urbis – mas nunca chega a vê-lo como arquitecto no sentido «moderno» do
termo. Tornado a Portugal, as suas intenções de representar um papel
central na corte joanina não se concretizam em obra feita – movendo-o
provavelmente ao célebre irónico lamento de que no nosso país já todos
conheciam o «modo italiano».
A sua contribuição para a História da Arte portuguesa é
historicamente relevante mas contemporaneamente nula no que diz respeito
à execução de projectos arquitectónicos de sua autoria. A sua figura e o
destaque que lhe é dado pelos seus importantes ensaios teóricos que redigiu
– a todos os títulos vanguardistas – colidem com a verdadeira faceta
manuscrita e não divulgada da sua obra durante este período.

A partir da segunda metade do século XVI, a presença de arquitectos


portugueses a estagiar em Itália é proposta pela historiografia artística com
maior probabilidade. Um dos seus defensores é Rafael Moreira que avança
esta hipótese referindo alguns mestres portugueses que teriam ido
completar a sua aprendizagem a território italiano, numa estadia
patrocinada pela Corte e que duraria de três a quatro anos. Avança os
nomes de António Rodrigues (cerca de 1560-1564), Baltasar Arruda (1566-
1567), João Baptista Lavanha (antes de 1570) e Baltasar Álvares antes de
Maio de 1579 403.

402
Sobre Francisco de Holanda veja-se capítulo neste trabalho.
403
Cfr. Rafael Moreira, «A aula de arquitectura do Paço da Ribeira e a Academia de Matemáticas de
Madrid», pág. 67.

198
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Os únicos casos firmemente documentados são os de Simão de Ruão


e de Baltasar Arruda – os dois da década de 60.
Segundo um relato a partir de Roma de um frade crúzio, em
Setembro de 1566, «Simão de Ruão, filho de João de Ruão se partiu os
dias passados desta corte para Alemanha» 404. A sua aprendizagem foi
virada para a fortificação – contrariamente ao irmão, Jerónimo, embora
tenha também desempenhado funções análogas sob a alçada de Miguel de
Arruda. Sabe-se que em Outubro de 1567 está de novo no reino, enviado ao
Porto para estudar a localização do forte de São João da Foz 405, mas logo
depois parte para a Índia, documentado a trabalhar na defesa de Onor ao
tempo do vice-rei António Pinto Pereira, governador entre 10 de Setembro
de 1568 e 6 de Setembro de 1571 406.
Por sua vez, a 28 de Setembro de 1566 407, regista-se a viagem de
Baltasar Arruda: «Eu elRey faço saber a vos, meu thesoureiro mor, ou a
quem o dito cargo seruir, que eu ey por bem e me praz fazer merce a
Balltesar d’Arruda, filho de Migel dAruda, de trimta mill rs. cada ano por
tempo de dous anos somente, que seram este ano presente de jbe lxbj e o
ano que vem de jbe lxbij, a qual merce lhe asy faço pera sua despesa
estamdo ele fora do Reyno aprendendo a arte de archytectura, pello que
vos mando que apresentamduos o dito Ballltesar dARuda certidam de
Joam Carualho, fidalgo de mynha casa e prouedor das mynhas obras, de
como esta aprendemdo fora do reyno, lhes pagues os ditos xxx rs cada ano
pello dito tempo de dous anos somente». Muito pouco se sabe acerca da sua
actividade profissional. Antes deste período sabe-se que 1564 tinha
recebido 30.000 reais de tença que o seu pai lhe deixara em testamento. Se
tornou ou não ao reino, o certo é que não desempenha nenhum dos cargos
régios ligados à sua profissão.

Dos nomes enunciados como mais prováveis conhecedores «in visu»


da realidade quinhentista italiana – exceptuando Lavanha que nunca foi
profissional de arquitectura – não existem provas concretas. Neste reino de
suposições, é importante referir que talvez os dois nomes mais importantes
da arquitectura portuguesa na segunda metade do século XVI e que
demonstram um salto qualitativo sob o ponto de vista estético não constam
da lista acima referida – Jerónimo de Ruão e Nicolau de Frias.
Ora, acreditando ou não nesta realidade – e tratando-se de uma
aposta por parte do monarca português numa especialização avançada – os
resultados práticos deveriam ser visíveis na arquitectura portuguesa antes
do período filipino e da chegada maciça de especialistas italianos. Aquilo
404
Confirmado por Lurdes Craveiro, Diogo de Castilho e a arquitectura da Renascença em Coimbra,
pág. 116.
405
Cfr. Rafael Moreira, «A arquitectura militar do Renascimento em Portugal», pág. 304.
406
Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo II, pág. 433-434.
407
Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo I, pág. 513.

199
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

que transparece é que os arquitectos acima citados explicam por si mesmo,


nas suas contradições, a inexistência desta realidade. Em primeiro lugar,
uma formação avançada teórica ou teórico-prática em Itália levaria a que,
chegados a Portugal, a sua obra comprovasse essas mesmas «mais valias»,
seja no campo prático da arquitectura religiosa, civil e militar ou no campo
teórico com a produção de textos condizentes com essa mesma formação
italiana. Em segundo lugar não faria sentido que, depois de uma aposta
nesta política, o monarca os não reconhecesse e lhes não atribuísse lugares
de destaque dentro do seu organigrama profissional, preferindo contratar
mestres estrangeiros como Filippo Terzi quando, por exemplo, teria
António Rodrigues e Baltasar Álvares. Este é o cerne argumentatório da
questão.

De igual maneira, se analisarmos os trabalhos teóricos, devemos


questionar como explicar a enorme contradição entre os textos atribuídos a
António Rodrigues – com uma visão especialmente preocupada com a
fortificação mas onde toda a teoria acerca das verdadeiras questões da
arquitectura militar moderna está ausente – com uma sua possível
passagem por terras transalpinas, bem como a necessidade da contratação
de Terzi quando o arquitecto português é o sucessor de Miguel de Arruda
no cargo de «mestre-mor fortificador». É importante dizer-se que não
existe uma única referência documental a ligar António Rodrigues com o
cargo que desempenhava e está mesmo ausente da viagem a Alcácer
Quibir, onde D. Sebastião leva consigo Terzi e Nicolau de Frias como
«sitiadores de campo». Por sua vez, Baltasar Álvares – de quem se diz que
«el rey D. sebastián le envió a Italia, donde estuyo algunos años
deprendiendo estas artes» – é, em tempos filipinos, pese embora um dos
mais importantes mestres arquitectos portugueses, um subalterno de Filippo
Terzi, e não demonstra nas obras que se lhe podem atribuir com toda a
certeza ser muito «italianizado».

No estado da investigação, teremos que concluir que não existem


provas concretas acerca de uma política oficial, em regime de bolsas de
especialização a Itália, em tempos de D. João III ou D. Sebastião da mesma
maneira que, como veremos adiante, é meramente especulativa a
consideração de uma «lição de arquitectura» no sentido restrito do termo
antes de Terzi. Existem sim, intensos contactos com a realidade italiana
especialmente através da importação de profissionais que contribuíram para
o avanço dos conhecimentos portugueses nesta matéria. Existido ou não
viagens de mestres portugueses a Itália com as quais aperfeiçoaram a sua
visão da modernidade, o seu impacto é invisível e o certo é que a recepção
de ideias mais modernas e avançadas surgem apenas fruto do contacto
directo com os arquitectos italianos ao serviço de Portugal e Espanha.

200
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

3.2.4.2. O ensino teórico da Arquitectura: da tradição à «aula de


arquitectura» do Paço da Ribeira

3.2.4.2.1. A tradição portuguesa do ensino «científico» e a «aula de


matemática» do Cosmógrafo-mor do reino

Os Descobrimentos impulsionaram um ensino de raiz «científica»


ligado às novas exigências náuticas colocadas pelas viagens realizadas a
zonas recém-descobertas e para as quais, as máximas da cosmografia
medieval eram inúteis. Para resolver questões como a orientação em alto-
mar ou prever o regime dos ventos foi necessário uma autêntica revisão da
arte de navegar patrocinada pelos eruditos portugueses a partir de meados
do século XV.
Assistiu-se a uma revisão das leis da observação astronómica dado
que eram absolutamente necessárias para a orientação dos marinheiros fora
dos velhos limites mediterrânicos de navegação. Num primeiro momento
recorreu-se ao «Tratactus de sphera» de Sacrobosco, redigido no século
XIII, mas este tornou-se insuficiente. A determinação de latitudes pela
estrela polar resolveu muitos problemas para a orientação sob o hemisfério
norte, mas as viagens cada vez mais para sul obrigaram a que, com o
quadrante e depois com a balestilha, se tomassem como pontos de
orientação o sol, o cruzeiro do sul e outros corpos celestes 408. Grande parte
dos avanços conseguidos assentaram no estudo sistemático de eruditos
cosmógrafos como Pedro Nunes que, corrigindo latitudes e desenvolvendo
métodos para deduzir novas orientações, contribuíram grandemente para o
avanço científico da época, sendo incontornável o seu lugar central em
torno do conhecimento europeu quinhentista com a publicação do Tratado
da Sfera (1537) e do De Crepusculis (1542).

Como afirma Silva Dias, «a teoria e a praxe andaram de mãos dadas,


frequentemente, ao serviço da técnica, na naútica portuguesa dos séculos
XV e XVI. Não era raro os homens de gabinete escreverem para os homens
do mar. Assim fizeram, em parte apreciável das suas obras, Abraão Zacuto
e Pedro Nunes. E também não raro os homens do mar exercitarem as regras
e soluções dos homens de gabinete ou levarem até eles as dificuldades
suscitadas pela prática da navegação», como demonstra a relação entre D.
João de Castro e Pedro Nunes 409. Este é o pano de fundo da situação
nacional nos meados de Quinhentos.

408
Sobre estas questões consulte-se Luis de Albuquerque, «As inovações da náutica portuguesa no século
XVI», Presença de Portugal no Mundo, pág. 391-407.
409
Silva Dias, Os descobrimentos e a problemática..., pág. 113.

201
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

A base do avanço científico era sustentado por profundos e


avançados conhecimentos matemáticos. Entre 1500 e 1600 foram editados
em Portugal vários tratados de aritmética de autores como Gaspar Nicolas –
o mais antigo, publicado em 1519, e que reflecte o conhecimento da
«divina proporção» de Luca Pacioli – Bento Fernandes, António Luís ou
Rodrigo Mendes. A base de todo o saber eram os ensinamentos de
Euclides. Conhecem-se comentários de Francisco de Melo num volume do
escrito euclidiano depositado na Biblioteca Nacional 410. Estudado no
ensino superior – os Estatutos da Universidade de Coimbra de 1559 citam-
no expressamente – e no ensino cortesão, os «Elementos» de Euclides
reúnem enunciados básicos agrupados em «definições», «postulados» e
«noções comuns» e enunciados de problemas, tidos como «proposições».
Os fundamentos aritméticos e geométricos básicos eram, deste modo,
expostos com rigor e precisão, constituindo o esqueleto do todo o ensino
científico quinhentista.
Para Pedro Nunes, os «Elementos» de Euclides foram centrais como
«o próprio modelo da correcta estruturação do raciocínio matemático, um
modelo que ele procurou imitar em quase todos os seus trabalhos» 411. Os
seus ensinamentos estão massivamente presentes no seu Livro de Álgebra
publicado em 1560.

Luís de Albuquerque estudou um manuscrito de 1559 intitulado


«Seis Libros de Euclides Megarense» da autoria de Domingos Peres que
pode ser tido como paradigmático do ensino cortesão.
Trata-se exactamente de uma tradução dos livros I, II, III, IV e VI
dos «elementos» euclidianos. Redigido para facilitar a aprendizagem das
princesas D. Maria e D. Catarina, o autor refere as fontes originais
utilizadas, a edição de Iohannus Campanus – à qual dá preferência – e a de
Bartolomeu Zamberto. Declara não traduzir o livro V pois «já lhes ensinara
aritmética, tanto teórica como prática, e também os fundamentos de música
relacionados nas lições de aritmética; mas no plano pedagógico de Peres
entrava ainda o estudo da teoria dos planetas, quer dizer, a explicação dos
movimentos dos astros no sistema solar, que era então geralmente ensinada
pelo pequeno tratado de Purbáquio» 412. Seria mais ou menos este tipo de
formação que o cosmógrafo-mor e mestre de matemática Pedro Nunes teria
preparado para os infantes D. Luís e D. Henrique e, mais tarde, fornecido a
D. Sebastião.

410
Consulte-se Luís de Albuquerque, Fragmentos de Euclides numa versão portuguesa do século XVI,
pág. 2-5.
411
Henrique Leitão, «Pedro Nunes, Leitor de textos antigos e modernos», pág. 39.
412
Luís de Albuquerque, Fragmentos de Euclides..., pág. 8.

202
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

O manuscrito inclui no final uma área figurativa explicativa dos


enunciados, mas também se dedica a ensinar a construção de relógios de
sol e nocturlábios bem como problemas de projecção geométrica de
altimetria e planimetria. Existe, portanto, um sistema de ensino que engloba
várias matérias e demonstra praticamente a aplicabilidade dos teoremas. O
próprio Domingos Peres faz questão de afirmar no texto que os enunciados
euclidianos eram «para tudo mui necessários, e muito mais para a
navegação, fortificação e medidas de linhas e áreas» 413, colocando em
destaque não só a medição «cosmológica» essencial para a orientação nas
viagens marítimas como a defesa essencial das terras e praças avançadas
ultramarinas.

A necessidade de aprofundar todo este conhecimento levou à criação


de uma «lição de matemática», leccionada pelo cosmógrafo-mor do reino
nos armazéns da Ribeira das Naus. Como texto constitucional de base
conhece-se o regimento de 1592 – provavelmente redigido por João
Baptista Lavanha – que reforma e faz eco de um outro publicado em 1559
por altura em que o cargo era ocupado por Pedro Nunes, nomeado para tal
em 1547. Neste contexto, é importante recordar o papel que lhe competia.

O cosmógrafo-mor do reino, ocupado durante este período por Pedro


Nunes, Tomás de Orta e João Baptista Lavanha, era nomeado com funções
claras de ensino e examinação de tudo o que dizia respeito às questões
marítimas e com especial enfoque teórico na condução de uma cátedra de
Matemática. Tomemos como exemplo o alvará respeitante a Lavanha de 12
de Fevereiro de 1591 414 : «Eu el Rei faço saber aos que este aluara virem
que auendo respeito aos seruiços, partes e sufficiencia de João Bautista
Leuanha, e por folgar de lhe fazer merce, ei por bem e me praz que lea
nesta cidade de Lixboa a cathedra de mathematica, emquanto eu ouuer por
bem e não mandar o contrario, com a qual averá cada anno vinte mil rs. de
ordenado e tres moyos de trigo, que he outro tanto como com ella tinha e
avia Pero Nunez, a qual merce lhe assy faço com declaraçõ que terá
cuydado de ler aos pillotos e gente do mar a dita mathematica e lhe dara
lição e examinará as cartas e estromentos de marear».

O regimento tinha arregimentadas funções de examinação, desde


logo, dos oficiais responsáveis pela feitura de cartas de marear e
«quarteirões» – cartas parciais – e por toda uma série de instrumentos

Luís de Albuquerque, Fragmentos de Euclides..., pág. 8.


413
414
Publicado por Viterbo e citado em Teixeira da Mota, «Os Regimentos do Cosmógrafo-Mor de 1559 e
1592 e as origens do ensino náutico em Portugal», Junta de Investigações do Ultramar, pág. 63.

203
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

náuticos, como sejam globos, astrolábios, quadrantes, agulhas, balestilhas e


relógios, auxiliado por um «mestre de fazer cartas de marear dos mais
antiguos e praticos», tomando para tudo como modelo os «padrões que
disso ha no almazen, sem mudar encurtar ne acrecentar cousa algua de
mares costas e terras que estivere lançadas nos ditos padrões» 415.
Segundo Teixeira da Mota, uma das poucas novidades do novo documento
de 1592 dizia respeito ao exame para pilotos, sota-pilotos, mestres,
contramestres e guardiães – que teriam de ter um número mínimo de
viagens – e para os quais a área de acção do cosmógrafo-mor é claramente
descrita na «maneira de efectuar os exames»: «E juntos assy todos virá o
que ouuer de ser examinado, e sendo piloto ou sotapiloto o examinarão os
pilotos com o que lhes der a pratica da longa experiencia do mar, e o
Cosmografo mor com a theorica daquillo quer propriamente he de sua
profissao, como cartear, tomar o sol e as contas da declinação delle» 416.

Para além do seu papel como traçador de cartas universais e perito


nas demarcações territoriais quer em território nacional, quer em «terras e
mares descobertos e a descobrir» interessa-nos, neste particular, dar
especial relevo à «lição de matemática» dada pelo cosmógrafo-mor aos
pilotos, mestres e contramestres em Lisboa, na Ribeira das Naus. Tinha a
duração de um hora por dia durante nove meses e era facultativa, sendo
consensual que esta já existia em tempos de Pedro Nunes. Apresentemos,
pois, as razões da sua existência e o seu programa:
«E porque as navegações e viagens que destes Reinos se fazem são
muitas e diuersas e pera tam differentes partes como pera India oriental,
todo Guine e pera o Brazil e outros Portos e Ilhas dos senhorios destes
Reinos, e são enformado que pera segurança de tam lõgas e importantes
viagens he necessario ajudarse esta arte da navegação com auer lição
della pera a ouuirem de sua liure uontade os pilotos, sotapilotos, mestres,
contramestres, guardiaes a cujo cargo está o gouerno das ditas viagens e
nauegação dellas e de cuja insufficiencia e falta de experiencia procedem
muitos dos desastrados sucessos dellas – mando que daqui endiante se lea
hua lição de Mathematica pera os ditos officiaes ouuirem algus cursos
della, e tambem a gente nobre pera se habilitar pera me poder milhor
seruir nas empresas e conquistas que se ouuerem de fazer por mar.
A qual lição o dito Cosmografo mor será obrigado a ler todos os
dias, hua ora cada dia, na casa pera isso ordenada, no verão das oito
horas atee as noue e no inuerno das noue ate as dez, sem interpollação
nem falta algua, de maneira que em todos os dias que não forem de guarda
415
Teixeira da Mota, «Os Regimentos do Cosmógrafo-Mor de 1559 e 1592 e as origens do ensino náutico
em Portugal», pág. 13-14. Os examinados deviam apresentar, para além do exame teórico, as peças para
serem aprovadas e declarar quais as pessoas a que se destinavam.
416
Cfr. Teixeira da Mota, «Os Regimentos do Cosmógrafo-Mor de 1559 e 1592 e as origens do ensino
náutico em Portugal», pág. 43 e 51.

204
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

haja a dita lição, que durará de dia de São Lucas atee vespora de São
João, porque o mais tempo do anno lhe ficam em ferias pera nelle
continuar com as outras obrigações de seu cargo conteudas neste
Regimento. Na qual lição lhe declarará as cousas seguintes:
A declaração de alguns circulos da sphera, e pera que lhe hão de
seruir.
Insinarlhesha muito materialmente qual seja a figura do universo e
como se faz o diurno mouimento do primeiro mobil e o do sol e o da lua, e
lhes dará as regras importantes pera o conhecimento das luas e marés.
Declararselhesha a fabrica e uso da carta de marear, exercitandoos
muito nella e assy no uso do astrolabio, insinandolhes a tomar o sol e
como ham de usar do Regimento e fazer certa a sua conta da declinação
pera saberem ao meo dia a altura que tem.
Declararselhesha o uso da balestilha e quadrante pera de noite
tomarem a altura da estrella, e como devem fazer sua conta e saberem a
altura do Polo que tem, pera com mais certeza fazerem suas operações.
Instruilosha no Nordestar e Noroestar das agulhas, pera com
facilidade saberem fazer esta obseruação em qualquer parage que
estiuerem, e aduertillosha no uso do Relogio do sol.
Auendo algus de boa habilidade e que se auentagem dos outros, a
estes taes lerá o tratado da sphera e o uso do estrolabio de laminas e de
outros instrumentos necessarios, dandolhes o modo como fação muytas
obseruançias necessarias a esta arte, pera como mais sufficientes serem
aos outros preferidos, e a seu exemplo procurarem outros de se igualare
com elles.

Na mesma casa da lição terá o dito Cosmografo mor todos os


instrumentos necesarios a ella, pera com elles fazer mais claras e
intelligiueis as cousas a ler» 417.

Embora seja aceite que a redacção do primeiro regimento de 1559 se


deva a Pedro Nunes, a historiografia não deixa de discutir o seu papel no
ensino da arte de navegar durante a sua vigência. É sabido que as ideias do
cosmógrafo-mor não eram bem aceites no meio profissional dos pilotos e
cartógrafos e a prova disso mesmo está nas motivações que o levaram a
redigir o célebre «Tratado em defensam da carta de marear». Francisco
Contente Domingues afirma mesmo que «a actividade de Pedro Nunes
como agente da formação teórico-matemática pelos pilotos pode e deve, no
estado actual dos nossos conhecimentos, ser considerado praticamente
irrevelante, tanto do ponto de vista institucional, como no da eficácia das
medidas propostas, que os pilotos consideravam não se adequar aos
417
Reproduzido em Teixeira da Mota, «Os Regimentos do Cosmógrafo-Mor de 1559 e 1592 e as origens
do ensino náutico em Portugal», pág. 32-33.

205
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

problemas concretos que enfrentavam. Um tal juizo não põe em causa a


valia da contribuição teórica de Pedro Nunes para a arte de navegar, mas
apenas o peso da sua intervenção no aperfeiçoamento da respectiva
prática» 418. O autor chega mesmo a considerar que a Coroa revelava pouco
interesse na formação teórica dos pilotos o que, de outra maneira, também
pode querer dizer que confiava na sua suficiência.

No que particularmente nos diz respeito – tomando em linha de conta


a formação no campo da arquitectura – o regimento apenas parece dar
ênfase à necessidade do conhecimento das matemáticas, quer para os ditos
oficiais, quer para «a gente nobre pera se habilitar pera me poder milhor
seruir nas empresas e conquistas que se ouuerem de fazer por mar». Um
novo tempo impõe novas matérias. Do programa arregimentado, a base
matemática fornece a estrutura para o ensino das matérias de vanguarda
para a arte de marear, aconselhando-se a élite do reino – da qual
participavam os «arquitectos» régios – a instruir-se nelas mesmas.

3.2.4.2.2. Da «lição dos moços fidalgos» à «aula de esfera» de Santo


Antão

Rafael Moreira pretendeu ligar à tradição portuguesa do estudo e


ensino dependente do cosmógrafo-mor do reino o ensino da Arquitectura,
sustentando a existência de uma «academia científica» informal constituída
a partir das lições que Pedro Nunes destinou à aprendizagem do infante D.
Luís a partir de 1536, vendo nos perdidos textos matemáticos do próprio
infante ou no Roteiro de Goa e Diu de D. João de Castro provas de uma
produção literária que reflete as lições do mestre 419. Defende que dentro
dos conhecimentos avalisados fazia parte a arquitectura valendo-se como
prova do facto de o próprio Pedro Nunes ter traduzido, entre 1537 e 1541, o
De architectura de Vitrúvio, por encomenda régia.
Como vimos, cremos, contudo, que o interesse pelo texto vitruviano
se inseriu numa lógica e interesse humanista dentro da «renovatio
antiquitatis», tal como a tradução albertiana de Garcia de Resende, sendo a
sua utilidade prática mínima para a «praxis» arquitectónica, bem como para
uma compreensão teórica da arquitectura moderna.

Na prossecução destas directivas, o mesmo autor refere-se a uma


«escola particular de moços fidalgos» ou «lição dos moços fidalgos»,
reorganizada por D. Catarina em 1562 com o objectivo de acompanhar a

418
Cfr. Francisco Contente Domingues, «Pedro Nunes e a arte de nagevar», Pedro Nunes e Damião de
Góis. Dois rostos do Humanismo português, pág. 106.
419
Rafael Moreira, «A aula de arquitectura do Paço da Ribeira e a Academia de Matemáticas de Madrid»,
pág. 66.

206
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

própria educação de D. Sebastião, funcionando nos paços régios, «em uma


casa junto aonde El Rei aprendia». Baseia-se em vários textos da época
para avançar esta hipótese, desde logo no padre Amador Rebelo e na
crónica de D. Sebastião de D. Aleixo de Meneses onde se diz : «E
mandado El Rei fazer rol dos moços que andavam no paço e o serviam,
filhos de Senhores e fidalgos principais, se deu início a esta lição com um
bom número deles», aos quais junta a referência abaixo assinalada
respeitante a Lourenço de Almada, inserta nos textos que atribui a António
Rodrigues, datáveis de 1576 e 1579.
Ilustra esse ensino a partir de uma situação proposta por Lourenço de
Almada, que será posteriormente engenheiro hidráulico, «mestre das obras
das valas» e famoso homem de ciência: «O método seguido, especulativo e
livresco, baseado na memória e no raciocínio, assentava sobretudo no
diálogo. Um trecho do Tratado de 1576 mostra-nos de maneira muito viva
como as coisas se deveriam passar. Certa vez, acabara António Rodrigues
de expor um passo particularmente difícil do Il primo Libro di Geometria
de Serlio – o teorema da relação proporcional entre a área do quadrado e a
dos rectângulos de igual perímetro – quando um dos seus discípulos, o
Senhor Lourenço de Almada, filho primogénito dos Condes de Almada-
Abrantes, punha uma dúvida: a qual foi dizer que declarássemos como era
tamanho o quadrado que se tirou das duas linhas ABC da superfície
BCAD, e que desse a razão por que as duas linhas EB e BC davam uma
linha proporcionada e o mestre repetiu novamente a demonstração, agora
através de meios gráficos» 420.

Defende-se assim a «existência de um ensino formal da Arquitectura


combinando a Geometria e a Cosmografia, em uma escola ou lição a
funcionar durante alguns anos na corte de Lisboa sob o reinado de D.
Sebastião» 421. Depois da formação ter passado pelo ensino do Latim, das
Matemáticas e da Cosmografia, «quando D. Sebastião atingiu os 18/19
anos, este ensino sofreu uma adaptação, que o avanço das ciências e a
conjuntura de pós-guerra impunham. Em 1572 vinha estabelecer-se na
corte o idoso Pedro Nunes. Ao mesmo tempo, o mestre das obras de el-rei
e mestre das fortificações do reino, António Rodrigues (1564-1590)
começaria a ministrar-lhes o ensino especializado da Arquitectura baseado
sobretudo no texto de Vitrúvio (segundo a tradução de Barbaro, de 1556) e
nos manuais de Serlio e Cataneo (1554), este, sintomaticamente, o último
tratadista a conciliar arquitectura civil com a militar e urbanismo, que

420
Rafael Moreira, «A aula de arquitectura do Paço da Ribeira e a Academia de Matemáticas de Madrid»,
pág. 68-69.
421
Rafael Moreira, «A aula de arquitectura do Paço da Ribeira e a Academia de Matemáticas de Madrid»,
pág. 67.

207
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

constituíam os domínios sensíveis da cultura arquitectónica portuguesa»


422
.

Tomando esta circunstância como realidade, Rafael Moreira chega a


afirmar que a ideia base para a fundação da Academia de Matemáticas,
criada por Filipe II, terá surgido aquando da sua estada em Lisboa e da
percepção da «velha tradição portuguesa de ensino teórico-prático da
arquitectura militar como um ramo das matemáticas associado à
cosmografia e à náutica – tradição que procedia, como vimos, pelo menos
de Pedro Nunes, e recebera a sua consagração oficial na Escola do Paço da
Ribeira em 1572, da qual a Academia de Madrid deve legitimamente
considerar-se a herdeira» 423. Sustenta o seu raciocínio na própria escolha
de professores, como a nomeação em 1582 de João Baptista Lavanha, mas
também na inclusão de outros, como o cartógrafo Luís Jorge de Barbuda,
dentro de uma lógica de «fuga de cérebros» e objectivos específicos de
espionagem científica, como representou o italiano João Baptista Gésio.
Enfim, uma «história escondida» onde a «extinção da Escola do Paço da
Ribeira e o seu imediato renascer no Alcazar de Madrid» é o «típico
exemplo do aproveitamento imperialista filipino».

Não querendo entrar na discussão da existência ou não existência


desta «lição dos moços fidalgos», não deixamos de salientar dois aspectos
que se consideram relevantes para a questão da existência ou não de um
ensino da arquitectura anterior à criação da célebre «aula de arquitectura»
nos anos 90.
Em primeiro lugar, a referida «lição» não se tratava de um ensino
oficial ou oficializante destinado à formação de mestres arquitectos mas
sim de uma reunião de jovens aristocratas que, tal como se afirma,
acompanhavam os ensinamentos ministrados a D. Sebastião. Estando ou
não presente a especificidade ligada ao ensino particular de noções de
arquitectura, civil ou militar, ele não se revelou fundamental para a
formação directa dos profissionais da área neste período. Esta é uma
questão fulcral para compreendermos que é de todo impossível fazer uma
qualquer ligação entre esta «lição» para eruditos com a «aula» destinada a
profissionais arquitectos.
Em segundo lugar, estranha-se a extrapolação que se toma como
possível de se ver na «lição dos moços fidalgos» a base para a fundação da
Academia das Matemáticas madrilena que reunia um programa vastíssimo
e mesmo megalómano engendrado por Juan de Herrera – aliás nunca

422
Cfr. Rafael Moreira, «A aula de arquitectura do Paço da Ribeira e a Academia de Matemáticas de
Madrid », pág. 68.
423
Rafael Moreira, «A aula de arquitectura do Paço da Ribeira e a Academia de Matemáticas de Madrid»,
pág. 70.

208
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

concretizado – para a formação de Aritméticos, Geómetras, Mecânicos,


Astrólogos, Gnómicos, Cosmógrafos, Pilotos, Perspectivistas, Arquitectos,
Pintores, Fortificadores, Niveladores e Artilheiros 424. Pensamos residir
aqui algum exagero na ligação directa entre os dois programas, o que não
invalida o facto de Castela se ter aproveitado de conhecimentos e matéria
prima portuguesa para valorizar o ensino académico como prova a ida para
Madrid de Lavanha e a estada em Portugal de Ondériz, que lhe sucederá.

Um outro equívoco que se pretende tomar por aquilo que não foi diz
respeito à «aula de esfera» que funcionava no Colégio de Santo Antão de
Lisboa. Tem-se feito alguma confusão entre o ensino ministrado na
instituição jesuíta e o facto de dela terem saído alguns posteriores
especialistas no campo da arquitectura, especificamente no da arquitectura
militar, como o italiano Baccio di Filicaia e sobretudo Luís Serrão
Pimentel.
A «aula de esfera», criada na segunda metade do século XVI e a
funcionar já em pleno em 1590, teve nos seus primeiros momentos um
programa de estudo muito próximo do ministrado na Corte pelo
cosmógrafo-mor. Luís de Albuquerque destaca o facto de os professores
mais antigos do curso se aproximarem do «plano de estudos prescrito para
os pilotos, muito embora procurassem, como regra geral, dar maior
extensão e profundidade às suas lições. É este claramente o caso do curso
professado pelo Pe Francisco da Costa: a parte das suas lições dedicadas à
arte de navegação abarca todos os tópicos referidos no regimento do
cosmógrafo-mor (elementos de cosmografia ; regras de astronomia naútica
; construção de carta de marear ; uso do astrolábio, do quadrante e da
balestilha ; agulha de marear ; etc.), mas com desenvolvimento e
comentários críticos que seriam decerto considerados dispensáveis num
ensino só para pilotos» 425. Não obstante, a orientação da aula foi-se
direccionando, com o decorrer dos anos, para um conhecimento mais
«especulativo» das matemáticas, portanto, mais genérico e de
características menos práticas.
Destinava-se, em boa verdade, a uma formação extensa na qual
participavam vários campos do saber que compreendiam, pegando no
exemplo do plano curricular do padre Francisco da Costa (1595-c.1602) a
Astrologia, a Arte de Navegar, a Geografia, a Hidrografia, a Cosmologia e
o uso e fabrico do globo astronómico. Que o curso, durante os últimos anos
de Quinhentos e a primeira metade do século XVII, nada tem que ver
directamente com o ensino da arquitectura prova-o inclusive o programa do
424
Consulte-se o programa em Filipe II. Los ingenios y las maquinas, pág. 49.
425
Luís de Albuquerque, A «Aula de Esfera» do Colégio de Santo Antão no Século XVII, pág. 9.

209
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

célebre padre jesuíta João Delgado – professor da aula entre 1600 e 1612 e
que chegou a representar funções de supervisão de obras arquitectónicas –
constituído por dois grupos distintos: lições de Cosmografia e de Teórica
dos Planetas e lições de Astrologia 426.

A entrada nos programas escolares da Geometria e da Arquitectura


foi bem mais tardia, exactamente no início do século XVIII: «A Geometria,
que os professores mais antigos não consideravam, começou a aparecer nos
planos das lições da segunda metade de Seiscentos, embora com carácter
muito elementar ; e também a Aritmética faz uma tímida intromissão no
curso do Pe Gonzaga. O aparecimento de tais matérias nos programas é,
sem dúvida, consequência da aula de esfera já então não visar, ou não visar
exclusivamente a fornecer conhecimentos de marinharia e astronomia
elementar aos seus alunos ; na época em que tal se verifica alcança
prestígio a carreira de engenharia no exército (D. João IV fundara em 1647
a «Aula de Fortificação e Arquitectura Militar»), e tentava-se adaptar às
circunstâncias o curso do Colégio de Santo Antão, de modo que passasse a
dar aos seus alunos a preparação mais adequada para o ingresso naquela
carreira» 427. Será, assim, ao tempo do padre Luís Gonzaga (c.1700-1710)
que se introduz no programa lições sobre arquitectura militar. Esta inclusão
ficou a dever-se a uma tentativa de adaptar o curso aos novos tempos e
levou a que o padre redigisse um «Tratado de Architectura» no qual afirma
que o «curso de architectura» fora «mandado ditar por ordem do Aug. D.
Pedro 2º em ho Collo de Sto Antam» 428.

Taxativamente, não existem referências para o final do século XVI e


a primeira metade do século XVII a um curso específico de aprendizagem
da arte da arquitectura. O que não invalida que se considere que a «aula de
esfera do Colégio de Santo António foi uma actividade escolar de uma
importância e significado na cultura portuguesa do século XVII ;
efectivamente, era este o único curso onde se professavam as ciências tão
intimamente ligadas à Matemática – numa época em que a cadeira
universitária sobre esta ciência não tinha professores e a Aula de
Fortificação ainda não aperecera ; e lá estudaram os preparatórios muito
dos homens que, como Manuel Pimentel e Francisco Pimentel, se
distinguiram em actividades e cargos que dependiam dessas ciências» 429.

426
Consulte-se o programa em Luís de Albuquerque, A «Aula de Esfera»..., pág. 29-30.
427
Luís de Albuquerque, A «Aula de Esfera»..., pág. 21-22.
428
O manuscrito encontra-se na Biblioteca da Ajuda, ms. 46-VIII-23.
429
Luís de Albuquerque, A «Aula de Esfera»..., pág. 22.

210
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Partindo de todos estes dados, o ensino ligado ao cosmógrafo-mor e


depois da «aula de esfera» do Colégio de Santo Antão partia de
conhecimentos matemáticos fundamentais para o entendimento da
Cosmografia e da Navegação e, por extensão, a Geometria era igualmente
essencial para assuntos que tinham que ver com a defesa e fortificação do
Reino e territórios específicos no campo da arquitectura ou, mais
concretamente, da engenharia militar, bem como das «artes da guerra».
Desde os inícios do século XVI que os monarcas portugueses se
preocuparam intensamente com a defesa do território nacional e
conquistado, direccionando o saber dos mestres régios para este campo
específico. Daí que tenha surgido em 1548 uma nomeação como a de
Miguel de Arruda plenamente orientada para suprir estas razões. Mas, ao
mesmo tempo, os contactos com personalidades de destaque, com
sabedoria e conhecimento dos novos métodos de fortificação italianos – o
primeiro de grande envergadura são os projectos de Benedetto da Ravenna
para Mazagão – tiveram sequência com a chamada na segunda metade do
século de engenheiros italianos especializados e contratados para resolver
questões deste foro. Não obstante, esta realidade não foi acompanhada por
uma estrutura de ensino, oficial ou oficializante, orientada para o estudo e
prática da arquitectura. Na verdade, é no mínimo estranho que se
fundamente uma possível realidade como esta apenas pelo estudo das
matemáticas, cerne e espinha dorsal de todo e qualquer ramo científico
ligado ao mar, à guerra ou à fortificação.

Só com a «aula de arquitectura» surge um verdadeiro ensino da


teoria e prática arquitectónica em Portugal, algures nos primeiros anos da
década de 90 do século XVI e numa altura em que são já visíveis modelos
arquitectónicos modernos de risco italiano.

211
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

3.2.4.2.3. A «Aula de Arquitectura» do Paço da Ribeira

A «aula de arquitectura» foi instituída em Portugal nos inícios da


década de 90, provavelmente, por iniciativa do arquitecto italiano Filippo
Terzi.
A primeira nomeação conhecida, datada de 14 de Setembro de 1594
430
, fornece-nos grande parte da informação acerca do seu sistema e
funcionamento pelo que se transcreve como exemplar: «Eu el Rei faço
saber aos que este aluará uirem que eu ey por bem de fazer merce a Diogo
Marquez de huu dos trez lugares que ora ordenei de pessoas naturais deste
Reyno para auerem daprender Architectura com Filipe Tercio, mestre de
minhas obras, que lhe for mandado, e aprenderá geumitria de Johão
Bautista Labanha, cosmografo mor destes Reinnos e averá de ordenado
cada anno emquanto estiuer no dito lugar vinte mil reis, que lhe serão
pagos com certidão do prouedor de minhas obras de como he contino no
dito estudo e asistencia, e mando ao vedor de minha fazenda que ora he e
ao diante for que lhe faça asentar os ditos vinte mil rs no Livro das
ordinarias della, e despachar cada anno para lugar onde deles aja
pagameto com declaração que lhe serão pagos com a dita certidão do
prouedor das obras, e este ei por bem que valha».
A interpretação é clara. Certamente nesse mesmo ano de 1594 – tal
como aponta o «ora ordenei» – tinham sido criados três lugares para
profissionais da arquitectura, com o objectivo de «auerem daprender
Architectura» com o «mestre de minhas obras» – na circunstância Terzi –
sendo o proponente obrigado a aprender Geometria com o cosmógrafo-
mor. Enquanto ocupar o lugar de «aprendiz» receberá anualmente 20.000
reais, estará sob a tutela do provedor de obras régias que se encarregará de
verificar se «he contino no dito estudo e asistencia». Tratava-se, portanto,
de uma vaga para «aprender» a arte da arquitectura com o mestre de obras
régio, noções de geometria com o cosmógrafo-mor e a obrigatoriedade de
«asistencia» ao próprio mestre régio – o que justifica o rendimento anual
elevado auferido por parte daquele que preenche o dito «lugar».

Para o lugar de «aprendiz» eram apenas contratados profissionais já


com conhecimentos prévios, aptos para compreender o nível de «estudo» e
cumprir com a «assistência» que lhe era requerida.
A necessidade de conhecimentos básicos para a admissão está
plenamente justificada na nomeação de Pedro Nunes Tinoco em 1604, na
qual se afirma que prosseguia «o estudo (da arquitectura) ha annos a sua
custa» ou na de Mateus do Couto, sobrinho, em 1647, onde se declara que
«serue e aprende architetura com o dito seu tio, a quem mandei leue hua
430
Publicado por Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo II, pág. 139-140. Todos os excertos documentais
seguintes encontram-se referenciados nos capítulos biográficos dos respectivos arquitectos.

212
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

lição sem ordenado, e de como ouue a geometria que ler o cosmographo


mor, e fazer todos os papeis e mais cousas que lhe forem carregados de
meu serviço».

Não existe nenhuma carta de nomeação para «mestre da aula» mas


apenas referências secundárias na documentação referente às admissões de
novos candidatos ao cargo de assistente de arquitectura. Não obstante, é
claro que o primeiro responsável foi o italiano Filippo Terzi e após o seu
falecimento em 1597 sucede-lhe Nicolau de Frias, como sublinha a
nomeação no ano seguinte de Francisco de Frias que «aprenderá com
Nicolao de Frias, mestre de minhas obras, e asystiraa com elle ou com
qualquer outro mestre dellas que for mandado». O mestre português morre
em 1610 e não existem outras referências concretas no que respeita à
condução da dita lição arquitectónica.
A partir daí, é mais do que provável que o professorado transitasse
para Teodósio de Frias – como aponta a sua biografia, era um arquitecto
versátil e certamente com superior formação teórica e prática. Note-se que
nunca chegou a integrar a «aula» e após a aprendizagem directa com o pai
estagiou em Madrid. Entre 1634 e 1640 o seu mais provável sucessor terá
sido o filho, Luís de Frias.

Com esta questão podem estar relacionadas as nomeações para uma


espécie de «arquitecto régio sem pasta», com uma anuidade de 50.000 reais
e sem que desempenhassem quaisquer funções nos cargos tradicionais das
obras régias ou ordens militares.
Logo em 1601, «avendo respeyto a imformaçao que me foy dada da
abelidade» de Domingos da Mota, toma posse do cargo de arquitecto régio,
recebendo a soma enunciada até 1603, ano em que é substituído nas exactas
condições por Teodósio de Frias. Por seu turno, em 1610 Luís de Frias era
empossado no «luguar de architeto que vagou pella promoção de
theodosio de frias, seu pai, ao cargo de mestre das obras de meus paços
desta cidade de Lixboa». Recorde-se que nenhum dos três arquitectos
passou pela «aula» régia e a remuneração de 50.000 reais prova a ocupação
de um cargo superior, praticamente ao mesmo nível do arquitecto
responsável por São Vicente de Fora ou pelos Paços da Ribeira.
Não obstante, não é de excluir que a regência da «aula» tenha
passado, pontualmente, por outros mestres arquitectos. Na nomeação de
André Ribeiro Tinoco, em 1629 – «aprendera com a pessoa que se lhe
nomear, assistindo no estudo, e nesta cidade» – e na de Teodósio de Frias
Pereira, em 1631, apontava-se para aprender «com a pesoa que se lhe
nomear, asestindo no estudo em esta cidade e fazendo o mais que lhe for
ordenado pello prouedor de minhas obras». Neste mesmo ano, Mateus do

213
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Couto redigia um texto teórico para a «aula» e era convidado para


desempenhar essas mesmas funções.

Pese embora a informação a este respeito não seja totalmente


esclarecedora, é mais do que razoável considerar que existia um mestre
superior plenipotenciário e responsável máximo pela «aula» e pelas
matérias ministradas, o que não invalida que o «aluno» pudesse ouvir a
lição de outros mestres tal como realizava trabalhos práticos – plantas,
orçamentos e relatórios – para qualquer dos mestres debaixo da alçada
régia como cristalinamente aponta a circunstância da nomeação de
Francisco de Frias – «aprenderá com Nicolao de Frias, mestre de minhas
obras» e «asystiraa com elle ou com qualquer outro mestre dellas que for
mandado».

Duas outras considerações são importantes – o tempo de estágio na


«aula» e o regime de substituição.
No que respeita ao tempo de serviço, não existia um número limitado
de anos para o preenchimento desta vaga, dado que o encontramos quer
ocupado durante longos períodos – casos de Diogo Marques Lucas, entre
1594 e 1616 ou Pedro Nunes Tinoco, entre 1604 e 1624 – quer por curtos
períodos temporais – André Ribeiro Tinoco nele esteve apenas três anos
(1629-1631) e Francisco de Frias quatro (1598-1602). Todavia, valendo-
nos do seguinte gráfico, é possível encontrar uma média de cerca de uma
década:

1590 1600/1610 1610/1620 1620/1630 1630/1640

Diogo ____________________ Mateus do Couto _______ André Ribeiro ________ João Nunes
Marques 1616 Tinoco Tinoco
1594 1629 1631

Francisco ___ Henrique de _______ Eugénio de _______________________________ Teodósio de


De Frias França Frias Frias P.
1598 1602 1611 1631

António ______ Pedro Nunes ____________________________ Diogo Paes ________ Francisco da


Simões Tinoco 1624 S.Tinoco
(?) 1604 1632

214
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Em segundo lugar, é importante considerar que as entradas e saídas


da «aula de arquitectura» se prendem sempre com necessidades da coroa
em preencher cargos deixados vagos na «aula» por nomeação superior para
desempenhar outras funções – no que respeita à arquitectura civil e à
arquitectura militar.
Assim, esta realidade conduziu às saídas de António Simões,
«prouido pella coroa de Castella em maior praça» em 1604, Henrique de
França a quem foi feita «merce de hua praça de engenheiro no Reino de
Napoles» ou para o Brasil – Diogo Pais e Francisco de Frias, que será
nomeado «Engenheiro-mor» das terras de Santa Cruz. De reter que a
elevada competência formativa conduz a que, especialmente no que diz
respeito ao campo da arquitectura militar, a sua chamada se estende para
fora do território português.
Também da «aula» saem os sucessores para principais cargos
relacionados com as grandes obras de patrocínio régio. Se com a morte de
Pero Fernandes de Torres, Diogo Marques Lucas ascende a mestre de obras
do Convento de Cristo de Tomar (1616), com a morte de Nicolau de Frias
(1597) as obras dos Paços da Ribeira transitam para as mãos de familiares
directos – Teodósio de Frias e Luís de Frias que tinham obtido «luguar de
architecto» com a anuidade de 50.000 reais – até à nomeação em 1641 de
Teodósio de Frias Pereira, filho de Luís de Frias, e aluno da «aula» a partir
de 1631. Por sua vez, a fábrica de São Vicente de Fora, a partir da morte de
Baltasar Álvares, permanece foro dos Tinoco – antigos alunos em 1604
(Pedro Nunes Tinoco) e em 1631 (João Nunes Tinoco) e seus descendentes
até final do século.
O caso de Mateus do Couto é paradigmático. Na «aula» a partir de
1616, é nomeado mestre das obras das Ordens Militares em 1629, aquando
do falecimento de Baltasar Álvares – de quem se considera discípulo – e
pouco depois foi convidado para reger a própria lição de arquitectura, para
a qual redigiu um escrito teórico como suporte instrumental.

Tendo em conta esta realidade, poderá inferir-se uma espécie de


especialização dentro da própria «aula» régia, dado que parece existir uma
distribuição dos profissionais pelas duas áreas específicas da arquitectura, a
civil e a militar – a maior parte dos oficiais saídos da «aula» parece ter
desempenhado preferencialmente uma das duas funções.
Diogo Marques Lucas, Mateus do Couto, Pedro Nunes Tinoco e Luís
de Frias foram essencialmente arquitectos «civis», enquanto Francisco de
Frias, Henrique de França, Diogo Paes ou Francisco da Silva Tinoco se
distinguiram na arquitectura militar. Não existe, contudo, um lugar fixo
para uma qualquer especialização. Diga-se que toda a documentação refere
sempre a «aprendizagem» e «assistência» ao mestre de obras régio e nunca,

215
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

de forma expressa, ao engenheiro-mor do reino, pese embora da «aula»


tenham saído personalidades relevantes nesta área.
É igualmente importante recordar que a partir da nomeação de
Leonardo Turriani para «engenheiro-mor» do reino, o cargo de
arquitecto/engenheiro-mor se especializa, não lhe cabendo qualquer papel
no ensino régio. Todavia, não deixa de receber como subalternos oficiais
saídos da «aula», como é o caso de António Simões que em 1611 é
nomeado «assistente das obras do forte de São Lourenço da Cabeça sequa
e mais fortalezas da barra» tendo como obrigatoriedade receber posse do
engenheiro-mor do reino.

Resta definir o estatuto da «aula» régia e o tipo de ensino. Para se ser


nomeado para um dos três lugares da «aula» régia, como vimos, era
necessário experiência anterior. Rafael Moreira veio corrigir o antigo erro
de interpretar esta situação como uma «escolaridade prévia» ou uma
«escola formal», vendo-a como «um primeiro passo de iniciação na carreira
oficial das obras régias, cargo já profissionalizado portanto, com salário e
funções estipuladas por regimento: um estágio, se se quiser» 431.

Mais do que um «estágio» – pois não existe um limite temporal fixo


para a especialização – tratava-se de uma posição dentro da hierarquia
profissional na base da pirâmide de oficiais régios preenchida por uma
espécie de arquitecto auxiliar. A assistência aos mestres régios tinha que
ver com a realização de todo o trabalho de gabinete das obras régias –
desde a feitura de plantas a apontamentos e orçamentos, elementos
essenciais para a organização, controlo e boa prática arquitectónica
moderna. O «aprendiz» é, assim, um subalterno especializado que tinha a
função de realizar todo um trabalho prático de gabinete, da «traça» ao
«apontamento», e ao qual era exigida uma constante maturação dos seus
conhecimentos para que pudesse, posteriormente, ser nomeado para um dos
cargos superiores à disposição, a breve ou a longo trecho, dependendo das
necessidades ou circunstâncias.

Em segundo lugar, a «aula» régia impunha, clara e inequivocamente,


uma preparação teórica e especulativa assumida através da actualização de
conhecimentos no campo da teoria arquitectónica 432. Se esta realidade já se
infere da documentação, quando impõe uma aprendizagem com o mestre

431
Cfr. Rafael Moreira, «A aula de arquitectura do Paço da Ribeira e a Academia de Matemáticas de
Madrid », pág.66.
432
Contrariamente à opinião de Rafael Moreira que assevera que «nenhuma obrigação existia, pois, de
aprendizagem teórica, nem mesmo estudar arquitectura civil (que só mais tarde aparece, com as reformas
do tempo da restauração): pelo contrário, uma das condições requeridas era o conhecimento e experiência
prévias, a suficiência, na arte da arquitectura». Cfr. Rafael Moreira, «A aula de arquitectura do Paço da
Ribeira e a Academia de Matemáticas de Madrid », pág. 66.

216
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

de obras régio, as informações relacionadas com Mateus do Couto provam-


no textualmente. Em 1632 fala-se num convite ao arquitecto para «leer a
lição de Architectura que lia felippe terçio» 433. Esta «lição» é, de forma
inequívoca, destinada à aula de arquitectura dos Paços da Ribeira para a
qual o mestre tinha redigido um «tractado de architectura que leo o mestre
e archito Mattheus do Couto o velho no anno de 1631», segundo versa o
título do seu manuscrito. Não faria, aliás, grande sentido que o «aprendiz»
fosse obrigado a «ouvir a geometria que lê» o cosmógrafo-mor e não
complementar esse mesmo estudo com uma «lição de architectura» com
um mestre da área, por mais conhecimentos teóricos acerca da arquitectura
que tivesse João Baptista Lavanha ou qualquer dos seus sucessores 434.
Mas, mais do que isso. O tratado «lido» por Mateus do Couto revela-
nos uma preparação teórica muito para além daquilo que até hoje tem sido
valorizado, isto é, a tradição matemática e aprendizagem no campo da
geometria e perspectiva básica, bem como a arquitectura militar como
fundamento principal da preparação teórica do arquitecto português. De
facto, os seus quatro livros revelam um conhecimento que abrange a grande
tratadística arquitectónica italiana e um europeísmo assumido no
conhecimento necessário a um arquitecto régio. Partindo de uma visão
erudita e de forte componente especulativa, o Livro I é – novidade das
novidades – dedicado às Ordens Arquitectónicas, partindo do modelo
vitruviano-albertiano e optando pela «excelência» de Sebastiano Serlio face
a Palladio ou mesmo a Scamozzi, de entre os autores que enumera.
Contando com a sua experiência pessoal, os Livros II e III versam sobre as
inevitáveis questões técnico-construtivas, enunciadas a partir do paradigma
vitruviano-albertiano. O Livro IV, incompleto, trataria de aspectos
relacionados com o desenho arquitectónico. Por sua vez, a importância da
Perspectiva – na linha do escrito serliano – encontra-se inserta num
«tractado de prospectiva» apenso ao texto principal, também incompleto.

Mateus do Couto distinguia na perfeição os campos da arquitectura


civil e da arquitectura militar, afirmando no Capítulo 15 do Livro III que
não falará acerca dos fundamentos das pontes «porq heyde tratar no Lo da
Architectura Militar», obra que pretendia realizar separadamente. Vindo de
um arquitecto considerado na linha de uma suposta tradição nacional – que

433
Rui Carita, O regimento de fortificação de D. Sebastião (1572) e a carta da Madeira de Bartolomeu
João (1645), pág. 131.
434
A este respeito, recordem-se as palavras que D. João da Silva dedicou ao cosmógrafo-mor aquando de
uma acusação por parte de Leonardo Turriani de aquele ter preferido Lavanha para o cargo de
engenheiro-mor: «No me passa por pensamiento tener a juan bautista por hombre que tenga mas que la
theoria ni entiendo que se podria fiar del fabrica». Mesmo que se acredite na vasta erudição do
cosmógrafo-mor no campo da arquitectura, ele não desempenhava as funções de arquitecto régio. Seria,
portanto, necessário que ao «aprendiz» fosse posto à disposição uma transição entre a teoria e a prática
que apenas um arquitecto régio poderia fornecer. Veja-se BNM, Cartas de D. Juan da Silva, Códice nº
6198, fl. 28. Inédito.

217
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

chega mesmo a referenciar Baltasar Álvares como seu «mestre» – esta


actualidade e diversidade de conhecimentos parece contrariar, uma vez
mais, a logicidade dessa mesma tradição «chã». Para este particular, a
«lição» do arquitecto português – sendo ele próprio filho da «aula» entre
1616 e 1629 – demonstra a vastidão de conhecimentos, uns que teriam que
estar assimilados aquando da entrada como a prática do desenho, outros
certamente de natureza especulativa ou de melhoramento da «praxis», que
adquiriam teoricamente na «aula» do arquitecto régio 435.

De tudo podemos concluir que a «aula de arquitectura» régia


demonstra a existência de um ensino tremendamente avançado e moderno.
É o resultado de uma evolução que apenas nos finais do século XVI se
reflecte numa consubstanciação hierárquica clara, definindo-se cargos e
funções e suplantando de uma vez por todas a lógica «mecânica» e
tradicional do ensino. A «aula» surge nos inícios dos anos 90 como
resultado final de uma compreensão do novo e real papel do arquitecto,
criando em Portugal um estádio médio entre os arquitectos régios
nomeados para os mais diversos cargos e a plêiade de mestres de pedraria
que se responsabilizava por tornar tridimensional o projecto arquitectónico,
ideado pelo arquitecto e posto em desenho e orçamentado pelo arquitecto
régio auxiliar. Neste momento, o paradigma do «arquitecto» moderno
institucionaliza-se definitivamente.

A estrutura régia da «aula de arquitectura» forma arquitectos civis e


arquitectos militares. Mas a clara separação das funções, ao nível prático,
está assumida a partir da figura de Leonardo Turriani. A criação em 1647
da «aula de fortificação» vem responder a uma necessidade político-
defensiva, assumir a ruptura, mas não se deve tomar o futuro pela realidade
da primeira metade do século XVII, isto é, fazer confundir um ensino
abrangente e aglutinador por outro, específico e orientado. Esta é a grande
diferença entre a «aula de arquitectura» e a futura «aula da fortificação».

435
Sobre o tratado de Mateus do Couto veja-se capítulo neste trabalho.

218
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

3.2.5. A produção teórica portuguesa

As referências teóricas que adiante se reúnem, embora exíguas, são


grandemente representativas da realidade teórica portuguesa desde os
primeiros momentos de interesse pelo «antigo» até à tomada de consciência
e absorção das novas especulações arquitectónicas dimanadas, no essencial,
da península itálica. Produzidas em períodos sequenciais e lidas em
conjunto, fornecem-nos uma imagem clara da posição nacional face à
teoria arquitectónica, ao seu principal desenvolvimento mas também às
suas limitações que marcaram, ao nível prático, a arquitectura portuguesa
entre a segunda metade do século XVI e a primeira metade do século XVII.

Nenhum dos escritos em análise é, verdadeiramente, um tratado de


arquitectura. Só a «lição de arquitectura» de Mateus do Couto, produzido
com vista a apoiar a aula régia apresenta uma estrutura e um suporte
erudito digno desse nome. Os manuscritos anónimos adiante analisados
pretenderam ter como finalidade a publicação mas carecem de
profundidade especulativa para serem considerados como tal. Por sua vez,
o «manual vignolesco» de Filippo Terzi, sintético e claro, não abandona o
seu papel escolar, típico de um resumo base dos conhecimentos essenciais
sobre a modernidade arquitectónica. De facto, no estado do conhecimento
actual, entre 1550 e 1650 apenas a «lição» de 1631 poderia sofrer tal
consideração.

A produção teórica portuguesa manifesta, genericamente, uma


preocupação pelo carácter eminentemente prático que se sobrepõe às
questões meramente especulativas. Não obstante, acompanham a mudança
que se verifica também ao nível do ensino régio da arquitectura, acolhendo
cada vez mais elementos da grande tratadística como sejam a teoria das
ordens arquitectónicas. Se as parcas informações que temos acerca do
perdido escrito de Pero Vaz Pereira alinha ainda pela «tradição»
matemática portuguesa, o manual de Pedro de Araújo fornece-nos já a
prova de uma produção «regional» que demonstra a evolução da formação
teórico-prática dos arquitectos fora do ambiente cortesão. É importante
relembrar que a nova consciência da arte da arquitectura e o
reconhecimento da necessidade de uma preparação teórica outra, não
pressupôs nunca o abandono dos métodos tradicionais de aprendizagem
nem de algumas técnicas construtivas, embora obrigue paulatinamente a
um redireccionamento deste tipo de ensino que continua «empírico», de
pendor familiar mas agora com preocupações estilísticas diferentes.

219
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

No contexto deste trabalho revelou-se importante fazer referência a


dois textos não directamente relacionados com a teoria da arquitectura mas,
embora periféricos, reveladores do «estado da arte» durante a segunda
metade do século XVI – os textos de Francisco de Holanda, o primeiro e
único teórico português da primeira metade do século, e o tratado de
Arquitectura Naval do cosmógrafo-mor João Baptista Lavanha. Dos
escritos de Holanda destaca-se a Lisboa não construída em meados da
década de 70 e a original definição de «pintura arquitecta», para além do
incontornável paradigma vitruviano do arquitecto que Lavanha reinterpreta
e adapta, com visão pioneira, a uma terceira área da arquitectura que tem
como objectivo consignar – a Arquitectura Naval. Coloca-se fora deste
âmbito, pela inexistência de qualquer referência teórica de espécie alguma,
o «Livro de traças de Carpintaria com todos os Modellos e medidas pera
se fazerem toda a nauegação assy d’alto bordo como de remo» 436 da
autoria do mestre de carpintaria régio Manuel Fernandes, datado de 1616, e
que Rafael Moreira vê como o «ponto alto de uma tradição tipicamente
portuguesa que fazia conviverem na Ribeira das Naus os arquitectos com
geómetras, engenheiros e carpinteiros navais» 437.

Contrariamente ao que tem sido ventilado por alguma historiografia,


mesmo na breve análise que a seguir se apresenta é possível verificar que o
pensamento arquitectónico português não foi orientado de forma centrífuga
para as questões da arquitectura militar. Se face à arquitectura «polida», em
termos políticos, a arquitectura «grossa» é a componente mais importante
para o Estado, nenhum dos textos adiante referidos se dedica a um único
campo arquitectónico exclusivo alinhando, por seu turno, por uma cultura
de interdisciplinaridade e amplitude de saberes, de raiz humanística, dentro
do designado paradigma vitruviano do arquitecto. A realidade expressa
pelas novas preocupações geo-estratégicas e político-defensivas da pós-
Restauração, que conduziu a uma nova situação sintetizada por Luís Serrão
Pimentel no «Método Lusitano» e à formação de uma «aula de
fortificação», não pode justificar o forjar de um passado diferente daquele
que existiu, assente numa produção teórica frágil e num mercado de
importação de arquitectos e engenheiros italianos, por mais que se deseje
assacar uma mais valia de espírito nacionalista.

436
De grande qualidade de desenho, o escrito seiscentista apresenta vários tipos de navios – Nau, Batel,
Navio de 80 a 500 toneladas e Caravela – e respectivos componentes construtivos com breve referências
em nota.
437
Rafael Moreira, «Tratados de Arquitectura», Dicionário de Arte Barroca, pág. 492.

220
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Um último ponto deve ser referido. Pese embora os exemplos


precoces incluídos na lógica humanística das traduções joaninas de
Vitrúvio e Alberti encomendadas a Pedro Nunes e André de Resende, é
quase uma certeza que os arquitectos e teóricos portugueses durante este
período não dedicaram particular interesse à tradução de quaisquer textos
italianos ou coevos que demonstram conhecer na sua prática arquitectónica
ou produção especulativa. Provavelmente a excepção à regra poderia ser o
manual de Pedro de Araújo que não esconde, tal como na maior parte dos
casos, a sua filiação directa serliana.

A influência da tratadística europeia, esmagadoramente italiana, está


bem presente nos escritos produzidos em Portugal durante este período.
Parece mesmo existir um cada vez maior entendimento das fontes
transalpinas à medida em que percorremos os escritos enunciados. Da
famosa triâde quinhentista, Andrea Palladio nada disse aos arquitectos e à
arquitectura portuguesa e Vignola surge como novidade introduzida por
Terzi mas nunca declaradamente usada em termos práticos e especulativos.
Tal como acontece na Europa coeva, Sebastiano Serlio é o paradigma da
nova arquitectura italiana para grande parte dos profissionais da área e a
fonte principal citada e plagiada nos textos teóricos sobre a arquitectura ou
suas disciplinas auxiliares. Holanda, os manuscritos anónimos da década de
70 e Mateus do Couto usam maciçamente os escritos serlianos nos seus
textos teóricos, não sem que se recorra a outras fontes como Pietro
Cataneo, no caso do segundo, ou Scamozzi, no caso do último. Que os
textos italianos, castelhanos ou franceses eram conhecidos pelos grandes
eruditos portugueses prova-o a lista que João Baptista Lavanha apresenta
no seu tratado de arquitectura naval.

221
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

3.2.5.1. O «vanguardismo» de Francisco de Holanda

3.2.5.1.1. Dados biográficos

A vida, obra e papel de Francisco de Holanda estão hoje


exemplarmente estudados pelo monumental trabalho de Sylvie Deswarte.
Não cabe, neste estudo, fazer mais do que uma breve alusão à «maneira»,
aliás muito peculiar, como o teórico português utilizou, por um lado, o
paradigma vitruviano para a definição da «ciência do pintor» e, por outro,
considerou a própria arquitectura em relação à estrutura artística.

Filho do iluminador António de Holanda, Francisco de Holanda teve


uma formação privilegiada no ambiente régio para a qual deve ter
contribuído decisivamente André de Resende, um dos nomes maiores do
humanismo português, aquando da sua estada em Évora entre 1534 e 1538.
O perfeito domínio de mestre Resende da filologia greco-romana e o
interesse que cultivou acerca das «antiguidades» devem ter inflamado e
moldado o espírito de Holanda que a 5 de Janeiro de 1538 integrava a
comitiva de D. Pedro de Mascarenhas, partindo para Roma. Na capital
italiana teve a oportunidade de se relacionar com artistas e homens da
cultura da época tão relevantes como o «divino» Miguel Angelo. Realiza
viagens a Veneza – conhecendo Sebastiano Serlio – Ancona e Nápoles.
Tornado à pátria em inícios da década seguinte, ocupará lugar de destaque
junto de D. João III e especialmente do infante D. Luís, embora nunca
concretizando os seus sonhos 438.

Os elogios que os seus contemporâneos lhe dedicam coincidem com


a sua influência junto da Corte sendo, não obstante, difícil de avaliar até
que ponto ela se consubstanciou, na medida em que nunca chegou a ocupar
nenhum cargo directamente relacionado com a sua especialização artística.
Se não há que duvidar do facto de ter exercitado a sua especialidade no
campo da pintura, bem como o seu papel como perito em matéria de arte, é
bem mais árduo dar crédito ao facto de ter desempenhado funções de
arquitecto – cargo dominado por Miguel de Arruda a partir de 1548 – e às
suas próprias palavras quando afirma fazer «desegno ou traça ou
arquitectura». Sylvie Deswarte considerou que o facto de Francisco de
Holanda se fazer incluir na lista dos maiores arquitectos de seu tempo, e
não dos pintores, se deve apenas à falta de atrevimento para se posicionar
em tal alta hierarquia segundo os seus próprios interesses 439. É muito
provável que funcionasse como conselheiro régio em matérias que tanto

438
Uma biografia resumida de Holanda encontra-se em Sylvie Deswarte, «Francisco de Holanda, teórico
entre o renascimento e o maneirismo», História da Arte em Portugal, pág. 12-16.
439
Cfr. Sylvie Deswarte, «Francisco de Holanda, téorico entre o renascimento e o maneirismo», pág. 14.

222
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

cultivava, valendo-lhe a sua fidelidade e trabalho o hábito de cavaleiro da


Ordem de Cristo.

Com a morte de D. João III em 1557, o teórico português cai em


desgraça e não mais recuperará a sua influência junto da Corte. Durante a
regência de D. Henrique chegou mesmo a oferecer os seus préstimos a
Filipe II de Castela em 1563 mas sem qualquer consequência. A sua
amargura é bem patente nas obras que redige nos inícios da década
seguinte, nostalgicamente recordando o passado ao jeito de memória.
Apesar de ter apoiado o partido de D. António, quando Filipe II une as
coroas ibéricas não deixa de o compensar, recebendo em troca o «De
aetitabus imagines mundi», obra maior do teórico português.

Francisco de Holanda realizou um vasto e singular trabalho teórico a


partir do momento em que termina a sua formação em Roma. Chegado a
Portugal redige em duas partes o «Da Pintura Antiga», a segunda em forma
de diálogo conhecida por «Dialogos em Roma». Eivado de neoplatonismo,
o seu texto é um dos fundadores do conceito de «idea» como princípio
essencial da criação artística e o mais importante de toda a sua obra,
concluído em 1548. Em 1549 redige também à maneira de diálogo o «Do
tirar polo natural». Para além do simbólico «De aetitabus imagines
mundi» iniciado cerca de 1545, escreveu ainda duas obras de carácter
nostálgico e testamentário: o «De quanto serve a Ciência do Desenho»,
sintetizando o seu pensamento acerca da teoria da arte e o «Da fábrica que
falece à cidade de Lisboa», autêntica utopia consagrada em livro do que
Holanda desejaria ter realizado no campo da arquitectura. Ambos os
escritos são datados de 1571.

3.2.5.1.2. As «ciências do pintor» e o paradigma vitruviano

No capítulo 8o do célebre «Da Pintura Antiga», Francisco de


Holanda, pretendendo definir as disciplinas formativas para o pintor, utiliza
o paradigma vitruviano para exemplificar a complexidade das matérias a
ter em consideração. Embora longa, é digna de ser reproduzida a sua
opinião neste particular: «Muitas ciências e notícias convêm ao pintor de
quem falo, para a perfeição de sua virtude. E quando ele não puder todas
saber compridamente, (que melhor seria), deve ao menos de não ser
ignorante delas, e de em cada uma por si ter boa parte de notícia.
E primeiramente estimo que há-de ser instruído arrazoadamente na
lição das letras latinas e terladações gregas, para entender e gostar os
tesouros da sua arte que pelos livros estão escondidos, sem os quais ele
não pode ter a razão dalguma coisa, nem pode ter subido muitos degraus
dos muitos que se hão-de subir para chegar ao alto templo da pintura. E

223
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

dali tomar a filosofia natural, como filósofo excelentíssimo, considerando e


contemplando continuamente a propriedade e natureza de cada coisa com
mui grande descrição e cuidado».
«Cumpre mais de obrigação ao pintor ter partes de teologia para
saber fundar e contemplar a verdade de suas altas imaginações nas obras,
e para que não pinte coisas contrárias à cristã religião».
«Será lido no catálogo dos santos para saber suas vidas, e em que
tempos e costumes e províncias ou cidades são pintados».
«Saberá assim mesmo todas as fábulas da poesia, porque debaixo de
sua discreta ficção está escondida muita razão e verdade, e para receber
muitas flores e fruto dos jardins e montes das musas, e muita contemplação
em seus recessos solitários e sabedoria e graça das suas fontes, e aqui
sentirá a música e números, para conhecer a verdadeira harmonia e
consonância suavíssima do perfil, da sombra, dos sentidos, da diminuição,
do colorir, do recursar, do realço, altíssimas proporções de nova música».
«Há-de saber cosmografia para as descrições da terra, do mar e
saber como jaz lançada a grão máquina do mundo, rodeada de fermosa
orla do oceano com tanta gentileza de praias e promontórios».
«E assim mesmo, mais se erguendo do chão, deve de entender não
pouca parte de astronomia e dos movimentos e círculos de esfera celestial,
conhecendo a imensidade dos céus, e quantos são, a grandeza do sol e
como é pequena ante ele a lua e a terra, e assim de todas as outras
planetas e estrelas, ou corpos celestes» 440.

A este conhecimento genérico sobre o mundo terreno e divino


acrescem os saberes especificamente ligados à arte da pintura e que
permitem ao pintor «tirar pelo natural»: «Na geometria e matemáticas, e
prospectivas já o pintor está obrigado por todos os outros mestres a ser
muito obrigado, e estes são os seus próprios e costumados preceiros na sua
ciência, para as linhas e diminuição das suas obras; mas os preceitos
acima encomendados são mais propriamente meus».
Esta reivindicação opinativa de Francisco de Holanda não o coibe de
relembrar que «se mais algumas ciências Vetrúvio nos seus livros ou
outrem alguém para alguma outra profissão desejou ao seu discípulo, com
mais justa causa as há-de ter e entender o pintor de que falo, pois é tanto
sua aquela profissão, e ainda mais que de nenhum mestre dela, como quer
que o desenho ou pintura é princípio e capitão das mais das coisas que
costumam aos mortais.
Mas se alguém disser que eu mando ter tantas ciências e ofícios ao
desenhador que apenas se acham em muitos homens, quanto mais em um
só, a este somente respondo que o pintor, de que eu falo, como o antigo

440
Francisco de Holanda, Da Pintura Antiga, edição de José Feliciano Alves, pág. 32-33.

224
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Apeles ou o novo Micael, tiveram tudo o necessário (nem eu lhes mando


ter mais) destas coisas, e que não é perfeito nem pintor o que este
necessário não tiver delas; e para que saibam os que tanto mais não
podem alcançar, quão perto ou quão longe estão de pintores» 441.

Francisco de Holanda está consciente da amplitude de matérias que o


paradigma vitruviano recomenda como centrais para a formação artística,
dependente de uma profunda e arreigada erudição. Dentro da sua peculiar
visão da essência da arte no «desenho» e na defesa da superioridade do
pintor, não deixa de considerar necessários os dois níveis de saberes dos
quais depende a prática da boa «ciência»: a erudição do artista conhecedor
do mundo e da sua história e o talento técnico-prático da sua disciplina
específica.

As referências a Vitrúvio são constantes e visíveis em todos os seus


escritos. Sylvie Deswarte afirma que muito provavelmente conhecia o texto
vitruviano antes da sua ida para Itália – fosse a edição de Fra Giocondo ou
de Cesare Cesariano – e que, desconhecendo o escrito de «De Pittura» de
Alberti, optou por utilizar Vitrúvio quando define a arte da pintura como
«invenção», «proporção» e «decoro» 442. Das medidas para calcular a
proporção do corpo humano às questões relacionadas com a perspectiva, o
autor romano está sempre omnipresente, levando Francisco de Holanda a
considerá-lo mesmo em questões que para o português estariam fora do seu
âmbito: «E das cores, de que eu alguma coisa pudera dizer, não digo mais
pela grande melancolia que tenho de M. Vitrúvio, que sendo arquitector
soube delas tanto como escreve no sétimo livro que as ensina a fazer e a
apurar (vede, se entenderia no debuxo e pintura!), e de ver que os nossos
pintores modernos sabem tão pouco do seu ofício, sabendo um pedreiro
tanto da nossa arte. E pois ele com menos razão se meteu tanto na minha
disciplina, eu prometo de me meter outro pouco na sua em seu lugar» 443.

3.2.5.1.3. «Da pintura arquitecta»

Um dos aspectos curiosos, porventura nunca analisados na obra de


Francisco de Holanda, relaciona-se com o curioso conceito que o teórico
português tem acerca da arte da arquitectura ou, dito por outras palavras, da
suposta redutibilidade da arquitectura – e por inerência da escultura – à
superioridade da pintura como arte do «desenho» por excelência:
«A arquitectura também é empresa da pintura e próprio seu
ornamento pela proporção e correspondência das partes dos edifícios e

441
Cfr. Francisco de Holanda, Da Pintura..., pág. 34-35.
442
Cfr. Sylvie Deswarte, «Francisco de Hollanda et les études vitruviennes en Italie», pág. 237-238 e 254.
443
Francisco de Holanda, Da Pintura..., pág. 73.

225
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

dos seus membros; e M. Vitrúvio nos seus preceitos afirma como o desenho
e a razão da pintura é ao arquitecto grandemente necessária, tanto que
sem ela não dá perfeição à sua arte de edificar. E a arquitectura eu a
comparo e lhe chamo pintura encorporada em matérias grossas e para
mais próprio me parece a embasamento, ou próprios degraus de seu
assento e pés.
E estimo eu em muito a arquitectura, tanto que a tenho por uma
digníssima e antiga ciência, e assim mesmo lhe chamo a varanda e
passadiço, por onde a celestial arte da pintura passeia por sua recreação e
desenfadamento, feita de colunas coríntias sobre a ordem jónica»444.

Holanda considera a arquitectura como «empresa» da pintura e


«próprio seu ornamento», ou seja, é trabalho do pintor e mesmo sua
decoração, prevertendo deliberadamente a razão de ser das duas artes, dado
ser a arquitectura «pintura encorporada em matérias grossas», tida como
superfície com função de suporte, de «embasamento» para o pintado. Mas
esta aparentemente estranha opinião radica num entendimento que se torna
claro quando consideramos o parágrafo seguinte: «E quando o desenhador
não quiser usar da arquitectura com o príncipe que serve, para deixar
viver os outros arquitectores, ao menos não pode negar áquele tal senhor
servir com o desenho e invenção de toda a obra nos edifícios que fazer
quer, para que os tais oficiais hajam de acabar sobre o seu desenho e
sobre o que ele der por conselho e juízo e traça, se aquele príncipe serve
em boa fé, porque nenhum arquitector, ou pedreiro pode chegar com seu
saber a alcançar o que acha o desenho em sua arte».

O teórico português coloca em oposição o paradigma do «artista-


arquitecto» com o «arquitector», o mestre de pedraria ou arquitecto com
função de construir um edifício. Não está a falar de arquitectura mas sim de
desenho arquitectónico como fundamento da arte. Sendo a pintura a mais
perfeita das artes fundadas no «desenho», cabe ao «artista-pintor» debuxar
obras arquitectónicas dado que o «arquitector», esperto em matérias
construtivas, é desconhecedor da essência do desenho enquanto fonte de
toda a arte. A figura do arquitecto moderno é exemplificada pelo autor com
Baldassare Peruzzi que dominava toda a prática construtiva mas tinha a
vantagem de conhecer e exercitar a «invenção do debuxo e decoro».

De entre as «ciências do pintor», Holanda considerava já que «será o


desenhador ou pintor de que falo mestre de arquitectura, mais do que
outro algum pedreiro moderno, para saber a ordem e simetria do edificar,
assim para ele dar as traças e invenções dos nobres edifícios e fábricas aos

444
Francisco de Holanda, Da Pintura..., pág. 81-82.

226
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

príncipes e pedreiros, em muito mór perfeição em antiguidade e novidade e


majestade que em outro algum pedreiro, como para nos edifícios que
houver de pintar e nas colunas e membros do edificar serem em sua
medida e correspondência perfeita, e não já falsa, como se faz em algumas
partes» 445. Não obstante, alerta para a dificuldade da empresa pois «saiba
o pintor que não pode pintar nem desenhar nenhuma parte de edifício ou
fábrica sem muita razão de como a faz em sua simetria e proporção, nem
somente um perfil dum astrágalo, ou a grandeza e sporto dum cimácio ou
coroa, quanto mais atrever-se a fazer desproporcionada a coluna, e
perdido todo o edifício, sem seguir a alguma das ordens que tem» 446.

Baldassare Peruzzi, Bramante e Miguel Ângelo suportam o conceito


de «artista arquitecto» formado no «disegno» e, por extensão, na pintura e
fundamentam a visão moderna que Francisco de Holanda tem do arquitecto
por oposição ao «arquitector» exercitado apenas na prática construtiva.

É importante fazer aqui referência ao facto de Francisco de Holanda


se incluir no rol dos «arquitectos» modernos. Como bem observou Rafael
Moreira, «se procurarmos nos próprios escritos algo que se aproxime de
uma auto-definição deparamos desde logo com a famosa afirmativa da lista
das águias, que tem dado aso a tantos mal-entendidos: Eu, Francisco
d’Ollanda, que screvo estas cousas som o derradeiro dos arquitectos. O
seu sentido, porém, torna-se menos unívoco e historicamente mais correcto,
se o aproximarmos de uma frase idêntica em que se tem reparado pouco: eu
sou o menos dos grandes desenhadores. Elas esclarecem-se e anulam-se
mutuamente na mesma afirmação implícita: a de que Holanda reivindica
para si, com calculada modéstia, o papel de pioneiro na Península Ibérica
desse ideal de artista nutrido nas artes do desenho a que se dava o nome de
arquitecto» 447.
Neste sentido, e ainda segundo o mesmo autor, «parece-nos muito
arriscado imaginar que para Holanda esse termo fosse outra coisa do que
um conceito bebido em Vitrúvio e Alberti, designando, por antítese ao
termo tradicional de pedreiro, o artista instruído na arte e das traças melhor
proporcionadas e em conhecer a razão da simetria. Ele vê a «pintura-
arquitecta» como um ramo da Pintura ; e que não se sentia identificado
com o sentido estrito que a palavra ganharia ao longo do século XVII,
decorre claramente da passagem em que opõe o arquitecto Vitrúvio á
«nossa arte» dos pintores ; assim, para ele, «arquitecto» no sentido

445
Francisco de Holanda, Da Pintura..., pág. 34.
446
Cfr. Francisco de Holanda, Da Pintura..., pág. 82.
447
Rafael Moreira, «Novos dados sobre Francisco de Holanda», Sintria, pág. 630.

227
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

genérico, definia-se como pintor e desenhador mas de maneira ambígua


igualmente». Arquitecto e pintor, «sem ser uma coisa nem outra» 448.

3.2.5.1.4. Francisco de Holanda e Sebastiano Serlio

Embora Francisco de Holanda cite avultadamente Vitrúvio, quando


trata especificamente das ordens arquitectónicas vale-se quase na totalidade
de Sebastiano Serlio e do seu Livro IV, embora não se refira directamente
quer ao autor – excepto uma única vez, quando trata da coluna jónica –
quer ao texto de base que chega a transcrever literalmente. Sylvie
Deswarte, que em primeira instância considerou esta fonte, afirma que o
autor parece que «escolhe frases onde figura o nome de Vitrúvio, dando,
assim, a impressão que é essa a fonte» da qual retirou o modelo
apresentado 449. Basta atendermos à ordenação estilística que Holanda
refere para a construção arquitectónica: «O género de colunas, segundo M.
Vetrúvio, não são mais que três, por estas palavras: E columnarum enim
formationibus trium generum factae sunt nominationes: dorica, ionica,
corinthia e quibus prima et antiquitas dorica est nata. Namque Achaia
Peloponnesoque, tota Doris, etc. Mas os arquitectores italianos assentaram
esta ordem de colunas: toscana, dórica, jónica, coríntia, composta, ática»
450
. Repare-se que o texto refere o «compósito» serliano e não o «itálico»
albertiano.

Mas a influência e transcrição serlianas são claramente evidentes


quando Francisco de Holanda adopta as medidas que o teórico bolonhês
apresenta para as ordens arquitectónicas, compondo pequenas descrições
transcritas do texto italiano para todas as ordens arquitectónicas sem
excepção, ou a utilização de simples discurso serliano referindo-se à
oposição entre o «robusto» e o «delicado» 451. Mesmo em obras como as
«Antigualhas d’Italia» ou a segunda parte do seu tratado de pintura, os
«Diálogos de Roma», o autor português demonstra cabais referências aos
textos e ilustrações de Sebastiano Serlio que lhe serviram não só de fonte
de inspiração – como os desenhos de chaminés e portais – como colocando
mesmo na própria boca de Miguel Ângelo informações que recolhe em
passagens do seu Livro IV 452.

448
Cfr. Rafael Moreira «Novos dados sobre Francisco de Holanda», pág. 632-632.
449
Sylvie Deswarte, «Francisco de Hollanda et les études vitruviennes en Italie», pág. 260.
450
Francisco de Holanda, Da Pintura..., pág. 84.
451
Veja-se o Anexo II em Sylvie Deswarte, «Francisco de Hollanda et les études vitruviennes en Italie»,
pág. 273-277.
452
Sylvie Deswarte, «Francisco de Hollanda et les études vitruviennes en Italie» pág. 264-265.

228
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

É importante não desvalorizar o encobrimento que Holanda parece


deliberadamente produzir acerca do texto serliano, mas sim vê-lo à luz da
época como iluminação descritiva e simples de um texto obscuro e
apaixonante como o vitruviano. Face à «autoritas» esculpida em Vitrúvio,
o elogio a Serlio é velado e subentendido. Com concluiu Sylvie Deswarte,
o autor «tudo expõe como se fosse mais vitruviano que Serlio, e mesmo
como se fosse mais vitruviano que o próprio Vitrúvio, mas é através de
Serlio que Francisco de Holanda aborda Vitrúvio. Eis uma homenagem
indirecta que rendeu a Serlio. Por este uso, mesmo encoberto, reconhece
implicitamente os progressos que com ele fizeram os estudos vitruvianos:
Serlio tornou abordável um domínio difícil; clarificou um texto obscuro e
completou lacunas. Por estes exemplos concretos, tornou-o directamente
aplicável na prática» 453.
Não será por acaso que o coloca na célebre lista dos mais famosos
arquitectos do seu tempo – «Bastião Sérlio, Bolonhês, que compôs uns
livros d’arquitectura, que agora andam em Veneza» 454 – e que refere no
«Da Pintura Antiga» que se encontrou com «Bastião Serlio, bolonhês, que
escreveu da arquitectura, o qual me deu na cidade de Veneza o seu livro da
sua própria mão» 455. É possível que tenha sido a edição conjunta dos
Livros III e IV editadas em 1540 ou a primeira edição do Livro IV de 1537
que Francisco de Holanda possuía 456.

3.2.5.1.5. O «Da fabrica que falece à cidade de Lisboa»

Com a morte de D. João III perde-se o protagonismo que Holanda


afirma ter alcançado junto da Corte – e que, todavia, é difícil de avaliar em
termos práticos que não teóricos e sem que se saiba o que realmente
aconteceu. Não nos cabe aqui discutir as razões deste facto mas recordar a
lembrança que o autor faz no prólogo do Da fabrica recordando a D.
Sebastião os idos tempos joaninos e a memória da sua mais valia perdida, à
qual fizemos acima menção expressa. Este pequeno-grande resumo das
necessidades arquitectónicas da capital do Reino é redigido com um
profundo sentimento de nostalgia pela posição perdida e como retrato
melancólico e desapontado de uma «cidade sem obra». Afirma Holanda:
«Já que por culpa do tempo nunca se aproveitaram de mim em muitas
obras em que pudera servir este reino com o pequeno talento meu,
determinei, ainda que ando ao presente mui longe destas coisas» redigir
este texto «considerando eu quão descomposta está Lisboa de fortaleza e

453
Sylvie Deswarte, «Francisco de Hollanda et les études vitruviennes en Italie», pág. 268.
454
Francisco de Holanda, Diálogos em Roma, edição de José Feliciano Alves, pág. 91.
455
Cfr. Francisco de Holanda, Da Pintura..., pág. 83.
456
Cfr. Sylvie Deswarte, «Francisco de Hollanda et les études vitruviennes en Italie», pág. 254.

229
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

quão desonrada do que lhe muito importa» 457. Deliciosa é a imagem onde
se vê como um jogador de xadrez que analisa melhor as situações quando
está, não a participar no jogo, mas aparte da partida.

Redigido em 1571, no «Da fabrica que falece à cidade de Lisboa»


Francisco de Holanda traça um retrato desolador de uma cidade sem um
sistema fortificativo, um palácio régio e um templo «modernos»,
apresentando para todos propostas apercebidas através de debuxos que o
próprio autor designa como modelos a aplicar. Os desenhos apresentam-se
em estado bruto, denunciando alguma falta de rigor e esquematismo mas
perfeitamente entendíveis nas soluções que propõe desde os modernos
sistemas abaluartados para a defesa do Tejo até aos modelos «romanos»
para o palácio régio e o templo sebástico.

Depois de exortar o passado e de enunciar algumas das principais


obras realizadas por D. Manuel – os Paços, Belém e Misericórdia – e D.
João III – o forte do Castelo, o sistema de abastecimento de água de Belas,
o início da fortaleza de São Julião da Barra e do Palácio de Xabregas –
passa a registar a situação lisboeta nos inícios da década de 70 e as suas
propostas. Dedica-se, em primeiro lugar, às questões da fortificação, não
deixando de salientar que se deve antes de tudo «fortificar a alma» e depois
o corpo/mundo. Queixa-se de que a cidade não está defendida e apresenta
um solução em dois níveis. Por terra, partindo do lugar de Castelo Velho, e
incluíndo as colinas de Nossa Senhora da Graça e Nossa Senhora do
Monte, deve cercar-se todo o perímetro urbano com muros e portas de
acesso fortificadas inspiradas em modelos «antigos». Em outro plano
redige um sistema defensivo da barra do Tejo – incluindo um projecto que
posteriormente será tido em conta, o forte de Cabeça Seca no meio do rio –
articulado com a necessidade de concluir duas obras já edificadas: a
fortificação de Belém e de São Julião da Barra. Esta devia ser realizada
tendo em conta as duas margens do rio e os seus baluartes deveriam ser
«rasos e baixos e fortissimos e feitos não de pedra e cal, mas de tijolo
cozido mui delgado e forte, que é muito mais seguro. Digo do
embasamento ou pé do baluarte para cima, que deve ser de pedra lioz; os
quais baluartes ou bastiães podem ser conformes a este desenho, ainda que
a forma seja pequena por não caber em o livro maior» 458.

Em relação às moradias reais, lembra a empresa de D. João III que


«começou uns Paços, os melhores de Portugal (ainda que com algumas
imperfeições, ou descuidos no desenho) que por sua morte não ficaram

457
Francisco de Holanda, Da fábrica que falece à cidade de Lisboa, edição de José Feliciano Alves, pág.
11-12.
458
Cfr. Francisco de Holanda, Da fábrica..., pág. 19-20.

230
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

acabados. E também me lembra o grande contentamento com que sua


Alteza me dava conta e razão da arquitectura de tal obra, e das grandes
coisas que sobre ela com ele passei» 459. Note-se que Holanda não afirma
que foi o autor do projecto mas que, junto do monarca, servia como
conselheiro em matéria de arte criticando mesmo as «imperfeições ou
descuidos no desenho» que foi seguido, pese embora o destaque
soberanamente. A fábrica parou com o falecimento do rei e estava
abandonada há praticamente duas décadas, insistindo Holanda por três
vezes com D. Sebastião para que a conclua: «E acabe os Paços de
Exobregas magnificamente, antes que de todo se percam, assim e da
maneira que os houvera de acabar El-Rei seu avô com muita
magnificência, se quer por não deixar perder e em parte desautorizar o
conselho e determinação que neles mostrou. E eu, ainda que ando já fora
de pinturas, pois de tão pouco servem neste tempo, lhe quero ainda fazer
os desenhos para as heróicas pinturas e para todo o mais ornamento de tal
obra, e também para todas as fortalezas e templos desta cidade em forma
maior, e para tudo o mais em que servir». O autor defende que o monarca
português pode e deve «ter uns ilustres Paços, dentro em a fortaleza que
digo; com uma capela pintada, e com salas e câmaras de estuque ou
pintadas sobre bordom ou a fresco: como é costume dos Reis antigos e
modernos» 460.
Francisco de Holanda não nos diz até que ponto construtivo os paços
régios se encontravam edificados. Apresenta-nos, sim, um debuxo de sua
autoria que poderá incluir algumas das características já presentes no
projecto joanino: um palácio fortificado «à italiana» assente num alto
embasamento rusticado e em duas alas rematadas com quatro torreões
unidas por um pátio central, defronte ao rio. O complexo régio inclui uma
mata real e uma «casa do parque» para retiro do monarca.

Não deixando de apontar questões importantes como a do imperioso


abastecimento de água a Lisboa – para o qual diz ter feito «um desenho
para a trazer ao Rossio por quatro elefantes, ao modo deste desenho, que
El Rei muito desejou fazer antes de sua morte» – a terceira grande proposta
que pretende transformar a cidade em termos de «modernidade» trata da
edificação de uma igreja monumental dedicada a São Sebastião, que o
próprio monarca tinha iniciado por essa mesma altura: «Encomendo e
lembro a Vossa Alteza já que com tanta razão lhe faz com Lisboa templo e
casa do seu nome no sítio que tem começado; que lha faça ornar e fazer e
acabar com tanta perfeição e cuidado, que não se queixe disso este meu
livro: e já q eu não lembro a Vossa Alteza nem a Lisboa, nem lembrei,
nem para escolher o sítio, nem para fazer o desenho da traça ou
459
Francisco de Holanda, Da fábrica..., pág. 22.
460
Cfr. Francisco de Holanda, Da fábrica..., pág. 22-23.

231
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

arquitectura, nem para lhe escolher o mestre (como homem havido por
inútil), sendo tudo isto meu ofício: ao menos não se esqueça disto que digo,
nem da pintura dos retábulos e imagens» que Holanda não se digna
debuxar por legar «a outrém que o melhor saiba fazer» 461. Não restam
dúvidas do ostracismo a que foi votado e de que a sua proposta para São
Sebastião era, a todos os títulos, antagónica ao modelo projectado por
Afonso Álvares, provavelmente na linha das catedrais «joaninas» e nunca
concluído.
Cabe destacar a sua proposta arquitectónica para a Capela do
Santíssimo Sacramento – uma vez mais inspirada na arquitectura que bem
conheceu em Roma – de planta centralizada e onde se concebe um percurso
unitário desde o exterior até à própria custódia que reproduz basicamente o
alçado exterior do edifício, magnificamente ilustrado em quatro espantosos
desenhos, que aconselha ser «de obra e pedras ilustradas, e de ouro, e
prata, e pintura, e arquitectura, a mais escolhida e eminente que haja na
Igreja de Deus (e se não, não se faça): a qual fique em sua gloriosa e vossa
memória em quanto o mundo durar, e também Capela dos Reis que depois
virão», tal como o fizeram D. Manuel e D. João III em Belém 462.

Se desde a primeira linha se sente o desfeito estado de espírito do


redactor, este não deixa, perto do final, de apontar o facto de ninguém lhe
conceder atenção, nem mesmo D. Sebastião, crendo ter realizado um
trabalho inglório e inútil. Mas este caderno de Francisco de Holanda prova
o «estado da arte» da cidade lisboeta e da própria circunstância do país em
termos artísticos nas décadas de 60 e 70: um quase total desinvestimento
em obras régias, o abandono de projectos anteriores inconclusos e o
desinteresse que os tempos sebásticos, com raríssimas excepções,
demonstram por avanços no campo da modernidade arquitectónica.
O «Da Fábrica» é um retrato fiel da realidade artística portuguesa
durante as primeiras décadas da segunda metade do século XVI. Embora
para muitos custe dizê-lo, só com o período filipino se concluirá um palácio
real, uma igreja patrona da cidade e um projecto de defesa consistente com
a dignidade da capital do reino.

3.2.5.1.6. Conclusão

Quando Francisco de Holanda torna a Portugal, o país aderia já à


linguagem do «ao antigo» e no seu célebre auto-elogio não deixa de
manifestar alguma amargura pelo facto de não ser arauto da boa-nova :
«Seja-me a mim lícito dizer como eu fui o primeiro que neste Reino louvei
e apreguei ser perfeita a antiguidade, e não haver outro primor nas obras,
461
Francisco de Holanda, Da fábrica..., pág. 32-33.
462
Cfr. Francisco de Holanda, Da fábrica..., pág. 35.

232
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

e isto em tempo que todos quase queriam zombar disso, sendo eu moço e
servindo ao Infante Dom Fernando e ao sereníssimo Cardeal Dom Afonso,
meu senhor.
E o conhecer isto me fez desejar de ir ver Roma e quando dela
tornei, não conhecia esta terra, como quer que não achei pedreiro nem
pintor que não dissesse que o antigo (a que eles chamam modo de Itália)
que esse levava a tudo; e achei-os a todos tão senhores disso, que não
ficou nenhuma lembrança de mim» 463.

Não obstante, deve considerar-se o reparo que Holanda faz àqueles


que praticam o estilo «antigo» desconhecendo o corpo de regras e normas
essenciais teóricas que lhe competem, crítica implícita à realidade
portuguesa que encontra perto da viragem da primeira para a segunda
metade de Quinhentos: «Vemos até agora a alguns pedreiros tão
desapaixonadamente entalharem quanto lhes vem à vontade nas suas
colunas, e encher de serafins os frisos, sem nenhuma advertência de como
corrompem seu ofício, não têm tanta culpa os pintores em encherem os
ramos e de pilares todas as paredes dos seus retábulos, porque imitam uns
aos outros».

A fortuna que Francisco de Holanda certamente sonhava ter com o


regresso da península itálica nunca a teve. O carácter excepcional e
«vanguardista» da sua obra, bem como o ostracismo a que foi votado, não
permitiu que contribuisse, na prática, para uma real abertura de uma via
«antiquizante» de carácter eminentemente teórico, dentro dos problemas
que o vitruvianismo encarnava e que o autor conheceu, mas não
compreendeu na totalidade, durante a sua estada em Itália. Veremos que a
falta de interesse pelas questões teóricas em Portugal ou, se se quiser, o
«não querere comunicar cõ os proximos a sçiençia» – como, décadas
depois, refere o «preposições matemáticas» – levou a que grande parte das
questões especulativas levantadas pela «rinascità» artística, no geral, e pelo
vitruvianismo, no particular, não encontrassem eco no nosso país que
aprenderá a linguagem arquitectónica moderna, em termos gerais, bem
mais pela prática continuada do que pela existência de um suporte teórico
formativo e preparatório.

463
Francisco de Holanda, Da Pintura ..., pág. 41.

233
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

3.2.5.2. Dois anónimos manuscritos da segunda metade do século


XVI

3.2.5.2.1. O manuscrito da Biblioteca Nacional

Encontra-se no espólio da Biblioteca Nacional um dos raros


manuscritos portugueses dedicado especificamente a questões relacionadas
com a arquitectura 464. Sem título, data e anónimo, o escrito foi identificado
por Rafael Moreira como sendo da segunda metade do século XVI.

3.2.5.2.1.1. A razão da «autoria»

Rafael Moreira estudou aturadamente este manuscrito em dissertação


de Mestrado. Na tentativa de datar o códice, identificou que o tipo de papel
usado era típico dos reinados de D. Sebastião e de Filipe II de Castela,
durante os anos 70 465. Sustentando este dado, outras informações insertas
no próprio texto permitem datá-lo com alguma segurança: a referência ao
imperador marroquino Mulei Mohamed Almutauwáquil – no texto «Molle
amete» – e ao cerco e libertação de Mazagão de 1562, mas também a D.
Lourenço de Almada, filho primogénito de D. Antão, 5º conde de Almada,
mencionado especificamente numa questão teórica colocada por si ao
redactor do texto 466. Partindo desta última referência, o referido historiador
conclui que «só durante a sua permanência na corte entre 1572 e 1577,
como companheiro de D. Sebastião, ela se pode ter verificado;
concretamente, após 1575, já que era pouco antes dos 20 anos que se
iniciavam os estudos da Matemática, após o ciclo preparatório das artes
que D. Lourenço deve ter completado em Coimbra», fixando a data de
1576 para a redacção do manuscrito 467.

No que concerne à autoria do «tratado», tendo em conta a erudição


demonstrada, os italianismos do texto – que provam o conhecimento da
tratadística italiana – e o facto de ter sido redigido no círculo régio, Rafael
Moreira conclui tratar-se de um «arquitecto português, portanto, de
tendência científica, formado em Itália, ligado à corte sebástica,
combinando uma sólida formação classicizante com a cultura matemática
dos arquitectos militares e fundindo tudo isto no primeiro projecto

464
BN, Reservados, códice 3675.
465
Rafael Moreira, «Um tratado português de arquitectura do século XVI. 1576-1579», Universo
Urbanístico Português 1415-1822, pág. 360.
466
D. Lourenço de Almada nasceu em 1555 em Condeixa, deve ter realizado estudos em Coimbra,
frequentou o ambiente cortesão e combateu em Alcácer Quibir onde ficou cativo, sendo posteriormente
resgatado. Faleceu em 1597 e está sepultado na capela-mor da igreja de São Marcos, Coimbra. Cfr.
Rafael Moreira, «Um tratado português de arquitectura do século XVI. 1576-1579», pág. 365-368.
467
Cfr. Rafael Moreira, «Um tratado português de arquitectura do século XVI. 1576-1579», pág. 368.

234
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

tratadístico de arquitectura de que temos notícia em nosso país – eis o perfil


que apresenta o desconhecido autor do Tratado de 1576, base segura para
qualquer tentativa de identificação» 468. Num raciocínio de eliminação de
probabilidades, atribuiu o texto ao arquitecto régio António Rodrigues, à
época, mestre das obras de fortificação, sucessor de Miguel de Arruda 469.

3.2.5.2.1.2. Influências teóricas

São várias as informações insertas no texto que apontam para as


fontes a que o anónimo autor recorreu. A mais imediata é o incontornável
Vitrúvio que o autor cita quase uma dezena de vezes na primeira parte do
seu manuscrito, utilizando essencialmente o Livro I – onde se incluí o
célebre «paradigma do arquitecto» – e o Livro II que trata dos materiais de
construção. Procura estender a definição do arquitecto ao fortificador – no
que respeita aos conhecimentos necessários para desempenhar essa função
– mas também recorre ao texto vitruviano no que diz respeito a aspectos
práticos como à cozedura da cal e do barro. É relevante declarar que o autor
parece desconhecer – ou se o conhece não o usa nem sequer de forma
indirecta – o tratado de Alberti que, por sua vez, partindo da visão
vitruviana, desenvolve questões práticas que estão ausentes no escrito
português.

Outra fonte identificável é o L’Architettura de Pietro Cataneo,


publicado em Veneza em 1567 e que no seu Livro II e Livro VI trata de
questões análogas às que aqui importam. Embora mantendo a sua
identidade, encontram-se ecos do texto italiano no manuscrito português
essencialmente nos capítulos referentes aos diversos tipos de madeira –
capítulo VI a IX do Livro II – e à importância da água – capítulos II a VII
do Livro VI – sendo mesmo, dos autores acima citados, o único que faz
referência a Avicena, Hipócrates e Galeno e à sua justificação de que a
água da fonte é a de melhor qualidade pois «ao sol se purifica».

Por sua vez, a segunda parte do manuscrito dedicada às questões da


Geometria, faz claramente uso e menção dos escritos de Sebastiano Serlio
concretamente quando o autor italiano desenvolve questões relacionadas
com o desenho em perspectiva no Livro II, publicado em 1545. Por três
vezes – nas proposições 34, 35 e 36 – cita o seu nome e directamente a sua
fonte italiana: «Sebastianus Serlio bolonhes todas as feguras que escrusou
no livro da prespetiva q fez». A técnica de representação das proposições

468
Rafael Moreira, «Um tratado português de arquitectura do século XVI: 1576-1579», pág. 372.
469
Sobre os argumentos de Rafael Moreira consulte-se «Um tratado português de arquitectura do século
XVI. 1576-1579», pág. 370-379. De referir que, no último fólio do manuscrito, existe uma referência a
um Lopo Roiz – «Este lliuro é do sñor Llopo roiz» que poderá tratar-se de um seu familiar.

235
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

que apresenta relaciona-se com os exemplos serlianos sendo gritante o uso


da coluna «al’antico» da lâmina XXXIIII do Livro III de Serlio para
demonstrar a preposição 41.

3.2.5.2.1.3. Análise descritiva da obra

O manuscrito incorpora duas partes distintas, uma primeira parte


dedicada a algumas questões teóricas e à construção e uma segunda parte
directamente relacionada com as questões de desenho e representação
geométrica.

O «Livro I» –chamemos-lhe assim por uma questão metodológica –


inicia com a exposição de um cenário mitológico-cristão acerca da origem
da cidade fortificada, recorrendo à mítica povoação formada por Caim.
Segue-se-lhe uma breve alusão ao paradigma vitruviano do arquitecto e à
importância da arquitectura enumerando-se Dédalo, Pitágoras, Arquimedes
e Vitrúvio como alguns dos que dela fizeram uso e que contribuíram para a
purificar. Para realçar a importância da fortificação, recorda-se o papel de
Arquimedes e o cerco de Siracusa e, nos tempos modernos, a cidade de
Marselha e a defesa de Mazagão que «se llyvrou do poder de molleamete
por ter demtro em sy omes emtemdidos nestas hartes». Para o autor o
aperfeiçoamento da arte de edificar encontrou o seu auge no tempo em que
«os romanos foram ssñores do mundo», recordando as obras que
realizaram como o Teatro de Marcelo, as Termas Antoninas e «muytos
harcos de trehufo e outros muitos edefisyos» fixando o orgulho pelo
paradigma renascentista da arquitectura «al’antico» 470.
Valendo-se do texto fundador vitruviano, destaca a mais valia do
fortificador desde os tempos antigos, pelos quais «os habitadores da
povoasão vevyam sem trabalhos e emfermydades e se sabiam defemder de
seus enemygos, lhe faziam capellas de llouro com q os lloureavão e os
tomavão por seus defensores em quamto viveão e despois de mortos lhe
faziam esttatuas pera q dellas ficase memorea». Duas razões surgem como
fundamentais para este tipo de reconhecimento – «para lhe grateficar seus
servisos» e «pera os que despois viesem lhe darem ho estado nas ditas
hartes por q semdo espertos nellas seriam llaureados como hos pacados e
teve tamta forca este llaureamemto q os habitadores das povoassois
ffaziam hos sytios e não faziam hos omes senão estudar de dia e de noute
para virem a ter nome e serem conhesydos e estimados por ssuas artes».

O elogio ao profissional da arquitectura passa pelo texto vitruviano e


pela exigência de um saber teórico-prático enunciado da seguinte forma:

470
BN, códice 3675, fl. 4. Todos os excertos têm leitura nossa.

236
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

«Convem q haquelle q em vez de fazer proffição destas Artes q tenha


engenho por q syemsya sem emhenho não haproveita nada nem emgenho
sem syemsya menos portamto emtemdose ho que dis vetruveo q allem de hu
omem ser syemtico q tenha descurso por esta arte criouse da fabrica e do
descurço fabrica som haqueçças couzas q são nesessarias pera se fazer ho
edeffisyo e asy como he pedra e call e area he tegollo e madra e pregadura
e telha nos estrometos como q hestas couzas hapuram para se pore em
hobra descurço hemtemder as propiedades de todas estas couzas e
emtemder ho tempo q he nesessario para se por em hobra e emtemder ho
llaurar e asemtar delas para se por em hobra e emtemder ho llaurar e
asemtar delas para emtemder se estam em ssua debita rezão llavrados he
hasemtados pera ho quall dis vetruveo q pa hu ome emtemder ysto q a
mester llargo tempo para ser verssado nellas e portamto dis desçurso ho
quall descurso não he outra couza se não tempo e quamto ha propiedade
das couzas q cabem ha ffabrica em diamte se dara decllarasão dellas» 471.

A partir daqui passa a enumerar por capítulos os conhecimentos


essenciais para que se edifique uma povoação fortificada:

- Capitollo da emlleisam do sytio


- Capitollo em q se trata q couza e regyam e de sua bondade
- Capitollo q trata do ar e de sua propiedade
- Capitollo hem q se decllara a propiedade dagoa
- Capitollo das partes q ha de ter ho arquiteto
- (Capítulo sobre o fortificar com terra) 472
- (Capítulo sobre as propriedades da cal)
- Capitolo da propiedade do baro pera tiyolo
- Capitolo do tempo e no que se ade fazer o edeficio
- Capitolo q trata do tempo cóvenyemte para se poder fabricar
- (Capítulo sobre as propriedades da madeira)

Sustentando-se sempre na sabedoria dos antigos, inicia o discurso


pela «emlleissam do sytio» para o qual enumera um conjunto de razões a
que se deve atender – a boa escolha da região, «posto q veveriam hos omes
sem ssospeita do quemte nem do frio», dado que «nos ares não teriam
tamtas enfermydades» e com águas sadias «sseriam hos omes gallardos e
bem despostos» ; boas terras para a produção de mantimentos e para a
alimentação e procriação de animais ; florestas com muita lenha ; a escolha
do local ideal para construir a povoação que não «avia de fazer amtre seras
nem em vales por q os omes q em tall sytio nasesem não serião de cllaro
emgenho» dado que «os ares q se ally çriassem seriam groso e dariam
471
BN, códice 3675, fl. 5.
472
Estes capítulos entre parêntesis não estão identificados com o respectivo título.

237
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

trabalho aos habitadores q halli abitasem por serem quemtes e umydos» ;


que o «sytio seya visto de llomge por q semdo de llonge visto hos enemygos
não se poderam allogar perto de sua povoasão e o achegar ha ella custaria
muyto trabalho e lhe comsomeria muito tempo» e, por último, que aí se
pudesse facilmente utilizar o «arco q por yso dezia q semdo posyvell
quamdo fezessem quallquer nova povoasão q ha fezese em sytio q se
podese sservir delle e cõ ysto comçlluyrão as partes q havia de ter hu bom
sytio». Conclui afirmando que esta é uma situação ideal sendo importante,
antes de tudo o mais, assegurar as três primeiras causas que se propõe
analisar com mais profundidade.

No «capitollo em q trata q couza e regyam e de sua bomdade» 473


faz de novo recurso a um conhecimento teórico introdutório: «Hos Amtigos
devedirão no mundo em symco zonas das quais diserão q duas se podiam
habitar e as tres q se não podiam habitar hua pr ser quemte e as duas por
serem frias», como afirma Ptolomeu, reproduzindo as medições e
repartições do globo terrestre segundo as linhas e graus com o objectivo de
tornar explícitas e delimitadas as zonas habitáveis e inóspitas, afirmando-se
que «semdo a regiam quemte q as ruas das suas povuoasois fossem
estreitas por q ho soll não fezese noyo aos habitadores della e semdo a
regiam fria q as ruas da povoasão fosem llargas para serem llavadas do
soll».
Segue-se-lhe o «capitollo q trata do ar e de sua propriedade» 474.
Define os quatro elementos constituintes das coisas, fogo, ar, água e terra
distinguindo-os segundo as suas características e destacando a função do
vento como elemento a ter em conta segundo o seguinte princípio: «Por
domde ho vento vem portamto he nesesario q quamdo se fizer quallquer
ydefisyo hasym publico como privado q comsyderem muito bem q vemto e
haquelle q mais pasea o sytio domde se quizer fazer ho tall hedefisio e
tamto q tiverem emtemdido q vemto he e asy sotiarão ho tall edefisio no
sitio e ya q temos emtemdido q o ar he quemte he umydo e asy tambem
havemos de emtemder q muitas vezes se varya e esta variedade lhe nase
das teras per domde paca como poderemos dezer pasamdo este veto hou
este ar por teras apaulladas hou agoas emxarcadas hou por teras q não
fossem llavradas e pasãdo por syma destas teras perdera a bomdade q
tiver e se comverta nos vapores q estas teras de sy deitarem portamto he
nesesario q permeiro q se faça ho edefisyo q se olhe em torno do tall sytio
allgus pauis e outeros por llavrar hou vallagoas q não tenhão espedimento
pera se saberem guardar de seus vapres estamdo hopostos estes roiz
vezinhos a povoasao daquella parte daquelle vemto q mais hasenhorear
constamdo daquella parte lhe buscarão remedio pera deles se defemderem
473
BN, códice 3675, fl. 7vº-8vº.
474
BN, códice 3675, fl. 8vº-9vº.

238
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

e e ho melhor remedio q lhe pode dar he volltarem as costas do tall


edifisyo hou povohasão pera haquella parte domde estas roizares vem».

Trata-se de seguida da terceira causa essencial, designadamente no


«capitollo hem q se decllara a propiedade dagoa» 475. Neste particular, o
autor aconselha a que se proceda a um exame no qual se utilize um
recipiente para analisar se deixa ou não resíduos, como terra ou lama que
desmentem a sua qualidade. De todo o tipo de águas destaca a água da
fonte em relação à água do poço que «não e tam boa por ser perfumda da
pero ho semtro da tera e o soll não lhe poder comsomir sua çruelldade».
Avisa que muito mais se poderá conhecer através dos escritos de Galeno,
Avicena, «Ypoecllos» e do «doutor llagura», ou seja, respectivamente,
Hipócrates e o contemporâneo André de Laguna – autor do «De sectione
humani corporis contemplatio» (Paris, 1535) e do «Epitomes omnium
Galeni» (Paris, 1553).

A última parte do designado Livro I deveria tratar dos dois modelos


materiais definidos pelo autor para construir uma fortificação, de pedra e de
terra mas curiosamente afirma-se que «aquyllo q temos atras dito trata
mais da ffabryca de muro q de tra ho q agora tratarmos dauy adiamte
trataremos da forteficasão de tra e de ssuas cõdisoys». Inicia-se, assim,
novo capítulo sobre o «fortificar com terra».
A primeira chamada de atenção vai para a distinção entre «fachyna»,
os ramos de árvores «delgados como ho dedo meymynho da mão de hu ome
comum os quais serão de cõprimento de tres pallmos ate quatro muyto
dereytos como ssãoos vymes» e «ffrasca», os ramos da «grossura da perna
de hu ome aryba do artelho os quais serão dereytos e terão de cõprymemto
quatrorze ou quymze pallmos», indispensáveis para a construção dos
fundamentos da fortificação, indicando-se os diferentes tipos de madeira e
as suas propriedades específicas pois «esta fforteficasão de tra se não pode
fazer perfeytamente forte e duravell» sem utilizar «grades de madra
emcazadas huas com as outras haquall llygassão se fara da mesma ssorte
das arvores de q se artou a facharya e a frasca cõ tall cõdissão que seyão
paos dyreytos e cõprydos e grosos que se possão ssarar por o meo e de hu
fazer dous pa menos despeza e a manra estas grades de como Am de ser
ffeytas e asemtadas em seu llugar q amostrara em debuxo» 476. Faz-se
ainda referência à necessidade de utilizar boas estacas para as fundações e
bons terrenos e num longo parágrafo, à «llota» ou «grama», erva que se
475
BN, códice 3675, fl. 9vº-10. Vitrúvio desenvolve no Livro VIII, capítulos segundo e quarto as
questões respeitantes à água da chuva, como a de melhor qualidade, e a salubridade da mesma,
aconselhando a que se note na saúde dos próprios habitantes. Também Pietro Cataneo se refere à água no
seu Livro VII, capítulos segundo a sexto.
476
O manuscrito original não apresenta qualquer desenho ilustrativo, pese embora o texto aponte para a
sua necessária inclusão.

239
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

encontra «pollos campos e valles e pavys humydos» muito útil para a


fortificação de terra.

O passo seguinte fornece explicações sobre a qualidade da pedra para


se produzir cal 477. O autor aconselha ser necessário adquirir pedra que
participe mais da humidade – «por rezão q a pedra q for de ssua natureza q
seca não pode dar llustro por q o ssol lhe tera cõsomydo toda ha sua
umydade e esta humydade q lhe cõsume lhe tira a força de sua natureza» –
dado ser importante para a cozedura na sua transformação em cal. A
mistura da cal com a areia – sendo a melhor a que é produzida por
«myneyro de sua natureza» – e o momento acertado a aplicar a cal ao
edifício são igualmente objecto de referência especial, com a ressalva de se
evitar utilizar materiais facilmente inflamáveis «por q semdo ynutelles
cauzarão gramde peryoyzo a dita fabrica e ho forteficador q não fizer ssu
forteficassão cõ materiass q não seyão Autos nem sofesiemtes não
Allcamsara honra de suas hobras e fica com a syemsya não seu quall sera
portamto comvem Ao prymsype q fortecasoys mãodar fazer q permeyro
faca boa emlleysão asym do mestre hou do forteficador seys esperto nestas
couzas asyma ditas pa q seu dinheiro seya despendido utelmete para q
tenha gosto da dita forteficasão q mãodar fazer».

O capítulo posterior é dedicado à «propiedade do baro pera tiyolo»


478
, começando por aconselhar a que se analise a sua qualidade: «Tomãdo
hu pedaco de baro na mão deytarlheam hua pouca de aguoa per modo q

477
Sobre as propriedades da cal diz-nos Vitrúvio no Livro II, Capítulo 5º: «Explicadas as diversas classes
de areia, devemos ocupar-nos agora, com o mesmo cuidado, sobre a cal que se obtém pela calcinação de
pedra branca ou sílice. A cal que resulte de pedra dura e compacta será muito útil na construção e a que
resulte de pedra mais porosa será melhor para os rebocos. Quando a cal está pronta, mistura-se com
areia da pedreira, em proporção de três partes de areia e uma de cal, mas se se tratar de areia do rio ou
de mar misturam-se duas partes de areia por uma de cal. Assim se fará uma exacta e justa proporção.
Consegue-se uma mistura de maior qualidade se se juntar á areia do rio ou do mar uma terceira parte de
barro moído. Portanto, quando se junta água e areia á cal, consegue-se consolidar a obra e a razão
parece ser que, como todas as substâncias, as pedras também estão compostas pelos quatro elementos
básicos: as que possuem ar são brandas, as que possuem mais água resultam ser mais dúcteis por causa
da sua humidade, as que têm mais terra são duras e as que têm mais fogo são quebradiças.
Consequentemente, se antes de as submeter ao fogo colocamos algumas destas pedras pulverizadas e
misturadas com areia, não adquirem solidez nem se poderá manter em pé a construção. Mas, postas ao
fogo no forno, vão perdendo a força da sua solidez ordinária, tomadas pelo calor intenso do fogo ;
abrasadas as suas virtualidades, ficarão com os seus poros patentes e tornar-se-ão esponjosas. Em
conclusão, uma vez consumidos a água e o ar, inerente a estas pedras, no seu interior possuirão um
calor latente e subsistente; molhando-as na água, antes de receberem a força do fogo, ao ir penetrando a
humidade na porosidade de suas pequenas aberturas, começam a aquecer e, deste modo, ao refrescá-las,
sai o calor do interior da cakl. Por isso, quando as pedras se colocam no forno, ao fim de algum tempo
não mantém o mesmo peso e quando as voltamos a pesar, tirando-as do forno, embora mantendo as
mesmas dimensões, descobrimos que perderam quase uma terça parte do seu peso, pois o seu elemento
líquido foi depurado pelo fogo. Portanto, quando a cal mantém abertos os seus poros, se mistura
facilmente com a areia, une-se conjuntamente e, ao secar, alcança a solidez dos edifícios se a
misturarmos com pedras de cimentar».
478
BN, códice 3675, fls. 18-20.

240
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

ho façça molle e despois q formalle tomarão hu pequeno delle emtre hos


dedos e verão se he masyo he semdo masyo sera nesesaryo mesturaremno
cõ houtra callydade de baro q não seya tam masyo como helle e ou com
sorte llarea q partesype mais de tera q de area de modo q despois q este
baro for hamasado ho tomarão na mão he achamdo crespo estara bom
cõssertado e não no achamdo haymda crespo deytarlheam mais area de
modo q sseya mais crespo q masyo e desta maneira estara bem
perpeseonado para fazer bom llavor». Preocupando-se com o que diz
respeito à sua exacta densidade material para ser aplicado à construção,
recomenda que a mistura do barro com terra ou areia deve consumir toda a
sua humidade, referindo também a cozedura e o tempo necessário para
secar, não menos de dois anos e evitando o sol, como aconselha Vitrúvio
479
.

O penúltimo capítulo é dedicado ao «tempo e no que se ade fazer o


edifício» 480, ou seja, acerca do período do ano mais indicado para a
edificação: «Todo ho ydefysyo q se fizer de pedra e cal asy publyco como
pryvado q se não llavre senão he tempo comvynyemte para q estas
materyas facão fresa em breve tempo huas com as outras para q este
edeficyo fique perfeyto e durar mais tempo». Propõe-se que o período ideal
para a construção seja quando a temperatura for moderada, não sem que se
justifique a escolha com um discurso «ptolomaico».
O exemplo que o autor utiliza para demonstrar que a edificação deva
decorrer num período de dias «nem grandes nem pequenos» é o da própria
cidade de Lisboa: «O seu mayor dia he de catorze horas e coremta menutos
e o mais pequeno he de nove oras e vimte menutos portamto he nesesaryo q
quamdo se houver de ydifycar quallquer edefisyo nesta alltura em q llisboa
estever asemtada q senão fabryque senão cõ devydirem no tempo q ho soll
479
No Livro II, Capítulo 3º aborda Vitrúvio o problema da seguinte maneira: «Vou referir-me, em
primeiro lugar, aos ladrilhos, indicando o tipo de terra mais conveniente para a sua fabricação. Não
devem fabricar-se nem de areia nem de terra pedregosa, nem de terra de areia grossa, pois se se
fabricam com estas terras resultam pesados e quando se colocam nas paredes, se descompõem por efeito
da chuva e se desfazem. Para além disso, as palhas (refugos) não se comprimem bem devido a sua
aspereza. Devem, pois, fazer-se de terra esbranquiçada abundante em argila, ou terra vermelha, ou de
saibro forte e grosso. Estes tipos de terras possuem grande consistência pela sua ligeireza, não sendo
difícil trabalhar com elas e colocamse com facilidade. Devem fabricar-se durante a primavera e no
outono para que sequem totalmente ao mesmo tempo. Os que se fabricam durante o solestício têm
imperfeições, pois, o sol seca-os por fora e dá a impressão de que estão secos por completo, mas no
interior continuam húmidos ; posteriormente ao secar-se de novo, a parte já seca contrai-se e destroça-
se completamente e assim, fendidos, resultam inúteis e ineficazes. Os melhores são os que se fabricam
com dois ou três anos de antecipação; com menos tempo não é possível que sequem completamente.
Assim, pois, quando se utilizam sem deixar secar e são recentes, ao juntar um estucado demasiado duro
mantem-se fixos, mas ao secar não podem manter a mesma rigidez e sofrem variações devido á
construção ; não aderem bem com o estucado, mas sim separam-se ; em consequência ao separar-se o
estucado da parede, devido á sua debilidade, não podem manter-se por si sós e caiem assim em pedaços ;
inclusive as mesmas paredes, se por causalidade se mantêm, acabam por requebrar-se». No Livro VII,
Vitrúvio tece outras considerações acerca da preparação do estucado ou reboco e sobre as cozeduras.
480
BN, códice 3675, fls. 20-22.

241
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

gasta emtre este dous estremos em duas partes yguais cõvem a saber numa
destas partes sera ho bom fabrycar e fazemdose na houtra sera pergoyzo
pera ho ydefisyo como agora declaararemos estas duas partes comesara
quamdo ho dia for mayor e a outra parte comesara quamdo ho dia for
menos e as outras duas ficarão yuntas no meo e no tempo q ho soll amdar
nestas duas partes do meo sera bom para se fabrycar em llyxa hou em
quallquer outra tera q estever asemtada em sua alltura».
Se esta regra é indicada para os edifícios que se fizerem de pedra e
cal, no «capitolo q trata do tempo cõvenyemte para se poder fabricar de
tera» 481 o autor defende que se deve seguir no mesmo sentido dado que
nesta altura «esta ha tra em esposysão para fazer preza hua com a houtra»
e se «deyxara melhor cavar e melhor asemtar».

O último capítulo é consignado ao tempo indicado para se cortar a


madeira, dissertando-se acerca da qualidade dos seus diversos tipos: «Por
esperyemssia temos emtedido q a llua tem domenyo sobre todas as couzas
cryadas fryas e umydas e portamto e nesessaryo termos cõta cõ as forcas q
a dita q a dita llua tem cõ estas arvores pois q hellas sam de sua natureza
fryas e umydas primsypallmte nenhua arvore se cortara quamdo tiver fruto e
o mylhor cortar dellas e quamdo acabar de perder ho seu fruyto», estando
nesta altura a madeira mais seca, mais leve e mais forte para ser cortada. A
esta ideia, destacada por Pietro Cataneo no seu Livro II, junta-se-lhe a
enumeração de vários tipos de árvores própria para a construção.

O «Livro II» é dedicado à Geometria e, consequentemente, à


construção e representação dos objectos em perspectiva sendo que a
utilização dos Livros I e II de Sebastiano Serlio é por demais evidente. O
autor introduz-nos o tema e a sua causa imediata da seguinte forma: «Neste
capitollo sse declaara q couza he giometria gyometria não he outra couza
q feguras as quais nam sse podem fazer sem llinhas e amhullos e pomto ho
premsypio desta harte foi em ygito ha quall yremos haquy decllaramdo
cada couza por si e trataremos daquellas feguras q para este tratado são
nesessarias com ha decllarassão de cada hua e o pera que servem polla
dita giometria se vera como não se pode fazer nada sem hella nem ha arte
matematica não se hemtemdera bem sem ser esperto na giometria haquelle
q della se delleitar portamto este tratado não avera tratar mais q daquellas
feguras nesesarias cõ ssuas decllarasois e como se amde hoperar que o
coriozo desta harte estude euçllides» 482.

481
BN, códice 3675, fl. 22.
482
BN, códice 3675, fl. 25.

242
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Após a introdução, segue-se uma série de quarenta e oito proposições


ilustradas, enumerando os princípios fundamentais da Geometria partindo
da euclidiana definição conceptual de ponto, linha, ângulo e superfície até à
definição das figuras base como o círculo, triângulo e quadrado. A partir
daqui o texto dedica-se a explicar toda a série de construções geométricas,
complexificando o assunto, dentro do sistema tradicional que seguem os
textos sobre esta matéria – representativo é a representação e explicação do
triângulo pitagórico.
Só a partir da proposição 26 e 27 se abandona o círculo restrito da
geometria descritiva e se utiliza este conhecimento aplicando-o a questões
práticas como o saber calcular a longitude. De seguida, o autor apresenta-
nos dois instrumentos, um para «tirar sitios» e outro para «saber os graus».
A partir da proposição 30, desenvolve uma série de exercícios dedicados à
representação em perspectiva, projectando-se figuras geométricas com
rigorosos desenhos exemplificativos.

Inesperadamente, o manuscrito termina com uma série de sete


desenhos de um baluarte «à italiana» de grande rigor de debuxo mas sem
qualquer comentário anexo ou ligação directa à prosa desenvolvida em
todos os capítulos anteriores.

3.2.5.2.1.4. O «paradigma vitruviano»

Um dos aspectos que importa destacar de todo o texto e que surge


imediatamente a seguir ao elogio inicial do fortificador é o «capitollo das
partes q ha de ter ho arquiteto» 483, onde se faz uso do paradigma
vitruviano com o objectivo de explicar que o bom profissional de
arquitectura terá que reunir um conhecimento multidisciplinar que abranja
saberes teóricos e práticos.
As qualidades do arquitecto passam por dominar a língua «llatina,
«saber ha arte de comtar pera q por hella decllare em q despeza em arera
ho edefisio», «ser esperto na giometria», «saber debuxar por q helle a
mostre ho seu cõseito e q a mostre como he tam nesesario hão fabricar
como cada hua das outras couzas q o entendimento decllarou e q decllare
as quatro espesyas em q esta devedido cada hua per sy como he promta e
montea e perfill e mostrara por regra de prespetiva ho escursas das couzas
# polla momtea amostrara ho allevantado hou das allturas de
fortalleza cõforme a proporsão do sytio
# polla preffice amostrara as grossuras dos muros de q ha de sser
sercumdada a fortalleza ho quall perfice não o podera fazer se não tiver

483
BN, códice 3675, fl. 10-11.

243
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

permeiro a pramta e a momtea por q por a pramta se amostra as grossuras


he pela momtea se amostra as allturas
# comvem ao q houver de fazer proficão de arquiteto 484 emtemder a
prespetiva para q por ella amostre ho esterior he o ymterior do edeficio
escursado para q escuse de fazer despeza em modello de pao hou de sera
hou de tra».

Convém ainda ao arquitecto entender «a esffera para q por hella


ssaiba hordenar sem estromentos a graduasão dos graos em q esta
cõpartida a dita esfera» bem como a «fizica par q por hella conheça as
couzas cativas q podem pergoyzo aos abitadores q houverem de abitar a
fortalezza q quer ffazer», para conhecer a qualidade do ar e da água, a
«estorllogia para q por hella declare q cllima he aquelle q paca por syma
da fortalezza que quer fazer para a emtemda se he quemte se frio para q
ssaiba cõpartir ssuas ruas e ydeficios» e ser «muzico para q emteda as
porposois».

Não deixa de fazer referência a aspectos relacionados com a arte da


guerra, declarando a necessidade de «emtemder muyto perfeitamete ha arte
da artelharia pois q cõ hella ade formar a saa fortalleza ho q lhe cõvem
como couza emportamte», bem como conhecer o armamento e a sua
eficácia – se o «canhao se he bem fomdido e se tem ho matall q cõvem» ou
se a própria pólvora «se tem muyto emxofre hou pouco se tam mais carvão
do nesaryo». Para além disso deve dominar todos os conhecimentos que
digam respeito aos materiais a utilizar sejam eles a terra, a cal, a madeira
ou o tijolo. Conclui afirmando que «semdo o aquiteto esperto nestas couzas
atras ditas podera caber amtre aqueles q são espertos nestas proffissois e
se não holhe ho que dis vetruvyo q aquelle q houver de fazer profficão
desta arte hou symsya q lhe cõvem como couza emportamte não lhe faltar
nenhuma couza das ssobreditas e asy lhe vy nesesaryo ser grave e
ellegamte e reitoryco pa q sayba dar suas rezois cllaras ssobre aquylo a
quer decllarar» 485.

3.2.5.2.1.5. Conclusão

No seu comentário, Rafael Moreira considerou o manuscrito uma


obra de cariz escolar e ao «serviço de uma ideologia basicamente não-
clássica, ‘moderna’, insensível a considerações de outra ordem que não
fossem da pura utilidade e da economia», um «manual de construção

484
A palavra «forteficador» encontra-se riscada.
485
BN, códice 3675, fls. 10-13.

244
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

barata, compêndio sistematizador – teórico, na medida mesma em que não


o é – desse ‘estilo chão’ que então se estava a afirmar» 486.
Relacionou-o com a existência de uma «escola dos moços fidalgos»
que acompanhavam a aprendizagem de D. Sebastião, fazendo parte de um
sistema do ensino régio toda a teoria supra apresentada e tendo como
intenção «fornecer ao Príncipe e seus colaboradores os instrumentos que
lhes permitam empreender uma política eficaz de construções, isto é, os
critérios gerais para defini-la e os conhecimentos úteis ao seu controlo» 487.
Segundo o historiador, o arquitecto António Rodrigues participava assim
da docência, a par do cosmógrafo-mor Pedro Nunes, tendo como objectivo
– partindo de um programa de estudos que incorporava Euclides, Vitrúvio,
Serlio e Cataneo – formar um público de «práticos» e «entendedores», ou
seja, «todos aqueles que tinham nas mãos o poder concreto sobre as obras,
dirigindo-as e decidindo no local: governadores de praças, provedores de
obras, tesoureiros, etc. Na hierarquia profissional, estas funções estavam
acima das do mestre e imediatamente abaixo das do rei e seus ministros, de
que eram os executores».
Concluía tratar-se, assim, de uma «obra de gabinete, de estúdio, não
de oficina de trabalho» residindo aqui a sua originalidade: «O seu fim não é
instruir técnicos nem formar o gosto de clientes, mas preparar os gestores
de obras públicas, aos quais procura incutir uma boa educação na arte e
propagandear a nova imagem do arquitecto como artista liberal. Ainda que
liminarmente visando um público mais vasto, o seu destino directo era esse
corpo de altos funcionários régios por cujas mãos passava a maior parte da
construção civil e militar do país. Identificando-se com eles, o nosso
tratadista simultaneamente definia-se como homem de uma certa classe, e
marcava a distância que separava os verdadeiros arquitectos dos mestres-
pedreiros, simples oficiais mecânicos».

Colocando de lado a existência ou não de uma «escola de moços


fidalgos» ou a sua singularidade para a caracterização do suposto «estilo
chão» – questões que tratámos noutro lugar – esta conclusão merece
algumas considerações críticas. Não deixa de causar estranheza a solução
de mercado encontrada por Rafael Moreira – um texto atípico para um
grupo de funcionários intermediários entre o monarca e os mestres de
pedraria executores de obras arquitectónicas. Não poderá deixar de
questionar-se esta inaudita opção já que não só no exemplar preparado para
publicação da Biblioteca Municipal do Porto, que trataremos de seguida, se
afirma claramente que o objectivo é formar profissionais da área da
arquitectura como não vemos a necessidade de um provedor de obras ou de

486
Rafael Moreira, «A arquitectura militar do renascimento em Portugal», pág. 289-290.
487
Citações retiradas de Rafael Moreia, «Um tratado português de arquitectura do século XVI. 1576-
1579», pág. 389-390.

245
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

um governador ter conhecimentos específicos sobre a triangulação ou a


composição e mistura de materiais construtivos. Parece-nos que o referido
historiador, dando-se conta da quase completa ausência de teoria
directamente relacionada com a prática arquitectónica – bem como com o
gosto moderno – tentou encontrar um «público» particular para tão
particular escrito. Ora, a nossa perspectiva é bem diversa.

Comecemos por passar em revista o título atribuído ao manuscrito –


«manual de fortificação».
O autor usa o termo «fortificador» e «fortificação» com regularidade
durante o texto o que coincide com a nomenclatura da época e pode, de
alguma maneira, também coincidir com a sua posição social no campo da
hierarquia régia dos profissionais de arquitectura. Todavia, dois
pormenores devem ser tidos em conta. Em primeiro lugar, como facilmente
se depreende por todo o texto, estende-se o conceito de «fortificação» a
toda a construção e não especificamente ao sistema defensivo. Em segundo
lugar, especialmente num dos capítulos onde se revela um conhecimento
mais actualizado dos novos conceitos modernos – o dedicado às «partes
que há-de ter o arquitecto» – a palavra «fortificador» encontra-se riscada
por várias vezes e substituída pelo termo «arquitecto». Entre o fólio 11 e o
fólio 13 tal acontece sete vezes. Ora, se o redactor usou claramente o texto
vitruviano e se pudessemos supor que tinha como intenção adaptar o
conceito de arquitecto ao fortificador, faz o oposto ao optar por riscar o
segundo termo. Este pormenor é importante por várias razões, dado que
não parece tratar-se de uma modificação posterior em segunda mão – quer
seja pela novidade do termo «arquitecto» e o autor opte por ele, quer
manifeste ainda a sua não generalização e/ou compreensão na década de
70.

Seja como for, o «manual de fortificação» é, em abono da verdade,


um «manual de construção» que qualquer mestre de pedraria com sólida
formação poderia redigir na segunda metade do século XVI. Acerca da
fortificação especificamente considerada, moderna ou não, o texto tem
muito pouco. É perfeitamente visível que todo o saber exposto seria inútil,
sob o ponto de vista teórico-prático, a um arquitecto que pretendesse
aprender os métodos da fortificação moderna. Pese embora o uso do tratado
de Pietro Cataneo e a inclusão, no final do texto, de uma muito correcta
série de desenhos de um baluarte «à italiana», não é possível desmentir a
redacção que se leva a cabo. Nada se diz sobre os sistemas defensivos
modernos e seus modelos, sobre a teoria da fortificação ou mesmo sobre a

246
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

problemática das cidades fortificadas nos seus modelos ideais, algo muito
tido em conta neste tipo de escritos.
Num plano mais genérico, estão também ausentes todas as questões
especulativas e estilísticas respeitantes à arquitectura quinhentista e
sintetizadas na problemática da ordem arquitectónica como definidora
estrutural e mesmo decorativa do edifício bem como, a título de exemplo,
nenhuma referência existe em relação ao característico rusticado típico das
estruturas defensivas – algo ainda mais estranho quando toda esta
informação estava disponível nos textos italianos consultados, quer em
Cataneo, quer em Serlio.

Não obstante, é nas próprias limitações e condicionantes que o texto


apresenta que se encontra a sua representatividade. Redigido por um
profissional do círculo régio, supostamente especializado em obras de
fortificação e conhecedor da importância da base geométrico-matemática e
de tudo o que diz propriamente respeito à edificação, da escolha do local
aos materiais construtivos, o manual é típico do «mestre de pedraria vestido
de arquitecto» dos meados do século XVI.

O manuscrito insere-se ainda dentro do espírito humanista, coligindo


saberes de carácter generalista. Face ao manifesto saber tradicional de
origem técnico-prática de raiz medieva, é moderno quando adopta o
princípio vitruviano do paradigma do arquitecto, quando pratica o desenho
técnico com qualidade e quando demonstra a especial preocupação por dar
relevo à base geométrico-matemática da sua profissão, exercitando com à
vontade os princípios euclidianos tão em voga na época dos
Descobrimentos. Medidas as respectivas distâncias, diríamos tratar-se de
um texto parente à produção literária do Quattrocento italiano onde a nova
cultura humanista se une a um saber tradicional de carácter prático ligado
ao conhecimento dos materiais de construção e às suas propriedades. É
nesta linha que conduz a sua atenção quando utiliza Vitrúvio, Cataneo ou
Serlio, não dando qualquer importância aos fundamentos especulativos da
arquitectura renascentista quer tratem da teoria das ordens ou de modelos
da fortificação moderna.

Ao fim e ao cabo, a raison d’être do manuscrito fica-se pela


definição de normas formativas do profissional de arquitectura – consciente
de um base de estudo multidisplinar com relevo para a estudo matemático-
geométrico – e pela enumeração de um conjunto de conhecimentos práticos
acerca da construção. Pese embora o ineditismo e toda a valorização que se
possa realizar em torno do texto no panorama português, nada deve
implicar que seja tido por aquilo que não é.

247
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Por mais que se tente encontrar no manuscrito uma visão


vanguardista do conhecimento teórico régio em meados da década de 70, o
texto demonstra, pelo contrário, a ausência de um correcto entendimento da
modernidade tratadística, pese embora as fontes utilizadas para a sua
redacção. Sublinha as dificuldades ainda existentes no «separar as águas»
entre a defesa da posição de arquitecto – moderna e suportada pelo
paradigma italiano – e a insconsciência em relação ao entendimento da
forma como ele se consubstancia na prática de um modelo arquitectónico
novo. Mais do que uma raiz moderna o manuscrito denuncia as limitações
de uma época.

3.2.5.2.2. «Proposiçois Mathematicas»

Na Biblioteca Municipal do Porto encontra-se um pequeno texto


redigido em português, anónimo, intitulado «proposiçois mathematicas» e
dedicado às questões da Geometria mas orientado, como manual prático,
para o arquitecto 488. Não se trata, pois, de um tratado de arquitectura no
sentido restrito mas de um escrito sobre a base teórica geométrico-
matemática que facilmente faria parte de um texto mais completo. O
manuscrito está incompleto, sem numeração, mas organizado para futura
publicação, na medida em que possui uma dedicatória e uma interlocução
ao leitor.

3.2.5.2.2.1. Dedicatória e interlocução ao leitor

Transcrito em única e cuidada caligrafia inclui, no primeiro fólio,


uma dedicatória a D. Manuel de Portugal 489 e apresentam-se, através dela,
os objectivos a que o autor se propõe: «Muitos são os que em nossos
tempos muito illustre sñor se ão posto he sepoem a screuer e publicão suas
obras em diuersas proffissiões, como vemos assi por mostrar seu engenho,
como pa uso do proximo, os quaes merecem muito louuor; pois que a sua
tençam he boa, e quanto mais aquelles que debaixo de breuidade declaram
seus conceptos. Pollo qual peço a V. S. que de mim aceite este peqno suiço
destes principios da Mathemathica: por q debaixo de seu emparo não terão
os que pouco entendem q diz, pois que está claro o grande engenho q. V. S.
tem e todas as sciencias, principalmente na arte da architectura e
fortificação. E por V. S. ser este ouue ElRx nosso sñor por bem de lhe
entregar o carrego de fortificacam de seus Regnos. E isto fez por q
488
BMP, Reservados, manuscrito nº 95.
489
D. Manuel de Portugal é uma figura importante na realidade da segunda metade do século XVI. Tinha
a seu cargo importante posição no que dizia respeito à fortificação do reino. Foi ele que, em 1559,
contratou Tomaso Benedetto da Pesaro e até à união dinástica, teve papel preponderante neste particular.
Defensor do Prior do Crato, foi amnistiado por Filipe II mas perdeu todo o seu poder e influência a partir
daí. Cfr. Rafael Moreira, «Um tratado português de arquitectura do século XVI. 1576-1579», pág. 394.

248
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

entendeo q daqui endiante seram seus Regnos melhor fortificados do que


até este tpo forão. Por tanto peço a V. S. q meu atreuimento me pdoe: pois
que atenção he de suilo, nestes dous uolumes de que tracto, o primrº hé de
alguas opperações geometricas, sem as quaes se não pode fabricar, o
segundo he das partes que ha de ter a Regiam e o sitio e a augusa, e o
compartir do sitio, e das partes das materias q conue ao bom fabricar. E
por q debaixo de tam illte sangue e tam claro entendimto como he o de V. S.
me não negará o q peço em receber esta fadiga de meu pouco entendimto
como cousa sua: por q com sua luz dara resplandor aos q daqi por diante
quisere screuer, e com meu atreuimento tomarão motiuo pa o fazerem».

O autor do manuscrito pretende, desta forma, apresentar uma súmula


acerca dos princípios básicos matemáticos orientados para a área da
arquitectura e fortificação, pretendendo desenvolvê-los ao longo de dois
livros, o primeiro dedicado a «algumas operações geométricas, sem as
quais se não pode fabricar» e o segundo acerca das «partes que ha de ter a
ter a região e o sítio e a augusa, e o compartir do sítio e das partes as
matérias que convêm ao bom fabricar». Como se torna claro, esta
informação concorda com as matérias desenvolvidas no manuscrito da
Biblioteca Nacional. O carácter eminentemente prático do escrito é
claramente assumido, pretendendo enunciar os fundamentos essenciais da
Geometria que suportam o desenho arquitectónico e, num segundo tomo,
tratar acerca da escolha dos locais e materiais convenientes para a obra que
se pretende erigir. Todavia, o manuscrito apenas incorpora o primeiro livro,
aliás inacabado pois faltam as últimas imagens explicativas dos respectivos
textos insertos nos últimos fólios.

Segue-se-lhe uma interlocução ao leitor o que prova, desde logo, que


o objectivo do seu autor era o de o fazer publicar como texto original e da
sua autoria: «Muitas Razões (discreto lector) me comouerão escreuer este
tratado de pedaços de mathematica (se a qual nenhu pode ser perfecto
architecto ne os officiaes acabados 490 em seus offiçios e artes ne ellas be
entendidas. Hua das quaes foi uer quã aborresçida he a Ds, a soberba,
cabeça dos mais peccados, de cuja iactançia nasce a auareça, donde ue
aos de fraco entendimento, ingratos da merçe de q Ds lhes fez, não querere
comunicar cõ os proximos a sçiençia q cõ elles repartio, o mesmo Ds,
suma sabedoria, e diante que todo o saber do mundo he nada) como muitas
uez uimos e lemos, muitos homens insignes em artes e sciencias acabare
seus dias, se querere insinar os secretos e demostrações dellas, a outro
algum, bem pouco lembrados do q diz o apostolo, não nasçer o home pera
si só. Outra he, não por çerto confiança de mim mesmo, por q conheco q

490
Palavra que substitui texto riscado, inserta ao lado direito.

249
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

sey não saber nada, senão uer os engenhos dos Portugueses, 491 tão claros
e sutis quanto pode ser no extremo grao) andare botos por falta de liuros
desta arte compostos no idioma, e lingoaje Portugues, E a altura hé q
puderaa ser q este atriuimento meu de por 492 esta obra na praça (onde
huns reprehedem, outros mofão, e os discretos encobrem faltas, e cõ
palauras uirtuosas desculpao erros) occasião de outros escreuere, e
diulgare suas obras, das quaes, não tão somente (tenho pera mim)
resultaraa muito proueito a nação Portuguesa, mas tambe as estrangeiras.
E pois assi he e o prinçipal zello q me forçou a escreuer, foy pera proueito
cõmum, peço ao mordaz reprima a lingoa, e a applique a boa parte pera
cõ a aiuda do alto e immeso sor e fauor dos studiosos poder tirar a lux
outra obra q trago antre as mãos, que creo, não seraa menos proueitosa q
esta, aos q quisere cõ studo espicular a operação della, e não as mal
limadas palauras minhas».

Esta nota é da máxima importância para a historiografia artística


portuguesa na medida em que nos traça um fiel retrato dos meados da
década de 70. Apresentando duas razões essenciais que o moveram a
redigir o texto – a divulgação do conhecimento e a falta de livros em
português – mostra um claro ressentimento acerca da realidade portuguesa
no que diz respeito à atitude face ao conhecimento da arte da arquitectura,
revelando o conflito entre a tradição «medieval» e a modernidade
«renascentista» acerca da aprendizagem e transmissão de conhecimentos e
saberes. A sua crítica mordaz vai directamente aos «muitos homens
insignes em artes e ciências acabarem seus dias, sem quererem ensinar os
segredos e demonstrações» insistindo na total falta de legado do saber às
gerações futuras.
Mais do que utilizar este argumento na defesa da transcrição deste
saber para a língua portuguesa, mais do que defender a importância dos
conhecimentos básicos da matemática para se poder ser «perfeito
arquitecto» ou mesmo «oficial acabado em seus ofícios e artes», o autor
marca uma posição face ao sistema tradicional, fechado e corporativo, que
é ainda aglutinador e maioritário na mentalidade quinhentista da época.
Para além desta questão, manifesta-se a inexistência de «livros de
arte compostos no idioma e linguagem» portuguesa, revelando que a
composição de textos acerca da arquitectura ou de questões análogas por
parte dos mestres portugueses era praticamente nula, fruto da mentalidade
da época e não da voragem do tempo. Daí que o autor avance contra a
mentalidade e hábito instituídos permitindo-se compor um texto em
português orientado para o «proveito comum», desculpando-se com a
tradicional humildade retórica mas firme de intenções.
491
Ricado «por çerto».
492
Riscado «na praça».

250
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

A sua relação com o manuscrito anterior é clara, na medida em que


se faz menção ao conteúdo do escrito lisboeta no suposto segundo livro que
o autor se propõe igualmente fazer publicar. Para além deste facto, Rafael
Moreira denunciou que as marcas de água provam tratar-se do mesmo tipo
de papel sendo esta, para o referido historiador, uma «redacção definitiva,
versão de luxo» do texto conservado na Biblioteca Nacional 493. Todavia,
não existe uma correspondência textual integral em relação à versão
lisboeta dado que trás novas informações e, usando mais as fontes teóricas,
se revela mais completa.

3.2.5.2.2.2. Influências teóricas

Contrariamente ao habitual – mesmo comparando com o escrito


lisboeta – o manuscrito raramente faz menção a fontes específicas
indicando de forma directa as obras que consultou. Menciona o inevitável
Euclides por três vezes, Joaquim Rethicus (1514-1576) discípulo de
Copérnico que publicou uma pequena exposição da teoria heliocêntrica,
Vitrúvio – quando se refere ao teorema de Pitágoras – e Serlio por uma só
vez. Não obstante, o texto é tudo menos original. Na sua quase totalidade é
uma transcrição exacta de partes dos tratados de Geometria de Sebastiano
Serlio e de Pietro Cataneo que seguem os princípios euclidianos. Neste
sentido, se por um lado, a utilidade deste manual em português é a sua
característica mais valorativa, não deixa de ser importante denunciar a
deliberada ausência de citações nas partes em que se limita a transcrever
outros autores, embora em algumas proposições o teórico português
demonstre dominar as matérias de que trata, desenvolvendo-as no texto
explicativo e mesmo complexificando as ilustrações.

O Livro I de Sebastiano Serlio, dedicado à Geometria, foi publicado


pela primeira vez conjuntamente ao Livro II, sobre a Perspectiva, em 1545
e o autor deve ter utilizado a edição italiana original. Apenas por uma vez
se refere expressamente o nome do tratadista bolonhês: «Sebastiano Serlio
as 16 folhas do seu primeiro liuro de geometria, diz que sendo neçesario
fazersse hu portal de altura de sete palmos, e de largura 4 palmos nao
ouuesse outra cousa de q fazer a porta, q de hua taboa q te dez palmos de
comprimento, e tres palmos de largura como se mostra por a figura a b c d
querendo da dita taboa fazer a porta pera o portal em duas partes igoaes
do ponto a ao ponto d por a linha de angular, correra o angulo a tres
palmos pera o angulo b e asi tãbe correra o angulo d pera o angulo c tres
palmos».

493
Rafael Moreira, «Um tratado português de arquitectura do século XVI. 1576-1579», pág. 393.

251
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

São vários os exemplos directos retirados do texto serliano. A título


de exemplo, a proposição 35 segue a do fólio 8 verso – segundo a edição
inglesa de 1611 – o mesmo se pode dizer da proposição 9 em relação ao
fólio 13 ; a figura ilustrativa da proposição (13) e (14) parte dos modelos
do fólio 5 do escrito serliano, um deles ilustrativo de um segmento de uma
coluna com caneluras e outro de um ângulo de entablamento.

Outra fonte utilizada é o tratado de arquitectura de Pietro Cataneo,


publicado em 1567, essencialmente o Livro VII dedicado às questões da
Geometria. Sem qualquer necessidade de se ser exaustivo, recorra-se à
proposição 1 que segue literalmente a proposição 16 do texto italiano –
«como se duplica um quadrado» – ou a proposição 30 que usa a proposição
15 sobre «como se forma uma figura oval diminuida».

No que concerne a Vitrúvio, na proposição 32 494 o autor português


refere-se ao texto fundador dos tratados de arquitectura modernos: «Diz
Vitruuio no livro nono ao segundo capitulo q a enuenção do esquadro foy
de Pytagoras a qual enuenção foy mais necesaria q fazerse podia. Diz q o
esquadro se faz de tres linhas hua hé de tres partes, e a outra de quatro e a
ultima de çinco. Digo q desta proposição se cõprehende q fazendosse estes
tres quadrados perfeitos segundo comprimento de cada hua linha q o
quadrado q se fizer da linha q tem çinco partes seraa tão grande como os
dous quadrados que se fizere das duas linhas das tres partes e das quatro
partes como por a figura se mostra verbigracia he o quadrado de çinco
partes cõ tem ensi 25 e o quadrado de quatro partes te 16 e o de tres tem
nove claro estaa q dezaseis cõ noue faze vinte e çinco como da figura
seguinte se ve».
Pode-se facilmente saber qual a edição utilizada. Na obra latina do
teórico romano, a referência ao triângulo pitagórico está de facto no Livro
IX mas na introdução e não no segundo capítulo. Ora este não é um erro da
parte do autor português na medida em que consultou o I Dieci Libri
dell’Architettura, editado em 1556 – revisto e aumentado em 1567 –
traduzido e comentado pelo humanista Daniele Barbaro. Nesta edição, no
Livro IX, ao fólio 349, surge o capítulo II intitulado «Della squadra
inuentione di Pitagora per formare l’angulo giusto» 495. A ilustração
publicada nesta famosa edição surge ao fólio 351 e foi igualmente utilizada
como demonstração no texto do teórico português.

494
Uma das proposições fora da sequência, entre a proposição 7 e a proposição 8.
495
Vitruvio, I Dieci Libri dell’Architettura. Tradotti e commentati da Daniele Barbaro, fol. 349.

252
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

3.2.5.2.2.3. A «razão da geometria» e uma invenção

O «preposições matemáticas» consta de um conjunto exaustivo de


regras básicas da geometria orientada para o uso e costume do arquitecto. É
o próprio autor que na «difinição 21» nos elucida acerca da sua
importância: «Muito neçesario he a todo genero de estudate q de qualquer
sçiencia se quer aproueitar estar mui aduertido nas difinições da tal
sçiencia, por Rezão q acabadas as ditas difinições de aprender, ficão
sempre por fundamento da tal sçiencia, e por tanto lhe he neçessario
encomedar as ditas difinições a memoria e trazelas sepre diante dos olhos.
Pello que ecomedo ao architecto q nestas difinições desta sçiencia
geometrica as encomende sempre a memoria, matematicamente, pois lhe
são tão neçessarias, e estar mui auertido nos seus occorrentes termos, e em
todas as propriedades q das ditas difinições se causão».
Insiste-se, ao longo do texto, na necessidade do arquitecto não se
cingir apenas ao conhecimento das regras base pois «conue ao architecto
proçeder mais auante pera ser be pratico nesta sçiencia geometrica por q
tem a sobredita sçiencia taes incõuenietes q muitas uezes poderaa
aconteçer ao architecto não ficar honrrado nella não sendo be pratico na
dita sçiencia» – proposição 3.

Segue-se o modelo euclidiano enunciado por um conjunto de vinte


definições 496 sobre os seus elementos básicos: a definição de ponto, linha,
superfície, ângulo, círculo, diâmetro, para além das figuras geométricas
básicas – círculo, triângulo e quadrado – entre outros aspectos. Depois da
exposição dos elementos constituintes o autor justifica o passo a seguir na
«difinição 22»: «Despois q o architecto estuver be aduertido nestas
difiniçõees passadas couem proçeder adiante com a causa que da dita
sçiencia geometrica se causa por tanto lhe he neçesario por os pontos e
linhas, e angulos, saber acresçentar e diminuir qualquer figura por
estranha q seja em sua debita forma como aaqui por diante se mostra por
seus fundamentos approuados por Razoes euidentes espiculatiuas da dita
sçiencia». Num primeiro conjunto de trinta e uma proposições aprende-se a
duplicar um quadrado, círculo ou triângulo, a reduzi-los, aumentá-los ou a
transformar uma das figuras em outra, para além de informações acerca das
suas variantes geométricas como, a título de exemplo, o compor de uma
figura oval. Segue-se um segundo grupo de trinta e três novas proposições
497
dentro da mesma linha, exemplificando-se como se podem duplicar
figuras geométricas, tirar a parte de um círculo, duplicar qualquer figura de
496
Em boa verdade são 20 as definições dos elementos geométricos dado que as definições 21 e 22 são
meramente explicativas da opções que o autor toma.
497
Se exceptuarmos as quatro proposições – entre a proposição sétima e oitava – enumeradas como a 32ª,
33ª, 34ª e 35ª proposição que inclui o teorema de Pitágoras, segundo a demonstração de Vitrúvio e que
aparecem sem sequência numérica mas textual.

253
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

diversos lados e ângulos, utilizando-se motivos concretos relacionados com


a arquitectura como o fazer um arco ou um portal. A grande totalidade das
definições e proposições são acompanhadas por desenhos explicativos, de
bom rigor e qualidade ao nível do desenho, pese embora, copiados de
Serlio e Cataneo.

A título de exemplo veja-se a proposição (26) que trata da questão da


perspectiva: «Todas as cousas q estão longe da vista tanto mais perde e se
diminue do q perde as que estão mais uezinhas a uista do olho, e a causa
do diminuimeto hé o ar espesso q consume a nossa vista. E querendo q as
coisas q estaão mais longe representem na 498 grandeza as q estaão
uezinhas ao olho se teraa a Regra q se teue na columna trajana em Roma a
qual hé a seguinte. Faraa primeiro o prudente architeto eleição donde ha
de aver as figuras q hão de estar hua ençima da outra, e fazendo o olho
çentro faraão hu quarto de hu çirculo, o qual seraa numerado, e donde a
linha, q se tirou ao oliuel do olho fez termo na parede daquelle oliuel pera
çima, poraão o comprimeto da primeira figura q ha de estar mais perto do
olho, e do fim da sua altura deitaraão hua linha ao cetro do quarto çirculo
q hé o olho, e donde tocar esta linha ao quarto çirculo, a linha do oliuel
seraa hua das partes do numero em que ha de numerar o quarto do çirculo
como se mostra nos dous pontos a b. e abrindo hu compaso do ponto a. ao
ponto b. cõ esta abertura, hirão numerando o quarto do çirculo, e do
çentro do olho aos pontos do numero do çirculo se tire as linhas direitas
ate hirem encõtrar o perfil da altura donde sahio o termo da primeira linha
a segunda linha hé a altura da segunda figura e asi se hiraa proçedendo cõ
as mais linhas, e da linha a linha hé a altura da figura como se mostra por
os numeros, em que estaa numerado o quarto do çirculo».

Bem mais significativo é a presença de exemplos da sua aplicação


prática à arquitectura. O caso mais flagrante é ilustrado pela célebre figura
do portal inserta no último fólio do escrito serliano no Livro I,
desenvolvido na proposição 9 do manuscrito português: «Por a mesma
regra dada na proposição do olho, se pode fazer em hu portal e ficaraa em
sua debita proporção cõ se guardar a dita regra e a este proposito quero
contar o que aconteceu a Diogenes philosofo q pasando hu dia por hua
çidade vio grandes as portas, e a pouoação muito pequena começou a
bradar e dizer q encerrase as portas não se saisse a çidade por a porta
fora e tornando ao proposito digo que muitos edifiçios se faze em que se
guarda muyto pouco as proporções q se requere pera os taes açidentes e
querendo o architeto fazer hu portal em sua debita proporção tomaraa a
largura da naue do meio de parede a parede e faraa hu quadrado perfeito

498
Riscada a palavra «maior».

254
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

como se mostra por esta figura a b. c. d. e do ponto a ao ponto b. tire a


linha deangular a b. e do ponto c. ao ponto d. tire a outra linha deangular
c. d. Partiraão o lado do quadrado a d. por o meio no ponto e. E do ponto
e. ao ponto c. se tire a linha oblica c. c. a qual cruzou a linha a b. no ponto
f. e do ponto c. ao ponto b. se tire a linha oblica e. b. a qual encruzou a
linha d. c. no ponto g. e do ponto g. se deixe cair hua linha a prumo ate o
ponto i. E do ponto f. se deixe cair outra linha a prumo ate o ponto h e do
ponto f. ao ponto g. hé a largura do portal, e do ponto g. ao ponto i. hé a
altura do dito portal. E por esta regra ficaraa em sua debita proporção cõ
tal q os mebros de q for ornado o portal não saya fora das linhas
deângulares a b. c. d. e o architeto não sera uituperado das Ruins
lingoas».

De notar que o autor português se preocupa por desenvolver as


questões apresentadas por vezes sumariamente no texto serliano,
demonstrando dominar as matérias que trata. Isto está presente na
proposição atrás declarada mas também quando trata na proposição (13) e
(14) da coluna estriada e de um segmento de entablamento partindo das
ilustrações do fólio 5º do Livro I de Sebastiano Serlio.

O elemento de originalidade de todo o texto trata da construção da


«agulha de marear» que o autor relaciona com a tiragem de medidas e
distâncias: «Proçedendo na declaração do instrumento cõ que se pode tirar
qualquer sitio em sua debita forma por mais breve via q ategora se
mostrou, Digo q antre os mareantes se usa hu instrumeto q elles chamão
agulha, e os italianos lhe chamão Bolsola a qual he tão neçesario a sua
navegação q se ella não pode fazer viagem, a qual agulha te tal
propriedade q sepre mostra hu braço ao pollo artico q he fixo no çeo isto
lhe vem da virtude q tem a pedra de çevar, e por o tocameto que a dita
pedra cõ o aço e por esta razão deste çevamento q faz a dita pedra de
çevar cõ o aço mostra sepre hu braço a este pollo artico, o qual norte he
guia da viagem e salvameto q os ditos mareantes faze por o mar, dexado a
parte o verdadeiro norte q he Christo nosso Salvador, verdadeiro guiador
de nossa salvação e nesta materia não trato por não ser de minha
profissão e ser offiçio de theologos.
A agulha he Repartida em trinta e duas partes igoaes, as quaes
trinta e duas partes estão fundadas sobre quatro principaes, o nome das
quaes hé Norte, Sul, Levante, Ponete. Estas quatro partes faze hua cruz, o
Norte estaa opposito ao Sul, e o Levante ao Ponete. A quantidade que ha
do norte a levante se reparte em oito partes igoaes, e pello mesmo modo
são repartidas cada hua das outras tres partes, dende ve q 4 vezes 8 são

255
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

trinta e dous, cuja partição e nomes, se demostra na figura seguinte. E por


ser cousa importate e muy neçessaria, como em seu lugar se diraa // não
tenha mais q encomendar, se não que couem ao Architecto, estar mui
resoluto na dita agulha e repartição della, por q estandoo, e em cadahu de
seus rumos tiraraa cõ pouco trabalho qualquer sitio em sua debita forma,
cõ todas suas estremidades, causadas dos angulos de q hé criado o tal
sitio».
De seguida, o teórico português apresenta-nos um instrumento da sua
autoria que se revela como uma alternativa ao anterior, útil para medir
qualquer sítio: «Por mais façilidade quero mostrar hua noua envenção de
instrumento para se tirar qualquer sitio, e por ser façil em sua
demostração a quero declarar ao mundo, e digo q se faça hua Regoa de
comprimento de tres palmos, e no meio da regoa deitaraão hua linha ao
longo da regoa, e nos estremos da linha estaraão duas miras, e no meio da
regra asentaraão hua agulha de aço çevada ao norte a qual estaraa em
hua caixa emcaixada no meio da regoa a qual agulha não teraa Rumos
senão a lançeta só, e entre a caixa da agulha e a regoa andaraa hua roda
de latão, ou doutro qualquer metal q não seja de ferro, e andaraa a Roda
da caixa da agulha ençima da superfiçie da Regoa, e na dita Roda estaraa
hua frodelis e querendo obrar cõ o dito instrumeto, não faraão mais q
tomar a regoa, e pola ao longo da parede, e deixaraão asentar a agulha, e
tanto q for asentada andaraão a roda cõ a roda de latão qte q a foldelis
esteja direita ao norte muy be direita q diga cõ a agulha, e então tiraraão
a regoa, e vyraão ao papel aonde quere tirar o sitio e asentaraão a regoa
de modo q a agulha torne ao sinal da foldelis, e tanto q estiver a agulha
apontada na foldelis asinaraão ao longo da regoa, e aquelle seraa o lado q
se tomou da parede, e aonde fizer angulo tornaraa a fazer o mesmo, e
desta maneira tiraraão qualquer sitio em sitio em sua propria forma cõ
todos seus angulos, e se o sitio for em capo por as miras da regoa por seus
borneos se tiraraão os lados do sitio em sua propria forma guardado a
regra dada da agulha e registo e a forma he a sgte cõ a mesma agulha se
pode tirar qualquer longitude se ser medida, e saber quantos palmos tem a
longitudo sendo em campo raso, e sendo be pratico a architeto nos seus
Rumos e por q são tantos os pensametos q corre ao architeto quero
mostrar hu instrumento, cõ que se tira qualquer longitudo, ou altitudo, ou
profundidade em sua iusta medida façilmente se dar pena ao architeto.
Faraa hu olivel muyto çerto cõ seu perpendiculo asi como se mostra
nesta fegura q estaa asinada cõ as letras a. b. c. d. e. E do angulo a ao
angulo b se repartiraa em sesenta partes, ou em outro qualquer numero q
mais quisere, e do angulo a ao angulo c porão hua parte das sesenta a
qual achegou ao ponto e e do ponto e ao ponto b deitaraão hua linha he hu
dos lados do triangulo a b e e sabida a vasa de qualquer triangulo se sebe
por ella os dous lados do dito triangulo segundo Euclides, e por este

256
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

instrumento se pode tirar qualquer longitudo, ou altitudo, ou profundidade


em sua çerta medida».

Esta realidade denuncia a importância que se dava ao conhecimento


náutico e da arte de marear em Portugal durante todo o século XVI, saber
que extravasa a área expecífica da navegação e serve inclusive de pretexto
para demonstrações eruditas por parte de profissionais de outras áreas de
conhecimento.

3.2.5.2.2.4. Conclusão

O «proposiçois mathematicas» é um livro sobre geometria básica e


projecções em perspectiva adaptado para a realidade profissional da
arquitectura. A primeira grande conclusão a reter reside no facto de o autor
do manuscrito não recorrer directamente aos «Elementos» de Euclides mas
seguir os modelos dos livros de geometria da tratadística italiana. As fontes
utilizadas demonstram-no de forma incontestável.
Neste texto o autor demonstra capacidade no entendimento das
regras geométricas aplicadas à arquitectura, referindo aspectos concretos
como a edificação de portais, colunas e entablamentos. Manifesta, assim,
uma cultura moderna, baseada no desenho arquitectónico e já muito longe
da tradição empírica que o próprio contesta de forma aberta na sua
introdução ao texto. Diga-se, em abono da verdade, que a não inclusão da
primeira parte do texto lisboeta favorece grandemente esta visão moderna.

Por mais incrível que possa parecer, o verdadeiro interesse do


manuscrito reside nas informações insertas na introdução. Como foi já
realçado, fornece-se um retrato sócio-profissional muito claro acerca do
«estado da arte» e do que diz respeito à divulgação de ensino técnico e
indústria livresca portuguesa. Traça um retrato negro da situação nacional
revelando uma resistência por parte dos profissionais da área da
arquitectura à divulgação dos seus conhecimentos. Por outro lado,
denuncia-se a inexistência de livros em português que versem matérias
básicas na preparação de um mestre dentro das directivas do paradigma
vitruviano-albertiano do arquitecto. Esta realidade torna-se ainda mais
veemente quando é proferida por alguém que, claramente, se move na
cúpula do sistema profissional, no ambiente cortesão da época, provando
que na década de 70 existem ainda fenómenos de resistência e uma clara
dificuldade na compreensão e domínio das regras da modernidade.

257
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

3.2.5.3. O «manual vignolesco» de Filippo Terzi

3.2.5.3.1. Introdução

O códice 12956, adquirido pela Biblioteca Nacional em 1989,


identifica na folha de rosto o seu autor e ano – «Filippo Terzi. Architetto e
Ingegnere Militare in Portogallo. 1578». Escrito em língua italiana, este
curto manuscrito de apenas dezasseis fólios pertenceu no século XIX a
Gomes Freire de Andrade (1757-1817) e posteriormente ao primo António
de Sousa Falcão 499.

Pese embora a sua relevância, o escrito terziano nunca foi objecto de


análise pela historiografia nacional. Apenas muito recentemente Paulo
Varela Gomes acertadamente se lhe refere, considerando tratar-se do
«primeiro conjunto de desenhos arquitectónicos feito em Portugal em que o
assunto principal são as cinco ordens» 500. Não restam dúvidas de que o
manuscrito foi redigido já em Portugal (1578) e que serviria como um
manual de instrução sobre as ordens arquitectónicas, incluindo alguns
desenhos avulsos referentes a outros trabalhos e as inevitáveis regras
básicas da geometria. Pese embora se dedique a outras questões, é acima de
tudo um resumo das regras teóricas das ordens arquitectónicas definidas
por Vignola e, certamente, um exemplo do sucesso que o arquitecto e a sua
obra alcançaram por toda a península itálica. Sabemos que Terzi está em
Roma em 1576, três anos depois da morte de Vignola, e que nessa altura a
grande referência arquitectónica da cidade era a casa-mãe jesuíta iniciada
em 1568. É de todo provável que o rigor do escrito vignolesco tenha
deslumbrado também o arquitecto e engenheiro militar bolonhês que pouco
depois rumaria a Portugal trazendo consigo um exemplar do texto italiano.

O escrito começa por fazer uma breve referência a «emtadometria, o


misura di superficie» e a «stereometria, o misura de corpi solidi», ou seja,
a embandometria ou medida das superfícies e a estereotomia ou medida dos
corpos sólidos – tudo acompanhado com respectivas ilustrações. O grosso
do texto é dedicado às ordens arquitectónicas e seus componentes, coluna e
entablamento. Ilustradas sumariamente, Toscano, Dórico, Jónico, Coríntio
e Compósito são divididas em segmentos compostos por todos os
elementos e respectivas molduras arquitectónicas. Depois de enumerar as
ordens e suas medidas base, Terzi exemplifica a riqueza combinatória dos

499
BN, códice 12956. O manuscrito encontra-se assinado e datado: «Gomes Freyre. Paris, 26 de
Setembro 1814» e por António de Sousa Falcão em Lisboa, a 26 de Janeiro de 1834. Outras informações
em A ciência do Desenho. A ilustração na Colecção de Códices da Biblioteca Nacional, pág. 88.
500
Paulo Varela Gomes, Arquitectura, Religião e Política em Portugal no século XVII..., pág. 206.

258
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

seus componentes debuxando elementos alternativos, ricos em ornamentos,


e que poderão fazer parte do todo compositivo arquitectónico.
Denunciando a sua natureza de engenheiro militar, faz representar
duas ilustrações de um canhão de guerra (fls. 4vº e 5) e no último fólio
apresenta avulso, um modelo de altar e um outro para construir postes para
cavalos.

3.2.5.3.2. A ordem arquitectónica «vignolesca»

Filippo Terzi apresenta-nos de forma resumida as medidas das cinco


ordens arquitectónicas através de pequenos apontamentos descritivos
acompanhados por desenhos 501. O seu texto é nada mais nada menos do
que um resumo da «Regola delli cinque ordini d’architettura» de Giacomo
Barozzi da Vignola, publicada em Roma no ano de 1562. No caso do
manuscrito terziano existe a preocupação por tornar legível toda a teoria
desde o simplificar da representação ilustrada da ordem arquitectónica, à
identificação etimológica dos componentes e molduras arquitectónicas e ao
desenvolvimento do texto teórico face ao original vignolesco. De forma
pontual, o autor não deixa de ter opiniões pessoais quanto a determinadas
medições arquitectónicas.

«Sobre a Ordem Toscana


Querendo fazer-se a ordem toscana, divida-se toda a altura em 19
partes, quatro para o pedestal com seus ornamentos, 12 para a coluna,
base e capitel, e três para a cornija, friso e arquitrave; depois divida-se em
14 partes a coluna, base e capitel, e uma delas será o módulo; esse módulo
divide-se em 12 partes.
A cornija, friso e arquitrave deve ser um quarto da coluna, capitel e
base que são 3:6 módulos.
O capitel coluna e base, 14 módulos.
O pedestal deve ser um terço da coluna, base e capitel, que são 4:8
módulos.
Os intercolúnios, isto é, a distância maior entre duas colunas
arquitravadas deve ser mais de 4:8 módulos.
A altura do arco, da cornija ao soco do pedestal, deve ser duas vezes
a sua largura, ou querendo, de outro modo, fazer-se arcadas de pórticos,
loggias, ou outro, a menor altura do topo da volta até à altura deve ser
duas larguras».

Para o Toscano, Vignola refere que a coluna sem pedestal deve ter
dezassete partes e meia, uma delas será o módulo e cada módulo deve ser

501
Filippo Terzi, «Manual de Arquitectura», fls. 5vº-9vº.

259
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

dividido em doze partes. O pedestal deve corresponder a três módulos e


oito partes ou à terça parte da coluna e o entablamento a quarta parte da
altura da coluna, ou seja, três módulos e meio.

«Sobre a Ordem Dórica


Divida-se toda a altura em 19 partes, à cornija, friso e arquitrave
caberá 3, à coluna com base e capitel 12, e ao pedestal 4. Seguidamente
divida-se em 16 partes a coluna, base e capitel e uma delas será o módulo,
o qual deve ser dividido em 12 partes.
A cornija, friso e arquitrave deve ser a quarta parte da coluna com
base e capitel, que são 4 módulos.
A coluna deve ter 16 módulos, com base e capitel.
O pedestal deve ser a terça parte da coluna com base e capitel que
são 5:4 módulos.
O intercolúnio, ou seja, a distância justa entre duas colunas
arquitravadas deve ter 5:6 módulos.
A arcada dos pórticos, loggias, ou outro, devem ter, do cimo da volta
até à terra, duas larguras de altura.
As caneluras da coluna são 20, feitas com triângulo equilátero,
como se observa, onde o centro é um ângulo».

O texto vignolesco destaca o pedestal com cinco módulos e um terço,


ou seja, a terça parte da coluna, o entablamento correspondente a quatro
módulos ou à quarta parte da coluna e a divisão de toda a altura da ordem
em vinte partes – o manuscrito opta por dezanove partes, dando três delas
ao entablamento – em que uma será o módulo, dividindo-se este em doze
partes. Para melhor esclarecimento, Terzi representa apenas as caneluras
através de um corte horizontal dispensando assim a representação realista
do fuste da coluna.

«Sobre a Ordem Jónica


Divida-se toda a altura em 19 partes; a cornija, friso e arquitrave
terá 3, a coluna, base e capitel 12; e o pedestal 4.
Divida-se depois a coluna, base e capitel em 18 partes e uma delas
será o módulo, que se divide em 18 partes.
A arquitrave friso e cornija deve ser um quarto da coluna, base e
capitel, que são 4:9 módulos.
A coluna, base e capitel 18 módulos.
O pedestal deve ser 1/3 da coluna, base e capitel que são 6 módulos.
O intercolúnio deve ser 4:9 módulos.
A proporção das loggias de arcos, duas larguras de altura.
».

260
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Para ilustrar graficamente a ordem jónica, o manuscrito apresenta um


desenho genérico de toda a estrutura, preferindo tratar os elementos
constituintes em desenhos parcelares – o corte vertical do entablamento
com capitel, o corte horizontal do capitel e a base geométrica de construção
da voluta, e a representação da base da coluna e respectivo pedestal em
alçado. Tudo segue o original vignolesco embora livremente no que
respeita ao ornamento interior das volutas do capitel jónico.
No seu texto, Vignola faz especial referência aos seis módulos e um
terço de coluna para o pedestal e base, às vinte e quatro caneluras do fuste e
aos dezoito módulos da coluna.

«Sobre a Ordem Coríntia


Divide-se toda a altura em 32 partes, uma das quais será o módulo,
o qual módulo vai dividido em 18 partes.
A arquitrave friso e cornija deve ser ¼ da coluna base e capitel, que
são 5 módulos.
A coluna, base e capitel 20 módulos.
O pedestal com suas cornijas 7 módulos.
O intercolúnio 4:12 módulos.
A proporção dos arcos das loggias será em altura, duas larguras, e
um sexto».

Vignola considerava uma pequena diferença no que diz respeito às


medidas do pedestal coríntio: «Se a altura do pedestal desta Ordem for
somente a da 3ª parte da coluna com base e capitel, terá 6 módulos e 2/3 ;
porém pode-se-lhe dar 7 módulos para se tornar mais esbelto, o que vem a
ser muito conveniente a uma tal Ordem, para que a parte lisa do pedestal,
sem a base nem a cornija, isto é, o corpo ou dado, venha a ter dois
quadrados, assim como se observa em alguns desenhos» 502.

As ordens coríntia e compósita são ilustradas da mesma forma


através de um desenho simples de conjunto, identificando a totalidade dos
módulos e tratando os elementos arquitectónicos individualmente, isto é, o
entablamento, o capitel, a base e o pedestal. Uma vez mais, as molduras
seguem criteriosamente Vignola mas os ornatos são debuxados de forma
mais escorreita.

«Sobre a Ordem Compósita


Divide-se toda a altura em 32 partes, uma das quais é o módulo que
se divide em 18 partes.

502
Cfr. Vignola, Breve tratado das cinco ordens de arquitectura, pág. 94, segundo a tradução comentada
de José da Costa Sequeira.

261
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

A arquitectura, friso e cornija deve ser um quarto da coluna base e


capitel, que são 5 módulos.
A coluna, base e capitel deve ser 20 módulos.
O pedestal com suas cornijas 7 módulos.
O intercolúnio 4:12 módulos.
A proporção das loggias em arco deve ser duas larguras e um sexto
em altura».

No que respeita às duas ordens arquitectónicas mais ornamentadas,


Vignola destaca as proporções idênticas entre o pedestal compósito e
coríntio, as vinte e quatro caneluras do fuste e preocupa-se com a
representação detalhada e rigorosa de todos os elementos decorativos.

Partindo da regra vignolesca, Filippo Terzi faz especial menção em


texto à articulação dos intercolúnios num edifício, um dos aspectos
particularmente desenvolvidos por Vignola no seu tratado e nas suas
ilustrações. De fora do manuscrito ficam as representações em projecção
horizontal dos entablamentos bem como as referências a edifícios romanos
antigos.

3.2.5.3.3. Ornatos e modelos alternativos

A partir daqui, Terzi decide apresentar modelos alternativos que


podem servir as ordens arquitectónicas tratadas anteriormente. Começa por
fazer representar dois modelos de capitéis jónicos, um «capitel jónico
composto» e um outro usando três cortes diferentes para ilustrar o «capitel
jónico de Miguel Ângelo Buonarroti no Compidoglio». Trata-se,
exactamente, da reprodução do modelo miguelangelesco do capitel jónico
da arcaria interior que suporta e decora o célebre Palazzo dei Conservatori,
no Campidoglio em Roma e que o arquitecto bolonhês deve ter desenhado
no próprio local.
Inclui ainda, ao verso do fólio 10, um modelo de base de coluna
designada de «atticurga» que serve para qualquer ordem «mas convém
mais ao compósito que a outra ordem». É a famosa base ática formada por
toro, um quarto de círculo convexo reverso, uma escócia profunda, um
filete, outro toro e terminando num plinto de base quadrada, que Sebastiano
Serlio admitia para a ordem dórica mas que foi usado em toda a linha
arquitectónica.

Ao verso do fólio 11, menciona-se expressamente a fonte principal


do manuscrito: «Esta cornija serviu muitas vezes a Vignola para
encerramento de fachadas ; a sua proporção parte da divisão da altura da
fachada em onze partes, uma delas servirá à cornija e as outras dez à

262
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

fachada do palácio». É uma reprodução exacta do corte vertical da prancha


LXL da «regra vignolesca» 503.

As últimas ilustrações dão-nos conta de toda uma série de modelos


variados para as ordens arquitectónicas – cinco «modelos de pedestal com
base toscana» ; seis «modelos de cornija, friso e arquitrave dórica» ;
variantes tipológicas jónicas de «cornija, friso, arquitrave, pedestal e base
e impostas de arco» ; três pranchas com variantes de todos estes elementos
para as ordens compósita e coríntia ; dois modelos dóricos e três
compósitos de remates para entablamentos de palácio ou para outros
edifícios. Todos os exemplares estão profusamente decorados, apostando
na variedade das molduras e desenvolvidos numa linha muito próxima da
riqueza ornamental que a geração miguelangelesca pratica em Roma a
partir da segunda metade do século XVI.

Um dos aspectos interessantes da última parte do manuscrito é o


desenvolvimento da construção específica do fuste das colunas. No fólio 15
verso, Terzi ensina a representar um fuste com caneluras em espiral: «Para
fazer as caneluras que giram tortuosamente a coluna, divida-se o círculo
da base A em 24 partes e o círculo B noutras 24, a altura da coluna em 24
e para o resto como se vê» na ilustração. Mas o aspecto mais significativo é
a reprodução da célebre prancha LX de Vignola que apresenta os modelos
gerais para a construção do fuste das colunas e que incluí o fuste torso da
coluna salomónica. Também Terzi se dedica a reproduzir com exactidão
em três figuras os fustes toscano/dórico, torso e jónico/coríntio/compósito.

503
Usamos como referência para o tratado de Vignola a numeração da edição francesa do arquitecto
Leveil.

263
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

3.2.5.4. O «Livro Primeiro da Architectura Naval» de João


Baptista Lavanha

3.2.5.4.1. Dados biográficos e cargos profissionais

João Baptista Lavanha (1555-1624), de provável origem genovesa,


nasceu em Lisboa e era filho de Luís de Lavanha, «escudeiro fidalgo» e
corrector da fazenda de D. Sebastião. Ao serviço do monarca, entre 1572 e
1578 estagiará em Roma com o objectivo de completar estudos
matemáticos. De volta à pátria depois da derrocada de Alcácer Quibir e o
apoio a Filipe II deve ter dificultado a sua vida em Portugal, sempre tratado
com alguma desconfiança. Casará em Lisboa com Leonarda de Mesquita
encontrando-se documentados vários descendentes 504.
Com uma formação humanista centrada na multiplicidade de saberes,
Lavanha foi essencialmente um matemático e desempenhará, tal como o
tinha feito Pedro Nunes, o cargo de cosmógrafo-mor do reino. Todavia, o
seu exercício profissional não se esgota nesta nomeação dado que foi
também geógrafo, cronista e chega mesmo a ser tido como engenheiro
militar, embora toda a sua mais valia se centre em questões eminentemente
teóricas. Aquando da viagem a Portugal de Filipe II, o monarca apercebeu-
se da imensa mais valia de Lavanha e destinou-o para a docência das
disciplinas de cosmologia, geografia, topografia e matemáticas na
«Academia Real Mathematica» projectada sob plano de estudos delineado
por Juan de Herrera e publicado em 1584. Entre 1582 e 1591 o seu trabalho
desenvolveu-se em torno do ensino académico confirmando a sua
preparação excepcional para a docência em tão formadoras disciplinas.

Em 1586 ascende ao cargo de «engenheiro de Portugal», cargo a


exercer em Madrid. Pese embora esta nomeação, João Baptista Lavanha
não tinha experiência prática que lhe permitisse desempenhar esta função.
Tal é bem explícito numa carta do governador D. João da Silva de 11 de
Outubro de 1597 505. A pretexto de uma pretensa crítica por não ter apoiado
Leonardo Turriani para o cargo de «engenheiro-mor», afirma não perceber
porque o acusam de ter «votado por juan bautista Lavaña para Ingeniero y
no me passa por pensamiento tener a juan bautista por hombre que tenga
mas que la theorica ni entiendo que se podria fiar del fabrica». Este
avalizado testemunho não deixa de confirmar, contudo, a excelente
formação teórica que Lavanha manifesta no seu escrito acerca da
arquitectura naval que adiante se apresenta.

504
Contam-se cinco filhos, Luís, Tomás, Antónia, Maria e Filipa. Um resumo da biografia de Lavanha
encontra-se em António Paulo Ubieto Artur, «Aportações à biografia de João Baptista Lavanha», Revista
da Universidade de Coimbra, pág. 396-397.
505
BNM, Cartas de D. Juan da Silva, códice nº 6198, fl. 28. Inédito.

264
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Depois da sua experiência na academia madrilena, nos inícios da


década de 90 Lavanha torna a Portugal. Logo a 12 de Fevereiro de 1591 506,
«avendo respeito aos seruiços, partes e sufficiencia de João Bautista
Leuanha, e por folgar de lhe fazer merce, ei por bem e me praz que lea
nesta cidade de Lixboa a cathedra de mathematica, emquanto eu ouuer por
bem e não mandar o contrario, com a qual averá cada anno vinte mil rs de
ordenado e tres moyos de trigo, que he outro tanto como com ella tinha e
auia Pero Nunez, a qual merce lhe faço com declaração que terá cuydado
de ler aos pillotos e gente do mar a dita mathematica e lhe dara lição e
examinará as cartas e estromentos de marear». A nomeação para lente de
matemática – na sequência do cargo ocupado anteriormente por Pedro
Nunes – está intimamente ligada à formação dos pilotos e mestres de
navios e à examinação das cartas e instrumentos de marear. Será neste
período compreendido entre 1591 e 1599 que Lavanha redigiu o
«Regimento Nautico», o «Regimento do Cosmógrafo-mor» e o «Livro
Primeiro da Architectura Naval».
A sua lição de matemática estender-se-á aos mestres arquitectos que
preenchem as três vagas disponíveis na Aula de Arquitectura como se
prova, desde logo, pela nomeação de Diogo Marques Lucas em 1594 onde
para além de aprender a arte da arquitectura com Terzi, «aprenderá
geumitria de Johão Bautista Labanha, cosmografo mor». O mesmo se
afirma na nomeação de Pedro Nunes Tinoco em 1604 numa altura em que
Lavanha está documentado fora do país e devendo, necessariamente, ter
sido substituído por outro especialista na matéria.

Uma das nomeações que lhe causou fortes dissabores foi a de


«cronista-mor» do Reino de Portugal. Lavanha defendia que as crónicas
portuguesas tinham erros vários e propôs ao monarca corrigi-los e terminar
a «Quarta Década» de João de Barros. Chegou a concluí-lo mas a sua
venda foi embargada. Certo é que outro texto foi publicado por Diogo do
Couto em Lisboa numa altura em que Lavanha estava em Madrid. Tudo
isto foi anterior à sua nomeação para cronista-mor do Reino em 1618,
altura em que tudo se complica quando António de Barros de Almeida,
neto de João de Barros, viria a reclamar os direitos de edição da obra 507.

O cargo mais importante desempenhado por Lavanha foi o de


Cosmógrafo-mor do Reino de Portugal, sucedendo a Pedro Nunes e a
Tomás d’Orta. Segundo o Regimento de 1592 – muito provavelmente

506
Publicado por Avelino Teixeira da Mota, «Os regimentos do cosmografo-mor de 1559 e 1592 e as
origens do ensino náutico em Portugal», pág. 63.
507
Sobre este assunto veja-se António Paulo Ubieto Artur, «Aportações à biografia de João Baptista
Lavanha», pág. 400-401 e 404.

265
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

redigido por si próprio e actualizando o texto anterior de 1559 – as suas


funções passavam pela examinação dos candidatos a mestres de cartas de
marear e fabricantes de instrumentos náuticos, bem como pela aprovação
de pilotos e outros oficiais da navegação. Participava no exame daqueles
que pretendiam realizar cartas de marear e instrumentos náuticos como
astrolábios, quadrantes, agulhas, balestilhas bem como relógios e globos na
companhia de um «mestre de fazer cartas de marear dos mais antiguos e
praticos». Para além do exame, o candidato tinha a obrigatoriedade de
apresentar as peças por si executadas que seriam aprovadas se
correspondessem aos modelos ou «padrões que disso ha no almazen, sem
mudar encurtar ne acrecentar cousa algua dos mares costas e terras que
estiuere lançadas nos ditos padrões» 508. No que dizia respeito à
examinação dos pilotos e oficiais da navegação, cabia ao cosmógrafo-mor
avaliar «a theorica daquillo que propriamente he de sua profissão» 509. É
neste particular que se inserem as suas funções de leitor de uma aula teórica
para pilotos e mestres da prática de marear.

A «Lição de Matemática» era facultativa, tinha a duração de uma


hora diária e prolongava-se por nove meses. Existia somente em Lisboa e
era lida nos armazéns da Ribeira pelo cosmógrafo-mor. É relevante, neste
contexto, recuperar de novo parte do documento. Dada a importância das
viagens marítimas julgou-se necessário «que daqui endiante se lea hua
lição de Mathematica pera os ditos officiaes ouuirem algus cursos della, e
tambem a gente nobre pera se habilitar pera me poder milhor seruir nas
empresas e conquistas que se ouuerem de fazer por mar. A qual lição o
dito Cosmografo mor será obriguado a ler todos os dias, hua ora cada dia,
na casa pera isso ordenada, no verão das oito horas atee as noue e no
inuerno das noue ate as dez, sem interpollação nem falta algua, de
maneira que em todos os dias que não forem de guarda haja a dita lição».
Nela constariam os seguintes ensinamentos: «A declaração de alguns
circulos da sphera, e pera que lhe hão de seruir.
Insinarlhesha muito materialmente qual seja a figura do universo e
como se faz o diurno mouimento do primeiro mobil e o do sol e o da lua, e
lhe dará as regras importantes pera o conheçimento das luas e marés.
Declararselhesha a fabrica e uso da carta de marear, exercitandoos
muito nella e assy na uso do astrolabio, insinandolhes a tomar o sol e
como ham de usar do Regimento e fazer certa a sua conta da declinação
pera saberem ao meo dia a altura que tem.

508
Teixeira da Mota, «Os regimentos do cosmografo-mor de 1559 e 1592 e as origens do ensino náutico
em Portugal», pág. 13-14.
509
Cfr. Teixeira da Mota, «Os regimentos do cosmografo-mor de 1559 e 1592 e as origens do ensino
náutico em Portugal», pág. 44.

266
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Declararselhesha o uso da balestilha e quadrante pera de noite


tomarem a altura da estrella, e como devem fazer sua conta e saberem a
altura do Polo que tem, pera com mais certeza fazerem suas operações.
Instruiloha no Nordestear e Noroestear das agulhas, pera com
facilidade saberem fazer esta obseruação em qualquer parage que
estiuere, e aduertillosha no uso do Relogio do sol».
Não deixa de considerar que «auendo algus de boa habilidade e que
se auentagem dos outros, a estes taes lerá o tratado da sphera e o uso do
estrolabio de laminas e de outros instrumentos necessarios, dandolhes o
modo como fação muytas obseruançias necessarias a esta arte, pera como
mais sufficientes serem aos outros preferidos, e a seu exemplo procurarem
outros de se igualare com elles» 510. Parece, assim, existir um nível básico
de conhecimento e uma especialização para os casos em que os alunos
revelem uma aprendizagem acima da média.
É importante considerar que esta lição provavelmente existiria já a
tempos de Pedro Nunes e do regimento de 1559 mas o facto de ser «pera a
ouuirem de sua liure uontade» levava os pilotos, mestres, contramestres e
outros oficiais a dispensarem a sua audição, segundo se depreende pela
carta de Manuel Soares de 1672 que denunciava a irregularidade da
presença dos pilotos na aula do cosmógrafo-mor e a sua falta de
conhecimentos nestas matérias 511.

O cosmógrafo-mor desempenhava igualmente fulcrais funções no


que dizia respeito às contendas entre nacionais relativas à demarcação de
territórios no ultramar bem como de «terras e mares descobertos e a
descobrir» 512. Lavanha era essencialmente um teórico, como se afirma
cabalmente no regimento, mas através dos seus escritos fica a imagem de
alguém com fortes conhecimentos da arte de navegar.
Segundo as cartas de examinados publicadas por Avelino Teixeira da
Mota, fica-se a saber que o cosmógrafo-mor assinou as cartas de
examinação para mestre de cartas de marear de João Teixeira em 1602 e
para pilotos em 1598 (João Martins), 1599 (Simão Prestes) e 1600
(Domingos Anes). Entre 1609 e 1612 aparece na documentação o nome de
Manuel de Figueiredo, seu substituto no cargo, «que ora serve de meu
Cosmographo mor», em virtude da ausência de João Baptista Lavanha.

Entre 1599 e 1618 está de novo fora do país. Volta a Madrid, realiza
uma viagem à Flandres com o objectivo de recolher informações e realizar
510
Publicado em Teixeira da Mota, «Os regimentos do cosmografo-mor de 1559 e 1592 e as origens do
ensino náutico em Portugal», pág. 32-33.
511
Cfr. Teixeira da Mota, «Os regimentos do cosmografo-mor de 1559 e 1592 e as origens do ensino
náutico em Portugal», pág. 68.
512
Veja-se Teixeira da Mota, «Os regimentos do cosmografo-mor de 1559 e 1592 e as origens do ensino
náutico em Portugal», pág. 30-31.

267
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

um trabalho acerca da sua história sob o domínio da monarquia castelhana.


Em 1604 encontra-se em Valhadolid trabalhando em obras no campo da
hidráulica e da navegação – numa altura em que afirma estar ao serviço do
duque de Aveiro – para três anos após, obter a sempre desejada nomeação
de cavaleiro da Ordem de Cristo. 1610 é um importante ano para a
produção erudita de Lavanha pois realiza, fruto de uma viagem de estudo,
um «Itinerário do Reino de Aragão» e um «Mapa de Aragão», um dos
primeiros roteiros com medições geodésicas de que há memória. Entre
1611 e 1618 está na corte madrilena, realiza um «Compendio de las Casas
de España», não deixando de acompanhar o príncipe de Saboia numa
viagem a Itália 513.

A partir de 1618 retorna a Lisboa. Kubler é da opinião de que poderá


ter sido enviado com o objectivo de preparar a visita de Filipe III no ano
seguinte, dada a sua intervenção nas festividades organizadas. De facto,
uma das obras mais conhecidas de Lavanha é o relato oficial da «joyeuse
entrée» de Filipe III em Lisboa no ano de 1619, com ilustrações do
gravador Hans Schorckens 514. Consta de uma descrição das festividades no
plano geral, dando particular relevo às inscrições que se distribuíam pelos
arcos triunfais efémeros que ornavam o percurso régio.
Neste mesmo ano participa nas vistorias à Água Livre. Num período
final da sua vida, entre 1621 e 1624 – que coincide com o apogeu da sua
influência e prestígio decorrente de ter sido professor particular de Filipe
IV – deixa-nos uma narração do casamento em Setúbal entre D. Ana Maria
de Génova com o duque de Torres Novas, futuro duque de Aveiro.

Podemos, desta forma, definir três fases distintas no relacionamento


de João Baptista Lavanha com Portugal. Um período formativo, em tempos
sebásticos, que comportou uma longa viagem a Roma com o objectivo de
concluir os seus estudos superiores tendo como base as matemáticas. Um
primeiro período português, durante a década de 90, onde se dedicou
essencialmente ao ensino e ao seu cargo do cosmógrafo-mor mor e, depois
de um retorno a Espanha, uma fase final entre 1618 e 1624.

3.2.5.4.2. Fernando Oliveira e João Baptista Lavanha: a teoria ao


serviço da arquitectura naval

Torna-se quase redundante salientar a importância que a construção


naval adquiriu ao longo de todo o século XVI acompanhada pela redacção
de uma literatura empírica, de carácter eminentemente prático, da qual o

513
Consulte-se António Paulo Ubieto Artur, «Aportações à biografia de João Baptista Lavanha», pág.
401-402.
514
Sobre este trabalho consulte-se George Kubler, A arquitectura portuguesa chã..., pág. 112-116.

268
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

«Livro das traças de carpintaria» de Manuel Fernandes, «mestre de obras


do dito ofício», redigido em 1616 é exemplar. Dentro dos textos que
apresentam uma teorização sistemática, o «Livro da Fábrica das Naus» de
Fernando Oliveira e o «Livro Primeiro da Architectura Naval» de Lavanha
são os expoentes. Todavia, se nos detivermos um pouco na biografia dos
dois autores deparamo-nos com diferenças substanciais de carácter e de
saber, embora comungando da mesma matriz «humanista» e pluri-
disciplinar.

O padre Oliveira nasce cerca de 1507 em Aveiro, foi educado por


dominicanos e chegou a receber ensinamentos de André de Resende em
Évora. Muito viajado, conheceu a Itália, França, Inglaterra e,
evidentemente, a realidade castelhana. Chegou a ser professor de Retórica
em Coimbra e em 1565 recebe uma teça anual de 20.000 reais –
reconhecimento que não impediu que por duas vezes tenha sido preso pela
Inquisição fruto das suas ideias digamos que demasiado liberais – sendo
ainda vivo em 1581.

A sua obra teórica manifesta um vasto conhecimento, iniciando-se


pela publicação em 1536 de uma «Gramática da Linguagem Portuguesa».
Em 1555 publica a «Arte da Guerra do Mar» não deixando de denunciar o
seu repúdio e horror em relação aos conflitos. Para além de ter redigido um
escrito que tinha como objectivo ser uma História de Portugal – num
período final da sua vida e com o horizonte «filipino» consubstanciado –
dedicou o seu saber a dois trabalhos relacionados com a arte de navegar: o
primeiro manuscrito data de 1570, redigido em língua latina, intitula-se
«Ars Nautica» e o segundo, em língua vernácula, é datado de cerca de 1580
– o «Livro da Fábrica das Naus», espécie de transcrição da segunda parte
do primeiro texto.
Salientando a sua natureza técnico-prática, Francisco Contente
Domingues considera-os como «produto maior das navegações, aí se insere
quase toda a produção em vários âmbitos que se têm entre os mais
inovadores do Renascimento português: fundamentalmente, a náutica e a
geografia, cujos resultados estiveram tão intimamente ligados à sorte das
grandes viagens marítimas» 515. Nestes dois escritos, Fernando Oliveira
torna manifesto a sua defesa do «experiencialismo», como bem definiu o
autor citado, alicerçado na «constatação empírica, sensorial, dos factos e
dos fenómenos. O critério primeiro do saber é a prática vivencial, que,
nestes termos, nos mostra até que ponto experiencialismo e
experimentalismo são realidades distintas (e por vezes mesmo contrárias)».
De facto, o Renascimento português provocou o «aparecimento de um
515
Francisco Contente Domingues, «Experiência e Conhecimento na construção naval portuguesa do
século XVI: os tratados de Fernando Oliveira», pág. 340.

269
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

grupo de empiristas radicais, como Fernando Oliveira, para quem o saber


era o que se construía dia a dia, na resolução prática dos problemas
quotidianos, porque essa foi afinal a única forma que tiveram de ultrapassar
os obstáculos que se lhes iam deparando, quase sempre antes dos
enunciados científicos fornecerem respostas, que por vezes nem eram
sequer as mais satisfatórias» 516.
De notar que o autor, defendendo esses mesmos princípios, chega a
criticar o plenipotenciário saber dos matemáticos em favor de um
conhecimento especializado e eminentemente prático: «Os matemáticos
pretendem arrogar-se a ciência náutica, que é exercida principalmente na
matéria. Pretendem explaná-la, homens que nem sequer podem aguentar
os mais leves solavancos da mesma. São realmente temerários, porque
desconhecendo a realidade, de modo algum a interpretarão». «Os
matemáticos, por conseguinte, que não viram o mar, não andaram
embarcados nem praticaram a arte de navegação, mau conhecimento terão
dos temas náuticos e pior interpretação deles aduzirão. Não prometam,
portanto, dar o que não têm, confinando-se cada qual, a preceito, na arte
que aprendeu, segundo o provérbio dos gregos, mencionado por Cícero.
Não metam foice em seara alheia homens que, encerrados em seus
gabinetes como tartarugas entorpecidas, desconhecem por completo
navegações e viagens» 517.

Esta clara tomada de posição e a defesa de uma realidade que


superou o mundo antigo – condição sine qua non da consciência da
modernidade – não invalida que Fernando Oliveira se valha da herança
clássica como sinónimo de erudição, embora considere que não foram de
modo algum percursores dos tempos quinhentistas. No «Livro da Fábrica
das Naus» cita por treze vezes autores como Plínio e Vitrúvio – por
exemplo, quando compara a construção de navios e de moradias mas
essencialmente os gregos. «Não obstante, a citação é sempre feita com o
mesmo objectivo: a evocação do nome de um Autor não se faz senão para
corroborar um juízo já emitido, reforçando o peso do argumento invocado,
ou da doutrina expressa. Ou, pura e simplesmente, são os preceitos
doutrinais que se vão buscar directamente às fontes, sendo que depois se
invoca amiúde a experiência prática como factor de verificação do
enunciado expresso» 518.

516
Cfr. Francisco Contente Domingues, «Experiência e Conhecimento na construção naval portuguesa do
século XVI: os tratados de Fernando Oliveira», pág. 362.
517
Excerto da Ars Nautica citado em Francisco Contente Domingues, «Experiência e Conhecimento na
construção naval portuguesa do século XVI: os tratados de Fernando Oliveira», pág. 358.
518
Francisco Contente Domingues, «Experiência e Conhecimento na construção naval portuguesa do
século XVI: os tratados de Fernando Oliveira», pág. 360.

270
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Eis porque se deve, desde logo, sublinhar o distanciamento entre as


duas figuras apresentadas. Oliveira é contemporâneo de Pedro Nunes mas
deve ser visto como o vértice do pensamento da época, valorizando a
experiência e os aspectos técnico-práticos face aos especulativos. Lavanha,
por seu turno, representa uma nova realidade emergente – mais ainda
minoritária no seu tempo – a partir da segunda metade do século XVI. É
acima de tudo um académico, um teórico amadurecido em Itália, privilegia
o conhecimento especulativo embora não descurando a sua finalidade, a
sua aplicabilidade prática. Daí que a presença da raiz «antiga» especulativa
se consubstancie de duas fórmulas opostas. Se em Oliveira não é de todo
substancial – nem tem carácter de fundamentação – em Lavanha o
«paradigma vitruviano» permitir-lhe-á fundar e fundamentar uma terceira
via em relação à arquitectura, algo que o próprio autor apresenta como uma
novidade, o que não quer dizer que tenha descurado a eminência prática do
seu trabalho.

De facto, uma análise aos aspectos práticos ou de aplicabilidade do


«Livro Primeiro da Architectura Naval» parece favorecer o cosmógrafo-
mor, dado que «no aspecto científico e prático, na clareza de exposição,
Lavanha sobreleva ao Pe Fernando Oliveira, que é outro grande teórico da
matéria, conhecedor da prática, talvez não tanto como aquele pois que se
espraia em generalidades, além de que envereda mais pela teoria, com
regras muito pessoais, de pouco alcance para o real conhecimento da
construção do navio. Lavanha, sem perder de vista os fundamentos
científicos, enquadra neles as noções e confina-se muito mais ao que na
realidade se fazia» 519. O cosmógrafo-mor, de formação superior, conjuga
muito melhor a prática e a teoria e o rigor dos seus desenhos são
amplamente ilustrativos desta realidade.

3.2.5.4.3. A definição vitruviana da arquitectura segundo Lavanha

O manuscrito intitulado «Livro Primeiro da Architectura Naval»


encontra-se na Biblioteca da Academia Real de História de Madrid e faz
parte de um códice da autoria de João Baptista Lavanha e no qual se
incluem dois documentos datados de 1598 520, o que permite balizar a sua
redacção em torno dos finais do século XVI, numa altura em que dedica à
sua actividade ao ensino e examinação decorrente da sua nomeação para
cosmógrafo-mor e lente de matemática régio. Manifestamente incompleto,
nos seus trinta e seis fólios «faltam capítulos intermédios, como o
519
João da Gama Pimentel Barata, «O Livro Primeiro da Architectura Naval, de João Baptista Lavanha»,
pág. 226. O autor dá o exemplo das indicações para a construção do liame da proa e da popa onde
Lavanha utiliza uma linguagem mais específica.
520
Exactamente dois documentos de traças de navios para a carreira da Índia, uma ordenada por Sebastião
Temudo e outra por Gonçalo Rodrigues, coadjuvados por Lavanha.

271
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

demonstram as alusões no texto a assuntos que já teriam sido tratados e a


capítulos que não se encontram» 521. O sétimo capítulo é um dos que torna
visível esta realidade, interrompendo-se o discurso. Tirando os quatro
primeiros capítulos – meramente introdutórios – todos os outros incluem
belíssimos debuxos ilustrativos da construção e medição dos componentes
essenciais para a construção de um navio, demonstrando o apuro técnico do
redactor no que concerne à prática do desenho.

Lavanha inicia o seu manuscrito pela incontornável definição


vitruviana da arquitectura: «Architectura he (como a diffine Vitruvio) uma
sciencia ornada de mtas disciplinas, e de varios preceitos, com cujo voto se
aprovão as obras, q as outras Artes fazem. O nome he composto de dous
Gregos, e quer dizer Princessa das Artes, o qual devidamte lhe poserão
pella heminencia, q ella tem sobre todas as outras q (chamadas erradamte
mechanicas) se praticão e exercitão sem Professores, em Pedra, e na
Madeira, e em Metaes. De q procede a excellencia da Architectura, e
chamarlhe Vitruvio sciencia;) porq della sò tomão preceitos as outras
Artes. Ella sò dá razão das obras q dellas faze, se busca e descobre nella,
cousas maravilhosas, e escondidas, e sò ella se aproveita de sciencias
certas, q são a Arithmetica, e a Geometria, sem as quaes he toda Arte vil, e
de pouco preço, e a que as possuie, quanto tem dellas, tanto tem de
nobreza. Com a communicação destas, e d’outras Disciplinas, como q se
orna a Architectura, se differençea tambe das Artes, q precedidas so dos
sentidos exteriores, se alcanção com a experiência, e se perfeiçoão com o
uso das mãos. Mas porq outras Artes Nobres se enriquece tambe cõ varias
sciencias, conve q tenha a deffinição da Architectura uma differença
propria e esta he, aprovarese cõ o seu parecer as obras, q as outras Artes
acabão, atributo nobilissimo, e concedido sò à sabios e Prudetes» 522.

Convencido da sua superioridade face às demais artes – «com cujo


voto se aprovão as obras q as outras Artes fazem» – define a arquitectura
como ciência composta por várias disciplinas e preceitos próprios
aplicáveis a outros ramos artísticos, tendo na sua base «sciencias certas»
como a Aritmética e a Geometria, «sem as quaes he toda Arte vil», que lhe
conferem nobreza. O cosmógrafo-mor mostra-se consciente da diferença
entre a teoria e prática, advertindo que mesmo as artes que «se alcanção
com a experiência, e se perfeiçoão com o uso das mãos» – erradamente
chamadas «mechanicas» – e se enriquecem com outros saberes devem ser,

521
João da Gama Pimentel Barata, «O Livro Primeiro da Architectura Naval, de João Baptista Lavanha»,
pág. 223.
522
Todas as citações são retiradas da transcrição de João da Gama Pimentel Barata, «O Livro Primeiro da
Architectura Naval, de João Baptista Lavanha», pág. 264-270.

272
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

em última instância, aprovadas pelo praticante da Arquitectura, «atributo


nobilissimo, e concedido sò a sabios e Prudetes».

À definição segue-se a explicação sobre a essência da arquitectura.


Recorrendo, de novo, à autoridade vitruviana afirma que na sua origem
estão o «Discurso» e a «Fabrica», ou seja, a teoria e a prática, de acordo
com a Introdução ao Livro I do «De architectura» mas reformulados numa
linguagem adaptada aos novos tempos e circunstâncias sócio-profissionais:
«A Fabrica he uma continua, e costumada meditação do exercicio, posta
em practica cõ as mãos, na materia do genero, q para a obra for, posta em
practica cõ as mãos, na materia do genero, q para a obra for necessaria, e
o Discurso he o q declara e demonstra as cousas fabricadas com
proposição, e industria». Denuncia-se a natureza teórico-prática da
arquitectura na qual a falta de um dos componentes pressupõe a
desautorização do seu titular, dado que o «Architecto acharseaia muy
enganado, querendo por em obra, alguas suas imaginações, q
desacompanhadas de exercicio practico, são as mais das vezes fantasmas,
com q perdendo o credito, e a authoridade, ficara sojeito ás afrontas, e
menospreço dos Officiaes jornaleiros».
Ao aviso de que apenas o exercício do «discurso» não faz o
arquitecto segue-se, por oposição, um outro direccionado aos cultores da
prática: «O que tambe se tivesse por digno deste nome, por saber lavrar
uma pedra, ou um madeiro, faltandolhe o Discurso q he a principal parte,
em tudo ordenarà às cegas, de nada se confiara, senão o q provar com
longa experiencia, e de nenhua causa q faça, podera dar razão, e assi qdo
das suas obras lhe perguntare os Especulativos, ficara mudo, e semelhante
à materia em q exercita seu officio». Esta argumentação crítica é
certamente dirigida e retirada da realidade artística contemporânea ainda
alheia a preocupações teóricas, sendo conveniente «q tenha noticia da
practica e seja muy Especulativo, o q quiser mereçer, com justo titolo o
nome de Architecto. E assi o sera, Quem com maravilhosa proporção, e
certa regra, ordenar com o entendimto, e especulação, e acabar cõ a
practica, todas aquellas cousas, q por meyo de movimtos de pesos, e
ajuntamto de corpos; podem servir de uso ao home».

O paradigma vitruviano da raiz multidisciplinar da formação do


arquitecto é enunciado por Lavanha fazendo uso da redefinição de Leon
Battista Alberti. Dotado de «agudo engenho, de conselho maduro, e de
prudencia» deve o arquitecto estudar o Debuxo, a Perspectiva, a
Aritmética, a Geometria, a Astronomia, a Mecânica e ainda ter noções
linguísticas para saber «do q na sua profissão està escrito, e cõ o
conhecimto das letras humanas; para manifestar com Arte seus conceitos, e
perpetuarse na memoria dos homes com seus escritos». O autor explica, de

273
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

forma clara, a urgência e aplicabilidade destes saberes do seguinte modo:


«Com o Debuxo e Perspectiva representarà em disenho suas obras; e para
fazer a conta da despesa della, e entender, e declarar com numeros as
proporções das suas medidas há de ter conhecimto da Arithmetica; e da
Geometria pa medir todas as partes da sua fabrica. Convem q saiba as
Astronomia, o q lhe for necessario po conhecer a variedade dos tempos; as
partes do Ceo, e a divisão e sitio dos Ventos, e q seja muy destro na
Mechanica para fabricar cõ razão as machinas necessarias pa os seus
edificios».

No final do primeiro capítulo João Baptista Lavanha traça uma


original crítica ao sistema moderno e à confusão existente entre o «tracista»
e o arquitecto: «E não pareça aos Tracistas de oje, chamados individamte
Architectos, q porq elles não tem nenhua das partes assinaladas, sabendo
so tirar com delicadeza, e limpeza, duas lineas perpendiculares, e quatro
Paralellas, se lhes propoem impossibilidades na decripção do Architecto, e
q isto he pintar um Orador de Cicero, e imaginar um Politico de Platão, e
fingir um Princepe de Xenofõte, e estão muy enganados: porq os, à
antigamte chamavão Architectos, por seu justo preço alcançarão este
nome, não se dando, senão à que pellos requesitos apontados o merecia, e
oje não faltarà que os tenha em muy avantajados dos q se propoem; mas
como se não costuma dar o titolo de Architecto, por sufficiencia pode ser, q
o não queira o sciente, havendose de igualar cõ elle o idiota; e q se
contente merecer, o q tanta razão se lhe nega». Ora, esta posição é nova
para a historiografia.
O cosmógrafo-mor chama a atenção para os profissionais que se
especializaram no desenho arquitectónico e que se definem ou são vistos
erradamente como arquitectos. O mais importante nesta acusação é o facto
de Lavanha declarar que existe mesmo ao mais alto e moderno nível
formativo uma confusão entre ser-se especializado na «traça»
arquitectónica e ser-se arquitecto. Ou seja, se a parte faz parte do todo não
deve, contudo, confundir-se com ele. Para sustentar a sua opinião faz
menção ao erro de se reduzir os grandes pensadores da Antiguidade
Clássica àquilo por que são mais conhecidos, esgotando num único modelo
uma erudição mais vasta e significante. Não deixa de concluir o seu
argumento ironizando com o ainda insuficiente uso terminológico da
palavra – «como se não costuma dar o titolo de Architecto, por sufficiencia
pode ser, q o não queira o sciente, havendose de igualar cõ elle o idiota; e
q se contente merecer, o q tanta razão se lhe nega».

O segundo capítulo trata «das partes de q consta a arquitectura», ou


seja, dos seis elementos constituintes tal como apontava Vitrúvio: a
Ordenação, a Disposição, a Correspondência, o Ornato, o Decoro e a

274
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Distribuição. Lavanha define-os nos seguintes termos: a Ordenação «he


uma summaria de toda a obra; A qual o Architecto deve fazer cõ
imaginação e nella a ha de emmendar dos erros, e inconvenientes, q se lhe
offerecere, para q ornada, com as partes, de q a ornamos, saya perfeita, e
a possa por em practica»; a Correspondência «he a conveniencia e
proporção das partes de toda a obra entre sy, As quaes de tal maneira deve
corresponder umas as outras, e medirse como os membros do Corpo
Humano, do ql he comu medida o dedo, o Palmo, o Pee, o Covado, e
outras partes semelhantes»; o Ornato «he uma graciosa fermosura, e
deleituosa vista da compossição das partes do edificio, o q lhe naçe da
Correspondencia; porq o tem quando as suas larguras, comprimentos, e
alturas, se corresponde, e armonizão» e o Decoro «he uma decencia e
propriedade, que dada na obra, aprovada com Authoridade, A qual se
alcança quando se faze as fabricas convenientes, e accomodadas ao
Tempo, ao lugar, e às pessoas pa o edificio, o q se não pode achar, senão
por demasiado preço, e qdo se fabrica, sendo a possibilidade, e qualidade
do Sor da obra».
O maior destaque vai para a Disposição tida como uma «concertada
distinção das partes, da fabrica q se ha de fazer, ou he uma figura da obra
posta em debuxo. Porq depois q o Architecto Ter um universal conceito de
toda a obra na sua imaginação servindosse da Ordenação conve q
distinguindo as suas partes, a represente em debuxo, para q se veja de
todos e principalmte dos da fabrica, a que se há de satisfazer cõ o disenho
della». Este conceito concretiza-se de cinco maneiras possíveis: na Planta,
na «Montra» – ou «montea» – no Perfil, na Perspectiva e no Modelo.

A Planta «he hum simples debuxo da fabrica, q representa a commu


secção dos Planos, e por esta se conhece o lugar das partes da obra, e seus
comprimentos, e larguras, medindosse nella suas capacidades». Por sua
vez, a «Montra he uma levantada image da fronte ou dos lados da fabrica,
e esta mostra as alturas, q na Planta se não podem ver», o Perfil «he uma
representação da grossura, sacada, encolhimentos, e profundidade das
partes interiores do edificio; e assinala esta parte nelle o q em um corpo
humano mostra um valente Notomista, e he de mta importancia, para o
conhecimto da Obra, e das despesas della» e a Perspectiva «he a figura de
toda a fabrica como se representa à vista segundo a sua postura e à dos
olhos. Hè esta parte agradável, e pa q se veja debuxado todo o edificio em
papel, muy necessaria». A visão mais completa é-nos dada pelo Modelo,
«o ql he a perfeita image de todas as partes da obra, Costumasse fazer de
madeira, de gesso, de Borro, de Cera, e de cartão, e nelle estão
comprehendidas todas as quatro Partes, porq no Modello se ve, a Planta, a
Montra, o Perfil, e a Perspectiva».

275
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

A fonte vitruviana é clara e distintamente reformulada e adaptada por


Lavanha no que diz respeito às seis categorias constitutivas da arquitectura
apresentadas no Capítulo II do Livro I 523. A «ordinatio» como elemento
quantitativo regular das proporções das partes entre si e com o todo, a
«dispositio» como elemento qualitativo respeitante à colocação apropriada
dos elementos e ao correcto resultado final, a «symmetria» – que traduz por
«correspondência» – como a necessária harmonia das partes que compõem
a obra, a «eurythmia» – ou «ornato» no dizer de Lavanha – que concede o
aspecto elegante e belo que resulta da conjugação de todos os elementos, o
«decor» ou «decoro» como categoria reguladora e de autoridade e a
«distribuitio» – que o autor se esquece de desenvolver e que, na realidade,
é a terceira categoria a ter em conta – como a aplicação de um módulo com
o objectivo de conferir conformidade harmónica ao todo.

É relevante salientar que João Baptista Lavanha consegue, de forma


amplamente legível e fruto da sua clareza expositiva, enunciar os princípios
vitruvianos mas modernizando o discurso, desenvolvendo mesmo questões
como a da representação parcial e total do projecto arquitectónico – na
«dispossição» – valorizando a importância do «modello» ou maqueta como
presciência da obra a realizar.

3.2.5.4.4. O modelo vitruviano aplicado à arquitectura naval

O capítulo terceiro coincide com a valorização da arquitectura naval


propriamente dita, levando Lavanha a partir de uma definição da
arquitectura em três grandes áreas, a militar, a civil e a naval: «Consiste a
Architectura na Edificação, q he a construção permanente de qlquer
cousa. Esta se faz, ou para defensão ou pa Religião, e cõmodidade, ou pa
Navegação. E desta repartição naçe a divisão da Architectura em tres
partes, q são Architectura Militar, Civil, e Naval». Concretizando, limita a
arquitectura militar aquela que «ensina a fabricar de tal modo, q
fortificados nos assegura do imigo, o q faz edificando Muros, Baluartes,
Cavaleiros, Torres, Bastiões, Repairos, Estaccadas, Trincheiras, Cavas,
etc. cujos preceitos e regras ensinão os seus escritos Alberto Durero,
Hiermo Maggi, Carlo Theti, o Galarzo, Hiermo Cataneo, Jacopo Lantero, J.
Bapta Zanchi, e outros modernos, q com seus engenhos descobrindo nesta
Arte maravilhosas cousas a te posta em grande dignidade, e chegando à
suma perfeição» 524. No que respeita à arquitectura civil, a sua prática
destina-se a «edificar Templos consagrados a Dos e aos seus sanctos, e
outras fabricas dedicadas ao culto divino, e para a commodidade publica,

Consulte-se Tatarkiewicz, Historia de la estética..., Vol. 1, pág. 280-288.


523
524
Refere, assim, autores como Durer, Girolamo Maggi, Carlo Theti, Galeazzo de Sanseverino, Pietro
Cataneo, Giacomo Lanteri ou Giovanni Battista de Zanchi.

276
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

e privada, Portos, Praças, Estradas, Fõtes, Aqueductos, Banhos, Theatros,


Pontes, Porticos, Paços, Casas, etc. Da ql escreveo em tempo de Augusto
Cesar dez livros M. Vitruvius Pollião; q cõ sua singular doctrina
commentarão Cesar Cesarião, o Patriarcha David Barbaro, o Caporal. e
Guilhelmo Philandro, e assi a illustrarão cõ seus escritos Lião Baptista
Alberti, Sebastião Serlio, Labacco, Pedro Caetano, Palladio, Vignola,
Philiberto d’el’Orme, Jacques Androverto, e outros Auctores» 525.

O objectivo imediato de João Baptista Lavanha é isolar e definir a


importância da arquitectura naval, considerando que ninguém escreveu
sobre ela sendo, portanto, necessário constituir um corpo teórico que a
destaque e a considere um «primus inter pares». Di-lo com profunda
consciência da originalidade do seu trabalho: «a Architectura Naval he a q
ensina com regras certas fabricar Navios, nos quaes se possa navegar be e
commodamte. desta (deixando as outras duas) havemos de tratar. E como
tè agora não escrevesse della nenhu Auctor Grego, Latino, ne Vulgar cujos
escritos nos den algua Luz, em materia tão escura por novidade, He bem
dificultosa empresa sem precedente noticia, redizir à Arte a grosseira
practica dos fabricadores de Navios, aprendida de seus mestres, q de
outros menos sufficientes q elles, a souberão, e tirar das suas incertas
regras (com as quaes nunca poderão fazer duas naos em tudo semelhantes)
certos e determinados preceitos (como te as outras duas Architecturas,
Militar, e Civil) com q fabriquem com Arte os navios, q oje se ella faze as
apalpadelas; mas suprirão as faltas, q ouver na nova criação desta Arte, e
na construção de suas regras, os desejos, com q se procurou acertar, e os q
obrigarão, para beneficio publico, pòr a primeira pedra neste edificio,
sobre aql, o poderão levantar tão alto os grandes engenhos, q não aja
inveja ao mais ornado, q os Antigos e Modernos, com seus trabalhos
enriquecerão».

De seguida, recordando a dupla raiz técnico-prática da arquitectura


naval, define as disciplinas auxiliares necessárias para a formação do
arquitecto naval: «He mais necessario, q saiba traçar, e debuxar, e tenha
algua noticia da Astronomia, e mta da Arithmetica, da Geometria, e da
Mechanica q são partes das Mathematicas. Porq em a traça representara
suas obras, e cõ o debuxo lhes dara a graça q se elle não podem ter. Com a
Arithmetica orçara a despesa do Navio q pretende fazer, e entendera as
proporções das suas medidas. A Geometria o ensinara medir todas as
partes da sua fabrica, e nivelalas, esquadralas, e compassalas, Arquear os
Navios, e usar das lineas, de os angulos, das superficies, e de outras mtas

525
Os autores são, de forma evidente, os tradutores e comentadores de Vitrúvio como Cesar Cesariano,
Danielle Barbaro ou o francês Philander a par dos tratadistas Alberti, Serlio, Labacco, Pietro Cataneo,
Palladio, Vignola, Delorme e Jacques Androuet du Cerceau.

277
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

cousas, q desta sciencia depedem; Da Astronomia ha mister o conhecimto


dos tempos accomodados pa o corte das madeiras, segundo o sitio da
Provincia, em q nace, e se crião em respeito do Ceo e de duas influencias;
e assi a noticia das marès, (dependetes do conhecimto da Lua, e das suas
conjunções, e opposições) para deitar os Navios ao mar, ou tiralos à
Monte, A Machanica lhe darà todas as Machinas, de q serve na sua fabrica
naval, como são as envasaduras, os Guindastes, Cabrestantes, Cabres, e
Polès, Esta sciencia mostra a razão da Querena, do Governo do Leme, e
da Navegação cõ os Remos, nella està fundado todo o manejo da enxarcia,
e com o seu conhecimento se inventarão outras mtas machinas, à tempo e à
lugar convenientes, e necessarias».

Adaptando os elementos compositivos vitruvianos à especificidade


da arquitectura naval, o uso da Ordenação permite ao arquitecto formar «na
sua imaginação, uma figura do Navio, q quer fabricar, e q esta perfeiçoe
com o entendimto e cõ as regras da sua arte, para q emmendada, por este
modo, das faltas, e incõvenientes, q se lhe representam, a possa logo
(servindosse da Disposissão) traçar, em todos os cinco modos, de q usa
esta Parte». Os modelos são usados do seguinte modo: «Fará as Plantas
do seu Navio, q nesta fabrica serão as figuras da Quilha, da roda de Proa,
do Codaste, do Gio, dos Revesados, da Caverna Mestra, do Braço, da
Apostura, da Abertura do Navio onde he mais largo, e assi das cubertas e
do mais q quiser disenhar por este modo, Fará logo montras da Popa, da
Proa, e de um, ou do outro Costado do Navio, E com o Perfil mostrarà as
suas partes interiores, cortandoo ao longo, de Popa à Proa, ou atraves,
por qlquer lugar q quiser q vejão. Porà depois em Perspectiva toda esta
fabrica segundo a vista e sitio, q lhe escolher».
O destaque vai para o Modelo pois «ultimamte o q mais importa,
obrará de madeira um modello della, no ql conhecerà milhor as faltas q na
imaginação, e assi emmendadas o acabarà para q por elle, se faça com
muita perfeição, o Navio, q determina fabricar. E não pareça ao professor
desta Arte, q quer merecer o nome de Architecto della, que pode escusar o
uso destas cinco Partes da Disposissão, e q lhe basta saber as medidas do
proposto navio, pa sem as dittas partes o poder acabar se o que se
enganarà grandemte, e commeterà mtos erros, e para fugir delles, convem q
faça o Modello no ql primeiro os emmende, e este perfeito lhe sirva de
molde, e exemplar, pello ql fabrique todos os Navios daqlle genero, e
grandeza, Mas como o modello custe tempo, e dinheiro, hasse por mal
gastada a despesa de ambos, e não se faz cõnsideração do mto q importa a
fabrica de uma não da Jndia, para com cem cruzados mais (q he o q pode
custar o seu modello) fazerse acertada e se erros».

278
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Do mesmo modo deve o arquitecto naval «considerar cõ grande


cuydado outras tres partes da Architectura q são a Correspondencia, o
Ornato, e o Decoro, e procurar q se vejão nas suas obras, para o q lhe
sera de mto momento a construção e presença do modello, porq buscadas, e
achadas nelles estas 3 Partes, as terà tambe o Navio, q por elle, se ouver
de fabricar». «E assi conve q nas suas partes se guarde a
Correspondencia, não bastando, q todas ellas tenhão suas determinadas
medidas, senão q estas convenhão de tal ma entre si, q se respondão
proporcionadamte; porq nenhua cousa sobeje ou falte com a pporção; a
obra seja firme, e a Arte com q se faz maravilhosa. Tal he por certo esta
nossa porq ver a Correspondencia em um Navio, na sua Quilha, no
Codaste, no Gio, nos Lançamtos, nos Delgados, na Caverna mestra, na
Altura das Cubertas, na mayor largura, no comprimto e grossura dos
Mastos, e Vergas, no tamanho das Velas, na grandeza das Gaveas, no sitio
e destribuição de algus lugares, e assi em todas as outras cousas como se
verá adiante». A importância central da Correspondência é avalizada pela
regra renascentista antropométrica pois se «não he menos pa admirar, q a
Artificiosa composissão do Corpo humano, na ql (sendo be pporcionado)
assi como qlquer parte sua he comu medida de todo, e cõ ella só, se pode
vir em conhecimto de toda a sua grandeza, e compostura» do mesmo modo,
«qlquer parte do Navio fabricado cõ Arte o mede todo, E quando de algum
despedaçado, se achara uma so parte sua enteira, por ella, se podera
conhecer o seu tamanho, e fazer outro navio em tudo semelhante ao
desfeito». Se a regra for cumprida, «todas as suas larguras, comprimtos, e
alturas, se responderão entre sy com grande Harmonia, como uma be
temperada viola; De q recebera a obra, uma agradavel fermosura, e
deleitosa vista, q he a outra parte das tres, chamada Ornato. E qdo se
guardar na mesma fabrica, a propriedade devida ao tempo, e ao lugar,
fazendo os navios conforme aos mares pq hão de Navegar, aos Portos em q
hão de entrar, e ao serviço, q delles se ha de ter, conseguirse ha o
Decoro».
Por fim, o arquitecto naval tem que atender aos aspectos económicos
e materiais com vista ao pleno exercício das suas funções, isto é, à
Distribuição, «para q usando della, gaste com temperança as materias de
sua obra e a faça com a mais ordenada despesa q puder, accomodandosse
à terra onde fabrica servindosse do que nella há, e não procurando o q se
não pode alcançar sem grande despesa. Porq cõ tal variedade h neste
modo inferior a Natureza, q em uma Provincia produz a Teca, o Angelim,
em outra o Sovero, o Carvalho, o Pinho, em outra o Lerez, o Abeto, e em
outra differentes madeiras de q se podem fazer navios, Em uma parte ha
Linho, e Canhamo, em outra se supre esta falta com Cairo, em uma dão as
Arvores Breu, e em outra ha certo Bitume, q serve ao mesmo effeito. Com
as quaes variedades ornada a terra, he mais fermosa q se toda ella

279
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

produzira tudo». Só o conhecimento e a prática dos seis elementos


compositivos lhe permitem merecer «com justo titolo o nome de Architecto
Naval».

Os capítulos seguintes são de ordem prática e especificamente


dedicados à construção naval, portanto, extravasando o âmbito deste
estudo. O capítulo sexto trata «do tempo em q se devem cortar as
madeiras» recomendando-se que este se deve realizar quando o tronco está
maduro, cortar-se no Outono e Inverno e deixar que seque naturalmente.
Curiosa a menção ao facto de os bosques terem poucas árvores e muitas
serem queimadas para fazer carvão. Segue-se-lhe um novo ponto onde se
trata de outras matérias relativas à pregadura, linho, estopa, chumbo,
alcatrão e outros materiais indispensáveis à construção, citando-se Vegetius
e Guilherme Budeo. O capítulo oitavo é dedicado a «como se traçara a
quilha, a roda, o codaste, a caverna mestra, braços, e aposturas, o gio, e
os revessados, e se tirarão as suas formas», enquanto que o nono regista
«como se marcão as madeiras, se faze e assentão as atacadas, e se lavra a
quilha, a roda, e os couces de popa, e proa». Enfim, os últimos três
capítulos tratam de «como se lavra o codaste, o gio os revessados, e se faz
a grade», de «como se faz o graminho, e por ellle se marcão, as cavernas
de conta» e «como se marcão, e lavrão os braços, e aposturas, e se
embracão, cõ as cavernas».

3.2.5.4.5. Conclusão

Lavanha nunca deve ter exercido qualquer função eminentemente


ligada à construção arquitectónica ou à engenharia militar, pese embora a
sua nomeação de 1586. Não obstante, a carta do conde de Portalegre parece
denunciar que o cosmógrafo-mor se candidatou ao lugar e, portanto, se via
a si mesmo como apto para desempenhar as funções de «engenheiro-mor»
do reino. Se a sua preparação prática era posta em causa, o mesmo não
aconteceria no que diz respeito aos seus conhecimentos teóricos e
especulativos como bem prova o texto analisado supra. É, acima de tudo,
um erudito descendente da cultura humanista com profundos
conhecimentos teórico-matemáticos mas vastos interesses. Compreende na
perfeição o texto vitruviano e, num pejo de profunda originalidade,
adaptou-o para formular uma teoria da arquitectura naval, uma terceira via
da qual o cosmógrafo-mor pretende ser o seu fundador teórico. Neste
particular, fornece-nos uma imagem cabal da importância que a arte de
navegar tinha atingido em Portugal. Contudo, a adaptação inteligente do
texto vitruviano e a preocupação com questões específicas como a
problemática em torno do «tracista» e do arquitecto fornecem-nos uma
ideia do que um arquitecto régio coevo poderia ter produzido.

280
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

3.2.5.5. O Tratado de Arquitectura de Mateus do Couto

3.2.5.5.1. Introdução

O manuscrito «Tractado de architectura que leo o mestre e architº


Mattheus do Couto o velho no anno de 1631» é o primeiro tratado de
arquitectura português 526. Nunca foi objecto de análise pela historiografia.
Incompleto, consta de quatro Livros, três dos quais divididos em
quinze capítulos e um quarto tomo apenas iniciado e resumido a apenas
dois capítulos. É dedicado exclusivamente à arquitectura «civil» embora o
autor pretendesse incluir um livro sobre a arquitectura «militar», como se
afirma no final do capítulo XV do Livro III: «E não tratamos aqui o como
dentro da agua se poderão edificar estas Pontes, sem a esgotar, porq
heyde tratar no Lº da Architectura Militar como se podera fundar toda a
fabrica no mais fundo Rio, ou mar que houuer» 527. Não deixa de ser
estranho que o escrito se interrompa e que se inclua, alguns fólios depois,
em apenso, um «Tractado de Prospectiva» 528. Seria acompanhado por
algumas estampas explicativas e demonstrativas de questões insertas no
texto, com o objectivo de clarificar alguns problemas. A referência a
imagens e figuras que não se incluem no manuscrito estende-se pelos três
primeiros livros e este poderia, em última instância, dada a sua
organização, ser dado à estampa embora nenhum dado o suponha – por
exemplo, a existência de um preâmbulo dedicatório.

O título explica o seu destino imediato, a «aula de arquitectura» do


Paço da Ribeira ministrada desde 1594. Mateus do Couto «leo»-o no ano
de 1631. Os documentos que se conhecem acerca dos mestres da lição régia
da Arquitectura levantam algumas dúvidas sobre os sucessores de Filippo
Terzi e Nicolau de Frias, sendo mais do que provável que entre 1610 e
1634, Teodósio de Frias fosse o natural sucessor do pai. Não obstante, a
documentação pressupõe que outro mestre ministrasse pontualmente as
lições.
Conhece-se uma missiva de 4 de Março de 1633, referindo-se ao ano
anterior, na qual Filipe de Mesquita, dirigindo-se a Gonçalo Pires de
Carvalho, declara que o arquitecto Mateus do Couto fora convidado para
«leer a lição de Architectura que lia felippe terçio» 529. É mais do que
provável que, pelo menos em regime de substituição, o arquitecto

526
BN, códice 946. Aparece já referenciado em Rafael Moreira, «Tratados de arquitectura», Dicionário
de Arte Barroca, pág. 492.
527
Mateus do Couto, Tractado de architectura que leo o mestre e archito Mattheus do Couto o velho no
anno de 1631, fl. 70.
528
No campo puramente especulativo, uma das explicações poderá relacionar-se, directamente, com a
própria docência e organização das lições apresentadas.
529
Publicado por Rui Carita, O regimento de fortificação de D. Sebastião..., pág. 131.

281
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

português tenha desempenhado tais funções, algo que aconteceria na


década seguinte quando a certidão de Paulo Ferreira, de 16 de Fevereiro de
1646 530 refere «Mateus do Couto, meu architeto e mestre de minhas obras,
a quem tenho mandado leo esta liçao».

Para termos uma leitura correcta da matéria produzida é imperioso


enumerar o índice dos tomos que, embora longo, se justifica pelo seu
ineditismo:

Livro I

Cap 1º 531
Cap 2º - Em q se define que couza he Architectura
Cap 3º - Que partes deue ter o Architecto
Cap 4º - Em q se declara que couza he edificar e que couza seja edificio
Cap 5º - Qual deue ser o sitio para edificar Cidades, villas, ou lugares ; e
porque indícios conheceremos sua bondade
Cap 6º - Como as Colunas são os principaes ornatos dos edificios
Cap 7º - Sobre a Coluna Toscana
Cap 8º - As ordem Dorica
Cap 9º - Que trata da occazião q houue para inuentarem os Triglifos, e as
Gottas, e esculturas dos Frizo
Cap 10º - Da ordem Ionica
Cap 11º - Da ordem Corinthia
Cap 12º - Da ordem Composita
Cap 13º - De alguas aduertencias sobre estes cinco generos
Cap 14º - Sobre as grossuras das paredes dos Templos e mais edificios e
alturas

Livro II

Cap 1º - Trata mais particularmente dos edificios


Cap 2º - Sobre as paredes
Cap 3º - Tambem sobre as paredes
Cap 4º - Das condiçoens que as Paredes terão para serem as que conuem
Cap 5º - Sobre os fundamentos
Cap 6º - Sobre o edificar no mar, ou em algu rio impetuozo, e fundo, com
pedras perdidas
Cap 7º - Trata de como se hão de cordear os edificios
Cap 8º - De alguas declaraçoens tocantes aos Prumos, traneis e oliueis das
cazas
530
Cfr. Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo I, pág. 567.
531
Capítulo introdutório, sem título.

282
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Cap 9º - Sobre os Materiaes do officio de Pedreyro


Cap 10º - Sobre o fundar das obras de toda a qualidade
Cap 11º - Sobre os Templos
Cap 12º - Sobre os Frontespicios
Cap 13º - De que couzas hade constar o edifico sagrado, e o não sagrado
para ser bom : no qual se dá tambem razão ; porq os vãos hãode ser
impares
Cap 14º - Sobre alguns remates de edificios dignos de memoria, e outras
couzas tocantes aos mesmos edificios
Cap 15º - De alguns defeitos, e couzas, com q se deue ter muita conta no
edificar e o q disto se pode emmendar

Livro III

Cap 1º - Sobre leuantar as monteas das Plantas


Cap 2º - Da utilidade dos telhados, e tectos dos edificios
Cap 3º - Sobre as janellas e portas dos edificios, e outros uãos
Cap 4º - Sobre as escadas
Cap 5º - Sobre as cheminés
Cap 7º - Sobre a compostura em geral dos edifícios
Cap 8º - Sobre as madeiras dos edificios
Cap 9º - Sobre as pedrarias mais em particular
Cap 10º - Sobre os ladrilhos
Cap 11º - Que occazião pode haver para arruinarem os Montes
Cap 12º 532
Cap 13º - Sobre as Pontes
Cap 14º - Sobre alguas advertencias do edificar das Pontes
Cap 15º - De alguas Pontes notaveis do mundo

Livro IV

Cap 1º - Do principio das couzas segundo os Filosofos


Cap 2º - Sobre o montear das abobadas e mais couzas tocantes a ellas

3.2.5.5.2. Influências teóricas

Mateus do Couto assume desde o primeiro momento um assombroso


conhecimento teórico da melhor tratadística italiana, para além de revelar
uma lucidez e compreensão clara das fontes que utiliza.
O princípio da autoridade vitruviana leva-o a citar longamente dois
dos textos fundamentais de toda a teoria da Época Moderna: O «Vitrúvio»

532
Este capítulo não existe.

283
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

de Daniele Barbaro e o «De re aedificatoria» de Leon Battista Alberti 533.


Conhece e utiliza o texto albertiano, editado pela primeira vez em 1485 em
latim e seguido de uma vintena de traduções em vernáculo, bem como a
não menos célebre edição e comentário de «I dieci libri dell’architettura di
M. Vitruvio», de Daniele Barbaro e publicada em 1556, a que o autor
português recorre insistentemente. A tríade de influências revela, uma vez
mais, a incontornável importância da obra de Sebastiano Serlio, não só dos
célebres Livro III e IV, mas também do Livro I.
Mateus do Couto revela conhecer «I quattro libri dell’architettura»
de Andrea Palladio, publicados pela primeira vez em Veneza em 1570 e
mesmo, num lapso de plena actualidade, o «Dell’Idea dell’architettura
universale» de Vicenzo Scamozzi, publicado na cidade de Veneza em
1615.

É importante referir que grande parte das referências a outros autores


mais ou menos relevantes para as questões teórico-práticas da arquitectura
– como Euclides, Hipócrates, Cícero, Aristóteles, Platão, Teofrasto ou
Pitágoras – são colhidas nos textos anteriores, essencialmente em Daniele
Barbaro, Alberti e Serlio, portanto, ainda dentro da tradição humanista de
enriquecimento do texto através do recurso à simples enumeração de
figuras do período clássico.

3.2.5.5.3. Análise descritiva da obra

Mateus do Couto dedica o Livro I às questões eminentemente mais


eruditas e teóricas, definindo o conceito de arquitectura e de arquitecto
valendo-se do modelo vitruviano-albertiano, quer através da directa leitura
albertiana, quer da edição vitruviana publicada e comentada por Barbaro.
Serão estes dois autores que dominam todo o texto dedicado às definições
básicas da arte arquitectónica.
Grande parte do primeiro tomo é dedicado aos elementos basilares da
arquitectura moderna, ou seja, aos cinco géneros de ordens arquitectónicas.
Não deixando de conceber a ordem arquitectónica como «ornato», à boa
maneira de Alberti – pese embora o conhecimento das propostas mais
recentes de Palladio e Scamozzi – Mateus do Couto segue advertidamente a
«regra geral» imposta por Sebastiano Serlio no seu Livro IV, primeiro
definidor da académica divisão das ordens arquitectónicas em Toscano,
Dórico, Jónico, Coríntio e Compósito. O arquitecto português enumera
igualmente os templos pagãos e religiosos que cada ordem deve privilegiar,
tendo em conta os ensinamentos do arquitecto bolonhês.

533
Rafael Moreira, «Arquitectura», pág. 492 considera que Mateus do Couto utiliza a tradução albertiana
castelhana, concretamente «Los Diez Libros de Arquitectura», publicada em Madrid no ano de 1582.

284
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Mesmo quando Serlio teve que se basear na sua experiência e


conhecimentos arqueológico-arquitectónicos para escolher regras para
determinados elementos compositivos não referidos por Vitrúvio, ou
quando decide corrigir o escrito vitruviano à custa de uma melhor
clarificação dos diversos elementos, Mateus do Couto não se coíbe de
apontar o facto e de sublinhar por cima. Não deixa, contudo, em caso de
concordância, de referir sempre que possível a versão vitruviana de
Barbaro.

Nestas questões, o arquitecto português desaprecia pontualmente as


propostas de Andrea Palladio como quando refere no capítulo VIII a
opinião da tratadística italiana de que alguns construtores antigos usavam a
base ática nas colunas coríntias, questão sobre a qual prefere o argumento
de Serlio que «quer q entendamos q Vitro deu esta Baza do genero Dorico,
e q o Corinthio o não tem. E q assi o entendeo Bramante a quem deuemos
dar pleno credito» 534. E o mesmo acontece quando, ainda no que diz
respeito a esta ordem, prefere o módulo 1:6 para a coluna proposto por
Serlio, face ao 1:8 proposto por Palladio, tal como na Ordem Toscana
(capítulo VII) afirma cabalmente: «E Daniel no seu comento, Paladio, e os
mais e todos querem q esta Coluna seja de 7 grossuras com sua baze e
capitel. Serlio quando trata della, quer que não tenha mais de 6 grossuras,
alegando para isto q he a medida antiga q ellas tinhão, e q como he o pro
todas as medidas famozas» 535. Estes argumentos são confirmados pela
forma quase jocosa como trata o arquitecto quando tem que referir as
medidas dos pedestais no Jónico: «E porq Serlio lhe não dá mais medidas,
as faremos nesta forma, conformandonos com Paladio, porq Vitro tambem
não faz cazo de Pedrestraes, e só em sustancia escreveo o que mais
importaua», referindo também que «Paladio não quer q o limpo deste
Pedrestal tenha tanta altura, contudo, parece q o quadro e ½ que Serlio da
he melhor por ser mais leuantado». O mesmo acontece quando, a título de
exemplo, Mateus do Couto trata da base da coluna toscana, referindo
igualmente Palladio, no capítulo VII, mas não alinhando pelas suas
opiniões.
No que concerne à Ordem Coríntia (capítulo XI) apontam-se as
insuficiências do texto vitruviano: «Vitro não trata da Baza nesta Coluna,
somente trata do Capitel e da a entender q se ponha este Capitel sobre o
corpo todo da Coluna Ionica, mas Serlio colheo das melhores antiguidades
de Roma hua Baza». No seguimento do texto serliano, a autoridade de
Vitrúvio nunca é posta em causa mesmo quando o autor latino nada nos diz
acerca de determinado assunto, como o próprio Mateus do Couto faz
questão de salientar no que diz respeito à Ordem Compósita: «Nesta ordem
534
Mateus do Couto, Tractado de architectura..., fl. 10.
535
Mateus do Couto, Tractado de architectura..., fl. 7.

285
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

poderemos variar e ainda q Vitro não trata della contudo chegandonos


sempre aos seus textos».
A longa lição sobre as ordens arquitectónicas termina com a
problemática em torno da sua sucessão em altura, momento aproveitado
pelo arquitecto português para demonstrar que o seu conhecimento lhe
permite ter opiniões muito próprias acerca das regras da arquitectura. É no
capítulo XIII que Mateus do Couto inclui o importante parágrafo para a
História da Arquitectura Portuguesa: «Muitas vezes, ou por poupar despeza
ou por proporcionar os Pilares encostados de hua fachada, he necessro
não hauer nelles Capitel, posto q haja Baza. Eu já tiue disputa sobre este
ponto, porq houue um Architecto q o quis reprouar na fachada de S.
Vicente desta Cidade de Lxa a q foy necessro acodir eu pla authoridade de
tam grande Mestre meu, como foy Balthezar Alz q Ds tem, inuentor della,
tam sciente e de tanta experiencia nesta arte, q sem fazer agrauo aos mais
do seu tempo, elle era tido por melhor, e eu digo que não he contra os
textos de Vitro ordenar nos Pilares de encosto bazas sem capiteis, porque
já Serlio o uzou, e da lugar ao que digo, no seu Lib. 5º no Templo da forma
Octogona; e Phelippe Tercio, tam nomeado tambem o uzou em outro
edificio principal nesta Cidade de Lxa q he no Forte. Porem aduirto q a
simalha hade ser q imite o Capitel Dorico» 536. Esta «invenção» que
Mateus do Couto coloca nas mãos de Baltasar Álvares – no seguimento do
modelo de Filipe Terzi – é também ela fundamentada pela mais valia de
Sebastiano Serlio.
O Livro I não fica concluído sem uma série de advertências por parte
do autor acerca de algumas «licenças» arquitectónicas, quer antigas quer
modernas. Refere como erro a colocação de uma «moldura de hua
inuenção sobre outra da mesma inuenção», a inadequada sobreposição de
pedestais, a necessidade de interpor um plinto por cima dos entablamentos
na circunstância da sobreposição de ordens arquitectónicas e critica,
justificadamente, alguns Antigos pelo facto de diminuirem os vãos das
janelas e portais: «Não achey jamais razão q diminuião estes vãos assi
como ás Colunas, como algus querem dizer, he couza q não tem fundamto e
se o fazião por lhes parecer bem, não he de crer q homes tam eminentes
ordenarão p. algus destes vãos em alguas obras grandiozas cujos Autores
serião mortos, e q vistos elles em tais obras, outros pouco scientes tambem
uzarião o mesmo, e assi se hirião introduzindo nesta forma athe q houue
quem os foi reprovando de todo» 537.

Nos capítulos XIV e XV, Mateus do Couto introduz-nos questões


que tratará no próximo tomo, considerando as medidas básicas para a
edificação no que diz respeito à grossura das paredes e inclui algumas
536
Mateus do Couto, Tractado de architectura..., fl. 24.
537
Mateus do Couto, Tractado de architectura..., fl. 25.

286
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

advertências finais no que concerne à necessidade dos vãos das janelas e


portais serem em número ímpar e de a entrada ser central ou então em
simetria. Não deixa de referir, num último parágrafo, a sua preferência
pelas escadarias «que vão em Lansos, posto q Paladio faz cazo de escadas
de Caracoes, e ouvadas, eu não faço cazo dellas, nem as aprouo por
melhores» 538.
*

O Livro II começa por centrar-se nas questões prático-construtivas


dos edifícios, tratando das paredes, dos fundamentos em terra e em mar, do
aprumar dos edifícios, dos materiais, bem como dos remates dos templos
sagrados e públicos. Deve dizer-se que, a partir daqui, Mateus do Couto faz
amplo uso da sua experiência profissional, referenciando assuntos ausentes
dos textos que consultou. Não abandona, contudo, a sua linha de
pensamento nem deixa de citar Vitrúvio e Alberti, demonstrando
capacidade para usar essa mesma erudição com que sempre envolve as
questões que trata. Disso é prova a abertura do primeiro capítulo com a
célebre comparação entre a Arquitectura e a Música 539. É também claro
que Serlio deixa de ter o relevo anterior, na medida em que a maior parte
das questões técnico-construtivas estão praticamente ausentes nos seus
livros.

Dos inúmeros apontamentos pessoais, fruto da «experiência do


lugar», o arquitecto português realça o facto de tratar primeiro das paredes
e depois dos fundamentos: «Não pareça q excedo a ordem em tratar primo
das Paredes que delles porque por mais dificil tenho sabellos eleger, que
fazer hua parede; e eu ando sempre com o mais facil diante para q o mais
difficultozo custe menos a perceber». Por várias vezes o arquitecto alude à
necessidade de simplificar o discurso em favor de uma maior clareza
expositiva.

São importantíssimas as informações que nos concede sobre a


circunstância portuguesa, demonstrando uma clara adaptação do texto à
realidade construtiva. Desde logo, no capítulo IV oferece-nos as medidas
ordinárias lisboetas no que diz respeito à pedraria: «4 carradas fazem uma
barcada que faz hua braça de Parede. E huma braça de Parede são 250
538
Mateus do Couto, Tractado de architectura..., fl. 27.
539
Mateus do Couto, Tractado de architectura..., fl. 27: «Porq assi como na Muzica vemos q ha vozes
graues, e agudas, e menos graues, e menos agudas, com q tem a suauidade e proporção aos ouuidos q se
requere ; e com a nossa Architectura tem tanta semelhança com ella, q qualquer couza q diserepe aos
olhos, logo os offende, como a Muzica q não he certa aos ouuidos. A Muzica pincipal sempre he e foy de
4 vozes ; assi tomara q o edificio fora de 4 lados, porque de 4 he a mais perfeita : e assi querem nossos
Autores que a nossa Architectura tenha esta semelhança com a Muzica ; porq a de hua voz não parece
mal, nem a de 2 nem a de 3. Porem não me negarão que a de 4 he a melhor, e assim os apozentos de 4
lados repartidos como conuem».

287
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

palmos quadros, que são 10 de alto, 10 de comprido e 2 ½ de grosso.


Também saybamos q não hauendo carros, 18 cargas ordinariamente de
cauallo, ou macho fazem hua barcada» 540.

Em relação aos fundamentos destaca a dificuldade de fundar um


edifício em plena água, notando mesmo, no capítulo VI, que os «Antigos
passarão em silêncio o edificar no mar, e Vitro princepe dos Latinos
tambem o fez, e só approuou Arquas, e Palizadas e Leo Bapt. Albert. só
tratou q fosse solo firme, e lhe deytassem as mayores pedras que fosse
possiuel. E não tratarem disso fosse o q fosse porem disculpados ficão em
senão quererem meter contra a furia do mais forte elemento, q asolou, e
moueo tantas Cidades com seus diluuios» 541. Todavia, aponta algumas
soluções, como a utilidade da construção em «Escarpa», para a qual
fornece medidas. De seguida, trata da importância e rigor que é necessário
no «cordear» os edifícios, ou seja, no cálculo e prumo da construção
aconselhando os arquitectos, mais do que a segui-lo, a confiar a si próprios
na sua aplicação.

Neste preciso momento, quando fala da figura quadrada para a


edificação, Mateus do Couto introduz a sua opinião acerca da planimetria
do templo cristão: «He verdade q a redonda he mais perfeita; porem a
quadra he mais capaz e commoda para edificar debaixo della. E assi se
nos perguntarem, porq não edificamos debaixo da figura Redonda, sendo a
mais perfeita, e nós hauemos dito atraz que para os Edificios hauemos de
buscar, e ordenar o mais perfeito? A isto podemos responder q muitas
vezes o mais perfeito não he o mais commodo, nem mais capaz; e assi nos
edifícios q são para ajudarmos a passar a vida, sempre hauemos de tratar
da melhor comodidade, e debaixo disto supposto, ordenarlhe a melhor
forma, ainda q os Antigos ordenarão alguas figuras de edificios, e formas
fora da quadrada» 542. Esta observação é central para o entendimento que o
arquitecto português tem da arquitectura moderna prezando acima de tudo,
o seu carácter claro e funcional.

Tratando acerca dos «Materiaes do officio de Pedreyro», distingue o


campo da alvenaria – a construção das paredes feita de pedra, cal e areia –
e o campo da cantaria, que diz respeito à pedraria nobre para o lavrar dos
portais, janelas, pilares e colunas. Faz tábua rasa das fontes antigas e fica-se
por opiniões próprias no que se refere às obras de cantaria: «Neste nosso
Portugal, por mais q me digão, para as obras, nenhua Pedraria he melhor
que a nossa Lios, por ser muito forte, e sofrer as injurias do tempo, e

540
Mateus do Couto, Tractado de architectura..., fl. 30.
541
Mateus do Couto, Tractado de architectura..., fl. 32.
542
Mateus do Couto, Tractado de architectura..., fl. 35.

288
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

aformozentea. Deixo agora outra qualidade q há de Pedraria, q só por


poupar se vza dellas, que he a q chamamos Bastarda e assi outras Pedras
mais finas que parecem agradaueis à vista, e servem mais para brincos, e
interpozição de outras em alguas partes particulares q para o geral dos
Edificios» 543. Em complementaridade, destaca-se a importância da
consistência das areias e da rigidez da cal como a de Pavia (no Alentejo).

Os últimos cinco capítulos do segundo tomo são de capital relevo em


todo o texto pois tratam mais especificamente dos templos religiosos que
são a «mayor honra, autoridade e grandeza e ornato, q hum Lugar, Villa,
ou Cidade tem». Não deixando de referir a suprema grandiosidade do
templo cristão – citando quer Alberti quer Serlio – seja no que diz respeito
à sua monumentalidade ou à sua necessária localização destacada, o
arquitecto português define a sua posição, partindo da imagem humanista
com evidente releitura tridentina: «Hum Templo he semelhante ao corpo
humano, estendido com os braços abertos, de modo q o Corpo humano dos
peytos para baixo, responde ao Corpo do Templo, e os braços delle aos do
Cruzeiro, e a cabeça a Capella mayor». Dado que cada um o interpreta à
sua maneira, também Mateus do Couto nos dá a sua opinião: «Porem quero
eu, podendo ser, as façamos de modo que quando entrarmos plas portas
das Igrejas vejamos todos os Altares do corpo do d. Templo, sem embaraço
nenhum. E será grande comodidade escuzaremse nelle Naues, e os
obstaculos das colunas e pilares. E poderá ser o q digo fazendose os ditos
Templos de hua só Naue, e hauendo Capellas pelo perlongo do corpo da
Igreja, fazellas a face, e de modo que se vejão todos os Altares». Adverte
ainda: «Nunca façamos pequenas as Capellas Móres, porq nellas há
sempre mais seruiço do que imaginamos. Querem nossos mayores, q as
cazas de oração não sejão muito claras, porque dizem q a muita claridade
não faz tanta deuoção. Eu não sou deste parecer, e as Igrejas hão de ser
claras porq sendo assi determinase quanto há nellas, e diuertemse mtas
vezes as pessoas de outros pensamentos, e só o tem naquillo q vem, e q está
nas ditas Igreijas considerando tambem o espírito, e alma das Pinturas q
na verdade sendo boas, fazem grande deuoção» 544.

Com exactidão e clareza de pensamento, Mateus do Couto corrobora


as directrizes pós-tridentinas de forma muito particular. O templo cristão
deve partir de uma planta longitudinal – planimetria baseada no seu tão
destacado e preferido «quadro». Esta deve desenvolver preferencialmente
um edifício de nave única, sem colunas ou pilares a delimitarem superfícies
diferenciadas. O arquitecto português obriga a que o edifício se submeta a
uma inequívoca clareza visual. Destaca a importância de, a partir da
543
Mateus do Couto, Tractado de architectura..., fl. 37.
544
Cfr. Mateus do Couto, Tractado de architectura..., fl. 39-40.

289
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

entrada do templo, tudo dever ser distintamente apercebido no imediato,


dos altares até à capela-mor, fulcro da liturgia espacial e religiosa. Defende
que os altares que se rasgarem ao longo da nave devem ser claramente
visíveis e que a capela-mor espraie claridade, preterindo a opinião
«tradicional» da devoção pela penumbra por uma devoção pela claridade
atmosférica e pictórica.
Tudo deve assentar numa concepção grandiosa e monumental que os
arquitectos poderão traduzir praticamente no «leuantar os taes edificios e
fazellos magestosos, porlhes um soco por baixo, em torno e alem deste
soco os fazer magestosos, serue muitas vezes de não desproporcionar as
alturas dos corpos. Porem aduirto q os socos q houuerem de hir em sima
de alguas Ordens, a menos altura q hade ter he a projectura q tem a
simalha q vay por baixo; e isto por regra geral» 545. Neste revelador
capítulo XI não deixa de apontar relevantes conselhos técnicos para a
perenidade das fábricas, defendendo o uso de abóbadas face aos
madeiramentos das coberturas e a utilidade da existência de vãos nas
paredes laterais para recolherem em si a humidade dos próprios alçados do
edifício.

Se para Mateus do Couto o templo religioso deve ser o mais perfeito


e majestoso de toda e qualquer localidade, «em Edificios q não forem
sagrados se fuja sempre de fazer Frontespicios por senão parecerem com
os ditos Edificios sagrados» (capítulo XII). Nesta questão do remate dos
templos afirma que «algus vzão por variar Frontespicios redondos q não
dezapprovo, e outros a modo de Quartões, que em alguas ptes parecem
bem. Porem aduirto q o menos que puderem escuzar Frontespicios
interrotos o fação» 546, o que pode provar que o remate da fachada do
colégio jesuíta escalabitano foi certamente modificado pelo seu discípulo e
sobrinho.

No capítulo XIV faz-se ainda referência a toda a tradição «al’antico»


de erigir estátuas, colunas e depois templos comemorativos das vitórias
alcançadas pelos povos antigos e modernos – como Carlos V – e mesmo
cidades em memória das ditas vitórias militares, como «em o nosso
Portugal vemos mto», salientando que «por fim de tudo se vierão tanto a
cansar com celebrar victorias, que derão em fazer Arcos Triumphaes, e
grandes Templos, q quanto a mim são as melhores memorias de todas:
Tambem no nosso Portugal há disto» 547.

545
Mateus do Couto, Tractado de architectura..., fl. 40.
546
Mateus do Couto, Tractado de architectura..., fl. 41.
547
Mateus do Couto, Tractado de architectura..., fls. 44-45.

290
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Depois de teorizar acerca da beleza, Mateus do Couto conclui o


Livro II apontando oito medidas a ter em consideração caso um edifício
apresente ruína: deve lançar-se o prumo para ver se as paredes estão
direitas; deve ver-se se as paredes estão bem ou mal lavradas; deve
observar-se a natureza dos materiais; deve atender-se à má ou boa
ordenação da obra; deve verificar-se se a grossura das paredes é suficiente;
deve observar-se o «temperamento» dos materiais; deve observar-se se a
causa se encontra na debilidade de alguma das partes constituintes do
edifício e se, por último, se se rasgaram erradamente vãos sobre maciços ou
maciços sobre aberturas. No caso de mau fundamento, de maus materiais,
de errada ordenação dos diversos elementos ou sua constituição pouco ou
nada se pode fazer senão reconstruir na totalidade o edifício.

O Livro III prossegue nesta mistura inteligente, e quase nunca a


despropósito, de preocupações com demonstrações práticas articuladas com
uma estrutura teórica apoiada nos textos autorizados de Vitrúvio e Alberti.

O capítulo I trata de como calcular e levantar a partir de uma planta


as «monteas», ou seja, os alçados, fachadas ou perfis do edifício, segundo a
definição do arquitecto português, através da técnica da «linha em branco»,
sendo que o texto seria originalmente ilustrado com um desenho
explicativo onde se apresentariam variações de um mesmo edifício.

Retorna ao edifício para exaltar, dentro dos aspectos práticos, a


utilidade das coberturas, a importância da luminosidade e da salubridade
através do rasgar dos vãos bem como da utilidade das escadas e das
chaminés, referindo-se igualmente às madeiras, às pedrarias e aos ladrilhos.
Em tudo serve-se tanto das fontes escritas como do seu conhecimento e
experiência empírica. Quanto às coberturas defende que sejam feitas de tal
modo «q cobrira todo o Edifício liuremente, e com a sua sombra athe as
paredes de que he composto; e que fosse tam deitada a sua obliquidade,
que em nenhua parte se pudesse a agua deter; aduertindo q nas terras
onde ouuer mais neue, sejão elles mais empinados, para q a ditta neue
possa com pouco violência despedirse e correr» – veja-se o capítulo II. De
igual modo, «nenhua estancia por pequena que seja, podendo ser, se hade
fazer sem luz, e trabalhase muito por lha dar porque a estancia que não
tem respiradouro, he muito nociua a quem viue nella». O arquitecto
preocupa-se grandemente com a salubridade do edifício recomendando que
«onde ouuermos de por mais Ianellas, e mais rasgadas seja para a parte
donde vierem os ares mais sádios; e para onde o sol menos dano nos fizer.
E porq tambem he forçado, que façamos apozentos para as outras partes,

291
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

que são menos sadios, neste cazo sou de parecer que os façamos altos
porque o ar que entrar primeiro quebre a sua furia nas paredes oppostas a
essas Ianellas, que sempre deuem de ter mais altura, que a largura e a
menos deue ser a diagonal». Estas considerações acerca da salubridade
abarcam não só a crítica aos «vapores pestilenciais» que se formam nos
espaços fechados – fazendo uso demonstrativo de algumas histórias
recolhidas por Alberti – como ao excesso de exposição ao calor, prejudicial
ao homem e ao edifício: «O sol cria todas as couzas nisto não há duuida, e
onde elle não entra me parece a mim que não pode hauer saude perfeita:
Tambem hauemos de considerar que aonde elle aquenta demaziadamente,
tambem falta a mesma saude» 548.

«As Escadas he o mais necessario seruiço, que nos Edificios há;


porque sem ellas não se podem vzar, senão os que estiuessem ao oliuel do
chão» diz-nos o autor no início do capítulo IV. Não deixando, uma vez
mais, de apontar a sua preferência pelas escadarias de lanços direitos e a
sua reprovação das escadas em caracóis, «que senão permitem senão por
grande necessidade», para além da antiga opção pelas ladeiras, afirma que
o número de degraus por lanço deve ser «o mais suave que possa ser, e
querem os Antigos que sejão impares para que subindo com o pe direito no
primeyro degrao, como o mesmo tornem a sahir no derradeiro; e querem
que sejão ordinariamente sete, imitando aos 7. Planetaz que não menos
nem mais de 11» e até as medidas dos degraus – ¾ de palmo de altura e
menores que dois palmos de comprimento. As vantagens assentam no
evitar o cansaço e no servir as «comodidades» e «authorizão muito os
edificios tão suavez no subir, e descer, para as Molheres, e se alguma cahe
ou outra couza, para com muita facilidade». Em favor da segurança dos
utilizadores condenam-se os «degraos de meya esquadria, q seruem so de
mil dezastres, ainda aos q de ordinario andão por ellez, alem de desfearem
mto» 549.
Pelas mesmas razões de saúde pública são necessárias as chaminés,
pois o «fumo faz grande dano aos corpos» e «para alem de fazer mal á
vista, faz grande dano aos espiritos vitaes, porq só elle basta, sem ser
necessro algoz, para afogar hua pessoa». Aponta os melhoramentos
modernos das chaminés – como as «trombas» – e as suas medidas – nunca
menos de três palmos de lareira, nem menos de quatro e meio de altura da
boca de fumo. Aconselha, entre outros pormenores, sempre que as paredes
forem suficientemente grossas, as lareiras a não se destacarem da parede
550
.

548
Veja-se Mateus do Couto, Tractado de architectura..., fls. 49-51.
549
Mateus do Couto, Tractado de architectura..., fls. 51-53.
550
Mateus do Couto, Tractado de architectura..., fls. 53-54.

292
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Quando se refere à repartição dos aposentos dos edifícios nobres,


Mateus do Couto vale-se essencialmente da sua experiência pessoal,
afirmando ter «tão particularmente tratado» deste tipo de construções. O
modelo que apresenta, dividido em três andares, define um piso térreo que
designa por «Logea, Zagão ou Pateo», sendo que o último difere dos dois
primeiros porque «sempre hade ser aberto». Neste andar poderá existir
uma cocheira, aposentos para criados mais humildes, uma cozinha exterior,
celeiros e quaisquer outros armazéns, sendo importante ter boa altura e «o
sitio capaz, ou sobejado, e sendo em parte que valhão as casaz, não será
mao acomodar esses sobejos para se alugarem». No andar superior, ao
cimo da escadaria, deve entrar-se numa sala – ou salão de recepção – que o
arquitecto deseja ampla, ladeada por uma saleta mais pequena para a dama
nobre da casa, colocada entre a sala de recepção e uma antecâmara, pois
«não há razão q a Antecamara de estrado fique tam vizinha da sala
publica, por senão esteja escutando o que numa e noutra se falla, q ás
vezes é danozo». Deve incluir uma ou duas antecâmaras, um quarto ou sala
privada onde pernoitem os senhores da casa – que fique, para maior
descanso, o mais resguardado possível das «reuoltas da rua» – com dois
camarins pequenos para uso matronal. Afastado do quarto de dormir,
poderão construir-se repartimentos para os filhos, criados «e se a qualidade
dos senhores for tal podera hauer duas ou trez destas cazas, para tambem
lhe darem apozentos conforme a sua qualidade». Poderá existir ainda uma
casa grande para as criadas e seus serviços que comunique directamente
com a sala privada dos senhores sem devassarem as antecâmaras nem
entrarem na sala principal. Em complemento, a moradia nobre pode
também ter compartimentos para roupas e mesmo uma segunda cozinha.
Do salão de recepção da entrada para o outro lado, é necessário uma
serventia para o quarto do patrono, que incluirá divisão ou divisões para
roupeiros, biblioteca, camarim e alcova para dormir. É também importante
a presença de um oratório «situado em tal lugar que sendo possiuel, da
Camara, Cazas de estrado, e salla publica, se possa ouuir missa» 551.

Quanto aos materiais a utilizar nos diversos edifícios, pese embora as


breves referências a Vitrúvio e a Alberti, Mateus do Couto adverte para a
necessidade de uma boa secura das madeiras e destaca – face ao cipreste e
vide – «o nosso Pinho manso cortado com a Lua de Ianeiro, escascado e
deitado na agua salgada por algum tempo a curar», madeira de grande
utilidade «quando não haja outra madeira, mas a verdadeira, por mais que
me digão, para madeiramentos, e travejamentos, he a de Castanho de
Galiza; e os frechaes q vão nas paredez fizeraos eu de Carvalho da mesma
terra bem seco» 552, segundo declara no capítulo VIII.
551
Consulte-se Mateus do Couto, Tractado de architectura..., fls. 55-58.
552
Mateus do Couto, Tractado de architectura..., fl. 59.

293
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

No capítulo IX, o arquitecto português dedica-se às pedrarias,


apontando curiosas teorias físicas acerca do nascimento das pedras,
valendo-se do texto albertiano e, mesmo neste particular, manifestando
opinião própria: «Não venho na razão que alguns dão que as Pedras
debaixo do chão crescam, porq se assim fora crescerão desde o principio
do Mudo athegora, de modo, que houverão accupado toda a Região
eterea: Nem approvo dizerem que tem seu ser debaixo da terra athe hum
certo Lemite, e que dahi por diante padecem sua velhice, porq a verdade
he q em Pedrarias que estão na sua região jamais se sente detrimento, e
sempre estão no mesmo ser». Com intensa chuva ou sol abrasador as «que
por natureza são rijas, a que chamamos Liozes, são eternaz» 553.
Por último, no que toca aos ladrilhos de tijolo, face às opiniões que
recolhe novamente em Vitrúvio e Alberti – por exemplo, no que respeita à
preferência da sua manufactura nas estações intermédias – prefere confiar
naqueles que se usam no seu tempo, de um palmo e quarto de comprido,
três de largura e uma polegada de grossura e a estes «chamamos de
Ladrilhar, e a d. Aluenaria, que tudo he hua vitolla posto q os com q se
hade Ladrilhar são rebatidos ao fazer abobadas». Um pouco mais grossos
são designados por «Forcado» e servem para «encher os frontaes».

As suas reflexões acerca das Casas Nobres conduzem-nos novamente


a importantes revelações acerca da consciência e erudição do seu escriba e
da importância que tem a funcionalidade na arquitectura, levando-o mesmo
a criticar os Antigos: «Edificauão os Antigos com mais magestosidade do q
hoje nos o fazemos, e fazião muitas obraz, q de nenhua utilidade lhes erão,
as mais dellas só por vaidades. Nos repartimentos dos apozentos em q
hauião de viuer mostrauão tambem mais grandeza, q comodidade; e ainda
essas antigualhas de Roma, a antiga, nos dão indicios do q digo». Esta
crítica não é, contudo, contra a ornamentação em geral, mas sim contra os
seus abusos. O capítulo seguinte – intitulado «Sobre a compostura em
geral dos Edifícios» – é revelador disso mesmo: «Pareceme q não hauerá
pessoa por ignorante q seja q senão deleite mto de ver Edificios
engraçados; esta graça lhes nasce do bom ornamento, e pto mais este lhe
falta, menos engraçados ficão. Ha logo de considerar quando estas
fabricas se fazem, compollas e ornallas de modo q fiquem engraçadas,
ornadas e fermozas. Tudo aquilo por breue e transitorio q seja, q he
engraçado, nos contenta mto e parece q nos não podemos apartar da sua
prezença, e as vezes he isto tam breue e se acaba tam depressa que não
dura quatro horas. Hum Edificio q fazemos para quasi eterno, parece que
quanto pudermos nos hauemos de esmerar na sua perfeição, pois somos os
criadores delle» 554.
553
Mateus do Couto, Tractado de architectura..., fl. 61.
554
Veja-se Mateus do Couto, Tractado de architectura..., fl. 57.

294
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Este parágrafo é amplamente elucidativo da defesa da decoração do


edifício – «porq todo aquelle a q não esta bem ornado e fermozo, não
cessamos de o aniquilar e dizer mal delle» – bem como da consciência do
arquitecto como criador, de um criador que deseja e se afirma disposto a
suplantar o «grande inimigo q estes Edificios tem nas injurias dos tempos,
e eu digo q nós o somos ainda para elles mayores». Está cabalmente
provada a consciência moderna do arquitecto.

Dentro desta modernidade distingue ainda os conceitos de belo e de


ornato: «A fermozura he hua compostura da feita da razão, de todo o q
queremos ordenar, de tal modo feita q nenhua couza lhe possamos
acrescentar, mudar, nem diminuir sem ficar menos fermoza. E em verdade
q parece isto couza Divina, porq no dar da perfeição se esgotão todas as
Artes e entendimento e ainda a Natureza não he facil sahir a Luz com hua
couza do todo consumada. O Ornamento he couza que parece mais
fingida; os homes sabios q edificão sempre o fazem de modo que as suas
obras sejão approvadaz, e he couza de as fazerem com certa razão, e fazer
hua couza com certa razão he da arte; porem quem podera negar que o
verdadeiro edificar não nasça toda da arte?». Na sequência desta ideia
refere a necessidade de que o arquitecto tem em não se deixar enganar
«com os ornatos Licenciozos, porque só são para gente que ignora esta
faculdade. A sustancia da composição da verdadeira Architectura, a que
podemos chamar Alma, he a em q nos hauemos de cansar, e nellas nos
podemos esmerar com ornatos largamte que se permitão» 555.

«A nossa sciencia tambem tem (como tenho dito) seus textos


expressos, e regras principais, das quaes por nenhum modo os hauemos de
fugir: varias no modo, com que vzaremos dellas sim, mas não na
sustancia; e acho eu q esta nossa sciencia he a em q mais o entendimento,
e habilidade se pode alargar, acabando sempre no fim proposito dos
textos». Por esta razão, Mateus do Couto critica severamente aqueles que
confundem o arbitrário com o conhecimento regrado: «He grande
ignorancia mudar a forma do edificar, e há que diga, que não vay nada
disso, q só o gosto e appetite de cada hum se hade seguir, mudando a
natureza do dito edificar; o q he por não terem a sciencia, que conuem, e
cuydarem q tudo aquillo que não alcanção, o não há, nem as Artes lá
podem chegar» 556.

Consciente da fatalidade e irresolubilidade do conhecimento, o seu


saber leva-o a confiar, tal como sempre, nessa «alma» da ciência: «Hua
pessoa não pode saber tudo aquillo q muitas por milhares de annos mal
555
Mateus do Couto, Tractado de architectura..., fls. 57-58.
556
Mateus do Couto, Tractado de architectura..., fl. 58.

295
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

puderão alcançar. A Medicina, Navegação e as mais artes em muitos


annos forão tiradas a Luz? E ainda senão sabem de todo, e assi he esta
nossa faculdade: porem há nella regras certas e justas, de que não
devemos fugir os q nos prezamos de scientez nella. E pareceme que o
mesmo he em todas as Artez, q se bem as consideramos, parece terem huas
regras principais que lhe seruem de textos expressos, e sobre estes, se
amplifica a tal Arte, como na Muzica são as entoações sobre q ella toda se
funda, na Arithmetica as q chamamos especies, no Latim, nominatiuos,
conjugações, gramatica; preteritos, e sintaxia, em q todo o Latim consiste,
e por este theor vão todas as mais» 557.

O Livro III inclui ainda um décimo segundo capítulo dedicado às


causas das derrocadas de montes, terminando com algumas observações
acerca da construção de pontes. Refere a ponte de Almaras, sobre o Tejo,
em Castela, as causas da muito recente derrocada da ponte de Coimbra,
bem como outra notícia que prova a sua estada em terras castelhanas,
possivelmente a caminho da Corte: «E nestes nouos tempos em Salamanca
Cidade de Castella hauia hua Ponte Magestoza de pedraria muyto forte,
que eu vi, e por esta falta de com as cheas cobrir os arcos, veyo hua, e a
leuou em claro. E no nosso Portugal, em Cascaes porto de mar, tambem
hauia outra Ponte forte de pedraria, q tinha a mesma falta, e outra chea a
leuou em claro». Fazendo uso da tratadística que conhece, enuncia algumas
pontes notáveis do Mundo, em particular as de Roma, aconselhando a
consulta do Livro III de Andrea Palladio.

É exactamente neste último capítulo que o arquitecto português


afirma dispensar algumas informações acerca dos fundamentos de pontes
«porq heyde tratar no Lº da Architectura Militar como se podera fundar
toda a fabrica no mais fundo Rio, ou mar que houuer» 558.

O Livro IV abre com uma curiosa referência aos «Princípios das


Coisas segundo os Filósofos», tratando dos elementos tidos como
fundadores da vida – seguindo o segundo capítulo do segundo livro
vitruviano – e referindo as qualidades dos quatro elementos: Fogo, Ar,
Água e Terra. Este devaneio especulativo serve-lhe para recordar as teorias
dos físicos antigos acerca da origem dos materiais, já referenciada
anteriormente, na sequência dos textos de Alberti, especificamente o
capítulo VIII do Livro II. Pese embora se resuma a apenas dois capítulos,
Mateus do Couto enumera aquilo a que se proporia tratar no início do
557
Mateus do Couto, Tractado de architectura..., fl. 58.
558
Mateus do Couto, Tractado de architectura..., fl. 70.

296
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

segundo capítulo: «Parece q a razão esta pedindo q neste 4º Lº tratemos do


Montear das Abobadas, assi por aresta, engras, Lunetas, Rincães, Meyas
Laranjas, Perchinas, Arcos, direitos, e de viagens, Contraviages,
Sarapaneis, sobrearcos, Ianellas, em Cantos; Arcos, ou Ianellas em Torres
Redondas, assi pello conuexo, como pelo concauo, Cruzeiros de toda a
sorte, assi ao moderno, como ao antigo; Nichos curiozos, e artificiozos, em
bozinados, como outras muitas couzas tocantes a isto, q ao diante se
verão» 559. Propunha-se expor o seu saber acerca da construção de todos os
componentes do edifício, das partes estruturantes aos pormenores
arquitectónicos, inclusive dando também relevo «assi ao moderno, como
ao antigo».
Não deixa de destacar a dificuldade de entendimento no que diz
respeito ao levantamento dos alçados, porque «disto há tanta falta, como
necessidade por senão entenderem; fallo nos officiaes operantes da
mecanica que os Architectos obrigação tem de o saber. Estas monteas são
de mais necessidade do que se cuyda, porque nellas esta a segurança das
obras; e porq ordinariamente dellas temos necessidade» 560.

A «lição» de arquitectura de Mateus do Couto, incompleta, fenece


por aqui.

3.2.5.5.4. Teoria da beleza como «mimesis»

A tendência de Mateus do Couto para a erudição leva-o a dissertar no


Livro II, partindo de Vitrúvio e de Alberti – e em segunda mão de
Aristóteles e Hipócrates – acerca da teoria do belo na linha da antiquíssima
concepção da beleza como «mimesis» ou imitação: «Tres são as couzas
principaes, q fazem os Templos, e mais edificios authorizados, e bellos. A
1. o numero dos membros, a 2ª a forma delles; a 3ª o sitio em q se fabrica.
E nestas 3 couzas consiste toda a beleza uniuersalmente, e com grande
difficuldade se dá nisto; porq para se poder fazer esta eleyção he
necessario q o Architecto saybe eleger o bom, e reprouar o que não for. E
quem souber fazer tal se pode chamar perito nesta faculdade; e de
entendimento Diuino; como la diz Vitruuio» 561.
Estes argumentos, embora usem a «autoritas» vitruviana, apontam
claramente para a «elettione dell’belo» de Serlio e, na generalidade, para o
conceito de imitação quinhentista que, embora e necessariamente tenha a
Natureza como modelo a seguir, realça a valorização da criação humana
através já não de uma imitação imediata e objectiva mas como processo de
selecção do Belo. Esta consciência criativa é estonteantemente clara no

559
Mateus do Couto, Tractado de architectura..., fls. 72-73.
560
Mateus do Couto, Tractado de architectura..., fl. 73.
561
Consulte-se Mateus do Couto, Tractado de architectura..., fls. 42-44.

297
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

capítulo XIII do segundo Livro em passagens como a seguinte: «Dizião


algus que como pode ser nos Edificios imitarse a natureza; porque nelles
pomos huas Ianellas sobre outras, e huns Pilarez sobre outros (que he o
que reprouamos atraz). A isto responderemos que são corpos differentes, e
por isso os mais perfeitos, diuidimos hus dos outros, para que cada hum
delles fique separado. E assim fallamos q cada corpo destes he o que imita
o Corpo humano. Hora aquelle corpo, q varia mais nas molduras, e
ornato, não se afastando das regras, este será o mais perfeito, sendo o
ornato o melhor, e as molduras as mais graciozas, não pondo as mesmas
huas sobre outras; porq neste desconcerto desendo parecerem os membros
huns com os outros (feitos todos conforme temos tratado) se acha hum
concerto q alegra o entendimento e olhos». É o que Alberti chama
«Galhardia, a qual comprehende dentro em sy todas as perfeições».
E «vendo nossos mayores quanto ella deuia imitar a dita natureza,
assim o fizerão, tomando sempre della o melhor com toda a industria que
lhe foy possiuel, fazendo hus edificios mayores, outros menores, differentes
huns dos outros, assim como nos Corpos humanos o faz a Natureza;
imitandoa tambem a ella nos vãos, e nos macisos, porq nunca se vio hum
corpo sustentarse em hua perna sem aleijão, nem hu Arco sobre hua
Coluna, que forçado hãode ser duas, assim a Coluna como as Pernas. E
daqui vierão tambem a fazão tambem a faz os vãos impares, e os moçissos
pares, imitando a dita Natureza».

Mateus do Couto revela ter conscientes os conceitos fundamentais da


teoria moderna – a tradição renascentista do Corpo Humano como «medida
de todas as coisas», a tradição pitagórico-platónica da visão matemática do
belo como número e o conceito estrutural de «mimesis» como fórmula de
selecção da beleza.

3.2.5.5.5. O «Tractado de Prospectiva»

O texto do manuscrito do arquitecto português termina abruptamente


ao segundo capítulo do Livro IV. Segue-se-lhe um outro, também este
incompleto, designado por «Tractado de Prospectiva». Trata-se, nada mais
nada menos, do que uma tradução quase literal de fólios do Livro II de
Sebastiano Serlio quer no que diz respeito ao desenvolvimento textual, quer
aos exemplos gráficos.
«Ainda q seja couza difficultoza escrever a sutil Arte da Prospectiva,
e principalmente de corpos levantados, porque tambem he arte q melhor se
ensina por obra prezencialmente, que por escrito, e desenho. Porem como
eu tenho tractado no 1º Lº da geometria, sem a qual não ha q tratar da
Prospectiua, me esforçarey, pelas mais brauez palavraz, q me forem
possiveis a dar a clareza necessaria para qualquer Architecto. Nem me

298
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

causarey em filosofar, e disputar, que couza seja Prospectiva, nem donde


se deriuou ; porq o profundissimo Euclidez a trata sutilmente com a sua
especulação». Não obstante, não deixa de considerar a seguinte definição:
«Mas vindo a Practica, e ao que he necessario para o Architecto, direy q a
Prospectiva hé aquella a que Vitruvio chama Scenographia, que quer dizer
a frontaria, e lados de hum edificio, ou de qualquer superficie, ou corpo. A
qual Prospectiva consiste em 3 linhas principaes. A 1ª he a Linha Plana,
da qual nascem todas as couzas. A 2ª Linha he aquella que vay ao ponto,
huns lhe chamão Vista ; e outros Horizonte ; mas Horizonte he o seu
proprio nome, ainda q Horizonte he tudo aonde a nossa vista acaba. A 3ª
Linha he aquella q chamamos da Distançia ; a qual he sempre ao Livel do
Horizonte, mas mais perto, ou mais longe, conforme se offerecer, como
diremos em seu lugar» 562.
Todas estas palavras são de Sebastiano Serlio e encontram-se na
introdução do Livro II sobre a Perspectiva. O arquitecto português limita-
se, neste particular, a traduzir o texto serliano – tal como as referências
subsequentes a Andrea Mantegna, Bramante, Rafael Sanzio de Urbino,
Baldassare Peruzzi, Girolamo Genga e Giulio Romano – do mesmo modo
que as doze figuras prospecticas incluídas são decalcadas do mesmo
escrito.
No seguimento dos exemplos serlianos, Mateus do Couto não deixa
de alinhar pela mesma formação quando afirma que «eu qual eu sou,
primeiro exercitey a Pintura, e a Prospectiva por meyo das quaes Artes
tenho tanto, e tanto me deleito nellas q com o seu trabalho me alegro
muito» 563 e aconselha a quem de direito: «Nem te enfades ó estudiozo
desta Arte de te cançares na Redondeza destas duas figuras ; q sey de certo
q a muitos hao de ser difficultozas, porq sem estas não se podem fazer
muitas couzas» 564.

3.2.5.5.6. Conclusão

A «lição» de Mateus do Couto nunca foi objecto de análise pela


historiografia portuguesa. 565. Merecendo por si só um estudo isolado, esta
curta referência analítica fornece-nos uma imagem completa do que se
tratava na «aula de arquitectura» dos Paços da Ribeira, para além das
matérias que seriam do foro do cosmógrafo-mor. Não deixa de ser curioso
e relevante que seja Mateus do Couto, o discípulo de Baltasar Álvares, a
legar-nos tal escrito. Provavelmente, numa perspectiva tradicional da
562
Mateus do Couto, Tractado de architectura..., fl. 85.
563
Mateus do Couto, Tractado de architectura..., fl. 87.
564
Mateus do Couto, Tractado de architectura..., fl. 96.
565
Referenciado por Rafael Moreira, o historiador vê-o como «culto entre os vitruvianos pelo grande
Alberti, mas retardatário para a época», bem como «tardo-renascentista na substância, barroco no
método» Cfr. Rafael Moreira, «Tratados de arquitectura», pág. 492.

299
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

historiografia nacional, este «tratado» teria mais cabimento se fosse


redigido por Terzi, Nicolau ou Teodósio de Frias. E, no entanto, o
projectista da igreja escalabitana jesuíta fornece-nos uma visão rica, erudita
e «italianizante», uma prova da sua imensa cultura arquitectónica.
É bom não esquecermos que o texto data do início da década de 30
do século XVII e que toda a evolução que temos vindo a antever se encaixa
na perfeição nesta obra, desde a base cultural humanista da «autoritas»
vitruviana à influência avassaladora de Sebastiano Serlio que Mateus do
Couto não abandona face aos tratados posteriores que efectivamente
conhece. Os seus livros manifestam a correcta compreensão das regras
básicas da tratadística moderna. Os conceitos de arquitectura e de
arquitecto, as suas definições e outras questões eruditas tipicamente
«humanistas» são retiradas de Vitrúvio e Alberti. A arquitectura é uma
ciência, tem regras, mas uma ciência com «alma». Se define o belo como
resultado da razão, não deixa de afirmar que o arquitecto tem o poder de
«seleccionar» e não pura e simplesmente «imitar», tal como defende Serlio.
Tem consciência da raiz «italiana» da modernidade, caracterizando
os edifícios tendo em conta o «cânone» das cinco ordens arquitectónicas.
Não obstante, a ordem arquitectónica é, acima de tudo, uma questão
estilística, por isso se aproxima da visão albertina de «ornato». Quando
define a planta perfeita para o edifício religioso é tridentino – o templo
deve tomar como «medida» o Corpo Humano, portanto, partir de uma cruz
latina com nave única, transepto e capela-mor – mas a sua preferência vai
para o modelo que fixou em Santarém com nave única, altares laterais bem
visíveis e capela-mor ampla e bem iluminada. Neste particular devem
escusar-se nave divididas por colunas e pilares, ficando, assim, a ordem
arquitectónica adstrita às paredes da nave em favor da clareza compositiva,
tal como se observa no sintetismo quinhentista italiano.
A consciência da amplitude do conceito vitruviano do arquitecto
leva-o a não descurar as questões prático-construtivas. Não se fica por
Vitrúvio ou Alberti, usando a sua experiência pessoal e aconselhando
mesmo os profissionais a confiar no seu próprio saber e experiência. Nunca
deixa de ter uma atitude crítica quando acha pertinente, nem de elogiar
aquilo que no seu próprio reino e nos tempos modernos suplanta o
«antigo». Todos os aspectos relevantes da arquitectura seriam tomados em
conta se o texto fosse concluído – revela-nos que o Livro IV trataria dos
componentes internos dos edifícios e que um outro se dedicaria às questões
da «arquitectura militar». Mesmo a sua interrupção, em favor de um
incompleto «tratado de prospectiva» traduzindo Serlio, denuncia uma
necessidade ainda não de todo compreendida – a importância do uso e
prática do projecto arquitectónico.

300
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

3.2.5.6. A produção teórica fora da Corte

Se não abunda a produção teórica em torno da arquitectura e


disciplinas auxiliares no âmbito régio, não era de esperar que fora da Corte
se encontrassem textos ou manuais referentes a este particular. Todavia,
durante este período, são conhecidos dois escritos apenas através de citação
documental realizados por dois profissionais da arquitectura fora do círculo
régio – Pedro de Araújo e Pero Vaz Pereira. Se a própria arquitectura
produzida fora do ambiente régio prova, em si mesma, a capacidade e
evolução dos mestres de pedraria dos finais do século XVI e primeira
metade do século XVII – no que diz respeito ao entendimento da nova
arquitectura de raiz italiana – esta realidade denuncia igualmente não só a
formação teórica como a preocupação com a produção de manuais que
servem objectivos teóricos e prático-construtivos.

3.2.5.6.1. O «manual de arquitectura» de Pedro de Araújo

Pedro de Araújo, tido como «imaginário» e «arquitecto», foi


colaborador próximo do importante escultor maneirista Gaspar Coelho
cerca de 1604 e a partir de 1613 eleito «mestre de obras» da vila de Aveiro
e «arquitecto» responsável pela traça e supervisão de todas as obras
camarárias – neste mesmo ano o único mestre de pedraria presente no auto
lavrado que autorizava a construção do Convento de Nossa Senhora do
Carmo de Aveiro.

No catálogo do livreiro Moreira da Costa, do Porto, referente ao ano


de 1910 insere-se uma nota (5862) que diz respeito a um texto pertencente
ou da autoria de Pedro de Araújo 566: «Tratado de architectura politica e
militar. Manuscripto portuguez do seculo XVII, que pertenceu ao mestre
d’obras e architecto Pero de Araujo, da villa de Aveiro, nomeado por
alvará de 26 de abril de 1613, mestre e architecto das obras da referida
villa, com o ordenado annual de 19$000 réis, que fôra o mesmo que
recebia o seu predecessor mestre Miguel Dias, fallecido n’aquella data. 1
vol. In-4º gr. Enc. Illustrado com desenhos á penna de modelos der estylos
architectonicos e problemas de geometria, perspectiva, e traçados de
fortalezas, etc., etc. Este precioso manuscripto foi deixado por Pero de
Araujo a Ruy de Mello Cardoso, por declaração do padre Manuel de
Carvalho. E por ser verdade, essa declaração foi lavrada nas notas do
tabellião M. S. Azevedo de Napoles, em Nandufe, a 23 de março do anno
de 1666. O manuscripto está dividido em seis livros, contendo os capitulos
seguintes: Discurso contra ociosos, para dar animo aos que quiserem ser

566
Esta nota foi já publicada em Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo III, pág. 233-234.

301
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

architectos, & passar a vida beatamente. Prologo em louvor da


architectura. Da necessidade da arte de edificar. Como procede a
geometria em seus principios. Dos principios, nome, definição & divisão
da geometria. Do modo de proceder n’estes seis livros de architectura
politica e militar. Das medidas famosas, & seus principios. Reducção de
pés castelhanos a palmos, & palmos em pés, por regra de tres. Problemas
de geometria, resolvidos segundo os principios de Euclides. Das cinco
ordens de columnas. Da perspectiva. De mathematica. Da fortificação.
Dos templos. – O manuscripto está escripto com perfeito conhecimento das
materias de que trata, encerrando muitas partes originaes, como sejam as
considerações escriptas nos discursos preliminares. É possivel que fosse
escripto por Pero de Araujo. Não foi impresso, como tambem não foi a
traducção dos quatro livros das proporções do corpo humano, escriptos
por Alberto Durer, e feita por André de Rezende. Do seculo XVII só se
conhece o tratado de architectura e arithmetica em Hespanha pelos annos
de 1674, sob o nome de Pedro de Albornoz. Este tratado, porém, é uma
tradução de Vitruvio». O livreiro vendia o exemplar por 100$000 escudos.

Desta pequena nota podemos retirar importantes informações.


Tratava-se de um texto manuscrito de tomo único, dividido em seis livros,
dedicados à «arquitectura politica e militar». Incluía ilustrações
desenhadas «á penna» pelo autor – que pretendiam clarificar o texto escrito
– versando «modelos de estylos architectonicos», ou seja, tipologias das
ordens arquitectónicas, «traçados de fortalezas» e desenhos ilustrativos de
«problemas de geometria» e de «perspectiva».

Parece-nos possível poder dividir as matérias da seguinte maneira:


1 – «Da Geometria» – inclui o duplo prólogo ao leitor e introduções
ao texto (Discurso contra os ociosos...; Prólogo em louvor da architectura
; Da necessidade da arte de edificar ; Do modo de proceder n’estes seis
livros...) e os capítulos referentes às medições (Das medidas famosas, &
seus principios ; Reducção de pés castelhanos a palmos, & palmos em pés,
por regra de tres).
2 – Das cinco ordens de columnas
3 – Da perspectiva
4 – Da mathematica
5 – Da fortificação
6 – Dos templos

Todo o índice nos leva cabal e frontalmente a pensar para que o


manuscrito fosse uma síntese dos tratados de Sebastiano Serlio, fazendo
uso no essencial do Livro I (Da Geometria), Livro II (Da Perspectiva) e
Livro IV (Das Ordens Arquitectónicas) bem como de textos famosos e

302
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

amplamente manuseados como o tratado de Pietro Cataneo – no que


respeita às questões do templo cristão e da arquitectura militar – ou de
similares dedicados à fortificação. Pouco mais se pode adiantar sobre esta
matéria.
O autor da nota acima descrita – demonstrando algum conhecimento
da tratadística pelo que podemos inferir pelas referências finais e marginais
ao texto de Pedro de Araújo – diz-nos mesmo que «o manuscripto está
escripto com perfeito conhecimento das matérias que trata, encerrando
muitas partes originaes, como sejam as considerações escriptas nos
discursos preliminares» o que pressupõe que identificou nas outras partes
semelhanças com textos por ele conhecidos. Para além do natural «Prologo
em louvor da architectura», que certamente recordaria a nobreza e
antiguidade da arte da arquitectura, a introdução intitulada «Discurso
contra ociosos, para dar animo aos que quiserem ser architectos, & passar
a vida beatamente» parece recordar os novos tempos «contra-reformistas»
e a ideia de que o arquitecto, pela sua profissão e responsabilidade, deve ser
digno do seu destino e viver singular e cristãmente. Neste sentido, é
provável que o livro dedicado aos templos tratasse mais da igreja cristã do
que dos templos pagãos da Antiguidade.
Um aspecto curioso é a atenção dada aos métodos de medições e
medidas tal como se enumera a «reducção dos pés castelhanos a palmos, &
palmos em pés, por regra dos tres», justificando o seu carácter
eminentemente prático, dado o uso e a necessidade deste tipo de matérias
na «praxis» arquitectónica – preocupação que chegou a demonstrar o
próprio arquitecto régio João Nunes Tinoco nas suas «Taboadas Geraes»,
na segunda metade do século XVII, e que reafirma a consciência por parte
dos mestres da realidade e necessidades práticas construtivas.

Se se atender à biografia de Pedro de Araújo é mais do que provável


que o texto fosse de sua autoria. Seria, objectivamente, mais um «manual»
para a prática da arquitectura do que um texto altamente erudito e original.
Todavia, certamente utilizou fontes eruditas para a sua feitura,
essencialmente os textos de Sebastiano Serlio para a teoria das Ordens
Arquitectónicas e para explicar os princípios da Geometria euclidiana e da
Perspectiva. É provável que se tenha valido igualmente do «paradigma
vitruviano do arquitecto» e que reflicta os ideais «pós-tridentinos» no que
respeita à concepção dos templos católicos. De igual modo, não deixa de
revelar e dar considerado destaque ao ensino basilar da raiz matemática e à
arte da fortificação. Esta «enciclopédia básica das artes», fazendo uso do
feliz dizer de Rafael Moreira, seria um texto não só útil para os arquitectos
como para os imaginários e retabulistas 567.

567
Rafael Moreira, «Tratados de arquitectura», pág. 492.

303
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Pouco se sabia acerca deste ignorado mas importante arquitecto,


certamente um dos melhores oficiais dos inícios do século XVII a trabalhar
fora do âmbito cortesão lisboeta.

Sousa Viterbo tinha já recolhido documento comprovativo da sua


nomeação, a 26 de Abril de 1613 568, para «mestre de obras da villa de
Aueiro», substituindo Miguel Dias, falecido, e com ordenado anual de
19.000 reais, tendo constado «ser muito gramde ofisial e de abellidade e
arquitecto, em que o pouo fica emteresendo tello por mestre e com pouco
custo restaurar algumas obras por ser verdadeiro, com declarasam que
elle tera cuidado de todas as hobras de igreijas, pontes, fontes, calsadas e
todas as mais que pertensem ao bem comum do pouo». «Ei por bem outro
si que o dito Po de Araujo trase primeiro todas as obras e que os ditos
ofisiaes da camara, que ora som e ao diante forem, não arematem as obras
sem elle as trasar, e se achar as arematasois asistindo aos menores llansos
por assim serem em proueito e bem comum do pouo». Estão assim
consignadas as funções, aliás habituais, de «mestre de obras» de uma vila
ou cidade mas, mais importante do que isso, é o facto de o tomarem por
arquitecto e insistirem na sua capacidade e obrigação de traçar todas as
obras camarárias para além dos usuais trabalhos de vistoria, manutenção e
acompanhamento de todas as fábricas.

Pode-se-lhe descobrir obra e a mais que provável origem da sua


aprendizagem profissional:
«A hos 20 doutubro do dito Ano (1604) se recebeo nesta Jgreja em
minha presença pedro daraujo maginario morador nesta frequezia em casa
de gaspar coelho tãbem maginario com Maria Pinheira daueiro moradora
tãbem nesta freguesia em casa do dito gaspar coelho guordada a forma do
sagrado cõcilio Tridentino estãdo presentes ho dito gaspar coelho e
leonardo ãtonio e Jnacio Antunes e outros muitos fregueses desta Jgreja.
Licenciado Antonio dorta de caceres prior» 569.
Este registo de casamento na freguesia de Santa Justa entre Pedro de
Araújo e Maria Pinheira de Aveiro, ou seja, «da vila de Aveiro», não deixa
qualquer dúvida. Encontra-se aqui a futura ligação do futuro arquitecto com
a cidade da foz do rio Vouga 570.
Importante a menção de ser tido como «imaginário» e de viver em
casa do importante escultor e mestre de arquitectura retabular Gaspar
568
ANTT, Chancelaria de Filipe II, Doações, liv. 31, fol. 56vº. Publicado em Sousa Viterbo,
Dicionário..., Tomo I, pág. 512.
569
Publicado por Quintino Garcia, Documentos para as biografias dos artistas de Coimbra, pág. 206-
207.
570
Esta identificação era já tida em conta por Rafael Moreira, «Tratados de Arquitectura», pág. 492.

304
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Coelho, responsável por duas pérolas do Maneirismo português – os


retábulos-mores da Sé de Portalegre e da igreja do Carmo em Coimbra 571.
Dado que não se encontra notícia anterior nos arquivos da cidade, é
provável que Pedro de Araújo não tenha sido formado na cidade, podendo
ser um colaborador próximo de Gaspar Coelho, colocando-se a hipótese de
ter vindo de Portalegre com frei Amador Arrais. Não obstante, a sua
evolução futura indica que não era um mero escultor mas que tinha
preparação mais ampla sob o ponto de vista profissional.

Convento do Carmo de Aveiro

A 22 de Julho de 1613 572 – meses depois de ter sido nomeado


«mestre de obras» da vila de Aveiro – Pedro de Araújo está presente como
testemunha no auto lavrado entre os carmelitas descalços e a edilidade
aveirense que autoriza a fundação da casa conventual, dando seguimento ao
desejo de D. Brites de Lara e Meneses. Não parecem restar dúvidas que a
sua presença na nota tabeliónica não é casual. O seu provado valor
profissional e a sua preparação artística – destacado como «tracista» na
própria eleição camarária e autor de um manuscrito teórico – justificam
com alguma segurança a atribuição do projecto e efectivação do Convento
de Nossa Senhora do Carmo de Aveiro, dentro das restrições tipológicas
perfeitamente consentâneas com os carmelitas.

A parte conventual encontra-se edificada em 1620 mas a construção


da igreja prolongou-se no tempo, celebrando-se contrato a 25 de Agosto de
1626 tendo sido realizada dois anos depois a cerimónia simbólica da
colocação da primeira pedra 573. Não existem informações documentais
suficientes que permitam avaliar se o arquitecto pode acompanhar a fábrica
do templo, dado a amplitude cronológica existente e o desconhecimento da
data do seu falecimento. Sabe-se, contudo, que a primeira missa se realizou
a 24 de Abril de 1643.

571
Gaspar Coelho foi já objecto de um cuidado estudo científico por parte de Carla Gonçalves, A obra do
escultor e ensamblador maneirista Gastar Coelho «mestre que foy desta arte principal nestes tempos,
neste Reyno».
572
Francisco Ferreira Neves, «D. Brites de Lara e Meneses, fundadora e padroeira do Convento de Nossa
Senhora do Carmo, em Aveiro», Arquivo Distrital de Aveiro, pág. 230.
573
Sobre esta obra veja-se capítulo neste trabalho.

305
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

2.3.5.6.2. O «Fabrica e uso da Ratio latino» de Pero Vaz Pereira

Pero Vaz Pereira, escultor e arquitecto, é um caso exemplar no


panorama artístico nacional. Não foi arquitecto régio e no entanto esteve
em Roma e escreveu um tratado de geometria – algo que qualquer mestre
próximo da Corte não desdenharia. Trabalhou quase toda a sua vida entre
Elvas, Évora e Vila Viçosa tornando-se no mestre privativo do duque de
Bragança. Em final de vida foi simbolicamente agraciado com o cargo de
Mestre de Obras do Convento de Cristo de Tomar num contexto político
novo – o seu patrono Teodósio II era pai de D. João IV – exercendo o cargo
apenas durante três anos, contribuindo para que o seu sobrinho e discípulo
Jerónimo Rodrigues o substituísse.

A informação que diz respeito à existência de textos teóricos por si


redigidos é-nos fornecida por Diogo Barbosa Machado na seguinte entrada:
«Pero Vaz Pereira, natural de Portalegre, e morador em a cidade de
Evora muito perito na Architectura, e Mathematica. Compoz, e dedicou no
anno de 1603 ao Duque de Bragança D. Theodozio II do nome.
Fabrica, e uso do radio Latino em 3 livros o I. Da fabrica do
instrumento. o 2 dos uzos terrestres. o 3 dos uzos celestes. Deixou varias
obras Mathematicas promtas para a impressão» 574.

Como facilmente se compreende, o manual de Pero Vaz Pereira não


se debruçava sobre qualquer estudo acerca do campo específico da
arquitectura. Tinha por objectivo a divulgação de instrumentos de medições
do foro da astronomia, integrando-se dentro da cultura humanista e do
exercício das matemáticas tão caras a este período histórico.

Certamente filho do mestre de pedraria da catedral de Portalegre


João Vaz, deverá ter nascido cerca de 1563 575. Diogo Pereira Sotto Maior,
no seu «Tratado da Cidade de Portalegre» – manuscrito redigido entre
1616-1619 – informa-nos que «pero Vas Pereira natural desta Cidade,
escultor e grande oficial nesta Arte», «trouxe da cidade de Roma» as
relíquias de S. Crispim e S. Crispiniano para a capela da irmandade da Sé
portalegrense. Deste relato contemporâneo não podemos extrapolar que
Pedro Vaz estivesse um Roma na qualidade de estudante de arte, embora
não restem dúvidas da sua formação artística, mas sim que era alguém de
confiança do bispado para cumprir uma tarefa específica.

574
Diogo Barbosa Machado, Bibliotheca Lusitana, Tomo III, pág. 624.
575
Manuel Inácio Pestana, «Pero Vaz Pereira, arquitecto seiscentista de Portalegre. Tentativa cronológica
e questões a propósito», A Cidade. Revista Cultural de Portalere, pág.154.

306
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Que estaria excelentemente preparado prova-nos a escolha do Duque


de Bragança para seu escultor e arquitecto privado em 1604 com uma
anuidade de 60.000 reais: «Ouue S Exa p bem de fazer me ao ditto po Vaz de
o açeitar per seu Architecto, e Escultor com ordenado de lx mr’s per anno
Em qto o ouuer p bem e não mandar o Contrario conforme as Condições da
Carta geral, & Médico, e botica estando doente per alura feito Em 23 de
Março de 1604; E hum moijo de trº anafil em cada hu’anno em qto o ouuer
p bem conforme as Clausulas da ditta Carta per Alura fto no dia açima» 576.

A 19 de Julho de 1641 577, «por estar vago o cargo de mestre das


obras do Conuento de Thomar & da ordem de Nosso Senhor Jesu Christo,
por falesimento de Diogo Marques Lucas, vltimo proprietario que delle foi,
pella confiansa que tenho de Pero Vas Pereira, meu architecto, por ser
pesoa benemerita e de muita satisfação minha», é nomeado Mestre das
Obras do Convento de Cristo em Tomar com o ordenado de 80.000 reais
anuais. Numa época em que este cargo é pouco mais do que simbólico,
Pero Vaz vê deste modo reconhecido pelo filho de Teodósio II o seu
trabalho enquanto arquitecto ducal. Apenas três anos depois, o seu
discípulo Jerónimo Rodrigues, que é igualmente arquitecto régio, será o
último a preencher este cargo até à sua extinção em 1648.
Pero Vaz Pereira encontra-se sepultado em campa rasa na igreja do
Convento das Chagas em Vila Viçosa.

Podemos traçar, em linhas gerais, a sua carreira arquitectónica desde


a sua presença em Portalegre até ao tempo de arquitecto da Casa de
Bragança.

Sé e paços episcopais de Portalegre

O bispado de Portalegre foi criado por D. João III em 1549. Das


novas catedrais joaninas, pensadas na Corte em torno da figura de Miguel
de Arruda, o templo alentejano é aquele sobre o qual se recolhem menos
informações documentais. É de supor que as obras tenham sido iniciadas
cerca de 1566 se levarmos em conta o milésimo inscrito na fachada. João
Vaz é mestre de obras documentado desde 1570 e durante duas décadas
trabalha no novo templo, sob a alçada de um dos seus mais importantes
patronos, o bispo D. Amador Arrais – a quem se imputa a edificação dos
paços episcopais e do seminário.

576
ACB, Manuscrito 137, fls.303-303vº. Publicado por José Teixeira, O Paço Ducal de Vila Viçosa, pág.
86.
577
ANTT, Chancelaria da Ordem de Cristo, livº 36, fl. 301vº. Publicado por Sousa Viterbo,
Dicionário..., Vol. II, pág. 249.

307
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Pero Vaz Pereira surge pela primeira vez documentado acompanhado


João Vaz nas obras do Paço Episcopal em 1589 578, numa altura em que
Gaspar Coelho se encontra a ultimar os trabalhos do retábulo-mor da igreja.
É de todo provável que a sua formação se tenha realizado num ambiente
regional privilegiado em torno da fábrica catedralícia e dentro da cultura
erudita que sempre rodeou D. Amador Arrais.

Sé de Elvas

Em 1599 está a trabalhar na Sé de Elvas, com o mestre de pedraria


Manuel Ribeiro – ao tempo já documentado nos paços ducais de Vila
Viçosa – dirigindo as obras da reforma da capela-mor 579. Pero Vaz é o
tracista e responsável pela direcção da fábrica da capela-mor destruída em
1734. A fama da sua obra realizada na região e a irmandade com o mestre
ducal Manuel Ribeiro devem ter-lhe aberto as portas grandes do palácio
ducal dos Bragança .

Paço Ducal de Vila Viçosa

A sua mais valia profissional deve ter-lhe permitido entrar de forma


directa para o topo da hierarquia dos mestres que laboravam na ampliação
dos paços ducais na sequência dos projectos de Nicolau de Frias 580.
Repare-se que a anuidade que aufere a partir de 1604 é de 60.000 reais,
soma avultosa e equivalente aos mais altos cargos dentro do organigrama
da arquitectura régia.
Numa altura em que o seu parceiro em Elvas, Manuel Ribeiro,
continuava como mestre das obras desde 1583, Pero Vaz desempenhou
com toda a certeza funções de tracista e de supervisor geral de todas a
fábrica ducal. Teria certamente um grande apoio e ascendente por parte de
D. Teodósio II pois só nesta medida se compreende que receba mercês
como a de 20.000 reais – a 23 de Junho de 1614 – «p aiuda de se fazer sua
Caza» ou de 7.000 reais «pera o uestido que fez em lisboa na uinda de sua
Maogestade a este Reino» que recebe a 27 de Abril de 1622 581.

Das obras directamente projectadas por Pero Vaz Pereira conhece-se


uma das pérolas palacianas – a chaminé da Sala da Medusa, de mármores
578
ADP, Livro de Assentos... de D. Frei Amador Arrais, fls. 46vº-48. Citado por Vítor Serrão, «A
actividade do pintor maneirista Luis de Morales em Portugal: novas obras e rastreio de influências», II
Simpósio luso-espanhol de História da Arte. As relações artísticas entre Portugal e Espanha na época
dos Descobrimentos, pág. 53.
579
Gonçalves de Novaes, Relação do Bispado de Elvas com hum Memorial dos Senhores Bispos que o
governarão (1635). Citado por Vítor Serrão, «A actividade do pintor maneirista Luis de Morales em
Portugal: novas obras e rastreio de influências», pág. 53.
580
Sobre este assunto veja-se capítulo neste trabalho.
581
ACB, Manuscrito 137, fol. 303-303vº.

308
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

alvo e negro e de primorosa execução: «Ouue no ditto thesro tres mil r’s de
q S: exª lhe fez me pra fazer hua chumine nas suas Cazas per pertarija do
Secretro» – 29 de Outubro de 1611 582. Partindo do sistema tradicional, com
um friso de mármore negro, inclui o brasão dos Bragança emoldurado por
quadratura marmórea ladeada por volutas e fogaréus e remate superior
concheado.

Um dos trabalhos que poderão ser de sua autoria é o risco da capela


de Santo Eustáquio, na tapada ducal, obra de cerca de 1626 583.

Igreja de Santa Maria de Machede

Pero Vaz estendeu o seu trabalho por toda a região. Perto de Évora, a
igreja de Santa Maria de Machede – do árabe «madchas» que significa
lugar santo – foi edificada no período manuelino e sagrada em 1521,
segundo lavra a inscrição do portal axial 584. A 17 de Maio de 1604 585 era
contratado o mestre Pedro Francisco para reconstruir integralmente a igreja
segundo o «rascumho e modello feito por pero vaz pereira arqujteto do
duque de barguamsa».

Esta curiosa igreja paroquial inclui um corpo avançado da fachada


integrando duas torres e desenvolvendo uma galilé à qual se tem acesso por
arco axial e dois laterais, de meio ponto. Os alçados laterais são suportados
por quatro pilares-contrafortes à maneira da arquitectura eborense deste
período. O espaço interino apresenta nave única com abóbada de berço –
ornada com motivos geométricos – suportada por uma forte cornija que
corre ao longo de todo o rectângulo. O arco cruzeiro rasga-se ao nível
inferior da cornija cimeira e na capela-mor de reduzidas dimensões
encontra-se, em campa rasa, a sepultura de Baltasar Coelho, um dos
patronos da obra. Ao evangelho, numa curiosa capelinha baptismal de
coroamento semi-circular concheado encontra-se a pia baptismal datada de
1532, único elemento ainda visível da construção primeva.

582
ACB, Livro das Mercês de D. Teodósio II, ms. 133, fl. 303. José Teixeira, O Paço Ducal..., pág. 86.
583
Proposta de Vítor Serrão, História da Arte em Portugal. O Renascimento e o Maneirismo, pág. 270.
584
Cfr. Inventário Artístico de Portugal. Concelho de Évora, pág. 376-377. A inscrição do portal da
igreja inclui algumas incorrecções cronológicas tomando a data de fundação 1221, quando na realidade se
deu em 1521 e apontando 1624 para a reconstrução quando a data acertada é em 1604, segundo prova
cabalmente o contrato.
585
ADE, Cartório Notarial de Évora, Livro 349, fls. 8-10. Citado mas não publicado em Túlio Espanca,
«Nova Miscelânea», A Cidade de Évora, pág. 105.

309
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

«Fonte Grande» de Vila Viçosa

Em Vila Viçosa, Pero Vaz Pereira trabalhou foi durante alguns anos
irmão da Misericórdia e chegou a projectar para a edilidade a designada
«Fonte Grande» da vila alentejana construída por Pedro Álvares Moniz,
uma espécie de estrutura em «loggia» formada por quatro colunas.
A 19 de Dezembro de 1618 586, nas casas da câmara «pareseo
presente pº allures monis mestre das obras do comvemto do mestrado do
comvemto davis mor na villa destremos e dise q comforme a arematasão q
tinha feito diamte dele dito juiz e vreadores da obra da fomte desta vila» se
comprometia a seguir a «trasa e modello de po vaz e apomtamentos q o dito
po vaz deu». A fábrica minuciosamente descrita pelas notas do «arquiteteco
das obras do do duque nosõr» teria em conta os moldes por este realizados
e contava com duas fazes – os trabalhos de cota negativa, que teriam de
estar concluídos até Junho de 1619 e o assentamento da obra de pedraria da
fonte até ao mês de Outubro do dito ano.

Fonte da Vila de Elvas

O arquitecto e escultor projectou, segundo nota de 22 de Junho de


1622 um dos «ex-libris» da cidade de Elvas, a fonte que integra no seu
interior a estátua equestre de D. Sancho I 587. O seu elemento mais original
é a estrutura central à maneira de «tempietto» com seis colunas lisas
toscanas, remate cupulado e tanque lobulado, de forma triângular.

A historiografia local cita ainda o envolvimento de Pero Vaz Pereia


com as obras do aqueduto da Amoreira, iniciado em 1498 por Francisco de
Arruda, substituindo Diogo Marques Lucas e realizando vistorias em 1610
e 1622, data da conclusão de obras 588.

586
ADE, Cartório de Vila Viçosa, Livro 63, fls. 96-106vº. Citado mas não publicado em Túlio Espanca,
«Nova Miscelânea», pág. 106.
587
Cfr. Inventário Artístico de Portugal. Distrito de Portalegre, pág. 71.
588
Segundo Vitorino d’Almada, Elementos para um dicionário de geografia e história portuguesa –
Concelho de Alvas, Tomo II, pág. 61, citado em Inventário Artístico de Portugal. Distrito de Portalegre,
pág. 70.

310
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

A Persistência da Memória:
o modelo nacional da
«igreja-salão»

311
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

312
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

4.1. Origem e perenidade do modelo «hallenkirche»

As origens das «hallenkirchen» ou «igrejas-salão», suportadas por


pilares e abóbadas à mesma altura, encontram-se na Europa com a Catedral
de Poitiers, cerca de 1180, e especialmente em modelos germânicos como o
de Santa Isabel de Marburgo, dentro das tipologias do Alto Gótico. A partir
de 1300 os mestres construtores medievais promoveram uma simplificação
do modelo, privilegiando a unificação espacial e uma estrutura cada vez
mais depurada sob o ponto de vista planimétrico, grandemente
desenvolvida na região da Renânia e que a tradição historiográfica
relaciona com as necessidades das ordens mendicantes e de um sistema
construtivo adaptável a centros urbanos de médias dimensões 589.

As variantes portuguesas prendem-se com o reinado de D. Manuel e


com a importação do modelo de origem germânica, que teve como
momento primevo e experimental a igreja de Jesus de Setúbal e a sua
consagração tipológica nos templos de Arronches e de Freixo de Espada-à-
Cinta. Todavia, como se sabe, o exemplar mais evoluído estética e
artisticamente é a obra prima do período manuelino – novo panteão
consagrando um novo tempo – a igreja hieronimita de Santa Maria de
Belém, em Lisboa, iniciada por Diogo de Boutaca e concluída por João de
Castilho. É inegável que a obra magnificente dos Jerónimos é a marca
fundamental da arquitectura portuguesa na primeira metade do século XVI.
O seu impacto não deixou de fazer-se sentir em toda a arquitectura régia
pelo simbolismo e pela novidade que representa, verificando-se a
preservação de um gosto estrutural mas depurado da magnificência
ornamentalista e pretensamente renovador em termos estilísticos.

No dealbar da segunda metade da centúria, impulsionado pela


necessidade de edificar três novas catedrais para servir três novos bispados
– que por sua vez produziram modelos para outros templos – D. João III
vai patrocinar a «reforma» do modelo quinhentista. Como afirmou George
Kubler, «das igrejas-salões portuguesas começadas entre 1550 e 1570,
existem três catedrais (Leiria, Portalegre e Miranda do Douro), cinco
igrejas paroquiais (Estremoz, Monsaraz, Évora, Olivença e Veiros) e duas
Misericórdias que originaram capelas de hospitais orientados por laicos
(Beja, Santarém). Todas diferentes das igrejas anteriores a 1550, são pouco
dispendiosas, despidas de ornamentos, funcionais, estruturalmente simples
e ricas nas proporções do desenho. Os arquitectos portugueses realizaram
surpreendentes transformações na igreja-salão, diferenciando-a dos
antecedentes espanhóis e norte-europeus e dos exemplos americanos
589
Sobre esta questão consulte-se o resumo de George Kubler, A Arquitectura Portuguesa Chã..., pág.
29-31.

313
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

coevos. Uma das soluções estruturais utilizada em Portugal e na Europa


Setentrional nos fins da Idade Média foi a de construir planos quase
laminares numa continuidade de cimos curvados de parede a parede, a toda
a largura, com grupos de nervuras semelhantes a copas de palmeiras, sobre
colunas espaçadas e como que libertas da cobertura em pedra» 590.

Neste sentido, Horta Correia pode considerar que a «igreja-salão»,


«aparece já formada no período manuelino como espaço unitário, e assim
quando se começa a construir à moda renascentista, já uma nova
espacialidade se estava a insinuar. Então quase só bastava a substituição de
colunas e capitéis.
Pela própria natureza da sua construção, ainda mais acentuada foi
nestas igrejas a estandardização dos modelos, construindo-se, por longo
prazo, ininterruptas cadeias de obras originais e de réplicas. No tempo de
D. João III eram projectadas quer por pedreiros conhecidos, como João de
Castilho ou André Pilarte, quer por humildes pedreiros anónimos, sendo
normalmente rematadas à face por empena simples, somente notabilizada
(tradição que vinha do manuelino) pelos portais ornamentados» 591.

590
George Kubler, A Arquitectura Portuguesa Chã..., pág. 31.
591
Horta Correia, Arquitectura Portuguesa..., pág. 50.

314
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

4.2. A tradição «hispânica» e as teorias estereotómicas

Para além das características específicas das tipologias portuguesas,


salientadas pelo texto «kubleriano», é importante fazer uma chamada de
atenção para a perenidade do modelo da «igreja-salão» em toda a Península
Ibérica, numa linha de continuidade que se prolonga por todo o século XVI
e que coabita com a modernidade construtiva do Renascimento. De um
conjunto de mais de cento e cinquenta «igrejas-salão» edificadas em
território espanhol, George Kubler destaca a construção da Catedral de Jaén
iniciada por Andrés de Valdevira em 1546 e a Catedral de Málaga que
contou, entre 1549 e 1588, com o mestre Diogo de Vergara. Sobre esta
matéria Fernando Marías considera existir um autêntico «modum yspaniae»
onde as «igrejas-salão» foram ganhando cada vez mais adeptos por todo o
território espanhol em Castela, na Andaluzia ou na Biscaia, afirmando que
«em meados do século, o desejo de substituir os pilares góticos por
suportes colunários de inspiração ou desenho clássico determinaria que a
sua adopção se generalizara, alcançando-se cotas tão sobressaídas como a
catedral de Jaén de Andrés de Valdevira» 592.

A arquitectura «ao moderno» chegou a produzir, em pleno período


de concretização dos ideais renascentistas, um corpo teórico que suporta e
prova essa mesma linha de continuidade, diluindo a «ruptura» tradicional
da cronologia histórico-artística. Durante todo o século XVI escreveram-se
vários textos dedicados única e exclusivamente à estereotomia, ou seja, à
arte do «corte da pedra». Partindo do conhecimento técnico-construtivo e
da teoria das proporções de raiz medieval, compuseram-se manuais de uso
interno entre especialistas e dirigidos, essencialmente, aos aprendizes de
acordo com uma tradição que remonta à arte da cantaria medieval baixo-
medieva espanhola e francesa e que de oral – protegida pelas associações
gremiais – toma agora, fruto dos novos tempos, a forma escrita 593.

Um dos seus teorizadores foi Rodrigo Gil de Hontañon que no seu


«Compêndio de architectura y simetria de los templos», redigido depois de
1552 e nunca dado à estampa, defende a tradição gótica como uma «traça
sem estilo». Que não se pense que Hontãnon não está ciente do novo
paradigma de arquitecto. Bem pelo contrário. A arquitectura é acima de
tudo «traça» e é a tarefa essencial do arquitecto, enquanto que a realização
dos vários componentes construtivos – incluindo as ordens arquitectónicas
– é da responsabilidade de um «oficial com salário de mestre» 594.

592
Fernando Marías, El largo siglo XVI..., pág. 111.
593
Antonio Bonet Correa, Figuras, modelos e imágines en los tratadistas españoles, pág. 108.
594
Veja-se Fernando Marías, El largo siglo XVI..., pág. 139-140.

315
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Não obstante, o mais importante de todos os manuscritos é o


designado «Libro de traças de cortes de piedra» de Alonso de Valdevira,
filho de Andrés de Valdevira, a fonte principal dos escritos reformulados
pelo seu descendente. Tratando de forma sistemática as questões
relacionadas com a estereotomia, sabe-se que o texto chegou a circular no
próprio estaleiro do Escorial – além de um outro escrito perdido de
Francisco Lourenzo 595. O autor «soube formular e dar representação à arte
da traça e corte de pedra. O seu conhecimento do ofício era profundo.
Chueca Goitia assinala que as estruturas que Alonso de Valdevira descreve
e desenha não são meros exercícios abstractos e hipotéticos mas imagens
de obras reais, muitas delas realizadas por seu pai, célebre pelos seus
prodígiosos aparatos de cantaria. A perícia e o virtuosismo do mestre de
obras andaluz do século XVI está plasmada no seu livro. Valdevira não
foge perante os problemas que põem determinadas traças, embora tenha
chegado a reconhecer que há algumas traças tão dificultosas que é melhor
não tratar delas» 596.

Não devemos duvidar que os mestres construtores portugueses que


projectaram as «igrejas-salão» partilhavam e valorizavam este saber de raiz
medieval, claramente presente nos «renovados» modelos da segunda
metade da centúria nas diversas variantes de abobadamentos nervurados
suportados agora por colunas «all’antico». Pese embora a nova consciência
renascentista, o uso da coluna arquitectónica como sentimento de
«renovatio» e a nova leveza do espaço arquitectónico, a preferência
estrutural da arquitectura mantém-se dentro da linha tradicional que formou
e granjeou sucessos a todos os mestres «joaninos». Não é difícil
imaginarmos o responsável por um dos modelos portugueses concordar
com a definição da arte da arquitectura de Hontañon como «traça sem
estilo» e sentir-se orgulhoso pela magnificência do seu projecto e pela
condição socio-profissional que o seu saber teórico-prático lhe proporciona.

595
Cfr. Bonet Correa, Figuras, modelos e imágenes..., pág. 111.
596
Bonet Correa, Figuras, modelos e imágenes..., pág. 125.

316
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

4.3. Caracterização estilística e valor de «modernidade»

Colocando de lado a questão relacionada com a fundamentação em


torno do designado «estilo-chão», a proposta mais clarividente acerca da
sua utilização foi dada por Paulo Pereira que depura a visão «kubleriana» e
alinha pela tese de que o modelo da «igreja-salão» deve ser compreendido
num «eixo de permanências e de longa duração» que nasce no período
gótico-manuelino e se prolonga por todo o século XVI. Na verdade, a
«igreja-salão» da segunda metade da centúria desenvolve uma tipologia
medieval estruturalmente mais leve e decorativamente mais sóbria e utiliza
a coluna ou pilar renascentista como valor de «modernidade».

«Do século XVI ao século XVII, muitos mestres portugueses ou a


trabalhar em Portugal, defendiam e praticavam a traça sem estilo (no feliz
dizer de Fernando Marías), ou aquilo a que a história da arte viria a apelidar
estilo chão. O que importava eram os princípios da concepção do edifício».
Aduz-se que «a formação da mão-de-obra portuguesa e de alguns mestres,
no âmbito de um período de surto construtivo gótico-manuelino, preferia
estes princípios de tradição longa e segura, já testados. Só isso explica que
Afonso Álvares, considerado como um notável arquitecto português (‘de
los mejores que aqui ay’) seja assim definido por Miguel de Torres em
carta dirigida a Francisco Borja: ‘pero no es hombre que me parece que
tenga esperiencia de los edificios antigos ny de los de fuera del reyno’» 597.

Embora num contexto que não subscrevemos, Horta Correia


relacionou a aposta nesta tipologia – e por extensão o «estilo chão» – com
Trento: «É no momento em que as superestruturas ideológicas de índole
contra-reformista tomam o poder em Portugal que a tendência para o
despojamento decorativo e a adopção de um certo classicismo de base
tratadística e de uma austeridade de sinal a um tempo religioso e militar
convergem na formação de um novo tempo arquitectónico», considerando
que «são os novos templos que significativamente vão utilizar uma
tipologia de raiz medieval para servirem de catedrais das novas dioceses
que a pastoral tridentina (ou mesmo pós-tridentina) entre nós preconizava»
598
. De facto, só com as experiências em torno da arquitectura da
Companhia de Jesus e o modelo «italiano» de São Vicente de Fora é
definitivamente ultrapassada a tipologia da «igreja-salão».

597
Paulo Pereira, «A ‘traça’ como único princípio – reflexão acerca da permanência do Gótico na Cultura
Arquitectónica dos Séculos XVI e XVII», pág. 198.
598
Consulte-se Horta Correia, Arquitectura Portuguesa..., pág. 42-46.

317
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

4.4. Miguel de Arruda e as Sés Quinhentistas

A criação de três novos bispados em Leiria, Portalegre e Miranda do


Douro, na passagem da primeira para a segunda metade de Quinhentos,
proporcionou uma oportunidade para recriar e dar continuidade à tipologia
da «igreja-salão», conferindo a dignidade e monumentalidade necessárias a
tão importante iniciativa. No dizer de Rafael Moreira, as novas catedrais
«têm em comum o facto de serem igrejas-salão de proporções sesquiálteras,
na tradição das grandes catedrais góticas espanholas – uma escolha de
estilo obviamente ditada pela dignidade diocesana desses edifícios, em que
o aspecto arcaizante das abóbadas de cruzaria se harmoniza com os
possantes pilares e as pilastras toscanas» 599. Mas, como afirma Kubler
quando se refere à Sé de Leiria e às catedrais espanholas de planta de
duplo-quadrado e de proporções sesquiálteras – especificamente com a
Catedral de Jaén – «quando se comparam os suportes em Leiria com os das
igrejas-salões espanholas, não encontramos nada que se pareça com estes
pilares toscanos, classicamente puros, de secção cruciforme. As igrejas
espanholas, ou possuem suportes cilíndricos ou feixes de colunelos
medievais» 600.

A figura central por detrás deste modelo «reinventado» foi muito


provavelmente Miguel de Arruda, a personalidade mais marcante e
influente junto da Corte em meados da centúria 601. A documentação não é
totalmente elucidativa sobre esta matéria mas tudo aponta para este facto,
dado o poder que o filho de Francisco de Arruda dispõe à época, a
descoberta da sua autoria no que diz respeito ao projecto Misericórdia de
Santarém, os documentos referentes a Santo Antão de Évora de 1548 e o
actual esvaziamento histórico do papel de Afonso Álvares. Todos estes
factores contribuem decisivamente para esta perspectiva, embora admitindo
que algumas variantes tenham sido traçadas por mestres ligados ao círculo
régio. Assim, partindo do inegável ar comum e de laboratório dos novos
templos, Arruda deve ter fixado a sua estrutura base ao nível planimétrico e
de alçado geral sendo a tipologia desenvolvida casuisticamente por mestres
construtores como Afonso Álvares, Pero Gomes e Manuel Pires.

599
Cfr. Rafael Moreira, «Arquitectura: renascimento e classicismo», pág. 357.
600
George Kubler, A Arquitectura Portuguesa Chã..., pág. 35. A excepção á regra é São Pedro de
Alaejos, na província de Valhadolid.
601
Esta posição é já avançada por Horta Correia e assumida na totalidade por Rafael Moreira,
«Arquitectura: renascimento e classicismo», pág. 356.

318
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

4.4.1. Sé de Miranda do Douro

O primeiro documento relevante relacionado com a Sé de Miranda


do Douro data de 15 de Dezembro de 1547 602 no qual se diz que Gonçalo
de Torralva, entregou ao bispo o «debuxo e apontamentos pera a obra
desta see de Myrãda» e «cordeo e abaliso a dita obra por duas vezes em
presença de todos». Manifestava-se a preferência para que a «capela mor
fique casy ao sul como Torralua dyra: porque sendo asy fica ho terreiro
grãde, despejado e muy grandioso como elle he e as portas e fronteria e
magestade da obra». Alguns consideravam que a «ygreja se podera fazer
alguo mays pequena sem yr contra a ordem do debuxo», opinião aliás não
partilhada pelo prelado que pretendia que a cidade crescesse e que
dignificasse assim tão majestoso projecto. O debuxo que o arquitecto régio
mostrou ao bispo e aos mais altos dignatários da terra transmontana não se
tratava apenas da planta mas incluía o desenho do alçado, já que se refere o
facto de o templo «aver tantas janellas», motivo igual de discórdia entre
alguns intervenientes pelo facto de a região ser fria, proposta uma vez mais
contestada pelo prelado que aludia que «pera yso a vydraças».

Gonçalo de Torralva procedia assim à delimitação do espaço para


lançar os alicerces da fábrica e o bispo não se coíbe de lhe atribuir rasgados
elogios, esperando que a obra fosse conduzida por ele ou alguém da mesma
condição: «Nestes dias se a mostrado en sua cõversação ome manso, de
bom juyzo e entedimento para o que cõvem parece omem pera yso;
finalmente mãdenos V. A a elle ou outro que seja pera yso poys la os a e
seja loguo, e eu folgaria com este por sua mãsidão e por que dá muy bem a
entender ha pratica desta obra e ate agora parece vertuoso : e porem nã
sayba elle ysto por que se nã encareça». Enfim, não deixa de recordar ao
monarca que «esta see e sua e ha planta de suas manos», ou seja, da sua
responsabilidade e financiada com dinheiros régios, aconselhando uma
construção célere, em regime de empreitada e sem «feytores nem escrivãos
della nem provedores dobras» para que não se aumentem as despesas.
A 4 de Fevereiro de 1549 603, numa outra missiva a D. João III, pede-
se-lhe que «emvie os mestres que am de fazer ha obra da dita see pera que
a comecem logo, e nisto nos faça a todos tamanha merce que não aja
dilação» e que «o mestre a quem se ouver de dar a dita obra traga
prouisões e aluaras de V.A necessarios, e asi tambem traga prouisão de V.
A pera lhe ser entregue todo o dinheiro» a ela referente.

Numa das mais curiosas cartas registadas na passagem da primeira


para a segunda metade do século XVI, datada do final do mês de Maio do
602
Publicado por Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo III, pág. 134-135.
603
Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo III, pág. 135-136.

319
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

mesmo ano de 1549 604, um pouco desgostoso pelas dificuldades


encontradas no arranque da fábrica, o bispo recorda que o debuxo é «he
tam suntuoso que pertece mais pera templo e see que tenha um conto de
fabrica e pera cidade de mais calidade que pera templo e see e cidade,
pera qual nos bastara fazer hua see tã grande e tam lustrosa como a see de
Evora, que vay asaz encarecida, fazendose pello estilo comum de outras
sees e cidades antiguas e de muita mais calidade que esta». Teme que
«nem os tempos presentes nem vindouros se vam dispoendo pera
começarmos obras tam sumtuosas, que de mais de se não acabar em nosos
dias nem de nenhum dos presentes desta cidade».
Aconselha o monarca a informar-se junto de D. João de Alva, a
quem «escreuo largo, o qual mostrara a V. A hum debuxo que vai pera
igreja de tres naves ficando enteira a torre e igreja que aguora estaa com
acrecentar a dita igreja hua pouca cousa que se pode mui bem fazer. E
bem sei que estaa V. A tam afeito a debuxos e obras illustrissimas e tam
sumtuosas que a de zombar e rir deste debuxo que lhe mostrara Julião
dalua que vay feito per mãos mui groseiras e empotadas de trazer ho piquo
e escoda nellas, e porem deite V. A os olhos as obras de sees mui antiguas
e a perguntar pella see que aguora serue em Salamãca e em outras cidades
de Castella, e parecerlhe que sobeja esta pera qui. E sobre tudo notorio
estaa que se a de fazer o que V. A for seruido, e disso peço a V. A por amor
de nosso Senhor seja seruido mandar execuçam, e aja piedade derribar
obra que custou mais de tres mil cruzados podendo servir mui bem, e
representeselhe as necessidades de muitos gastos que alem da obra tera
esta see sendo convertida de hua igreia parochial mui desolada em su
catedral». Todavia, a proposta de abandonar a edificação de raiz e
reconstruir a igreja paroquial não foi avante.

Pelas circunstâncias geográficas e mercado de trabalho disponível, os


mestres que edificaram a fábrica alto-dureense foram castelhanos. O
primeiro foi Pero de la Faya 605 ao qual sucedeu Francisco Velasques. A
chegada de um novo mestre deve coincidir com a vinda do novo bispo D.
Julião de Alva que cerca de 1560 se mostrava descontente com o projecto,
afirmando ser necessário proceder a algumas alterações.
A 9 e a 20 de Maio de 1560 606 registam-se duas cartas de privilégio
a Francisco Velasques «mestre e epreyteiro da obra da Sé da cidade de
Mirãda» para que «equãto a dita obra durar e ele for mestre dela lhe sejão
dados na dita cidade os mãtimentos que lhe forem necesarios e ouuer
mister por seu dinheiro asy pera ele como pera os oficiaes, seruidores,
careiros e trabalhadores, que na dita obra trabalharem e seruirem, os

604
Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo III, pág. 136-137.
605
Consulte-se Rodrigues Mourinho, A catedral de Miranda do Douro, pág. 9-14.
606
Cfr. Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo III, pág. 170-171.

320
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

quaes pagarão pelos preços que se comumete vederem na tera», bem como
«lhe sejão dadas a ele e aos hoficiaes que na dita obra trabalharem casas
daluguer, em que se posam agasalhar». Francisco Velasques era natural da
cidade de Toro e encontrava-se ligado a uma importante família de mestres
de pedraria dessa região, documentado a partir da década de 40 607. Se em
1566 era sagrado o altar-mor da catedral, em 1572 o mestre de pedraria
surge como autor de um projecto para a reforma de São Salvador de Grijó,
perto da cidade do Porto. Todavia, não abandonou a empreitada pois vem a
falecer e a ser sepultado em Miranda do Douro no ano de 1576.

O relato da viagem do chantre da Sé de Évora, Manuel Severim de


Faria, fornece-nos uma descrição crítica da fábrica em 1609: «A Sé he feita
ia moderna, tem os frontispicios de obra dorica cõ duas torres de sinos nos
cantos de fermosa arquitectura. O templo por dentro he dorico de tres
naves e não está de todo acabado por ter alguns erros intoleraveis como
foi o do choro de sima q por fiquar mto iunto da abobeda se não pode
servir delle» 608.

Partindo de uma análise comparativa George Kubler afirmava que «a


massa exterior, com torres harmónicas, lembra vagamente Portalegre, pois
tem só dois níveis de janelas e ausência de recuo na fachada. Os únicos
elementos tectónicos são pilastras toscanas que acompanham a altura total
das torres. O pesado pórtico, ladeado de colunas duplas em dois pisos e
coroado por um frontão provinciano, reflecte a proximidade de Espanha, do
outro lado do rio Douro. Tal como na Catedral de Leiria, a planta apresenta
três naves com tramos quadrados no transepto pronunciado e uma capela-
mor em forma de túnel. Os suportes da nave, como em Portalegre, são
pilares formados por pilastras toscanas cuja altura fica muito aquém do
dobro da largura da nave principal. As nervuras das abóbadas são ainda
mais resistentes que em Portalegre», com a qual partilha «os arcos torais
que definem cada tramo», «da mesma largura que as pilastras dos pilares».
Conclui que «se Portalegre parece imitar Leiria, Miranda imita ambas. As
três catedrais pertencem certamente à mesma família, muito embora três
diferentes arquitectos, pelo menos, estejam envolvidos nas suas
construções» 609.

Já com projecto definido desde 1547, a catedral de Miranda do


Douro não disfarça uma rudeza fruto dos materiais e da oficina construtiva
regional bem como um certo ar goticista no modelo pesado das torres da

607
Cfr. Carlos Ruão, A Arquitectura Maneirista..., pág. 239.
608
BN, 14 Tomos das obras do Senhor Manuel Severim de Faria, códice 7642, fls. 221-222. Destaca-se
ainda o sacrário do altar-mor onde se conservam relíquias oferecidas pela rainha D. Catarina.
609
George Kubler, A Arquitectura Portuguesa Chã..., pág. 40-41.

321
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

fachada que contrasta com a estrutura retabular do portal da igreja, de


cronologia claramente posterior – desenvolvendo em dois pisos a ordem
dórica e colunas balaústres no segundo registo. No interior, a harmonia
sesquiáltera dos abobadamentos é cortada pelo coro-alto à entrada e pela
capela-mor de raiz tridentina.

4.4.2. Sé de Portalegre

D. João III criou o bispado de Portalegre em 1549 e no ano seguinte


foi nomeado como bispo de nacionalidade castelhana D. Julião de Alva.
Entre 1560 e 1590 sucedem-lhe D. André de Noronha e D. Amador Arrais.
Se tomarmos em linha de conta os projectos das congéneres de Leiria e
Miranda do Douro, é natural pensar-se que os projectos planimétrico e
altimétrico tenham sido delineados e discutidos desde o primeiro momento
na Corte e em simultâneo. Não obstante, não existe qualquer documentação
directa referente às primeiras duas décadas da sua edificação.

A data de 1556 inscrita na fachada deve coincidir, grosso modo, com


o início da fábrica e sabe-se que pelo menos a partir de 1570 o «mestre de
obras» da Sé de Portalegre é João Vaz 610. É provável que o grosso da
fábrica tenha sido concluída durante a vigência de D. Amador Arrais dado
que um auto de contas de 1589 com mestre Vaz refere gastos nas Casas
Episcopais e Seminário e pelo ano seguinte estava o entalhador Gaspar
Coelho a terminar a obra retabular do altar-mor, pouco antes de rumarem
definitivamente a Coimbra 611.

Comparando as catedrais de Portalegre e Leiria, George Kubler


observa a mesma estrutura de cinco tramos suportados por pilares de
secção cruciforme mas, neste particular, a proporção passa a ser 3:2 e não
de duplo-quadrado e os pilares de suporte são duas vezes menos que a
largura da nave contrariamente à duplicação em Leiria. Os perfis toscanos
são semelhantes, as abóbadas mais ornamentadas, concedendo ao templo
um carácter menos severo e mais «medievalizante». Em Portalegre o
cruzeiro é coroado com cúpula em berço cruciforme e a fachada mais
elaborada levando, no geral, o célebre historiador a afirmar que a «cúpula,
o transepto, a fachada harmónica e o coro tornam a Catedral de Portalegre
mais pretenciosa e diocesana que a de Leiria, que, todavia, pela sua clareza
e consonância de proporções, é muito mais impressionante» 612.

610
Consulte-se Manuel Inácio Pestana, «Pero Vaz Pereira, arquitecto seiscentista de Portalegre. Tentativa
cronológica e questões a propósito», pág. 155.
611
Cfr. Carla Alexandra Gonçalves, A obra do escultor e ensamblador maneirista Gastar Coelho, pág.
32.
612
Cfr. George Kubler, A Arquitectura Portuguesa Chã..., pág. 39.

322
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

A fachada foi já relacionada por Paulo Varela Gomes 613 com um dos
projectos de Rafael para o revestimento frontal de São Pedro de Roma de
1518, reproduzido no Livro IV de Sebastiano Serlio, editado pela primeira
vez em 1547. De facto, dos três modelos edificados é a mais legível em
termos modernos incorporando, tal como em Miranda do Douro, duas
torres avançadas à fachada. O anacronismo gótico é, contudo, visível na
desproporção do sistema pilastral-contraforte e em todo o peso dos alçados
laterais. No interior, os cinco tramos apresentam um modelo mais
elaborado e goticizante de abobadamento mas as capelas laterais da nave e
a capela-mor introduzem já abóbadas de caixotões maneiristas,
profusamente decoradas com elementos geométricos, obra certamente
posterior à década de 70. Inclui ainda uma cúpula hemisférica
correspondendo ao tramo central do transepto.

4.4.3. Sé de Leiria

Depois de ter sido eleito reformador de Santa Cruz de Coimbra, D.


frei Brás de Braga foi expressamente nomeado para primeiro bispo de
Leiria (1545-1556) – território administrado pelo mosteiro crúzio desde
1142 e que a 22 de Maio de 1545 se autonomiza como bispado através de
bula do Papa Paulo III.
Data de 15 de Julho de 1551 614 a célebre carta de frei Brás de Braga
a D. João III que envolve Afonso Álvares com o projecto: «Sõr – Afonso
Aluarez cheguou a esta cidade ontem que forã quatorze dias deste mes de
iulho e me deu carta de V A e o debuxo que mandou ordenar pera se fazer
a noua see, o qual vi e mo deu loguo a entender e oie pela menhaã o fomos
confrontar com o sitio e acodio tam bem per todas as partes e vem em todo
tam resguardado que nom ha hi em ello que repricar, o que todo foi pera
mi grande consolação, mormente por esta mudança de sitios ser feita
depois de V A ver todos os que haa em esta cidade, e nõ menos por a
inuenção da obra ser correita e tambem enmendada per V A. Huu soo
pesar me fiqua que nom posso nem he rezã de calar, que he de me nom ver
com idade e forças por que do mais nom me enfadara de andar com a
padiola e cesto seruindo a Deos e a V A em esta obra ; e isto abaste pera o
que V A manda que lhe screua asi do sitio como da traça. Aguora V A
mande fazer os debuxos de alto e os apontamentos como mescreue e eu
começarei entretanto de me fazer mais familiar a ambas estas cousas pera
que possa dar melhor razam delas a V A dandome o Senhor disposição
pera que antes que se parta de Santarem lhe ir beijar os pes por o cuidado

613
Paulo Varela Gomes, «As Fachadas de Igrejas Alentejanas entre o Século XVI e XVIII», Penélope,
pág. 25.
614
ANTT, Corpo Cronológico, parte 1ª, maço 86, doc. 90. Publicado em Sousa Viterbo, Dicionário...,
Tomo II, pág. XX-XXI.

323
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

que tem dos edificios do Senhor Deos, ao qual praza asi por esta obra
como por todas as outras tam santas que faaz lhe dar muita vida e saude e
em fim a sua gloria amen».
Deste modo, pedia o bispo ao monarca que se tratasse com
celeridade dos «debuxos do alto» e dos «apontamentos» da fábrica, depois
de ter sido aprovada a planta. O frade, que se queixava da velhice que o
limitava no seguimento dos trabalhos não assistiu certamente a grandes
progressos, na medida em que renunciará ao cargo, sendo substituído por
D. Gaspar do Casal (1557-1579), época fulcral no avanço do projecto
aprovado anteriormente. Não obstante, deixou certamente prontos os
alicerces da obra, dado o rápido avanço da empreitada pelas décadas de 60
e 70 tendo sido Leiria o primeiro dos novos templos a ficar concluído na
sua generalidade.

Segundo «O Couseiro ou Memórias do Bispado de Leiria», de autor


anónimo dos meados do século XVII, «não há notícia por escrito do dia,
mês e ano em que se lançou a primeira pedra» mas em 1561 – aquando da
partida de D. Gaspar do Casal para Trento – afirma-se que o deão Luís de
Araújo de Barros «terá cuidado nas obras da Sé que hora fazem». O
mesmo memorial produz referências exactas quanto à prossecução dos
trabalhos: «No ano de 1570 se começou o corpo da igreja, junto à porta
principal; assim se vê de um letreiro, na abóbada junto à mesma porta e se
acabou no ano seguinte de 1571, consta de outro letreiro no arco da
abóbada junto à capela de Santo António, e a frontaria da porta se acabou
no ano de 1572, consta do letreiro sobre a dita porta principal no arco da
abóbada, e no ano de 1573 em Agosto já estava a igreja telhada e no
mesmo ano em 16 de dito mês, se faz aí um recebimento de noivos, sendo
cura Simão Pires de Araújo, consta do Livro dos cazados daquele tempo
que está na casa do cartório do Cabido: e neste tempo já da dita sé saíam
as procissões, mas o Cabido residia ainda na Igreja de São Pedro e se
passou para esta nova no ano de 1574» 615. As datações pétreas apresentam
1570 no arco toral entre o primeiro e segundo tramos, 1571 no tramo
central do cruzeiro e 1572 numa das chaves do primeiro tramo.

A mesma fonte regista que, aquando da autorização de D. Sebastião


para a construção da igreja de Santo Agostinho, «estando feita e acabada a
capela-mor e corpo da igreja da Sé», «o Cabido lho impugnou, por
demanda, e juntamente deu uns capítulos ao cardeal Infante D. Henrique,
que era legado a latere de apontamentos de coisas, que estavam para fazer
na Sé, que naquele tempo importavam em mais de 40 mil cruzados, e lhe
pediam quisesse favorecer ao Cabido» enquanto a fábrica não estivesse
615
Citado por Luciano Coelho Cristino, «A igreja de Santo Agostinho de Leiria», Mundo da Arte, pág.
13.

324
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

perfeita. Estava-se no ano de 1577 – «feita e acabada a capela-mor e o


corpo da igreja da Sé».

Estas informações comprovam uma rápida conclusão do templo entre


as décadas de 60 e 70, pese embora se registem importantes trabalhos ao
tempo do bispo D. Pedro de Castilho – ainda segundo a mesma fonte acima
mencionada: «Fez o Bispo Dom Pedro (de Castilho) (1583-1604),
enquanto o foi deste Bispado, na Sé, o retábulo do altar-mor, em madeira,
as claustras, paços, varandas, sacristia, casas do cabido, e a em que estão
os armários e necessárias na casa que agora serve de fábrica; o tabuleiro
da Sé todo em toda com suas escadas», «fez a a pia de baptizarem que é de
uma pedra e as duas de água benta, as portas todas, três da Sé, em
madeira e as das claustras. Fez quatro ornamentos de damasco com
frontaleiras e sanefas de tela da mesma cor, quatro maças de prata e
outras muitas coisas» 616. Prosseguindo as obras de mobiliário do interior
do templo durante a primeira metade de Seiscentos, só na centúria seguinte
se construiu a torre sineira afastada do edifício, para além de arranjos na
frontaria, uma nova sacristia e modificações na tribuna da capela-mor.

Não se conhecem os mestre de pedraria que trabalharam durante este


período, seguramente sob a supervisão de Afonso Álvares que, durante a
década de 60 e 70, tem uma intensa actividade que se prolonga de Lisboa a
Évora, perfilando-se como o discípulo dilecto de Miguel de Arruda. Saúl
António Gomes avança alguns nomes de responsáveis «in situ» pela obra,
para os finais do século XVI e inícios do século XVII, como os mestres
Amador Francisco, activo a partir de 1593, Pedro Moreira – ao qual se deve
o projecto de Nossa Senhora da Encarnação de Leiria e da reforma de São
Vicente de Aljubarrota – e Manuel de Castro, o «mestre das obras» da
própria catedral que em 1625 pedia habilitação para familiar do Santo
Ofício e a quem o autor propõe atribuir a obra do claustro 617.

Somos da opinião de que a planimetria «delineada» por Afonso


Álvares por volta de 1551 sofreu uma importante modificação posterior.
Prova-o a própria complexidade da planta do templo leiriense em
comparação com a clareza dos modelos de «igrejas-salão» anteriores. Se
existe a preocupação de, no seu conjunto, reproduzir a unidade espacial
proporcionada pelo duplo-quadrado com o seu abobadamento sesquiáltero,
uma análise mais pormenorizada da sua planta permite concluir que se
optou, a determinada altura, por adaptar-lhe uma cruz latina à maneira
tridentina com transepto bem marcado e profunda capela-mor, modelo este

616
Luciano Coelho Cristino, «A igreja de Santo Agostinho de Leiria», pág. 13.
617
Consulte-se Saúl António Gomes, «Oficinas artísticas no bispado de Leiria nos séculos XV a XVIII»,
Actas do VI Simpósio luso-espanhol de História da Arte, pág. 252-254.

325
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

que foi incluído numa altura em que a igreja estaria ainda em condições de
modificar a sua tipologia – refira-se que o duplo-quadrado apenas se
consubstancia quando se prolonga dimensionalmente pelo meio das capelas
maior e co-laterais.
Esta modificação poderá ter sido introduzida depois da chegada de
Trento de frei Gaspar do Casal em 1564. Referimo-nos à marcação do
transepto com um tramo de cinco abobadamentos – onde os dois cantos
repetem as proporções da nave central – e à capela-mor e respectivas
capelas laterais, marcadas por uma linguagem claramente distinta quer em
termos estéticos quer no seu modelo. Sabe-se que o tramo central do
transepto inclui a data de 1571 o que pode apontar para a cronologia
intermédia da aplicação do novo remate do templo.

No que diz respeito aos aspectos estilísticos do templo, apresentam-


se características altimétricas e decorativas de dois tempos diferentes – não
esquecendo a inclusão, por motivos topográficos, do claustro no
seguimento da cabeceira à maneira da Catedral de Lisboa. As
características de continuidade «goticizante» revelam-se na estrutura de
suporte com pilares-contrafortes a suportar a fachada e pés-direitos e na
estrutura interior assente nos novos pilares cruciformes toscanos dividindo
as três naves sendo que as naves laterais são constituídas por tramos
rectangulares que, como assinalou Kubler, igualam a largura dos tramos
centrais. Se se reproduz fielmente a harmonia das proporções característica
desta tipologia, os aspectos eminentemente «modernos» fixam-se nos três
portais da fachada de pilastras toscanas – sendo o central mais elevado, de
duplas-pilastras e lintel e os laterais de verga recta com arcarias cegas – e,
no interior, pelas molduras arquitectónicas dos portais das capelas co-
laterais e pela abóbada de caixotões cravada ao transepto por arco de volta
perfeita com alta imposta e entablamento com triglifos.

326
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

4.5. Os modelos regionais

Foi essencialmente a Sul que o modelo das «igrejas-salão» encontrou


repercussões e reproduções regionais numa importante zona de influência
da arquitectura régia, consubstanciando-se durante o período sebástico. Os
projectos arquitectónicos são de menores dimensões e já não suportados
por pilares mas por colunas, sendo o mais antigo modelo edificado o da
Igreja da Luz de Tavira. Horta Correia dividiu a sua tipologia em dois
grupos tendo em conta a planta longitudinal – Tavira, Santarém e Beja – e a
planta quadrada – Estremoz, Monsaraz e Olivença 618.
Apresenta-se de seguida, de forma necessariamente sumária, um
breve apontamento sobre as cinco principais igrejas matrizes – Évora,
Estremoz, Monsaraz, Veiros e Olivença – e das Misericórdias de Beja e
Santarém, identificadas como exemplares fundamentais por George Kubler.

4.5.1. Santo Antão de Évora

Uma carta datada de 1548 de D. João III a frei Brás de Braga


envolve directamente Miguel de Arruda com a intenção de D. Henrique em
edificar a matriz de Santo Antão em Évora: «E o que dizeis do castelo, e
que devo lá mandar Miguel de Arruda para se medir a obra, e ele há-de
agora de ir a Évora, porque mo mandou pedir o Cardeal para a obra que
manda fazer na igreja de Santo Antão; tanto que vier o mandarei e
ordenarei como se mida a obra e de lá poderá logo ir convosco a
Alcobaça» 619. Embora pouco citado pela historiografia, este documento
prova cabalmente a influência directa que o mestre português exerceu no
projecto alentejano.

Fundada pelo cardeal D. Henrique em 1557, a matriz eborense


contou com dois projectos concorrenciais, um de Manuel Pires e outro de
Afonso Álvares, este último preterido em relação ao primeiro. O principal
responsável pela construção é autorizado a 8 de Junho de 1559 a fornecer
transporte dos materiais durante um período de três anos, «se tãto durarem
as obras», e a usufruir de determinados privilégios – «os bois das caretas
que o dito Manoel Pirez trouxer nas ditas obras posão beber no chafariz
das brabas e em quaes quer outras augoas que ouuer no termo e lemite da
dita cidade de Euora e pastar e amdar por omde pastarem e ãdarem os
gados dos carniceiros dela», podendo «mãdar e apanhar e cavar area
omde quer que achar sem pera isso pagar coyma e fazedo algua coua ou

618
Horta Correia, Arquitectura Portuguesa..., pág. 50. O mesmo autor inclui dentro dos modelos
regionais a tipologia da igreja de três naves com quatro e cinco tramos sem transepto como a igrejas de
Santa Maria da Graça de Setúbal e Santa Catarina dos Livreiros de Lisboa.
619
Cfr. Reinaldo dos Santos, «Miguel de Arruda e a igreja de Santo Antão», A Cidade de Évora, pág. 5.

327
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

couas pera tirar a dita area ele as mandara tapar a sua custa» 620. O
templo foi sagrado em 1563 mas apenas cinco anos depois foi
profundamente danificado por um abalo de terra, obrigando à reconstrução
até 1577 do abobadamento sob a supervisão do mestre de pedraria Brás
Godinho 621.

Manuel Pires, falecido em 1570, foi um valoroso e importante oficial


de pedraria com íntimas ligações à Corte régia, chegando a ascender ao
cargo de «Mestre de Obras da Comarca do Alentejo» em 1566, em
substituição de Diogo de Torralva 622. Teve a seu cargo obras importantes
na cidade, destacando-se o seu papel nos trabalhos do Aqueduto de Évora.

O modelo eborense, tendo em conta as dimensões entre planta e


alçado, apresenta-nos as mais altas proporções de todas as «igrejas-salão»
edificadas neste período, como afirma Kubler 623. Com os seus quatro
tramos e um abobadamento sesquiáltero próximo do de Leiria, patrocinam
para o seu interior arrojado e elegante as colossais colunas com capitéis
jónicos de carácter «quatrocentesco» e não tratadístico – sem óvulos e
pendentes e onde as quatro volutas se limitam ao enrolamento final. Face à
capela-mor simples rasgam-se pequenas capelas ao longo da nave e um
coro-alto que ocupa o tramo de entrada constituído por três arcos à mesma
altura. O aspecto original do templo seria bem diferente se reconstituirmos
mentalmente a pintura de grotescos que decorava a totalidade da ordem
arquitectónica como provam os resquícios desta prática ainda existentes em
alguns dos capitéis adossados às paredes.
O exterior desenvolve a opção portuguesa pela inclusão de torres na
fachada dividida em cinco panos por grossas pilastras e uma entrada
tripartida com dois portais laterais de verga recta e um portal central com
frontão encerrado em arco cego de volta perfeita.

Réplica do modelo aplicado em Santo Antão de Évora, incorporando


idênticas colunas jónicas com volutas angulares, a matriz de São Salvador
de Veiros foi edificada pelo «mestre e epreyteyro» João Álvares, morador
em Estremoz, segundo se depreende por carta de privilégio de 8 de Junho
de 1559 624 na qual se afirma que «equanto durar a obra da igreja do
Saluador da vila de Veyros», «lhe não sejão tomados nem apenados pera

620
Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo II, pág. 308.
621
Inventário Artístico de Portugal. Cidade de Évora, pág. 208.
622
Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo II, pág. 309.
623
Cfr. George Kubler, A Arquitectura Portuguesa Chã..., pág. 41.
624
Cfr. Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo I, pág. 497-498.

328
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

outra obra nem seruiço algum os oficiaes e seruidores que na obra da dita
igreja trabalharem nem nos que trouxer na dita vila dEstremoz no careto,
llauramento e arranco da pedraria, que se laurar pera a dita obra, nem as
caretas que nela seruirem, antes lhe serão dadas da dita vila de Veyros
cada vez que as pedir as caretas que mais ouer mister e lhe forem
necesarias pera seruiço da dita obra paguandoas elle pelo preço da terra»
e pedindo aos responsáveis camarários que ponham à disposição do mestre
pedreiro tudo o que for necessário para a fábrica. A data de 1595, esculpida
sobre o arco da capela-mor, deverá coincidir com a conclusão da obra.

4.5.2. Santa Maria do Castelo de Estremoz

O mais erudito e avançado modelo no conjunto das «igrejas-salão»


da segunda metade do século XVI é o da igreja de Santa Maria do Castelo,
em Estremoz. Incluído no padroado de São Bento de Avis, o templo
alentejano foi construído de raiz a partir de 1560. Também para este caso
concreto os nomes de Miguel de Arruda e de Afonso Álvares foram
avançados pela historiografia portuguesa como prováveis autores do
projecto arquitectónico.

Pero Gomes foi o «mestre e empreiteiro» da matriz, recebendo em


1559 privilégio régio sobre gado e carretos para a fábrica 625. Oficial natural
da própria vila mas já experiente, tinha edificado em 1542 o refeitório do
Convento de Avis e a partir de 1563 toma para si a obra da igreja de Nossa
Senhora da Lagoa, em Monsaraz 626. Túlio Espanca adianta que o mestre
teve dificuldades no que toca ao seu cumprimento contratual, chegando a
ser afastado da obra e condenado a pagar uma dívida que o monarca lhe
perdoará, mais tarde, pela metade – mau augúrio para uma fábrica na qual
ainda em 1621 se trabalhava com alguma intensidade.

Tida por George Kubler como «a obra-prima de toda a família», «a


planta da igreja consiste num rectângulo dourado, com o comprimento
igual à diagonal do quadrado sobre a largura. O sector oriental contém a
capela-mor e seus anexos e o restante é constituído pelo corpo quadrado da
igreja, como na Misericórdia de Beja. Esta planta quadrada tem seis
colunas jónicas de que arrancam feixes de nervuras simples a sustentar as
nove abóbadas. Por trás das meias-colunas e pilastras angulares nas junções
das paredes confinantes existem contrafortes maciços internos. A
economia, a ordem e a elegância dominam todas as relações, de maneira
que o rectângulo dourado oriente a fachada, tal como orienta a planta» 627

625
Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo I, pág. 437-439.
626
Inventário Artístico de Portugal. Distrito de Évora, pág. 75.
627
George Kubler, A Arquitectura Portuguesa Chã..., pág. 43.

329
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

O exterior do templo – que deveria contar com um remate superior


nunca construído – é um fantástico cubo arquitectónico onde a fachada é
tripartida por pilastras colossais semelhando as angulares as inexistentes
torres da fachada presentes em outros modelos. Nela destaca-se o rigor
tratadístico do marmóreo portal de colunas jónicas assentes em pedestal, de
fuste estriado e capitel bem entendido, suportando um entablamento com
friso convexo e frontão triangular superior. Por sua vez, o interior é
superiormente iluminado por janelões rectangulares e óculos central e
laterais, com três tramos de abobadamento sesquiáltero harmonizando o
conjunto com quatro colunas colossais de capitéis jónicos bem entendidos e
outras oito adossadas ás paredes laterais, aproveitando-se este espaço para
rasgar em arcarias de volta perfeita capelas laterais de profundidade
reduzida á grossura dos pés-direitos. A originalidade do modelo das
«igrejas-salão» portuguesas da segunda metade do século XVI atinge em
Estremoz o seu mais argênteo modelo.

Inspirando-se na planta quadrada de Estremoz, a matriz de Monsaraz


crê-se edificada a partir de 1563 apresenta um sistema assente em quatro
colunas toscanas, replicando na fachada Santo Antão de Évora, depois
rematada por frontão rococó 628.

Por sua vez, a matriz de Olivença contou como mestre de pedraria o


toledano Andrés de Arenas que ergueu a obra cerca de 1570-1584 embora
tenha sido sagrada apenas em 1627. Com seis colunas jónicas, Três capelas
na cabeceira e um coro-alto, o seu abobadamento lembra o modelo
aplicado em Monsaraz 629.

4.5.3. Misericórdia de Beja

Tradicionalmente considera-se que a construção do célebre açougue


alentejano é anterior a 1550, data em que o infante D. Luís decide «utilizar
para igreja da Misericórdia o grande edifício de pedra que mandei fazer
para o matadouro na praça, o qual Deus parece ter desejado tão belo
quanto mal aproveitado era ele para tão baixa função» 630. Deste modo e
por esta razão, foi adaptado a templo da Misericórdia de Beja onde a igreja
é antecedida por um nártex rusticado inspirado, segundo Kubler, no piso
intermédio que Sebastiano Serlio divulgou pela gravura do Anfiteatro de
Verona.

628
George Kubler, A Arquitectura Portuguesa Chã..., pág. 43.
629
Geroge Kubler, A Arquitectura Portuguesa Chã..., pág. 43.
630
Citado em George Kubler, A Arquitectura Portuguesa Chã..., pág. 34.

330
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

De planta quadrangular, com nove abóbadas nervuradas e frustes


colunas corintizantes é um modelo que se inclui nesta tipologia, embora
estranho na medida em que a sua mais valia se encontra mais na armação
rusticada do exterior do que na espacialidade reproduzida no seu interior.

4.5.4. Misericórdia de Santarém

A nota documental divulgada acerca do envolvimento directo de


Miguel de Arruda com a traça da igreja da Misericórdia de Santarém
permitiu comprovar o seu papel central no projecto e opção régia pelo
modelo «joanino» da «igreja-salão» como paradigma do templo cristão nos
meados do século XVI.
Por iniciativa da regente D. Catarina, a irmandade da Misericórdia de
Santarém pode edificar casa própria a partir de Agosto de 1559. Nesse
mesmo ano, a 12 de Dezembro, Miguel de Arruda surge expressamente
referido como «mestre de obras» no contrato com os mestres pedreiros
Simão Fernandes e Álvaro Freire para a edificação do templo 631. A fábrica
foi controlada pelos mestres régios e contou mesmo com a presença de
Diogo de Torralva na abertura dos alicerces. Por razões diversas,
prolongou-se no tempo, sendo apenas concluída em 1602.

Se o exterior se encontra actualmente desvirtuado, o interior do


templo escalabitano é um dos melhores e mais bem conservados
exemplares das «igrejas-salão», incluindo a decoração em «brutesco» das
colunas toscanas que dividem as três naves e delimitam os três tramos que
compõe o conjunto. As nervuras das abóbadas sesquiálteras recordam, em
primeira mão o tipo eborense de Santo Antão e, por extensão, o de Veiros e
incluí a tripartição da cabeceia em três capelas de pouca profundidade
destacando-se, por degrau, da nave a capela-mor. Se tivermos em linha de
conta que Miguel de Arruda certamente projectou a Sala dos Reis de
Alcobaça, onde se verifica uma igual proporcionalidade, a Misericórdia de
Santarém poderá ser considerada como o modelo-paradigma encontrado
pelo mestre português para esta tipologia.

631
Vítor Serrão, Santarém, pág. 63-64.

331
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

5.6. Conclusão

O modelo da «igreja-salão» concertado para fazer construir as


catedrais de Leiria, Miranda do Douro e Portalegre – na sequência da
criação de três novos bispados – foi discutido e aprovado na Corte joanina
na década de 40 e edificado nos três décadas seguintes. Não devem restar
dúvidas de que a sua escolha foi consciente e pensada de acordo com a
necessidade de conceder dignidade e majestosidade aos novos templos e
em conformidade com a sua função. São, portanto, um fenómeno das
décadas de 40 a 70, embora a sua construção se prolongue, fruto das
circunstâncias, até aos inícios do século XVII. Encontram-se nas regiões a
Sul – dominadas pelos modelos da arquitectura régia e pela supervisão do
Mestre de Obras da Comarca do Alentejo – toda uma série de reproduções
tipológicas em igrejas-matriz ou templos erigidos pela Misericórdia que
contribuíram para a fortuna do modelo.

Se o seu sucesso é uma realidade, a tipologia de raiz medieva contou,


como foi salientado por Kubler, com uma reformulação do modelo assente
essencialmente em três pontos-chave – a «rede de nervuras, a redução dos
contrafortes e a omissão de ornamentos». Face à utilização dos grossos
pilares baixo-medievos prefere-se agora um sistema de colunas ou pilares
de maior elegância e de corte renascentista que sustentam um sistema
simplificado de cobertura abobadada. Não obstante, sob o ponto de vista
planimétrico e altimétrico, as características-base da «igreja-salão»
mantêm-se, isto é, preferência pelo duplo-quadrado na planta e pela
unifornidade em altura das naves. Nesta perspectiva, estamos em sintonia
com a tese de Paulo Pereira que sustenta o uso e prática deste modelo num
eixo de «permanência e longa duração» ao qual muito deve o sucesso do
templo hieronimita de Santa Maria de Belém.

A «igreja-salão» foi o modelo escolhido pelos mestres portugueses


para fazer projectar um templo «moderno» antes de manifestamente se
conhecer com propriedade as tipologias «romanas» de cruz latina que
encontram em São Vicente de Fora o seu ponto inicial.

*
Todavia, duas questões relacionadas com a «igreja-salão» merecem
ser objecto de análise crítica – a tese kubleriana que relaciona directamente
o Escorial e as «igrejas-salão» portuguesas, bem como os seus mentores, e
o suposto abandono ou regressão das «ideias clássicas» nos últimos anos do
período joanino.
Kubler declarou que «o equivalente das igrejas-salão é o Escorial» e
apontava Portugal como pioneiro na prática do «estilo desornamentado». A

332
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

boa ventura e importância do trabalho do célebre historiador não deve


obstar a que se desarticule esta tese que, pese embora pareça valorizar
temporalmente a arquitectura portuguesa face à sua congénere castelhana,
assenta num argumento comparativo não válido. Comparar o despojamento
do «estilo desornamentado» decorrente do classicismo, nos princípios e nas
finalidades – como se observa no modelo escurialense – com um modelo
arquitectónico assente numa planimetria em linha de continuidade com o
gosto baixo-medievo é não só excessivo como uma clara inversão histórica,
estilística e factual. Recorde-se que o Escorial resultou da assimilação e
depuração das normas clássicas do formalismo alto-renascentista e foi
projectado e discutido por profundos conhecedores da matéria clássica –
Toledo, Paciotto e Herrera. O designado «estilo desornamentado» espanhol
nasce com Toledo como depuração do classicismo e não existe, por
exemplo, com Covarrubias, Luís ou Gaspar de Vega.
Por seu turno, a quinhentista «igreja-salão» portuguesa foi delineada
por mestres que ainda não tinham sequer assimilado na sua totalidade o
modelo arquitectónico renascentista. Os modelos existentes em Portugal
provam, no máximo, uma visão «quatrocentesca» da nova arquitectura
transalpina. Daí que a utilização do termo «clássico» para definir modelos
arquitectónicos renascentistas na primeira metade da centúria seja em tudo
excessivo bem como definir a «igreja-salão» – e por extensão o «estilo
chão» – como «aclássico» ou classicismo «asséptico», na medida em que
se pressupõe sempre uma «suspensão de». Ora, o próprio classicismo é em
si mesmo sinónimo de incorruptível e imputrescível. Pense-se no que diria
a Academia Vitruviana se, em vez do projecto escurialense, tivesse sido
consultada acerca de qualquer um dos projectos portugueses para Miranda
do Douro, Leiria ou Portalegre.

Um segundo ponto relaciona-se igualmente com o estudo kubleriano


quando relaciona a «igreja-salão» quinhentista e a sua reformulação com a
mais valia dos arquitectos militares, essencialmente Miguel de Arruda e
Afonso Álvares, declarando que «introduziram na Península Ibérica um
gosto sóbrio, racional e despojado, na prática da arte da fortificação»,
fundamentando neste ponto a tese «chã» 632.
Em consequência, o tradicional discurso da historiografia artística
portuguesa pretendeu justificar o uso da tipologia da «igreja-salão», no
virar da primeira para a segunda metade de Quinhentos, não numa linha de
continuidade temporal mas como uma reacção por parte da Corte dos
últimos anos do reinado de D. João III ao modelo «clássico» por
excelência. Neste sentido, Horta Correia chegou a identificar as «igrejas-
salão» como «senão de natureza anticlássica, pelo menos de sentido

632
George Kubler, A Arquitectura Portuguesa Chã..., pág. 44.

333
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

aclássico» 633 e Rafael Moreira, indo mais longe, afirmava que o «estilo
chão» tornado vivo através desta tipologia «representa a nacionalização do
classicismo» considerando, ao mesmo tempo, que Miguel de Arruda – a
principal figura por detrás da sua prática – «não compreendia o clássico
como valor absoluto». Pretende ver esta tipologia como uma «arte nua e
avessa a experiências vanguardistas, em clara reacção contra as modas
estrangeiras: um estilo que se pretende inserido numa tradição nacional em
vez de em ruptura com ela, embora não hesitasse em se apropriar quanto
queria das soluções clássicas» 634.

Exposto desta forma, este raciocínio só faz sentido se, por um lado, a
tipologia gótico-manuelina tivesse sido preterida em favor dos modelos
«clássicos» e, posteriormente a uma tomada de consciência do «clássico»,
se voltasse atrás num movimento também ele consciente e reactivo. Ora,
esta posição é uma impossibilidade na medida em que a nova arquitectura
de raiz italiana é na década de 40, a todos os títulos, ainda experimental e
periférica, não entendida na sua totalidade nem praticada de forma
generalizada – os modelos mais disponíveis seriam a igreja da Graça de
Évora, porventura Nossa Senhora da Conceição de Tomar ou a igreja
colegial da Graça de Coimbra, estes últimos apenas concluídos na década
de 50, portanto, posteriores à opção pela «igreja-salão». Muito dificilmente
se pode observar uma consciência «classicista» partindo dos exemplos
realmente edificados neste período. Atrevemo-nos a dizer que nenhum
destes modelos alcançados pelos mestres construtores à época podia
satisfizer as exigências de monumentalidade e dignidade – e por extensão,
de «gosto» – da Corte joanina para as novas catedrais.
Todavia, é muito importante não confundir a prática da arquitectura
renascentista com duas outras ideias já plenamente visíveis nos finais do
período joanino: a prática do «debuxo» e a consciência do paradigma
vitruviano incorporado na «figura do arquitecto», fruto do ambiente
humanista. Nenhum destes factores é condicionador da consciência tardia
da arquitectura de pendor «classicista» em Portugal.

*
Esta argumentação não procura, contudo, branquear a importância e
o sucesso da «igreja-salão» entre as décadas de 40 a 70. A sua fortuna é
bem visível durante este período e, claramente, esta tipologia é a preferida
no ambiente cortesão dos finais do período joanino e durante o período
sebástico. Deve igualmente ressalvar-se a especificidade do modelo
português na sua evolução e a sua originalidade. Portugal encontrou na re-
invenção da «igreja-salão» uma tipologia arquitectónica que possibilitava
633
Horta Correia, Arquitectura Portuguesa..., pág. 46.
634
Cfr. Rafael Moreira, «Arquitectura: renascimento e classicismo», pág. 356-357.

334
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

um tratamento proporcional harmónico e uma valorização dos princípios


geométricos bem evidentes na cultura da época. Pondo de lado as
experiências renascentistas de Évora ou Coimbra, «modernizou-se» uma
tipologia conhecida à qual se conferiu uma elegância e uma harmonia de
proporções de raiz antropomórfica digna da cultura renascentista, embora
monumental. A «igreja-salão» fica como a imagem virtuosa da arquitectura
portuguesa das três primeiras décadas da segunda metade do século XVI.

Facto incontornável nesta matéria é que no momento em que a opção


por uma tipologia da «igreja-salão» é tomada – meados da década de 40 –
não existe em Portugal um conhecimento suficiente da arquitectura
«clássica» tal como praticada em Itália. O sucesso regional do modelo da
«igreja-salão» não impediu que fosse ultrapassado pelas propostas
italianizantes que se impõem a partir das duas últimas décadas do século
XVI – concretamente a partir da planimetria de São Vicente de Fora.

335
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

336
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

-Reforma e a
Arquitectura

337
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

338
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

5.1. A Contra-Reforma, a Arte e a Arquitectura

5.1.1. O novo moralismo tridentino

As origens da Reforma Católica remontam à reanimação cristã da


Baixa Idade Média, no que concerne à oração, meditação e aos sacramentos
e ao Renascimento, seja na tentativa de limpeza do paganismo que se
instalou fruto da miscigenação cultural renascentista, seja como reacção à
crescente emergência de um pensamento onde o individual e o terreno
põem cada vez mais em causa, para a Igreja, a superestrutura de natureza
divina e consubstanciação colectiva. Tudo se precipita com o saque de
Roma de 1527 e a posterior associação política do papado com o imperador
Carlos V. A Igreja Católica irá empreender uma das maiores reformas em
toda a sua longa história e, com ela, um momento de importante viragem
no modelo da arte religiosa.

A reunião da hierarquia católica na localidade italiana de Trento,


entre 1545 e 1563, vem na sequência e é o culminar de toda a reforma
concentrada no principal objectivo de restaurar o domínio da Igreja
Católica Apostólica Romana face, não só às dificuldades políticas e sócio-
económicas sentidas, mas também ao crescente desenvolvimento do
Protestantismo e da cultura racionalista emergente, decorrente dos ideais
humanistas. Pensando nostalgicamente no glorioso passado medieval, o
Catolicismo tinha na abolição do direito do indivíduo a pensar de acordo
com o seu livre-arbítrio e no restabelecimento do princípio da autoridade da
Igreja os seus dois principais objectivos 635. A «autoritas» eclesiástica tinha
sido não propriamente abolida mas, pelo menos, desviada pela cultura
humanista e era um claro atentado à superestrutura mental que a Igreja
Católica representava na sociedade ocidental.

O historiador Michael Mullett definiu duas fases concretas na


imposição dos ideais tridentinos 636. Uma primeira fase que o autor designa
por «italiana», onde a intenção imediata é proteger a Itália contra o
Protestantismo, funcionando o Index Expurgatorius e a Inquisição,
revigorada a partir de 1542, como respostas imediatas de proteccionismo e
defesa da autoridade eclesiástica pós-saque de 1527 e na qual se destacou a
acção dinamizadora de Giovanni Pietro Carafa, futuro Paulo IV (1555-
1559). Uma segunda fase, «internacional», coincidente com a acção do
cardeal-arcebispo milanês Carlo Borromeo, de resposta normativa e
espírito missionário e que rapidamente estravasa a própria Península
Itálica, estendendo-se a todo o mundo católico e a evangelizar. Apostando
635
Cfr. Anthony Blunt, La teoria de las artes en Italia..., pág. 116.
636
Michael Mullett, A Contra-Reforma, pág. 20-26.

339
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

numa reforma completa da estrutura interna da Igreja, do sacerdócio ao


espírito missionário, o período contra-reformista criará aquela que foi a
mais poderosa arma de doutrinamento, propaganda, pregação e persuasão –
a Companhia de Jesus, fundada em 1540 por Santo Inácio de Loyola,
milícia religiosa de amplos poderes, especializada numa nova fórmula de
evangelização.
É importante ter em conta que o movimento contra-reformado não só
pretendeu um regresso a um tempo perdido – essencialmente no que diz
respeito ao lado mais dogmático da reforma – mas também uma
actualização que permitisse acompanhar um novo mundo laico. Assim,
«junto às instituições mais austeras (que pretendem reviver um passado
perdido) também floresceram organismos que pretendiam a adaptação da fé
católica à necessidade da vida moderna: os Jesuítas, os Oratorianos, Pio IV,
Clemente VII, pretendendo tornar a religião mais acessível não por meios
racionais mas apelando à emoção» 637, como são significativos os
«Exercícios» de Inácio de Loyola.

A reforma terá um conteúdo e abrangência vastíssimas, implicando


mudanças ao nível do sacerdócio, da liturgia e do doutrinamento com
amplas consequências religiosas e culturais. Torna-se, portanto, evidente
que a intervenção no campo das artes e da arquitectura foi, nesta
perspectiva, igualmente fulcral para a legibilidade e visibilidade do espírito
tridentino, não só como resposta ao iconoclastismo protestante e ao
«paganismo cristão» divulgado pela imagética do Alto Renascimento, mas
também como reafirmação da importância inalienável da imagem como
«biblia poperum» na formação e educação da cristandade. A arte tridentina
será «funcional e subserviente», apelará à teatralidade e à contemplação,
servindo primeiro que tudo a doutrina e não o belo «em si mesmo» 638.

637
Anthony Blunt, La teoria de las artes..., pág. 139.
638
Sobre este assunto veja-se Michael Mullett, A Contra-Reforma, pág. 42-44.

340
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

5.1.2. A imagética tridentina e a teoria do «decorum»

Da última sessão do Concílio de Trento, realizada a 3 e 4 de


Dezembro de 1563, nasce o célebre «Decreto acerca da invocação,
veneração e relíquias dos santos e sobre as imagens sagradas» que
enuncia de forma liminar a posição oficial conciliar, consubstanciando-se o
poder da imagem sagrada como símbolo: «O Santo Sínodo ordena a todos
os bispos e a quantos têm o dever e a função de ensinar, de acordo com o
direito da Igreja católica e apostólica, recebida desde os primeiros tempos
da religião cristã e unanimemente sancionada pelos santos padres e pelos
decretos dos santos sínodos: que instruam diligentemente os fiéis em
primeiro lugar sobre a veneração das relíquias e o uso legítimo das suas
imagens, ensinando-lhes que os santos, reinantes com Jesus Cristo,
oferecem as suas orações a Deus em favor dos homens» 639.

Não esquecendo a velha querela acerca da idolatria – amplamente


discutida durante toda a Alta Idade Média, apenas resolvida a partir do
Concílio de Niceia (787) e recentemente recuperada como argumento pela
ruptura protestante – o decreto refere claramente que as imagens sacras
«não devem ser honradas pela crença que reside nelas alguma divindade
ou poder, ou porque possa pedir-lhes algo ou depositar nelas a confiança,
como antes faziam os gentios, que fundavam a sua esperança nos ídolos,
mas porque a honra que se tributa às imagens vai dirigida aos protótipos
que elas representam, de tal modo que, através das imagens que beijamos
e perante as quais descobrimos a cabeça e nos prosternamos, adoramos a
Jesus Cristo e veneramos os santos cuja semelhança apresentam». Do
mesmo modo se faz menção à utilidade da imagem como «bíblia dos
pobres» pois através dela «o povo é ilustrado e confirmado na
comemoração e na assídua veneração dos artigos da fé, e por aqui se
obtêm grandes frutos de todas as imagens sagradas, não só porque se
recordam ao povo os benefícios e dons que receberam através de Jesus
Cristo, mas também porque os milagres realizados por Deus através dos
santos e dos seus saudáveis exemplos estão presentes aos olhos dos fiéis
para que eles dêem graças a Deus e conformem a sua vida e costumes à
imitação dos santos e sejam estimulados a adorar e amar a Deus e a
praticar a piedade».

Consciente dos perigos e «abusos» na sua representação plástica


insiste-se na sacralidade das imagens, das quais deve eliminar-se «toda a
lascívia, de modo que não se pintem nem adorem imagens de beleza
provocativa e na celebração das festas dos santos e na visita às relíquias
639
O texto conciliar encontra-se parcialmente publicado em Renacimiento en Europa, pág. 346-349, do
qual foram traduzidas e retiradas todas as citações.

341
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

não se cometam excessos na bebida, como se as festividades em honra dos


santos se tivessem que celebrar com luxúria e actos licenciosos». A
referência é clara e objectiva. Pretende-se abandonar o cânone «humano»
introduzido pela arte renascentista e adoptar um renovado cânone «moral»,
decoroso e espiritual. Estamos perante a teoria do «decorum», uma das
prerrogativas da Contra Reforma.

Existe toda uma série de produção literária de cariz moralista que


acompanhou e suportou a ideologia emergente concentrando-se na
eminente função educativa e delimitatória da arte e fundando uma teoria
irrefutável dimanada das normas tridentinas. Mesmo antes do Concílio de
Trento obras como o «De certa gloria invocatione de veneratione
sanctorum» de Ambrosius Catharinus (Lyon, 1542) indicavam já o
caminho a percorrer na defesa da iconolatria católica e logo em 1564 é
publicado o diálogo «Degli errori e degli abusi de’ pittori circa l’istorie»
de Giovanni Andrea Gilio da Fabriano 640, escrito que se centra no conceito
de «decorum» e que é uma clara consequência do seu tempo e pleno de
actualidade 641. Na mesma linha segue, entre outros textos, o «De picturis
et imaginibus sacris» do flamengo Jan Ver Meulen ou Molanus.

A obra incontornavelmente mais representativa deste novo


moralismo estético-artístico é o «Discorso intorno alle imagini sacre e
profane» de Gabriele Paleotti (1522-1597), datado de 1582 642.
Conselheiro do legado pontifício na fase final do Concílio de Trento,
arcebispo de Bolonha a partir de 1566, Paleotti apresenta uma crítica clara
à lascívia e «pudenda» da arte do seu tempo, seguindo os trâmites
tridentinos, expondo a sua opinião acerca de temas que vão desde o simples
retrato laico aos grotescos – que vê como caprichos e inverosimilidades e,
portanto, contrários à Natureza – da representação do Nú à inexpressão da
santidade na representação das figuras sagradas. Todo o seu espírito crítico
pode ser resumido pelas seguintes palavras: «Orientando-se pois as
pinturas sagradas sobretudo ao espírito, convém necessariamente que lhe
agradem, ou melhor dito, que estejam formadas com tais signos de religião
e santidade aos que estejam já habituados os espíritos e lhe chamem
espirituais, e que ao vê-las fiquem comprazidos como se de algo feito à sua
medida. E os outros, ao contemplá-los e darem-se conta de serem
diferentes deles, se arrependam e despertem para algum princípio de
devoção. Por isto há que deplorar enormemente o abuso que com tanta
frequência existe nas obras da maior parte dos pintores, os quais, atentos
640
Consulte-se Paola Barocchi, Scritti d’Arte del Cinquecento. IV. Pittura, Tomo I, pág. 834-862.
641
Julius Schlosser, La literatura..., pág. 365.
642
Este texto, que permaneceu inacabado – dado que só dois dos cinco livros foram publicados em 1582,
restando, contudo, o índice de todo o projecto - está parcialmente publicado em Paola Barocchi, Scritti...,
Tomo IV e VI, e Renacimiento en Europa..., pág. 451-459, do qual se cita os excertos seguintes.

342
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

somente a enaltecer-se a si mesmos e ao seu desejo enorme de renome,


aproveitam nas imagens sagradas todas as ocasiões que podem para
demonstrar a sua habilidade e mestria, sem parar para pensar no que é
mais conveniente para quem contemplar essa imagem, ou o lugar onde irá
ser colocada, que é o templo de Deus, ou a finalidade que se persegue
formando imagens sagradas» 643.

As consequências da teoria do «decoro» foram de tal forma


profundas que o próprio Giorgio Vasari, embora pouco atraído pelas suas
directrizes, não deixa de reflectir esse espírito quando se refere ao «Juízo
Final» de Miguel Ângelo, na segunda edição das «Vite» de 1568, alinhando
por um discurso cauteloso em relação à muito discutida – e com as
consequências que se conhecem – representação da nudez das figuras. No
mesmo sentido, artistas como o arquitecto e escultor maneirista Bartolomeo
Ammannati, numa «Lettera agli Accademici del Disegno», chegou a
repudiar fortemente a sua própria obra escultórica de figuras nuas 644. Se se
poderá afirmar que a maioria dos artistas italianos foi, de uma maneira ou
de outra, afectada pelo ideal tridentino é igualmente verdadeiro dizer-se
que nem todos aceitaram de forma tão radical as directivas tridentinas, o
que não pressupõe que não deixassem de se fazer concessões à pintura
italiana, embora limitadas, na medida em que «a Antiguidade estava tão
enraizada em Itália que não desapareceu e a Igreja apenas eliminou as
formas mais perigosas» 645, tendo sido, por exemplo, condescendente com a
temática mitológica. O próprio Carlo Borromeo não chegou ao ponto de
criticar o emprego das ordens clássicas, de origem pagã, na arquitectura
religiosa e justificou mesmo o seu uso «por respeito às estruturas
duradouras», como adiante veremos.

Será ao Maneirismo que a Contra Reforma responsabilizará, por


assim dizer, e num primeiro momento, pela adopção do modelo renovado
da representação pictórica e escultórica dentro das restrições e directivas
pré-concebidas. Mas, se «a austera atracção espiritualista da época
tridentina exprime-se mais puramente no Maneirismo» 646, o lado erudito e
intelectualizado deste estilo, bem como o objectivo de produzir uma
imagem espiritualmente convincente e «popular», levará a que o ideal
contra-reformista apenas se concretize no Barroco.

643
Citado em Renacimiento en Europa..., pág. 458.
644
Cfr. Julius Schlosser, La literatura…, pág. 368.
645
Anthony Blunt, La teoria de las artes en Italia..., pág. 124.
646
Arnold Hauser, História Social da Arte e da Cultura, Vol. III, pág. 167.

343
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

5.1.3. A Contra-Reforma e a Arquitectura

5.1.3.1. A Arquitectura Sacra segundo Carlo Borromeo

A arquitectura é, acima de tudo, uma questão de poder. Dificilmente


uma civilização e uma cultura se impuseram verdadeiramente sem recorrer
à visibilidade e simbolismo que a arte da arquitectura encerra em si mesma.
Neste sentido, seria impensável que todo o catecismo formal e ideológico
contra-reformista não deixasse de se estender à arquitectura, símbolo
máximo do poder divino sobre o «terreno», espaço sacralizado por
excelência e concretização microcósmica do macrocosmos celeste. Se até
aqui a Igreja estava consciente do poder político-simbólico que
representava a arquitectura religiosa, a partir de agora esta será objecto de
um cuidado bem mais específico depois dos «devaneios» e experiências do
período renascentista.

Será o próprio Carlo Borromeo o responsável pela transposição do


pensamento e ideologia tridentinos para a arquitectura religiosa através das
célebres «Instructiones Fabricae et Supellectilis Ecclesiasticae»,
publicadas em 1577. Logo no preâmbulo do texto, o autor dá-nos a
conhecer as razões que o levaram a redigi-lo: «De acordo com o decreto
publicado por nós no III Concílio Provincial, damos à luz estas instruções
acerca da fábrica e do mobilar eclesiásticos. Nelas prescrevemos acerca
de todas aquelas coisas que temos como oportunas e apropriadas para o
uso e ornato mais frequente das igrejas da nossa província, seja acerca
dos templos sagrados, capelas, altares, oratórios, baptistérios, sacrário e
outras coisas do género que se possam erigir, seja acerca dos
panejamentos sagrados, ornamentos, objectos ou qualquer outro aparato
eclesiástico que deva realizar-se» 647.

De acordo com as normas tridentinas, Carlo Borromeo defende um


retorno a um passado glorioso medieval, anotando que «assim como muitas
coisas, sem dúvida muitas delas tratadas sabia, copiosa e utilmente por
escritores da arte arquitectónica, que aludem a esta augustíssima arte das
basílicas sagradas e ao esplendor de toda a edificação eclesiástica,
julgamos oportuno que se empregue o conselho de arquitectos peritos, da
mesma maneira que propomos que se devem imitar nestes tempos aquela
antiga piedade e religião dos fiéis, excitada desde os tempos apostólicos, a
qual brilhou nestas construções de templos sagrados e no admirável
aparato do mobiliário sagrado. Pois bem, antigamente ergueu-se uma
ingente estrutura e multitude de igrejas, como indicam os vestígios que se
647
Carlo Borromeo, Instrucciones de la fábrica y el ajuar eclesiásticos, pág. 1, segundo a tradução
castelhana de Bulmaro Reyes Coria.

344
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

apreciam nesses tempos» 648. Pensando o espaço divino partindo de uma


nostalgia para com o passado – onde não está ausente um olhar para as
basílicas paleo-cristãs romanas – vai recomendar a majestosidade e a planta
em cruz, essencialmente em cruz latina, como a que Vignola tinha
projectado, à época, para o «Gesù» de Roma. Destaca igualmente o papel
de complementaridade entre o responsável religioso e o arquitecto, bem
como a necessidade de o projectista ser ele próprio crente, fiel e consciente
do simbolismo inerente ao edificado.
Iniciando as suas instruções pelo templo cristão, Carlo Borromeo
começa, assim, por aconselhar a existência de uma relação estreita entre o
bispo e o arquitecto: «Quando se pretende edificar uma igreja, em primeiro
lugar deve eleger-se o local mais apropriado, de acordo com o juízo do
bispo e o conselho do arquitecto que aquele tenha designado e aprovado»,
no que diz respeito às «restantes normas relativas ao tipo de construção, à
boa realização das paredes e à sua robustez, ao revestimento ou às
coberturas e demais questões análogas, segundo a classe de igreja que se
quererá construir e segundo as características da região e lugar» 649.

No Capítulo II do Livro I – pese embora não condene, como alguma


historiografia fez crer, a planta circular – toma claramente partido pela
planta longitudinal em cruz para o templo cristão: «A planta mais criteriosa
para o edifício, utilizada destes os tempos apostólicos de forma quase
ininterrupta é a que apresenta a forma de cruz, como se observa nas santas
basílicas romanas maiores, erguidas desta maneira. É verdade que o tipo
de edifício redondo foi utilizado antigamente nos templos pagãos, mas é
menos habitual entre o povo cristão. Por conseguinte, qualquer igreja e
sobretudo aquela que requer uma espécie singular de planta, deverá
preferencialmente edificar-se de tal forma que seja à semelhança da cruz.
Pode ser múltipla e oblonga ; esta é usada mais frequentemente ; as outras
são menos comuns» 650.
«E esta mesma igreja, semelhante a uma cruz, tendo uma, três ou
cinco naves, pode utilizar múltiplas proporções e medidas. Deve ter duas
capelas separadas da capela-mor, construídas de um e de outro lado, as
quais, traçadas à semelhança de braços, sobressaiam do todo do edifício
da igreja, segundo a sua amplitude, e por fora sejam proeminentes» 651. A
igreja deve, igualmente, ser suficientemente ampla para abrigar não só a
população local mas também visitas de fiéis em festas solenes.

648
Carlo Borromeo, Instrucciones..., pág. 2.
649
Carlo Borromeo, Instrucciones..., pág. 4.
650
Carlo Borromeo, Instrucciones..., pág. 6-7. Avisa-se ainda que ao construir-se qualquer templo, seja de
uma igreja ou catedral se deve atender primeiro à planta longitudinal mas «quando, por conselho do
arquitecto, o local exige outra forma de edifício que não possa ser assim, então que a estrutura da igreja
se faça de acordo com o modo prescrito por ele, depois de comprovado pelo juízo do bispo».
651
Carlo Borromeo, Instrucciones..., pág. 7-8.

345
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

No que concerne ao local deve ter-se em conta que o sítio onde se


quer edificar a igreja esteja algo elevado sobre os demais pois «se o local
for totalmente plano que se construa sobressaindo de tal modo que,
construída a igreja, ela se destaque por três ou no máximo cinco degraus.
Pelo contrário, se a natureza do local nem sequer isso permitir, por não ter
nenhuma parte que sobressaia dessa maneira, proporcione-se. Na
estrutura das bases da igreja, tal auxílio, de modo que uma vez traçadas ao
alto superem aquela planície natural, na forma que ao pavimento da igreja
se aceda por aqueles três ou cinco degraus» 652. É sempre preferível que o
templo se isole do seu meio ambiente, por muros ou outros artifícios e que
se escolha uma zona nobre do local, longe de imundícies.

As directivas «borromáicas» passam depois a ocupar-se do exterior e


ornamento do templo cristão. No que diz respeito ao exterior e ao seu
sistema decorativo, aconselha a que nas paredes laterais e ábside não se
represente nenhuma imagem pintada ou esculpida, a não ser na fachada, e
que «no pio ornato do frontispício, de acordo com a razão da estrutura
eclesiástica e com a magnitude do edifício, o arquitecto deve zelar para
que nada de profano apareça, e que o que convém à santidade se
represente de acordo com as facilidades» 653. Neste particular, que nas
igrejas paroquiais se represente invariavelmente a imagem da Virgem
Maria com o menino Jesus ao centro, ladeada pelo patrono da igreja e pela
figura venerada pelo povo local 654. Aconselha ainda a que «na construção
e na decoração da igreja das capelas e qualquer outra parte que tenha
relação com o uso e o decoro da igreja, não deve expressar-se ou
representar-se nenhuma coisa que seja alheia à piedade ou à religião, nem
profano, disforme, torpe, ou obscena ou que, enfim, ostentando
magnificência mundana ou distintivos de família, ofereça a aparência de
uma obra gentia».
Por fim, defende a magnificência da fachada referindo, contudo, que
se deve atender a que as janelas sejam quadrangulares, «como as que
apreciamos nas basílicas mais antigas», que iluminem bem o interior do
templo, podendo ser circulares na parte superior e em número ímpar
lateralmente 655.

652
Cfr. Carlo Borromeo, Instrucciones..., pág. 4.
653
Carlo Borromeo, Instrucciones..., pág. 8.
654
Não deixa de referir às directivas imagéticas quando afirma que «agora, por decreto tridentino e pelas
constituições provinciais o bispo deve ter cuidado acerca das imagens sacras que pia e religiosamente
devem reproduzir-se, como também se propõe uma grave pena ou multa aos pintores e escultores para
que não se afastem das regras prescritas ao reproduzir aquelas coisas». Cfr. Carlo Borromeo,
Instrucciones..., pág. 38-39.
655
Carlo Borromeo, Instrucciones..., pág. 11-12.

346
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

No que diz respeito ao interior, a este se deve aceder por três portas,
se a magnitude da planta o permitir, e numa igreja de cruz latina deve
compor-se por nave com capela-mor que «deve erguer-se na cabeça da
igreja em local mais elevado axialmente à porta principal» e que «a parte
posterior se oriente em linha recta a Oriente» ou então a Sul, caso seja de
todo impossível, destacando-se da nave com o elevar do pavimento 656.
No caso de ser «mester edificar numerosos altares e a igreja
construída em forma de cruz, que conste de ábside e tenha duas delas
como braços, pelo que um e outro braço serão locais aptamente
convenientes para se edificar altares, ao lado direito e ao lado esquerdo,
se houver espaço, de acordo com a medida da latitude abaixo
determinada». Assim, toda a igreja, seja de uma ou de três naves, deve
incluir uma capela-mor destacada e elevada em relação ao resto do corpo
do templo e «construir-se outras capelas com altares, para além dos dois
que se situam nos braços, e poderão edificar-se ao longo, de um e outro
lado da nave; a não ser que estejam demasiado próximas das que estão nos
braços, cada uma dessas capelas, do lado direito ou do lado esquerdo,
deve edificar-se de tal forma que onde haja mais do que uma nave, estejam
a meio da nave em cujo extremo se encontram. Mas se a igreja for de uma
só nave, construa-se ao centro do espaço entre a capela-mor e o ângulo da
igreja, de tal forma que diste da capela-mor pelo menos dois codos, a não
ser que o tipo de edifício exija um espaço maior por causa da gravidade da
carga que sustém e a forma da planta» 657. Refere ainda a necessidade de o
coro se encontrar fechado e isolado dos fiéis.

O autor faz também especial menção aos mosteiros para religiosas,


afirmando que devem ser edificados isolados da comunidade, tendo em
conta a clausura, e que a sua igreja seja «de tal modo que conste de uma só
nave, virada para Oriente, se for possível, de acordo com o local do
mosteiro. Seja ampla segundo a medida do sítio, com tecto abobadado ou
artesoado, construída com as demais coisas de acordo com o prescrito»
mas desaconselhando a edificação de capela-mor e que se faça «uma
parede de través que divida o interior do exterior, onde o sacerdote faça o
sacrifício» e nessa parede se «apoie o altar edificado no meio dela» 658.

Em nenhum lugar Carlo Borromeo condena a utilização das ordens


arquitectónicas clássicas, de origem pagã, apresentando m o seguinte
argumento em relação à sua utilização: «Não se proibe, de facto, que com
vista à solidez da construção (se o tipo de arquitectura assim o requerer)
se façam alguns trabalhos em estilo dórico, jónico, coríntio ou obra de

656
Carlo Borromeo, Instrucciones..., pág. 15-16.
657
Carlo Borromeo, Instrucciones..., pág. 21.
658
Carlo Borromeo, Instrucciones..., pág. 85-86 e 91-111.

347
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

semelhante sorte» 659. Está claramente assumida a utilidade e a leitura cristã


da arquitectura antiga que a própria tratadistica italiana, com Sebastiano
Serlio à cabeça, fez da simbologia estética das ordens.

É, desde logo, interessante articular a posição anterior com o


comentário de Schlosser que parece contrariar aquela ideia: «Nenhum dos
moralistas, tão preocupados com o rigor eclesiástico, se escandalizaria com
a tendência inegavelmente pagã que desde há muito tempo dominava a
teoria e a prática da arquitectura italiana. Isto é muito próprio da
mentalidade destas gerações, que se sentiam mais descendentes dos
romanos que nenhuma outra» 660. É certo que existe um reconhecimento,
em linha de continuidade, desta longa tradição cultural e é igualmente
verdadeiro que a teoria arquitectónica, baseada no princípio de autoridade
de Vitrúvio, vê a ordem arquitectónica como caracterizadora do edifício.
Todavia e pese embora todo o esforço empreendido na defesa da
planimetria centralizada como ideal para o edifício cristão durante todo o
Renascimento, consubstanciado em São Pedro de Roma, o modelo ideal do
templo cristão mais usado é já, mesmo antes da Contra Reforma,
organizado a partir de uma planta longitudinal, e neste sentido, com maior
valência para o modelo albertiano de Santo André de Mântua do que das
tipologias florentinas de Brunelleschi. Assim, se por um lado, se mantêm
fiéis a uma arquitectura de raiz culturalmente pagã, não deixam de ter em
conta o lado prático deste modelo bem como a sua utilidade litúrgica ao
mesmo tempo que procedem à sua simplificação, para a qual muito
contribuiu a Contra Reforma – por exemplo na unificação espacial
promovida pelo abandono da divisão do templo em naves.

5.1.3.2. O templo cristão segundo Pietro Cataneo

O arquitecto e engenheiro militar Pietro Cataneo (1510-1569) nasceu


em Siena e foi discípulo, tal como Sebastiano Serlio, de Baldassare
Peruzzi. Trabalhou como engenheiro de fortificações na sua região natal
tendo publicado em Veneza, no ano de 1554, o tratado «I Quattro Primi
Libri di Architettura» 661, devedor aos escritos de Francesco de Giorgio
Martini – que embora permanecendo manuscritos foram amplamente
conhecidos especialmente pelos especialistas em questões relacionadas
com a arquitectura militar – e aos próprios textos de Serlio. Uma edição

659
Carlo Borromeo, Instrucciones..., pág. 113.
660
Julius Schlosser, La literatura artistica..., pág. 369.
661
A edição de 1554 inclui apenas os primeiros quatro livros, sendo o livro terceiro mais reduzido, não
tratando dos templos antigos mas apenas do templo cristão.

348
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

mais completa do seu escrito e dividida em oito livros foi publicada,


também em Veneza, no ano de 1567. Cataneo foi o último dos tratadistas
italianos a estudar e reunir num mesmo escrito a arquitectura civil e a
arquitectura militar que, a partir da segunda metade de Quinhentos,
começam a ser tratadas separadamente 662.

O seu tratado na sua versão de 1567 inclui oito tomos reunindo toda
a tradição teórica italiana da época. Podemos dividir o seu texto em dois
grupos distintos: as propostas teóricas e ideais acerca da cidade, do palácio
e do templo cristão bem como do seu ornamento, e as questões práticas,
quer as relacionadas com os materiais de construção quer as que atendem
ao desenho arquitectónico.

No primeiro grupo integra-se o primeiro, terceiro, quarto e quinto


livros. O Livro 1º trata da «boa qualidade que convém eleger o sítio da
edificação da cidade, com vários e diferentes desenhos de plantas segundo
as regras da Perspectiva, primeira das ciências na qual se deve tornar
perito o arquitecto». Versa essencialmente acerca da edificação da cidade
cristã principesca, da sua organização e defesa, propondo diversos modelos
ideais como a cidade pentagonal, hexagonal ou heptagonal, aludindo a toda
a formação moderna quando se refere aos castros e campos romanos da
Antiguidade. Na mesma linha, o Livro 4º trata de várias planimetrias para o
palácio da cidade, apresentando uma série de tipologias destinadas quer ao
palácio real até às habitações nobres de um gentil-homem. Segue-se-lhe
outro dedicado às questões estilísticas das ordens arquitectónicas onde o
autor, partindo do texto de Sebastiano Serlio, se propõe a corrigir
determinadas imperfeições que encontra na leitura serliana da métopa
dórica e em alguns capitéis e bases por ele consideradas.
No que concerne às questões de ordem prática, o Livro 2º trata dos
materiais de construção – desde a natureza dos materiais como a pedra e a
madeira ao uso de técnicas como o estuque e o esmalte – enquanto que o
Livro 6º se dedica a demonstrar a importância da água e dos banhos na
edificação da cidade. Os dois últimos tomos versam, por sua vez, as
incontornáveis temáticas dos fundamentos da Geometria (Livro 7º) e da
Perspectiva (Livro 8º) para um bom entendimento do desenho
arquitectónico.

Interessa-nos aqui destacar as questões relacionadas com o Livro 3º,


«no qual se trata de diversas formas de templos tanto antigos como
modernos e como o principal da cidade deve reservar o decoro da religião
cristã e se convenha fazer em cruz e de diferentes plantas de onde se tiram

662
Dora Wiebenson, Los tratados de arquitectura..., pág. 71-73.

349
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

alçados através da Perspectiva». Pietro Cataneo reflecte as novas


orientações tridentinas defendendo a versão cruciforme do templo cristão,
partindo da identificação da Cruz como símbolo da Redenção.

Começa por afirmar que o povo cristão deve «meter todo o esforço e
indústria na magnificência, riqueza e nas boas proporções dos templos»
pois, se os Romanos e Gregos e outros povos apostaram nestas condições
para glorificar os seus deuses, maior dever e responsabilidade têm os
cristãos, «tendo conhecido a verdadeira luz», tratar dos seus templos como
comemoração de Jesus Cristo. É no Capítulo XIII que o autor discorre
sobre «como o principal templo da cidade, querendo conservar o decoro
da religião cristã convém fazer-se de cruz, à semelhança de um corpo
humano bem proporcionado»: «Embora os antigos atribuíssem ao
principal templo da cidade forma tetragonal, quadrada, circular, oval,
octangular (...) temos para nós Cristãos, morto o filho de Deus sobre a
cruz, depois de tal morte, para comemoração da nossa redenção, querendo
conservar o decoro da religião cristã, convém e sempre em nosso débito
convirá também em forma de cruz fabricar o principal templo da cidade».

Deve assim ficar consignado o principal edifício religioso da cidade


à planta em cruz latina, devendo o povo cristão «tomar as medidas do
templo, atribuindo o lugar de sua divina cabeça o vão para a capela-mor,
na qual os sacerdotes celebram o seu culto, e no lugar do seu bem amplo
peito seja deixado o vão para a principal tribuna, a partir do qual se
movem os braços, no extremo dos quais, em lugar das suas liberalíssimas
mãos, um entrada lateral se poderá fazer e em lugar de seus pés, sempre
vivos de caridade, uma ou três, até cinco entradas segundo as naves e
capacidade que houver (...) que vem quase ao meio o corpo se poderá de
qualquer dos lados deixar uma entrada, de modo que as duas se
confrontem». Aconselha ainda a que a sacristia e os campanários devam
realizarem-se «sobre os ombros ou de um ou dos dois lados da capela-
mor» 663.
As proporções seriam, assim, as do corpo humano de Cristo, o mais
perfeito dos homens. Pietro Cataneo parte do paradigma renascentista do
Homem como «medida de todas as coisas» mas insere-o não num círculo
mas numa cruz latina, símbolo máximo da imagética contra-reformista.
Não deixa de propor nos capítulos subsequentes alguns modelos ideais para
igrejas de uma, três e cinco naves com as respectivas dimensões e os seus
usos particulares. Não obstante, não descarta a planta centralizada do
templo redondo pois considera que é necessária variedade e o uso de
diversas planimetrias no caso de a cidade suportar vários templos.

663
Pietro Cataneo, L’Architettura, fls. 74-75.

350
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

5.1.4. A Companhia de Jesus

5.1.4.1. O «modo nostro» contra o «estilo jesuítico»

Historiograficamente está posta de lado a ideia de que os Jesuítas


criaram um estilo novo ou, por outras palavras, prescreveram objectivos
estilísticos. Autores como Vallery-Radot ou Braun provaram a inexistência
de um «estilo jesuítico» previamente pensado a partir de Roma como um
gosto oficial a ser seguido por todas as províncias em termos artísticos e
arquitectónicos. No entanto, «a tendência dominante do desenho das igrejas
jesuítas mostra, contudo, uma tendência comum, mais que uma estratégia
deliberada, para criação de espaços de carácter homogéneo e funcional,
com naves principais simples e capela-mor contrastante, claramente
visíveis de qualquer ponto da igreja» 664, bem de acordo com as ideias
borromaicas.

No mais recente estudo sobre a arquitectura jesuíta portuguesa,


Fausto Sanches Martins refuta a designação afirmando, todavia, que «se é
certo que já não se pode continuar a utilizar a expressão de estilo jesuíta,
está igualmente clara que, no interior da Companhia, sempre se usou a
fórmula Modo Nostro, não como um desejo de identificação estilística, mas
como expressão de fidelidade a critérios próprios que deveriam ser
observados nas construções das casas, colégios e igrejas da Instituição» 665.
As preocupações centravam-se em valores de utilidade, austeridade,
higiene e fidelidade à «pobreza» religiosa. Isso mesmo queria dizer, a título
de exemplo, o padre Acquavia quando recomendava que «as construções
por nós estabelecidas sejam adaptadas aos nossos usos religiosos, que
sejam simples, salubres, funcionais, e que não dêem testemunho em
nenhuma das suas partes desejo de surpreender, nem pelos materiais, nem
pelo estilo. Que esta seja a razão da sua edificação e não para o fausto
nem para suscitar admiração» 666. Esta é a substância do «modo nostro».

Na pretensão de velar pelo conjunto de valores representativos do


«modo nostro», a Companhia de Jesus na II Congregação Geral de 1565
ordenou que a partir daí todos os projectos para edifícios «inacianos»,
impreterivelmente, passassem por Roma para rectificação. Todas e
quaisquer modificações da planta e alçado, a escolha do local de edificação
e o andamento das fábricas, tudo teria de ser comunicado à «casa-mãe». De
facto, segundo Sanches Martins, os «Superiores Gerais da Companhia
mostraram-se rigorosos neste ponto e sempre que se omitia esta informação

664
Cfr. George Kubler, A arquitectura portuguesa chã..., pág. 59.
665
Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios jesuítas de Portugal: 1542-1754, pág. 883.
666
Citado em Arquitectura del Renacimiento en España. 1488-1599, pág. 349.

351
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

acerca do lugar, chamavam a atenção e obrigavam que lhes fosse enviada


nova planta com o lugar minuciosamente legendado, indicando as ruas e a
direcção dos ventos». Porém, esta circunstância não impediu que sempre
existisse uma «flexibilidade e adaptação à evolução artística de cada época,
ao meio geográfico, às tradições arquitectónicas locais, às disponibilidades
económicas» 667.

Analisando a documentação referente a São Roque de Lisboa na


década de 60, Paulo Pereira pode facilmente identificar um certo espaço de
liberdade concedido provincialmente: «Primeiramente, constatamos a
intervenção moderada de Roma, pouco dirigística ainda, apesar da
Congregação de 1565 obrigar a submeter à aprovação do Geral todos os
planos de casas da instituição que se quisessem erguer. Embora a
aprovação romana fosse necessária, e apesar de circularem modelos da
responsabilidade da Companhia, o percurso criativo é inverso ao
geralmente creditado pelos historiadores jesuíticos: a criação começava na
Província e seguiria para aprovação; só depois, caso se revelasse
necessário, se procedia a ajustamentos» 668.

De outro modo, a relação entre Roma e as províncias jesuítas, cada


vez que exerce maior controlo, tenta igualmente promover uma maior
simplificação processual. Uma das nações que receberam um documento
de orientação geral neste mesmo sentido foi precisamente o império
castelhano, sob o título de «Instructión para el uso de las traças de los
edificios de nuestra Compañia que se embian a España»:
«Las traças comunes que aquí se han hecho de los edificios de
nuestra Compañía se embían por los Procuradores a esas Provincias para
que tengan con ellas instructión y luz de la forma que aquí juzgamos devan
communemente tener nuestros edificios y deseo nos den a su tiempo aviso
si en particular hallaren alguna inconveniencia, para que se vayan
perfecionando para el fin que se pretiende, de que aya en la Compañía
alguna uniformidad en esta parte, y se ahorre tiempo y gasto de escribir
tantas vezes a Roma para significar en particular la forma que pretendem
tener en los edificios que en diversas Provincias se avíam de hazer; y así
podrán usar de las dichas traças de aquí adelante con las limitaciones
siguientes:
1. Primera, que, offreciendose causa y comodidad para edificar, el
Padre Provincial, después de avello tratado con sus Consultores,
nos escriva pidiendo licencia para hazer el tal edificio, según la
regla del officio del Provincial, significãndonos los razones y causas

667
Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., pág. 884.
668
Paulo Pereira, «A Arquitectura Jesuíta. Primeiras Fundações», Oceanos, pág. 104.

352
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

para ello le mueven, y la comodidad que se offrece para hazerlo sin


dudas, y esperará la respuesta que de acá de le embiare.
2. Que en el modo del tal edificio nos signifique si será del como
conforme a algunas de las dichas traças, y a quál dellas.
3. Si por ventura uviere de ser el edificio por alguna causa diferente en
algunas cosas de momento de las dichas traças, significará en
particular las cosas en que uviere de ser diferente, referíendose al
original de la traça que acá queda, para que por ella entendamos
mejor la diversidad; y añadirá lás razones, con brevedad, por las
quales les parece convenga apartarse en aquellas cosas
De Roma, primero de Enero 1580» 669.

Por fim, resta referir que a própria existência de religiosos


especializados em arquitectura nunca impediu que a Companhia de Jesus
recorresse a arquitectos profissionais estranhos à Ordem, responsáveis por
importantes fábricas espalhadas por todo o mundo, nem invalidou um
controlo rigoroso da construção supervisionada por um elemento
especializado ou entendido em questões de arquitectura. Este aspecto é
importante na medida em que não se tratava apenas de um provedor de
obras atento a questões financeiras ou ao cumprimento dos prazos
construtivos. Inspeccionava a fábrica, o trabalho dos pedreiros e do próprio
mestre de pedraria, preenchendo assim um lugar entre o mestre construtor e
o rigor do cumprimento do projecto.

5.1.4.2. A «casa-mãe» jesuíta: Vignola e o «Gesù» de Roma

A consequência mais importante da Contra-Reforma para a


arquitectura foi a prioridade da construção longitudinal sobre a construção
de planta centrada – ideal para a cultura renascentista – de nave única em
semi-penumbra que desemboca num espaço central inundado de luz e
rematado por cúpula, privilegiando o sentido vertical e onde os elementos
arquitectónicos dissolvem o seu carácter unicamente funcional em favor de
uma profundidade de campo, criando uma indeterminação espacial de
sentido místico. Este novo modelo encontrará o seu manifesto em 1568
com a edificação do «Gesù» em Roma, da autoria de Vignola, protótipo
intensivamente repetido pelas igrejas «inacianas» por todo o mundo.

Arquitecto emiliano que trabalhou longos anos para os Farnese,


Giacomo Barozzi da Vignola (1507-1573) foi convidado para projectar a
casa-mãe da Companhia de Jesus em Roma, um dos edifícios mais
referenciados em toda a história da arquitectura ocidental. No «Gesù» o
669
Reproduzido em Paulo F. Santos, «Contribuição ao estudo da arquitectura da Companhia de Jesus em
Portugal e no Brasil», Actas do V Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, pág. 524.

353
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

arquitecto fixou o modelo de templo cristão contra-reformista, destinado


essencialmente a servir, o revisionismo da prática religiosa no que diz
respeito à predicação e devoção e a funcionar como paradigma estético-
simbólico da Igreja Católica. Não deixa de ser consensual que o modelo no
qual o arquitecto se inspirou foi a igreja de Santo André, em Mântua,
riscada por Leon Battista Alberti, também uma tentativa de reinterpretação
da basílica cristã primitiva.

A proposta «vignolesca» baseia-se numa longa nave única, vazia e


despojada, arrumando lateralmente um sistema de capelas devocionais num
esquema que privilegia a funcionalidade e o simbolismo, concentrando no
âmago da intersecção dos eixos longitudinal e transversal – composto por
um transepto pouco pronunciado – um foco de luz iluminando o peito e
alma do corpo divino de Jesus Cristo transposto para a planimetria.
Segundo Giulio Carlo Argan, «para deixar vazia e livre a nave, Vignola fez
com que todos os membros estruturais se retirassem das paredes. A
profundidade obscura das paredes contrapõe amplos troços de muro em
plena luz, com altas pilastras que unem os vãos laterais ao espaço vazio
central e sugerem um impulso ascensional. À estrutura quinhentista que
distribuía os elementos sustentantes no espaço, sucede assim a parede
articulada e plástica, que será o tema construtivo fundamental da
arquitectura barroca» 670. O sistema arquitectónico preocupa-se em
proporcionar artifícios lumínicos nunca antes conseguidos, distribuindo
uma luminosidade ténue mas uniforme ao longo da nave enquanto que pela
cúpula os raios de luz plasmam uma luminosidade irreal de uniformidade e
plenitude plena de leitura simbólica 671.

Simbolismo, funcionalidade, simplicidade são agora a tríade de


valores máximos para uma arquitectura religiosa pós-tridentina onde a
faustosidade é substituída pela nudez e a planimetria sujeita ao carácter
utilitário, sintetista e delimitatório do espaço sagrado. Se a planimetria do
«Gesù» inspirará numerosas construções religiosas, proporcionando um
modelo revisitado pelos jesuítas e outras ordens religiosas, a própria
fachada vignolesca do templo, modificada pelo arquitecto lombardo
Giacomo Della Porta, não deixou de suscitar a mesma atitude, arrumando
os elementos arquitectónicos exteriores num sistema ordenado e coeso.

670
Giulio Carlo Argan, Renacimento y Barroco..., Vol. 2, pág. 252.
671
Cfr. Pevsner, Breve historia de la arquitectura europea, pág. 203.

354
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

5.2. Portugal e a Contra-Reforma

5.2.1. O contexto nacional da Reforma católica

O sentimento por parte da Igreja Católica da necessidade de uma


reforma institucional e doutrinária, que se sente já a partir dos meados do
século XV, não deixou de passar por Portugal. Pese embora as importantes
reformas eclesiásticas, realizadas essencialmente nos reinados de D.
Manuel e D. João III 672, a verdadeira reforma da Igreja Católica dá-se após
o Concílio de Trento que, como vimos, se prolongou desde 1545 até 1563.
O contributo português para a reforma conciliar tridentina foi, a todos os
títulos, brilhante, como se constata pelos principais intervenientes enviados
a Itália. Entre 1545-1549 participam os dominicanos frei Jorge de Santiago,
frei Jerónimo de Azambuja e frei Gaspar dos Reis bem como o bispo do
Porto D. Baltasar Limpo. Em 1551-1552 marcam presença o bispo de
Silves D. João de Melo e Castro, D. Diogo da Silva, Diogo de Gouveia,
Diogo de Vasconcelos e João Pais. No último ciclo, entre 1561-1563, para
além do bispo de Coimbra D. João Soares e do bispo de Leiria D. Gaspar
do Casal destacam-se dois dominicanos de nomeada, frei Francisco Foreiro
considerado «o maior orador do concílio» e o inexcedível frei Bartolomeu
dos Mártires 673.

A divulgação da nova ortodoxia eclesiástica contará essencialmente


com a acção do cardeal-infante D. Henrique e do arcebispo de Braga, D.
Bartolomeu dos Mártires 674. Logo a 12 de Setembro de 1564, D. Sebastião,
através de mão regente, transforma os decretos tridentinos em leis
nacionais, ordenando a sua tradução e publicação. Na sequência de Trento,
realizam-se por toda a Europa católica numerosos sínodos diocesanos e
concílios provinciais tendo como objectivo comum aplicar as suas regras
fundamentais. Logo em 1565 realizam-se quatro importantes reuniões em
Évora, Abrantes, Lamego e Lisboa e neste mesmo ano publicam-se as
«Constituições Synodaes do Arcebispado de Evora» por iniciativa de D.
João de Melo e Castro, um dos participantes do Concílio. Em 1568 são
dadas à estampa as «Constituições Extravagantes segundas do Arcebispado
de Lisboa», apadrinhadas pelo próprio D. Henrique, seguindo-se os textos
constitucionais do Porto em 1585, por iniciativa do bispo D. Marcos de
Lisboa, e de Coimbra em 1591, pela mão de D. Afonso de Castelo Branco.

672
Recorde-se que D. João III tinha já restaurado em Portugal uma das mais importantes e aterradoras
armas da Contra-Reforma, o Tribunal do Santo Ofício, em 1536. O cardeal-infante D. Henrique será a
personalidade central ligada à sua instalação a partir de 1541 nas mais importantes cidades portuguesas.
673
Veríssimo Serrão, História de Portugal, vol. IV, pág. 288-290.
674
Para um resumo do impacto da Contra-Reforma em Portugal consulte-se Maria de Lurdes Fernandes,
«Da reforma da Igreja à reforma dos cristãos: reformas, pastoral e espiritualidades», História Religiosa de
Portugal, Vol. 2, pág. 25-38.

355
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Já na centúria seguinte – em 1634 (publicadas em 1697) – o arcebispo D.


Sebastião de Matos e Noronha faz publicar a versão definitiva das
«Constituições Sinodais do Arcebispado de Braga» 675.

É importante recordar que Portugal sempre se manteve próximo da


Igreja Romana, sem grandes problemas no que dizia respeito ao papel
central e fulcral que o Catolicismo desempenhava na vida nacional. Nunca
existiu, igualmente, um ambiente de afronta, sob o ponto de vista político
ou cultural, à efígie apostólica-romana tal como nunca existiu uma corrente
que alinhasse abertamente com o Protestantismo, discutindo-se apenas
questões relacionadas com a dupla leitura do «erasmismo». Mesmo a
expulsão dos Judeus teve muito mais a ver com problemas extra-religiosos
do que com qualquer causa teológica. Os ciclos eruditos renascentistas
portugueses nunca «paganizaram» a marca cristã da cultura e arte nacionais
com uma defesa exaltada dos valores antropocêntricos e simbólicos da
Antiguidade. É necessário, pois, ser razoável na apreciação destas questões.
Se por um lado existiu uma certa liberdade, se se quiser, de feição erudita
em círculos restritos e no consumo de obras ditas «heréticas», essas
questões foram resolvidas dentro desses mesmos círculos – dos quais os
processos aos mestres do Colégio das Artes de Coimbra são amplamente
exemplificativos.

No contexto artístico, as poucas informações que dimanam das


constituições diocesanas portuguesas fazem especial menção ao privilégio
pelo culto da Virgem Maria e culto do Santíssimo Sacramento – sendo que
a primeira confraria surge logo em 1539 em Penafiel – bem como às
procissões do Corpo de Deus e do Espírito Santo e a todo um controlo mais
restritivo no que tocava à iconografia católica. Mesmo a continuação de
determinadas iconografias muito pouco «tridentinas», como a de S.
Cristóvão, por exemplo, são fruto de crenças e circunstâncias regionais e
não punham em causa o «decoro» artístico-estético já praticado e defendido
pelo espírito católico português.

Todavia, não deixaram de se documentar casos que reflectem bem o


espírito contra-reformista naquilo que contém de mais ortodoxo, levando à
mutilação e mesmo completa destruição de imagens pintadas e esculpidas.
Flávio Gonçalves deu-nos a conhecer alguns exemplos da execução directa
tridentina sobre a imagem. Refere o paradigmático caso da igreja de São
Francisco de Évora, onde uma tábua de Garcia Fernandes representando S.
Miguel com uma figura desnudada foi substituída por uma mancha de cor,
bem como o desaparecimento e/ou mutilação de algumas esculturas
675
Para uma síntese destes assuntos veja-se Marília João de Castro, «Reflexos estéticos e iconográficos da
Sessão XXV do Concílio de Trento nas Constituições Sinodais portuguesas», Museu, pág. 157-185.

356
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

representando temáticas como a Nossa Senhora da Expectação ou a Nossa


Senhora do Leite 676. Mesmo uma obra encomendada para a matriz do
Monte da Caparica ao pintor régio Domingos Vieira – dada as dúvidas
suscitadas por determinadas inscrições que poderiam ser mal interpretadas,
se tomadas parcialmente – foi destruída pelo próprio encomendante,
receando uma nova crítica do visitador. Nesta circunstância, o próprio
Tribunal do Santo Ofício tomou posições a favor do «decoro» iconográfico,
como prova a cobertura a tinta preta de diversas legendas e figuras de um
Ecce Homo da igreja de Santa Justa de Lisboa, em 1657 677.
Na mesma linha, Vítor Serrão aponta o caso de obras repintadas
segundo as normas contra-reformadas como o primitivo retábulo da igreja
de Jesus em Setúbal, onde «o grupo choroso da Virgem e das Santas
Mulheres, desfalecidas na sua dor, foi oculto sob grossa repintura, sendo
representadas as mesmas figuras de pé, hirtas e firmes, dominando
corajosamente o intenso sofrimento, como estipulavam os teólogos de
Trento», mas também a admoestação e destruição de trabalhos de pintores
régios como Fernão Gomes e os painéis que realizou para o Mosteiro da
Anunciada em Lisboa 678.

Desta forma, num país esmagadoramente católico como Portugal, a


Contra-Reforma faz-se sentir como um alento para uma maior vigilância às
regras iconográficas e uma maior severidade na aplicação das mesmas.
Como concluiu Flávio Gonçalves, «proibiam-se e mandavam-se destruir,
ou modificar, as imagens de feição profana e impúdica, as sujeitas a
confusões heréticas, ou consideradas de pouca dignidade religiosa. Os
bispos, os visitadores de cada diocese, os funcionários da Inquisição, e o
clero em geral, velavam para que nos templos se não conservassem, obras
dos tipos agora condenados. Em igrejas de todo o país se picaram ou
esconderam antigos frescos, se apearam retábulos, se enterraram, rasparam
e substituíram painéis» 679.

As directivas tridentinas não deixaram de se estender à arquitectura.


Existe pouca informação literária disponível, mas os exemplos seguintes
são bem ilustrativos. Logo em 1589, nas Constituições Sinodais redigidas
pelo bispo de Portalegre D. frei Amador Arrais, que permaneceram
manuscritas, se regista que o templo cristão deve ser «do tamanho que
caibam nella todos os fregueses, bem madeirada e telhada, guarnecida e
com luz sufficiente, boas portas e fechaduras e que tenha capella
proporcionada, campanairo e syno e adro distincto e demarcado, os

676
Cfr. Flávio Gonçalves, História da Arte. Iconografia e Crítica, pág. 115.
677
Flávio Gonçalves, História da Arte. Iconografia..., pág. 123-126.
678
Vítor Serrão, A pintura maneirista em Portugal, pág. 114-115.
679
Flávio Gonçalves citado em Vítor Serrão, A pintura maneirista..., pág. 115.

357
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Altares firmes e bem feitos da grandura conveniente, com taboleiros e


degraos» 680.

Por seu turno, o arquitecto régio Mateus do Couto na sua «lição» de


arquitectura de 1631, manifestava uma opinião clara e inequivocamente
consubstanciada pelos ideais tridentinos 681. Referindo-se ao templo cristão,
no Capítulo 11º do Livro II, depois de definir o cânone antropomórfico
renascentista e a consequente defesa da planta de cruz latina não deixa de
afirmar: «Quero eu, podendo ser, os façamos de modo, que quando,
entrarmos plas portas das Igrejas vejamos todos os Altares do corpo do dto
Templo, sem embaraço nenhum. E será grande comodidade escuzaremse
nelle Naues, e os obstaculos das colunas, e pilares. E poderá ser o q digo,
fazendose os ditos Templos de hua só Naue; e hauendo Capellas pelo
perlongo do corpo da Igreja, fazellas á face, e de modo que se vejão todos
os Altares». A opção é evidente: um sistema arquitectónico de nave única
apreciando a visualidade total e imediata desde a entrada, evitando a
divisão e ambiguidade espacial. Defende igualmente que os templos se
destaquem, «se leuantem da terra o mais que o sitio der lugar: porque
assim mostrão mais magestade», podendo por vezes, «pa leuantar os taes
edificios, e fazellos magestozos, porlhes hum soco por baixo, em torno, e
alem deste soco os fazer magestosos, serue muitas vezes de não
desproporcionar as alturas dos corpos». Ainda que «nunca façamos
pequenas as Capellas Móres, porq nellas ha sempre mais seruiço do que
imaginamos» e que a luminosidade espacial do edifício conduz o crente à
devoção – pois «determinase quanto ha nellas, e diuertensse mtas vezes as
pessoas de outros pensamentos, e só o tem naquillo q vem», contrariamente
ao espírito anterior para quem a escuridão era sinónimo de fé.

Mais do que as palavras, os edifícios dominicanos construídos sob o


jugo de D. frei Bartolomeu dos Mártires em Viana do Castelo e, por
extensão, em São Gonçalo de Amarante e a arquitectura dos Jesuítas em
Portugal denunciam claramente o «novo mundo arquitectónico» contra-
reformado.

680
Citado por João Francisco Marques, «As formas e os sentidos», História Religiosa de Portugal, Vol.
II, pág. 467-468.
681
Sobre Mateus do Couto veja-se capítulo neste trabalho.

358
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

5.2.2. A Companhia de Jesus em Portugal

O português Simão Rodrigues, um dos braços direitos de Santo


Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus, foi o primeiro a
instalar no seu próprio país a milícia jesuíta. Depois de ter sido fundada em
Roma no ano de 1540, uma dezena de jesuítas ocupam dois anos depois, o
Mosteiro de Santo Antão-o-Velho em Lisboa para em 1546 ser fundada em
terras lusas a primeira Província «inaciana» em todo o mundo. Graças à
protecção de D. João III, a instalação dos jesuítas em Portugal foi
meteórica, em virtude da ascendência que desde logo ganhou junto da
Corte e especialmente de D. Henrique. Desempenharam um papel fulcral
no ensino quer a partir de Évora, onde dominam a Universidade, quer em
Coimbra, onde tomam conta do Colégio das Artes, para além da célebre
«Aula de Esfera» do Colégio de Santo Antão de Lisboa, onde no seu
externato se formaram cartógrafos, pilotos e militares.

Sob o ponto de vista arquitectónico, logo no ano de 1542 é fundado


em Coimbra o primeiro colégio da Companhia seguido em 1551 pelo
eborense Colégio do Espírito Santo que, a partir de 1559, se transforma em
Universidade. Na capital do reino, a casa professa de São Roque e o
primeiro colégio onde os jesuítas deram aulas públicas, o Colégio de Santo
Antão, são inaugurados no ano de 1553. O poder dos «apóstolos» – como
ficaram conhecidos em Portugal pela sua dedicação ao catecismo cristão e
à sua divulgação – plantarizou-se por todo o país fundando instituições em
Braga (1560), Bragança (1561), Funchal e Angra do Heroísmo (1570),
Ponta Delgada (1591) e Faro (1599), continuando na primeira metade da
centúria seguinte com Portalegre (1605), Santarém (1621), Porto (1630),
Elvas (1644) e a ilha do Faial (1652).

Se os «inacianos» ficaram conhecidos por um lado, pela sua


disciplina, rigor e ortodoxia catequista e, por outro, pela sua flexibilidade e
capacidade no «catolicizar» as mentalidades, crenças e hábitos gentios no
seu processo de evangelização mundial, a sua arquitectura parece reflectir
esta mesma realidade. É dado adquirido que a Companhia de Jesus não
criou um estilo arquitectónico novo mas a casa-mãe romana, o célebre
«Gesù» de Vignola, forneceu um modelo inspiratório base, embora nunca
tenha funcionado como uma regra fixa ortodoxamente defendida. Uma
breve análise às planimetrias dos templos jesuítas é o bastante para
evidenciar a diversidade de modelos adoptados pelos jesuítas em todos as
partes do mundo, algumas delas aproveitando as declinações e tendências
regionais arquitectónicas bem à maneira da própria mentalidade jesuíta.

359
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Todavia, são inegáveis três factos importantes. Em primeiro lugar, os


Jesuítas seguiram e concretizaram grande parte das directivas dimanadas do
Concílio de Trento. Em segundo lugar, montaram um sistema centralizado,
a partir de Roma, que coordenava e aprovava qualquer medida referente à
construção de edifícios sagrados. Toda e qualquer decisão teria que passar
pela autorização superior representada pelo Geral em Roma e pelos seus
especialistas. Em último lugar, e de uma forma geral, o modelo romano de
edifício é adaptado aos templos das localidades mais relevantes sempre que
as condições financeiras o permitiam. Neste sentido, não deixa de fazer
sentido que a própria Companhia de Jesus, bem como os historiadores
especializados em assuntos «inacianos», falem num «modo nostro». Tudo
isto se torna visível na realidade portuguesa.

A Companhia de Jesus sempre possuiu especialistas em arquitectura


que tinham como primeira função a supervisão das obras em construção, o
que não invalida que alguns deles tenham inclusive projectado importantes
edifícios 682. Em Portugal, os padres João Delgado 683 e Baltasar João 684
desempenharam estas funções em vários edifícios «inacianos» mas merece
destaque o padre Silvestre Jorge (1526-1608) 685, com intensa actividade
neste período, chegando a supervisionar obras por todo o país e a realizar
projectos arquitectónicos para o Porto e Bragança. A existência deste
espólio interno por parte da Companhia não impedia que se recorresse aos
mais importantes arquitectos da época para assegurar uma qualidade
projectiva superior. Nesta perspectiva, a presença de Diogo de Torralva
(Évora), Diogo de Castilho (Coimbra), Baltasar Álvares e Filippo Terzi
(Lisboa), Mateus do Couto (Santarém) e de Mateus do Couto, sobrinho,
(Portalegre) como projectistas de obras arquitectónicas prova claramente
que o pêndulo cai para o lado exterior à Companhia. O mesmo acontece
quando se recorre aos arquitectos régios para vistorias importantes, como
se prova pela presença de Diogo Marques Lucas e Mateus do Couto em
relação às obras de Santo Antão em Lisboa.

682
Para além do interesse das respectivas instituições no restrito controlo das obras que edificavam,
existiam outras razões para a abundância de religiosos a praticar e mesmo teorizar acerca da arquitectura.
Uma delas foi sagazmente apontada por Lorenzo de San Nicolás no seu Arte y uso de Arquitectura,
publicado entre 1633-1664, e resultava do facto de disporem de tempo e comodidade para estudar, bem
como de livros. Esta situação é bem visível em Portugal onde as maiores livrarias de literatura artística se
ligam a instituições religiosas.
683
Foi um dos importantes professores da «Aula de Esfera» mas aparece igualmente documentado, não
como arquitecto, mas como supervisor de obras. Até 1607 teve a seu cargo a fábrica de Monte Olivete,
sendo à altura substituído pelo arquitecto Baltasar Álvares, e com a morte de Silvestre Jorge, aparece-nos
ligado ao colégio de Coimbra.
684
É o substituto do padre João Delgado e, contrariamente a este, tinha uma sólida formação artística
tendo riscado em 1605 o retábulo da Capela da Universidade de Coimbra. Veja-se Lopes de Almeida,
Artes e ofícios em documentos da Universidade, Vol. 1, pág. 33-34.
685
Biografado em primeira mão por Fausto Sanches Martins.

360
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

5.2.2.1. A arquitectura jesuítica portuguesa: da «church-box» ao


modelo romano

É nesta perspectiva que aqui se faz referência, sinteticamente, a


alguns dos mais importantes modelos arquitectónicos edificados pelos
«apóstolos» entre a segunda metade do século XVI e a primeira metade do
século XVII centrados, por um lado, no nascimento de um modelo
«nacional» definido como «church box» e, por outro, na reprodução da
tipologia romana e italiana de planta de cruz latina. Como observou Horta
Correia, «a superação quer das igrejas-salão quer das igrejas de três naves
só se faz com a criação, entre nós, de uma nova tipologia da igreja de
espaço unificado, com origem nacional, através do ministério da
Companhia de Jesus» 686. Mas, mais do que isso, será o modelo «romano»
de planta de cruz latina com nave única, transepto e capela-mor profunda
que imporá, em Portugal, o novo modelo de pendor «clássico».

*
Dois modelos de «church-box»: igrejas do Espírito Santo de Évora e
São Roque de Lisboa.

5.2.2.1.1. Colégio do Espírito Santo de Évora

D. Henrique patrocinou a entrega aos Jesuítas dos Estudos Gerais


eborenses, iniciando-se a compra de terrenos para a implementação de um
novo complexo em 1550 para, pouco tempo depois, em finais de 1554 se
promover a mudança para as novas instalações 687. Com a morte de D. João
III, o cardeal-infante transforma o colégio em Universidade, inaugurada a 1
de Novembro de 1559.

Inicialmente os mestres que ergueram a monumental estrutura


colegial foram os régios «Mestres de Obras da Comarca do Alentejo»,
Manuel Pires (1565-1570) e Afonso Álvares (1570-1575). Não obstante, o
primeiro mestre pedreiro documentado a trabalhar na fábrica é António
Álvares. A 21 de Julho 1559 688 diz-se que «em quamto durarem as obras
do collegio que o cardeal Iffante dom Anrique, meu muito amado e prezado
tio, manda fazer na cidade dEuora, de que tem carego Antonio Alluarez,
caualeiro fidallgo de sua caza, lhe seiam dados e apenados os oficiaes e
trabalhadores, careiros, careteiros, allmocreues e barqueiros, que o dito
686
Horta Correia, Arquitectura..., pág. 52.
687
Na escolha do lugar interviu, provavelmente, o padre arquitecto castelhado Bartolomé Bustamante,
dado que aparece mencionado em textos relativos à fundação colegial – «del sitio y edificio escrivira
exactamente passando por alla Bustamante que es arquitecto». Cfr. Sanches Martins, A arquitectura dos
primeiros colégios..., Vol. 1, pág. 213.
688
Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo I, pág. 492-493.

361
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Antonio Alluarez pedir e ouuer mister pera com seus oficios e misteres
seruirem nas ditas obras e os que nela trouxer ocupados asi no aranco e
careto da pedraria e alluenaria que se pera as ditas obras arrancar e
acaretar lhe não serão tomados nem apenados pera outra obra nem
seruiço allguu nem lhe serão tomadas as caretas que nas ditas obras
seruirem».

Entre 1565 e 1570 Manuel Pires encontrava-se a trabalhar na


delimitação da cerca colegial e na obra do dormitório 689 – a porta encerra a
data de 1565 que deve apontar para o início da fase construtiva. A imensa
informação coligida por Fausto Sanches Martins nos arquivos jesuítas
romanos indica que entre 1556 e 1561 se edificou o pátio central ou «pátio
das escolas» com a sua colunata de mármore e as respectivas salas de aula
690
. Não obstante as modificações posteriores, de todo o complexo
arquitectónico o «claustro dos gerais» mantém ainda as proporções
quinhentistas e grande parte da sua colunata, sabendo-se que o edifício
colegial contava em 1580 com um total de setenta e duas colunas. Do
mesmo modo, a primitiva «sala dos actos» foi iniciada em finais de 1559
691
tendo sido sagrada em 1574.
Com a conclusão do «pátio das escolas» a atenção volta-se para a
zona vivencial da comunidade. O refeitório iniciado por Manuel Pires foi
na sua maior fatia edificado por Afonso Álvares e encontrava-se concluso
em 1579 692. Monumental, de planta rectangular, o refeitório é um dos
melhores momentos arquitectónicos de toda a fábrica com duas naves de
nove tramos divididos por arcaria assente em colunas toscanas de mármore
– sendo que a abóbada original era de estuque e fora concluída em 1589.
Cerca de 1591 dimanavam ordens directas de Roma para terminar logo o
dormitório e iniciar uma nova «sala dos actos» – «una aula muy espaciosa
para actos publicos sobre el quarto de la entrada de las escuelas segun la
traça que se dara por ser cosa mui principal commoda y illustre que aun
falta en aquel edificio y universidad» – e que a antiga passasse a «Geral de
Teologia» 693.

No colégio eborense trabalhou igualmente o mestre jesuíta Silvestre


Jorge. Entre 1576 e 1580 está na cidade como «prefeito das obras»
assinando em 1578 a traça para o Hospital da Universidade 694,
conservando-se as respectivas plantas na Biblioteca Nacional de Paris –
quatro projectos de reduzidas dimensões que dizem respeito ao «Andar de
689
Inventário Artístico de Portugal. Concelho de Évora, pág. 82.
690
Cfr. Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 1, pág. 211, 217 e 220.
691
Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 1, pág. 216.
692
Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 1, pág. 244.
693
Cfr. Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol 1, pág. 247.
694
Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 1, pág. 744.

362
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Sima» e ao «Andar de baixo» do edifício, identificadas como «Traça do


hospital da Universidad de Evora echo por el Padre Silvestre Jorge».
Tornará à cidade para projectar o «corredor e dormitório» colegial –
certamente um acrescento – segundo documento de 23 de Dezembro de
1595, concluído em 1597 695.

Numa análise sucinta quanto acertada à planimetria colegial, Paulo


Pereira enunciou os princípios base da regência jesuíta: «Disciplina e
contenção é o que se depreende de uma percepção ainda que superficial da
arquitectura dos edifícios do Colégio e Universidade levantados no período
de prosperidade da Companhia». Acima de tudo caracterizada pela sua
funcionalidade, à quadratura disposta em quatro lanços de salas de aula
unem-se duas outras estruturas articuladas por dois pátios interiores – o da
Botica e o dos Irmãos. «Assim, os edifícios do Colégio partem de um
esquema cruciforme que vai admitindo adições ou acrescentos modulares
sem conflitos com construções pré-existentes» 696.

No contexto deste trabalho, interessa-nos particularmente a igreja,


projectada antes mesmo da própria casa-mãe jesuíta romana.

Segundo o cronista Baltasar Telles, com D. Henrique como grande


timoneiro, «logo se resolveo em fazer outra igreja, & como em tudo era
tam grandioso, determinou de a fazer tal, que parecesse obra digna de
quem a mandava fazer, & do Senhor pera quem se fazia : & assim nos
cõsta, que seus primeiros intentos foram edificar hum templo, que
igoalasse na grandeza a igreja do mosteyro dos Padres de Sam Francisco
da cidade de Evora, que he obra suntuosa, & por isso mui parecida com
seu magnifico fundador, que foy o felicissomo Rey Dom Manoel, pay do
Serenissimo Infante. Nossos mesmos Padres o dessuadiram de tam
grandiosos pensamentos» 697. Se não se cumprirá a majestosidade, tomar-
se-á, contudo, como inspiração a planimetria franciscana.

A 4 de Abril de 1566 698, o padre Leão Henriques informava o Geral


romano acerca da autoria do projecto do templo eborense:
«Ha concedido se haga una yglesia en el Collegio de Évora de una
nave que tiene de ancho cinquo bracas, y de largo XV. Sin lo que ocupan
diez capillas que se hazen de uma parte y otra esta hecho el deseño, y
695
Cfr. Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 1, pág. 745.
696
Paulo Pereira, «A Arquitectura Jesuíta. Primeiras Fundações», pág. 107.
697
Baltasar Telles citado em Paulo F. Santos, «Contribuição ao estudo da arquitectura da Companhia de
Jesus em Portugal e no Brasil», pág. 528.
698
Publicado por Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. II, pág. 50.

363
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

luego manda dar 250$000 cada mes para la obra de la Iglesia, y para se
continuar el quarto que se haze al Architecto del Rey que haze estos
desseños, alabo el Padre Luiz el de la Iglesia dessa casa, desea verlo,
diximos le que lo pidiriamos, y por que lleva muchas vezes trabajo en
muchas cosas holgaríamos demostrarle gratitud en esta, si pareciesse a V.
P.».
Partindo desta fonte romana, Fausto Sanches Martins correctamente
concluiu – com consequências que não deixaram de causar algum espanto
pela sua absoluta novidade – que a planta inicial da igreja só poderia ter
sido riscada por Diogo de Torralva. Miguel de Arruda tinha falecido à três
anos, Torralva estava encarregado da emblemática obra tomarense e era, à
altura, «Mestre de Obras da Comarca do Alentejo» (1548-1566). Não
obstante, pouco ou nada deve ter observado o mestre português dado que
em Setembro desse mesmo ano era já falecido. A cerimónia oficial de
colocação da primeira pedra realizou-se a 4 de Outubro de 1567.
Como é apanágio em qualquer obra construtiva da época, em 1569
D. Henrique «ha ordenado com que nuestra iglesia se hagua com mucho
calor y mudado algunas cosas en la traça que tienen aora mas a preposito
nuestro» 699. Não deve entender-se que tenham sido impostas grandes
alterações ao risco inicial mas, em boa verdade, mudanças de pormenor
para aconchegar o edifício ao «modo nostro» tão caro aos jesuítas, como o
documento assim o indica.

Seria certamente óbvio pensar-se em Afonso Álvares como o mestre


construtor, mas tal não veio a acontecer. A 9 de Outubro de 1570 700 o
«mestre de obras do colégio» Jerónimo Torres afirmava que «hera verdade
q baltesar frz q ds aja morador que foj nesta cidade devora ttomara de
empreitada pa se fazer por mãdado do cardeall ifamte ha obra da igreja do
esprito samto da companhia de jesus» a treze dias do passado mês de
Fevereiro. Em virtude do seu falecimento, Jerónimo Torres 701 e o pedreiro
Afonso Fernandes apresentavam por este documento, obrigação e fiança
para a continuação da empreitada.
Efectivamente, o responsável pela fábrica será Jerónimo Torres e a
obra correu célere. Sabe-se que a 31 de Janeiro de 1571 as capelas laterais
se encontravam perto da conclusão e que se iniciava a abóbada 702 –
terminada no ano seguinte. A 22 de Março de 1574, na presença de D.

699
Segundo carta do padre Serrão ao Geral romano, publicada em Sanches Martins, A arquitectura dos
primeiros colégios..., Vol. 2, pág. 51.
700
ADE, Cartório Notarial de Évora, Livro 178, fls. 88-90vº. Citado em Túlio Espanca, «Nova
Miscelânea», A Cidade de Évora, pág. 100. Leitura nossa.
701
Jerónimo Torres foi o construtor do contíguo Colégio da Purificação, segundo contrato redigido no
ano de 1577, «comforme a traça que Sua Alteza lhe te dado», obra que ainda se fazia pelo ano de 1582 e
pela qual recebera até aí 55.000 reais. Cfr. Túlio Espanca, «Nova Miscelânea», pág. 101.
702
Cfr. Fausto Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 1, pág. 230.

364
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Henrique, do inquisidor-mor D. António Teles de Meneses e de D. Afonso


de Castelo Branco sagrava-se o templo com pompa e circunstância, tendo-
se dispendido durante os seis anos de construção trinta mil cruzados 703. A
24 de Julho de 1575 704, Jerónimo Torres dava quitação final de 416.031
reais sobre obras realizadas entre 1570 e 1575.

Algumas obras prolongaram-se pelas décadas seguintes, como nos


informa uma nota de Outubro de 1599: «hizose de nueuo em el (colégio)
vna sacristia obra muy lustrosa y accomodada, com q tãbien se dio
servetia para la Iglesia, estucarounse 4 casas de la porteria ; la obra de la
sacristia no se hizo de la renta del collegio, sino de los rendimtos deputados
pa la fabrica de la Iglesia» 705.

Diogo de Torralva inspirou-se na planta longitudinal e rectangular de


São Francisco como ponto de partida para «debuxar» a do Espírito Santo.
Não deixa de ser criteriosa a ligação que Paulo Pereira faz das intenções de
D. Henrique e das soluções primevas que se tentam adaptar ao espírito
contra-reformista, como no caso eborense, afirmando que «o facto em si,
como ressonâncias ideológicas, aponta para a manutenção de uma tradição
ao moderno da prática projectiva. São os espaços devocionais da Idade
Média que servem os desígnios da Contra-Reforma, ajustando-se à forma
de riscar dos mestres portugueses, que inseriam apontamentos da teoria
das ordens como processo de classicização da arquitectura, ou da sua
maquilhagem por roupagens ao romano, numa interessante simbiose de
processos e culturas» 706. Ora, esta é uma realidade incontornável para as
décadas de 60 a 80, até à imposição definitiva do modelo «romano» de cruz
latina.

No seguimento de outros historiadores, Horta Correia concordava


com o facto de «a filiação da sua planta estará na Igreja de São Francisco
da mesma cidade, não só por conhecido desejo expresso de D. Henrique,
como pela identidade flagrante de soluções. São Francisco, do gótico final,
tem uma nave única abobadada, capelas laterais intercomunicantes
formando duas delas um falso transepto e uma galilé exterior de
características singulares» 707. Nasce aqui a variante das «church-boxes»,
tipologia que será aplicada pelos jesuítas em algumas das suas igrejas e que
703
Inventário Artístico de Portugal. Concelho de Évora, pág. 81-82. Já a 11 de Abril do dito ano o padre
Jorge Serrão descrevia a igreja como «muy rica e bien acabada», por altura da trasladação do Santíssimo
Sacramento. Cfr. Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 1, pág. 52.
704
ADE, Cartório Notarial de Évora, Livro 190, fls. 69-70. Já citado em Túlio Espanca, «Nova
Miscelânea», pág. 101. Veja-se igualmente Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios...,
Vol. 1, pág. 237.
705
Cfr. Francisco Rodrigues, História da Companhia de Jesus..., Tomo II, Vol. 1, pág. 534.
706
Paulo Pereira, «A Arquitectura Jesuíta. Primeiras Fundações», pág. 106.
707
Horta Correia, «A arquitectura – maneirismo e estilo chão», pág. 112.

365
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

George Kubler muito destacou como o modelo que «trouxe,


definitivamente, para Portugal, a arquitectura desornamentada», vendo-o
como «expressão portuguesa» 708.
A sua descrição é paradigmática do valor que o historiador lhe
atribuiu: «Nesta igreja, pela primeira vez em Portugal, a nave principal foi
tratada como uma sala, unificada por uma abóbada de berço. A abóbada
assenta numa cornija contínua em redor dos quatro lados dessa câmara.
Uma outra cornija ininterrupta separa, mais abaixo, as arcadas da nave dos
coretti, que abrem sobre esta como se fossem janelas. O efeito produzido
lembra um pátio abobadado e rodeado por fachadas de rua com arcadas e
janelas nos andares superiores. Aparece a distinção entre a nave como sala
e as paredes celulares circundantes, numa fórmula daqui em diante
característica da maioria das igrejas portuguesas» 709.
Ainda segundo o mesmo autor, patrocinam para este espaço unitário
da nave a redução do número de capelas laterais, sendo que cada uma
semelha um «arco triunfal de três vãos, repetindo a composição tripartida
da parede traseira da capela-mor, porque a entrada da capela é ladeada de
arcadas mais pequenas que penetram os suportes e que criam acessos
secundários». Saliente-se que esta fórmula foi utilizada por Diogo de
Torralva no claustro de Tomar no primeiro registo.

Uma das particularidades do templo jesuíta é a importância e função


dada às tribunas que Baltasar Telles destaca, como bem observou Paulo
Pereira, quando descreve as festividades da sua abertura ao culto 710, ao
mesmo tempo que declara estarmos «perante uma sensibilidade festiva
maneirista à qual o arquitecto responde com soluções de eminente
utilitarismo». «Quanto à galilé, não é de afastar a hipótese de haver servido
a momos ou outras representações teatrais ou para-teatrais que então se
realizassem; ou de haverem servido de apoio a festas processionais, dando
continuidade a tradições manuelinas alentejanas. Sabe-se, aliás, que as
empenas laterais do Espírito Santo (segundo afirma Túlio Espanca) foram
concebidas, no projecto inicial, para terem terraços destinados a receber
fiéis durante as procissões ; a ideia não seguiu avante e cobriram-se de
708
George Kubler, A Arquitectura Portuguesa Chã..., pág. 61.
709
Cfr. George Kubler, A Arquitectura Portuguesa Chã..., pág. 61-62.
710
«Pelas tribunas estavam repartidas várias figuras, que representavam Anjos muy ricamente vestidos,
os quaes começaram a seu tempo a representar seus ditos, em louvor da festa : & o que mais agradou
foy, apparecerem de repente estes Anjos ao entrar do Sanctissimo Sacramento, correndose em todas as
tribunas as cortinas que os encobriam (sahindo a festejar o Senhor, que também vinha encuberto com as
cortinas dos sagrados accidentes) & como estavam muy acompanhados de lumes, causaram huma muy
alegre vista, que parecia representaçam da gloria, porque o ouro fino, & pedraria rica, de q estavam
ornados aquelles Anjos. Acabada a pratica dos Anjos, depositouse o Senhor no Sacrario, tomando posse
pacífica d’aquella lua caía, que com a presença de tam divina Magestade ficou com nova graça, & cheya
de todo o bem, como da entrada no seu Templo que lhe fundou Salamón, disse a Escritura, a Gloriá
Domini implevit domum». Citado em Paulo Pereira, «A Arquitectura Jesuíta. Primeiras Fundações», pág.
107.

366
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

telha» 711. A teatralidade contra-reformista encontra nestes exemplos uma


forma concreta de realização de catequismo em formato espectacular.

O exterior apresenta-nos a estranha solução de dois corpos, o


primeiro com nártex avançado e cinco arcos à fachada, tal como S.
Francisco, e um recuado segundo registo com entrada tripartida de vãos
rectangulares encerrados em arcos cegos – correspondendo aos cinco vãos
do nártex – dupla cimalha superior descontínua e coroamento em frontão.
Os alçados laterais manifestam a falsa ilusão de três naves no interior sendo
a central elevada em relação às demais e promovendo, como observou
Kubler, uma «solução românica» na colocação das duas torres na
retaguarda do templo. A iluminação interior é realizada lateralmente por
janelões rectangulares e axialmente acrescentada por dois óculos
diametralmente opostos. Não quebram a unidade espacial da «church-box»
quer as capelas cripto-laterais eliminadas da quadratura da nave única, quer
o coro com arcaria tripartida assente em colunas toscanas, ou a elevação
dos últimos dois arcos das capelas ao nível do arcaria do altar-mor que
funcionam como um falso transepto. Em suma, uma solução original para
um edifício «moderno» mas experimental e de natureza não-tratadística.

5.2.2.1.2. Igreja de São Roque de Lisboa

A 1 de Outubro de 1553, os jesuítas tomavam posse da ermida de


São Roque, iniciando a fundação da casa professa no mesmo ano do
Colégio de Santo Antão. Segundo rezam as crónicas, o concurso das gentes
foi tal que a situação em pouco tempo revelou a urgente necessidade de se
edificar edifício de raiz. «Sabendo El Rey os discommodos com que os
Padres estavam na sua nova habitaçam, e que nam tinham igreja
sufficiente pera os muytos que nella já os buscavam, assim pera as
confissões como pera as pregações, se determinou pello amor que tinha à
Companhia a lhe fundar no sitio de Sam Roque huma igreja tam magnifica
e huma casa tam grandiosa que disese bem com a grande generosidade de
seo real e majestoso animo» e «pera isso encomendou logo ao seo mays
estimado arquitecto que considerado o sitio fizesse hum desenho, assim do
templo como do edificio pera morada dos Padres, que nam fosse inferior
às obras mays insignes dos Reys seos predecessores» 712.

711
Cfr. Paulo Pereira, «A Arquitectura Jesuíta. Primeiras Fundações», pág. 107.
712
Cita-se o cronista anónimo da primeira metade do século XVIII, que segue quase literalmente o
cronista Baltasar Telles, segundo o texto publicado em História dos Mosteiros, Conventos e Casas
Religiosas da Cidade de Lisbôa, Vol. 1, pág. 220-221.

367
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

A ideia inicial foi aproveitar a ermida que «tomada ao comprido, que


era de Oriente a Poente, ficasse servindo de cruzeyro e capella-mor, e que
de Norte a Sul se acrescentassem em comprimento oitenta palmos, que
corriam do lugar onde hoje está o pulpito até à porta que agora he a
principal da igreja. Traçada assim se deo principio a ella no anno de
1555», tendo sido a primeira pedra colocada pelo padre João Nunes
Barreto. Fausto Sanches Martins encontrou na documentação romana a
presença de Silvestre Jorge em 1560 como «prefeito das obras» afirmando-
se que tinha «cargo delas obras desta casa de S. Roque ya salhido buen
arquitecto y entiende bien de traças y obras e tiene buen juizio» 713. Não
obstante, o seu papel não foi de modo algum decisivo, como prova toda a
informação subsequente.
George Kubler levantava a hipótese de o «mays estimado arquitecto»
de D. João III se tratar ou de Diogo de Torralva ou de Afonso Álvares 714.
Seja como for, a documentação existente prova, de facto, que a planimetria
final se ficou a dever a Afonso Álvares.

No ano de 1566, «vendo os Padres que a extensam que tinham feyto


na ermida nam era bastante a receber os auditorios que nos buscavam,
trattaram de fazer nova igreja com a capacidade sufficiente, e pera isso se
abriram os alicerces com intento de ser de tres naves, mas com melhor
conselho se resolveo no anno seguinte que fosse só de huma, e desfeytos os
primeyros fundamentos se abriram outros na forma que se tinha assentado,
que eram os mesmos em que hoje se acha» 715.

Uma carta do padre Miguel de Torres ao Geral Francisco de Borja,


datada de 9 de Fevereiro de 1568 716 elucida-nos sobre as várias propostas
tidas em conta para a planimetria da igreja e, igualmente, sobre a opção
definitiva:
«Este edificio de la iglesia de S. Roque al principio se trató que fuese
de tres naves, pero después pareció que era más capaz y más concertado
siendo de sola una nave, y conforme a esta intención se truxeron de Roma
ciertos deseños. Mas después, viendo la dificultad que avía em allar bigas
tan largas como son menester para el maderamiento de 80 palmos que
tiene esta iglesia de ancho, tratóse de que la nave del medio fuese grande
de 44-45 palmos y las dos de los lados podiam servir como coros, para que
desde allí huiesse la gente los sermones y missas, de la manera que stava
la iglesia de Valladolid; y conforme a este modo, que parecía bien a
713
Fausto Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 1, pág. 746-747 e Vol. 2, pág.
743. Aí se encontrará de novo pelos anos de 1601 e 1601.
714
George Kubler, A Arquitectura Portuguesa Chã..., pág. 63.
715
Cfr. Historia dos Mosteiros, Conventos e Casas Religiosas..., Vol. 1, pág. 222-223.
716
Publicada em Paulo F. Santos, «Contribuição ao estudo da arquitectura da Companhia de Jesus em
Portugal e no Brasil», pág. 517-518.

368
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

muchos, iva corriendo el edificio. Ahora al P. Provincial, conforme al


parecer del arquytecto del rey y de otro principal oficial carpintero
(Francisco Dias), le haa parecido que se lleve el deseño de antes, que es de
ser de una sola nave, y para la falta de bigas tan complidas dizen que con
madera desta misma tierra se puede hazer, enxeriéndolas. Yo dixe que ésta
es invención nueva, de que el arquitecto ni el official tiene experiencia de
que se haga echo en otra parte, y que no es bien que se prueve en nuestra
iglesia; y quisieron dezir que el P. Manuel Godiño avía traído de Roma, de
cómo se podia hazer assí, de madera enxerida. Después se entendio dél
que las traças que él truxo de allá no era de madera enxerida. V. P. vea
sobre esto lo que se á de hazer, y mande que se hagua información si
pondrá ser cosa segura enmaderar esta iglesia con esta madera enxerida,
porque después los que dan las lismonas para el edificio no digan que son
mal empleadas en nosotros, pues las guastamos sin aquella consideración
y ponderación que conviene, y cerremos la puerta a que no se nos den
otras para lo que uviéramos menester y fuere necesario».

Por sua vez, a 4 de Maio de 1569 717 escrevia para Roma o padre
Manuel Godinho, falando na qualidade de quem concorreu para a dita
mudança da planimetria e explicando-se: «Porque mi intento solamente
fué, ny el ánimo se me pudiera estender a más, que mudarse y cesar del
intento que se llevava de la iglesia ser de tres naves con sus pilares,
supuesto que de lo hecho en ella se no tenía deshazer cosa de importancia,
como a la verdad no fuera necesario, si del modo que la capilla maior
llevava se uvieron contentado, como el Provincial y Padres con el
architecto en principio asentaron hazerse y proceder la obra. Pero poco
después, por les descontentar el modo de la capilla mayor, que llevava dos
pilares mui gruesos y quatro arcos que dél nascían, dos uno de cada lado
para lo ancho de la iglesia, y los otros dos que venían a fechar en la
capilla mayor, juzgó el architecto, y pareció bien a todos, ser mui mejor y
más provechoso escusar aquellos dos pilares, en que aun no estava hecho
más de hasta diez palmos en alto, y darse otra forma a la capilla. Y con
este asiento se puso el arquitecto con orden del cardenal a rehazer la traça
que la iglesia llevava, reduziéndola a ser de una nave, para lo qual se vino
a resolver en ella ser necesario no deverse tener cuenta con lo hecho de
nuevo en las capillas, y perderse antes da hechura, especialmente porque,
estimándose lo que en ello se podría perder, que podría ser como hasta
600 cruzados, com la guanancia desta mudança de la obra para una nave
se aforravan aún más de dos mil cruzados, porque todos los materiales
buelvem a servir, acomodándose un poco algunos de los cantos o pedraría,
para com la demás, en que no se toca, venga toda a aprovecharse. Y asy
717
Publicada por Paulo F. Santos, «Contribuição ao estudo da arquitectura da Companhia de Jesus em
Portugal e no Brasil», pág. 520.

369
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

por la ventaje de la mudança como por la certeza que ya se tiene de isla de


Madera, de aver y poder traherse de allá los leños de sedro y de otra
buena surte dellos para el maderamiento, de una nave, parece estáren
todos contentos y satishechos, y con razón parece lo devrán estar».

Apesar de tudo, o padre Miguel de Torres não desarmava e escrevia


de novo para Roma – a 14 de Maio 718 – acusando o padre Provincial de ter
chamado «un architecto que es de los mejores que aqui ay, pero no es
hombre que me parece que tenga esperiencia de los edificios antigos ny de
los de fuera del reyno, y púsola en sus manos para que él hiziese como le
pareciese, casi atapando la boca a todos los de casa para que no hablen en
ello nada. Y él ála mudado a que sea de una nave de ochenta palmos en
ancho, derribándose mucha cosa, que es todo lo que estava hecho de
pedrería, que es la mayor lástima del mundo, y com murmuración de los
mesmos officiales y specialmente del que tiene a cargo da obra, y con
desedificación de todos en ver que las limosnas que nos dan las gastamos
en hazer e deshazer; y lo que peor es, que el mesmo oficial dize que, siendo
de una nave, que no la asegura, por le parecer que las paredes non son
bastantes para ello; y del emmaderamiento ninguno parece que ay por acá
que tenga esperiencia ny aún de haver visto cosa semejante, con dezir que
á de ser engerido, por temer que no se hallarán vigas tan complidas como
es menester». Não deixa de pedir que Giovanni Tristano se desloque a
Portugal para resolver a contenda pois «podría ver tanbién el edificio de
Coymbra que se quiere començar, y la iglesia de Evora que se haze»,
temendo que tudo se perca e que «no sé como se puede bien llevar y aún
haver quedado todo en manos deste architecto, uno de los trabajos que
tiene el Hermano que anda sobre la obra, es en sacarle la traça de lo que
los officiales an de hazer».

Giovanni Tristano não veio a Portugal e Roma assevera mesmo que


«avrá architectos de Su Alteza que por ser más prácticos de esa tierra,
podrán dar mejor su parecer que Maestro Joán» e que se reunam «os
melhores arquitectos de Sua Alteza, e vejam se como vai a igreja leva
perigo; e se o não há, vá adiante de uma nave, como se começou, que
assim fazemos a nossa em Roma, tendo-a por melhor» 719. Se a junta se o
reuniu ou não é questão desconhecida, mas o certo é que a obra prosseguiu
nos termos em que D. Henrique, o Provincial e o padre Manuel Godinho a
tinham definitivamente aprovado.

718
Carta publicada por Paulo F. Santos, «Contribuição ao estudo da arquitectura da Companhia de Jesus
em Portugal e no Brasil», pág. 521-522.
719
Missivas do Geral aos padres Miguel de Torres e Luís Gonçalves da Câmara. Cfr. Paulo F. Santos,
«Contribuição ao estudo da arquitectura da Companhia de Jesus em Portugal e no Brasil», pág. 522-523.

370
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

O papel de Afonso Álvares é também ele incontornável à luz da


documentação, como prova a carta do padre Francisco Henriques a Luís
Gonçalves da Câmara ainda do ano de 1569, fazendo-se o ponto da
situação do estado da fábrica: «Com esta irá hum papel que cá tinha
Francisco Diaz, de huma asna que Affonso Alvarez riscou pera o
madeiramento de huma nave. Não sabe doutro que a fizesse. Outros avia
que creo fez Antonio Mendez, ele mesmo os deve ter, que cá não estão,
segundo diz Francisco Diaz 720.
O Cardeal com Affonso Alvarez se resolveo em que se fezesse de
huma nave, como V. R. sabe, depois de muitas alterações e consultas. E
dezia Afonso Alvarez que se vissem os aliceces e parecendo a Felipe
Bernaldes que não estavão bem seguros, se refundassem; e isto soo se
entende na parte dos confessionairos, que todo o mais estaa seguro
demasiadamente por rezão das capelas, grossura das paredes e muita
pedraria que levão.
Tambem pareceo a Affonso Alvarez que se podião reformar os
confessionairos de pedraria, porque tem muita alvenaria e pera ficarem
fortes e mais metido dentro o confessor como parecia necessario, porque
como agora estão ouve-se fora; e tambem pera que os confessores
podessem entrar nos confessionairos sem ir pelo corpo da igreja, fez o Pe
Manoel Godinho com parecer de Afonso Alvarez a traça que com esta vay
pera se ver este intento, que acerca do mais da mesma traça já não hé
tempo pelo muito que estaa feito.
Os pilares das capelas de huma banda estão já acabados com seus
capiteis e huma das capelinhas pequenas dos lados da capela-mor estaa
acabada de todo com sua abóbeda, e sobre a obra da pedraria acima dos
capiteis cerca de seis palmos e a alvenaria polas costas das capelas estaa
tam alta quanto há-de sobir o cume da abóbeda. Estão feitos dous nichos
hum que fica no cruzeiro e outro na capela-mor. Os arcos das capelas
começão a virar. E em principio de Fevereiro parece que estaram todas as
abóbedas desta parte fechadas. Dias há que o estaa a da tribuna que vem
junto do púlpito» 721.

720
Francisco Dias era o «mestre de obras», embora tenha ingressado na Companhia de Jesus como
«architectus». Cfr. Paulo F. Santos, «Contribuição ao estudo da arquitectura da Companhia de Jesus em
Portugal e no Brasil», pág. 526. No que diz respeito a António Mendes, trata-se certamente do célebre
mestre que substituirá Miguel de Arruda em São Julião da Barra e que labora no último terço do século
XVI no círculo régio.
721
Acrescentando que «este hé o estado da obra, conforme ao qual diz bem o Pe Doutor (Miguel de
Torres) que agora não pode deixar já de ser a igreja de huma nave, e vay tam bem feita e parece tam
bem já agora, que a todos fará apetite de a fazerem ir muito depressa. E eu tinha intento de procurar que
no ano de setenta se acabasse e capela-mor e as outras que estão por começar, e inda espero que possa
ser assim com ajuda de N. Senhor e favor de V. V. R. R.» Cfr. Paulo F. Santos, «Contribuição ao estudo
da arquitectura da Companhia de Jesus em Portugal e no Brasil», pág. 525-526. Registe-se a resignação
do opositor padre Torres dado o avanço da empreitada.

371
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Resumindo, o projecto pensado originalmente apontava para uma


igreja de três naves mas o padre Manuel Godinho, trazendo de Roma
aprovada uma planta de nave única, inicia a construção segundo a nova
orientação. O longo vão a preencher respeitante à cobertura fez com que se
tornasse pontualmente ao plano inicial, mas a firme opinião do padre
Godinho, do provincial Leão Henriques e de D. Henrique – tendo por base
a solução apresentada por Afonso Álvares – terminou definitivamente com
os argumentos do padre Miguel de Torres e o templo seria edificado tendo
por base uma planimetria de nave singular.

Ao certo sabemos que as fundações apenas se abriram a partir de


1566, sendo estas alteradas em 1567 por Afonso Álvares segundo as
directivas de D. Henrique, optando-se por uma planta de uma só nave e de
espaço unitário. Se existem notícias de que o templo se encontrava
disponível para a prática do culto religioso cerca de 1573, a fábrica estava
longe se estar concluída.
O anónimo cronista jesuíta ajuiza que, pese embora a peste dos finais
da década de 60 que atrasou a obra, «foram tantas as esmolas que
acodiram à Casa, que fazendo-se computo no anno de 1577 à despeza que
se tinha feyto, assim na fabrica da igreja como no edificio da Casa, se
achou que se tinham gastado setenta e sinco mil cruzados procedidos das
esmolas com que concorreram El Rey Dom Sebastiam, sua avó a Rainha
Dona Catherina, o Infante Cardeal e depoys Dom Henrique, e alguns
particulares.
Quando porem a obra corria com tanta prosperidade a interrompeo
a perda de El Rey Dom Sebastiam, e as calamidades e alterações que
juntas com o contagio sobrevieram e affligiram a Lisboa» 722.

Com a nova circunstância política, Filipe II não deixou de tomar em


atenção a conclusão dos trabalhos da igreja de São Roque no ano de 1582.
O problema mais grave que se colocava dizia respeito à cobertura do
enorme vão da igreja: «Duvidando-se que as paredes della tivessem forças
pera sustentar o repuxo da abobeda e pezo della, se resolveo que o tecto
fosse de madeyra, e pera assim se fazer com mayor segurança e acerto
mandou El Rey Dom Phelippe, primeyro de Portugal, que se achava em
Lisboa, ao seo famozo arquitecto que tambem se achava na cidade, e foy o
que trassou a fabrica do sumptuoso templo de Sam Vicente e no Palacio
Real a insigne obra da sala em que se recebem as embayxadas, que
vulgarmente se chama a Casa do Forte por se ter fundado sobre os
fundamentos de hum que no sitio se intentou fazer. E a este famoso
architecto mandou El Rey por fazer graça aos Padres de Sam Roque que

722
História dos Mosteiros, Conventos e Casas Religiosas..., Vol. 1, pág. 223.

372
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

traçasse a obra do tecto da igreja no melhor modo que a sua arte


alcançase» 723. Não existe, portanto, qualquer dúvida sobre quem traçou a
enorme estrutura de madeira que ainda hoje cobre a igreja de São Roque –
Filippo Terzi. Foi o próprio arquitecto italiano que fez da Prússia a matéria
prima para a sua construção 724.

A fachada de São Roque contou também com o debuxo de Filippo


Terzi, como se depreende pela carta do padre Pedro da Fonseca ao padre
Aquaviva, datada de 22 de Maio de 1586 725: «Atténdese agora a acabar la
frontaria de la iglesia, y porque en ella no responde lo de baxo al
frontespicio que el año pasado se acabó de hazer, se hizo um diseño por un
architecto italiano de Sa. Magestade (Filippo Terzi), que ha hecho el
diseño del frontespicio, y por el se añaden agora unos pedrestales
acostados al pie de los pilares junto a la tierra, porque estavan muy
símplices y sin ninguna arte. Y quanto al ornamento de lastres ventanas y
tres puertas, auname avía alguna dubda se sería cosa segura añadirlo todo
conforme al diseño, porque será menester entrar algo en el muro que está
muy cargado com el frontispicio, y quanto a las ventanas todos somos de
acuerdo que no se haga más que un ornato superficial, y aun (a) algunos
parecía que bastara ser de pintura afresco; todavía quanto a las puertas
no parece escusarse ni ay peligro alguno, porque según el diseño, no se
deshaze sobrearco alguno ni se entra en el muro cosa de momento, mas se
añadem certas medias columnas acostadas, con su alquitrave y
frontespicio mas sacada a fuera». Tratava-se, portanto, de fazer edificar o
portal triangular e os plintos das pilastras para embelezamento suave da
fachada.

Pela década de 80 procedia-se a trabalhos de embelezamento do


interior do templo. Na capela de São Roque, pelo ano de 1584, Francisco
de Matos executava a azulejaria de «grotescos» e de 1596 estão datados os
azulejos em ponta de diamante do reverso da fachada. O «estado da arte»
da fábrica de São Roque pode ser avaliado por uma nota inserta no
«Catálogo 3º que llaman de cosas de la Prouª de Portugal hecho en
Octobre de 1599». Nele se afirma que a casa professa tem 41 religiosos e
«tiene de obligacion vna missa quotidiana, por la donacion del Thesoro de
Reliquias q ay hecho el conde Don Juan de Borja : doraranse y ornaranse
3 capillas de la Iglesia ; hizieronse dos grades, vnas de comunion, y otras
de la Iglesia ; hizose mas larga la Capilla maior, y ornose de azulejos y

723
História dos Mosteiros, Conventos e Casas Religiosas..., Vol. 1, pág. 223.
724
Segundo Baltasar Telles citado em História dos Mosteiros, Conventos e Casas Religiosas..., Vol. 1,
pág. 224-225.
725
Publicado por Paulo F. Santos, «Contribuição ao estudo da arquitectura da Companhia de Jesus em
Portugal e no Brasil», pág. 529.

373
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

pinturas el cruzero, en las quales obras se gastaron quatro mil y quinientos


ducados» 726.

Valendo-nos, uma vez mais, das suas luminosas descrições, para


Kubler «a nave salienta, muito mais do que em Évora, o programa jesuíta
de um auditório concebido para os sermões. As capelas laterais comportam
tribunas que dão para a nave através de altas janelas formais. Existem dois
púlpitos, um em frente do outro, de cada um dos lados da nave, aos quais se
sobe por uma escada inserida na parede que separa as capelas centrais.
Estes púlpitos em sacada determinam uma cruz axial de maneira muito
mais evidente que o transepto, que apenas repete o ritmo determinado pelas
capelas. A compartimentação das paredes dos topos salienta mais
profundamente a divisão em dois pisos nas fachadas, como as de ruas
urbanas, com elementos verticais dominantes que ladeiam o altar-mor e que
aparecem na prumada dos púlpitos. O aspecto de fachada de rua também é
dado pela forte cornija que coroa as paredes da nave e pelos seus pesados
modilhões, semelhantes aos do Claustro de Torralva» 727.

Por sua vez, Paulo Pereira chama a atenção para dois aspectos
relevantes. Em primeiro lugar, a escolha de tal modelo «casava-se
inteiramente com o cliente e com o clima cultural da Contra-Reforma, que
descolava do humanismo renascentista e recuperava agora valores neo-
medievais. Aqui, este empirismo transformado numa atitude programática,
acabava de inventar uma nova tipologia para o templo católico». Por sua
vez, o «espaço interior articula-se por intermédio do eixo dos púlpitos,
denunciando a importância crescente da prédica no seio da renovação
católica e do papel por esta desempenhada na praxis da Companhia de
Jesus. As preocupações em tornar a nave num auditório estão assim bem
patentes neste programa. A retórica ganhava importância enquanto a
celebração religiosa ou de procissão podiam ser contempladas como um
espectáculo em si mesmo a partir das tribunas ou varandas da nave» 728.
Esta visão fá-lo dividir o templo em duas áreas perfeitamente delimitadas –
a capela-mor e capelas secundárias mais próximas como uma primeira
parte e uma outra ladeada pelos confessionários para trás dos púlpitos até à
entrada.

Cotejando as duas variantes, Horta Correia considera que «São


Roque oscilou entre um projecto de hallekirchen e um projecto de nave
única, enquanto Évora foi de início planificada como igreja de espaço
unificado à semelhança de São Francisco, o que teria consolidado e

726
Cfr. Francisco Rodrigues, História da Companhia de Jesus..., Tomo II, Vol. 1, pág. 581-582.
727
George Kubler, A Arquitectura Portuguesa Chã..., pág. 65.
728
Paulo Pereira, «A Arquitectura Jesuíta. Primeiras Fundações», pág. 105.

374
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

influenciado a concepção até aí autónoma da Igreja de São Roque. As


semelhanças flagrantes entre São Roque e o Espírito Santo, por um lado, e
o Espírito Santo e a igreja tardo medieval, por outro, são elementos
decisivos» 729.
O sistema aplicado em São Roque, definido por George Kubler como
«church box» consiste assim numa planimetria de nave única com capelas
intercomunicantes e sem transepto. Não alinhamos, contudo, pela opinião
que vê neste modelo uma «raiz e um sentido vernacular dignos de realce»
730
mas como uma solução erudita sob o ponto de vista estilístico e, bem
assim, economicamente consentânea e modelo sofrível de reprodução. De
facto, toda a estrutura das arcarias, as finas molduras arquitectónicas e
principalmente a cornija misulada superior que sustenta a cobertura
denunciam uma sobriedade e eruditismo tratadístico inexistente no modelo
eborense.

Quanto à autoria do projecto planimétrico da igreja, Paulo Pereira


considera que a iniciativa aprovada por todos foi de Afonso Álvares, sendo
que as críticas que Miguel de Torres lhe impunha diziam respeito ao facto
de o mestre português não ter ainda formação «clássica» ou «romana»,
apenas a maneira portuguesa de «traçar sem estilo», isto numa época em
que a classificação «estilística» está ausente: «Para Afonso Álvares, a
prática construtiva devia prevalecer ; depois – mas só depois – o edifício se
poderia configurar pela conveniência do ornamento, sem pressupostos
antiquizantes mas apenas morfológicos. Álvares conseguiu dar forma
deliberada a uma síntese sem precedentes, combinando a sintaxe
tradicional com uma morfologia nova, fenónemo a que o ciclo das igrejas-
salão portuguesas também deu forma». Não obstante, não deixa de
considerar que o interior – ou seja, o projecto altimétrico – «parece denotar,
no seu acabamento, a intervenção de outros arquitectos, cabendo a Afonso
Álvares, certamente, o risco e o lançamento da empreitada, mas aos seus
sucessores o remate formal do desenho e do detalhe ornamental, quer no
interior, quer no exterior» 731, sendo certamente a intervenção de Filippo
Terzi decisiva para o ar «classicizante» que a igreja lisboeta encarna.

A fachada projectada por Terzi incluiria originalmente um nicho no


tímpano, tal como se observa por uma das tábuas de André Reinoso, sendo
originariamente próxima da de Braga 732.

729
Horta Correia, Arquitectura…, pág. 52-53.
730
Horta Correia, Arquitectura..., pág. 53.
731
Paulo Pereira, «A Arquitectura Jesuíta. Primeiras Fundações», pág. 105.
732
Segundo Paulo Pereira, «A Arquitectura Jesuíta. Primeiras Fundações», pág. 105.

375
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Dois modelos híbridos: as «church-boxes» de São Paulo de Braga e


do Colégio de Santarém.

5.2.2.1.3. Colégio de São Paulo em Braga

O colégio bracarense de São Paulo, fundado ainda em tempos do


arcebispo D. Diogo de Sousa, foi confiado aos jesuítas pelo «tridentino» D.
frei Bartolomeu dos Mártires através de escritura lavrada a 29 de Agosto de
1560 733, tomando posse dos «estudos, a capela de S. Paulo e edificio das
escolas», bem como de todas as rendas a si aplicadas.
O padre Inácio de Azevedo refere que as escolas eram de boa
qualidade – edificadas «com largueza e magnificencia» no período em que
D. Henrique ocupou o arcebispado (1533-1539) – mas os «inacianos»
tiveram que procurar casas para habitação, procedendo primeiro a
arrendamentos e depois à compra de moradias com horta anexa. «O rei e a
cidade lhes concederam uma parte da muralha e a tôrre erguida sobre a
porta que se abria junto das escolas. Mais tarde edificaram naquele sitio
colégio novo e igreja de maior amplitude. Mas no princípio, enquanto não
tiveram espaço bastante para se agasalharem devidamente, habitaram no
hospital de S. Marcos, e daí voltavam cada dia para o trabalho do ensino»
734
.
As obras de remodelação arquitectónica iniciaram-se, portanto, pela
reconstrução da parede muralhada que circundava o colégio e a torre de
São Tiago, construindo-se um passadiço para acesso interino à igreja e ao
pátio das classes. Um documento italiano de 13 de Outubro de 1564 regista
a partida de um «irmão bracarense, perito em arquitectura, que tinha sido
enviado a Braga para dirigir as obras e desenhar as linhas mestras do
colégio». Esse «architecturae», segundo Fausto Sanches Martins, não é
ainda o laborioso Silvestre Jorge dado que nesse período se encontrava a
dirigir as obras lisboetas de São Roque 735. Todavia, assinala que o mestre
contratado para tratar da remodelação é um «artista da casa».

Com o apoio e patrocínio incondicional do arcebispado, procede-se à


necessária reforma dos anexos e a edificação da igreja bracarense. Não se
conhece a data exacta da cerimónia da colocação da primeira pedra do
templo, mas a 31 de Outubro de 1566 refere-se que «a igreja parece que se
começará para Janeiro», para a 26 de Junho de 1567 o reitor informar o
Geral que «a nossa igreja vai por diante» e que tem «já feito boa parte dos

733
Francisco Rodrigues, História da Companhia de Jesus..., Tomo I, Vol. 2, pág. 418-419.
734
Francisco Rodrigues, História da Companhia de Jesus..., Tomo I, Vol. 2, pág. 425.
735
Cfr. Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 1, pág. 498.

376
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

alicerces» assim como se encontravam a «lavrar pedra para a esquadria,


que se começará a assentar cedo» 736.

O padre Torres, visitador da Companhia de Jesus, deslocando-se a


Braga e tomando conhecimento das obras, deixou consignadas algumas
«ordenações», recomendando que a igreja se fizesse «mais larga» e que
tivesse capela-mor estabelecendo novas medidas para o templo – cento e
trinta palmos de comprimento, sessenta de largura e a capela-mor quadrada
com quarenta palmos de lado – onde se colocariam oito confessionários,
quatro de cada lado, incumbindo para a direcção de todas as obras o padre
Silvestre Jorge, vindo de Lisboa. Para Sanches Martins, a curta presença de
Silvestre Jorge – entre Junho de 1567 e Fevereiro de 1568 – foi
significativa dado que se empenhou a redesenhar a planta, aplicar as novas
proporções agora com capela-mor e a ordenação espacial dos diversos
elementos constitutivos 737. É assim de supor que a planta traçada
originalmente fosse muito simples, certamente sem capela-mor e, como
veremos, sem transepto reproduzindo um modelo próximo da «church box»
de São Roque, isto tendo em conta que o aspecto geral se manteve. Se o
autor da primeira planta se desconhece, as modificações significativas de
Silvestre Jorge, num primeiro momento, fixam o repensado plano do
templo.

Não obstante a sua importância, as obras da igreja foram refreadas


dando-se iminente importância à área habitacional e colegial, edificada
entre 1569 e 1573. Isto mesmo se infere pela insistência de frei Bartolomeu
dos Mártires junto do Geral da Companhia logo em 1568 enquanto que no
ano seguinte as informações vão no sentido de se ir «fazendo um quatro de
casas para aposentos nossos» e de se trabalhar em «dois quartos de uma
crasta que parte com a mesma igreja» contando-se concluí-la num prazo
de ano e meio. Em relação à igreja diz-se explicitamente que «esta agora
queda» e uma nota de 1573 afirma mesmo que «havia perto de tres anos
que não se fazia nella senão o muy necessario». As directivas iam-se
cumprindo dado que nos finais de 1570 um dos lanços do claustro está
«enmaderado, se va começado dos quartos de la primera claustra dell
collegio» enquanto os pedreiros têm «as colunas quasi labradas» sobre as
quais assentará a estrutura que rodeia o pátio. Nos finais de 1573 o anexo
colegial encontrar-se-ia praticamente concluído pois refere-se que «o
segundo quadro del collegio esta ja labrado y acabado» 738.

736
Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 1, pág. 501-502.
737
Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 1, pág. 502.
738
Sobre este assunto consulte-se Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 1, pág.
503-512.

377
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Só em 1579 se reiniciam verdadeiramente as obras da igreja jesuítica


bracarense, não sem que a 9 de Fevereiro se informe o Geral das
dificuldades orçamentais em trabalhar em três frentes – nos aposentos, no
recomeço da igreja e ainda nas salas de aula. Para além da falta de verbas,
os «inacianos» manifestavam o seu descontentamento geral em relação ao
projecto da obra, como se constata pelas palavras do padre Miguel de
Sousa: «Es verdad que la trassa per que se hizo la parte del collegio que
esta hecho no esta mucho a nuestro contentamiento», referenciando, no
que concerne à falada hipótese de se mudar o colégio para outro local, que
a razão maior estaria no facto de que se «desean algunos ver este collegio
mudado es porque los cubiculos no tiene vista como tienen los de los otros
collegios y la causa es porque en el traçar se atiende mas a la traça que a
la comodida de los hermanos» 739.

Resumindo, no que diz respeito à igreja bracarense, a traça inicial foi


modificada por Silvestre Jorge em 1567 mas pouco ou nada foi construído
e, uma década depois, a 1 de Setembro de 1579 altera-se novamente o
projecto. Se os jesuítas decidem não avançar com a edificação de um
segundo claustro/pátio para, em vez deste, construir um corredor com dois
andares de aposentos mais afoitos e cómodos, quanto à igreja, «o padre
Visitador ordenó que en la iglesia se acrecentasse un cruzero de trinta
palmos cosa mui necessaria y que alegro mucho a los de la cuidad porque
la iglesia del modo que se hazia era pequenha, y aora queda muy buena y
capaz» e ainda a modificação da traça do refeitório – «que no tuviesse
colunas, por estas causas se ha de mudar la traça». Diz-se ainda, quanto à
igreja, que se «case haziendo y buena com lo que se acrecienta». Estamos,
portanto, no ano de 1579.

A partir daqui arranca definitivamente a fábrica da igreja. Em 1584


aponta-se o bom ritmo das obras e o apoio particular disponibilizado pelo
arcebispo D. João Afonso de Meneses, para a 18 de Setembro de 1586 se
afirmar que «la iglesia va en buenos terminos» e mais não se faz porque
«la madera no esta aun sazonada» e «porque las deudas cresceriam que
seran mil y quinientos ducados». Na sequência do desejo de «cobrir este
año de 87 la iglesia nueva», a 16 de Fevereiro de 1588 traslada-se o
Santíssimo Sacramento para o novo templo que, pouco tempo depois,
sofria obras de lajeamento e se colocavam as colunas do coro 740.

739
Cfr. Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 1, pág. 516-523.
740
Os pedreiros Diogo Jorge e Francisco Gonçalves comprometiam-se a «lajear a igreja nova do dito
colégio», «desde as grandes grades até à porta principal com três fiadas de dois palmos, scilicet, uma
pelo meio e duas pelos lados ao longo do degrau dos edifícios vários todos da mesma largura e com
outras fiadas que atravessem em igual distância de modo que fique a igreja em quadrados e os vãos
deles». Obrigam-se a fazer «os alicerces das colunas do coro e alevantar sobre eles os dois pedestais das
mesmas colunas conforme o molde da traça», tendo o Reitor mandado «trazer à sua custa as duas pedras

378
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Em 1591 surge-nos um interessante depoimento: «Siguasse en el


edifício del collegio la traça que quedo apresentada com consulta de los
padres y architectos del Puerto y Guimarães, y firmada por mi, y no se
gastara en aquella ni en outra obra extraordinaria, si no lo que sobrere de
la ordinaria substentacion delos fructos dela dicha pension». Com a igreja
concluída e as «escholas feitas» tratava-se da residência da comunidade,
realizada depois de consultados arquitectos do Porto e Guimarães.
Deveriam, sem dúvida, tratar-se de Manuel Luís e Gonçalo Lopes ou
mesmo Pedro Afonso de Amorim 741. Esta obra demorou a concluir-se dado
que, se em 1595 se tentavam encontrar novos financiamentos, em 1626
ainda se mencionam trabalhos na área comunitária.

A igreja do Colégio de São Paulo contraria o modelo rectangular das


«church-boxes» pela introdução – no enfiamento da larga nave única
marcadamente dórico-toscana nas pilastras – de uma profunda capela-mor
de abóbada de berço apainelada, mais do que pelo «falso-transepto»
marcado por dois enormes arcos de volta perfeita que sobem ao nível do do
arco cruzeiro, tratado como arco triunfal. Este majestoso arco cruzeiro,
iluminado pelas duas frestas que se rasgam no transepto, concentra um
pujante programa decorativo, onde as pilastras jónicas de fuste liso assentes
num pedestal duas a duas, têm concordância com a sua reprodução
ornamental no intradorso do arco, desta vez em fuste canelado. No
entablamento e no segundo registo, a decoração em «estrigilos»,
enrolamentos e motivos vegetalistas contrasta com a austeridade da
sombria e «tridentina» capela-mor, onde a abóbada de caixotões decorados
com motivos vegetalistas e em «rollwerk» assenta num entablamento com
cornija muito pronunciada.

A fachada é o exemplar mais sóbrio e despojado de toda a


arquitectura jesuítica portuguesa, apostando no jogo de pilastras
desenvolvidas em dois registos, com marcação nos acrotérios, e no ritmo
dos frontões triangulares do portal e do remate superior da igreja. A sua
austeridade faz realçar a desnudada geometria muito próxima do modelo
lisboeta de São Roque.

para os dois pedestais das colunas». Concluiriam a obra até ao mês de Novembro por 100.000 reais e
recebiam à medida que fossem correndo com ela, para além dos 10.000 reais que colectaram à cabeça da
obra. A 28 de Outubro de 1590 já Francisco Gonçalves se comprometia a desentulhar toda a igreja «com
capela-mor». Cfr. Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 1, pág. 525-531.
741
Como se adiantou em Carlos Ruão, Arquitectura Maneirista no Noroeste de Portugal. Italianismo e
«flamenguismo», pág. 177.

379
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

5.2.2.1.4. Colégio de Santarém

Durante longos anos se desconheceu a autoria de um dos mais bem


conservados complexos colegiais edificados pelos jesuítas, concretamente
em Santarém. Ocupando o local dos antigos paços régios, o arquitecto
Mateus do Couto foi o responsável pela traça original colegial como prova
o alvará régio de 1647 que o refere expressamente como autor da planta 742.
Pouco depois, uma carta do reitor João Cabral para o Geral em Roma,
datada de 1 de Maio de 1648 743, refere que a «traça do collegio para nos
ahi vaj a nosso Reverendissimo Padre, foi examinada, depois de ser fecta
polo architecto do Rey com muito vagar: e tres vezes emendada, e ainda
nesta que vay se emenda a sanchestia». Ainda em 1660 se fazia referência
ao arquitecto Mateus do Couto a respeito dos valores das jugadas de
Santarém.

Datada de 1657, existe no Arquivo Distrital de Évora uma planta do


colégio assinada pelo Geral da Companhia de Jesus de Roma, «jo paula
oliva». A sua importância regista-se pelo facto de integrar a igreja no local
dos antigos paços régios e de provar a sua aprovação pela casa-mãe. Por
sua vez, o projecto da frontaria inicial incluía duas torres na fachada mas
foi modificado e aprovado somente em 1673. As obras na fachada
prolongaram-se até à primeira década de Oitocentos – se tivermos em conta
as datas de 1676 e 1711 aí inscritas – mas o templo estaria aberto ao culto
desde 1679, numa altura em que ainda se trabalhava em três das oito
capelas da nave 744.

Não existe documentação específica sobre o processo construtivo


mas é de todo provável que Mateus do Couto, arquitecto régio e «mestre de
obras» da cidade de Santarém, tivesse a seu cargo a condução superior de
toda a fábrica até 1664, ano de seu falecimento. Todavia, é igualmente de
admitir que o seu sucessor, Mateus do Couto, «sobrinho», interviesse na
solução definitiva da fachada embora não seja aceitável, como faz crer
Vítor Serrão, que se lhe possa assacar modificações na traça da igreja,
manifestamente dentro dos conceitos teóricos do «tio», dentro da linha
tradicional que parte de São Roque para constituir um modelo híbrido 745.

Da totalidade do complexo escalabitano interessa-nos, em particular,


a tipologia da igreja. Na sua «lição» de arquitectura de 1631, depois de
realçar a base antropomórfica-cristológica da planimetria do templo cristão,
742
ANTT, Livro XX da Chancelaria de D. João IV, fls. 13vº-14. Cfr. Vítor Serrão, «Marcos de
Magalhães, Arquitecto e entalhador do ciclo da Restauração (1647-1664)», pág. 273-274.
743
Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 1, pág. 801.
744
Cfr. Vítor Serrão, História da Arte em Portugal. O Barroco, pág. 130.
745
Sobre esta questão veja-se biografia de Mateus do Couto.

380
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Mateus do Couto não deixa de manifestar a sua opinião pessoal:


«Querendo eu, podendo ser, as façamos de modo que quando entrarmos
plas portas das Igrejas vejamos todos os Altares do corpo do d. Templo,
sem embaraço nenhum. E será grande comodidade escuzaremse nelle
Naues, e os obstaculos das colunas e pilares. E poderá ser o q digo
fazendose os ditos Templos de hua só Naue, e hauendo Capellas pelo
perlongo do corpo da Igreja, fazellas a face, e de modo que se vejão todos
os Altares». Acusando a sua funcionalidade, aconselha a que «nunca
façamos pequenas as Capellas Móres, porq nellas há sempre mais seruiço
do que imaginamos». Esta tese não poderia estar mais conforme com a
tipologia que adoptou na igreja jesuíta escalabitana: uma enorme nave
única de quatro tramos e meio – este último destinado ao coro-alto –
dividindo por pilastras colossais as capelas laterais comunicantes rasgadas
em vãos de volta perfeita e profunda capela-mor com abóbada de berço de
dois tramos separados por pilastras colossais compósitas, três de cada
banda. O modelo é, obviamente, o da igreja lisboeta de São Roque mas a
introdução de uma capela-mor de grandes dimensões prolonga o eixo axial,
favorecendo uma leitura longitudinal do espaço interior e quebrando a
unidade espacial – daí a opção de ver aqui um modelo híbrido de «church-
box».
Todo o interior é ricamente ornamentado destacando-se os mármores
dos embutidos polícromos nos pedestais das pilastras, arco da capela-mor e
arcos laterais. Outras zonas utilizam a pintura ilusionista semelhando os
mesmos embutidos marmóreos, como nas colunas que suportam o coro-
alto. Destaca-se ainda o rendilhado decorativo do capitel compósito no arco
da capela-mor que denuncia o eruditismo do arquitecto em matéria
ornamental e tratadística.

A exuberância decorativa está bem presente na fachada da igreja


assente em escadaria monumental ladeada por dois alpendres resguardando
entradas directas para o complexo colegial. Projectou-se uma fachada
dividida em cinco panos verticais articulados por uma solução de pilastras
lisas separadas nos três registos do corpo e no coroamento superior por
cornija com o «motivo manuelino» da corda – uma nota digna do período
restauracionista e de clara e óbvia leitura simbólica. No piso térreo abrem-
se três portais, os laterais de molduras simples e frontão curvo interrompido
e a portaria principal ladeada por meias-colunas maneiristas toscanas,
encerradas por filamentos semelhando cintas de ferro, à boa maneira do
«Libro Estraordinario» de Serlio e dos portais de ordem rústica. O mesmo
tipo de fuste de coluna é utilizado no corpo superior do portal axial da
fachada – que encerra o emblema jesuíta – e nos nichos dos registos
superiores que abrigam toda a estatuária. O coroamento da fachada aposta
num único corpo central unido-se aos laterais por um sistema de aletas nos

381
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

eixos do frontão, mas deixando espaço para que às pilastras nos cantos
correspondam acrotérios bolbosos.

Três modelos «italianos»: igrejas do Santo Nome de Jesus de


Coimbra, Santo Antão-o-Novo de Lisboa e São Lourenço do Porto.

5.2.2.1.5. Colégio de Jesus de Coimbra

O Colégio de Jesus ou das Onze Mil Virgens de Coimbra foi o


primeiro colégio fundado em todo o mundo embora a sua monumental
fábrica se tenha prolongado por mais de um século, até aos finais de
Seiscentos. Comandados por Simão Rodrigues, a chegada à cidade dos
«apóstolos» em 1542 foi tudo menos pacífica 746 mas com o apoio régio
conseguiram, em pouco tempo, um lugar de destaque quer através do
controlo do Colégio das Artes – curso básico de Humanidades e de
preparação para a formação superior – quer rivalizando com os frades
«crúzios» pelo domínio espiritual e cultural da cidade.
Simão Rodrigues e os seus doze companheiros instalaram-se na alta
da cidade e começaram por arrendar e depois comprar umas moradias
pertencentes a Diogo de Castilho, tranformando uma pequena sala em
capela, as quais ocuparam a 2 de Julho de 1542 747. A 23 de Novembro o
padre Francisco Henriques faz referência ao facto de se estar a traçar a
planta do colégio e a 14 de Abril de 1547 realizava-se a cerimónia
simbólica da colocação da primeira pedra. Fausto Sanches Martins revelou
que em 1546 Diogo de Castilho, «Mestre das Obras da Cidade e dos Paços
Reais», realizou a mando do monarca português uma primeira traça do
colégio. Não obstante, chegou a apresentar nova planta em 1560 748
seguindo certamente as rigorosas directivas da Companhia de Jesus e a
monumentalidade do projecto.

A 18 de Abril de 1559 749 existiam já trechos da fábrica dado que o


padre Torres informava o Geral romano que «estava hecho de nuevo un
lanço del dormitorio desta casa que tiene XVIII camas». Mas pouco se

746
Sobres esta questão e seus mais diversos aspectos veja-se Francisco Rodrigues, História da
Companhia de Jesus..., Tomo I, Vol. 1, pág. 412-420.
747
Francisco Rodrigues, História da Companhia de Jesus..., Tomo I, Vol. 1, pág. 306-307.
748
Consulte-se Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 1, pág. 797-798. Francisco
Rodrigues, História da Companhia de Jesus..., Tomo I, Vol. 1, pág. 422, refere já as mesmas datas,
especialmente à «nova planta», reportando-se a uma carta do padre Miguel de Torres: «A primeira planta
foi desenhada por um arquitecto do rei D. João, e depois de 1560, sob a direcção do mesmo arquitecto,
modificada vantajosamente acomodando-se melhor à boa ordem, disciplina e desafogo, que exigia uma
casa religiosa, destinada a recolher duzentas pessoas».
749
Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 2, doc. 6, pág. 14.

382
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

avançaria dado que em Abril do ano seguinte se referia a monumentalidade


do projecto: «La traça es que le parece al Padre Bustamante que estos
Collegios muy grandes como el de Coymbra no se pueden governar com un
Rector y un Ministro», pese embora se afirme que ao padre Francisco «le
parecio bien esta traça y por eso me la comunico» 750.
Que a igreja definitiva ainda não estava edificada diz-nos o padre
Pedro da Silva, em carta de 1 de Setembro de 1560 751, manifestando a
«gran necessidad que avia de uma iglesia en este Collegio por la que hesta
aora temiamos ser muy pequenha» – numa altura em que se tratava da
unificação do Colégio de Jesus ao das Artes, encontrando-se a tratar disso
mesmo «com un arquitecto del Rey que hizo la primeira traça», ou seja,
Diogo de Castilho. Seja como for, em 1562 trabalhava-se na obra da
carpintaria do templo e nesse mesmo ano abriria ao culto.

Em 1569, e por pouco tempo, Silvestre Jorge – formado no próprio


colégio e tido como especialista em obras de arquitectura – deslocava-se a
Coimbra. Chegou a 1 de Janeiro, numa altura em que se preparava para o
sacerdócio, tendo ficado encarregado das obras, partindo dos projectos de
Diogo de Castilho. Não obstante, o padre Manuel Godinho queixava-se de
que a fábrica avançava «sin algun archytecto que assista a ella» e não
deixava de criticar a inexperiência de Silvestre Jorge para a condução da
mesma. A 18 de Abril de 1579 com parte dos cubículos habitacionais
edificados no claustro da comunidade, «com el qual la claustra nueva
queda de todo cerrada» 752, o projecto «castilhiano» estaria praticamente
concluído.

Encerrava-se deste modo a primeira fase construtiva do Colégio de


Jesus que contou com Diogo de Castilho como projectista do complexo
colegial. Acerca deste primeiro período existe uma planta na Biblioteca
Municipal de Paris do complexo coimbrão datada de cerca de 1568-1569 e
através dela, muito recentemente, Rui Pedro Lobo procedeu à
reconstituição do que seria a igreja primitiva do mestre coimbrão 753.

*
O projecto edificado para o templo coimbrão foi, com toda a certeza,
delineado nos finais da década de 90 do século XVI. Não deixa de ser
estranho que a documentação romana nada nos diga acerca da autoria do
novo risco.
750
Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 2, doc.7, pág. 14-15.
751
Ver documentação publicada em Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 2,
doc. 8, pág. 15-16.
752
Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 2, doc. 28, pág. 24.
753
Consulte-se Rui Pedro Lobo, Os colégios de Jesus, das Artes e de S. Jerónimo. Evolução e
transformação no espaço urbano, pág. 13-17.

383
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

A cerimónia da colocação da primeira pedra da igreja do Santo


Nome de Jesus de Coimbra foi realizada a 7 de Agosto de 1598, na
presença do bispo-conde D. Afonso de Castelo Branco e a sua construção
prolongar-se-á por uma centúria.
Contando com quase duzentos religiosos, em Outubro de 1599
informava-se o Geral de que «diose com mucha solenidad principio a la
Iglesia nueva desta Collegio y iuntamte com ella se haze vn dormitorio ; ite
se accomodaron vnas casas para habitacion de los nouiçios, em que estan
com más recogimiento. Ampliose el tesoro de las Santas Reliquias, com
vnos medios cuerpos y braços dorados, que para engaste de las mismas
Reliquias se hizieron. Tambiem se dio principio a la confraternidad de la
añunciada en los nuestros estudios, q ha muchos años se deseaua en aquel
collegio» 754.
Se no que diz respeito à primeira fase construtiva – que não vingou –
existe informação suficiente acerca do andamento da fábrica, agora
acontece exactamente o oposto. Conhece-se, todavia, o primeiro mestre de
pedraria que dirigiu a pléiade de oficiais que começaram a erguer a nova
igreja – Francisco Fernandes, o bem conhecido mestre coimbrão que por
várias vezes surge como testemunha na documentação local jesuíta entre os
anos de 1597 e 1604 755. Este período coloca-o na fase fundamental de
abertura dos alicerces e deve ter acompanhado a obra até ao seu
falecimento em 1623. Num mero exercício especulativo, Manuel João e
António Tavares, seus sucessores como «mestres de obras» da cidade de
Coimbra, poderão ter orientado a fábrica até à inauguração da nave, em
1640.
Por seu turno, e como era seu regime, os jesuítas não deixaram de
contar com a presença de especialistas interinos da Companhia. Durante
este período – depois de estar simbolicamente presente nos anos de 1598-
1599 – entre 1603 e 1608 o padre Silvestre Jorge torna definitivamente a
Coimbra para usufruir dos últimos anos de vida e assumir o papel de
supervisor da fábrica colegial. Idêntica função desempenhará a partir de
1610 o padre António Pereira e o padre João Delgado, este último vindo
expressamente de Lisboa e muito versado em «assuntos de arquitectura».
Segue-se-lhe o padre Baltasar João a partir de 1614 e até 1618, ano do seu
falecimento 756.

Com o edificio em plena construção, Sanches Martins revelou um


episódio curioso protagonizado pelos padres Francisco de Araújo e João
Delgado. Trocaram correspondência sobre a fábrica da igreja e a 25 de

754
Cfr. Francisco Rodrigues, História da Companhia de Jesus..., Tomo II, Vol. 1, pág. 533.
755
Consulte-se AUC, Colégio de Jesus, livros nº 7 e nº 13. Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros
colégios..., Vol. 1, pág. 88.
756
Cfr. Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. I, pág. 95 e 98-99.

384
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Março de 1617 757 o padre Araújo, de provecta idade, reitor de Santo Antão
e tido como perito em questões de arquitectura, suscitava algumas dúvidas
em relação ao projecto conimbricence e apresenta uma proposta para a
capela-mor acompanhado de um desenho de fraca qualidade, limitando-se a
debuxar duas colunas ornando a arcaria da capela-mor e que sustentam o
entablamento «que corre toda a igreja em roda».
Nas notas que o acompanham, o padre Araújo destacava algumas
especificidades: «Como essa igreja a de ser de abobada ou de Pedra ou
tijolo, e despoys engessada com cartões ou quadrados dourados, deve
Vossa Reverência ter nestas medidas alguma differente consideraçam
porque duvido se pode ter Tribunas pelos lados por rezam de aver de
começara abobada mays debayxo porque doutra maneyra não se ouvira
pregação e fara grande echo e por isso em Roma não fizeram a nossa
igreja na altura que pedia a arquitectura segundo ouvi».
«Também digo que se poder ser de aboboda he milhor e perpetuo
porque assim he o de Santa Cruz dessa cidade e o coro da igreja da nossa
casa professa de Sevilha, porque em fim traves envelhecem e apodrecem
ou rendem por tempo e ja huma deste coro deu sinal de si» 758.

O apreço pelas questões da arquitectura, tão característico deste


período, é também manifesto no padre jesuíta que não deixa de afirmar que
«o meu gosto fora ir tudo medido, mas tudo não foi possivel, medi o que
pude. Se aqui ouvera traça fora cousa facil, mas o tempo comsume tudo
quanto mays papel». «E assim que tenho respondido como abrange meu
fraco saber. Nem Vossa Reverência me trate e nomee por Architecto
porque o não sou pois não aprendi e o que sey he Ba ba, e não passey
day».
De tudo isto, fica por saber a opinião do padre João Delgado, um dos
mais interventivos na defesa de uma solução «moderna» para Santo Antão-
o-Novo opondo-se à «velha-guarda» e a Silvestre Jorge. Não obstante,
parece-nos que a carta do padre Araújo se refere às medições da própria
igreja nova lisboeta que então se edificava, respondendo ao interesse do
padre João Delgado em aplicar em Coimbra um modelo semelhante que,
segundo o seu companheiro, seria de todo impossível dadas as referências
que tinha em mãos.

Quanto à fábrica propriamente dita, a primeira doação de capela deu-


se logo a 13 de Janeiro de 1614, designadamente a capela de Nossa
Senhora dos Prazeres, tomada para sepulcro familiar pelo padre António

757
AUC, Colégio de Jesus, dep. IV, sec. 1º, est. 25, tab. 2, nº 3. Citado mas não publicado em Sanches
Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 1, pág. 100-102.
758
Referia-se, certamente, à provisória igreja de madeira que existía antes do patronato da condessa de
Linhares ter permitido o início de uma igreja definitiva a partir de 1613.

385
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Dias 759, com as respectivas responsabilidades de ornamentação de azulejo


e retabulária – «esta capella sera das oito so corpo da igreja a segunda da
banda do Evangelho e sacristia». A documentação jesuíta revela que cerca
de 1624 a fábrica se encontrava quase «rematada» mas infelizmente parada
por dificuldades financeiras. Não obstante abrir ao culto em 1635, anos
depois se fixar a primeira etapa do monumental templo cristão, em 1639
ultimavam-se ainda as torres e três lanços da abóbada nos quais se
despenderam 5.000 cruzados 760.

A 1 Janeiro de 1640 era finalmente inaugurada a igreja 761 – sem o


transepto e capela-mor actuais – com nave única e capela-mor com um arco
cruzeiro de menores dimensões que permitia a colocação de altares
colaterais. Todavia, a fachada estaria concluída bem como o actual coro e
nave única com capelas laterais. Tudo isto se depreende por uma descrição
da altura que elogia o papel do padre reitor António de Sousa que nos anos
imediatamente anteriores muito tinha feito para concluí-la com brevidade.
Na sua vigência, «creceo ella até ficar acabada a fachada, ou frontespício,
que se julga polo mais grandioso de todos os templos deste Reyno.
E ja tambem no interior do templo se começara com dous arcos
lançados a abobada, que he de pedraria lavrada» até Junho de 1638.
Em pouco tempo «se levou a cabo toda a abobada do corpo da
Igreja, que tambem pela parte de cima logo se emmadeirou, e cobriu de
telhado. Lageouse de pedras lavradas o pavimento. Fez-se o choro, que he
grande e capaz; o qual estriba sobre duas colunas muy magestosas, que
fazem mais fermosa a propria entrada do templo».
«Levantarãose altares por todas as capellas, que são quatro por
banda. A Capella mor, que se fez tem nos lados duas tribunas e cada huma
duas janelas ; huma na mesma Capella sobre o altar, a outra, e mayor cae
com gelosias para a Igreja» e incluia já retabulária. Enfim, «no lugar dos
dous altares collaterais estão como retabolos nas paredes os dous
sacrarios das Reliquias». Refere-se ainda especificamente a «volta do arco
da capella mor até ao espelho» 762.

Desconhece-se o período em que a Companhia de Jesus decidiu


conferir ao templo coimbrão os definitivos transepto, cúpula e nova capela-

759
Sanch\es Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. I, pág. 97-98.
760
Cfr. Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 1, pág. 102-103 e 105.
761
O cabido conimbricense registava a 27 de Dezembro de 1639 o desejo dos jesuítas que «com auida de
ds querião mudar o Santisso Sacramto da Igreia Velha pa para a noua sabado q uem de tarde»,
convidando, na circunstância, os responsáveis diocesanos para a procissão. Cfr. Lopes de Almeida,
«Acordos do Cabido», Vol. XXVII-XXVIII, pág. 252-253.
762
Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 2, doc. 32, pág. 27-28.

386
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

mor. Algo espaçada no tempo, uma informação de 1678 fala-nos acerca do


recomeço das obras na capela-mor «feita de mármores bem polidos (que)
vê-se crescer de dia para dia» 763 mas poderá tratar-se ainda da capela-mor
primeva revestida em mármores polícromos, como encontramos noutros
templos e bem ao gosto da época. Sobre a solução final, apenas se conhece
a presença do padre Manuel Ribeiro a dirigir as obras em 1690 no ano em
que, a 23 de Novembro, uma carta dimanada do Geral romana registava a
esperança de ver concluída a breve trecho a nova capela-mor 764. Pouco
antes de se dar por definitivamente conclusa a fábrica da igreja, uma
vistoria dos mais relevantes mestres de pedraria na cidade, António
Fernandes, João Carvalho Ferreira e José Cardoso dão parecer positivo aos
suportes pétreos das faces do cruzeiro 765 sendo que 31 de Julho de 1698 se
davam por encerradas as obras interinas do templo 766.

Embora se o autor do risco da igreja actual continue uma incógnita –


a hipótese tradicional de se tratar de Baltasar Álvares não assenta em
nenhum dado documental mas sim numa atribuição historiográfica – a
estrutura geral arquitectónica é, no seu modelo final, uma variação do
modelo «italiano» de São Vicente de Fora embora manifeste seguir, ao
nível construtivo, um certo regionalismo coimbrão.

O modelo planimétrico e altimétrico aplicado na cidade mondeguina


segue a linha natural erudita de planta de cruz latina de cariz contra-
reformado romano.
A nave única é revestida por uma abóbada de berço de cinco tramos
– um deles inscrevendo o coro – com três fiadas de onze caixotões
desornamentados, cada tramo separado por arcos torais duplos que
assentam em entablamento correcto e duplas pilastras colossais lisas de
capitéis dóricos, sendo que no último tramo próximo do transepto se
afastam incorporando púlpitos. Em cada banda rasgam-se três capelas –
comunicantes entre si por vão de volta perfeita – com cobertura semi-
circular e duplas-pilastras excepto as duas capelas abrigadas pelo coro, com
abóbada de meia-laranja e de menores dimensões. O coro é suportado por
duas colunas toscanas e dividido por três arcos de volta perfeita. Pese
embora não excedendo a cota longitudinal das capelas, o amplo transepto
apresenta cúpula esquartelada sem tambor, assente em triângulos esféricos
e rematada por lanternim, sendo os braços revestidos por um segmento de
abóbada semi-circular com duas fiadas de onze caixotões. Toda a cobertura
assenta num sistema vertical duplo-pilastral. Nas ilhargas do arco cruzeiro,
763
Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 1, pág. 138.
764
Cfr. Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 1, pág. 147 e Vol. 2, pág. 38.
765
Consulte-se documentação em Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 2, pág.
39.
766
Inventário Artístico de Portugal. Cidade de Coimbra, pág. 20.

387
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

altares colaterais encimados por tribunas. A capela-mor replica na


perfeição o mesmo sistema em todos os seus componentes mas era pouco
profunda dado que apresentava apenas dois tramos de abóbada, aumentada
para o dobro do comprimento em tempos da reforma pombalina
setecentista.
Todo o espaço interino respira uma grande sobriedade decorativa,
deixando que as molduras arquitectónicas ritmem a sua austeridade
classicista, facilitando assim uma melhor leitura espacial e estrutural e a
percepção harmoniosa das proporções arquitectónicas.

No exterior, a face nobre da igreja ganha em monumentalidade pela


inclusão de uma escadaria central de acesso e por um soco duplo que eleva
a fachada dividida em cinco panos verticais e dois registos horizontais onde
se sobrepõem e semelham as três ordens arquitectónicas clássicas.
O piso térreo apresenta tripla entrada de vãos rectangulares com
cimalha e frontão triangular central e curvos laterais. Ritmado por pilastras
colossais triplas geminadas, aos panos centrais correspondem janelões com
frontão triangular interrompido – excepto o central rasgado em Setecentos.
Por sua vez, os panos laterais apresentam nichos sobrepostos com
estatuária e duplas pilastras nos cunhais. Um pesado mas correcto
entablamento faz a transição para o registo superior, potenciando o
coroamento dado que as torres sineiras são recuadas em relação ao alçado
da fachada. Este apresenta-se tripartido, incorporando triplas pilastras
jónicas de fuste liso e frontões curvos interrompidos com pirâmide central,
elevando-se o corpo central com frontão recurvo assente em pilastrinhas
coríntias com capitéis e friso ornados de folhas de acanto. A transição entre
a estrutura coroada e as ilhargas faz por intermédio de elegantes aletas que
parelham com estatuária sobre plintos nos cunhais da fachada.

A igreja jesuíta conimbricense destaca-se pela qualidade do trabalho


de cantaria das suas molduras arquitectónicas – exemplo máximo da
capacidade da «escola coimbrã», a par da lavra da sacristia nova crúzia – e
pelo desenho da ordem arquitectónica. Se as bases são sumárias, tratadas
apenas com escapo, toro e escócia e as pilastras lisas, o ordem colossal
apresenta capitéis dóricos de acordo com o modelo proposto por Sebastiano
Serlio no seu Livro IV – tal com em São Vicente de Fora – seja no interior
como no primeiro registo da fachada. Por sua vez, o capitel jónico é bem
entendido e o modelo coríntio que suporta o corpo superior do coroamento
é debuxado apenas com folhas de acanto, dispensando as volutas. Se os
fustes e frisos são lisos, a inclusão de fiada denticular na moldura inferior
da cornija do entablamento e dos frontões confere ao frontispício uma
consciente interpretação da ordem ao modo classicista.

388
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Um outro aspecto a realçar diz respeito ao aparente «barroquismo»


da fachada. De facto, uma análise de pormenor contesta este conceito na
medida em que todo o sistema ornamental é caracteristicamente maneirista.
Se o primeiro registo é essencialmente despojado – o pouco ornato é
inspirado nas cartelas nórdicas, no frontão triangular central ou nos pseudo-
aventais dos vãos rectangulares com frontões interrompidos que inscrevem
tarja oval com «ferragens» – a estrutura superior apresenta os tradicionais
elementos decorativos italianos ligados à teoria das ordens e duas carrancas
maneiristas de grande qualidade de debuxo.

Pese embora a enorme remodelação que o complexo colegial sofreu


durante o século XVIII, de destacar o claustro seiscentista – concluído em
1656 767 – com dois pisos unidos por pilastras colossais: no piso térreo
rasgam-se em cada ala cinco arcos de volta perfeita, com sarapainéis no
interior, correspondendo-lhes no piso superior janelões rectangulares.
Sóbrio, o sistema ornamental fica-se pelas molduras arquitectónicas, pelo
almofadado no intradorso da arcaria e pelos duplos lintéis dos vãos
rectangulares superiores. Tal como no caso do claustro terziano do Colégio
de Santo Agostinho ou da Sapiência, estamos já longe do tipologia claustral
castilhiana tão característica da cidade ao longo de Quinhentos.

5.2.2.1.6. Colégio de Santo Antão-o-Novo de Lisboa

A história inicial da fundação do colégio lisboeta tem sido repetida


pela historiografia com falhas e inexactidões que a poderosa documentação
que Fausto Sanches Martins fez publicar veio de forma cabal não só abalar,
como literalmente fazer cair por terra muito do que se escreveu nas últimas
décadas – apesar da obra de Francisco Rodrigues referir já quase todos os
passos essenciais.

Em Lisboa, a Companhia de Jesus começou por ocupar o antigo


Convento de Santo Antão, fundando o seu colégio em 1553. Todavia, cedo
demonstraram o desejo de mudança – chegando a pensar erguer edifício de
raiz perto de São Roque – mas só quando D. Henrique vem para Lisboa
ocupar a mitra encontraram forte apoio, de tal modo que o cardel-infante
logo lhes condicionou um modelo colegial que, desde o primeiro momento,
nunca foi do agrado da mílicia tridentina. Em 1574 tomava-se a decisão de
mudar de localização, pedido deferido no ano imediatamente a seguir,
tomando-se «uns campos que estavam pegados com os muros da cidade

Consulte-se carta documental publicada em Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios...,
767

Vol. 2, pág. 36.

389
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

junto de Santa Ana, cêrca dos Lázaros» e outros terrenos foram cedidos
pelo rei e pela cidade 768.
D. Sebastião tinha, de facto, passado provisão em 1578 para que o
senado da Câmara de Lisboa libertasse um pedaço de terreno no lugar do
Curral para construir a cerca conventual. Todavia, quer os habitantes quer
as religiosas de Santa Ana se opuseram, levando os jesuítas a protelar a
questão, não deixando mesmo assim de realizar a cerimónia de colocação
da primeira pedra em 11 de Maio de 1579. Se a intervenção de D.
Henrique, depois de Alcácer Quibir, conseguiu por água na fervura – pese
embora novas críticas da população – com a mudança política e a preciosa
ajuda do presidente camarário D. Pedro de Almeida, os inacianos
conseguiram finalmente demarcar os seus domínios 769.

O projecto de Baltasar Álvares

A 5 de Janeiro de 1579 770, uma carta do padre Amador Rebelo ao


Geral relatava as dificuldades no começo da fábrica e a falta de terrenos
para fazer edificar o projecto elaborado: «Ordeno elRey que se hiziesse por
cierta traça que el avia hecho ; y porque no es conforme a lo que avemos
menester, principalmente pera el collegio quedar sano, consultandose la
cosa, ha parecido que sobrestuviessemos en la obra, no desando de correr
con los materiales como se haze hasta se offerecer alguna ocasión para le
encasar otra por no se dar desgusto y pesadumbre, como ya lo ha tenido
entendiendo que se haltavam incovenientes a su traça ; y por que importa
empeçar luego y por la traça de S. A. no conviene y por otra parte no es de
menos importancia proceder con gusto suyo, me ha parecido hazerlo saber
a V. P.». A missiva é clara. D. Henrique tinha-lhe imposto um projecto que
não agradava 771 mas o padre reitor era da opinião que a obra se iniciasse,
pela urgência evidente, e que paulatinamente se negociassem as alterações
sem melindrar o regime 772.

Se aos jesuítas não agradava o projecto, muito menos era apreciado


pelas gentes de Lisboa. A carta acima referida descreve conflitos ainda ao
768
Acerca da história inicial de Santa Antão consulte-se Francisco Rodrigues, História da Companhia de
Jesus..., Tomo II, Vol. 1, pág. 165-169.
769
Sobre estas questões consulte-se História dos Mosteiros, Conventos e Casas Religiosas..., Vol. 1, pág.
401-405.
770
Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 2, doc. nº 98, pág. 78.
771
Uma outra carta de 12 de Fevereiro de 1579 alinha pelo mesmo tom de que «tambien en la traça que
hizo el Cardenal, se movieron de nuestra parte muchos incovenientes». Cfr. Sanches Martins, A
arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 2, pág. 79.
772
O opção régia era por arrancar de imediato com a fábrica. Tal como aconteceu para Coimbra, a 11 de
Abril de 1579 um alvará régio obrigava os oficiais e serventes de obra a trabalharem no colégio de forma
exclusiva e «nam poderam ser tirados dellas pera outras algumas, ainda que sejam minhas, ou na
cidade». ANTT, Jesuítas, caixa 16, maço 39, nº 25. Cfr. Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros
colégios..., Vol. 1, pág. 342-343.

390
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

tempo de D. Sebastião e mesmo um pedido expresso da Casa dos Vinte e


Quatro para que se não avançasse com a fábrica. A populaça opunha-se à
construção e alencava três razões essencias. Convencida que o monarca
dispensava grandes somas monetárias para a obra pensava, em primeiro
lugar, que o dinheiro seria melhor disposto no resgate dos cativos de
Alcácer Quibir, era igualmente contra a mudança do matadouro que,
segundo o projecto, seria inevitével e protestava que a planta colegial
retiraria um bom pedaço da praça pública defronte da mesma 773. Existiam,
assim, razões de sobra para que o projecto henriquino não vingasse. Não
deixa de ser curioso que a cerimónia simbólica da colocação da primeira
pedra – a 11 de Maio de 1579 – se tenha realizado «quasi em segredo por
atalhas contradições e embargos que antes de começar a obra facilmente a
empedem, mas despois de principiada, posto que cansem e molestem, já
nam podem derrubar» 774.

É mais do que provável que a vinda a Portugal do célebre Giuseppe


Valeriani tivesse como objectivo introduzir mudanças na planimetria
colegial e negociar com o monarca. O famoso pintor e arquitecto esteve em
Lisboa entre Abril e Setembro de 1579. Não obstante, algo de inaudito
aconteceu como relata a carta do padre Cristóvão Gouveia, a 30 de Junho
de 1579 775: «De Castilla vino el hermano Joseph Valeriano para ayudar
en el collegio nuevo : pero no ha aun hecho nada, por venir mui enfermo
de sus quartanas : y como es melancolico, dize que le haze daño a su salud
entender en traças : y pide que le libren dello muestra mas inclinación al
arte de pintar y quire ahora empeçar a pintar una imagem para el Rey que
la ha pedido con instancia» 776.

«A los 11 del mes de Mayo se echo la primera piedra con el collegio


nuevo, començado por el principal dormitorio conforme a la traça de su
Alteza : Esta ya hecho un buen pedaço de pared» 777. Aceita-se a tese
tradicional de que o gigantesco debuxo original se deveu a Baltasar Álvares

773
Estas razões são enumeradas em carta de 3 de Agosto de 1579. Cfr. Sanches Martins, A arquitectura
dos primeiros colégios..., Vol. 2, pág. 82. Consulte-se igualmente Francisco Rodrigues, História da
Companhia de Jesus..., Tomo II, Vol. 1, pág. 169-170. As querelas so terminaram com Filipe II, ao tempo
de D. Pedro de Almeida, quando o presidente da edilidade entregou e demarcou definitivamente os
terrenos pertencentes aos jesuítas.
774
Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 1, pág. 343.
775
Carta publicada em Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 2, doc. 102, pág.
80-81.
776
O tema escolhido seria um Cristo Crucificado. Fausto Sanches Martins afirma que Valeriani vinha
com a intenção de modificar a traça mas não o admite abertamente, dizendo apenas que a sua visita deve
ter «redundado num fracasso». Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 1, pág.
347.
777
Segundo carta do padre Gouveia, citada já em Francisco Rodrigues, História da Companhia de
Jesus..., Tomo II, Vol. 1, pág. 171. Cfr. Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 1,
pág. 782.

391
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

e que o mestre português se comprometeu a iniciar a fábrica que não era do


agrado da Companhia que chegou mesmo a suspender a obra e a provocar a
ira de D. Henrique 778.

Declarava-se, na altura, que a compra inicial de terrenos custou


4.800 ducados e que outro tanto era necessário para o que se desejava
construir. Mas, mais importante do que isso, o padre Cristóvão Gouveia
afirmava que Roma ainda não tinha visto a traça – e sabe-se ser norma fixa
a autorização provincial – e que, consultando pessoas de saber, o
informaram custar toda a fábrica 400.000 cruzados, «que es cosa que nunca
acabara», rematando em angústia. A megalomania do projecto é descrita
com o mesmo espírito: sete pátios todos com varandas e corredores, alguns
com três ordens de colunas sobrepostas, «y muchas cosas superfluas que
sirven mas de aparato y magestad, que de utilidad». Concluía afirmando
que não havia dinheiro nem o monarca o tinha disposto e que mesmo que
se desejasse prosseguir o projecto, o local não era adequado porque ficava
num declive e não numa superfície plana, aumentando de sobremaneira a
empreitada. Como o imaginou D. Henrique, o projecto nunca foi avante.

O projecto de Silvestre Jorge

Com o dealbar de uma nova realidade política, a solução passou por


encontrar nova localização e enveredar por nova traça riscada pelo padre
jesuíta Silvestre Jorge 779. Isso mesmo afirma o padre Cristóvão Gouveia a
30 de Abril de 1581 780: «Se ha tomado outro sitio para edificar el collegio
nuevo en outra parte de la Ciudad mas comoda» e «la traça que hizo el P.
Silvestre Jorge, y se enbió al P. Vicario, ha contentado acá mucho, y
parece ser la mejor de todos los collegios desta provincia, según dicho
común, por ser llana y bien acomodada al sitio y al buen orden del
collegio». Tendo-se dispendido oito a nove mil ducados na compra de
terrenos, esperava-se que em poucos anos e com um orçamento contido o
colégio se poderia facilmente construir.
A preocupação por parte de Cristóvão Gouveia de que se sucedessem
tentativas de modificar o projecto colegial, levou-o a pedir ao Geral que
proibisse qualquer alteração «de este collegio que ultimamente se ha hecho
por el Padre Silvestre Jorge pues esta ja examinada y aprovada por muy
buena y la major que puede ser». A resposta do célebre Aquaviva,
provincial geral romano, foi de total concordância: «Vuestra Reverencia
haja que todo lo que se fabricare, sea conforme al ordem y desegno que de

778
Francisco Rodrigues, História da Companhia de Jesus..., Tomo II, Vol. 1, pág. 171-172.
779
A ela se refere já Francisco Rodrigues, História da Companhia de Jesus..., Tomo II, Vol. 1, pág. 172.
780
Carta publicada em Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 2, doc. nº 105,
pág. 82-83.

392
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

aca llevo, sin que ninguno delos superiores de alla la mude, como se
quexam» 781.

Que existiam interferências e que o projecto não era consensual é


uma realidade documentada. Pese embora o aval romano, a questão não foi
simples de resolver como se imagina se levarmos em conta a irritação do
padre Sebastião Morais poucos anos depois – 2 de Maio de 1585: «No
tengo por cosa nueva avisaré V. P. de aver enmendar en la traça del
Collegio nuevo de S. Anton, pues será acá mucho los traçadores, y cada
uno quiere que se sigua su deseño. Hasta hora no se que en ella se aya
mudado cosa de las que V. P. aprobó ; bien creo que el P. Silvestre Jorge
podría escusar algunos gastos, empero tiene también sus razones» 782.

Ora, a questão passava pela intervenção ou consulta de outros


arquitectos, como o próprio Sebastião de Morais denuncia em Maio de
1586 783 quando, referindo-se à fábrica de São Roque, afirmava que
Silvestre Jorge «esta muy encontrado com un architecto italiano de su
Magestad, por emendarle allgunas cosas de importancia en su traça dell
collegio nuevo». O arquitecto italiano do monarca a trabalhar em São
Roque é Filippo Terzi 784. Esta nota permite-nos com grande clareza – e
para além das boas relações – medir as distâncias entre os dois
profissionais de arquitectura. O arquitecto régio interveio em «cosas de
importancia» na traça de Silvestre Jorge e podemos avaliar a que título
seriam pois em Abril de 1586 se afirma na documentação romana que o
edifício colegial «ja empieça aparecer sobre la terra» 785, portanto,
contando apenas com os arranques dos fundamentos arquitectónicos.
Poderiam ser matérias ainda ligadas à natureza estrutural do edifício mas
muito certamente, como que adiante se verá, com o modelo de igreja a
edificar.

Sanches Martins não discorre nem faz grandes comentários sobre


estas questões, mas o que é certo é que a consulta junto de Filippo Terzi
trouxe resultados imediatos – a 28 de Agosto de 1586 786 o padre Silvestre
Jorge refazia o projecto para ser enviado a Roma para aprovação,
trabalhando na traça da igreja que «no há del todo sacado a limpio, como lo

781
Missivas de 30 de Junho e 1 de Setembro de 1581 publicadas em Sanches Martins, A arquitectura dos
primeiros colégios..., Vol. 1, pág. 351-352.
782
Cfr. Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 2, pág. 83-84, doc. 106.
783
Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 1, pág. 354.
784
Na curta entrada biográfica sobre Terzi, Sanches Martins declara que a 22 de Maio de 1586 o
arquitecto italiano fez emendas na traça elaborada por Silvestre Jorge mas não esclarece se se trata do
documento acima citado ou de um outro do mesmo mês, dado que não os faz publicar. Cfr. Sanches
Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 1, pág. 850.
785
Cfr. Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 1, pág. 353.
786
Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 1, pág. 354.

393
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

acabare de sacar escrivire a Vuestra Paternidad», embora se acrescente a


ressalva de que «ni hasta hora se há hecho cosa alguma contra la traça
aprovada de Vuestra Paternidad».

«Y en lo que hasta agora se ha edificado, no se ha mudado nada :


verdad es, que en la traça que el P. Sylvestre Jorge va haziendo en papel
mayor y por partes, hallé alguna mudança, pero no substancial a la
fabrica. Y porque V. P. apuntava particularmente en la traça de la Iglesia,
diré lo que passa. La traça que se embió a Roma, tenía en largo 108
palmos, la que aora haze el P. Silvestre Jorge, acrecienta mas 26 palmos ;
en la que se embió a Roma quedavam los confesionarios a la grada de las
capillas, en esta se meten dentro en unos pilares que haze de 12 palmos em
rueda, y no ay duda se no que ansi quedarán los confesionarios más no
poco. Las tribunas que V. P. dize, no parece convenir que las aya, también
estavam en la traça que V. P. aprobó e de la misma manera V. P. verá
agora si conviene que se hagan, y avrá bien lugar de mirar en ello primo
que sea tiempo de hazerlos» – carta do padre Sebastião Morais de 18 de
Julho de 1587 787. Não temos dúvidas que foram estas as questões
discutidas entre Silvestre Jorge e Filippo Terzi ! Todavia, tal como o
projecto de Baltasar Álvares, também o risco do padre jesuíta seria
proscrito.

O projecto «romano» de Giuseppe Valleriani

Os partidários de um modelo diverso daquele que propunha Silvestre


Jorge conseguiram, de alguma maneira, convencer Roma a enviar um
projecto para a igreja colegial senão totalmente novo, pelo menos
modificado substancialmente pelo próprio punho do padre arquitecto
Giuseppe Valeriani.

A 22 de Fevereiro de 1592 788 o provincial João Álvares escrevia ao


padre Aquaviva que «este collegio de S. Antão esta com grande deseo
esperando que Vuestra Paternidad embie la traça del collegio nuevo para
que se continue la obra y no se va prolongando». Se se poderia pensar
tratar-se apenas de uma nova análise e consequente autorização, será o
próprio Silvestre Jorge que em carta não datada desse mesmo mês de
Fevereiro 789 dirigida ao padre geral Aquaviva critica, com algum cuidado,
as modificações introduzidas na planimetria da igreja lisboeta a partir de
Roma: «Tive noticia da traça que o Padre Josee Valeriano fez aqual, posto
que fermosa, e engenhosa, e dina de Arquitecto Romano, todavia pareçe

787
Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 2, doc. nº 107, pág. 84.
788
Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 1, pág. 358-359.
789
Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 2, doc. nº 109, pág. 85.

394
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

que por não ter noticia dos termos en que aobra estaa», as mudanças
propostas seriam impossíveis de aplicar como «se mostrão em humas
linhas que mando pollas quaes parece a dita traça não caber no chão ou
sitio que pera ella temos, e não temos mais, as quais linhas me mandou
fazer o Padre Provincial». A ir avante, avisava Silvestre Jorge, seria
necessário desmanchar paredes, as escadarias para a «loggia» debaixo do
dormitório e tudo faria «anatomia no edeficio que já esta conglotinado e
firme».

Este verdadeiro enredo com pormenores de excepção não terminava


ainda. A 22 de Março de 1592 790, outro especialista em questões de
arquitectura, o conhecido padre João Delgado, escrevia a Aquaviva uma
longa carta em italiano onde apresentava a sua visão dos factos:
«Em primeiro lugar, enquanto Vossa Paternidad não ordenar
definitivamente que se execute o desenho de Roma - non se farà nula –
nada feito»
«Porque, sabe, há la quatro Padres antigos que não conhecem um
palmo de terra, mas que defendem não haver em toda a Cristandade
arquitecto igual ao Padre Silvestre Jorge (...) de tal maneira que o que diz
é a única verdade».
«Em relação à traça que Vossa Paternidad enviou, ele fez várias
observações em contra dizendo que os Romanos não sabem desenhar e que
a única traça que deve ser aprovada, em qualquer circunstância é a sua –
se vogliamo non errare – se não quisermos cometer erros»
«Todas estas informações foram rebatidas por mim, diante de todos,
com toda a facilidade»
«Disse ao padre provincial que se informasse junto de Felipe Terzi e
de outros arquitectos estranhos a comprovar a razão do que digo. Não sei,
contudo, se o terá feito».

A carta fala por si mesma. Sanches Martins interessou-se mais pelo


oposto retrato psicológico entre o autoritarismo recalcado de João Delgado
face à severidade e humildade de Silvestre Jorge. Pensamos, contudo, que a
verdadeira questão está para além das efígies da alma. Tratava-se, clara e
distintamente, da defesa de dois projectos diferentes, diametralmente
opostos e mesmo irreconciliáveis tal é a categoria incisiva da defesa de um
e do outro, cada qual no seu estilo e com as suas inclinações de natureza
estilística. Que o projecto que defendia João Delgado era claramente de
matriz «romana» sabemo-lo com total segurança, enquanto que o plano de
Jorge passasse por um modelo próximo de São Roque. Jorge perderá a
contenda.
790
Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 1, pág. 361-362. Esta carta aparece já
salientada por Francisco Rodrigues, História da Companhia de Jesus..., Tomo II, Vol. 1, pág. 173.

395
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

A 27 de Julho de 1592 791 o provincial João Álvares informava Roma


de que «en la traça de S. Anton el Nuevo se guardava todo lo que Vuestra
Paternidad manda, no se siguiendo cosa alguna de las otras, acomodando
todo a la del Padre Joseph». Por esta altura tinha já ordenado o padre Geral
que se despendessem 2.500 cruzados anuais na fábrica, desde os finais de
1591, pensando os religiosos mudar-se para o colégio novo em poucos
meses. Tal veio a acontecer a 9 de Novembro de 1593, numa altura em que
apenas uma terça parte do complexo colegial estava concluída 792. Segundo
informações coligidas em Outubro de 1599, quando o colégio suportava um
total de cinquenta e quatro religiosos, declarava-se: «Hizose de nueuo hum
refectorio, y por cima del 3 casas, muy anchas, q todo haria de gasto cerca
de 4 mil ducados» 793.

Se se inauguram alguns edifícios do colégio, resta saber em que


termos se encontrava a igreja. Referindo-se ao tempo em que se «foy pondo
o Collegio em estado de poder habitar e de se fazer a mudança dezejada
do Velho pera o Novo», o cronista jesuíta dos inícios do século XVIII
afirma:
«Pera terem igreja em que podessem exercitar os ministerios da
Companhia se aproveytaram dos baxos que tinham feyto, que eram tres
naves que sustentavam duas ordens de pilares de pedra de cantaria que
seguram os arcos sobre que se levantam as paredes que formam o
corredor e os cubiculos que servem à morada dos religiosos, que correm
duma e outra parte, e sobre os arcos levantados sobre os pilares e as
grossas paredes mestras correm abobadas muyto firmes sobre as quaes
assenta o pavimento, assim do corredor como dos cubiculos, e valendo-se
os Padres dos baxo(s) por aquella parte pella qual o corredor fica mays
visinho ao terreyro, e por isso com mays altura do que tem distante do
corredor, e no ditto lugar abriram huma porta pera o terreyro pera que a
gente de fora tivesse entrada pera a igreja, e dando-lhe comprimento
suficiente ficou sendo de tres naves assentando no topo da do meyo o altar-
mor, e no topo das outras naves colateraes outros dous altares,
acrescentando mays dous nos lados do comprimento da igreja, com que
veyo a ficar composta de sinco altares, e accomodada deste modo a que
havia de ser igreja emquanto se nam fabricasse outra competente ao que
pedia a grandeza do Collegio» 794.

791
Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 1, pág. 363.
792
Francisco Rodrigues, História da Companhia de Jesus..., Tomo II, Vol. 1, pág. 174.
793
Cfr. Francisco Rodrigues, História da Companhia de Jesus..., Tomo II, Vol. 1, pág. 582.
794
Cfr. História dos Mosteiros, Conventos e Casas Religiosas..., Vol. 1, pág.406.

396
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Era este o «estado da arte» quando se realizou a mudança em


Novembro de 1593, mas o documento tem sido mal interpretado 795. Não
existia ainda nenhum templo sequer marcado no terreno e, nesta condição,
os padres decidiram aproveitar-se de uma zona colegial dividida em «tres
naves» (espaços) constituídos por duas «ordens» de pilares que seguravam
os arcos «sobre que se levantam as paredes que formam o corredor e os
cubiculos que servem à morada dos religiosos, que correm de uma e outra
parte», portanto, corredor entre dois lanços de dormitórios paralelos. As
paredes mestras eram cobertas por abóbadas que abrigavam o corredor
central e os cubículos laterais. Num dos eixos do corredor instalaram a
entrada nobre e «dando-lhe comprimento suficiente ficou sendo de tres
naves» assentando-se no topo contrário três altares, altar-mor e colaterais,
mais dois no eixo longitudinal, forjando assim uma zona de cruzeiro e
capela-mor.
Mais do que a informação, por si só digna de engenho, este relato
prova cabalmente que nenhum dos projectos anteriores chegou sequer a ser
posto em prática.

As atenções voltaram-se, durante os anos seguintes, para a fábrica do


Noviciado – a partir de 1603 sob a supervisão do padre João Delgado 796 –
mas ainda no século XVIII o colégio inaciano estava longe da sua
conclusão.

O projecto definitivo de Diogo Marques Lucas

A obra da igreja de Santo Antão era grandiosa e magnífica, se


levarmos em conta as suas dimensões e a descrição que se infere da vistoria
à zona do cruzeiro em 1653, com abóbadas com painéis almofadados com
embutidos a negro e vermelho e pilastras estriadas com capitéis
compósitos. A «igreja-mãe» da Companhia de Jesus em Portugal
apresentava um modelo «vignolesco», com cúpula na intersecção da nave e
transepto que claramente ultrapassava os modelos tradicionalmente
valorizados das «church-boxes», edificadas pelos «apóstolos» no nosso
país. Basta pensarmos na sua opulenta sacristia para termos uma visão
aproximada do que seria este magistério inaciano. A igreja foi destruída
aquando do terramoto de 1755 – apenas restando a sacristia monumental –
mas ficaram-nos uma importante descrição, alguns desenhos de Haupt e a
planta que, sobre as ruínas, foi possível reconstituir. Não obstante, as
informações acerca da sua fábrica são imensas, conhecendo-se todas as

795
A título de exemplo, e tomando a mesma fonte, Ayres de Carvalho, D. João V e a arte do seu tempo,
Vol. 2, pág. 38, falava na existência de uma igreja provisória de três naves com cobertura em madeira.
796
Sobre o Noviciado consulte-se biografia de Baltasar Álvares.

397
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

fases de projecto e construção. Em boa verdade, estamos a referir-nos ao


templo projectado e iniciado em 1613.

Os jesuítas tiveram que esperar pelo superior patrocínio da condessa


de Linhares para verem edificado, de forma definitiva, um projecto
verdadeiramente grandioso e que rivalizava com a régia igreja de São
Vicente de Fora ou a inacabada obra de São Bento da Saúde, patrocinada
pelos marqueses de Castelo Rodrigo.

Sobrinha do poeta Sá de Miranda, D. Filipa de Sá (1543-1618),


condessa de Linhares, era filha de Mem de Sá, governador do Brasil entre
1558 e 1572 e celebrou esponsais a 22 de Maio de 1573 com D. Fernando
de Noronha 797, filho primogénito dos condes de Linhares. Com o
falecimento do pai e do irmão, Francisco de Sá, herdou uma das maiores
fortunas do reino podendo patrocinar aquele que seria, à época, o mais
esplendoroso templo da cidade de Lisboa 798.
Na proposta de D. Filipa apresentada aos jesuítas a 31 de Agosto de
799
1612 , a condessa impunha algumas condições particulares – como o
«desejo que se faça huma tribuna ao lado da Capella mor» – e manifestava
a sua total disponibilidade para custear e fazer edificar toda a construção:
«Quanto à fábrica da igreja se viva for, eu a fabricarey de tudo muy
abundantemente como favor de Deus, assi de ornamento, e vasos de prata,
e alampadas de prata e assi de tudo o mais que for necessario ; pera o que
me irey despondo emquamto a igreja se fizer, porque acabada, fique logo
ornada». Mais «declaro que minha pedraria da Capella mor, estaa
lavrada muy perfeitamente. E querendo os Padres que comecemos logo a
obra, aprovando o que neste papel digo, se poraa a mão nella, avendo sitio
acomodado para isso no mesmo collegio».

797
Curiosamente, D. Fernando de Noronha tinha já apreço pelos jesuítas quando pedia ao Geral romano
para que lhe concedessem uma capela em São Roque: «Estes dias passados pedi ao prouincial e padres
da Santa companhia de Jesu destes reinos de portugal me concedessem hua capella em São Roque de lxª
pera mandar passar a ella a ossada de meu sogro governador q foj do brasil. E porq nesta materia
escreuo largamente ao pe pero da fonseca pera q della de cõta a V. P., aqui não farej mais q dizer a V. P.
q toda a m. q neste negº me fizer a faz a que foj e será sempre deuotismo desta santa companhia e q
igualmente estimarei seruirse de mi como a merce q lhe peço. E por não parecer q com palauras quero
obrigar a me fazer o q doutra manra espero de merecer não passo daqui. Nosso Sõr de a V. P. muito de si
e lhe cumpra seus stos desejos de lxª a 2 de janro 1578». Reproduzida por Francisco Rodrigues, História
da Companhia de Jesus..., Tomo II, Vol. 1, pág. 573.
798
De facto, Mem de Sá falecia a 2 de Março de 1572, deixando os dois filhos como herdeiros mas no
mesmo ano, a 19 de Dezembro, morria o irmão, ficando D. Filipa com a pertença da totalidade da
herança. Cfr. Francisco Rodrigues, História da Companhia de Jesus..., Tomo II, Vol. 1, pág. 187.
799
ANTT, Jesuítas, caixa 16, maço 15, nº 45. Publicado em Sanches Martins, A arquitectura dos
primeiros colégios..., Vol 1, pág. 85-86 e Vol. 2, doc. 110. Citado já em Francisco Rodrigues, História da
Companhia de Jesus..., Tomo II, Vol. 1, pág. 188. Este autor afirma que foi o prior do Lumiar, o
licenciado António de Albuquerque, confessor de D. Filipa, que lhe sugeriu a igreja de Santo Antão.

398
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

No contrato celebrado a 25 de Setembro desse mesmo ano de 1612


800
expressava-se insistentemente a necessidade de concluir a obra na sua
real totalidade, quer no que toca ao arcabouço, quer no que toca ao seu
ornamento. «Nem se pode dizer templo acabado, e aperfeissoado, em
quanto lhe faltar o seguinte:
- 3ª parte ou Camarim com o seu ornato, e trono para expor o
Senhor competentemente
- Hum sacrario de prata competente
- Hum altar competente e credencias, ou presbyterios, que
condigão
- Dous pulpitos com seus guardapós
- Grades das tribunas e as que devem correr de pedra por toda a
simalha, conforme a trassa
- Imagens dos Apóstolos, de pedra de Itália, que as que estão
agora, sam pro interim
- Sacristia competente conforme esta na trassa
- E tambem sacristia para os clerigos, expressa no contrato
- Caixões, e todas as mais pessas tocantes às duas sacristias
- Grades de comunhão com pilares competentes
- Doze moradas de cazas para os capelães 801

Deixo Frontispicio e Torres, e comodo de sinos, e o zimborio e tecto


da igreja, adissões, sem as quaes se não pode dizer o Templo da Senhora
Condessa de todo acabado e de todo aperfeissoado».

A condessa tinha entre mãos um projecto arquitectónico quando se


dirigiu aos padres jesuítas para patrocinar a construção da nova igreja – o
seu autor foi Diogo Marques Lucas.
Pouco antes de falecer – a 2 de Setembro de 1618 – em carta dirigida
a Estevão de Castro, em data próxima desse ano fatídico 802, D. Filipa de Sá
preparava-se para tratar assuntos relacionados com a igreja, concretamente
«acerca da cornija», informando o seu confessor que seria conveniente
«tambem vir o architecto e trazerem o debuxo da capella mor e do que
agora pretendem fazer mais de acrescentamento della» para, com o seu
conselho, «poder dar meu parecer como me pedem». Realçava, todavia,
que «o principal he se sera boa obra o não visto averse de acrecentar

800
Publicado por Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 1, pág. 87-88 e Vol. 2,
doc. 111. Segundo Francisco Rodrigues, História da Companhia de Jesus..., Tomo II, Vol. 1, pág. 188-
189, o contrato foi actualizado em Outubro e aprovado pelo padre geral Aquaviva a 4 de Dezembro desse
mesmo ano.
801
Dado que a Companhia de Jesus não tinha coro nem canto, a condessa insistiu em que se contratassem
doze capelões que se encarregassem dessas funções durante as missas.
802
ANTT, Cartório dos Jesuítas, caixa 16, maço 9, nº 141. Citada em Sanches Martins, A arquitectura
dos primeiros colégios..., Vol. 1, pág. 378-379.

399
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

muito a altura da capella maior mais que a de Nossa Senhora da Luz que e
fechada dalta» sendo da opinião que se trabalhe no cruzeiro e «deixem
estar a capella mor caldeandose o que lhe agora fizerão de novo». Sanches
Martins chamou a atenção para o facto de a patrona revelar ter
conhecimentos de arquitectura, como se comprova pelo discurso textual,
sendo que a referência à igreja da Luz se tratava de um conhecimento
directo já que vivia na sua quinta de Telheiras, devendo por isso frequentar
o templo projectado por Jerónimo de Ruão 803.

O contrato com os mestres de pedraria António Leitão e Miguel


Barreiros foi assinado a 2 de Outubro, comprometendo-se estes a edificar o
templo «pella trassa que a dita Condeça cõ elles Padres assentar», com a
ressalva de que «fara a dita Condeça sua constituinte hua sãcristia
particular e separada da dos Religiosos da dita Companhia» 804.
«Aos 8 dias do mes de 8bro de 1612 deuse principio a se fazer a igra
nova do colegio de s. amtam de Lxa» 805.
A cerimónia simbólica de colocação da primeira pedra realizar-se-à a
1 de Janeiro de 1613 dedicando-se o templo a Santo Inácio de Loyola, o
fundador da Companhia de Jesus.

Na sequência da opinião de Ayres de Carvalho 806, Fausto Sanches


Martins concorda com a atribuição a Diogo Marques Lucas da traça da
igreja jesuíta lisboeta, suportada pela carta da condessa de 1618 807 e no
papel que o arquitecto régio desempenhará durante todo este período, papel
este que vemos como indiscutível quer no momento de apresentação do
projecto aos jesuítas – D. Filipa diz ter inclusive «pedra lavrada» – quer na
orçamentação e supervisão da fábrica por parte do discípulo de Filippo
Terzi.

Sob condições excepcionais criadas pelo patronato, a fábrica arranca


com celeridade e nos inícios do ano de 1614 estava já erguida parte da
estrutura altimétrica de suporte da capela-mor e cruzeiro, como se
depreende pela vistoria realizada a 5 de Fevereiro 808, na presença do
«architecto» Diogo Marques, por uma junta de oficiais de pedraria da
cidade de Lisboa – Estácio Correia, Fernão de Carvalho, Brás Cordeiro,
Ascenso Martins e Pedro Luís. Deslocando-se a Santo Antão com o
objectivo de «verem o sito da jgreia, fundamentos, larguras e grossuras

803
Cfr. Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 1, pág. 378-379.
804
Cfr. Ayres de Carvalho, D. João V..., pág. 39.
805
ANTT, Cartório dos Jesuítas, maço 11, nº 92, fl. 1.
806
Ayres de Carvalho, «Novas revelações para a história do Barroco em Portugal», Belas Artes, pág. 23.
807
Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 1, pág. 376.
808
ANTT, Cartório dos Jesuítas, caixa 16, maço 67, nº 35. Publicado por Sanches Martins, A
Arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 2, doc. 112, pág. 88-89. Leitura nossa.

400
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

das paredes e pilares» chegando às seguintes conclusões: «Quanto a


grossura dos pilares e paredes assi da capella mor, como do cruzeiro,
cupula e corpo da jgreia erão capazes de todo o pezo das abobedas, por
terem mais ainda da quarta q lhe he dado pera repuxo das abobedas q
sobre elles se hão de fechar.
Quanto as paredes em q se hão de encostar os altares do cruzeiros
estavão bem liadas e pendadas, por estarem assi mesmo sobre pedra como
todas as mais, e q não ha nisto q duvidar ou arrecear cousa algua».
Relativamente aos trabalhos de pedraria e cantaria, consideravam ser
«o melhor de toda a obra de lisboa», aconselhando apenas melhorias na
qualidade da areia e da pedra para os trabalhos de alvenaria. Enfim, «virão
tãobem os papeis e traca de toda a fabrica, e iulgarão q estava tudo mui
bem entendido, perfeito, ordenado, e acertado, assi no que toca a capella
mor, como ao cruzeiro, corpo e capella da jgreia».

Diogo Marques Lucas apresenta, por esta altura, dois documentos


assinados pelo arquitecto referentes ao custo da fábrica a realizar no templo
lisboeta. Através deles podemos observar o carácter minucioso que regia a
empreitada e a consideração por parte do mestre responsável pela obra de
todos os pormenores construtivos e seu respectivo custo – merecendo, por
isso mesmo, completa citação.
O primeiro orçamento diz respeito ao cruzeiro do templo com sua
cúpula 809:
«Ade aver nas perçhinas 810 e em seu maçame 811 que ade levar
detras da pedraria no qual maçame ade aver em todas as quatro perçhinas
quatro sentas e dezaseis braças de alvenaria a preço de mil e trezentos rs
braca fas soma de quinentos e quarenta mil e hoito sentos rs _________
540.800
E acim mais ade aver nas duas paredes do topo do çruzeiro em ambas as
ditas duas paredes no que ade aver dusentas e setenta braças de alvenaria
a preço de mil e terzentos rs braca fas soma de terzentos e simcoenta e hu
mil rs ________________________________________________ 351.000
E assim mais as alvenarias que fição no terso das duas abobedas de berso
que estão no çruzeiro nas quais ade aver nos quatro terssos das ditas
abobedas que ver a fazer quatrosentas braças de alvenaria a presso de mil
e terzentos rs braça fas soma de quinentos e vimte mil rs________ 520.000
E açim mais a parede da cimalha pª riba ate toda a simalha donde naçe a
mea laramia ade aver sento e quarenta braça de alvenaria a presso de mil
e trezentos rs braça fas soma de desento e hoitenta e dous mil rs__ 182.000

809
ANTT, Cartório dos Jesuítas, caixa 16, maço 67, nº 90. Publicado em Sanches Martins, A
arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 2, doc. 113, pág. 89-91. Leitura nossa.
810
Designa uma porção de abobadamento de forma circular.
811
Refere-se ao composto de alvenaria das fundações.

401
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

E açim mais na alvenaria que ade fiçar sobre a pedraria da mea laramia
no que ade aver sento e vimte sete braças de alvenaria a presso de mil e
terzentos rs braça fas soma de sento e sessenta e simço mil e sem rs ___
______________________________________________________165.100
E acim mais a parede de limterna que fica sobre a mea laramia na qual
ade aver a dita abobeda de limterna onze braças e mea de alvenaria a
presso de mil e terzentos rs braca fas soma de quatorze mil e novesentos e
comcoenta rs____________________________________________ 14.950
E acim mais abobeda que fica no pe direito da mea laramia pª o servisso
das tirbunas no que ade aver sento e quatro braças de abobeda a presso de
quatro mil rs braca fas soma de quatro sentos e dezasseis mil rs__ 416.000
Soma as sete adesomis asima e tras deçlaradas das alvenarias que se amde
fazer dous çontos sento hoitenta e nove mil e hoito sentos e simçoenta rs
____________________________________________________ 2.189.850

Titollo das pedrarias

Ase de fazer quatro arquos de pedraria que tem seis palmos de pe direito
cada hu delles e tem hu palmo de cabeça que fazem sete palmos de
pedraria laurada e bornida e ade aver he cada hu delles oitenta varas de
pedraria cõ sua muldura e fara de custo cada vara mil e quinentos rs
sendo a pedraria bornida cõforme a que esta feita e açentada que fas soma
cada hu dos arquos sento e vimte mil rs e todos quatro vem a fazer soma de
quatro sentos e hoitenta mil rs ____________________________ 480.000
E acim mais ade aver sobre estes arquos quarenta varas de alqiitrave e
outras tantas de frizo he outras tantas de simalha e val a alqiitrave cada
vara a dous mil rs q fas soma de oitenta mil rs _________________ 80.000
E acim mais ade aver quarenta varas de frizo que ade ir asentado sobre a
alquitrave e ade ser refendido o dito frizo fara de custo cada vara mil e
terzentos rs fas soma de simcoenta e dous mil rs _______________ 52.000
E assim mais a simalha que ade ir sobre este frizo que cão quarenta varas
a simco mil rs cada vara fas soma de duzentos mil rs __________ 200.000
E acim mais a çimalha que ade ir por cima das trebunas donde ade mover
a mea laramia as quais tem quarenta varas de comprido e o seu frizo outro
tanto e a alquitrave outro tanto que vem a ser conforme aquella que vai
sobre os arquos que fara de çusto terzentos e trimta e dous mil rs_ 332.000
E acim mais a pedraria da mea laramia que tem em toda ella seis sentas e
simçoenta varas de pedraria q leva a dita mea laramia a dous mil rs cada
vara fas soma de hu conto e terzentos mil rs _______________ 1.300.000
E acim mais as oito trebunas que amde ir no pe direito da mea laramia e
cada hua faz de custo conforme a pedraria que ade levar quarenta mil rs e
somão em todos oito terzentos e vinte mil rs __________________ 320.000

402
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

E acim mais as frestas que ande ir no topo do cruzeiro pa as luzes delle e


ande ser seis frestas as quais farão de custo sento e simcoenta mil rs __
______________________________________________________150.000
E açim mais o frizo que ade ir aver na largura do çruzeiro pella parte de
fora no que ade aver em sua alquitrave frizo e cornija noventa e seis varas
q fazem de custo terzentos mil rs cada hu dos ditos topos que vem a fazer
em ambos seis sentos mil rs _________________________________ 600.
E acim mais as duas abobidas de bersso que vão no çruzeiro nas quais ade
aver noventa e seis varas de pedraria cada hua a preço de tres mil rs a
vara da dita abobeda fas soma de duzentos e hoitenta mil rs ________ 288.
E acim mais outra abobeda que te as proprias varas que fas soma de
duzentos e hoitenta e hoito mil rs _____________________________ 288.
E acim mais as mulduras que ande ir no pe direito da limterna que ande
servir de pedrastais acim pella parte de fora como pella parte de dentro em
q ade aver dez varas pella parte de dentro e doze varas pella parte de fora
que vem a fazer vimte duas varas a dous mil rs cada vara fas soma de
quarenta e quatro mil rs __________________________________ 44.000
E acim mais a simalha que vai por cima da limterna dondo move abobeda
as quais são por dentro dez varas de pedraria e por fora doze varas a
presso de tres mil rs vara fas soma de sessemta e seis mil rs _________ 66.
E acim mais abobeda da limterna no que ade aver vimte e sette varas de
pedraria a presso de dous mil rs vara fas soma de simcoenta e quatro mil
rs________________________________________________________ 54.
E acim mais o remate que ade ficar em cima desta abobeda da limterna se
acha a fazer de çusto quarenta mil rs ___________________________ 40.
Somão as quinze adiçomis que toqão a pedraria do dito cruzeiro cõ as
alvenarias que aqui ficão declaradas seis contos quatro sentos e hoitenta e
tres mil e hoito sentos simcoenta rs _______________________ 6.483.850

Dyº Marques Lucas».

O segundo orçamento refere-se à abóbada do corpo da igreja 812:


«Nos curzeiros aronpantes que ande ir nesta abobida do corpo da
igreia ade aver sento e quarenta e simço varras que tantas se hão mister pa
os curzeiros e rompantes: cada varra desta pedraria ade ter simquo
palmos de largo a presso de simquo mil rs cada varra fas soma de sette
sentos e vinte simco mil rs ___________________________________ 725.
E acim mais os nove paneis de pedraria que hão de ir nesta abobida que te
quatro centas e quarenta e hua vara de pedraria fas soma de hu conto e
trezentos e vinte e tres mil rs________________________________ 1.323.

812
ANTT, Cartório dos Jesuítas, caixa 16, maço 67, nº 91. Publicado por Sanches Martins, A
arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 2, doc. 114, pág. 91-92. Leitura nossa.

403
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

E acim mais os dezeoito paineis que tem de conprido simquo varras e hua
de largo que em todos os dezeoito paineis ade aver quatro centas e
quatorze varras de pedraria a presso de trezentos rs varra fas soma de
sento e vinte quatro mil e duzentos rs _________________________ 124.2
E acim mais os ojto paineis pequenos e quadrados nos quais ade aver
quarenta varas de pedraria a presso de trezentos rs varra fas soma de doze
mil rs ____________________________________________________ 12.
E acim mais o arquo curzeiro que e neçecario fazerçe se se fizer abobeda
do corpo da igreia o qual arquo fara de custo sento e simçoenta mil rs _
_________________________________________________________150.
Ande custar as alvenarias que ande jr nos terssos das abobidas duzentos e
simcoenta mil rs pouquo mais ou menos ________________________ 250.
Somão as seis adisomis dous çontos e quinentos e hoitenta e quatro mil e
duzentos rs___________________________________________ 2.584.200

Dyo Marques Lucas».

Eram assim necessários 6.483.850 reais para o cruzeiro com cúpula e


abóbadas laterais no transepto e 2.584.200 reais para o abobadamento do
corpo da igreja.

Para além da supervisão de Diogo Marques Lucas, que vivia perto do


colégio jesuíta, entre 1620 e 1627 a fábrica «inaciana» contará com a
presença do padre Gaspar Ramos que tinha sido confessor da condessa,
homem da sua inteira confiança que certamente acautelou todos os
pormenores e desejos tidos em conta nos contratos e testamento depois da
morte de D. Filipa de Sá 813.
Em 1621, Santo Antão contava já com capelas ao longo da nave.
Nesta data, os arquitectos régios Baltasar Álvares, Teodósio de Frias e
Diogo Marques Lucas realizavam uma inspecção à obra da capela
instituída pelo inquisidor Manuel Álvares Tavares 814 :

813
Segundo Francisco Rodrigues, História da Companhia de Jesus..., Tomo II, Vol. 1, pág. 190, «a morte
da condessa foi desastrosa para a construção do templo. Apenas ela fechou os olhos, surgiram daqui e
dalém demandas sôbre demandas, que embarguaram em todo ou em parte os rendimentos dos bens
deixados à igreja por testamento da fundadora, e impediram ou embaraçaram durante largo tempo, pela
falta de dinheiro, o avanço da obra. No reino teve o colégio de sustentar processos, como o do quarto
conde de Linhares, depois vice-rei da Índia, D. Miguel de Noronha, sobrinho do terceiro conde D.
Fernando, espôso de D. Filipa. No Brasil, pelas fazendas que lá herdara a condessa, houve que litigar em
demandas prolongadas com a Misericórdia da cidade do Salvador, e com o colégio que na Baía tinha a
Companhia de Jesus». Apenas em finais dos anos 30 chegam a acordo com a Misericórdia enquanto que
as duas casas jesuítas só se entenderiam em 1659.
814
Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 1, pág. 388. Fausto Sanches Martins
narrou o longo episódio em torno da capela do inquisidor Manuel Álvares Tavares. Antes mesmo do
patrocínio da condessa de Linhares, no seu testamento de 12 de Junho de 1611, o poderoso inquisidor
manifestava o desejo que o seu féretro se «depozite na capella Mor entre os altares mores» logo «que
tanto se fizer a igreja nova» de Santo Antão deixando um legado de 500 cruzados. Ora, tal não se veio a

404
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

«Os arquitectos de Sua Magestade abaixo assinados fomos a igreja


de Sancto Antão desta cidade e vimos huma das capellas do corpo da ditta
igreja vendoa por fora e por dentro assi alvenarias, como pedrarias,
abobeda e o que esta por fazer para se acabar de todo com altar, degraos,
guarnições das paredes, e tecto, e pavimento de lagens e acharão fazer de
custo hum conto de reis, e assi o certeficam pello juramento de nossos
cargos em Lisboa a vinte e nove de Março de seis centos e vinte e hum
Theodosio de Frias
Bathezar alveres
Diogo Marquez».

Poderiam ser os mesmos quando se fala em 1620 dos «3 architectos


para avaliar a capela d’Agonia: 4.000» 815.
Se a estrutura altimétrica de suporte do templo arrancou com rapidez,
ao longo dos anos a fábrica foi perdendo celeridade. Em 1625 a
documentação romana informa que só agora «se começa a fazer a abóbada
da capella mor» e uma década depois estava «ainda muito imperfeita»,
sendo avaliada a 30 de Junho de 1636 pelo mestre de pedraria António
Gomes e pelo mestre de carpintaria Manuel Rodrigues 816.
Como relata o cronista do início do século XVIII, inicialmente as
coberturas seriam todas em mármore branco «mas depoys de muytos annos
que a obra se interrompeo, por a occasiam dos litigios que ouve sobre os
bens da Condeça fundadora, quando no anno de 1650 se trattou de
continuar a abobeda que estava começada, pareceo aos Padres ficaria
muyto mays fermoso o tecto da igreja fosse variado e ornado com
marmores de diversas cores, o que se veyo a executar compondo-o de
marmores brancos, pretos e vermelhos, que se ajustaram com muy boa
ordem em nove grandes payneys, fora outros inferiores na grandeza, que
todos vem a fazer o tecto muy vario e agradavel aos olhos. E acabada
assim a abobeda do corpo da igreja pello mesmo modo na diversidade da
cor das pedras, posto que com diferente feytio, se cobrio o cruzeyro
fingindo no meyo delle com madeyra pintada o zimborio, e nesta forma
ficou até se fazer de pedraria pello modo em que hoje está.
E posta no estado referido a igreja, na capella-mor se fingio na
parede fronteyro hum retabolo pintado, cuja obra se imitou nos dous
altares do cruzeyro, o qual se dividio do corpo da igreja com humas
grades pintadas, pondo-se outras semelhantes nas capellas do corpo da
igreja, que se fechou com as mesmas portas que hoje tem.

verificar, e os restos mortais foram depositados numa das capelas laterais do corpo da igreja. Não
obstante, os conflitos prosseguiram conduzindo à anulação do contrato em 1701. Cfr. pág. 389 a 392.
815
Cfr. Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 1, pág. 387..
816
Cfr. Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 1, pág. 389 e 393.

405
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

E ornada com bello ornato a capella-mor e as do cruzeyro e corpo


da igreja, se resolveo a mudança do Senhor da igreja velha pera a nova, a
qual se executou no dia de Sancta Anna do anno de 1653» 817.

De facto ainda se trabalhava na cobertura e já os padres tinham


picado as paredes para embotir os mármores coloridos aquando do exame
que o arquitecto régio Mateus do Couto realiza a 19 de Março de 1653 818,
assistido nas medições por João de Sousa, «mestre da caza», e António
Botelho. Tratava-se, neste particular, de «medir hu braco do cruzro da ditta
igra e foj o da banda do poente e ver o q fez de custo». A obra era «toda de
pedraria lios branqua bornida e na abobada deste braço do cruzro achej
embotidos prettos e vermelhos, com seus paineis de relevo e artezois e uma
simalha mto grave e grãdioza e da simalha pa baxo pilares branquos
bornidos com seus capiteis composittos estriados e basas doricas tudo
resalteado e antre os dittos pilares no mais alto andar duas janellas altas e
loguo mais abaixo duas quaas hua de cada banda e no olivel do chão dous
portais cõ suas simalhas tão bem grandes e todos estes vãos burnidos cõ
suas mochettas 819 e sanquettas e antre elles pasão duas equipaçois 820 de
simalhas piquenas q vão por em o arquo q esta pa o altar no mo e topo
deste cruzro e toda esta obrada cõ toda a perfeicão q a arte da de sj».
Refere ainda que o braço do cruzeiro «em redondo q se estende da aresta
do pilar onde devide as perchinas e cupulla toda branca e bornida» tem
«abobadas de pedraria apajnellada cõ seus rompantes e paineis
almofadados e resalteados cõ embotidos prettos e vermelhos», dois portais
nos topos do cruzeiro e dois nichos.
Este era o «estado da arte» por altura da trasladação do Santíssimo
Sacramento. Sabe-se que a irmandade de Santo Antão ocupará a terceira
capela à Epístola, junto à entrada do templo, a partir do ano de 1653 e no
ano de 1658 é instituída no cruzeiro, ao Evangelho, a capela de São
Francisco Xavier, patrocinada por D. Joana de Sousa e avaliada pelos
mestres pedreiros Jacinto Rodrigues e António Fernandes em 400.000 reais
821
.
Também em torno da década de 1650-1660, os padres de Santo
Antão-o-Novo decidiam fazer construir um imponente túmulo de mármores
nacionais e genoveses para abrigar D. Filipa de Sá, obra de custo elevado, e
que foi ocupar o arcossólio do lado do Evangelho da capela-mor – existia
um outro, fronteiro, desocupado ainda nos inícios de Setecentos. Nessa
época «procuraram acrescentar mayor lustre e ornamento em toda a
817
História dos Mosteiros, Conventos e Casas Religiosas..., Vol. I, pág. 419-420.
818
ANTT, Cartório dos Jesuítas, caixa 16, maço 67, nº 36. Citado em Sanches Martins, A arquitectura
dos primeiros colégios..., Vol. 1, pág. 395. Leitura nossa.
819
A «mocheta» é um filete ou lintel, uma aresta saliente da parte inferior da cornija.
820
No sentido de «aparelho», «equipagem».
821
Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 1, pág. 399-400.

406
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

capella, cuja pedraria assim no tecto como nos lados foy toda de novo
bornida, lustrada e ornada de muytos e muy perfeytos embotidos,
revestindo-se os pilares que sustentam o arco que dá entrada à capella de
perfeytas almofadas de marmore de várias cores» 822.

Existe um importante pormenor que tem vindo a ser ignorado pela


historiografia. Diogo Marques Lucas não projectou uma fachada ladeada
por torres sineiras !
O relato de 1706, do cronista acima citado cabalmente o declara: «E
no estado referido se acha a frontaria da igreja, a qual se nam traçou com
intento de ficarem no frontispicio torres, mas de se fazer nas costas da
capella(-mor) huma capaz dos sinos e relogio; mas deste proposito se
arrependeram depoys os Padres acommodando ainda torres na
extremidade da largura do frontispicio. Mas como nam tiveram nascimento
de bayxo nam poderam em cima ter a capacidade sufficiente pera ficarem
em forma conveniente, e assim ainda que as começaram a levantar vieram
a desistir da obra guardando pera outro tempo tomar resoluçam sobre
ella» 823. Assim se encontravam ainda em 1706.
Sabe-se que em 1670 os alicerces das torres estavam lançados, o
zimbório praticamente concluído mas a abóbada da capela-mor ainda não
estava completamente cerrada. Por esta altura, o provincial pretendeu
desmanchar a cimalha exterior da igreja, mas a consulta a vários mestres
experimentados, entre outros, João Nunes Tinoco e Mateus do Couto,
«sobrinho», aconselharam a sua manutenção em favor das boas regras da
arquitectura 824. Era «mestre de obras» António Fernandes (1663/1672)
quando Mateus do Couto, «sobrinho», apresentava o seu parecer artístico
acerca da frontaria – nela «a cornija com sua cachorada resalteada em os
pilares e no principio dos legimtos della se fes junta sobre a mesma
simalha», segundo documento de 8 de Julho de 1672 825. Em 1690 o
mesmo arquitecto examinava o zimbório 826.

No livro de receita e despesa referente aos anos de 1689-1701 faz-se


referência a uma «lembrança do gasto que se vay fazendo nas obras da igra
de 2 de Junho de 682 em que se abriram as obras do eyrado e zinborio ate
24 de Ago de 683 em q se deu contas ao Pe pal» 827.
Posterior é a fábrica do retrocoro, edificado entre 1692-1705, obra
iniciada depois da chegada da pedraria vinda de Génova para o retábulo da

822
História dos Mosteiros, Conventos e Casas Religiosas..., Vol. 1, pág. 440.
823
Cfr. História dos Mosteiros, Conventos e Casas Religiosas..., Vol. 1, pág. 417.
824
Sobre este episódio, consulte-se Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., Vol. 1,
pág. 405-407.
825
ANTT, Cartório dos Jesuítas, caixa 16, maço 67, nº 37.
826
Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., pág. 801-802.
827
ANTT, Cartório Notarial dos Jesuítas, maço 11, nº 92, fl. 2.

407
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

capela-mor em 1690. De facto, a opção da feitura do retábulo-mor levou ao


cancelamento do remate da cúpula: «Depoys de ter chegado com o
zimborio ao estadio em que se acha se resolveo no anno de 1692 se devia
trattar do retabolo», sustenta o cronista jesuíta que em 1706 descreve a
obra 828.

O manuscrito anónimo faz ainda «relaçam da nova obra que no


anno de 1701 se fez nos lados do corpo da igreja, a qual pareceo aos
Padres que resultaria mayor graça e fermosura se os dittos lados, que
eram todos de marmore branco, se ornassem com algumas almofadas de
marmore das mesmas cores que se vem na abobada da igreja, aos quaes
fizessem alguma correspondencia, e assim nos entrepilares que ficam entre
as capellas assentaram em cada hum onze almofadas de marmore preto e
vermelho, com hum embotido branco no meyo, que fazem numero de trinta
e seys almofadas às quaes acrescentaram mais dezoito, repartindo a cada
lado de huma das tres tribunas tres almofadas.
Tambem nos seguintes dos arcos das capellas meteram triangulos de
marmore vermelho com seo embotido branco no meyo e com esta obra
ficou o corpo da igreja mays vasio e engraçado e dizendo melhor com as
cores que se vem nos marmores de que consta a abobeda» 829. Com tudo
isto, toda a igreja de Santo-Antão-o-Velho, da capela-mor às paredes da
nave recebeu revestimentos marmóreos.

Todo este enlevo trouxe como consequência o quase abandono dos


anexos colegiais dado que após o início da monumental fábrica da igreja
«se continuou lentamente até acabar com todo o comprimento dos dous
corredores que sam domicilio dos religiosos». «E assim se acha o Collegio
com os dous corredores que em seo principio começou a ter ainda muy
imperfeytos, sendo elles muy dignos de se aperfeiçoarem, porque a sua
grandesa e extensam he de seyscentos e dezasete palmos y meyo, sendo
proporcionada ao comprimento a largura e altura delles, e se tivessem já
os accidentes de asseyo e ornato que ainda lhe falta nam teriam nada que
invejar aos melhores que se vem nos grandiosos conventos de Lisboa».
Assim, em 1706, cada ala tinha vinte e dois «cubiculos» com seu portal e
janela de cantaria e «mays sinco quadras com a mesma capacidade que tem
os cubiculos» com amplas janelas e assentos. «Alem dos dittos dous
corredores ha tantos annos começados, e ainda hoje imperfeytos, nam
pode até agora o Collegio acodir a outras obras que demanda a traça
magnifica do mesmo Collegio», tais como a Portaria e sua escadaria nobre

828
Preveceu a opinião daqueles que defendiam um retábulo pétreo em desfavor de um de talha dourada.
Uma descrição aturada da peça retabular e seu sacrário encontra-se em História dos Mosteiros, Conventos
e Casas Religiosas..., Vol. 1, pág. 442-447.
829
História dos Mosteiros, Conventos e Casas Religiosas..., Vol. 1, pág. 428.

408
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

de acesso aos dormitórios, a Livraria – que ocupava um espaço provisório


exíguo – e o designado Pátio dos Estudos, obra de grande custo, que se
tinha projectado para ficar à mão direita da fachada da igreja 830.

Se nos perguntarmos a quem devemos imputar a autoria do projecto


monumental da igreja de Santo Antão-o-Novo não restam dúvidas só o
patrocínio da condessa de Linhares em 1612 abriu finalmente uma
oportunidade para fazer edificar na cidade de Lisboa aquele que seria o
mais italianizado dos projectos arquitectónicos da época, monumental, e
desenvolvendo uma planimetria de inspiração tridentina. Parece-nos claro
que o mestre responsável pelo seu projecto e pela supervisão construtiva foi
Diogo Marques Lucas.

Até ao presente apenas se citava a pincelada deixada por Albrecht


Haupt que visitou o que restava do templo nos finais do século XIX: «A
imponente fachada de mármore, majestosamente escalonada por pilastras
jónicas, era flanqueada dos dois lados por torres, cujo aspecto se
aproximaria de São Vicente de Fora, se não as imaginarmos quadrangulares
até ao extremo superior. Entre os portais abrem-se portais de mármore que
dão acesso ao interior e que encantam pelo esplendor e estilo
marcadamente italiano. A fachada produz um efeito ainda mais grandioso,
porque os portais, muito delicados, mas imponentes, aumentam ao máximo
os parâmetros da restante arquitectura.
O interior apresentava uma enorme abóbada de berço guarnecida de
artesoados e apainelados em mármore policromado, suportada por
poderosas pilastras dóricas; entre estas últimas, encontram-se as capelas.
Um reflexo não tão grandioso desta impressão geral é o transmitido por
São Vicente de Fora, exactamente no mesmo género.
O transepto, a cúpula e o coro de Santo Antão desabaram e apenas se
conservou o remate do coro e o nicho, de posterior construção, atrás do
altar-mor, totalmente decorado com mosaicos de mármore» 831.

Todavia, encontra-se uma preciosa e extensa descrição da igreja de


Santo Antão-o-Novo através da pena do cronista anónimo dos inícios do
século XVIII, neste particular, redigida no ano de 1706. Dado que o templo
nunca foi convenientemente caracterizado, é absolutamente necessário
recorrer às suas longas citações para o recuperarmos das brumas do oblívio.

830
Cfr. História dos Mosteiros, Conventos e Casas Religiosas..., Vol. 1, pág. 449-451.
831
Albrecht Haupt, A Arquitectura do Renascimento em Portugal, pág. 62-63.

409
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

A fachada tinha «tres portas das quaes a do meyo he de competente


grandesa. Aos lados della assentam sobre dous pedestaes duas boas
columnas com suas bazas e capiteys, a que se segue huma bem obrada
simalha, e sobre ella hum engraçado frontispicio com boa obra que remata
em huma cruz. E toda esta obra do portal, como a mays do frontespicio, he
de marmore branco, e bem bornido, cousa que pode ser se nam ache em
outro frontispicio da cidade nem do Reyno.
Na sua largura se vem oito pilares, dos quaes os quatro que ficam
entre as portas sobem por toda a altura da frontaria, e os dous que se
seguem depoys destes tem no meyo hum nicho em que hade haver a
imagem de hum sancto tambem de marmore.
Sobre o ornato das portas e nichos correm na mesma linha sinco
janelas, tres das quaes caem sobre o coro, e a do meyo que fica sobre a
porta principal he de mayor largura, ficando as duas que estam nos seos
lados correspondentes a plumo às outras duas portas da igreja.
Ha mays na mesma altura e na mesma linha outras duas janelas
iguaes às de que acabamos de falar, as quaes tem lugar no corredor que
vae por cima das capellas da igreja em que assentam as tribunas della.
Por cima das dittas sinco janellas corre huma fermosa simalha
resalteada e com boa sacada pera fora. E superior à ditta simalha
correspondente à janela que dissemos ficar sobre a porta princi(p)al, tem
lugar outra, que como he unica no segundo corpo do frontispicio he de
mayor grandesa, e com guarniçam de mayor feitio, porque ao lado das
hombreyras tem suas misolas e por cima seo frontispicio de quartelas.
Aos lados desta janela se continuam de cada parte dous pilares, e
entre elles tem lugar de cada parte hum nicho ornado com seo frontispicio
de molduras que fecham em angulo, e sobre a janela, pilares e nicho, em
boa altura, corre a simalha real e ultima do frontispicio, que sobre os
pilares he resalteada.
Tem esta grande simalha ou cornija huma grande sacada que
sustentam cachorros bem lavrados, semelhantes aos que tem a igreja por
dentro».
Depois de se referir à construção efémera e posterior obra das torres,
declara que «aos lados do frontispicio sobre as capellas da igreja fica de
cada lado huma varanda, em que ha-de haver pilares, pyramides e
balaustes de pedra. E sobre esta varanda encostada à parede mestra que
sustenta a abobeda da igreja se ve huma simalha grandiosa que ha-de ser
tambem ornada com obra semelhante à que acabamos de dizer haver de
ter a varanda que fica por bayxo, o que tudo nam só servirá pera ornato e
fermosura mas tambem pera segurança dos que sobirem e andarem sobre
o tecto da igreja, no qual por sima da abobeda de pedra se fez outra de
ladrilho, que igualada muyto bem se lageou de pedraria, o que serve nam

410
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

só pera commodidade dos que andam por cima mas tambem de defender
que nam passe a agua quando chove ao pavimento da igreja» 832.

Através deste relato pormenorizado – e valendo-nos das gravuras


conservadas – podemos reconstituir com grande fidelidade o frontispício de
Santo Antão-o-Novo. Elevava-se em dois registos sobrepostos divididos
por cinco panos verticais. O piso térreo era ritmado por oito pilastras
colossais e onde apenas as duas centrais e as dos cunhais não se
encontravam replicadas no marco arquitectónico. Assentes em pedestais,
eram dóricas mas de fuste liso e apenas com oválos e pendentes nos
capitéis. Ao centro integravam-se três portais, ladeados por dois nichos nas
ilhargas.
O portal principal era de maiores dimensões e a sua arquivolta era
emoldurada por colunas sobre pedestais com base ática, fuste estriado,
capitel com óvalos e pendentes e caneluras no friso dividido do fuste por
colarete. Sobre elas assentava um entablamento com triglifos e motivos
florais nas métopas. O ressalto da cornija fazia incluir, ao centro, uma
imposta e mísula que se ligava ao semi-círculo de cantaria. Originalmente,
o remate incorporava enrolamentos laterais com cruz no vértice, motivos já
ausentes nos desenhos de Haupt. Os portais laterais eram de menores
dimensões mas de igual refinamento de debuxo, com pilastrinhas conclusas
em mísulas triglifadas, corpo intermédio, e frontão superior curvo
concheado. Os portais inacianos partilham características utilizadas por
Diogo Marques Lucas no desenho da portaria nova conventual de Tomar.
Ainda no primeiro corpo, rasgavam-se num nível superior cinco
janelas, três que iluminavam o coro-alto e duas que davam acesso aos
corredores acima das capelas laterais, correspondendo às tribunas. Acima,
um entablamento correcto com ressaltos correspondentes às pilastras
colossais, ornado por friso com triglifos e almofadas quadradas nas
métopas.
O segundo registo rasgava no eixo do portal principal um janelão
rectangular com pilastrinhas misuladas e um remate com enrolamentos,
cartela e pequeno frontão curvo. Era ladeado por dois nichos com frontões
triangulares. Este andar nobre incluía quatro pilastras jónicas, lisas, sob
plintos e com caneluras no friso do capitel, em concordância com os três

832
História dos Mosteiros, Conventos e Casas Religiosas..., Vol. 1, pág. 415-417. Dedica-se depois à
descrição exterior da zona do cruzeiro que «pella parte de fora tem as paredes delle de cada parte quatro
grandes pilares, que se rematam com seo capytel, sobre o qual se segue huma bem lavrada obra com seo
alquitrave, friso e simalha, e sobre esta obra ham de assentar pedestaes, pyramedes e balaustes de pedra
na mesma forma que temos ditto haverem de ficar sobre a parede mestra do corpo da igreja.
No meyo do cryzeyro se vê a maquina exterior de seo zimborio revestido todo de pedra de
cantaria, e nelle oito grandes janelas que se terminam em arco acompanhadas de dous pilares por
banda, e assim vem a ficar cada huma entre quatro pilares, que por todos fazem o numero de trinta e
dous. E pella parte de fora nam tem até agora o zimborio outra obra havendo de ter ainda muyta que o
fará muy vistoso como pede a perfeyçam que nelle se vê pella parte de dentro». Cfr. pág. 417-418.

411
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

panos centrais, dado que nas ilhargas se incorporavam remates piramidais.


Por fim, a «cimalha real» era constituída pela célebre «cachorrada», uma
forte cornija assente em amplas mísulas que sustentavam a sacada superior.
Pelas dimensões do segundo registo – quer pelo que se observa no desenho
de Haupt quer nas gravuras conhecidas – Diogo Marques Lucas deve ter
concebido um remate superior curvo ou triangular mas, tal como se
apercebe pela descrição, a fábrica do frontispício não estava concluída.

No que respeito ao espaço interino da igreja, a nave teria cento e


vinte e oito palmos de comprido e sessenta e quatro palmos de altura até ao
degrau do cruzeiro, precedida por um anteparo em madeira de angelim 833:
«Consta o corpo deste templo todo de marmore branco, cujas pedras sobre
serem bem lavradas foram todas com nam pouco custo bornidas.
Em cada lado do corpo da igreja ha tres capellas iguaes em fundo
altura e largura.
Da parte do corpo da igreja dam entrada pera dentro da capella
dous pilares que se terminam com sua moldura, que corre pelos lados da
capella, e sobre os dittos pilares que formam a entrada da capella se
levanta o arco della, a que corresponde outro no fundo, sustentado de
outros dous pilares iguaes aos que a capella tem na entrada.
Sobre os arcos das capellas se segue por todo o spaço que ellas
occupam sua simalha, ficando no meyo do arco huma fermosa tribuna em
que assentam sobre hum sepo de marmore vermelho seys balaustes de
pedra branca d(e) Estremoz, servindo-lhe de frechal outro marmore
vermelho bem lustrado. E nos lados de cada capella se levantam dous
grandes pilares que assentam em arrogantes bazes e se terminam com bem
lavrados capiteys.
Sobre os dittos pilares que no corpo da igreja sam por todos dez de
cada parte corre o alquitrave, friso e cornija, a qual tem de sacada seys
palmos e meyo e o sustentam por todo o corpo da igreja, no comprimento e
largura delle, cento e dous cachorros lavrados com boa arte, que dam
grande satisfaçam aos olhos dos que os põem no corpo desta igreja, sobre
cuja cornija se começa a levantar a abobeda della, a que se deo principio
com tençam de ser toda de marmore branco, como era a mays obra» 834.
833
«Entrando na igreja pella porta principal encontram logo os olhos pera resguardo do vento hum tam
fermoso antiparo que nam tem até agora a cidade outro que lhe faça ventagem, nem ainda quue lhe seja
igual.
He todo de madeyra de angelim lavrada de talha com grande valentia e perfeyçam, apezar da
resistencia que pera se deyxar lavrar a madeyra faz ao ferro. Tem no meyo uma grande porta que consta
de duas meyas, e em cada huma dellas tres grandes almofadas lavradas com muyta obra e tode de
grande primor», «e proximas aos extremos da largura do antiparo fica pera a parte da igreja de cada
banda huma columna de huma só pedra, que sem falar em base nem capitel tem de altura vinte e sinco
palmos, e em circunferencia sette e meyo. Servem estas columnas de sustentar a frontaria do coro, que
nam está ainda na forma em que ha-de ficar». História dos Mosteiros, Conventos e Casas Religiosas...,
Vol. 1, pág. 418-419.
834
História dos Mosteiros, Conventos e Casas Religiosas..., Vol. 1, pág. 419.

412
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Como vimos, a partir de 1650, os padres jesuítas resolveram aplicar nas


esquadrias da abóbada embutidos de mármores brancos, vermelhos e
negros, ornato que se estendeu depois a toda a igreja.

«He o cruzeyro deste insigne templo tam grandioso que a largura


della nam he em nada inferior à que tem o corpo da igreja, que no
comprimento nem excede muyto ao que tem o cruzeyro, ao qual se sobe do
corpo da igreja por hum degrao em que estam assentadas humas boas
grades de jacarandá, que ornam e asseguram oito pilares de marmore
vermelho bem lavrados. Nos topos do comprimento tem lugar duas grandes
e fermosas capellas, ambas à face, correspondente huma à outra», ao
Evangelho, a capela de São Francisco Xavier e à Epístola a capela de São
Francisco de Borja. «Depoys de termos dado já noticia de ambas as
capellas do cruzeyro he rasam a demos de outras cousas dignas de
attençam que ha no mesmo cruzeyro, no qual aos lados das capellas se vê
de cada parte dous grandes pilares, cujas bases e capiteys sam em tudo
iguaes aos que ficam no corpo da igreja». Absorto com os ornatos
marmóreos, o cronista passa a descrever pormenorizadamente a sua
quantidade, dimensão e número: «No mesmo cruzeyro, no entrepilar mays
proximo à entrada da capella-mor, se metteram mays cinco almofadas na
mesma forma das outras que dissemos estar assentadas aos lados das duas
capellas, e sobre as primeyras sinco corre a simalha que se vê nos
entrepilares visinhos às capellas, e por sima della tem lugar dous nichos
em que se vem collocadas duas imagens de dous Apostolos, tendo o ultimo
nicho por cima huma almofada. E sobre este entrepilar se levanta o arco
superior ao da entrada da capella-mor».
«Sobre os capiteys que ornam os pilares do cruzeyro, na mesma
forma que se vê nos pilares do corpo da igreja, se segue a mesma obra de
alquitrave, friso e cornija, sustentada de cachorros lavrados com meyas
canas, com grande perfeyçam, que assim como correm por toda a igreja se
seguem do mesmo modo por todo o cruzeyro e lados da capella-mor, de
que resulta grande fermosura à cornija e muyto agrado aos olhos que se
empregam em olhar pera ella.
Superior às duas grandes capellas tem lugar tres fermosas janelas
com suas vidraças que servem de dar luz ao cruzeyro, com que elle he tam
claro que necessita de mais luz».
«Ha mays no cruzeyro quatro grandes e fermosas portas. Por duas
dellas que ficam no meyo das duas Vias Sacras correspondentes às duas
que ha-de ter a sanchristia, será a serventia della pera a igreja, e por
outras duas que lhe correspondem fronteyras se faz passagem do cruzeyro
pera as capellas que tem lugar no corpo da igreja e aos dous pulpitos que
tem seo lugar antes de entrar na primeyra capella do corpo da igreja.

413
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Sobre cada huma das dittas portas tem lugar duas tribunas que
ficam olhando pera o cruzeyro, das quaes duas tem a mesma serventia de
que usam os que vam pera as tribunas do corpo da igreja, e sam da mesma
altura e com obra em tudo semelhante, nam tendo outra differença que
serem menos largas e por isso tem estas só sinco balaustes, tendo as outras
seys.
Por bayxo desta tribuna tem lugar outra de menor grandesa, e de
figura quoadrada. E a estas duas tribunas correspondem da parte da Via
Sacra outras duas em tudo iguaes, com que vem a ser oito as tribunas que
caem sobre o fermoso cruzeyro desta igreja» 835. O pavimento do cruzeiro
era ornado de pedraria branca, preta e vermelha.

No que diz respeito ao zimbório, assentava «sobre quatro arcos dos


quaes hum fica na entrada do cruzeyro, a que corresponde outro antes de
chegar à capella-mor, e a estes dous arcos sam em tudo iguaes outros dous
que tem lugar da parte das duas grandes capelas, e unindo-se estes
firmissimos arcos com huns seguintes de marmores brancos formam o
grande circulo em que se sustenta o peso todo da maquina do zimborio,
que na verdade he extraordinario pella grande circunferencia, altura e
grossura das paredes, que pella parte de fora sam cobertas todas de
cantaria e pella de dentro vestidas de marmores de diversas cores com
tanta obra nas bases, pedestaes, pilares, entrepilares, misolas, molduras,
resaltos, simalhas, que se por miudo se ouvesse de relatar tudo faria huma
muy larga relaçam. E assim só direy que antes de chegar ao corpo e andar
das grandes oito janelas ficam a plumo dellas dous andares de payneys de
marmores lavrados com grande primor, de marmores de diversas cores, os
quaes payneys fazer sair muy lustrosas as molduras que os guarnessem.
Dividem-se no primeiro corpo os payneys huns dos outros com duas
misolas de marmore branco que tem lugar entre dous payneys e assim vem
a ser todas desaseys.
Distingue-se o primeyro corpo do segundo com huma boa cimalha,
correspondendo aos oito payneys do primeiro corpo outros oito no
segundo com diverso feytio.
Aos dittos dous corpos segue tanta obra que por ser muyta me nam
atrevo com miudeza a referi-la, e assim passando ao terceyro corpo, em
que avultam muyto oito grandes janelas que fecham em arco, ficando entre
cada duas janelas dous pilares revestidos todos d(e) embotidos, os quaes
se rematam com capiteys de marmore branco de Genova, obra de relevo
muy perfeyta. No entrepilar tem lugar huma peanha pera sustentar huma
imagem e esta peanha sustenta por bayxo hum serafim.

835
Cfr. História dos Mosteiros, Conventos e Casas Religiosas..., Vol. 1, pág. 429 e 433-434.

414
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Os arcos das janelas e os pilares em que se fundam, e todo o vam


das mesmas janelas que os olhos descobrem, está revestido de varios e
perfeytos embotidos, e por cima das janellas e dos pilares e entrepilares
que as ornam segue a cimalha real sustentada de cachorros de marmore
vermelho.
E tendo chegado o zimborio à altura que temos ditto, pareceo
conveniente parar com a obra» e virar a atenção para a «obra do retabolo
da capella-mor, assim por ser a mays principal da igreja e a que mays
ornamento lhe dá e melhor se deyxa lograr» 836. Tal aconteceu no ano de
1692.

Por fim, a capela-mor, «a qual deyxou a condeça fundadora ao


tempo de sua morte em grande altura e na mayor perfeiçam a que chegava
a dos officiaes daquele tempo, que tiveram grande attençam a que a
pedraria fosse a melhor que se descobria nas pedreyras visinhas a Lisboa,
que procuram lavrar com o mayor primor da arte. E despoys de bem
lavrada foy toda com muyta paciencia bronida e tam bem assentada que os
olhos mays advertidos mal podiam descobrir as juntas das pedras que
formavam os pilares sobre que assenta o arco que dá entrada e principio à
capella. E os pilares que tem duas faces, huma que cae sobre o cruzeyro e
outra pera dentro da capella, se rematam com huns capiteys tam perfeytos
que nam tendo os officiaes que os obraram ezemplar pera a imitaçam
sahiram com elles taes que inda agora se nam vem imitados com igual
perfeyçam nas muytas obras que depoys delles se tem de novo feyto em
Lisboa.
Aos dittos pilares e capiteys com que a capella tem principio
correspondem outros com que se termina o comprimento de cada lado, que
consta de sessenta e tres palmos, tendo na largura só quarenta e dous, que
se fossem os que deviam ser nam haveria defeyto que notar mas muytas
perfeyçam que admirar.
Bem no meyo do comprimento do lado da parte do Evangelho se fez
hum arco com a altura, largura e fundo competente pera se fabricar a
sepultura da Condeça fundadora. E bem no meyo do spaço que corre do
arco ao pilar que dá principio à capella se vê hum nicho que fecha em
arco, forrado pella parte interior de marmore vermelho em que assenta a
imagem de hum Evangelista, e ao ditto nicho corresponde por bayxo nobre
baze com boas almofadas de marmore preto e vermelho, ficando a ditta
base entre dous pedestaes sobre que assentam a cada lado do nicho hum
pilar de huma pedra muy branca e bem lavrada, com seo capitel, a que
acompanha pella parte de cima sua alquitrave, frizo e cimalha, tudo
obrado com grande perfeyçam, com que se remata o primeiro corpo do

836
História dos Mosteiros, Conventos e Casas Religiosas..., Vol. 1, pág. 435-436.

415
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

ditto lado, e por cima do qual se seguem base e pedestaes em que assentam
outros dous pilares lavrados com todo o primor e seos capiteys, que
correspondem no perfeyçam à que tem os dos pilares sobre que assenta o
arco que dá entrada à capella, e os dittos pilares acompanham a janela
que fica a plumo do nicho.
E sobre o arco que recolhe a sepultura da fundadora tem lugar hum
nicho muy perfeyto forrado de marmore vermelho que dá lugar a huma
imagem do Principe dos Apostolos Sam Pedro, lavrada em alvissimo
marmore de Genova, e sobre este nicho e a janela que assenta sobre cada
hum dos dittos lados se segue alquitrave, friso e cimalha resalteada, e
finalmente superior à ditta obra, que he toda de grande perfeyçam, se
segue finalmente a cimalha real, ou cornija, sustentada sobre seos
cachorros na mesma forma que vem do corpo da igreja e cruzeyro.
E à obra que contem o lado da capella-mor da parte do Evangelho
corresponde outra em tudo semelhante da parte da Epistola.
E sobre a cornija se começa a levantar a abobeda da capella-mor,
variada de marmores brancos, pretos e vermelhos» 837.

Esta profusa descrição dá-nos uma pequena grande ideia do fascínio


do cronista jesuíta pela majestosidade e riqueza da igreja de Santo-Antão-
o-Novo. Não obstante, como vimos, o projecto original apenas reservava
para a capela-mor algum ornato especial, pois constava «todo o corpo deste
templo todo de marmore branco», marcado unicamente pela ordem
arquitectónica, antes de ser completamente revestido por embutidos de
mármores polícromos.
De planta de cruz latina, a igreja tinha nave única e três capelas
laterais, comunicantes entre si, de cada banda. Cada segmento da nave era
suportado por pilastras colossais e sobre estas corria o entablamento
superior com arquitrave, friso e cornija com a referida «cachorrada» que
sustentava o arranque da abóbada de berço de caixotões. A cada arquivolta
correspondia superiormente uma tribuna com varanda de seis balaústres.
Haupt afirma que as pilastras era dóricas mas a informação completa é-nos
fornecida pela vistoria de Mateus do Couto que afirmava que os pilares do
transepto eram de «capitéis compósitos, estriados e de bases dóricas».
Sendo as ordens dóricas e jónicas expostas no exterior, o espaço interino
seria certamente coríntio-compósito.
Dividido da nave por degrau, o transepto era grandioso e, como se
pode apurar pela planta existente, corresponderia a cerca de dois terços do
comprimento da nave, embora não excedesse, em largura, a cota das
capelas laterais. Incluía duas enormes capelas nos topos e sobre elas dois
janelões termais e ainda dois nichos em cada braço, provavelmente

837
História dos Mosteiros, Conventos e Casas Religiosas..., Vol. 1, pág. 436-438.

416
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

sobrepostos e ladeando o arco cruzeiro. Tal como se pode ainda observar


noutra obra de Diogo Marques – a igreja conventual de Jesus – abriam-se
quatro portais, dois deles de acesso às capelas laterais. Superiormente, ao
todo existiam oito tribunas no cruzeiro, duas das quais de acesso directo à
galeria superior da igreja. Integravam-se também no cruzeiro dois púlpitos,
«que tem seo lugar antes de entrar na primeyra capella do corpo da
igreja». A enorme cúpula hemisférica, descrita apaixonadamente pelo
cronista, era dividida em oito panos verticais e incorporava três corpos
distintos, rasgando-se no terceiro corpo oito «grandes janelas que fecham
em arco». Dada a atenção que a obra do retábulo-mor necessitou a partir de
determinada altura, é provável que nunca tenha sido edificado o lanternim
superior.
Por fim, a capela-mor de D. Filipa de Sá. De reduzidas dimensões
em relação à largura da nave – como prova a planta e reprova o cronista –
destacava-se o trabalho de cantaria e o primor com que a pedraria tinha
sido assentada e brunida. A abóbada de berço repousava sobre pilastras
lavradas quer na face virada para o transepto, quer no intradorso do arco e
que se replicavam no alçado interior e na parede fundeira da ábside. O seu
desenho devia ser fabuloso, pois deles afirma o cronista serem «tam
perfeytos que nam tendo os officiaes que os obraram ezemplar pera a
imitaçam sahiram com elles taes que inda agora se nam vem imitados com
igual perfeyçam nas muytas obras que depoys delles se tem de novo feyto
em Lisboa». Os alçados laterais rasgavam, a meio do seu comprimento,
dois arcos para abrigar tumulária – ao Evangelho ficava o arcossólio
sepulcral da fundadora. Entre as arquivoltas, os nichos e janelões da capela-
mor corria finalmente «a cimalha real, ou cornija, sustentada sobre seos
cachorros na mesma forma que vem do corpo da igreja e cruzeyro».

Comentando a planta levantada em 1769, Kubler chamava a atenção


para as «paredes excepcionalmente espessas na separação das capelas
laterais, tão maciças que pareciam contrafortes interiores». «A estrutura
cruciforme, coberta por uma abóbada de berço e por uma cúpula, media,
desde os pés da igreja até ao cruzeiro, e incluindo naves laterais e capelas,
128 x 64 palmos de largura e 63 de profundidade. O transepto coroado de
cúpula era também um quadrado duplo, para o qual a capela-mor adjacente
estava proporcionada de 2:3» 838. Partindo da sacristia, o mesmo historiador
afirmava tratar-se de um «caso isolado não só na arquitectura lisbonense
como ainda na arquitectura portuguesa do século XVII. O seu esquema
deve reflectir o aspecto da nave destruída. Trata-se de uma planta
aproximadamente em quadrado duplo, as paredes são ritmadas por pilastras
coríntias sobre altos pedestais e o seu ritmo prolonga-se até à abóbada

838
Cfr. George Kubler, A Arquitectura Portuguesa Chã..., pág. 89.

417
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

parabólica, que se eleva quase a pique como se fosse uma cúpula


rectangular composta de quatro secções cilíndricas. Como cúpula
rectangular podemos relacioná-la com a que Terzi concebeu para o torreão
do Paço da Ribeira» 839.
Tal como Kubler – que destaca o carácter mais «português» de Santo
Antão – Horta Correia identifica Santo Antão-o-Novo com o modelo de
São Vicente de Fora, «com capelas intercomunicantes e transepto inscrito,
mas com diferente solução para a capela-mor e, como é uso nas igrejas da
Companhia, sem galilé, dando as três portas (a central mais elevada)
directamente para a rua» 840.

5.2.2.1.7. Colégio de São Lourenço do Porto

O Colégio de São Lourenço tem uma cronologia construtiva que se


prolonga entre 1573 e 1709, sendo que a igreja deveria estar concluída na
primeira metade de Seiscentos enquanto a sua fachada apenas se edificou
entre 1690 e 1709. Não obstante, as origens do colégio jesuíta portuense
remontam a 1560, fundado por altura da vinda à cidade do padre Francisco
de Borja, o célebre Geral jesuíta para a Espanha e Índias.

Desde a década de 50 que a cidade manifestava desejo através das


suas mais insignes instituições, da edilidade ao cabido diocesano, para que
a Companhia de Jesus se instalasse na urbe nortenha. Cerca de 1559 o
padre Miguel de Torres pedia formalmente ao padre Manuel Correia que se
informasse dos diversos locais onde os religiosos se poderiam instalar. A
fundação coincidiu com a curta estadia de Francisco de Borja, numa altura
em que o ânimo da cidade em receber a milícia tridentina refreava pois
existiam receios de que a chegada de estudos universitários fosse
demasiado onerosa e prejudicial para a estabilidade local. Compreendendo
a susceptibilidade do momento, os jesuítas decidiram que «quanto à
erecção do colégio, tinham por mais prudente que se procedesse devagar»
para não acossar a populaça. Tais circunstâncias não opuseram a que se
fundasse casa em 1560, no dia 10 de Agosto, festa de São Lourenço 841.

Manuel Pereira de Novaes descreve os primeiros passos da sua


instalação e a oferta de umas moradias novas na Praça da Ribeira por parte
de Henrique Nunes de Gouveia, nas quais, «com el Premisso dell
Illustrissimo obispo Don Rodrigo Piñero y del beneplacito de la ciudad, se
dispuso luego y adereçò la Primera Iglesia de la Compañia de Iesus en
esta nuestra Cuidad, adornando Vna Capilla en ella». Em dez dias se

839
George Kubler, A Arquitectura Portuguesa Chã..., pág. 89-90.
840
Horta Correia, «A arquitectura –Maneirismo e estilo chão», pág. 119-120.
841
Cfr. Francisco Rodrigues, História da Companhia de Jesus..., Tomo II, Vol. 2, pág. 406-409.

418
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

reuniram as condições e nesse mesmo ano de 1560 se colocou o Santíssimo


Sacramento.
«Donde perserueraron hasta el año de 1577 sus sucesores, en el cual
año se passaron desde la Plaça de la Ribera y collegio viejo Para el sitio
que oy Posseyen, arriba de la Puerta de Santa Anna y Piè de las Aldas,
dentro de la antiquísima ciuidad de Cale, de que se derivò esta de o Porto»
842
.
Esta foi a primeva fundação do colégio, embora este não funcionasse
como tal. As moradias de Gouveia desagradavam ao Provincial pois
situavam-se num declive e em viela exígua, dificultando a futura expansão
colegial – embora em 1561 tivessem já adquirido sete moradias, algumas
nos arredores da catedral, e uma horta fazia a ligação entre os seus
domínios 843. Começou a pensar-se a mudança de local em 1568 sendo
eleita a rua das Aldas, depois de ultrapassadas as reticências do bispado.

A 20 de Agosto de 1573 realizava-se nova cerimónia do lançamento


da primeira pedra. Segundo Sanches Martins, a 31 de Janeiro do ano
seguinte iniciava-se a abertura dos alicerces mas a obra pouco evoluiu até
1579 para além da edificação dos dormitórios 844, albergando já moradores
dois anos antes, tendo-se inclusive procedido a trasladação do Santíssimo
Sacramento do dia do padroeiro – 10 de Agosto de 1577. Não refrearam os
impedimentos, quer dos nobres quer do povo, ao início do funcionamento
das escolas, como se verificaram quando a 18 de Dezembro de 1587 o
padre reitor António de Vasconcelos principiava um lanço do edifício para
os estudos 845.

Com parcos recursos, a fábrica avançava lentamente e em 1595


documenta-se a abertura das escadas de acesso ao colégio e à futura igreja.
O único documento directo respeitante a obras do colégio data de 7 de
Janeiro de 1602 846 e envolve o mestre de pedraria António João na
construção de «um pedaço do dormitório novo que corre para o paço do
Bispo». Daria «feitas e assentadas na dita obra, dezasseis peças de
esquadria muito bem lavradas e assentadas, a saber, oito portas e oito
janelas», estas com os seus peitoris para melhor vazar as águas, e com «as
grades das vidraças como têm as debaixo do dito colégio». «Toda a
grossura da parede da parede e os rebates assim das portas como das

842
Manuel Pereira de Novaes, Anacrisis Historial, Vol. II, pág. 84-85.
843
Cfr. Francisco Rodrigues, História da Companhia de Jesus..., Tomo I, Vol. 2, pág.409.
844
Cfr. Sanches Martins, O Colégio de São Lourenço (1570-1774), pág. 55.
845
Francisco Rodrigues, História da Companhia de Jesus..., Tomo II, Vol. 1, pág. 177-179. Pelo que se
sabe só em Outubro de 1601 se iniciava a aula de moral, enquanto que os estudos latinistas tiveram que
esperar até 1630, pese embora as proibições camarárias.
846
ADP, Fundo Notarial, 2º Cartório, 1ª Série, Livro 17, fls. 98vº-99vº. Assinam como testemunhas os
pedreiros Francisco Dias e Francisco Gonçalves e o mestre de carpintaria Gonçalo António.

419
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

janelas, serão como os outros e se obriga ele mestre a dar feitas e


acabadas as ditas dezasseis peças de janelas e portas de esquadria como
dito é, e não por outra, a preço de seis mil reais cada uma». Recebe de
imediato, «à conta da dita obra, vinte e três mil reais» 847.
Este é o único mestre de pedraria que se conhece a trabalhar no
Colégio de São Lourenço. António João nem sequer é um dos mais
destacados oficiais da cidade, sabendo-se que em 1593 se encontrava a
realizar obras no claustro de São Francisco e que participa com Gonçalo
Vaz, Pantaleão Brás, entre outros, na empresa da canalização da água de
Paranhos para as várias fontes da cidade, a partir dos finais de 1603 848. O
próprio contrato acima descrito enuncia de forma clara uma obra parcelar,
exactamente a de um lanço superior do dormitório do colégio.

Fausto Sanches Martins revelou, sob prova documental, a autoria do


risco global do colégio de São Lourenço. O seu projecto foi elaborado por
Silvestre Jorge que a 26 de Julho de 1571 recebia ordens para tomar
medidas sobre o sítio onde fundar o colégio novo e traçar o novo edifício
849
. O mestre jesuíta não se demorou pelo Porto dado que em 1576 está já
em Évora a preparar a traça do Hospital da Universidade. Entre 1560 e
1608 percorrerá o território nacional trabalhando nos colégios de Lisboa,
Porto, Évora, Coimbra e Braga. É, indubitavelmente, o grande «mestre»
jesuíta português da segunda metade do século XVI, quer pela sua intensa
actividade que comprova a sua enorme capacidade, ao nível da praxis
arquitectónica, quer pela confiança da Companhia que o destina às mais
diversas obras espalhadas pelo País. Não obstante, parece-nos difícil
atribuir-lhe o projecto da igreja efectivamente construída, de traça erudita e
datável a partir da década de 80 – e muito mais quando consideramos os
episódios em torno do risco para a igreja lisboeta de Santo Antão.

Segundo um relatório de Outubro de 1599, o colégio contava apenas


com vinte religiosos afirmando-se de forma cabal que não pode sustentar
um número mais elevador porque «no tiene avn hecho sus officinas». Mais
se diz que «no tiene el collegio obligacion alguna por razon de su
fundacion ; porq hasta ahora no tiene fundador : empero por ciertos

847
O mestre pedreiro receberá setecentos reais «por cada braça das paredes de dentro do dormitório e as
de fora, por serem mais grossas, setecentos e cinquenta réis» e «assim se obriga a dar as ditas paredes
muito bem guarnecidas, direitas á régua e muito bem branqueadas a toda a braça e ele, dito padre
Marco António, será obrigado a dar a ele mestre, no dito sítio para a dita obra, a cal, saibro e alvenaria
necessária». Caso não exista pedraria disponível e suficiente para a construção, «em casa como no monte,
o colégio será obrigado a pagar todos os carretos da dita pedra, alvenaria e saibro» que de fora vierem.
848
Cfr. Magalhães Basto, Apontamentos para um dicionário de artistas e artífices que trabalharam na
cidade do Porto do século XVI ao século XVIII, pág. 395. A 23 de Novembro de 1626, António João,
pedreiro, é contratado pela Câmara do Porto para reparos no «caminho que vai de Vila Nova para São
Nicolau». AHMP, Livro de Arrematações, 3º, fls. 207-208.
849
Sanches Martins, A arquitectura dos primeiros colégios..., pág. 744.

420
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

bienes q vna insigne bienhechora dexo al collegio, tiene obligación de


pagar a vn capillan, que por ella dize missa quotidiana en vna hermita de
San Lazaro» 850.

Pensamos que o templo jesuíta portuense foi edificado entre a década


final do século XVI e as primeiras décadas seguintes. Embora a informação
existente seja, a todos os títulos, escassa existe um pormenor que não tem
sido devidamente salientado pela historiografia, concretamente o generoso
benfeitor frei Luís Álvares de Távora, Balio de Leça. Era filho de Álvaro
de Sousa, morgado de Alcube e comendador de S. Pedro de Torres Vedras
e de S. João de Cinfães, e casado com D. Francisca de Távora, nada mais
nada menos que a irmã do primeiro marquês de Castelo Rodrigo, D.
Cristóvão de Moura. Esta ligação e a qualidade da traça da igreja jesuíta
pode indiciar a existência de uma traça régia.

O seu papel é amplamente destacado na apaixonada descrição da


igreja no «Anacrisis Historial» de 1690:
«Despuès, por el año de 1614, admitieron dos Padres Por Patrono
al Reuerendo Baylio de Leza, Don Fray Luis de Tauora, del Orden de San
Iuan, que ofreció para la obra de la Iglesia y Claustro 30 $ ducados de
moneda Portuguesa, y que en la Castellana son màs, con que se Començò
la Iglesia e Claustro, en aquella Eminente vista sobre la Rua Nueba, que la
Praedomina por el sitio de su Eminencia y alpestre Aleuacion, obra de las
màs Prodigiosas de la Europa; Pues la Iglesia y el frontispicio de la
Capilla Mayor, con prodigiosas y grandes Columnas de Piedra y con sus
Architraues, Frisos y Cornijas y Cartelas, de lo mesmo todo Majestuoso y
graue, con Vna Bobeda en el Crucero, de extraordinario Modelo de medio
punto, y con gradas e bien Vistuozas Capillas, en proporciones
marauilhosas de la Simetría, en la cual, se colocò el Santísimo en el año de
1625, en la celebridad de la Canonización del Santo Patriarca San Ignacio
de Loyola fundador de la Compañía» 851.

Eugénio da Cunha Freitas revelou um documento de 4 de Maio de


852
1604 através do qual Baltasar de Melo, cónego da Sé de Viseu, doava as
moradias em que vivia, sitas perto do colégio, em troco de missas por sua
alma que se «dirá no altar onde está o retábulo do Espírito Santo, que ele
dito Baltasar de Melo deu ao dito Colégio, por ter nisso devoção, junto do
qual tem sua sepultura». O autor colocava a hipótese de a capela se
850
Cfr. Francisco Rodrigues, História da Companhia de Jesus..., Tomo II, Vol. 1, pág. 534. A referida
benfeitora era Joana Serrão, viúva do estribeiro-mor das infantas de Castela, que tinha cedido toda a sua
fazenda por doação a 26 de Abril de 1561 – Tomo I, Vol. 2, pág. 411-412.
851
Manuel Pereira de Novaes, Anacrisis Historial, pág. 85.
852
ADP, Colégio de São Lourenço. Livro da Fazenda, cod. 22. Cfr. Cunha e Freitas, O Colégio de São
Lourenço. Alguns documentos para a história da igreja dos Grilos do Porto, pág. 28.

421
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

encontrar num dos topos do cruzeiro, onde se encontra o Santíssimo


Sacramento, mas nenhuma informação existe que confirme esta realidade.
Também não é dado adquirido que o templo não sofresse importantes
modificações com o legado do bailio de Leça.

Seja como for, o papel e a importância de Luís Álvares de Távora é


incontornável, reconhecido a 24 de Maio de 1614 como patrono do colégio.
Em 1616 concedia de esmola trinta mil cruzados em troca de um local na
capela-mor, ao Evangelho, para «uma sepultura na parede do nicho», um
letreiro e ainda um carneiro a meio da mesma capela com uma campa para
si e seus descendentes 853. De projecto régio é certamente o túmulo assente
sobre elefantes que encerra a urna de Luís Álvares de Távora, falecido a 23
de Outubro de 1645, uma variante dos sepulcros régios do transepto de
Santa Maria de Belém, em Lisboa.

Pouco depois, em 1618, era adquirida pelo licenciado João Álvares


Caramujo a capela de Nossa Senhora da Conceição, já no corpo da igreja
ao Evangelho 854. Sabe-se também que a partir de 1625 são colocados na
igreja, no altar-mor, um trono piramidal e o altar de Nossa Senhora e, dois
anos depois, trasladam-se as ossadas do antigo para o novo templo 855,
acompanhando a colocação do Santíssimo Sacramento, como vimos, por
altura da canonização de Santo Inácio de Loyola.

A 22 de Setembro de 1642 856 assinava-se contrato com Manuel


Nunes, «entalhador», para a obra do monumental retábulo do altar-mor
original que contava com «o primeiro e o segundo corpo de seis colunas
cada hum e o terceiro de quatro», «todas lavradas com seus terços de boa
talha», e capitéis coríntios e compósitos no último registo. Incluía no
primeiro banco figuras de meio-relevo e no meio do segundo um painel liso
para pintura. Para além disso, era todo preenchido com estatuária e o
remate era «ovado com hum jesus», dentro da tipologia tão divulgada pela
Companhia de Jesus. Tinha sido contrato por 380.000 reais e surge como
testemunha e «entalhador» o conhecido arquitecto e mestre de pedraria
Valentim Carvalho.

Só no final do século começam as obras da fachada – em 1691


edifica-se o portal principal da fachada, com o entablamento e as portas
laterais mais tudo o que «sobe até à cornija inclusive com as grandes de
853
ADP, Colégio de São Lourenço. Livro da Fazenda, cod. 16. Citado por Cunha e Freitas, O Colégio de
São Lourenço..., pág.10-11.
854
ADP, Colégio de São Lourenço. Livro da Fazenda, cod. 17. Cfr. Cunha e Freitas, O Colégio de São
Lourenço..., pág. 23-24.
855
Sanches Martins, O Colégio..., pág. 79.
856
Contrato publicado em Pinho Brandão, A Obra da Talha Dourada..., Vol. 1, pág. 273-278.

422
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

ferros nas juntas», ficando concluída em 1709, ano em que se abrem no


transepto as janelas termais 857. Recentemente localizámos o mestre
responsável pela sua edificação – João de Costa, «mte de pedraria das
obras do Colégio desta cide» que surge como testemunha num documento
de 1692 858.

O projecto que o tempo nos legou reconhece as capacidades teóricas


de entendimento do Maneirismo romano ao serviço do «espaço jesuítico» e
é único no que diz respeito às suas opções estilísticas, claramente dentro do
gosto «flamenguista» que se impõe neste período e se prolongará por toda a
centúria seguinte.

A planta em cruz latina desenvolve uma ampla nave única revestida


por uma abóbada de berço esquartelada dividida por arcos torais em três
secções de três fiadas de nove caixotões, sendo que a primeira corresponde
ao coro alto com balaustrada de madeira e assente em três arcos, o central
abatido, com duas colunas toscanas e mísulas caneladas parietais de
sustentação. Aos arcos torais correspondem pilastras colossais toscanas –
que encerram nichos para estatuária – que demarcam as três capelas
laterais, de cada banda, cada qual com arcos de volta perfeita e tecto de
caixotões, intercomunicantes por portal rectangular.
No cruzeiro inscreve-se amplo transepto, que não excede a cota das
capelas laterais, onde se rasgam amplas janelas termais que contribuem
para o «jogo místico» entre a nave mergulhada na quase penumbra –
apenas iluminada pelo janelão rectangular do coro alto – e o transepto
raiado de luminosidade lateral. O entablamento que corre ao longo da nave
percorre todo o transepto desembocando no arco cruzeiro. A tradicional
cúpula está ausente, sendo substituída por uma engenhosa abóbada de
arestas oitavada em duas secções, increvendo-se na chave central a insígnia
da Companhia de Jesus e, cobrindo cada braço, um segmento de abóbada
de duas fiadas de caixotões. O portal retabular pétreo que emoldura o arco
cruzeiro é muito rico sob o ponto de vista do debuxo, constituído por um
sistema de duplas colunas colossais assentes em altos pedestais
paralelepipédicos, de fuste liso e com capitel jónico de fino recorte sob
impostas, delimitando dois altares colaterais sobrepujados por nichos
superiores com estatuária que corresponde, em altura, aos seus congéneres
da nave. Superiormente, uma secção de cornija ressaltada une as duplas
colunas às quais correspondem pilastras coríntias de fuste piramidal
invertido que eleva o coroamento central com nicho e frontão recurvo
centrais e, nas ilhargas, frontões curvos interrompidos. O trabalho de
desenho e cantaria, dos elementos decorativos às molduras, é soberbo
857
Veja-se Sanches Martins, O Colégio..., pág. 95-99.
858
Consulte-se neste estudo biografia de Valentim Carvalho.

423
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

desde os capitéis jónicos aos coríntios das pirâmides invertidas, ao


rendilhado no intradorso da cornija e do coroamento superior com a
característica ornamentação de figuras geométricas em relevo. Não
obstante, a jóia da coroa é a abóbada da capela-mor.

De planta rectangular com três pilastras jónicas lisas marcando ao


alçados e sustentada num entablamento com cornija ressaltada, a capela-
mor desenvolve uma abóbada de berço de três fiadas de cinco caixotões,
sendo a do meio de esquadrias rectangulares. Os tramos quadrangulares
alternam figuras piramidais e ovais em relevo inscritas em «ferragens»,
enquanto o tramo rectangular desenvolve o mesmo motivo alternando
figuras circulares e quadrangulares. É o melhor e mais refinado exemplo de
abóbada apainelada com motivos geometrizantes de tipo «rollwerk» em
todo o Noroeste, anunciada por um arco triunfal de ordem colossal jónica
de qualidade tratadística.
A fachada, se na realidade só foi edificada entre 1690 e 1709, deve
ainda corresponder de forma muito aproximada ao projecto inicial, dada a
unidade estilística evidente, bastando comparar os motivos decorativos e o
fuste das colunas do arco triunfal interior com a portaria principal. Como
bem salientou Sanches Martins, a fachada é uma colagem de elementos
italianos e flamengos – elementos «serlianos» na estrutura, nos remates
boleados, nos quatro cantos das torres e no ponto central cupuliforme bem
como nos remates ou coroamento, e elementos decorativos de carácter
«nórdico» nas pirâmides e nas volutas laterais, reproduzindo soluções
divulgadas por Vredeman de Vries e por Dietterlin 859. Estruturalmente
desenvolve-se em dois corpos, adquirindo o registo superior – pelos nichos
cegos e vãos rectangulares abertos sem a mínima funcionalidade – um
aspecto de «non finito», resultado ímpar nas fachadas portuguesas, muito
ao gosto dos mais severos arquitectos maneiristas italianos como Giulio
Romano ou Girolamo Genga. Joga preferencialmente com a articulação e
alternância da geometria triangular e semicircular nas portas, nichos e
janelas. Dividida por cinco panos verticais, faz avançar ligeiramente a parte
central pela inscrição do portal e pelo coroamento tripartido face ao leve
recuo das torres laterais. O coroamento liga-se ao corpo inferior por duas
aletas onde podemos verificar claras influências «vredemanianas», nos
pináculos piramidais, no remate das aletas inspiradas nas suas variantes
para fachadas e tendo como contraponto as molduras das portas e janelas e
os nichos cegos tipicamente «serlianos». Reproduzem-se as três ordens
arquitectónicas – Dórico nas pilastras no primeiro piso, Jónico no segundo
e um Coríntio com capitéis de oito volutas e fuste liso, «invenzione»
paralela ao Toscano que suporta o coro-alto.

859
Cfr. Sanches Martins, O Colégio de São Lourenço..., pág. 250-253.

424
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

A Arquitectura e a
Engenharia Militar

425
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

426
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

6.1. A figura do «engenheiro» ou arquitecto militar

Com origens remotas no Quattrocento – em figuras como Luciano


Laurana ou Francesco di Giorgio Martini – o engenheiro militar encontra
lugar destacado numa Itália profundamente dividida e com fronteiras
ténues, num mundo em que a actividade militar se estendia ao próprio
Vaticano. A circunstância geo-política transalpina fez com que o mais
pequeno ducado ou república apostasse fortemente num sistema defensivo
que lhe permitisse sobreviver numa realidade em constante mutação. Neste
contexto, o construtor italiano inventou novos e mais eficazes sistemas
fortificados e novos e mais eficazes usos das armas de guerra. Durante este
período, os sistemas abaluartados de defesa italianos eram verdadeiramente
vanguardistas e começaram a interessar a outros países europeus.
No que concerne ao uso comum do termo, durante o século XV,
Antonio di Francesco ou Antonio Rosselino são tidos como «ingegnere di
palazzo» e não, por exemplo, como «magister muratore», sendo curioso
notar que o mestre maior das obras de São Pedro de Roma é tido como
«ingegnere» – embora só a partir de Leão X a fábrica do Vaticano conte
com um mestre permanente – e a nomenclatura permanerá como título
inequívoco até aos tempos de Bramante 860.

Durante quase todo o século XVI, o «paradigma vitruviano» do


arquitecto é aglutinador de todos os campos relacionados com a arte de
construir, sendo incontornável considerar que não existe ainda uma
especialização dado que a maior parte dos arquitectos italianos
desempenham funções quer como arquitectos «civis», quer como
arquitectos militares. Nesta medida, a vasta área de intervenção do
profissional de arquitectura reúne o domínio da fortificação e da arte da
guerra, da edificação de igrejas e palácios, mas também intervindo como
projectista de jardins, arquitectura efémera ou no urbanismo.
Para além dos modelos quatrocentistas mais ou menos relacionados
com a programática da «cidade ideal» e dos conceitos maquiavélicos do
príncipe perfeito – fixados nos manuscritos de Filarete ou Francesco di
Giorgio Martini – surgiu em Itália uma literatura especializada em
fortificação que encontrou no L’Architettura de Pietro Cataneo (1567) o
primeiro tratado que tratava irmamente a arquitectura «civil» ou «política»
e a arquitectura «militar». Embora ausente nas grandes teorias de Serlio,
Vignola ou Palladio, escritos como o Dell modo di fortificare le città de
Giovanni Battista de Zanchi (1554) ou os Due dialoghi del modo di
disegnare de piante delle fortesse de Giacomo Lanteri (1557) manifestam a
tendência para que nos finais da centúria surjam textos fundamentais como
860
Cfr. Christoph Frommel, «Il cantiere do S. Pietro prima di Michelangelo», Le traités d’architecture de
la Renaissance, pág. 175.

427
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

o de Carlo Theti, Discorsi delle fortificationi (1580) ou o Dell’ Architettura


Militare de Francesco de Marqui em 1599. Que a figura do arquitecto
militar especializado e independente ainda não está enraizada na península
itálica demonstra-o Vicenzo Scamozzi que na Idea dell’Architettura
Universale (1615), reivindicava para o arquitecto a capacidade de levantar
fortificações.

A base de todo o saber do arquitecto moderno é a Geometria,


atingindo foro de suprema atenção por parte do arquitecto especialista em
fortificação. O carácter eminentemente prático e funcional dos trabalhos no
campo da arquitectura militar trazem à vista desarmada a raiz matemático-
geométrica do projecto arquitectónico, colocando em segundo plano certas
normas «clássicas» estruturais e decorativas. De facto, se atendermos aos
textos publicados em torno da fortificação, à excepção de Marchi, «o
verdadeiramente significativo é a ausência de reflexões sobre este
particular (portais, colunas, etc) na imensa maioria dos tratados de
fortificação» 861.
Reflectindo acerca das relações entre a arquitectura militar e a
mentalidade classicista, Fernando Checa considera que «apesar das
contínuas referências ao carácter pragmático das construções militares e
das próprias especulações geométricas dos tratadistas, não podemos deixar
de salientar como em algumas ocasiões interesses estéticos parecem
encontrar-se entre os tratadistas», embora «a ampla racionalização e
abstractização, produto das necessidades técnico-defensivas da guerra
moderna, destile um pensamento arquitectónico que se afasta cada vez mais
dos conceitos tradicionais da proporção e beleza clássicas». Não obstante,
«a geometria converte-se na ratio última que sustenta o pensamento
arquitectónico dos engenheiros. Seja para encontrar a forma perfeita da
cidade, para debuxar um baluarte ou para pôr em questão o problema das
ordens, a matemática e a geometria são as ciências imprescindíveis a que se
recorrerá. E assim, uma peculiar tratadística se converte numa especulação
teórico-prática de algo tão querido pelo classicismo como são as formas
perfeitas» 862.

Fruto das necessidades decorrentes do alargamento dos respectivos


impérios, a figura do «engenheiro» foi importada de Itália para a Península
Ibérica por razões claramente relacionadas com a defesa quer dos
territórios nacionais, quer dos recentemente conquistados. O seu

861
Fernando Checa, «Los ingenieros del Renacimiento y la mentalidad clasicista», Herrera y el
Clasicismo, pág. 40.
862
Fernando Checa, «Los ingeniros del Renacimiento y la mentalidad clasicista», pág. 39-40.

428
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

conhecimento globalizante – decorrente do novo paradigma do arquitecto –


e a prática específica no campo da fortificação fizeram com que o
arquitecto militar ocupasse o cargo mais alto da hierarquia profissional. O
«engenheiro» é, sem sombra de dúvida, um profissional especializado em
matéria de defesa e segurança militares, embora, na maior parte dos casos,
intervenha também fora do seu foro. Como salientou Rafael Moreira, «a
grande novidade trazida pelo cargo de Engenheiro-mor reside no seu
carácter supra-nacional, isto é, no facto de a sua esfera de acção abranger a
totalidade de um território de um Estado» 863.

Será na Espanha de Carlos V e Filipe II que primeiro se manifestou


uma forte aposta na contratação de especialistas italianos conhecedores dos
mais modernos sistemas fortificados. Destacam-se, entre outros, Giovanni
Battista Antonelli – que produziu numerosos trabalhos sobre a defesa do
território castelhano, partindo do princípio que na base de um império está
a religião, as boas leis e as boas armas – e Francesco Paciotto, figura-
síntese do papel abrangente do arquitecturo/engenheiro militar que para os
Farnese tinha riscado fortalezas, palácios, pontes e estradas. Nomeado em
1556 como «engeniere dell’ofitio» da cidade de Parma, em 1588 foi
contratado por Filipe II como «ingegner maggiore di tutta la Fiandra», não
deixando de intervir em importantes obras de carácter religioso como o
Convento das Descalças Reais de Madrid ou mesmo em São Lourenço do
Escorial.

Também Castela produziu trabalhos relacionados com a arquitectura


militar, alguns deles com íntima relação à arte da guerra. Em 1583,
Bernardo de Escalante redigiu os Dialogos del arte militar e Alava y
Viamont explicava os avanços da artilharia e da fortificação no El perfecto
capitán instruido en la disciplina militar y nueva ciencia de la artilleria
(1590). Textos mais directamente ligados às construções defensivas são o
Examen de Fortificación (1599) de González de Medina Barba e,
essencialmente, o Teorica y practica de la Fortificación do «academista»
Cristobal de Rojas (1598).
Os textos espanhóis insistem na importância basilar da Geometria.
Viamont afirma que a Geometria é o ponto central do carácter teórico da
tratadística militar, explica os avanços da artilharia e da ciência da
fortificação, o mesmo afirmando González de Medina e Cristobal de Rojas
864
. A tradução do grego de Euclides por Pedro Ambrosio de Ondériz em

863
Rafael Moreira, «O engenheiro-mór e a circulação das formas no Império Português», Portugal e
Flandres. Visões da Europa 1555-1680, pág. 98.
864
Consulte-se Fernando Checa, «Los ingenieros del Renacimiento y la problematica clasicista», pág. 35-
37.

429
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

1584, dentro do espírito da Academia Real das Matemáticas de Madrid é


prova última da consciência da sua necessidade.
Existiu, aliás, uma relevante presença portuguesa na academia
madrilena, essencialmente no que toca a matérias fundamentais de ensino
teórico. Como se sabe, João Baptista Lavanha foi enviado para a capital
castelhana para leccionar estudos matemáticos. Recordem-se, aliás, as
palavras de Pedro Ambrósio de Ondériz justificando a sua tradução do
texto euclidiano, publicada em 1584, em La geometría y especularia: «A
razão que houve para fazê-lo foi porque Sua Majestade ordenou que nesta
Corte se lessem as Matemáticas em língua castelhana, trazendo para isso a
João Baptista Lavanha, por ser eminente nelas, no que foi necessário
traduzir-se este livro em Romance para haver-se para ler» 865. Nesta
perspectiva, uma carta registada nos arquivos espanhóis faz especial
menção à própria formação do autor supra-citado: «Pedro Ambrosio de
Ondériz, diz que Vossa Majestade o mandou a Lisboa faz três anos e meio
para que estudasse as matemáticas, e lesse junto com João Baptista, e que
também traduzisse em romance os livros que lhe ordenasse» 866.

Portugal foi pioneiro na valorização do papel do arquitecto militar,


camuflado inicialmente – como bem viu Rafael Moreira – na designação de
«fortificador-mor» mas já com todas as valências, pelo menos putativa e
potencialmente, do futuro «engenheiro-mor». D. João III nomeará em 1548
Miguel de Arruda como o primeiro especialista nestas matérias. Não
obstante, quer Arruda quer os seus seguidores no cargo desempenharam
outras funções no vasto campo de intervenção da construção e projecto
arquitectónico. Pese embora o pioneirismo joanino, com a morte de Arruda,
as novas exigências em matéria de defesa levaram a regência e D.
Sebastião a procurar em Itália especialistas mais avançados para tratar dos
problemas defensivos dos territórios nacional ou sobre domínio português.
Depois dos contactos entre Miguel de Arruda e Benedetto da Ravena em
Mazagão, arquitectos italianos como Tomaso Benedetto da Pesaro
encontram-se a trabalhar para o monarca português mas só com a
contratação de Filippo Terzi se inicia a presença constante de especialistas
transalpinos no lugar mais destacado da fortificação. É nesta altura que se
consuma a transição entre o «fortificador» português e o «engenheiro»
importado, transição esta que não se restringe a uma evolução semântica
dado que, embora desempenhando as mesmas funções, histórico-
artisticamente revelam um avanço qualitativo decorrente da sua formação
teórico-prática.
865
Citado em Arquitectura del Renacimiento..., pág. 316.
866
Cfr. Arquitectura del Renacimiento..., pág. 317.

430
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

6.2. Um tratado ibérico de engenharia militar

Se se quiser encontrar um modelo escrito tendo em conta as questões


da defesa e fortificação e redigido na Península Ibérica nos finais do século
XVI, podemos valer-nos do texto de Cristobal de Rojas, Teorica y practica
de fortificacion, editado em Madrid em 1598. Esta escolha não é, todavia,
aleatória ou ingénua na medida em que é, em si mesma, fruto da Academia
Real das Matemáticas e resultado imediato da política editorial seguida e
que não só traduziu Euclides, Vitrúvio e os tratadistas italianos modernos
como produziu textos originais.

A «lição» de Cristobal de Rojas é nada mais nada menos do que o


resultado, para o campo específico da engenharia militar, do ensino
académico – a publicação da sua tese de licenciatura. A Teorica y practica
de fortificación pode e deve servir-nos de exemplo para melhor perceber
aquilo que estaria ao alcance de ser produzido por um engenheiro militar
português saído da «aula de arquitectura» da Ribeira das Naus. Não é
difícil imaginar também que o livro prometido mas não redigido por
Mateus do Couto para a referida leccionação da arquitectura militar tivesse
uma estrutura aproximada às partes fundamentais do texto castelhano.
Encontram-se, deste modo, duas fortes razões para referir brevemente o
escrito madrileno – genericamente como publicação com participação
ibérica e particularmente como especulação teórica que poderia ter sido
facilmente redigida por um profissional português na mesma área de
interesses e no mesmo período.

Cristobal de Rojas divide o seu tratado em três partes, apontando no


prólogo os arquitectos Juan de Herrera e Tiburzio Spannocchi como os
principais motivadores para a publicação do seu escrito. No primeiro
capítulo – «Das coisas necessárias à fortificação» – define a razão
essencial e o destino imediato das matérias da engenharia militar, ligando-
as umbilicalmente à arte da guerra e à fundamentação matemática:
«Tres cosas han de concurrir en el soldado, ò Ingeniero, que
perfetamente quiere tratar a materia de fortificacion. La primera, saber
mucha parte de Matemáticas: si fuere possible, los seis primeros libros de
Euclides, y el vndecimo y duodecimo, porque con ellos absoluera todas las
dudas que se ofreciere, assí de medidas, como de proporciones, y para el
disponer los planos y fundametos de los edificios, y medir las fabricas y
murallas, pilares, colunas, y las demas figuras: y quando no lo supiere,
bastara lo que cerca dello se dize y declara en este tratado, digerido y
posto en terminos claros para instruyrle en lo que para esta materia fuere
necessario, si bien la tal inteligencia serà mecanica.

431
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

La segunda es, la Arismetica, q sirue para dar cuenta del gasto que
para hazer la fabrica se ofrecera antes que se haga, o despues de hecha, y
en su construcion para las medidas de distancias y proporciones, y para
otras muchas cosas que en el discurso deste libro se veran.
La tercera, y mas principal para la fortificacion, es saber reconocer
bien el puesto donde se ha de hazer la fortaleza, o castillo. Serà difícil
saberlo dar a entender y enseñar el Ingeniero, si no huuiere estado en la
guerra en ocasiones, y cerca la persona de algun gran soldado; y assi este
vltimo requisito, es materia de los soldados viejos, de los que han
compeado en exercitos a la cara de los enemigos, escogiendo siempre
buena plaça de armas, de forma que estè a cauallero sobre la cãpaña, y
cortadas las auenidas que huuiere: y assi la persona, que tratare deste
ministerio, si le faltare esta experiencia, tendra necesidad de a compañarse
con vn soldado viejo, el dia que huuiere de edificar fortaleza, por muchos
respectos: y al contrario, el q fuere solamente soldado, sin Matematicas, ni
pratica de fabricas, tendra necesidad de acompañarse con el Matemático,
y hombre inteligente en la pratica: mas el Ingeniero que tuuiere lo vno y lo
otro, dara buena quenta de su fabrica, por saber la razon teorica, y
praticamente, que es lo propuesto al principio» 867.

A «Primeira parte» trata das matérias teóricas básicas euclidianas


adaptadas à arte da fortificação:

Cap. 2 - «Do fundamento da Geometria»


Cap. 3 - «Das regras da Aritmética»
Cap. 4 - «Do reconhecimento dos sítios» para edificar fortalezas
Cap. 5 - «De todas as partes e princípios de geometria» seg. Euclides
Cap. 6 - «Das regras da Aritmética»

Neste momento, e dentro da muito particular fragmentação das


matérias nos tratados da época, Cristobal de Rojas aproveita para tratar
mais especificamente «dos princípios e regras universais e particulares da
fortificação» e ensinar a «fazer o recinto da fortificação a partir de
qualquer figura regular» com quatro, cinco, seis ou sete baluartes –
capítulos sétimo e oitavo – regressando depois às proposições euclidianas:

Cap. 9 - «Dos ângulos rectos»


Cap. 10 - «Do excesso das figuras planas»

Por fim, o décimo primeiro capítulo é dedicado a ilustrar e explicar


como utilizar figuras geométricas para «fazer praças proporcionadas».

867
Cristobal de Rojas, Teorica y practica de fortificacion, fl. 1-1vº.

432
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

A «Segunda parte» é profusamente ilustrada e a que especificamente


mais se refere à fortificação. Cristobal de Rojas recorre a toda a sua
erudição para demonstrar a construção das mais variadas tipologias de
fortificações modernas, citando Carlo Theti e Pietro Cataneo quando trata
da «grandeza das praças». Não deixa, contudo, de misturar capítulos
práticos com matérias da geometria euclidiana:

Cap. 1 - «Coisas gerais e particulares das fortificações»


Cap. 2 - «Da grandeza das praças»

O terceiro capítulo – «Da razão do petipé» – explana a importância


da escala na prática moderna da arquitectura e a sua origem etimológica,
que aqui se reproduz por ser relevante no contexto deste estudo:
«Siempre que el Arquiteto quiere hazer vna traça, lo primero que
haze antes q la comience, es hazer el pitipe: y porq aura muchos, que no
sepan q cosa es pitipe, pongo aquí su declaraciõ. El pitipe es nombre
Frances, q peti en Fraces quiere dezir pequeño ò chico, y assi es lo mesmo
dezir en nuestra legua Castellana pequeño pie, como en Frãces pitipe, y
por esto se entedera, q este pequeño pie es semejança del pie grãde,
aduertiendo q tres pies de los grandes, son vna vara Castellana, y quando
se mide las fabricas se entiede yr medidas debaxo de q tres pies haze la
dicha vara, y con esta proporcion se haze el pitipie, el qual sirue para
hazer las traças, y modelos, y va hecho cõ proporciõ del tamaño q ha de
tener la fabrica grande, porque aunque sea la traça no mayor que vn real
de à ocho, como vaya repartida con su pitipe, se entendera por ella la
grandeza que ha de tener, puesta en execucion: porque se consideran
aquellas pequeñas medidas respeto de las grandes hechas con el gran pie,
y assi mesmo à este pitipeè le llaman escala» 868.

Cap. 4 - «Das medidas que há de ter a boa fortificação»


Cap. 5 - «Praça em triângulo e heptagono»
Cap. 6 - «Como fortificar em figuras irregulares e trapezoidais»
Cap. 7 - «Como ensinar fábrica com terra e fagina»
Cap. 8 - «Medir quadrado e figuras quadrangulares»
Cap. 9 - «Reduzir umas figuras a outras»
Cap. 10 - «Somar as figuras atrás reproduzidas»
Cap. 11 - «Subtrair umas figuras noutras»
Cap. 12 - «Multiplicar figuras»
Cap. 13 - «Partir figuras quadradas, triangulares e círculos»
Cap. 14 - «Medir área ou superfície»
Cap. 15 - «Saber a grossura de paredes, ladrilhos, terrenos...»
868
Cristobal de Rojas, Teorica y practica..., fls. 38vº-39. O autor refere expressamente que as escalas
divergem de país para país.

433
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Cap. 16 - «Da melhoria que tem a muralha de ladrilho ou pedra»


Cap. 17 - «Requisitos da fortificação»
Cap. 18 - «Da importância das esquinas dos baluartes» 869
Cap. 19 - «Fortificar cidade acomodando uma fortaleza antiga»
Cap. 20 - «Do remédio 870 e defesa de uma cidade»
Cap. 21 - «Regra para duplicar e partir corpos cúbicos»
Cap. 22 - «Regra que ensina a medir distâncias»
Cap. 23 - «Declaração de um instrumento» para se tirar a planta de
qualquer cidade, da invenção de Tiburzio Spannocchi.
Cap. 24 - «Da fábrica e distribuição de nível para encaminhar águas»
Cap. 25 - «Da fábrica dos relógios de sol».

A «Terceira parte» do tratado de Cristobal de Rojas é dedicada, na


sua maior parte, aos materiais de construção e à sua boa prática. Todavia,
na introdução, o autor demonstra ter já consciência plena da diferença de
papeis do engenheiro militar em relação ao arquitecto, no sentido restrito
do termo, explicando a razão que o leva a não tratar matérias como as
ordens arquitectónicas.
Declara que se se quisesse «tratar de los principios del Arquitectura,
fuera menester vn libro a parte para solo ellos, especialmente siendo arte
tan profunda, donde se requiere tanta teorica y practica: y assi en este
particular me remito a la dotrina de Vitruuio, como en la Geometría a
Euclid. y no me detendre en las menudencias de la basa y sotabasa,
coluna, capitel, con su alquitrabe, friso y cornija, considerando primero
que ay cinco generos, que son Toscano, Dorico, Iónico, Corintio y
Composito, y destos cinco generos han escrito largamente (comentando
sobre Vitruuio) el Biñola, Andrea Paladio, Sebastiano Serlio, Iuan Bautista
871
. Aduerto, y otros muchos, que los podra ver el curioso, y sus medidas y
declaracion dellas, porque solo pieso poner en diseño algunas cosas, las
que me parece necessarias para el Ingeniero, y algunas para los
Arquitectos, que se encargan de fabricas de templos, y otras obras
publicas:para lo qual pongo algunas portadas, arcos, y vetanas, para que
el Arquitecto pueda escoger lo que mas a quenta le viniere para su obra,
aduertiendo, que no pondre por escrito la declaracion de los cortes de los
arcos, porque seria menester vna rezma de papel para poder declarar algo
de su mucha dificuldad, por ser cosa que consiste todo en experiecia» 872.

869
Cristobal de Rojas aconselhava a que os baluartes tivessem esquinas curvas em vez de arestas vivas.
870
Ou seja, «restauro» ou «reconstrução».
871
Refere-se, evidentemente, a Alberti.
872
Cristobal de Rojas, Teorica y practica..., fl. 88vº.

434
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Resta-nos enumerar o índice da respectiva parte terceira:


Cap. 1 - «Do conhecimento dos materiais»
Cap. 2 - «Da ordem da mistura de cal e areia»
Cap. 3 - «Do reconhecimento da pedra e ladrilho»
Cap. 4 - «Do discurso para poupar alguns gastos nas fábricas»
Cap. 5 - «Dos fundamentos sobre areia em água, argila, tufa ou pedra
viva»
Cap. 6 - «Do fundamento de ponte sobre areia num rio caudaloso»
Cap. 7 - «Da ordem que se guarda para fazer um moinho ou presa
sobre fundamento de areia»
Cap. 8 - «Das partes e arcos para fortificação» 873
Cap. 9 - «Dos esquadrões em campanha e como se hão de fazer, de
gente ou de terreno»
Cap. 10 - «Da forma e qualidade que deve ter o sítio para alojar um
exército»
Cap. 11 - «Do sítio de uma praça mui forte e com grande presídio e
munições dentro».

873
Rojas fornece sumariamente algumas variantes de arcos, cerca de uma dezena, desde o arco de meio-
ponto, ao sarapainel até modelos mais complexos.

435
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

6.3. A realidade portuguesa entre 1550 e 1650

A circunstância portuguesa desde o início dos Descobrimentos e a


necessidade de fortificar as praças mais importantes do Além-Mar, bem
como do território português peninsular, teve como imediata consequência
que assuntos relacionados com a engenharia militar se tornassem fulcrais
nas discussões entre o monarca português e os mais altos corpos dirigentes
nacionais com os seus mestres em arquitectura.
A partir dos meados dos anos 80 a historiografia portuguesa
desenvolveu importantes estudos orientados para as questões decorrentes
da arquitectura militar. Num ensaio pioneiro, Rafael Moreira alertava para
o facto de ninguém poder ignorar que «praticamente todos os grandes
construtores do século XVI, do XVII e mesmo do XVIII foram também
activos construtores militares, que a sua formação teórica se fez em grande
parte sobre as disciplinas e os métodos da Arquitectura Militar ou
Fortificação. E que o urbanismo foi essencialmente uma criação de oficiais
de infantaria com exercício de engenheiro»874. Para a sua concretização foi
essencial a aprendizagem dos métodos italianos de defesa, sendo que «a
aplicação do baluarte às fortalezas e muralhas das cidades levou à
homogeneidade de estilo onde quer que os europeus se tenham estabelecido
fora da Europa: o estilo internacional por excelência no renascimento foi o
da arquitectura militar» 875.

Segundo Rafael Moreira e Miguel Soromenho, os contactos com os


avançados métodos italianos na defesa e fortificação estão hoje
comprovados pelo menos desde 1451 – quando o príncipe D. Fernando,
irmão de D. Afonso V, contacta Mariano di Jacopo, o célebre «Il Taccola»
– mantendo-se num crescendo e apenas encontrando resistência, sob um
ponto de vista vanguardista, no período «manuelino» (1495-1521) onde se
regressa a esquemas tardo-góticos 876. Com o reinado de D. João III, a linha
progressista mantêm-se mas aposta-se em mestres nacionais como Duarte
Coelho ou Isidoro de Almeida, numa altura em que urge a necessidade de
criar um posto específico que concentre todas estas preocupações.
Será em torno da importante família Arruda que se encontram os
prenúncios da fortificação moderna portuguesa. O construtor da Torre de
Belém, Diogo de Arruda e, essencialmente, Francisco de Arruda – como
representante do designado «estilo de transição» (c. 1515-1549) 877 – abrem

874
Rafael Moreira, «A arquitectura militar do renascimento em Portugal», pág. 281.
875
John Hale citado por Rafael Moreira, «A arquitectura militar», História da Arte em Portugal, Vol. 7,
pág. 146.
876
Cfr. Rafael Moreira e Miguel Soromenho, «Engenheiros militares italianos em Portugal. Séculos XV-
XVI», Architetti e Igegneri Militari all’ estero dal XV ao XVIII sicolo, pág. 112.
877
Proposto por Rafael Moreira, «A arquitectura militar», pág. 139.

436
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

o caminho para que surja em Portugal, na figura de Miguel de Arruda, o


primeiro mestre fortificador nacional em título.
Rafael Moreira chamou a atenção para o importante episódio da
junta de mestres que em 1541 decidiu modificar e projectar a «fortaleza
roqueira» de Mazagão, salientando «a importância do arquitecto militar
enquanto tal em que sobressaia a figura de Miguel de Arruda e o atraso do
modelo tradicional de defesa costeira português» 878. Na realidade, as
preocupações com a defesa das praças de África e a decisão régia de
fortificar Mazagão e Ceuta, ao mesmo tempo que chegavam notícias de
iguais necessidades em praças mais longínquas de África e essencialmente
da Índia, levaram a que toda a questão da defesa territorial fosse repensada.
Não é assim casual que D. João III crie em 1548 o cargo de «Mestre das
», preenchido por
Miguel de Arruda. Intramuros, iniciava-se a defesa da costa portuguesa
partindo de duas prioridades, o Algarve e a barra de Lisboa.

Se com a morte de D. João III e durante a regência de D. Catarina os


contactos com especialistas estrangeiros continuam, é a partir daqui e mais
propriamente durante o período sebástico (1568-1578) que o «monopólio
italiano» se instala definitivamente em Portugal. Fruto da iniciativa de D.
Manuel de Portugal logo em 1558 chega, vindo de Roma, Tomaso
Benedetto da Pesaro, em 1562 está em Portugal «Alexandre Italiano», para
além de Pompeo Arditti e Giovanni Maria Benedetti. Por último, em 1577
é contratado Filippo Terzi, afirmando Rafael Moreira que «a sua chegada,
todos da mesma zona e com as ideias mais avançadas em matéria de
fortificação que se poderiam encontrar no mundo, foi um choque» 879. Todo
este aparato se insere na política imperial de D. Sebastião que em 1569
orientava o grosso do erário régio para obras de cariz militar.

Durante este período, não obstante a chegada a Portugal dos


especialistas italianos, o cargo de «mestre de fortificações» permanecerá
nas mãos de mestres portugueses sucedendo a Miguel de Arruda, em 1564,
António Rodrigues. Todavia, o interesse ou se se quiser a influência
italiana é tão grande e significativa que D. Sebastião fez todos os esforços
para conseguir para seus préstimos um mestre italiano a título definitivo,
contratando Filippo Terzi e levando-o, inclusive, a seu lado para Alcácer
Quibir.

A confiança nos arquitectos ou engenheiros militares italianos


continua com a união dinástica e, uma vez mais, a presença de mestres
italianos é maciça. Filipe II colocará à frente da hierarquia Filippo Terzi
878
Rafael Moreira, «A arquitectura militar», pág. 140-141.
879
Rafael Moreira, «A arquitectura militar», pág. 146.

437
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

que até 1597 é o arquitecto-mor plenipotenciário para o reino português em


todos os campos, militar ou «civil». Mas não só Terzi. Por cá estiveram
Giovanni Battista Antonelli, Tiburzio Spannocchi, Giovanni Battista
Cairati, Giovanni Vicenzo Casale e Alexandre Massai. De 1580 a 1640, a
avaliação e defesa da costa portuguesa estará a cargo de italianos e este
período coincidirá claramente com a especialização e divisão entre a
arquitectura civil e a arquitectura militar, de cujo exemplo cabal é a
nomeação de Leonardo Turriani não para arquitecto-mor, mas sim para que
«sirva de Engenheiro geral e não de Arquitectura».

Os arquitectos italianos a trabalhar a tempo inteiro em Portugal


tiveram uma importância central na evolução da arquitectura civil e
religiosa, desempenhando um papel incontornável na evolução estilística
que se processa a partir do último triénio do século XVI. Os avanços da
arquitectura nacional em direcção a um «italianismo» verdadeiramente
assumido, bem como a um mais correcto entendimento da teoria
arquitectónica encontraram um grande impulsionador em Filippo Terzi e
perifericamente em Giovanni Vicenzo Casale. Nesta medida, a chegada de
tão importante comunidade trouxe consigo uma razão substancial para a
modernidade arquitectónica nacional.

6.3.1. A criação do «mestre das obras dos muros e fortalezas»

Miguel de Arruda

A necessidade de concentrar numa só pessoa os assuntos da defesa


do reino e dos territórios conquistados – a par da mais valia do mestre
português nestes assuntos – levou a que D. João III, através do alvará de 7
de Dezembro de 1548 880, lhe concedesse, pela primeira vez em Portugal,
um cargo equivalente ao de engenheiro-mor explicitado nos seguintes
termos: «Como he necessario os muros e as fortalezas que ate agora são
feitos nos luguares de meus reinos e señorios serem repairados em maneira
que estem sempre como conuem a meu serviço e a bem delles. E como pera
as obras que se ouuerem de fazer nos ditos muros e fortalezas e asy pera
quaes quer outros muros e fortalezas que de nouo confiar que se fação he
necessario hauer mestre das ditas obras, por confiar de Miguel Darruda,
caualro fidalguo da minha casa, que polla abelidade e esperiencia que tem
das ditas obras me seruirá no dito carreguo de mestre dellas com todo o
cuidado e deligencia». Arruda é desta forma nomeado «mestre das obras
dos muros e fortalezas», tanto do continente como do ultramar, recebendo o
elevado ordenado de 80.000 reais anualmente.

880
Cfr. Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo I, pág. 72-73.

438
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Miguel de Arruda tornar-se-á num dos primeiros mestres portugueses


a contactar com as novas formas de defesa modernas e representará o
esforço por parte de D. João III na aposta de um cargo profissional, se não
especializado, pelo menos, direccionado para as questões da fortificação.
Segundo Rafael Moreira, os primeiros passos do mestre português no
campo da fortificação surgem nas obras de Azamor com Diogo e Francisco
de Arruda, tido como Miguel Fernandes de Arruda 881. O primeiro
momento de destaque surge quando se desloca a Ceuta, acompanhando o
engenheiro italiano Benedetto da Ravena, em 1541, com o objectivo de
vistoriar a fortaleza da cidade. O governador da praça africana, D. Afonso
de Noronha, numa histórica carta a D. João III, tece uma série de elogios ao
mestre italiano mas não se esquece de salientar o empenho de Miguel de
Arruda e a boa atitude profissional que impressionou mestre Benedetto, «o
qual se deu co ele e o iljumjava de maneira que compryo be niso o que V.
A. lhe mandava, pelo qual ho Benedito he tam grande seu amiguo que
desejava de lhe mostrar mais do que sabia, o que foy muito serviço de V.
A., por que fica ja Miguel daruda, segundo o mesmo Benedito diz, hum
grande ome do seu mister pera a conquista que co ajuda de D. V.A. hade
fazer no reino de Fez e de Marrocos" 882. A carta faz referência aos
resultados da vistoria e ao que seria necessário fazer-se para que Ceuta
ficasse segura e bem defendida, tendo Miguel de Arruda apontado todas a
modificações necessárias.
Durante a década de 40 a atenção que o monarca português dedicou à
fortificação das praças africanas debaixo do domínio nacional levaram a
que o mestre se deslocasse a África várias vezes. Desde logo, dois anos
depois da vistoria a Ceuta, na companhia de D. João de Castro, como
especialista em fortificação, Miguel de Arruda vê as suas directivas
aplicadas em campo pelo mestre das obras de Tânger, André Rodrigues.
Segundo frei Luís de Sousa e os seus «Annaes de D. João III» o
mestre português esteve presente no auto de avaliação da fortaleza do
Seinal na companhia de Diogo Teles, tidos por D. Pedro de Mascarenhas
como «grandes engenheyros» 883.

Sabe-se que projectou a fortaleza de Moçambique segundo o relato


de D. João de Castro, datado de 8 de Março de 1546: «Folguey muyto de
ver o debuxo que me enviastes da fortaleza de Moçambique e vinha muy
bem declarado como era necesareo pera se poder emtender: e do sytio ter
tão boa disposição pera se fortificar recebeo comtemtamento; e porque he
cousa tão importante deveis loguo de ordenar como se faça pela maneira
do debuxo que vos aquy emvyo, que caa mamdey fazer a Mygel de Arruda,

881
Rafael Moreira, A arquitectura do Renascimento no sul de Portugal..., pág. 376.
882
Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo I, pág. 67-68.
883
Segundo Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo I, pág. 69.

439
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

por ser tão pratico nestas cousas como sabeis: e quamto mais brevemente
esta oobra for feita, tamto mais meu serviço será; porque estamdo asy
estaa a muy grande perigo e não se pode descamsar niso" 884.
Para além dos projectos para Ceuta e Tânger (1543) e Moçambique
(1546), Rafael Moreira considera que o mestre português realizou neste
mesmo ano um outro para a Baia e o duplo baluarte de S. Jorge da Mina 885.

Também a fortificação do território nacional foi objecto de estudo


por parte do mestre português. Muito antes dos projectos «italianos» para o
forte de São Julião da Barra, era intenção de D. João III reforçar a barra do
Tejo com a construção de um conjunto de estruturas defensivas das quais a
fortaleza de São «Gião», como era então designada, era obra emblemática.
A historiografia artística aponta para o início da construção do fortificado
cerca de 1553 ou 1556 tendo por base um projecto de Miguel de Arruda,
para o qual não existe fundamento documental directo. Segundo Joaquim
Boiça, pouco se deve ter realizado nos primeiros anos dado que em 1559,
em tempos da regência de D. Catarina, se afirma que urge «fortificar-se o
porto desta cidade de Lisboa» com «uma fortaleza na porta de São Gião»
tendo para isso sido elaborada uma «traça» e disponibilizado 30.000
cruzados 886. A 23 de Março de 1562 887 manda-se «a Mjguel darruda
caualeiro ffydalgo da casa mestre e veador das dytas mjnhas hobras q com
hos majs hofyçiaes della se emfformasem do q valya ha dyta terra» a
comprar, para dar início à obra do fortificado. No ano seguinte, com a
morte de Arruda, sucede-lhe António Mendes que durante largos anos
comandará a empreitada. Foi durante o seu exercício que se edificou a
estrutura base do forte com três baluartes virados ao mar e a magnífica
cisterna 888 com três naves, abobadamento em nervuras assente em grossas
colunas monolíticas. Antes da grande reforma «italiana» de São Julião da
Barra – tendo por base um projecto de Giacomo Palearo e levado a cabo
por Filippo Terzi, Anton Coll, Casale e Turriani – destacam-se ainda os dois
portais rusticados com frontão triangular «sebásticos» (1574).

António Rodrigues

A 27 de Junho de 1565 889, «auendo respeito aos seruiços que tenho


recebidos de antonio rodrigues caualeiro fidallgo de minha casa e por
confiar dele em que nas cousas de que o encarregar me seruira bem e com

884
Citado em Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo I, pág. 71.
885
Rafael Moreira, «Arquitectura: Renascimento e Classicismo», pág. 356.
886
Sobre estas matérias consulte-se Joaquim Boiça, A Barra do Tejo. O Eixo São Julião/Bugio.
Navegabilidade, Defesa e Alumiamento, pág. 34-38.
887
Cfr. Rafael Moreira, «A arquitectura militar do renascimento em Portugal», pág. 302-303.
888
Cfr. Joaquim Boiça, A Barra do Tejo..., pág. 37.
889
Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo II, pág. 385.

440
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

aquele cuidado e delligencia que cumpre a meu seruiço e atee quy tem
feyto nas cousas de que por my foy encarregado e me seruio e por lhe fazer
merce ey por bem e me praz que elle syrua daquy em diante de mestre de
todas minhas obras que se fizerem a custa de minha fazenda asy e da
maneira que o seruia miguel darruda per cujo falecimento o dito oficio
vagou», tendo por ordenado anual 60.000 reais. Entre 1565 e 1590 ocupará
um cargo que com o seu falecimento transita para o arquitecto italiano
Filippo Terzi.

António Rodrigues, «mestre de minhas obras e das obras de


fortifficações de meus reinos» – como é tido num documento de 1579 –
está completamente ausente nas informações arquivísticas em relação a
trabalhos no campo específico da arquitectura militar durante os reinados
de D. Sebastião e de Filipe II.

6.3.2. Fortificadores portugueses em meados de Quinhentos

Os Descobrimentos portugueses propuseram uma atenção particular


à defesa das praças e territórios conquistados. Com o dealbar de
Quinhentos, para além do continente africano, as necessidades nacionais
alargaram-se à Índia e ao Brasil tendo sido necessário destacar para as
diversas regiões a conquistar e a manter mestres especializados em
construções defensivas e ofensivas – recorde-se o comentário de Diogo do
Couto acerca de Inofre de Carvalho que em 1571 era enviado para a Índia
como «grande Arquitecto (que ElRey D. Sebastião tinha mandado a
reformar a fortaleza de Ormuz) ordenou uma maquina de madeira sobre
rodas altas, pera de sima pelejarem alguns homens e lhe poz algumas
peças de artilheria».

Valendo-nos, exemplificadamente, do dicionário de Sousa Viterbo –


para o qual se remete todas as referências aqui citadas – logo na primeira
década do século XVI se encontra na Índia Tomás Fernandes, tido como o
primeiro fortificador português nos territórios orientais, ao tempo de
Afonso de Albuquerque. Ainda dentro das práticas «manuelinas», fez
erguer os fortes de Angediva, Quiloa e Cochim bem como a defesa de
Cananor e Malaca. Posteriormente, D. João de Castro tece em 1547
grandes elogios a Jorge Cabral e a João de Magalhães, «perfeytos
arquytetos», como lhes chama o célebre humanista leitor de Vitrúvio.
Ainda nos finais da primeira metade do século, exactamente em 1549,
partia para o Brasil para tratar das fortificações Luís Dias, iniciando-se
assim a presença das técnicas construtivas europeias nos continentes
asiático e americano.

441
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Na segunda metade do século XVI as necessidades de especialistas


em matéria de defesa territorial aumentaram e incorporaram novidades no
que diz respeito aos modelos de fortificação. Se a experiência de Mazagão
deve ter representado um importante momento de viragem, o período
sebástico solidificou as novas práticas decorrentes dos sistemas italianos de
defesa, o avanço dos mestres portugueses no domínio dos novos modelos,
bem como a própria intervenção de mestres transalpinos nos territórios sob
a alçada régia portuguesa pelo mundo.
Embora excepcional, está documentada para a década de 60 a
aprendizagem no campo da arquitectura militar de Baltasar de Arruda e
Simão de Ruão. Depois de um estágio por Itália e Alemanha, um dos filhos
de João de Ruão, o aventureiro Simão de Ruão parte para a Índia em
tempos de D. Luís de Ataíde (1568-1571), reconstruindo o forte da cidade
de Onor. Anos depois aí se encontrava o italiano Giovanni Battista Cairati,
substituído em 1596 pelo português Júlio Simão – famoso «engenheiro» e
«mestre de fortificação da cidade de Goa». Por sua vez, para o Brasil partia
em 1571 Francisco Gonçalves, «que ora mando por mestre das obras da
fortificação que mando fazer na capitania do Rio de Janeiro», nas palavras
de D. Sebastião.

No reino português, além do «fortificador-mor» Miguel de Arruda e


depois António Rodrigues, a documentação destaca dois importantes
mestres que usam a mesma designação: Afonso Álvares e António Mendes,
dois profissionais na linha tradicional e nacional do mestre experiente em
construção. Afonso Álvares é tido em 1570 como «mestre das obras das
fortificações de meus Reynos». Este importante construtor da Sé de Leiria
ou do Colégio do Espírito Santo de Évora apenas se encontra documentado,
nesta área específica, pela sua intervenção na fortificação algarvia de
Alcantarilha em 1571, embora seja de todo provável que tivesse a seu cargo
toda a fortificação da costa sul após a morte de Arruda.Por sua vez, António
Mendes sucedeu ao «fortificador-mor» na importante fábrica de São Julião
da Barra de Lisboa, sendo responsável pela edificação dos três baluartes
virados ao mar, pela cisterna, armazéns e aquartelamentos. Era tido como
«fidalgo da casa del’rei» e «mestre das mynhas obras, e fortificações do
reyno», tendo participado na campanha de Alcácer Quibir.

Para avaliar o avanço na área da arquitectura militar em Portugal na


segunda metade do século XVI encontra-se um excelente exemplo na
figura de Mateus Fernandes 890. Em 1567 era enviado para a Madeira como
«fortificador e mestre de obras» onde produziu um importante trabalho
defensivo, depois da presença na ilha dos italianos Pompeo Arditti e

890
Ver capítulo neste trabalho.

442
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Benedetto da Ravenna que devem ter traçado as estruturas básicas para a


sua fortificação. Até 1595 – altura em que é substituído por Jerónimo Jorge
e quando se documenta a sua presença como o arquitecto projectista da
reforma da igreja de São Vicente de Abrantes – obras como as do forte de
São Lourenço ou do forte do Monte da Pena provam a sua mais valia como
especialista nesta área e os debuxos que deixou, o salto qualitativo
empreendido pelos mestres portugueses no uso pleno do exercício da figura
do arquitecto. O mesmo grau de debuxo está presente no códice da
Biblioteca Nacional que, através de uma articulação de vários desenhos,
apresenta no seu manuscrito uma projecção planimétrica de um baluarte
moderno à maneira italiana.

Pese embora o conhecimento e uso da tratadística moderna italiana


por parte dos mestres fortificadores nacionais – a título de exemplo, Rafael
Moreira e Miguel Soromenho destacam a inspiração directa de Inofre de
Carvalho nos textos de Cataneo (1554), Maggi e Castriotto nos fortes do
Bahrein e Ormuz (1573) – e a tentativa de adaptar o manuscrito acima
referido para o uso do «fortificador», a pouca inclinação nacional para a
produção teórico-literária sobre a arte e a arquitectura em qualquer período
da História da Arte manifesta-se também na ausência de escritos
especificamente relacionados com as matérias defensivas, sendo os
exemplos existentes absolutamente periféricos e excepcionais – como o de
Isidro de Almeida e o seu «De Condendis Arcibus» de cerca de 1552, que
Rafael Moreira vê como uma paráfrase do tratado de arquitectura militar de
Durer, «De urbibus, arcibus, castellisque condendis» (1535).

6.3.3. Os mestres italianos

Desde relativamente cedo que Portugal esteve em contacto com os


principais mestres e engenheiros italianos do seu tempo. Numa reflexão
recente acerca do peso dos mestres transalpinos neste contexto, Rafael
Moreira e Miguel Soromenho concluem que desde meados do século XV
que essa relação foi permanente e rupturante. Sabe-se que D. Fernando
entrou em contacto com um dos nomes maiores da «escola de Siena»,
designadamente com Mariano di Jacopo (1582-1458), conhecido por «Il
Taccola» tendo o mestre italiano enviado projectos absolutamente
revolucionários para a realidade portuguesa (1451) 891. Para além de outros
exemplos, os historiadores citados defendem que a jornada de nove anos
em Portugal de Andrea Sansovino poderá também ter contribuído para esta
evolução.

891
Rafael Moreira e Miguel Soromenho, «Engenheiros militares italianos em Portugal. Séculos XV-
XVI», pág. 110.

443
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Se a vinda em 1535 de Benedetto da Ravenna a Portugal, a mando do


infante D. Luís, para edificar a fortaleza de Vila Viçosa pode ser
considerada excepcional 892 – num período em que à regressão manuelina
sucede a política nacionalista de D. João III – com a entrada na segunda
metade da centúria instala-se definitivamente o monopólio italiano na
fortificação nacional, formando e suportando toda uma tradição de defesa
moderna e actualizada. Uma das figuras mais importantes nesta troca de
informações e de profissionais foi o conselheiro e perito em arquitectura
militar D. Manuel de Portugal que contratou em Roma, em 1558, Tomaso
Benedetto da Pesaro, o «capitão Alexandre Italiano» (Alexandre da
Urbino) e Pompeo Arditti, também ele de família pesarense em 1570 893.
Tudo coincide com a maior abertura proporcionada pelo reinado de D.
Sebastião (1568-1578) que, de forma definitiva ou ocasional, chamou a
Portugal toda uma série de especialistas italianos como G. Maria Benedetti
– que projecta a fortaleza de Santo António em Tavira (1570) – Pietro
Vignarelli de Urbino ou, com maior visibilidade, Tomaso Benedetto da
Pesaro e Filippo Terzi.

Como os citados autores tiveram a ocasião de apontar, a grande


maioria dos mestres italianos provinham do ducado de Urbino e Estados
Pontifícios, o que revela uma política concreta do período sebástico ligado
à região central italiana da mesma forma que, durante o período filipino,
Filipe II se virará para os seus aliados italianos, explorando assim um
mercado diferente. Nesta perspectiva e de forma resumida, é importante
fazermos menção a alguns destes nomes incontornáveis da arquitectura e
engenharia italiana que trabalharam em e para Portugal, alguns deles com
uma importante contribuição para o avanço da arquitectura religiosa.

6.3.3.1. Tomaso Benedetto da Pesaro

Engenheiro e arquitecto militar italiano, natural de Pesaro, chegou a


Portugal por volta de 1559 - 1560. A 19 de Dezembro de 1559, numa carta
enviada de Roma ao cardeal D. Henrique pelo embaixador Lourenço Pires
de Távora, encontra-se a seguinte informação relativa a este assunto: "João
Pereira Dantas me mandou os dias passados mostrar a copia de hua carta
del rey pela qual por informação de D. Manuel de Portugal mandava de
qua ir hum engenheiro por nome Thomas Benedicto de Pesaro e por o dito
João Pereira cuidar estava nesta corte este homem me escreveo o fizesse
hir e por naquelle tempo o não achar o não mandei. E vindo elle agora

892
Sobre este particular veja-se Rafael Moreira, «Uma cidade ideal em mármore. Vila Viçosa, a primeira
corte ducal do Renascimento português», Monumentos, pág. 48-53.
893
Rafael Moreira e Miguel Soromenho, «Engenheiros militares italianos em Portugal. Séculos XV-
XVI», pág. 114.

444
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

aqui de Veneza o mandei buscar e asentei com elle se fosse a João pereira
(do qual tenho segundo recado para o mandar) e que alli se consertaria, e
porque na mesma carta me dizia da parte de Sua Alteza desse a despeza
necessaria a este engenheiro ate Portugal lhe dei cem cruzados para se hir
a França ao dito João Pereira, porque não tendo eu outro conhecimento
deste homem, nem comissão de Sua Alteza, o remette a João Pereira como
digo e se sair tal como cumpre não lhe quero tirar sua honra; pareceme
que sera nesse reino por todo fevereiro" 894.
A 10 de Março de 1567 era enviado aos Açores, à ilha de S. Miguel,
para examinar as obras de fortificações que era necessário realizar e para as
quais se mandou fazer lanço de 10.000 cruzados.

6.3.3.2. Filippo Terzi

A vinda de Terzi para Portugal, tal como se depreende pelas cartas


de 1576 trocadas entre D. Sebastião e o embaixador português em Roma,
Gomes da Silva, prende-se claramente com a necessidade de o monarca
contratar alguém com formação no campo da arquitectura e engenharia
militar. Chegado ao nosso país, Filippo Terzi parte para Alcácer-Quibir,
como um dos «sitiadores de campo». Com o retorno à liberdade, só a partir
da união dinástica o arquitecto italiano teve a oportunidade de exercitar, de
forma visível, a sua profissão. Interessa-nos, neste capítulo, tecer uma
breve consideração acerca da sua actividade no campo da arquitectura
militar para o qual, aliás, tinha sido expressamente contratado 895.

Nesta circunstância, logo em Março de 1580, pouco tempo antes da


perda da independência, acompanha o «fortificador-mor» do reino D.
Manuel de Portugal no levantamento do «estado da arte» da defesa da barra
do Tejo 896. Resulta daqui a redacção da «descripção do rio de Lisboa» que
se encontra na Torre do Tombo.
Antes de Casale elaborar o projecto para São Lourenço de Cabeça
Seca, o arquitecto italiano chegou a construir um forte de madeira no
«cachopo» onde mais tarde viria a ser edificada a estrutura definitiva. Entre
Maio e Junho de 1580 ergue-se a nascente do areal de Cabeça Seca
segundo o relato do fidalgo galego Gregório Sarmyento de Valladares,
espião ao serviço de Filipe II. Esta empresa fazia parte de um conjunto de
estruturas defensivas provisórias que tentavam desesperadamente conter os
eminentes ataques espanhóis e que se estendiam por várias zonas da linha
marítima da capital do reino. Esta informação, bem como o esboço que

894
Sousa Viterbo, Dicionario..., Tomo I, pág. 98 - 99.
895
Sobre Terzi veja-se capítulo neste trabalho.
896
Cfr. Sylvie Deswarte-Rosa, «De l’emblema à l’espionnage: autor de D. Juan de Borja, embassadeur au
Portugal», pág. 165.

445
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Terzi entregou a Valladares, foi revelada por Joaquim Boiça 897 que vê
nesta iniciativa uma tomada de posição por parte do arquitecto favorável ao
partido «castelhano». O documento de 22-25 de Abril de 1580 é revelador
de tudo o que acima se diz: «En casa del guarda-mayor de la alfandega a
dicho al phelipe tercio que en la ribiera del pueblo abia de hazer dos
fuertes y a la punta desta alcantara outro y en samtos el viejo outro y al
otero mas aca un poco de las casas de sa. Dona Isabel outro y outro a sam
pablo y outro mas al varadero de las naos y outro al cais de la piedra y me
afirmam que al cais de la madera outro todos estos no son mas que de
tierra y madera para plantar artilleria la quall tienen muy poca.
Ayer me fue dada la traça que aqui ynbio a vuestra sa. que hallo
phelipo tercio por mas acertada para cabeça seca debe se tener tam mal
fundamento que no le acertam manera de firmeza; y al cabo vuestra sa. lo
a dicho todo» 898.
Sabe-se também que a 22 de Julho de 1580, na companhia de G. B.
Antonelli, foi a Setúbal reunir-se com o Duque de Alba e, nesta
circunstância, deve tê-lo informado acerca da defesa da barra de Lisboa. O
poderoso chefe castelhano descreve-o como «hombre de mucho servicio».

Com a nova realidade política Filippo Terzi continuará a encarregar-


se da supervisão de tudo o que se relacione com a defesa da costa
portuguesa em toda a sua amplitude. O trabalho é tanto que o próprio
mestre se enche de lamentos como prova uma carta sua ao secretário do
Duque de Urbino logo em meados de 1582: «Ainda não terminei a obra
deste Palácio, pois que por todo este mês terei que concluir a Capela, e já
se deu princípio à obra maior e porque por todas estas fortificações de
Portugal se lançam as mãos e mesmo naquelas de África, Ceuta, Tânger,
Arzila, Mazagão, de maneira que não durmo» 899.

As jornadas à Corte madrilena com o objectivo de pôr ao corrente


Filipe II acerca dos seus trabalhos são frequentes. Pouco tempo após a
partida de Filipe II para Castela, sabemos que em Julho de 1583 o
arquitecto italiano se encontrava na cidade madrilena 900. Em princípios de
Janeiro de 1589 era esperado em Madrid e o próprio arquitecto descreve-
nos o resultado dessa viagem a 16 de Junho do ano seguinte: «Por cá se
vive, mercê da graça divina, num diferente estado daquele que o ano
passado se fazia, e atende-se ao progresso das fábricas e outras coisas
determinadas pela Majestade do Rei. O que prova que a minha embaixada
897
Consulte-se Joaquim Boiça, A Barra do Tejo..., pág. 33-35.
898
Cfr. Joaquim Boiça, A Barra do Tejo..., pág. 39.
899
Biblioteca Oliveriana, f. 426, carta 384. Publicado por Trindade Coelho e Guido Battelli, Filippo
Terzi. Architetto e Engegnere militare in Portogallo (1557-1597), pág. 25-26.
900
Segundo uma carta de Baldo Falcucci ao Duque de Urbino, publicada por Trindade Coelho e Guido
Battelli, Filippo Terzi..., pág. 87-88.

446
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

a Madrid não foi de toda vã» 901. Mesmo em Lisboa, o arquitecto era
visitado regularmente pelo arquiduque Alberto. A 16 de Abril de 1588 902
afirmava que o governante «veio aos meus aposentos do palácio para ver
os modelos das fortalezas e fábricas que se fazem no Reino».

Uma das obras firmemente documentadas é a da Fortaleza de São


Filipe, em Setúbal, iniciada em 1582 na presença de Filipe II. Rafael
Moreira revelou a planta do forte, assinada por Terzi e datada de 8 de Julho
de 1594 903.

Durante os primeiros meses de 1588, o arquitecto está envolvido


com a fortificação do cabo de São Vicente no Algarve. Se a 26 de Março
refere a ordem régia para que para aí se desloque, a 15 de Abril diz-nos:
«Eu estou com as botas nos pés para ir ao Reino do Algarve plantar uma
fortaleza ao Cabo São Vicentino, no local onde os Ingleses fizeram danos
os meses passados, na qual ocasião veio o Cardeal aos meus aposentos no
palácio ver o modelo» 904. A 21 de Maio está já em Lisboa mas em trânsito
para Madrid onde, como o próprio afirma, «vou dar conta do que faço e
com desenhos e escritos». As viagens à capital castelhana eram essenciais
para o andamento das obras, como o próprio arquitecto nos dá prova a 16
de Junho de 1590: «Por cá se vive, mercê da graça divina, num diferente
estado daquele que o ano passado se fazia, e atende-se ao progresso das
fábricas e outras coisas determinadas pela Majestade do Rei. O que prova
que a minha embaixada a Madrid não foi de todo vã» 905. Pretendia assim
mostrar e fazer aprovar as soluções que apresenta para a defesa daquele
ponto algarvio. Terzi voltou pelo menos uma vez mais ao Algarve, ocupado
certamente com fábricas no campo da fortificação, no ano de 1591 906.

No final do atribulado ano de 1588 afirma estar «de partida para


visitar desta parte da costa daqui até à Galiza, onde estarei dois meses
antes de voltar», planeando assim uma longa vistoria a todas as fortalezas
da costa portuguesa do centro e norte do país. Nesta carta de 3 de
Dezembro, descreve minuciosamente a sua maneira de trabalhar: «Ontem
mandei um dos meus ajudantes nesta profissão com os desenhos aprovados
por S. Majestade, para executar aquela fortaleza que eu fui visitar nos
meses passados ao Reino do Algarve, cabo de São Vicente, e agora vou eu
901
Confira-se as referências publicadas em Trindade Coelho e Guido Battelli, Filippo Terzi..., pág. 65-66.
902
Trindade Coelho e Guido Battelli, Filippo Terzi..., pág. 51-52.
903
Rafael Moreira, «A arquitectura militar», pág. 149.
904
Os referidos documentos foram publicados por Trindade Coelho e Guido Battelli, Filippo Terzi..., pág.
46-50.
905
Segundo documentos publicados em Trindade Coelho e Guido Battelli, Filippo Terzi..., pág. 52-54 e
pág. 65-66.
906
Tal como ele próprio afirma através de uma carta data de 30 de Novembro de 1591, publicada por
Trindade Coelho e Guido Battelli, Filippo Terzi..., pág. 75-76.

447
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

determinado prover estas outras, onde deixarei um outro meu ajudante


semelhante para a execução delas» 907. Prova de que o arquitecto italiano
tem vários colaboradores próximos e que a eles confia a execução das
diversas obras.

Uma das razões da viagem nortenha do arquitecto tinha como


objectivo uma profunda reforma do forte de Santiago da Barra de Viana do
Castelo. A defesa da cidade alto-minhota tinha-se iniciado em 1502, no
período manuelino, quando foi edificado um primevo torreão defensivo. As
fragilidades nesta matéria levaram a que D. Sebastião, oportunamente,
ampliasse a mesma fortificação com a construção de uma cerca rectangular
no período de 1568-1572. A chegada de Terzi coincide com a necessidade
de projectar uma nova estrutura defensiva que irá integrar no seu traçado a
torre manuelina e parte da roqueta sebástica. A sua correspondência
informa-nos que esteve em Viana entre Dezembro de 1588 e Março de
1589, iniciando-se os trabalhos pouco depois. Não restam dúvidas que foi
delineado um projecto – dado que a 30 de Outubro de 1589 se documenta a
existência da «planta» da obra a realizar – enquanto que em 1593
começava o fornecimento da artilharia 908.

De regresso a Lisboa, em 1589 prossegue com as vistorias, desta vez


«um pedaço desta costa próxima da ilha do Pessegueiro» 909 e aquando de
uma investida do almirante inglês Drake o arquitecto italiano está em
Peniche tratando da «fortificação da torre» 910. A 6 de Janeiro de 1590
esperavam-no de novo em Peniche e nesse mesmo ano volta ao Algarve.
Em finais de 1592 está em Coimbra, com o objectivo de se deslocar a Vila
do Conde 911.

Sem querer, de algum modo, desenvolver estas matérias – fora do


âmbito que privilegia este estudo – é importante considerar que será tarefa
de dificuldade acrescida avaliar que obras, de facto, projectou ou realizou
Filippo Terzi dada a intervenção de outros mestres italianos especializados
na matéria durante este período e a prossecução de fábricas por parte de
Leonardo Turriani que certamente partiram ou beneficiaram, de alguma
maneira, de estudos e projectos iniciais de seu antecessor.

907
Urbino, f. 276, carta 445. Publicado em Trindade Coelho e Guido Battelli, Filippo Terzi..., pág. 56-58.
908
Cfr. Matos Reis, Filippo Terzi à luz dos documentos. A fortaleza de Santiago da Barra em Viana do
Castelo, pág. 8.
909
Segundo carta de 12 de Agosto de 1589 publicado por Trindade Coelho e Guido Battelli, Filippo
Terzi..., pág. 60-62.
910
Segundo André Falcão de Rezende, Archivo Bibliografico, citado por Sousa Viterbo, Dicionário...,
Tomo III, pág. 96.
911
Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo III, pág. 98.

448
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

6.3.3.3. Giacomo Palearo

O célebre capitão Fratino esteve em Portugal durante pouco tempo


mas deixou a sua marca devido ao facto de ter sido contratado por Filipe II,
logo em finais de 1580, para estudar e projectar um sistema para a defesa
da barra do Tejo. Do seu trabalho – que deve ter beneficiado com o estudo
prévio de Terzi – resultou uma proposta para a construção do forte de
Nossa Senhora da Luz na vila de Cascais e uma ampliação do de São Julião
da Barra 912.
Em 1580 a estrutura de São Julião da Barra revelou-se inofensiva
para deter os ataques «filipinos» à capital do reino, provando-se ser bem
mais fraca do que se pensaria. Estava edificada a estrutura base, os três
baluartes virados ao mar e ainda por concluir dois outros que pretendiam
defender qualquer ataque a partir da terra 913. Partindo desta realidade,
Filipe II vai incumbir Giacomo Palearo de projectar um amplo reforço do
fortificado que veio a constituir a estrutura que ainda hoje se pode observar.
As obras iniciam-se em 1582 e até ao final da década o seu aspecto
modificou-se consideravelmente, dado ao muito que foi edificado – uma
«ampla plataforma que envolveu os três baluartes primitivos e se
transformou numa longa e espaçosa bateria baixa, passando aqueles a
funcionar como bateria alta, e dois pujantes baluartes denominados de S.
Pedro e S. Filipe, que ocuparam parte do avantajado esporão rochoso que
avança sobre o mar», para além de outras alterações a poente 914.

6.3.3.4. Giovanni Battista Cairati

No último quartel do século XVI, Cairati serviu na Índia com o título


de «engenheiro-mor». A documentação base foi publicada por Sousa
Viterbo 915. A referência mais antiga nos arquivos portugueses trata de uma
carta régia dirigida de Lisboa, a 10 de Janeiro de 1587, ao vice-rei da Índia,
D. Duarte de Meneses, a qual relembrava a necessidade de se ocuparem da
fortaleza de Manar e que sobre este assunto deveria ser consultado Cairati.
Poucos dias depois, outra missiva aludia ao mesmo engenheiro e aos
resultados satisfatórios da sua viagem às fortalezas do Norte, conseguindo-
se desde a sua ida «fazer-se tanta obra e tão acertada nas fortificações
d'ellas como me escreveis e que esperaes que se acabarão com brevidade»,
recomendando-se ainda a reconstrução da fortificação de Damão por estar
mais fraca.

912
Rafael Moreira e Miguel Soromenho, «Engenheiros militares italianos em Portugal. Séculos XV-
XVI», pág. 120.
913
Sobre esta matéria consulte-se Joaquim Boiça, A Barra do Tejo..., pág. 38-40.
914
Joaquim Boiça, A Barra do Tejo..., pág. 39.
915
Sousa Viterbo, Dicionário..., pág. 154 - 157.

449
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

A 21 de Janeiro de 1588 pretendia-se enviar o engenheiro a Malaca a


fim de inspeccionar as obras e de as melhorar, caso assim o entendesse
necessário. Herédia na sua Declaraçoam de Malaca afirma: "E depois o
architecto-mór João Baptista, reformando a fabrica d'esta fortaleza por
ordem real, accrescentou nova traça de muro na parte de sueste, em campo
raso começando do baluarte Santiago até o baluarte S. Domingos, em toda
aquella distancia de muros de matte aedifficão novos muros de pedra e cal;
mas não teve effeito esta obra de fortificação". A 22 de Março escrevia o
monarca dizendo que tinha recebido informações de Cairati acerca do
estado da fortaleza de Baçaim.
A carta régia de 12 de Janeiro de 1591 tece considerações sobre as
fortalezas de Ormuz e de Mascatte, para onde tinha partido o engenheiro
italiano e dela se depreende que o vice-rei o pretendia enviar ao Ceilão e a
Malaca. Sabe-se que pelo ano de 1590 o engenheiro enviou uma longa
missiva ao monarca com uma descrição minuciosa do estado das
fortificações do Oriente.
Enfim, a 7 de Março de 1596 recupera-se o discurso da necessidade
de fortificar as praças e sua manutenção por um engenheiro que fosse
experiente na sua profissão, salientando-se o facto de, não existindo no
reino, se mandasse vir de Itália ou de outro qualquer país alguém
experiente na matéria. Pretendia-se substituir Cairati, que estava ansioso
por retornar à Europa. O engenheiro italiano não se demorou pois, no
mesmo ano, foi substituído por Júlio Simões.

6.3.3.5. Tiburzio Spannocchi

Nomeado «engeniero mayor de España» a 15 de Abril de 1601, para


além de especialista em matéria de fortificações, Spannocchi era pintor,
músico, matemático e cartógrafo. Foi o grande responsável pela renovação
dos sistemas de defesa castelhanos e prolongou a sua actividade a Portugal.
Contratado por Filipe II e engenheiro pessoal do duque de Lerma –
para quem, aliás, construiu um palácio em Valladolid – teve uma
participação pontual nos domínios portugueses em tempos filipinos.
Relaciona-se com a fortificação do arquipélago dos Açores na sequência da
necessidade de defesa e manutenção da soberania portuguesa no Atlântico
contra a pirataria e frota inglesas. Se já em 1567 Tomaso Bedenetto da
Pesaro defendia a construção de um sistema fortificado para o porto de
Angra, só a partir de 1583 as decisões avançam neste sentido. Apresentam
projectos Giovanni Battista Cairati e Tiburzio Spannocchi sendo os planos
deste último aprovados, iniciando-se os trabalhos no dealbar dos anos 90 –
obra ainda não concluída em 1617. No regimento de 1593 diz-se

450
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

claramente que se devem respeitar as traças do mestre italiano para a actual


fortaleza de São João Baptista de Angra do Heroísmo 916.

Spannocchi chegou a apresentar a Filipe II umas «traças e relacion»


propondo um projecto para São Lourenço da Cabeça Seca, segundo
documento de 13 de Fevereiro de 1590. Tais planos não se conservaram
mas a eles alude, anos mais tarde, Turriani, definindo um forte de «forma
prolongada de linhas equidistantes». Todavia, face à proposta de uma
fortificação assente numa planta oval, vingou o planimetria circular de
Casale 917.

6.3.3.6. Giovanni Vicenzo Casale

O contributo de Casale para a arquitectura portuguesa nos finais do


século XVI é mais importante do que se poderia antever. De São Lourenço
de Cabeça Seca à Cartuxa de Évora e a São Francisco de Coimbra, este
pouco conhecido arquitecto deixou-nos um legado importantíssimo quer ao
nível dos projectos de arquitectura religiosa quer militar.

Natural de Florença, ingressou na Ordem dos Servos de Santa Maria


e foi aluno do padre e escultor Giovanni Angelo Montórsoli, especialista
em questões de engenharia hidráulica. Em finais da década de 70 tem já
uma obra considerável em Florença, Roma e Nápoles – destacando-se o
Novo Arsenal que projectou na cidade napolitana. Filipe II fá-lo «ingegnero
et regio architetto» e chama-o à península ibérica 918.
Veio para Espanha em 1586 com o objectivo de projectar o Castelo
de Santo Elmo e chegou a trabalhar no Escorial. Realizou obras de carácter
civil como o Palácio do Viso, para o marquês de Santa Cruz D. Alonso de
Bazán 919 e o projecto para a reforma do Castelo de Villaviciosa de Odón,
para o conde de Chincón, inserto seu livro de desenhos depositado na
Biblioteca Nacional de Madrid 920. Tinha visitado Portugal em 1580,
acompanhando Cairati, entretanto chegado de Milão.

916
Veja-se Rafael Moreira e Miguel Soromenho, «Engenheiros militares italianos em Portugal. Séculos
XV-XVI», pág. 119.
917
Cfr. Joaquim Boiça e Maria de Fátima Barros, O Forte e Farol do Bugio..., pág. 58.
918
Cfr. Joaquim Boiça e Maria de Fàtima Barros, O Forte e o Farol do Bugio..., pág. 43.
919
O palácio do Viso del Marquez teve como projectista inicial o arquitecto Gio Battista Castello, o
Bergamasco, que optou por uma solução entre o palácio urbano e a casa de campo, próxima de modelos
quatrocentistas. Articulada a partir de um pátio central e quatro torres, tem um aspecto fortificado,
desenvolvendo as ordens dórica e jónica com frontões miguelangelescos rectos e curvos. Todo o seu
aspecto respira ar italiano, incluindo decorações em estuque à maneira genovesa. Cfr. Arquitectura del
Renacimiento en España..., pág. 376-377.
920
Consulte-se Alicia Cámara Muñoz, «O papel de la arquitectura militar y de los ingenieros», Felipe II y
el arte de su tiempo, pág. 390-391.

451
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

A partir de 1589 instala-se em Lisboa com o objectivo expresso de


fortificar a barra do Tejo. Do seu trabalho ficou-nos a obra emblemática da
arquitectura militar maneirista – a magnífica estrutura circular do forte de
São Lourenço de Cabeça Seca, mais conhecido por forte do Bugio, sobre a
qual existem os projectos arquitectónicos e diversas cartas que o
documentam cabalmente 921. Relacionado com o seu projecto para Cabeça
Seca e, globalmente, com as questões defensivas da barra da cidade de
Lisboa está uma «Descripção da boqua deste Rio» que Casale elabora em
1590. Trata-se de um estudo hidrográfico onde se julgam «as medidas
particulares de cada canal e fundo, com as distâncias do Castelo presente
(São Julião) e o que se deue fazer (Bugio)», segundo carta do arquitecto a
Filipe II 922.

Tendo em conta os problemas defensivos, o frade arquitecto decidiu


projectar uma linha inexpugnável de fogos cruzados entre a fortaleza de
São Julião da Barra e uma construção edificada sobre um dos «cachopos»
axialmente posicionado, ideia, aliás, já expressa na «fábrica que falece» de
Francisco de Holanda em 1571. Apresentou em 1590 duas alternativas
passíveis de serem utilizadas, desenvolvendo um forte de planta circular
com cisterna e torreão central, incluindo oito dependências e uma capela –
que veio a ser aprovado – e um segundo projecto em forma de estrela,
sobre o qual o próprio Casale não se mostrava particularmente adepto. As
obras iniciam-se logo nesse mesmo ano e podemos seguir o andamento dos
difíceis trabalhos de fundação através das cartas enviadas ao monarca.
Logo em 1591 o arquitecto declarava a sua satisfação no que respeitava ao
andamento da fábrica, mas o alicerçamento foi condicionado pelas
adversidades do rio e só em 1593 se começa a perceber o círculo de pedra
acima da linha de água 923.

Nesse mesmo ano falece Casale, o seu sobrinho Massai oferece-se


para prosseguir a obra mas a escolha recairá em Gaspar Ruiz ou Rodrigues,
espanhol, que aprendeu com Spannocchi e que tinha adquirido grande
experiência construtiva durante os anos em que, com o pai, trabalhou no
Escorial.
Não obstante, os trabalhos só avançariam definitivamente pelo final
da década. A 10 de Agosto de 1599 924, D. João da Silva informava o rei do
re-início da obra do forte de São Lourenço de Cabeça Seca: «Ayer fui a la
fabrica de caveza seca, a ver plantar las primeras piedras del edifíçio hizos
alegremente por ver que se san venzido tan grandes dificuldades como las
921
O trabalho de Casale foi admiravelmente tratado por Joaquim Boiça e Maria de Fátima Barros, O
Forte e Farol do Bugio..., pág. 43-83.
922
Joaquim Boiça, A Barra do Tejo..., pág. 14.
923
Segundo Joaquim Boiça e Maria de Fátima Barros, O Forte e Farol do Bugio..., pág. 60-61.
924
BNM, códice 6189, fl. 126vº-127.

452
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

del fundamento e qual esta ganado enteramente de baxa mar y por algunas
partes mas y lo que falta de suplu ala altura de 25 palmos de plea mar es
poco, haviamos de poner nombre al castilho como es costumbre y
pensandole llamar santiago por açertarse a hazer aquel prinçipio y
cerimonia vispera de san lorenzo se le puso el mismo nombre».
O arquitecto italiano deve mesmo ao mestre espanhol Gaspar Roiz a
continuidade do seu debuxo dado que este último ignorou, em 1600, um
novo projecto de Turriani, aprovado pelo rei. O desenho de Casale não
deixou de ser redimensionado em 1602 quando Gaspar Ruiz apresenta uma
solução menos dispendiosa. A luta intestina entre Casale – através de Ruiz
– e Turriani foi vitoriosa para o primeiro que viu a fortificação prosseguir,
grosso modo, de acordo com os seus planos 925.
A fábrica prolonga-se pela primeira metade de Seiscentos sob a
direcção de Gaspar Ruiz, Jerónimo Jorge e António Simões até 1643 mas
será apenas com a vigência de João Turriani – que introduziu pequenas
modificações sem desvirtuar os planos do arquitecto italiano – que se
aproxima da sua conclusão, encontrando-se em trabalhos de acabamentos
em 1657 – sendo a capela datável da década seguinte 926.

Das suas obras no campo da Engenharia Militar destaca-se ainda o


forte da vila de Pederneira, na Nazaré, e o provável contributo para o
projecto da fortaleza de Monte Brasil, na Ilha Terceira, nos Açores, da
autoria de Spannocchi 927. Rafael Moreira atribui-lhe também o começo da
obra do forte de Santo António do Estoril bem como três projectos para
jardins intitulados «Para a quinta do senhor Fernão da Silva em Belém»,
insertos no álbum madrileno de Casale 928.

A fonte principal para o estudo da obra de Giovanni Vicenzo Casale


é o célebre álbum de desenhos que se encontra depositado na Biblioteca
Nacional de Madrid e que inclui cerca de 150 desenhos, reunindo originais
de Montórsoli, Peruzzi, Della Porta, Perino del Vaga bem como cópias de
Miguel Ângelo, provavelmente organizado pelo seu sobrinho Alessandro
Massai 929. Nele insere-se uma planta da vila de Cascais, datada de 1590,
realizada pelo mestre florentino.

925
Cfr. Joaquim Boiça e Maria de Fátima Barros, O Forte e Farol do Bugio..., pág. 83.
926
Consulte-se Joaquim Boiça e Maria de Fátima Barros, O Forte e Farol do Bugio..., pág. 65-112.
927
Existem desenhos seus no códice da Biblioteca Nacional de Madrid.
928
Cfr. Rafael Moreira, «Arquitectura», pág. 351. O autor aponta igualmente Jerónimo de Ruão como
outro provável autor, valendo-se do facto de aí habitar à época.
929
Cfr. Rafael Moreira, «Arquitectura», pág. 348.

453
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Deve destacar-se a sua importância como projectista de duas


importantes obras no campo da arquitectura religiosa portuguesa, a Cartuxa
de Évora e o Convento de São Francisco de Coimbra.

Cartuxa de Évora

O padre Casale será o vencedor de um autêntico concurso para a


edificação do Convento de Scala Coeli dos frades da Ordem de S. Bruno,
ou cartuxos, tendo sido escolhido perante uma forte concorrência. Segundo
o índice do álbum existente, as plantas datáveis de cerca de 1588-1590
seriam dezasseis, tendo desaparecido as duas primeiras, da autoria de
Tiburzio Spannocchi e as três seguintes da autoria de Filippo Terzi
(incluindo uma «Planta da Cidade d’Evora feita por Felipe Tersi», uma
planta geral e outra de uma cela conventual). Das outras onze, seis são de
Vicenzo Casale e quatro de Francisco de Mora 930. Depois de preteridos,
primeiro o debuxo de Spannocchi e depois de Terzi e Mora, o projecto de
Casale, melhor adaptado ao terreno e mais regular, foi o escolhido e a
planta tem a aprovação de «Theot. Arcebo de Evora e frei Joan Bello Prior
indigno da Cartuxa de Evora».

A iniciativa de trazer para Portugal os frades cartuxos deveu-se ao


arcebispo D. Teotónio de Bragança. Se em 1583 manifestava o seu desejo
junto do papa Gregório XIII, no ano em que contactou com o Geral da
ordem cartuxa coincidiu com a chegada a Évora dos primeiros religiosos –
1587. O primeiro projecto conhecido, da autoria de Spannocchi é logo do
ano seguinte, o que pressupõe que o arcebispo tudo fazia para que a fábrica
conventual se iniciasse de imediato. O pouco que se conhece sobre o
andamento das obras deve-se, em substância, à investigação de Vítor
Serrão que declara que já no ano de 1587 «se tinham iniciado e decorriam
céleres» 931. Casale não ficou a supervisionar as obras, pois a partir de 1589
instala-se definitivamente em Lisboa, e nunca aparece citado na
documentação. Surge, sim, o contacto do arquitecto régio Nicolau de Frias
com os frades cartuxos. Segundo exemplifica Vítor Serrão, em 1589, o
arquitecto «enviava de Lisboa huma ferragem do porto com mil ferros
limados, huma romaã grande com seus pezos, seis mesas grandes, setenta
taboas de pinho, doze tinteiros e vinte e quatro aneis e duzentas continhas

930
De Casale são os fl. 60 (corte transversal), fl. 58 (planta geral, rubricada), fl. 57 (Estado avançado de
elaboração da planta), fl. 59 (projecto de conjunto completo), fl. 55 (esquiço da entrada), fl. 61 (cela do
claustro principal). De Francisco de Mora são os fl. 52 (corte transversal), fl. 51 (planta geral), fl.53
(planta ao nível dos telhados) e fl. 54 (planta e corte de uma cela). Devemos ter em conta as plantas dos
fls. 4 e 177 que representam a casa-mãe de Santa Cruz de Jerusalem em Roma, que poderiam ter servido
de modelo. Cfr. Rafael Moreira, «Arquitectura», pág. 349-350.
931
Cfr. Vítor Serrão, «Um desenho de Fernão Gomes para o Mosteiro da Scala Coeli de Évora»,
Monumentos, nº 10, pág. 33.

454
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

de cavalo marinho, pedras de moldes, bem como outras peças, quer para as
obras que se faziam, quer para o serviço da comunidade monacal» 932. Toda
esta informação se insere no inventário das oferendas do arcebispo aos
religiosos e mantém-se durante vários anos.
De facto, a ligação de Nicolau de Frias à casa de Bragança e ao
arcebispado de Évora está bem documentada durante as décadas de 80 e 90.
Em 1583 recebia importantes somas sobre «traças» feitas para o Palácio
Ducal de Vila Viçosa enquanto que em 1588 é o responsável pelo debuxo
do monumental sepulcro para as celebrações da Semana Santa na Sé de
Évora. Por sua vez, estava de novo na cidade alentejana quando a 16 de
Dezembro de 1594 redige missiva acerca das plantas de Inquisição933.
Neste particular, a presença do arquitecto régio poderá ser maximamente
relevante se tivermos em conta um problema que foi recentemente
lembrado por Miguel Soromenho, isto é, «a inequívoca diferença entre o
projecto final do Pe. Casale e a fachada actual, o que tem sido explicado de
forma expedita, por parte da historiografia tradicional, pelas campanhas
tardo-seiscentistas» 934. Voltaremos a esta questão adiante.

Uma das questões que pensamos totalmente resolvida é a da direcção


da empreitada. Em Maio de 1592 as obras corriam sob a égide de Jerónimo
de Torres, «mestre das obras do arcebispado de Évora» a quem se ordenava
realizasse pagamentos aos oficiais da fábrica nesse mesmo ano 935. Mestre
Torres atingiu este estatuto fruto do seu intenso trabalho na cidade. Como
se provou anteriormente, foi o responsável pela edificação da igreja jesuíta
do Espírito Santo, projectada por Diogo de Torralva, dando quitação final
dos trabalhos em 1570 – embora tenha continuado a trabalhar para a
Companhia de Jesus nos anos subsequentes. Como noutras ocasiões, ordens
régias redireccionavam para as obras mais urgentes e politicamente fortes,
os oficiais necessários para a sua rápida manufactura. Foi o que aconteceu
pelo alvará de 25 de Setembro de 1595, através do qual Filipe II obrigava a
que fossem «adstritos ao estaleiro cartuxo todos os oficiais necessários ao
bom andamento dos trabalhos, pedreiros, carpinteiros, cavouqueiros,
serradores, carreiros, trabalhadores e servidores, bem como materiais,
carros, embarcações e bestas para sua condução», na mesma altura em que
o mestre de pedraria Vicente Ferreira assinava contrato para a edificação de
uma capela na igreja conventual 936.

932
BPE, Inventário de tudo o que o Arcebispo tem dado aos padres catuxos do Mosteiro de escala coeli
desta cidade de evora, asi dinheiro, pam, como movel, e outras cousas, códice CVII/1-28. Citado por
Vítor Serrão, «Um desenho de Fernão Gomes para o Mosteiro da Scala Coeli de Évora», pág. 33.
933
Sobre todas estas questões consulte-se biografia de Nicolau de Frias.
934
Miguel Soromenho, «As possíveis fontes tipológicas da fachada da Igreja», Monumentos, nº 10, pág.
9.
935
Cfr. Vítor Serrão, «Um desenho de Fernão Gomes para o Mosteiro da Scala Coeli de Évora», pág. 33.
936
Cfr. Miguel Soromenho, «As possíveis fontes tipológicas da fachada da Igreja», pág. 10.

455
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Para além de Nicolau de Frias, um outro nome de menos nomeada


aparece como testemunha contratual em Dezembro de 1596 em documento
de administração de doações feitas pelo arcebispo à casa conventual,
«incluindo 500 cruzados anuais para o término das obras de decoração
intestina» – Pero Vaz Pereira, a partir de 1604, «arquitecto e escultor» do
Palácio Ducal de Vila Viçosa. Todavia, tendo em conta a sua biografia e
cronologia, não cremos que a sua presença se relacione com intervenções
de natureza projectiva, numa altura em que a fábrica da igreja se
encontrava em vias de conclusão: «A 15 de Dezembro de 1598, enfim, as
obras estavam prontas, sendo a igreja conventual, após a transferência dos
monges sediados provisoriamente nos antigos paços reais de São Francisco,
inaugurada com toda a pompa e circunstância» 937. Um dos portais
interiores do nártex fixa o milésimo de 1604.

Em 1602, por altura da morte de D. Teotónio de Bragança, a


monumental fábrica de Santa Coeli encontrava-se muito avançada, tendo-
se despendido 150 mil cruzados e nem mesmo o facto de em 1622 João
Baptista Lavanha afirmar que a casa conventual ainda não se encontrava de
todo conclusa invalida o facto de a empreitada do templo ter terminado em
finais do século XVI.

O templo foi tristemente vilipendiado e incendiado em 1663 pelas


tropas castelhanas e, segundo a tradição historiográfica, da fachada
reconstituída posteriormente apenas restou o nobre pórtico de mármore,
sendo tudo o resto renovado 938. Esta questão foi reavaliada recentemente
por Miguel Soromenho – que afirma que apenas o terceiro corpo não deve
corresponder ao original – juntamente com o facto de existirem diferenças
entre o projecto aprovado e o efectivamente construído. De facto, a planta
de Casale assinada por D. Teotónio de Bragança e pelo prior cartuxo
apresenta um pórtico tripartido e não a solução que actualmente se
vislumbra de um nártex de cinco vãos. Para o referido autor, que vê
Nicolau de Frias como «intermediário para aquisições correntes na capital,
actividade que o parece ter ocupado entre 1587 e 1590», «é provável que já
depois do assentimento final ao projecto de Casale algumas modificações
tenham sido introduzidas, pelo próprio arquitecto ou por aqueles que
herdaram a obra depois de 1593. A primeira hipótese parece-nos a mais
segura, tanto mais se tentarmos elucidar a origem tipológica da frontaria da
Cartuxa de Évora» 939. Pese embora não esqueça os modelos tipológicos
das igrejas de São Francisco e do Espírito Santo de Évora, Miguel

937
Vítor Serrão, «Um desenho de Fernão Gomes para o Mosteiro da Scala Coeli de Évora», pág. 33. O
historiador coloca a hipótese de a traça do designado Claustro das Capelas poder ser de sua autoria.
938
Cfr. Inventário Artístico de Portugal. Concelho de Évora, pág. 308.
939
Cfr. Miguel Soromenho, «As possíveis fontes tipológicas da fachada da Igreja», pág. 11.

456
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Soromenho vai mais atrás, à biografia de Casale e à sua ligação florentina a


Montorsoli, apresentando no cerne da questão os projectos para a fachada
de São Lourenço de Miguel Ângelo e de Giuliano da Sangallo com nártex
avançados.
Não cremos que seja necessário recuar aos momentos de formação
do jovem frade servita para, em última instância, justificar ser ele próprio a
modificar o projecto aprovado de tripla arcaria para a galilé actual. Da
mesma forma, se as informações acerca da intervenção de Nicolau de Frias
nada apontam para uma intervenção para além do mercantilismo
assinalado, também não invalidam por omissão uma intervenção posterior
da sua autoria. Casale está em Lisboa a partir de 1589 envolvido na obra do
forte de São Lourenço de Cabeça Seca e a trabalhar intensamente. Falecerá
em 1593 em Coimbra, numa altura em que se encontrava a projectar a
igreja conventual de São Francisco, anos antes da tomada solene dos frades
da sua igreja em 1598. Por sua vez, Nicolau de Frias sabemo-lo, está em
Évora em meados da década de 90.
Seja qual for a solução revelada num futuro próximo, espera-se, por
nova documentação – e mesmo que não seja suficiente a influência directa
dos pórticos franciscano e jesuíta eborenses – o certo é que existe um outro
edifício, muito pouco conhecido, de projecto anterior e certamente de risco
régio que nos poderá oferecer uma outra pista: a igreja de Nossa Senhora
da Encarnação de Leiria 940.

A cerimónia de colocação da primeira pedra realizou-se a 24 de


Dezembro de 1588. O portal de entrada no templo encontra-se datado de
1606, embora a conclusão do complexo corpo interior se fixe na longínqua
data de 1656. Nela encontra-se activo o mestre de pedraria local Pero
Moreira por volta de 1624 941. Será, porventura, abusivo atribuir ao mestre
de pedraria o projecto da obra que, com toda a probabilidade, deve ter saído
das mãos de um dos vários arquitectos a trabalhar no círculo régio. Saúl
Gomes chamava a atenção para o facto de que «a ligação da arquitectura da
Diocese de Leiria aos horizontes arquitectónicos filipino-madrilenos não
aparece descontextualizada. Tenhamos presente que o poderoso prelado de
Leiria era, na altura, D. Pedro de Castilho, uma das vozes mais decisivas na
entronização de Filipe II como monarca da coroa portuguesa, sendo ainda
inquisidor-mor e vice-rei. Não estranha, assim sendo, que tivesse procurado
940
Originalíssima capela com nártex exterior que corre pela fachada e ao longo do comprimento da nave,
numa sucessão de sete arcos na fachada, sendo o central mais elevado – rematado por frontão curvo
interrompido – e de cada lado outros sete, funcionando o intermédio como entrada lateral. As arcarias
apresentam colunas toscanas que assentam em pedestal único corrido, excepto nas três entradas
emolduradas por pilares toscanos. Todas as coberturas são em madeira, suportada na galeria central por
dois segmentos de arcos em asa de cesto. A fachada foi pensada como um todo com corpo rectangular e
coroamento triangular onde se insere o campanário.
941
ADL, Registos notariais: Leiria 9-B 29, fls. 109vº-112. Cfr. Saul António Gomes, «Oficinas artísticas
no bispado de Leiria», pág. 253.

457
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

mestre-de-obras esclarecidos no que respeitava a programas artisticos


espanhóis» 942. Também aqui, poderemos encontrar esforçadamente uma
filiaçã estética italiana, a igreja da abadia de San Benedetto in Polirone,
perto de Mântua, reformada cerca de 1540 por Giulio Romano 943.

Convento de São Francisco de Coimbra

Muito recentemente, nova documentação aponta-o claramente como


autor da traça do edifício. Fernando Bouza Álvarez cita um documento em
que «dispensando Giovanni Vicenzo Casale, se autorizava os religiosos do
mosteiro de S. Francisco de Coimbra fazer nisso o que lhes bem estiver e
enviarme (ao rei) as traças de tudo antes de o executarem» 944. A carta data
de 13 de Dezembro de 1593 e refere-se à debilidade física do arquitecto e
engenheiro militar italiano, que faleceria em Coimbra nesse mesmo ano.
Parece encontrada a razão para a presença e morte de Casale em Coimbra.
Autor do projecto de São Francisco encontrava-se a supervisionar a obra e,
por razões de saúde, pede ao monarca para o dispensar destas funções.
Filipe II assim decide e incumbe aos religiosos franciscanos de lhe
enviarem os projectos para serem estudados e devidamente autorizados.

Desenvolve-se um dos mais bem conseguidos e monumentais


frontispícios deste período, jogando com o geometrismo das arcarias e
janelas rasgadas com as molduras cegas, dividido em cinco panos por
pilastras que, centralmente, se sobrepõem até ao coroamento com frontão
triangular. O espaço intestino de cruz latina é amplo, com nave única e
capela-mor de iguais dimensões, tal como em largura se ajustam as três
capelas laterais, de cada banda, com o transepto.
Um único modelo de ordem arquitectónica caracteriza todo o
debuxo, no exterior e interior do templo, um correcto Toscano. O sistema
pilastral apresenta um pedestal duplo, base toscana e fuste liso. Os capitéis
são apenas delimitados do fuste por filete e colarete inferiores enquanto o
ábaco e equino se integram no contínuo do friso e cornija que resumem os
registos horizontais – duplicados no interior ao nível da galeria. Pese
embora o seu abandono, o projecto da igreja franciscana revela de forma
clara um traço erudito e «italianizante» afastado dos modelos locais.

942
Consulte-se Saul Gomes, «Manuel Gomes, pintor da Leiria maneirista», Jornal de Leiria, 18 Agosto
de 1989; «A Capela de S. Miguel de Leiria em Obras por 1578», O Mensageiro, 5 de Fevereiro de 1990,
e «Nótula sobre o barroco em Leiria», O Mensageiro 22 de Novembro e 13 de Dezembro de 1990.
943
Cfr. Wolfgang Lotz, Architettura in Italia (1500-1600), pág. 81.
944
Bouza Álvarez, Portugal no tempo dos Filipes. Política, Cultura, Representações (1580-1668), pág.
30. Segundo o Livro do registro de todas as cartas que ElRey nosso senhor escreve aos cinquo
governadores do Reyno de Portugal desde que tomarão o governo e o señor Cardeal Archique sahio da
cidade de Lisboa, Biblioteca da Casa Cadaval, KVII-27-795.

458
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

6.3.3.7. Leonardo Turriani

O cremonês Leonardo Turriani veio trabalhar ao serviço da coroa de


Castela e de Filipe II. Filho de Juanello Turriani, mecânico e relojoeiro de
Carlos V, em 1582 estava ao serviço de Rudolfo II, no reino habsburgo
austríaco que durante o seu reinado montou sede em Praga, capital da
Boémia. A 27 de Fevereiro de 1583 recebeu um convite de Filipe II para
servir o reino espanhol e no ano seguinte está já na ilha mediterrânea de
Palma onde trabalhou até 1586, tendo a seu cargo todas as fortificações das
Canárias. De igual modo vistoriou praças africanas como Orão e em 1594
encontra-se em Cartagena 945. Através de um pequeno historial respeitante a
seu filho frei João Turriani ficamos a saber que foi «casado a primeira vez
em Castella, de quem descendem naquella Monarchia e existem hoje
nobres casas. Vindo já viuvo a Portugal para assistir á Fabrica da Torre, e
Fortaleza de São Gião, casou segunda vez em Lisboa com dona Maria
Manoel, cujos Pays erão de conhecida nobreza, como seu Appellido
mostra, e natural da mesma cidade, sendo sempre muyto aceito, e estimado
por sua pessoa, e Arte de Architectura» 946. D. Maria Manuel da Cunha
Faria era herdeira de um morgadio em Oeiras e juntos tiveram três filhos,
dois deles famosos, Diogo que sucederá ao pai e João, o frade projectista de
Santa Clara-a-Nova de Coimbra.

A 22 de Julho de 1596 é enviado a Portugal para comandar as obras


do forte de Viana do Castelo, seguindo os planos de Spannocchi depois de
se terem posto de lado as opções de Terzi 947. A partir daqui o seu rumo
profissional ficará umbilicalmente ligado ao território português – para
além de algumas incursões à Galiza, essencialmente para estudar a defesa
de Ferrol e La Coruña 948.
Será Leonardo Turriani o escolhido para substituir Filippo Terzi no
mais alto cargo da sua profissão quando a 20 de Abril de 1598 949 é
nomeado «engenheiro geral» recebendo 240.000 reais de ordenado anual
mais 18.000 reais «para aluguer das casas em que ha de viuer». O alvará

945
Consulte-se Rafael Moreira e Miguel Soromenho, «Engenheiros italianos militares em Portugal.
Séculos XV-XVI», pág. 120-121.
946
Cfr. Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo III, pág. 146.
947
Segundo afirmam Rafael Moreira e Miguel Soromenho, «Engenheiros militares italianos em
Portugal», pág. 121.
948
Cfr. Rafael Moreira, «O engenheiro-mór e a circulação das formas no Império Português», pág.103. O
historiador considera que, em relação a Leonardo Turriani, «na verdade, nenhuma obra construída pode
até hoje ser atribuída com segurança ao engenheiro-mor. A sua permanência portuguesa de mais de 30
anos salda-se por uns quantos pareceres técnicos (sobre sondagens na barra do Tejo e Sado, sobre a
defesa de Lisboa, Peniche e Arquim, sobre o abastecimento de água à capital, etc.) e intervenções
polémicas como a que teve em 1627 contra o engenheiro Alexandre Massai a respeito da muralha de
Lagos, no Algarve».
949
ANTT, Chancelaria de D. Filipe II, Doações, livro 7, fl. 140vº. Publicado por Sousa Viterbo,
Dicionário..., Tomo III, pág. 147.

459
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

inclui uma curiosa ressalva, em apostila, para que «sirua de engenheiro


geral e não de Arquiteto por ser este o cargo de que lhe faço merce».
Define-se, deste modo e pela primeira vez, a separação entre o cargo de
engenheiro militar e arquitecto régio. Pouco depois Filipe II decide
aumentar-lhe o ordenado em «quatro centos cruzados cada anno para que
com os seis centos que com elle já tem aja cadano mil cruzados de sellario
com o dito cargo» a 28 de Março de 1599 950.

A sua nomeação parece ter sido objecto de alguma controvérsia, a


avaliar pela seguinte observação do governador D. João da Silva (1593-
1599), conde de Portalegre ao monarca espanhol a 11 de Outubro de 1597
951
: «Hede averiguar de que se quexa de mi Turriano porque Architectos y
debujantes me goviernam y no he visto ninguno tan docto ni tan galamte y
escrivirndo esta dize mi secretario que le a dicho que le escriven de alla
que yo le hago da guerra porque he votado por juan bautista Lavaña para
Ingeniero y no me passa por pensamiento tener a juan bautista por hombre
que tenga mas que la theorica ni entiendo que se podria fiar del fabrica y a
turriano tenga V. S. como le tiene en opinion de Hombre muy de provecho
para servir a un Prinçipe aunque fuesse de çerca». Pondo de lado o crédito
das palavras do governador, esta informação regista o facto de o nome de
João Baptista Lavanha ter sido ventilado para ocupar o cargo de
«engenheiro-mor» e define claramente a mais valia de Leonardo Turriani
em questões técnico-práticas para cumprir essas funções.

O engenheiro italiano trabalhará essencialmente em Lisboa e


arredores, em obras como as fortalezas da barra do Tejo, São Julião da
Barra e os fortes de Santo António da Barra bem como num monumental
projecto de dragagem do estuário do Tejo e no importante abastecimento de
água à cidade. Não deixou de vistoriar obras como o forte de Peniche em
1605 952.

As cartas do governador D. João da Silva são preciosas para


obtermos importantes informações acerca das obras realizadas durante este
período no que diz respeito à fortificação da cidade de Lisboa. Pela manhã
de 20 de Dezembro de 1597 953 realizou-se uma vistoria a Cascais e zona
circundante, tendo participado Leonardo Turriani, João Baptista Lavanha e
outros dois engenheiros. Informa-se que «Nicolao de frias no pareçio» e
que «Baltasar alvarez dixo que yiria llego tarde». De facto, durante estes
950
ANTT, Chancelaria de D. Filipe II, Doações, livro 8, fl. 195. Publicado por Sousa Viterbo,
Dicionário..., Tomo III, pág. 147-148.
951
BNM, Cartas de D. Juan da Silva, códice nº 6198, fl. 28. Inédito.
952
Rafael Moreira e Miguel Soromenho, «Engenheiros militares italianos em Portugal. Séculos XV-
XVI», pág. 121.
953
BNM, códice 6189, fl. 23.

460
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

anos, as principais preocupações privilegiam a margem direita do Tejo


entre a Torre de Belém e Cascais, pretendendo-se reforçar a defesa em toda
esta frente. A 29 de Agosto de 1598 954 D. João da Silva informava o rei de
que se tinha consumido o dinheiro que o monarca mandava aplicar «a la
fortificaçion des castilho de cascaes torre de Belen y los demas prazas» e,
para o avanço das fábricas a edificar, era importante conceder «liçencia de
dos meses a leonardo turriano para que ymforme a boca lo que ha visto y
trazado e V. Magd peuda juntamente tomar la resoluçion que convegna a
sua servyo en la election de las trazas y en la provission de dinero».
Sabe-se, através de carta do mesmo dia dirigida a D. Cristóvão de
Melo em que projectos estava Turriani a trabalhar: «Es lo que mas ymporta
las trazas que le mandaron jazer espeçialmente las dos de cascaes y torre
de Belen tan neçessarias que sin poner en defensa nunca los navios del
norte acabaran de perder la confianza de offendernos», não deixando de
manifestar revolta com «las dilataçiones de los estilos Portuguesses se ha
tardado año y medio la conclusion de lassiento de leonardo turriano».
A 17 de Janeiro de 1599 relatava o governador a Andres de Prada
que «Leonardo Turriano hizo la traza sobre lo que antes se havia
rascuñado, alla la tiene si V. Magd fuere servido de mandar luego ver y
aprovar en le modo que mehor fuere y prover la mitad del dinero se podria
Turriano dar tan buena priesse desde lueguo que en tres o quatro meses se
pussiesse en buenos terminos y solo comenzarlo continuando la fabrica ara
ver a los enemigos». Pouco depois, no dia 4 de Março 955, recordando ao
monarca filipino a necessidade de peças de artilharia para as fortificações,
fala-se já da vinda do engenheiro «com la resoluçion de la fortificaçion de
cascaes».

A vida de Leonardo Turriani em Portugal não foi de forma alguma


fácil e as suas expectativas em relação a alguns trabalhos saíram goradas.
Se as cartas do embaixador João da Silva mostram alguma animosidade
perante o italiano, as relações do «engenheiro-mor» com as autoridades
portuguesas revelam conflitos abertos como prova o seguinte episódio.
Depois de ter realizado sondagens à barra do Tejo e de ter previsto o seu
assoreamento – afirmando num relatório que «crecerá tanto, que no podrán
passar naves grande, ni aún pequeñas» – Turriani aconselhou a drenagem
do rio mas encontrou resistências, sendo acusado de falta de rigor e de não
ter «sondado a barra» eficientemente 956.

954
BNM, códice 6189, fl. 69-69vº.
955
BNM, códice 6189, fl. 107.
956
Joaquim Boiça, A Barra do Tejo..., pág. 18-20. Segundo este autor, a razão estaria do lado dos críticos
de Turriani concluindo que o «que se verificou na altura, no canal de S. Julião foi um episódio do
fenómeno, que é cíclico, de deposição e sequente libertação das areias retidas no fundo rochoso dos
cachopos», mal avaliado pelo italiano.

461
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

O mesmo se pode dizer em relação a São Lourenço de Cabeça Seca.


O engenheiro-mor realizou várias viagens a Madrid nos finais da década de
90 e, por esta altura, deve ter contestado os projectos de Casale. Chegando
mesmo a apresentar um projecto assente numa planimetria ovalada, inscrito
na «Relación de las fortificaciones de Portugal», de 1600, teve autorização
para o aplicar mas o mestre responsável pela fábrica, Gaspar Ruiz,
manteve-se fiel ao plano «casaliano» e os protestos de Turriani de nada lhe
valeram 957.

Outra obra em que, directamente, Turriani teve responsabilidades


acrescidas foi na consubstanciação do projecto de Fratino para São Julião
da Barra, no qual tinham trabalhado Terzi, Anton Coll e mesmo Casale.
Como afirma Joaquim Boiça, partindo de uma carta do próprio arquitecto
datada de 1600, «foi sob a sua direcção que se concluiu a construção dos
baluartes de terra e boa parte das obras exteriores: fosso, tenalha, estrada
coberta, etc.» 958.

Dos incontáveis relatórios que Leonardo Turriani redigiu salientam-


se os seus trabalhos topográficos e hidrográficos. Nesta circunstância
tentou responder às dificuldades que se colocavam à cidade de Lisboa no
que diz respeito ao abastecimento de água, problema que apenas se
solucionou no longínquo reinado de D. João V.
Uma das mais intensas iniciativas para resolver este problema foi
registado pelo arquitecto Pedro Nunes Tinoco num manuscrito intitulado
«Roteiro da Água Livre» e relata uma série de vistorias realizadas em 1618
e nos anos seguintes onde participaram, entre outros, o engenheiro-mor
Turriani, o cosmógrafo-mor Lavanha e os arquitectos Teodósio de Frias e
Pedro Nunes Tinoco. A decisão da vereação da Câmara de Lisboa regista-
se a 11 de Setembro de 1618 959 onde se afirma que, «para se acertar
melhor o caminho e mais conveniente e duravel, que os canos das aguas
haviam de trazer, que o presidente e ministros da camara fôssem ver e
medir e tomar oliveis, e pôr balisas nos ditos caminhos, ultimamente, além
das mais diligencias que estavam feitas ; e que para isto levassem comsigo
os ditos architectos e officiaes, intelligentes, e João Baptista Lavanha,
cosmographo-mor, que ora chegou a esta cidade». Não restam dúvidas que
o papel de autoridade máxima nestas matérias pertenceu a Leonardo
Turriani, não obstante alguns conflitos com a edilidade.

957
Consulte-se Joaquim Boiça e Maria de Fátima Barros, O Forte e Farol do Bugio..., pág. 80-83.
958
Joaquim Boiça, A Barra do Tejo..., pág. 41.
959
Freire de Oliveira, Elementos..., Tomo II, pág. 375.

462
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

A 23 de Julho de 1620 960 «achandosse esta cidade com ordem de V.


Magd para fabricar as agoas, que stauão detreminadas uir a ella, se
mandarão fazer as traças e rascunhos pellos mais peritos homes, que auia
neste Rno, em q tambem trabalharão João Baptista Labanha e Leonardo
Torreano». A câmara lisboeta reprova o comportamento do engenheiro-
mor pelo facto de «o ditto Leonardo Torreano tera com V. Magd, faz
consideração deste seruiço, atribuindo assi só o mericimto delle, nos
pareceo auisar a V. Magd, pa que mande estranhar ao ditto Torreano ir a
V. Magd com os dittos rascunhos, contra as ultimas ordes de V. Magd, sem
as deixar nesta cidade pera se uerem neste tribunal, como tinha obrigação,
pois por sua ordem as fez, e lhe mandou fazer o custo do trabalho delles».
A 6 de Outubro 961, uma carta régia informava que o monarca tinha
recebido os projectos: «Leonardo Turriano me deu o papel que uai com
esta, sobre os caminhos que se offerecem pera trazer a essa cidade a agoa
liure, e as mais que se tratta de lhe ajunctar», contando com um veio de
água que o engenheiro diz ter descoberto em Sintra. O «papel» de
Leonardo Turriani apontava quatro caminhos para a colecta da água. A 20
de Outubro 962 nova missiva confirma a supervisão e «asistencia de
Leonardo Torreano».

O engenheiro italiano supervisionava todas as obras que diziam


respeito à fortificação e defesa da cidade de Lisboa, como atesta a seguinte
carta régia de 12 de Março de 1625 963: «Vy o que me escreuestes acerca
das preuenções, q se fazião, para guarda e deffensão dessa cidade; e porq
as trincheiras, não hauendo occasião q peça, serão de despeza para a
cidade, e assy o tapar e derribar as casas q ha junto aos muros, ordenareis
q estas duas cousas, ficando com comunicação de Leonardo Turriano
assentado como se hão de executar, se a necessidade o requerer, se
suspendão por agora, porém, q no reparo dos muros e portas delles se
trabalhe com todo cuidado e breuidade, sem se perder hora de tempo».

Pese embora especialista em obras no campo da engenharia civil e


militar, segundo Rafael Moreira, Leonardo Turriani contribuiu para a
decoração pictórica e alegórica da Sala do Trono dos destruídos Paços da
Ribeira, acrescentando três novas alegorias (1605-1606) às pinturas
atribuídas ao seu conterrâneo Tiburzio Spannocchi, devendo igualmente ter
sido o autor de arquitectura efémera de 1619, aquando da entrada triunfal
de Filipe III em Lisboa 964.

960
Cfr. Freire de Oliveira, Elementos..., Tomo II, pág. 563.
961
Freire de Oliveira, Elementos..., Tomo II, pág. 573.
962
Freire de Oliveira, Elementos..., Tomo II, pág. 575.
963
Freire de Oliveira, Elementos..., Tomo III, pág. 172.
964
Segundo Rafael Moreira, «O torreão do Paço da Ribeira», Mundo da Arte, pág. 45-48.

463
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Leonardo Turriani era um erudito e redigiu toda uma série de


trabalhos teóricos de grande valia, versando os mais diversos assuntos.
Entre eles contam-se um Parecer sobre a navegação do rio Guadalete a
Guadalete e Guadalquivir escripta a 17 de julho de 1624 965 a importante
Discrittione et Historia del Regno De l’Isole Canarie Gia Dette le
Fortunate – Com il Parere Delle Loro Fortificationi, da autoria de
Leonardo Torriani Cremonese 966 e uma Descrición de las Plaças de Oran
i Mazarquivir. Em depósito na Torre do Tombo encontra-se uma série de
desenhos de fortificação datáveis de cerca 1608-1617, alguns deles por ele
assinados, um Discurso de Leonardo Turriano sobre o limpar la barra del
taxo y otras barras de otros rios – este na Biblioteca Nacional de Lisboa –
e outro Discurso de Leonardo Turriano sobre el Fuerte de San Lorenço de
Cabeçaceca, empeçado en la boca del taxo, en arenal en frente del
Castilho de San Julian, dicho San Gian, ambos de 1608. Chegou ainda a
anunciar um tratado sobre vulcões.

6.3.4. A «aula de arquitectura» e a arquitectura militar

Vimos que a «aula de arquitectura» dos Paços Régios funcionava


como uma espécie de ponto iniciático na hierarquia dos profissionais ao
serviço do estado onde seriam necessários conhecimentos avançados para a
sua adesão, aprofundados pela obrigatoriedade de ouvir aulas teóricas quer
do arquitecto-mor, quer do cosmógrafo-mor, para além do desempenho de
funções de coadjuvação aos próprios mestres ao nível prático. É igualmente
claro que não existe um ensino complementar teórico tendo por vista a
especialização dos arquitectos num único ramo, seja ele a arquitectura civil,
militar, o urbanismo ou a arquitectura efémera.
Todavia, ao analisarmos as cartas e as respectivas promoções
profissionais dos arquitectos saídos da «aula» facilmente se constata que
existe, para a maior parte dos casos, uma distribuição dos profissionais pela
área da arquitectura civil e religiosa ou pela área da arquitectura e
engenharia militar. Pretende-se aqui referenciar quatro desses arquitectos
que se destacaram essencialmente na área específica da arquitectura militar,
sendo importante afirmar que, no que concerne à arte da fortificação – com
a excepção de Francisco de Frias, no Brasil – nenhum deles ascendeu ao
cargo mais importante do reino, dominado pelos italianos até à segunda
metade do século XVII.

965
Transcrito para português por frei Francisco de São Tomás, encontrando-se na Academia das Ciências.
O original foi transcrito no tomo V da Colección de Documentos Inéditos para la Historia de España.
966
O manuscrito da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra encontra-se traduzido por José Manuel
de Azevedo, Leonardo Torriani, Descrição e história do Reino das Ilhas Canárias. Existe também em no
Arquivo de Simancas umas Memórias, Discursos, Pareceres e outras informações avulsas das Canárias.

464
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

6.3.4.1. Francisco de Frias (1598–1645)

Francisco de Frias é o maior arquitecto militar formado na «aula de


arquitectura» régia. Tal como acontece com Eugénio de Frias, desconhece-
se a ligação de parentesco, mais do que provável, que terá com o patriarca
da família Frias, seja ele Pedro ou Nicolau de Frias.
De concreto sabemos que a partir de 11 de Junho de 1598 967 ocupa
uma das três vagas para aprender o ofício de arquitectura como se
depreende pelo seguinte documento: «Ev El Rey faço saber aos que este
aluara virem que eu ey por bem e me praz de fazer merce a Frãcisqo de
Frias de hum lugar que ora esta vago dos tres que eu tenho prouido em
pessoas naturais deste Reino para aprenderem arquitetura, a qual
aprenderá com Nicolao de Frias, mestre de minhas obras, e asystiraa com
elle ou com qualquer outro mestre dellas que for mandado, e ouuyrá
geumetria de João Baptista Lauanha, cosmographo mor destes reinos, e
auera de ordenado cada ano, equanto estiuer no dito lugar, vynte mil rs».
A presença de Francisco de Frias na «aula» de arquitectura foi pouco
demorada dado que em 1602 lhe sucede Henrique de França.

A 31 de Agosto de 1602 968 um registo de pagamento comprova a sua


ligação a obras na Universidade de Coimbra – «se passou mdo a frco de frias
architeto de sua Mgde pa o pbendro lhe dar sesseta mil rs q em mesa se
assetou se lhe desse pella architetura e traca das escolas a qual trouxe per
orde do bpõ capellaõ mor». O projecto encomendado pela Universidade
para a reforma do pátio das Escolas é a sua única intervenção conhecida no
campo da arquitectura civil em Portugal.
A obra não foi feita de imediato já que a 26 de Agosto de 1609 969,
ainda o reitor D. Francisco de Castro alertava a Mesa da Consciência e
Ordens para a necessidade de se realizar os «novos gerais, e q delles avja a
preciza necessidade p ser grandissima a falta q ha de gerais, e q com
agora de fazerem dous, se ficara dando grande remedio os quais como da
traça q com esta inviamos a V. Mde se ordene hum mujto major q o outro e
a tenção he pa q o grande possa servir das licois ordinarias de theologia»
pois o que até aí servia e «esta ordenado seja casa de livraria por ser a
mays acomstada que pera isto aya de vir a sser». Este é o primeiro
momento de reforma das Escolas Gerais desde a definitiva venda por Filipe
II dos antigos paços reais à Universidade em 1597 e que integrará a
posterior edificação da Porta Férrea (1633) e da Sala dos Capelos (1654-
1656).
967
ANTT, Chancelaria de D. Filipe II, Doações, livro 8, fol. 249. Publicado em Sousa Viterbo,
Dicionário..., Tomo I, pág. 377.
968
AUC, Receita e Despesa da Universidade, Anos de 1595-1604. Publicado por Lopes de Almeida,
Artes e Ofícios em Documentos da Universidade, Tomo I, pág. 10.
969
ANTT, Mesa da Consciência e Ordens, MCO 021, fls. 22-22vº.

465
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Francisco de Frias será nomeado, a 24 de Janeiro de 1603 970, para


servir o reino no Brasil: «Francisco de Frias, q hora uai as partes do
Brazil a couzas de meu seruiço sobre as fortificaçõens das fortalezas das
ditas partes», receberá por cada ano 400 cruzados, pagos pelo almoxarife
da capitania de Pernambuco. A sua contribuição é de tal maneira relevante
que Pedro Dias, em recente e extenso estudo sobre a Arte Portuguesa no
ultramar português, considera-o como «o verdadeiro pai da fortificação do
Brasil», aplicando no continente sul-americano «os métodos da
contramentação, ciência que conhecia em Portugal um desenvolvimento
ímpar, dada a experiência no reino e sobretudo em Marrocos e no Índico»
971
. Pensa-se que a sua primeira intervenção se relacione com a fundação da
cidade de Salvador, seguindo ideias de Turriani e Spannocchi, em 1605 972.

Sabemos da sua ampla contribuição para a defesa das praças


portuguesas contra os ataques da pirataria francesa e essencialmente
holandesa e que Francisco de Frias (de Mesquita), no dizer de Berredo,
«com grande louvor, tinha acabado a fortaleza da legem do Recife» –
conhecido também como forte de São Francisco ou forte do Picão e
conforme os planos idealizados pelo italiano Tiburzio Spannocchi – e
quando parte em 1614 para o Maranhão aí edificará uma outra fortaleza à
maneira europeia, ou seja, «um hexagono perfeito, capaz de alojar em si
toda aquella gente e se defender com mui pouca, acomodando-se com o
terreno e assim aos 28 do dito (ano) se disse missa e n’ella os padres
capuchos lançaram sorte ao nome da fortaleza e saiu o nascimento de N.
Senhora e assim se chamou o forte Santa Maria» 973. Desenha igualmente a
malha ortogonal de São Luís do Maranhão, constrói o forte dos Reis Magos
de Natal no Rio Grande do Norte (1614), comanda as empreitadas do Forte
de São Mateus, na barra da lagoa de Araruama (1617) e projecta a fortaleza
de Santa Catarina do Cabedela, Paraíba (1618) 974.

O arquitecto tornou a Portugal encontrando-se a comandar a obra da


fortaleza de Outão em 1645, como informa o governador Manuel da Silva
Mascarenhas: «Esta obra he grande e requer muito cuidado, e emtendo que
se não acabara em dous annos, não faltando dinheiro. A planta della uay
com esta, a qual fez o emgenheiro Francisco de Frias, que aqui achey,
homem uelho e de experiemcia, e me parece pessoa de gram talento, o que
delle posso affirmar he a grande aplicação e cuidado que tem, não só no
tocante a seu offício, mas achandosse presente a todos, e me parece pessoa

970
Cfr. Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo I, pág. 377-378.
971
Pedro Dias, História da Arte Portuguesa no Mundo. O espaço do Altântico, pág. 363.
972
Pedro Dias, História da Arte Portuguesa no Mundo..., pág. 449.
973
Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo I, pág. 378-379.
974
Cfr. Pedro Dias, História da Arte Portuguesa no Mundo..., pág. 333-343.

466
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

de grande prestimo» 975. O seu regresso coincide claramente com a


Restauração e a necessidade de defesa das praças portuguesas.

6.3.4.2. António Simões (1604- Ω 1643)

Pouco citado pela historiografia, António Simões participa na


primeira geração de arquitectos formados na «aula régia», tendo certamente
recebido os ensinamentos de Filippo Terzi e posteriormente de Nicolau de
Frias, bem como do cosmógrafo-mor João Baptista Lavanha. Através da
promoção de Pedro Nunes Tinoco a «aprendiz» de arquitectura, sabe-se
que até 1604 António Simões preencheu esse mesmo lugar que abandona
em virtude de «estar prouido pella coroa de Castella em maior praça» 976.

A sua especialização aponta claramente para o campo da arquitectura


e engenharia militar, como se depreende pela sua promoção a «assistente
das obras do forte de são Lourenço da Cabeça sequa e mais fortalezas da
barra» de Lisboa – quando Jerónimo Jorge ascende a mestre das
fortificações da Ilha da Madeira – dada a «sufficiençia que mostrou nas
cousas de que foi encarregado de sua profissão», como se documenta a 15
de Fevereiro de 1611 977. O mesmo assento ordenava a «Leonardo
Turriano, engenheiro geral deste Reino que tanto que lhe for apresentado
pello dito Antonio Simões lhe de a posse do dito cargo de asistente das
ditas obras».

A 5 de Agosto de 1619 978 o seu nome é citado num contrato


celebrado entre D. Violante de Noronha, fundadora do Mosteiro de Monte
Calvário (Alcântara, Lisboa) e os mestres de pedraria Jerónimo Gomes e
Paulo da Mota onde ambos se obrigam «a fazere no dito mostro do monte
calvario hu dormitorio ao lomgo do mar pella traça q lhes foi mostrada
feita por Anto Simois architeto e emgenheiro das obras de sua mgde».
Descreve-se todo o sistema de pagamentos por peça de pedraria ou de
telhado mourisco, bem como por cada vara de «volta de arco bastardo,
com seu pillar» ou de abobadamentos 979, salientando-se «os arcos
975
Cfr. Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo I, pág. 380.
976
Cfr. Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo III, pág. 120.
977
Publicado por Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo IIII, pág.59-60.
978
ANTT, Cartório Notarial de Lisboa, nº 9/A, Maço 18, Livro 82, fls. 118-119vº. Citado mas não
publicado em Vítor Serrão, «Documentos dos protocolos notariais de Lisboa referentes a artes e artistas
portugueses (1563-1650)», Boletim da Assembleia Distrital de Lisboa, pág. 26.
979
Tal como se diz, «ha parede delle sera ordinaria de Alvenaria mto bem feita de cal e amossiçada dalto
abaixo e por cada braca da dita parede em preto lhe pagara a dita dona violante de noronha a
novecentos rs e por cada braca de guarnicão desempenada e apensillada cento e sinquoenta rs», «a
braca de telhado mourisco por preço de duzentos rs por cada braca», «o frontal dalvenaria guarnecido
e acabado se lhe pagarão por seiscentos e sinquoenta rs cada braca, e por cada palmo de pedraria lancil
de oeiras be tratada a cinquoenta e cinquo rs e por cada vara de emxelharia tosca trezentos rs, e por
cada vara de volta de arco bastardo, com seu pillar a quinhentos rs, e a braça de abobada se se fizer

467
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

decllarados na dita traça por preço de cento e corenta rs o palmo de duas


escodas pedra mto alva de lios e bem feita e as arestas vjvas», «a qual obra
do dito dormitorio e bem asi de huas letrinas q ão de fazer ao longo do
mar comforme a dita traça se obrigão elles mestres a dar feita e acabada
dentro de quatro mezes primros segujntes».
Com bula de fundação de 1617, as freiras observantes franciscanas
tiveram na viúva de D. Manuel de Meneses, falecido em Alcácer Quibir, o
seu mais elevado patrocínio e a fábrica decorreu célere. Segundo o
inquérito de 1758, «ficou este Mosteiro totalmente aruinado e abatido» na
sequência do terramoto 980, vindo as religiosas a refugiar-se no convento
das Flamengas, mesmo em frente de sua casa, e depois em Xabregas. Não
obstante, a reconstrução deve ter seguido as linhas mestras do edifício
seiscentista como parece provar o alçado do complexo conventual – dos
vãos das janelas ao portal com coroamento em frontão curvo interrompido
– a pequena igreja de frontão triangular e o severo claustro interino, riscado
por António Simões, com piso térreo em arcaria simples com almofadas
rectangulares nos «intercolúnios» e piso nobre suportado por colunelos
paralelepipédicos.
António Simões falece por volta de 1643, sendo substituído no cargo
de «assistente das fortificações» da barra de Lisboa por Mateus do Couto
981
.

6.3.4.3. Henrique de França (1602-1611)

Outro dos privilegiados com formação no campo da arquitectura


militar e que posteriormente emigrará para servir no reino de Nápoles foi
Henrique de França.
A 10 de Maio de 1602 982, Filipe II fez mercê a «Anrrique de França,
caualeiro fidalgo de minha casa, de hum lugar que esta vago ora por
Francisco de Frias dos tres que tenho prouido em pesoas para aprenderem
arquitetura, a qual apredera com o mestre de minhas obras, que lhe for
mãdado, e apremdera a jumetria de João Bautista Labanha, cosmographo
mor destes Reynos, quando a ler, e auera de mantimento cadanno,
emquanto estiuer no dito lugar, vimte mil rs», na circunstância de «hauer
muito tempo que estuda na dita arquetitura e a me seruir nella». Será

singella guarneçida, a dous mil rs, e a braça de panos de chamine oitocentos rs, e por cada braça de
emcaiamto comforme ha traça mil e duzentos rs, e a braca de frontal de emcaiamto comforme ha traca mil
e duzentos rs, e a braca de frontal de forcado se lhe pagara a quinhentos e corenta rs».
980
Fernando Portugal e Alfredo de Matos, Lisboa em 1758. Memórias paroquiais de Lisboa, pág. 320.
981
Cfr. Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo I, pág. 256.
982
ANTT, Chancelaria de D. Filipe II, Doações, livro 6, fl. 317. Publicado por Sousa Viterbo,
Dicionário..., Tomo I, pág. 367.

468
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

substituído por Eugénio de Frias no ano de 1611, numa altura em que


ascende a «hua praça de engenheiro no Reino de Napoles» 983.

6.3.4.4. Diogo Paes (1624-1646)

Diogo Paes ocupou um dos três lugares de aprendiz de arquitectura


por promoção de Pedro Nunes Tinoco a mestre de obras de São Vicente de
Fora em 1624 984.
A sua preparação profissional incidiu na arquitectura militar sendo
que, a 28 de Julho de 1629 985, quando se preparava para rumar a
Pernambuco com Matias de Albuquerque, o monarca fá-lo «capitão de
infantaria de prezidio e emginheiro melitar com todos os ordinados, proes
e precalços, previlegios e liberdades que am e tem todos os outros capitães
de infantaria do prezidio que autualmente servem no estado do Brasil». A
sua vaga na «aula» de arquitectura será preenchida em 1632 por Francisco
da Silva 986.
Diogo Paes deve ter tornado ao reino em 1644 como se depreende
pelo rápido interesse de D. João IV em que o «Engenheiro Diogo Paez
passe logo ao Algarue a assistir as fortificações daquelle Reyno» sendo
agraciado com o cargo de «Engenheiro mór delle para que sirua com os
poderes e preheminencias que lhe toquarem, com o qual gosará sincoenta
cruzados de soldo por mez» 987.

Do pouco que se pode aferir da sua biografia fica-se a saber que fez
fortuna no Brasil. Se em 1646 Jorge de Melo e D. João da Costa, do
Conselho de Guerra, aconselhavam a que se enviem para a sua defesa
«Diogo Paez e ao engenheiro Ponsué», no ano seguinte o monarca decide
enviar o arquitecto militar para a Baía «em hua embarcação ligeira que
parte com hum auiso que se não pode deter», não obstante admitir ser
necessário «hauer aly engenheiro de mayor sufficiencia», esperando por
isso as propostas do Conselho 988.

983
Cfr. Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo I, pág. 376.
984
ANTT, Chancelaria de D. Filipe III, Doações, livro 30, fl. 183. Publicado por Sousa Viterbo,
Dicionário..., Tomo. II, pág. 236.
985
ANTT, Chancelaria de D. Filipe III, Doações, livro 22, fl. 223. Publicado por Sousa Viterbo,
Dicionário..., Tomo II, pág. 236-237.
986
Cfr. Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo III, pág. 34.
987
ANTT, Chancelaria de D. João IV. Doações, livro 16, fl. 215vº. Publicado por Sousa Viterbo,
Dicionário..., Tomo III, pág. 237.
988
Cfr. Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo. III, pág. 236-237.

469
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

470
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Um veículo-outro:
A Gravura e a Arquitectura
de pendor «flamengo»

471
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

472
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

7.1. A Gravura como veículo da modernidade: do


«grottesche» italiano à «cartela» flamenga

7.1.1. O «grottesche» italiano

De acordo com o espírito «all’antico», o Renascimento italiano


desenvolveu um autêntico programa decorativo inspirado em grande parte
nas decorações da Antiguidade Clássica romana. No maior elogio feito a
este sistema ornamental, cerca de 1568-1570, o italiano Pirro Ligorio
define-o da seguinte forma: «Os nossos contemporâneos chamam grotescos
a um tipo de pinturas antigas, e assim as denominam à causa das antigas e
artificiosas grutas pintadas, quer dizer por causa das (pinturas) das criptas
e criptopórticos, que foram pintados com diversas fantasias de amenas
cores, como coisas muito estudadas. E não só se utilizam nas criptas e
criptopórticos como também em todas as instâncias e ambientes grandes e
pequenos, por estarem os antigos muito apaixonados por esta classe de
pinturas». São compostos por «temas arquitectónicos muito utilizados e
com colunas delgadíssimas e altas e com estranhos objectos interrompidos
em perspectiva, e coisas que se sustêm por um fio ou por um baraço de
vide, que com instinto vegetativo ata as suas ramas e se enrosca pelo seu
tronco». Os povos antigos usaram-nos «na ornamentação de todas as
divisões da casa, nos dormitórios, nas divisões sem luz, que escuras e sem
iluminação eram sempre nocturnas e as utilizavam com a luz dos
lucernários. E assim também nas salas e nos teatros, e inclusive os temos
visto igualmente nas sepulturas» 989.

Aplicados já nas mais diversas artes, foi a descoberta da Domus


Aurea em 1480 que veio revolucionar e ampliar o espectro decorativo do
Primeiro Renascimento, introduzindo um carácter fantástico e bizarro,
típico dos ornamentos da pintura antiga romana. Através dos trabalhos de
Rafael e do seu colaborador Giovanni da Udine, a sua divulgação não só
contribuiu decisivamente para a sua caracterização como foi, para o caso
do Maneirismo, verdadeiro definidor de estilo 990. Será com Udine que se
assistirá a uma «verdadeira codificação antiquizante da linguagem dos

989
Pirro Ligorio, Livro das antiguidades grotescas citado em Renacimiento en Europa, pág. 444. É
interessante que o célebre escultor Benvenuto Cellini não concordava com esta designação afirmando no
seu diário que «os estudiosos encontraram-nos em locais agora cavernosos, pois que se foi alçando o
terreno da antiguidade aos nossos dias e ficaram por debaixo. E porque em Roma se chamam a tais
lugares grutas, daqui lhe vem o nome de grotescos. Mas não é este o seu nome. Se é certo que os antigos
se compraziam em compor monstros formados com cabras, vacas e cavalos, por originarem estas
misturas chamaram-lhes monstros, e também os antigos faziam com as suas folhagens esta classe de
monstros, e monstros é o seu verdadeiro nome e não grotescos». B. Cellini, Mi Vida, pág. 63.
990
A bíblia sobre este assunto é o magnífico estudo de Nicole Dacos, La découverte de la Domus Áurea
et la formation des grotesques a la Renaissance. Para Portugal, a primeira síntese acerca do grotesco
deve-se a João Miguel Lameiras, O elogio do fantástico na pintura de grotesco em Portugal. 1521-1656.

473
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

grotescos» 991. Estes motivos decorativos foram grandemente divulgados


por toda a Europa através de gravuras avulsas ou em série, a par de
temáticas iconográficas e, pouco depois, de arquitecturas utópicas,
impondo definitivamente a nova modernidade estilística.

Pese embora a larga difusão dos sistemas decorativos directa ou


indirectamente declinados do grotesco italiano e, posteriormente, da cartela
flamenga – contribuindo decisivamente para a internacionalização da
estética maneirista – alguns contemporâneos não deixaram de ter uma
atitude crítica face ao ornamento. Se na própria Antiguidade Clássica
autores como Horácio e o próprio Vitrúvio não lhes eram muito favoráveis,
a sua condenação nos textos tridentinos por Gilio da Fabriano ou Gabrielle
Paleotti é bem visível, inscrevendo-se nas críticas gerais ao paganismo
renascentista. Face à defesa e prática de grande parte de teóricos e artistas
da decoração em grotesco – de Tadeo Zuccari a Perino del Vaga ou
Baldassare Peruzzi – o purismo de algumas teorias levou a que fossem
condenados, mesmo fora da centralidade italiana, por desculparem a menos
valia da prática arquitectónica e das suas regras 992.
Todavia, grande parte da modernidade arquitectónica da Europa
coeva assentava no uso e abuso da decoração como imagem do novo, face
a um sistema estrutural poucas vezes fidedigno. Queremos com isto dizer
que a importância dos sistemas decorativos italianos e, posteriormente,
nórdicos foi muitas vezes o substituto da parca consciência existente sobre
a realidade arquitectónica pura.

7.1.2. O «grottesche» reinventado: a «cartela» flamenga

Aparecendo como sucedânea da imprensa, a gravura atinge na


segunda metade do século XVI uma enorme importância como veículo
primordial na divulgação artística e estética em larga escala. Começando
por plantarizar a nova fase da gravura italiana posterior aos trabalhos em
torno dos motivos inspirados pela Domus Aurea, muito rapidamente estes
serão substituídos pela gravura nórdica que alcança grande longevidade.
Ao longo do século XVI a Flandres, Alemanha e França conheceram uma
larga fortuna da estampa, transformando-se em centros de distribuição do
novo estilo de raiz italiana. Os agentes difusores serão essencialmente
ornamentalistas franco-flamengos como Jacques Androuet du Cerceau,

991
Consulte-se Philipe Morel, Les Grotesques. Les figures de l’imaginaire dans la peinture italienne de la
fin de la Renaissence, pág. 23-24.
992
Como considerava cerca de 1621 Teofilo Gallaccini: «O abuso do ornato dana a bondade dos
edifícios e é a razão da má arquitectura, principalmente quando se exagera e se rompe a regra dos
Antigos. O ornato exagerado é próximo dos costumes bárbaros, leva a coisas grotescas e à fantasia de
ourives ou pintores. É errado desproporcionar arquitraves e colunas, romper as arquitraves, os frisos,
para ornamentar os vãos». Cfr. História de la Arquitectura. Antologia Critica, pág. 261.

474
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Pierre Coek van Aelst, Cornelis Bos ou Cornelis Floris que partem do
grotesco italiano, reinterpretam-no e divulgam-no por toda a Europa.

O grotesco flamengo cria um novo mundo de formas ornamentais


miscigenando a fantasia e a alienação, o irreal e o fantástico. Foi
essencialmente Cornelis Floris que, a partir de meados da década de 30,
imagina um renovado formulário ornamental aumentado, adulterado e
modificado por outros autores, semelhando «ferragens» e volutas, ornatos
condrais ou em estilo «orelha». Este grotesco, designado genericamente por
«strapwerk» e «rollwerk», reúne algumas características do seu antecessor
italiano, como a mescla orgânica e inorgânica formal e de carácter
fantástico, mas faz praticamente desaparecer os motivos retirados da
Antiguidade. Cria-se uma estrutura que é inteiramente nova, consistindo no
aprisionar das formas em estruturas metálicas que se interligam entre si.

7.1.3. Os conceitos de grotesco e «brutesco» português

O regimento dos pintores de 1572 manifestava já o enorme sucesso


que a decoração em grotesco tinha atingido em Portugal, como se pode
observar pela seguinte passagem respeitante à examinação: «E o que de
tempera ou fresco quiser usar faraa em parede a fresco E em panno ou
tavoa a tempera figura ou lavor romano ou grotesco querendo usar de
tudo E fazendo o sobredito ficara examinado de todas as cousas aa dita
pintura de tempera ou fresco inferiores» 993.
Como veremos, a penetração dos sistemas decorativos italiano e
nórdico funcionou como fonte primária da modernidade artística nas mais
diversas artes. Se durante a segunda metade do século XVI a sua
reprodução se colava aos modelos originais, quer em trabalhos eruditos
quer em regionais, paulatinamente, a decoração nacional vai afastar-se das
fontes primárias e reinventar um sistema ornamental que alcançará o seu
período aúreo na pós-Restauração, numa altura em que as dificuldades
económicas raiavam a catástrofe. Nicole Dacos e Vítor Serrão propuseram
a utilização do termo «brutesco» – presente na documentação da época –
para identificar esta versão «nacional» seiscentista, partindo do seguinte
argumento: «A popularização deste género avança no sentido de uma
crescente autonomia dos grotesche itálo-flamengos, que, muitas vezes, por
via não erudita, extravasam o seu papel de complementaridade decorativa
(restringido a frisos, entablamentos, colunas, bases e molduras) para se
assumir como género de excelência. A própria revalorização da sua
especificidade conduz à corrupção da designação original, que a partir de
1600 se transforma, invariavelmente citada como ornato de brutesco, por
993
Citado em Nicole Dacos e Vítor Serrão, «Do grotesco ao brutesco. As artes ornamentais e o fantástico
em Portugal (séculos XVI a XVIII)», Portugal e Flandres. Visões da Europa 1550-1680, pág. 42.

475
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

corruptela popular do vocábulo e em referência aos estranhos motivos de


mascarões e monstros que o caracterizam, quer em espaços profanos e
aristocráticos, quer em espaços religiosos» 994.

7.1.4. A penetração dos sistemas decorativos em Portugal

Se se quiser encontrar um momento iniciático que prove a penetração


do Renascimento e do Maneirismo fora de Itália, por toda a Europa coeva,
encontramo-lo na gramática decorativa designada genericamente por
«grotesco».
A decoração renascentista e maneirista reúne, grosso modo, uma
cornucópia de constituintes, desde simples representações vegetalistas e
geométricas, elementos de carácter profano e fantástico (temática erótica,
hieroglífica e mitológica) e elementos de carácter religioso (simbologia
cristã e cristológica) agora aduzidos e articulados dentro da simbiose
profano-cristã que o Renascimento tanto cultivou. Na mesma ordem de
ideias, a tendência generalizada para a superação da própria Antiguidade
pelos artistas italianos é também visível pela dose de imaginação e
criatividade insuflada à decoração antiga conhecida. Será a cópia exaustiva
destes motivos decorativos vindos de Itália que, chegados a Portugal, pré-
anunciaram um novo período artístico.

Desde os finais do século XV que o acesso a esta modernidade


decorativa foi possível por diversas formas, destacando-se a vinda de
artistas estrangeiros já formados em ambientes «proto» ou mesmo
renascentistas e, principalmente, a divulgação dos motivos através da
literatura e de estampas avulsas ou em série. Estes dois aspectos são bem
mais reveladores e fundadores do que a importação de obras de arte ou a
muito improvável formação de artistas portugueses em território italiano na
primeira metade do século XVI. De facto, a gravura avulsa e mesmo a sua
divulgação na literatura impressa contribuíram, talvez mais do que se possa
pensar, para a introdução da nova gramática decorativa nas artes, seja pela
cópia dos frontispícios dos volumes ou pelas suas gravuras figurativas, de
temática quase sempre religiosa.

Os primeiros e frustes sinais da presença da decoração renascentista


em território nacional datam ainda do reinado de D. Manuel e são visíveis
quer na célebre Leitura Nova quer na decoração escultórica de edifícios
tardo-góticos como o de Santa Maria de Belém em Lisboa – para além de
obras excepcionais e periféricas como a Matriz de Caminha – levando
Sylvie Deswarte a designar o chavão de 1511 para a sua introdução em
994
Nicole Dacos e Vítor Serrão, «Do grotesco ao brutesco. As artes ornamentais e o fantástico em
Portugal (séculos XVI a XVIII)», pág. 45.

476
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Portugal e 1517 para a sua generalização 995. A referida autora definiu,


desta forma, uma primeira vaga de gramática decorativa de raiz italiana que
se mistura timidamente com o vocabulário manuelino adaptado à
arquitectura (1509-1511) e uma tomada de consciência dos motivos
renascentistas nas séries de estampas a partir daqui – um momento inicial,
portanto, entre 1509-1527, não homogéneo e buscando a variedade.
Destaca-se uma prancha atribuída a Álvaro Pires que copia já com grande
fidelidade um gravado de Zoan Andrea de Mântua mas estão também
presentes a influência de gravadores italianos como Nicoletto da Modena e
Antonio da Brescia especialmente nos motivos em «candelabri».
Segue-se-lhe um estilo híbrido em que existem composições com
motivos orgânicos e inorgânicos e traços de motivos clássicos – como a
representação temática do Laoconte – e um estilo maneirista a partir de
1552, que encerra duas atitudes sequenciais: frontispícios arquitecturais
com iconografia alegórica e mitológica e uso de modelos retirados dos
grotescos nórdicos, especialmente de Cornelis Bos 996.

O papel da imprensa, fulcral para a europeização cultural à época, foi


fundamental para o terreno das artes através da divulgação e mercado da
gravura e da estampa representando originais ou reproduzindo obras
modernas, especialmente italianas e flamengas que, no âmbito nacional,
terão tido num primeiro momento um papel ainda mais destacado que os
próprios tratados arquitectónicos. Existia um importante comércio de livros
entre Portugal e o norte da Europa e foram vários os editores que se
instalaram no país – do alemão João Blávio, activo entre 1554-1563, a
Pedro Craesbeck, activo entre 1597-1632, formado junto de Cristophe
Plantin. Craesbeck foi nomeado imprimidor real em 1620, sendo o
patriarca de uma autêntica dinastia de livreiros distribuída por Lisboa,
Coimbra e Évora.
De facto, os composições retabulares de estrutura serliana e
ornamentação franco-flamenga aparecem grandemente reproduzidas nos
frontispícios de livros das mais diversas temáticas e serviram certamente de
fonte de inspiração para o debuxo de muitos retábulos a partir da segunda
metade do século XVI, fonte indirecta mas preciosa, tal como as pranchas
de Serlio para portais e chaminés.
A literatura impressa oferece-nos exemplos deste tipo de sistemas
decorativos logo em 1509, como se pode verificar no fólio do Prólogo da
Regra de S. Tiago, impresso em Setúbal por Hermão de Campos, que
utiliza candelabros muito estilizados ou mesmo de grande qualidade na

995
Sylvie Deswarte, Les enluminers de la Leitura Nova…, pág. 113.
996
Sylvie Deswarte, Les enluminures de la Leitura Nova…, pág. 85-87.

477
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

gravura inserta no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, impresso pelo


mesmo profissional em 1516 997.

Por sua vez, a Escultura dá-nos provas claras da importância das


estampas decorativas com os mais diversos motivos «all’antico» em obras
importantes como as de Nicolau Chanterenne ou João de Ruão. No caso do
artista normando, a gravura foi fundamental e contributiva para a evolução
estilística da sua obra que se processou dentro do panorama nacional. Se
não se coibiu de usar estampas de Lucas de Leyden e de Aldegrever nos
baixos relevos que esculpiu para os cubelos do Templete do Jardim da
Manga de Santa Cruz de Coimbra, o exemplo de João de Ruão ao nível dos
sistemas decorativos é em tudo singular. Na sua primeira obra, o portal da
Igreja da Atalaia (1528), para além da estrutura arquitectónica e escultórica
renascentista, está presente a utilização de «candelabros» idênticos aos
divulgados pelos gravados de Zoan Andrea, Nicoletto da Modena, Antonio
da Monza ou Agostino Musi, nas pilastras e no friso da empena que
incluem motivos vegetalistas, seres fantásticos e antropo-vegetalistas,
também divulgados por Peregrino da Cesena ou Lucas de Leyden. Os
mesmos motivos decorativos – com «candelabros» nas pilastras e
«grotescos» nos frisos – são característicos de todos os seus trabalhos da
designada primeira época ou «estilo suave» do mestre. Nas suas obras
tumulárias, em atitude panegírica aos defuntos, surgem programas
decorativos com pilastras decoradas com simbologia bélica, honrando a
bravura dos depostos através da representação de escudos ou elmos, e
simbologia cristológica aludindo à Paixão de Cristo, recordando a salvação
eterna. Estas primeiras obras não só tipificam a gramática decorativa do
renascença coimbrã como toda uma época que se identifica com a primeira
metade de Quinhentos.

A partir da segunda metade do século XVI a decoração ornamental


mudará com a chegada das novidades introduzidas por artistas nórdicos que
elevam o grotesco italiano a um estado último do bizarro e capricho,
tipicamente maneiristas. Ornamentalistas como Cornelis Bos, Cornelis
Floris ou Vredeman De Vries desenvolvem autênticas séries de programas
decorativos com títulos como o Variations de grottes et panneaux de
Cornelis Floris (1556), promovendo a sua divulgação e consequente uso
por toda a Europa em todas as expressões artísticas. A existência de
colecções de gravuras ainda está bem representada num álbum que
pertenceu ao Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e que reúne dezenas de
estampas de Vredeman de Vries, Benedictus Battini e Jacques Floris 998.

997
Cfr. José Pacheco, A divina arte negra e o livro português, pág. 119 e 147.
998
Actualmente na Biblioteca Municipal do Porto, reservados, cota Y-14-16. Um outro exemplo
encontra-se depositado na Biblioteca Nacional e pertencia à livraria do Convento da Graça de Lisboa

478
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

As cartelas flamengas chegam a Portugal através dos trabalhos de


Cornelis Bos pelo menos a partir de 1552 999. Uma grande parcela das
estampas foram editadas por Pierre Coeck van Aeslt, Hans Leifrinx e
sobretudo Hyeronimus Coeck mas também por editores a trabalhar em
Portugal como João Blávio ou António de Maris. Existia, aliás, um
comércio de livros e de placas gravadas entre Portugal e a Flandres que
teve o seu apogeu neste período 1000. A própria literatura dos mais diversos
assuntos e autores é ilustrada com gravuras de Jean Wieriz, Pierre Huys ou
Pierre van der Borcht. Vejam-se, a título de exemplo, as edições do livreiro
Pedro Craesbeck, activo em Lisboa entre 1597 e 1632. Indirectamente, os
motivos podiam ser igualmente retirados de tapeçarias ou cerâmicas
flamengas, embora a maior influência diga respeito às colecções de
estampas ou à gravura avulsa.

Em sintonia com os ideais maneiristas, a tendência para o irreal, o


arabesco e o absurdo intensifica-se e atinge o apogeu estilístico nos
designados «carros fantásticos», concebidos como autênticas procissões de
seres impossíveis habitando um mundo irreal. Obras mestras como o
Cadeiral dos Jerónimos (1551) ou o Cadeiral da Sé de Évora (1562)
decalcam gravados de Cornelis Bos, o mais famoso dos gravadores
flamengos. A novidade reside na introdução do «strapwerk» e «rollwerk»
em que se articulam uma parafernália de motivos e figuras encarceradas em
tiras de ferro estilizadas e recurvas, enquadramentos metálicos que serão
utilizados mesmo na escultura e na decoração arquitectónica, das arcarias
aos caixotões das abóbadas. Estas cartelas flamengas passam, a partir deste
momento, a pautar o período maneirista mais propenso a fórmulas
geométricas assimétricas e conceitos de ornato fantástico. Paulatinamente,
substitui-se o grotesco de raiz italiana por uma linha de soluções
decorativas mais ampla mas igualmente mais estilizada e identificável.

Nos sistemas ornamentais, as cartelas maneiristas coabitaram, em


países como Portugal, com modelos anteriores. Desta forma, em superfícies
como pilastras, entablamentos ou peanhas aparece decoração renascentista
italiana a par de figuras irreais presas em estruturas metálicas ou simples
enquadramentos geométricos em moldura. A título de exemplo, e valendo-
nos novamente da preciosa arte de João de Ruão e da «escola coimbrã», em
obras como a Capela do Santíssimo Sacramento da Sé Velha de Coimbra

(cota E. A 65 A). Citado em Marie-Therese Mandroux França, «L’image ornamentale et la litterature


artistique du XVe au XVIII siècle», pág. 169-170.
999
Cfr. Mandroux-Franmça, «L’image ornamentale et la litterature artistique du XVe au XVIII siècle : un
patrimoine meconnu des biblioteques et musées portugais», pág. 123.
1000
Relacionado com esta realidade conhece-se uma carta de Jean Mofflin para Christophe Plantin, datada
de 1586, onde se regista o pedido de envio a Giovanni Baptista de Rovellasco, residente em Lisboa, do
Livre d’architecture de Du Cerceau. Sylvie Deswarte, Les enluminures de la Leitura Nova…, pág. 125.

479
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

ou no sepulcro de D. Diogo da Silva no Mosteiro de São Marcos, a


adopção de motivos retirados de gravuras de Cornelis Bos e de Vredeman
De Vries confirma a evolução decorativa por que passou João de Ruão e a
arte renascentista.

De igual modo, a grande pintura régia de Campelo, Gaspar Dias e


Venegas incorpora motivos nórdicos já exemplarmente reproduzidos nos
trabalhos eborenses de Francisco de Campos no Palácio dos Condes de
Basto em 1578. A divulgação e uso das cartelas flamengas é igualmente
visível na imprensa contemporânea como o frontispício do L. Andrea
Resendii in Obitum D. Joannis III, impresso por João Blávio em Lisboa no
ano de 1557 1001.

O uso deste novo sistema decorativo de raiz nórdica em estruturas


retabulares revela uma fortuna que se prolonga pelos meados da centúria
seguinte, onde os motivos retirados de cartelas maneiristas nórdicas, com
mascarões, figuras híbridas, harpias e grifos e outros animais fantásticos
enquadrados em «ferragens» se espraiam em pilastras, colunas, mísulas,
entablamentos e coberturas e se juntam a elementos do «grotesco» italiano
quatrocentista de «candelabros» e medalhões. Como bem viu André
Chastel, «a fortuna do grotesco assentava na capacidade de recolher todas
as modalidades imaginativas do ornamento, numa única forma» 1002.

1001
Veja-se José Pacheco, A divina arte negra..., pág. 213.
1002
André Chastel, La grottesque, pág. 43.

480
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

7.2. A Arquitectura de pendor flamengo

7.2.1. Hans Vredeman De Vries e a estampa flamenga como


motivo arquitectónico

Hans Vredeman De Vries nasceu em Leeuwarden em 1526 e falece


em Hamburgo em meados de 1609. Acredita-se que tenha iniciado a sua
carreira por volta de 1541, primeiro como marceneiro e depois como pintor
e pintor de vidro na oficina de Reyer Gerrits 1003, tendo sido posteriormente
discípulo de Pieter Coeke. Dedicado à pintura bem como à arquitectura
civil e militar, ficará essencialmente conhecido pelo seu trabalho teórico e
gráfico. Jurgen Zimmer vê-o como um artista «multifacetado e dotado de
espírito científico» que «terá sempre aspirado a ensinar numa universidade,
mas nunca conseguiu satisfazer esse desejo. Em 1604, a sua candidatura
para um lugar de professor de perspectiva e engenharia civil e militar na
Universidade de Leida, revelou-se infrutuosa» 1004.

Colaborou na importante obra de arquitectura efémera para a entrada


triunfal de Carlos V na Flandres em 1549, projectou o Palácio de Orange,
em Antuérpia e chegou a colocar a sua arte à disposição de Rudolfo II em
Praga. Instalado em Antuérpia a partir de 1563, teve que fugir para a
Alemanha por razões religiosas e só regressou sete anos depois. Trabalhou
como arquitecto militar chegando a realizar uma importante obra de
fortificação em 1586 para o duque de Wolfenbuttel e depois em Hamburgo
e Danzig – onde pintou oito cenas antigas e alegorias para a Câmara
Municipal 1005. Perto do final da sua vida, na companhia do filho Paul,
Hans Vredeman de Vries visitou a Corte de Rudolfo II, o imperador
habsburgo que dominava à época toda a zona da Boémia, tendo
concentrado em Praga um importante naipe de artistas – os pintores Hans
Von Aachen e Bartolomeus Spranger, o escultor Adrien De Vries bem
como eminentes figuras da ciência como Tycho Brahe. Entre 1596-1598
realizou pinturas murais para o Castelo de Praga, designadamente no
segundo piso e no «Spanish Hall» que servia de galeria de arte para exibir
pinturas e outros objectos 1006. Como mestre em perspectiva, realizou uma
série de magníficas pinturas a óleo onde o ilusionismo óptico se sobrepõe à
temática escolhida, na linha dos seus trabalhos gravados. Chegou mesmo a

1003
Madeleine Van de Winckel, «Hans Vredeman de Vries», Les traités de l’architecture de la
Renaissance, pág. 453.
1004
Jurgen Zimmer, «Hans Vredeman de Vries», Teoria da arquitectura do Renascimento aos nossos
dias, pág. 500.
1005
Cfr. Jurgen Zimmer, «Hans Vredeman de Vries», pág. 500.
1006
Sobre este assunto consulte-se Rudolf II and Prague. The Imperial Court and Residential City as the
cultural and spiritual heart of central Europe, pág. 29-45.

481
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

exercer a sua influência em obras teóricas como no Architecture de Gabriel


Kranner editado em 1606 1007.

A sua obra gráfica – uma das mais significativas do seu tempo –


inicia-se em 1554 com a publicação de uma importante série de pranchas
exibindo cartelas com grotescos de vasos e cariátides e todo o repertório
decorativo flamengo para, a partir de 1565, começar a divulgar estampas
com ordens arquitectónicas que mais tarde fariam a base do seu principal
escrito teórico 1008. Um dos grandes divulgadores do trabalho de De Vries
foi Christophe Plantin que entre 1560 e 1570 adquiriu e editou inúmeras
estampas que promoveu por toda a Europa.

Em 1577 – com edição definitiva em 1581 – é publicado em


Antuérpia o Architectura Oder Bauung der Antiquen auss dem Vitruvuis,
woellches sein funjj Collummen Orden, saer auss mann alle Landts
gebreuch vonn Bauuen zu accomodiere dienstilich fur alle Leibhadbernn
der Architecturen anndag gebracht durch Johannes Vredeman vriesae
Inventor. Inclui interpretações pessoais das cinco ordens clássicas, cada
uma com cinco variantes, bem como gravados dedicados à ornamentação
arquitectónica – frontões, colunas, bases, entablamentos, portais e
inscrições epigráficas. Num comportamento caracteristicamente maneirista,
reinventa as ordens na linha do espírito do Libro Estraordinario serliano.
No prefácio da obra, Vries cita como fontes de estudo Vitrúvio,
Serlio, Cerceau e Van Aelst. Refere-se certamente ao Livre d’architecture
do francês Jacques Androuet du Cerceau, publicado em Paris em 1559
enquanto que deve ter estudado Sebastiano Serlio através da edição de
Pieter Coecke van Aelst de 1539. Esta sua obra «deve ser classificada na
teoria da arquitectura em sentido lato, na medida em que durante mais de
um século exerceu uma forte e duradoura influência na arquitectura e
respectiva decoração no norte dos Alpes, em particular nos Países-Baixos,
no norte da Alemanha, em Danzig, na Dinamarca e na Escandinávia. É
notável que este Renascimento do Norte, iniciado por Vredeman e com a
marca de concepções antigas e vitruvianas, não tenha qualquer ligação com
o Renascimento italiano. Apenas a compreensão intelectual da razão que
preside aos motivos vitruvianos esteve na origem de uma linguagem formal
que a influência crescente dos formas arquitectónicas com a marca italiana
condenará ao declínio depois de 1620» 1009.

1007
Jaroslava Housenblasová e Michal Sronek, Urbs Aurea. Prague of Emperor Rudolf II, pág. 122-123.
1008
Primeiro fez publicar as ordens Dorica, Ionica, e Corinthia, Composita enquanto que a Tuscana surge
apenas em 1578. Cfr. Jurgen Zimmer, «Hans Vredeman de Vries», pág. 502.
1009
Cfr. Jurgen Zimmer, «Hans Vredeman de Vries», pág. 500-502. Dora Wiebenson, Los tratados de
arquitectura..., pág. 170 chama a atenção para um «certo localismo evidente, por exemplo, no grande
interesse pela construção naval e na representação de ordens e detalhes renascentistas na arquitectura
local».

482
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

As ordens arquitectónicas e as suas variantes, fruto exclusivo da sua


imaginação, são pelo autor adaptadas à arquitectura tradicional dos Países
Baixos. É curiosa a sua observação que compara as ordens arquitectónicas
às seis idades da vida na sua obra Theatrum Vitae, publicada igualmente
em 1577 e onde o Compósito corresponde à infância e a velhice se
identifica com uma nova ordem arquitectónica inventada por Vries – a
«Ruína» 1010.

Redigiu outros livros sobre Arquitectura e Perspectiva. Em 1568 é


editado o De Artis perspectivae – Vilerley kunstliche stuck der Perspective
(Recolha de Exemplos de Perspectiva), uma primeira aproximação daquela
que será a sua grande obra neste particular, Perspectiva, id est celeberrima
ars inspicientis aut transpicientis oculorum aciei, in pariete, tabula aut tela
depicta, publicada em Haia e Leyden nos anos de 1604 e 1605, dois
volumes sobre a perspectiva aplicada à construção e muito influenciados
pela obra de Durer 1011. Pouco antes de falecer, em colaboração com o filho
Paul De Vries, publica um pequeno manual sobre as ordens intitulado
Architectura, Die hooge, ende vermaerde bestaende in viff manieren von
Edificien (1606-1607).

Como concluiu Jurgen Zimmer, «o círculo de destinatários da obra é


portanto muito alargado e não inclui apenas arquitectos diletantes
pertencentes às altas esferas da sociedade e, evidentemente, os arquitectos
profissionais, mas também engenheiros, artistas e artesãos. As ordens de
colunas são depois acompanhadas de diferentes exemplos de aplicações
que reflectem a tipologia dos edifícios. É certo que esta tipologia é definida
menos pelos tipos de construção do que pela atribuição iconológica às
diferentes colunas. Os exemplos propostos não são projectos detalhados
para a construção de edifícios particulares, mas ajudas que permitem uma
orientação, modos de aproximação à planificação de algumas tarefas de
construção» 1012.

7.2.2. O «flamenguismo» e a arquitectura maneirista portuguesa

A partir do último quartel do século XVI as influências nórdicas


tornaram-se fundamentais para a modernidade da arquitectura de pendor
maneirista, mais por via indirecta do que pela adopção de uma prática
arquitectónica análoga à praticada na Europa coeva. Queremos com isto
dizer que se irá procurar inspiração em motivos importados de estampas

1010
Cfr. Jurgen Zimmer, «Hans Vredeman de Vries», pág. 502.
1011
Cfr. Dora Wiebenson, Los tratados de arquitectura..., pág. 214-215.
1012
Conclui Jurgen Zimmer, «Hans Vredeman de Vries», pág. 502.

483
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

avulsas ou incluídas em escritos teóricos, aplicados posteriormente à


arquitectura.
Kubler foi um dos primeiros autores que, estudando exemplares da
arquitectura portuguesa, revelou a existência de soluções flamengas ao
nível da estrutura construtiva e decorativa ressalvando as «superfícies
modeladas» e o «desenho reticular» da capela-mor hironimita de Belém e
na igreja da Luz, em Carnide, obras de Jerónimo de Ruão, com o seu
interior «forrado de mármores coloridos» e «em padrões que derivam da
obra de laço (Rollwerk)» 1013. Opunha à desornamentação «chã» estes
«interiores rollwerk, ricamente adornados e policromos» de carácter norte-
europeu, salientando já uma viragem de gosto no Norte do país em Grijó e
em Gaia. Viu que por detrás dos esquemas de inscrição de losângulos em
quadrados, de figuras cruciformes em rectângulos e na transposição destes
motivos para as colunas e entablamentos estava a influência de artistas
nórdicos como Vredeman De Vries.

Foi essencialmente no Noroeste português que esta prática se


desenvolveu com mais sucesso e perenidade. Existem exemplos concretos
de modelos «vredemanianos» aplicados à arquitectura, sendo o mais
característico a coluna de pontas de diamante que De Vries divulgou
através do seu Architectura Oder Bauung der Antiquen e que circulou
através de estampas avulsas em Portugal com grande sucesso, a avaliar
pelos fundos que ainda hoje se encontram nos reservados das bibliotecas do
país. Utiliza-se não a totalidade do modelo da ordem arquitectónica mas
única e simplesmente o motivo decorativo isolado. Este modelo, com
combinações interessantes reunindo figuras geométricas, pode ser
apreciado nas colunas da capela-mor da Misericórdia do Porto projectada
por Manuel Luís, nas fachadas da Misericórdia de Guimarães e de Aveiro,
designadamente de Pedro Afonso de Amorim e Gregório Lourenço ou na
grande fábrica de São Martinho Pinário em Compostela, da autoria de
Mateus Lopes. As colunas de «pontas de diamante», normalmente
coríntias, são ainda vítimas da tradição na primeira metade do século
XVIII, isoladas em cruzeiros como o de Vila do Conde, combinando
losângulos e círculos, ou em Braga, onde as formas em losângulo adquirem
formas cruciformes.

Esta «ars combinatoria» de motivos geométricos atinge pleno


esplendor em São Salvador de Grijó parecendo uma transferência dos
«desenhos de labirintos de jardins de artistas nórdicos»1014 para a fachada
de um templo, bem como nos caixotões das abóbadas das capelas-mores de
São Lourenço, no Porto, São Salvador de Grijó e Moreira da Maia ou em
1013
George Kubler, A arquitectura portuguesa chã..., pág. 66-67.
1014
George Kubler, A arquitectura portuguesa chã..., pág. 73.

484
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Santa Marinha da Costa, em Guimarães, onde pirâmides, círculos,


quadrados e rectângulos decoram toda a esquadria do abobadamento –
como igualmente se percebe na capela-mor da Misericórdia do Porto.
Todos estes exemplos da viragem do século XVI para o século XVII
encontram na capela-mor da igreja da Luz de Jerónimo de Ruão (1575) um
precedente na «profusão decorativa indiciadora do maneirismo flamengo»
1015
– juntamente com a obra hieronimita de Belém – inaugurando uma
nova escolha morfológica e formal.
Nos finais do século XVII ainda motivos retirados de De Vries e
mesmos de Dietterlin continuam a ser utilizados no Noroeste português,
como prova a fachada portuense de São Lourenço e o interior de São João-
o-Novo, exemplar de um Tardo-Maneirismo revelador da perenidade
decorativa e formal.

A própria «acusação» que alguma historiografia fez ao Maneirismo


de cultivar um certo «goticismo», preferindo a verticalidade aos sistemas
horizontais, encontra tradução na arquitectura do Noroeste e neste ambiente
«flamengo», em conformidade com os novos ideais contra-reformistas de
longas naves e profundas ábsides onde os espaços laterais, das capelas aos
transeptos, se fundem num longo e contínuo corredor rigidamente marcado
pela verticalidade. A capela-mor tende a levar esta axialidade ao exagero,
mesmo em espaços que exteriormente o não fazem prever, como na igreja
de Santa Cruz de Braga, projectada por Geraldo Álvares na primeira
metade do século XVII.

Concluindo, essencialmente a Norte, o designado «flamenguismo»


arquitectónico, entendido não como prática de modelos construtivos que
têm afinidades com a arquitectura desses mesmos países emissores mas
como adopção de modelos decorativos nórdicos e transposição dos mesmos
para o marco arquitectónico – pois a concepção estrutural dos edifícios
continua a ser de raiz italiana – concede a toda a região uma
homogeneidade estilística que suporta a sua defesa, contrastando com uma
arquitectura italianizada mais depurada a Sul, de carácter mais formalista e
privilegiando a estrutura espacial em favor do excesso decorativo.

1015
Horta Correia, «A arquitectura – maneirismo e estilo chão», pág. 117.

485
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

7. 3. A «arquitectura efémera» e a divulgação da estética


nórdica

Um dos acontecimentos de sucesso que favoreceu a «moda nórdica»


está intimamente ligado às entradas triunfais realizadas um pouco por toda
a Europa, essencialmente aquelas dominadas pelos Habsburgos que se
apaixonaram pela interpretação que os artistas flamengos, holandeses e
franceses fizeram das temáticas «all’antico» italianas. De Filipe II a
Rudolfo II o gosto pela gramática fantástica, refinada e exótica e pelas
construções arquitectónicas efémeras iluminou festas de carácter sacro e
profano durante todo este período, à qual se une o gosto por uma cultura
emblemática e alegórica. Igualmente sacro na medida em que, a título de
exemplo, também os jesuítas nas festividades religiosas cultivaram o gosto
pela cultura alegórica e pelos monumentos efémeros.

Segundo Kubler, «durante o Renascimento, em toda a Europa, as


visitas reais às cidades eram geralmente celebradas sob a forma de
encontros entre os cidadãos e os soberanos numa fête bourgeoise custeada
pelos primeiros, que esperavam de uma forma mais ou menos indistinta
favores reais em troca da sua hospitalidade. Nos Países Baixos Católicos,
todavia, esta relação fortuita e vagamente cordial foi, com o decurso de
vários séculos, transformada em instrumento para a definição da lei pública
que regia as relações entre cidades e monarcas, especialmente por ocasião
das sucessões de reinados passíveis de afectar as cidades flamengas. No
decurso de um cortejo público, o soberano comprometia-se, por um
juramento complexo, a garantir os direitos municipais consuetudinários. O
juramento em si era designado por Elijde Inkomst ou Joyeuse Entrée, termo
que gradualmente se tornou sinónimo de direitos garantidos pelo monarca»
1016
.
A organização das festividades teria como eixo central uma figura
erudita – alguém formado no ambiente humanista – que definiria o
programa geral de acordo com as partes envolvidas e orientava a equipa de
artistas que debuxavam e tornavam real o espectáculo festivo.
Posteriormente, publicava-se um relato do acontecimento que, nos casos
mais pomposos, incluía gravuras representando a parafernália decorativa
utilizada para o efeito.

Entre 1332 e 1600 foram realizadas dezasseis «entradas triunfais»


dos condes da Flandres em Gand, institucionalizadas já em 1536 e
indicando o comprometimento do novo soberano face aos privilégios das
cidades nórdicas. «A encenação deste juramento, numa cerimónia pública

1016
George Kubler, A arquitectura portuguesa chã..., pág. 110.

486
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

inspirada no triunfo da Antiguidade, tomou forma muito faustosa: assim, a


Joyeuse Entrée de Carlos V e do príncipe Filipe em Antuérpia, em 1549,
representava o auge da festa em meados do século XVI, com uma
decoração magnífica feita de arcos de triunfo e teatros, pagos pelas nações
estrangeiras, e ainda um programa erudito, concebido e publicado pelo
secretário da cidade, Cornelis Grapheus, e publicado – com ilustrações da
arquitectura da festa – em várias línguas» 1017.
Como soberano da Flandres, o imperador Carlos V realizou três
entradas triunfais importantes, em Brugge (1515) e em Antuérpia (1520 e
1549), esta última a mais esplendorosa e na companhia do futuro sucessor,
o príncipe Filipe, na qual estiveram envolvidos o arquitecto Van Alst e o
pintor Pieter Coecke. Dela resultou o célebre livro Triomphe d’Anvers da
autoria de Cornelis Grapheus, publicado e imprimido por Aelst em
1549/1550 reproduzindo e divulgando a parafernália decorativa ilustrada
por arcos triunfais criados por Cornelis Floris. A Joyeuse Entrée de 1549
forneceria o exemplo clássico para as celebrações posteriores.

Se este modelo nórdico apenas se realiza na Península Ibérica a partir


dos finais do século XVI, o certo é que em Portugal a cultura humanista
tinha já patrocinado visitas régias inspiradas nas entradas triunfais da
Antiguidade, reproduzindo um ambiente festivo onde a dança, a música, o
teatro e os banquetes faziam parte do cerimonial. O momento, porventura,
mais importante tendo em conta o seu simbolismo, seria o desfile
processional que, à maneira «antiga», incluía um cenário de arquitectura
efémera composta por um ou mais «arcos de triunfo» que pautavam o
passeio das altas individualidades do reino. Embora a primeira referência
literária aos arcos de triunfo «ao antigo» se encontre em 1552 1018, o mais
importante precedente terá sido a entrada de D. João III em Coimbra em
1529 e para a qual foi construída uma magnífica estrutura arquitetónica
cravada numa das faces da Sé Velha – a célebre «Porta Especiosa».

Krista Jonge recorda ainda a festa oferecida pelo embaixador


português em Bruxelas, em 1531, por altura do nascimento do príncipe
herdeiro D. Manuel. Organizou-se um percurso triunfal, entre o palácio
imperial e as moradias do embaixador, rematado por dois arcos triunfais
efémeros, os primeiros a serem construídos na cidade. Ao fogo-de-artifício,
danças, banquetes e música, de raiz medieval, juntou-se-lhe a novidade
«italiana» com a encenação de um «triunfo de cupido» e um baile de
máscaras.

1017
Krista de Jonge, «Encontros portugueses. A arte da festa em Portugal e nos Países Baixos
meridionais, no século XVI», Portugal e Flandres. Visões da Europa 1550-1680, pág. 87.
1018
Cfr. Krista de Jonge, «Encontros portugueses. A arte da festa em Portugal e nos Países Baixos
meridionais, no século XVI», pág. 82.

487
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

A primeira vez que os Habsburgos reproduziram em grande escala


tal acontecimento na Península Ibérica foi em 1581, por altura da
aclamação régia de Filipe II na capital do reino português.
Realizada no dia 29 de Junho de 1581, a cerimónia parte do modelo
flamengo e foi registada em descrições literárias como as de Isidro
Velázquez e especialmente a de Afonso Guerreiro, Das festas que se
fizeram na cidade de Lisboa na entrada del Rey D. Philipe primeiro de
Portugal, editada em Lisboa nesse mesmo ano. Nos escritos descreve-se o
percurso régio vindo de Almada e atracando no cais da Ribeira, a passagem
pelos mais nobres locais da urbe bem como toda a parafernália decorativa
paga pelos mesteres lisboetas. Sabe-se que, de volta a Madrid, o monarca
levou consigo «uma pintura com os quinze arcos triunfais que em sua
honra erguera Lisboa» 1019, embora não existam sequer gravuras nos
relatos publicados.
O elemento arquitectónico mais relevante pertenceu à comunidade
flamenga que fez erguer no terreiro dos paços régios um monumental arco
triunfal de onze metros de altura. Foi aí que se realizou a simbólica
cerimónia da entrega das chaves da cidade a Filipe II – uma tradição que se
manteve durante séculos. Descrito na documentação como «castilho», o
modelo arquitectónico evocava o modelo «antigo» tal como tinha sido
interpretado a Norte: um arco de triunfo entre obeliscos com estatuária e
uma entrada tripla, arquitravada nos lados e de arcaria de volta perfeita ao
meio, sustentada por colunas jónicas. O registo superior era rematado por
frontão e a base incluía duas figuras simbólicas voltadas para o rio – um
cavaleiro com manto na lança e uma figura nua masculina com uma coroa
de ramos.

A maior celebração foi, no entanto, a entrada triunfal de Filipe III em


1619 no que especialmente diz respeito ao suporte arquitectónico que
incorporou.
São conhecidas as motivações e as razões políticas subjacentes ao
desejo pela visita do novo monarca desde a morte do pai em 1598. Pelo
menos desde 1605 se regista o interesse da edilidade lisboeta na preparação
da viagem régia articulada com Cristóvão de Moura e com o conde de
Portalegre. Todavia, só em 1619 se tornou possível a sua realização. A
despesa foi elevada e ascendeu a 700.000 cruzados para a construção de um
espectáculo magnífico oferecido pela edilidade, mesteres e colónias
estrangeiras. Existem mais de três dezenas de descrições sendo o relato
oficial da autoria do cosmógrafo-mor João Baptista Lavanha, publicado em
1622, contando com duas edições, castelhana e portuguesa, e incluindo
ilustrações do gravador Hans Schorkens.
1019
Bouza Alvarez, «Retórica da imagem real. Portugal e a memória figurada de Filipe II», Penélope,
pág. 20.

488
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Kubler é da opinião que a sua concepção se ficou a dever a Lavanha


e ao todo-poderoso Cristóvão de Moura, marquês de Castelo Rodrigo, seu
patrono – tal como o filho Manuel de Moura a quem o cronista legou todos
os seus papéis e livros em testamento (1625) 1020. Seja como for, o relato
oficial plasma algum cariz político de aspiração nacionalista por vezes de
dupla leitura. Grande parte da temática seleccionada dizia respeito à
história nacional e à exortação da cidade de Lisboa como a mais nobre de
todo o império. Iconograficamente, as inscrições das comunidades
estrangeiras são bem mais aduladoras que as portuguesas que, no máximo,
destacam o monarca como um «Júpiter Espanhol» conquistador dos
Mouros 1021. Os mesteres escolheram preferencialmente as alegorias
medievais das Virtudes, enquanto os mercadores e oficiais da cidade
optaram por modelos modernos retirados da Iconologia de Cesare Ripa –
como a Industria, Liberalitas e Tolerantia.

No que diz respeito ao modelo adoptado, Kubler considera que «o


formalismo exterior era genuinamente flamengo na intenção e aspecto»,
fiel ao que planeou Lavanha e ao «arquitecto ou pintor encarregado do
desenho e da execução do programa geral traçado pelo erudito» 1022. Na
vista panorâmica da cidade de Lisboa encontra-se a assinatura do «pintor
del rey», à época, Domingos Vieira Serrão, que tem sido dado como o
director artístico do programa. Certo é que as catorze gravuras da Viagem
foram gravadas por Schorckens, a sua obra mais importante, amigo de
Lavanha e figura conhecida na Corte madrilena.
O referido historiador parece não acreditar definitivamente no papel
de Domingos Vieira Serrão como director artístico, usando-o à condição.
Pensamos, na mesma perspectiva, que a direcção de toda a estrutura
artística passou com elevado grau de probabilidade pelo arquitecto-mor
Teodósio de Frias. Tudo parece apontar para isso: a sua formação multi-
disciplinar no campo do desenho, pintura e arquitectura, o estágio em
Madrid, a sua posição máxima dentro da hierarquia dos arquitectos régios,
a ligação aos Castelo Rodrigo e a experiência no campo de arquitecturas
retabulares e «efémeras» que revela em toda a sua carreira profissional.

Na entrada triunfal de 1619 encontram-se referências à parafernália


decorativa e arquitectónica utilizada em Antuérpia em 1549, influências
directas das gravuras flamengas de Cornelis Floris e Pieter Coecke, o
tradicional «rollwerk» ou «obra-de-laço» flamengo e o próprio desenho
gravado por Schorckens denuncia o peculiar estilo nórdico. Os arcos dos
Flamengos e dos Alemães recordavam directamente o modelo romano de

1020
Cfr. George Kubler, A arquitectura portuguesa chã..., pág. 122.
1021
George Kubler, A arquitectura portuguesa chã..., pág. 113.
1022
Cfr. George Kubler, A arquitectura portuguesa chã..., pág. 122.

489
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Septímio Severo usado em Gand em 1549 e o arco da comunidade italiana


inspirava-se no modelo genovês usado no mesmo ano em Antuérpia. Mas
também algumas figuras alegóricas e cenas decorativas evocavam
acontecimentos mais recentes, como a entrada triunfal do arquiduque
Ernesto de Habsburgo em Antuérpia em 1594, segundo a publicação de
Johannes Bochius. Não obstante, «no vocabulário arquitectónico dos arcos
de triunfo, misturavam-se por um lado elementos espanhóis, italianos e
flamengos e, por outro, o andar sobreposto estava relacionado com o teatro
que outrora se usava nos Países Baixos e a própria decoração, pintada e
esculpida, continha numerosas reminiscências dos quadros vivos»
flamengos 1023.

1023
Krista de Jonge, «Encontros portugueses. A arte da festa em Portugal e nos Países Baixos
meridionais, no século XVI e início do século XVII», pág. 89-90.

490
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

A circunstância do
«Portugal Filipino»

491
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

492
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

8.1. O Classicismo à «maneira espanhola»

8.1.1. O nascimento do «estilo severo» ou «desornamentado»

Em torno da majestosa fábrica de São Lourenço do Escorial, Juan


Bautista de Toledo e Juan de Herrera representaram a ascensão final, em
Espanha, da figura do arquitecto e da consubstanciação do «estilo
desornamentado», o classicismo arquitectónico castelhano, cifrado pela
data de 1560. O responsável pela mudança estilística definitiva será Filipe
II.

Após uma série de importantes viagens, em 1558 Filipe II decide


instalar a sua Corte em Madrid, forjando-se os primeiros planos para a
edificação do Palácio de Aranjuez e de São Lourenço do Escorial. O
arquitecto escolhido para tornar realidade os projectos régios será Juan
Bautista de Toledo, com uma profunda aprendizagem e maturação
artísticas em território italiano – tendo alcançado papel relevante na própria
fábrica de São Pedro de Roma, sob a alçada de Miguel Ângelo. Nomeado
«arquitecto régio» em 1559, trabalhará no plano de urbanização de Madrid,
nos paços régios e no projecto escurialense, impondo inicialmente um
estilo despojado de raiz italiana mas «flamenguizado» satisfazendo os
desejos do monarca.

Uma das primeiras realizações onde se define esse «estilo severo» –


como bem definiu Fernando Checa – desornamentado e geometrizante foi
no Convento das Descalças Reais, fundado por D. Joana de Austria, mãe de
D. Sebastião, em 1559. Nele intervieram Toledo e o arquitecto italiano
Francesco Paciotto. As fontes estilísticas radicam em Sebastiano Serlio, na
arquitectura da família Farnese em Parma e Piacenza – no que concerne à
austeridade e decoro arquitectónicos de raiz «contra-reformista» – e mesmo
na própria visão arquitectónica de Francesco Paciotto que, tal como
Vignola, «formularam uma arquitectura em que a ordem arquitectónica
começa a ser desprezada, substituída pelo muro» que já «não se articulava
tanto por meio de colunas mas através de pilastras e requadros debuxados
na superfície da parede» 1024. O mesmo autor considera que a influência de
Vignola, mais do que o uso ou não das ordens arquitectónicas, passa
sobretudo pela adopção da sua «mentalidade reducionista», da procura de
uma ortodoxia, de um novo sentido para a arquitectura aparte das
complexidades arquitectónicas a que o «vitruvianismo» tinha conduzido a
arquitectura abrindo, portanto, a variante maneirista.

1024
Segundo Fernando Checa em Arquitectura del renacimiento..., pág. 268.

493
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Neste período nasce igualmente um novo tipo de palácio. Se o


Alcázar de Toledo e de Madrid, reconstruídos por Alonso de Covarrubias e
Luís de Vega, apresentavam ainda um incipiente classicismo – salvo a
intervenção mais avançada de Villalpando no exemplar toledano nas
arcarias do pátio e na escadaria principal – só desfeito com as essenciais
intervenções de Juan de Herrera, será a partir do projecto de Toledo para o
Palácio de Aranjuez, nos arredores de Madrid, que se imporá uma tipologia
completamente nova onde o italianismo é evidente não só na planimetria
geral como no uso erudito do rusticado serliano, das pilastras dóricas ou
dos abobadamentos. Todavia, será no magnífico microcosmos escurialense
que toda a novidade se implementará e resumirá.

O Mosteiro de São Lourenço do Escorial (1563-1585) representa a


máxima implantação do Classicismo em Espanha. Palácio régio e centro
religioso monástico, Filipe II escolhe os frades jerónimos para partilhar
consigo a nova morada da cristandade, uma ordem contemplativa e
dedicada à oração ancestralmente preferida pelas monarquias ibéricas.
«Esta nova pirâmide – oitava maravilha para alguns – parte, apesar de tudo,
da arquitectura da Antiguidade, da Nova Antiguidade que culminava em
São Pedro de Roma e baseava-se na doutrina vitruviana, que se assumirá de
forma dogmática, inclusive emblemática. Aí havia trabalhado e sobre
aquela havia meditado Juan Bautista; sobre ambos os temas prosseguiu a
sua obra Juan de Herrera, pese embora levando o sistema classicista, em
teoria e na prática, até às ultimas consequências, reformando-o onde fosse
necessário para cumprir a sua precisa função escurialense e para que dele
pudesse emanar uma escola; para isso o dotariam de um novo significado:
como sistema suprahistórico e eterno, de acordo com o projecto de Filipe II
de instauração, não de uma Civitas Dei, mas de uma Universitas
christiana» 1025.

Juan Bautista de Toledo nasce cerca de 1515 e em 1539 está já em


território italiano aprendendo a nova arquitectura. Entre 1547 e 1549
trabalha no estaleiro de São Pedro de Roma e nos dez anos subsequentes
em Nápoles, sendo chamado a Espanha em 1559 1026. Em 1561 Toledo é
nomeado arquitecto do Escorial, apresentando um projecto inicial, no ano
seguinte, radicado numa planta quadrangular – que se manterá inabalável –
e numa altimetria de características manifestamente italianizantes, diferente
do que realmente se edificou. Nesse mesmo ano de 1562, o arquitecto
italiano ao serviço de Filipe II, Francesco Paciotto, critica severamente o
primeiro projecto que seguia a planta cruciforme de São Pedro na sua
versão miguelangeslesca. O mestre castelhano aceita incluir no seu
1025
Fernando Marías, El Largo Siglo XVI..., pág. 522.
1026
Cfr. Javier Rivera, «De Juan Bautista de Toledo a Juan de Herrera», pág. 72

494
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

segundo projecto o alargamento da igreja e a inclusão de torres na frontaria.


Contudo, os problemas com a obra aumentam de tom logo em 1564, e a
todos os níveis, desde críticas ao projecto, juntas de arquitectos e
discussões entre os responsáveis aparelhadores e o prior-mor da ordem.
Toledo morrerá em 1567 e as mudanças efectivas do projecto global serão
protagonizadas por Juan de Herrera. Com uma terceira e definitiva planta,
Herrera cumpre os desejos do monarca, amplia a nave e torna mais leve o
modelo miguelangelesco «toledano» 1027.
Juan de Herrera (1532-1597) é o grande representante da arquitectura
espanhola e o verdadeiro purificador do «estilo severo» classicista iniciado
por Toledo 1028. Homem fidalgo, de rígida formação matemática ao nível
universitário, conhecedor da realidade arquitectónica da Flandres e Itália,
torna-se a partir de 1569 cósmografo régio. É um especialista em questões
arquitectónicas, quer de natureza especulativa quer prática. De formação
humanista e mística – essencialmente centrada na figura de Ramon Lull – a
arquitectura é uma parte essencial do macroconhecimento do mundo. Se as
suas obras teóricas e actividade pedagógica, que o leva à direcção da
Academia Real das Matemáticas de Madrid a partir de 1582, provam a sua
apetência e eruditismo profundo, a sua actividade prática não foi nunca
subalternizada, conseguindo elevar as suas teses arquitectónicas a um
princípio estilístico que muitos designam como «herrerianismo», termo-
outro para o despojamento linguístico a que chegou o Classicismo em
Espanha.
Herrera «prolonga e culmina a ideia de arquitecto culto e intelectual
que se inicia com o seu mestre Juan Bautista e dota a profissão
arquitectónica de todos aqueles instrumentos necessários para que, de
acordo com o espírito da época, esta pudesse ser considerada como
ciência» 1029. Trabalhará com Toledo entre 1563 e 1567 mas não lhe sucede
de imediato à frente do estaleiro do Escorial, apesar de as suas ideias
vingarem face aos seus adversários mais poderosos como o próprio
arquitecto Francesco Paciotto. Não obstante, uma das obras mais discutidas
e significativas da época – levando mesmo Filipe II a consultar a Academia
Florentina – será da sua autoria: a basílica de São Lourenço do Escorial,
iniciada em 15741030. Do Escorial ao Palácio de Aranjuez, do Alcázar de
Madrid ao Alcázar de Toledo, em todas as obras Herrera intervém
decisivamente, refinando um «estilo» e criando uma «escola». A inacabada
Catedral de Valhadolid é o canto do cisne do estilo «herreriano», numa
época em que este é já característico de toda a arquitectura de influência
régia por todo o território espanhol.
1027
Cfr. Fernando Marías, «Las iglesias de planta central en España», pág. 136-137.
1028
Uma breve mas singular síntese da figura de Juan de Herrera, da sua obra e pensamento, encontra-se
em Fernando Marías, El Largo Siglo XVI..., pág. 523-529.
1029
Fernando Checa, Arquitectura del renacimiento..., pág. 313.
1030
Cfr. Fernando Checa, Arquitectura del renacimiento..., pág. 303.

495
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

8.1.2. «Herrerianismo», Trento e o experimentalismo maneirista

Os conceitos e prática do «herrerianismo» influenciaram toda a


arquitectura espanhola da época mas o especial enfoque localiza-se na
região de Castela, no denominado «foco vallisoletano» 1031. Na Corte, o
discípulo dilecto de Herrera, Francisco de Mora (1552-1610) será o mais
importante defensor dos parâmetros arquitectónicos definidos pelo mestre,
aplicando-os em obras em Valhadolid como o Palácio Real, o Convento
das Descalças Reais, a igreja de São Paulo e a igreja de São José em
Medina de Rioseco ou mesmo a prossecução dos trabalhos no Alcázar de
Madrid e do Escorial. A crítica estilística apenas se inicia com o seu
sucessor, Juan Gómez de Mora (1586-1648) responsável pela finalização
do Alcázar, pelo risco do Convento da Encarnação e, na sua essência, pela
Plaza Mayor de Madrid.
Como afirma Fernando Marías, estes arquitectos «souberam ser
críticos no que respeitava ao legado vitruviano, embora aceitando a
ortodoxia de corte vignolesco e o sistema de Herrera, a sua simplicidade
estrutural baseada na importância dos conceitos de utilitas e firmitas, o seu
rigor proporcional, o seu tratamento dos volumes como massas estáticas, a
sua espacialidade direccional, as suas superfícies mortas (com bicromias
mas mais através dos jogos de linhas que de volumes tridimensionais), a
sua iluminação dirigida e dramatizante. A partir de tais directrizes, foi
possível traçar diversas linhas de desenvolvimento, da investigação
temática ou tipológica segundo as necessidades de cada lugar e de cada
momento, de modificação modal de estilo, segundo os requisitos de
representação que levariam, por exemplo, ao reducionismo e ao emprego
generalizado da ordem toscana nos vários conventos de frades descalços
que se ergueram, como assinalava a determinado momento Frei Lorenzo de
San Nicolás, como ordem da humildade e da pobreza, ou a revitalização de
materiais ricos e pedras semipreciosas. Por estas razões se pode falar de
escola» 1032.
Fora do ambiente régio, o «estilo severo» encontrou na figura de
Francisco de Praves (1586-1637) o seu derradeiro ilustre representante.
Tradutor de Andrea Palladio mas igualmente redactor de um «manual de
cantaria», na linha do tradicional interesse espanhol pela estereotomia,
desenvolveu a sua obra arquitectónica na região de Valhadolid seja no
Mosteiro de Nossa Senhora do Prado, no Convento de San Quirce ou na
Igreja do Salvador, na capital provincial, na igreja de Santa Clara de

1031
A biblia sobre estas matérias continua a ser a obra de Agustin Bustamante Garcia, La arquitectura
clasicista del foco vallisoletano (1561-1640). Sobre Francisco de Mora consulte-se pág. 395-421.
1032
Fernando Marías, El Largo Siglo XVI..., pág. 556.

496
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Medina de Rioseco ou no Mosteiro de Nossa Senhora de Valdebusto em


Palencia 1033.
*

Um tratado anónimo de cerca de 1550, dado a conhecer por


Fernando Marías e Agustin Bustamante, manifesta a dificuldade que os
textos de inspiração humanista tinham na defesa dos templos centralizados
face à planta basilical – mesmo confrontados com São Pedro de Roma –
profundamente enraizada na cultura arquitectónica cristã ocidental. Embora
dedicando cinco capítulos à planimetria centrada, o autor viajado por Itália,
conhecedor das teorias albertianas e dedicando o escrito ao príncipe Filipe,
não deixa de defender a tradição e funcionalidade da planta longitudinal:
«Os povos diversas leis tiveram e diversas maneiras de dispor os
seus templos; os judeus punham o altar principal virado a ocidente o que
privilegia a obscuridade e os cristãos, pelo contrário, colocam-no a
oriente por onde desponta o sol quando os dias são iguais às noites para
adorar a Deus como que iluminados e da sua caridade descobrem no que
convém como Cristo nosso redentor nas escrituras é comparado ao sol
quando nasce e ao haver-nos prometido que do oriente viria para julgar o
mundo, pelo qual esperamos quando nos inclinamos para oriente; poderão
alguns afirmar que o altar deveria estar ao meio do templo principalmente
se for redondo para que Deus de todas as partes fosse adorado pois em
todas está presente, mas neste particular se deve atender ao que a igreja
tem já confirmado por costume (...) a saber, os antigos diferenciavam os
templos e as basilicas que nos seus séculos usavam para julgar e
determinar pleitos mas os cristãos usaram-nas para igrejas pois
convinham muito à ordem de nossos ofícios divinos» 1034. Esta evidência
encontra na Contra-Reforma um eco concreto.

Não obstante a mais valia e especificidade do Classicismo espanhol


na arquitectura europeia da segunda metade do século XVI, é importante
fazer referência à superestrutura contra-reformista da qual o «estilo severo»
apresenta uma significativa ilustração. É conhecido o profundo sentimento
religioso, de pendor místico, e o carácter austero que Filipe II sempre
instruiu a si próprio não sendo de modo algum exagerado considerar que o
próprio Escorial representa, grosso modo, a nova e emergente realidade
pós-tridentina. Uma arquitectura manifestando uma quase «ausência de
estilo» como vontade depuradora do próprio Classicismo defendida pelo
arquitecto chegou a influenciar a própria arquitectura jesuíta castelhana. De

1033
Consulte-se, a título de exemplo, Concepción Ferrero Maeso, Francisco de Praves (1586-1637), pág.
105-170.
1034
Citado em Fernando Marías, «Las iglesias de planta central en España», L’ Église dans l’Architecture
de la Renaissance, pág. 134.

497
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

facto, os «frequentes contactos entre Juan de Herrera e os jesuítas tiveram


como consequência a adopção por parte destes últimos, para muitos dos
seus edifícios e igrejas, da desnudada geometria e do plasticismo escorreito
do mestre escurialense, que também ligava, por outro lado, com os mais
austeros cânones da nova ordem religiosa» 1035.
Fernando Checa fala numa discussão mais alargada em torno de um
reducionismo tipológico: «Debaixo de determinadas instâncias culturais e
religiosas, propunha-se uma arquitectura baseada na austeridade e na
simplicidade pragmática ao calor da nova ideologia contra-reformista»,
valores estes que «podiam conseguir-se através de um sofisticado uso do
classicismo, se este fosse utilizado por um arquitecto excepcional como
Juan de Herrera». Mas a questão teórica essencial estaria no reducionismo
tipológico e linguístico, seguindo a moda em Itália e a reacção de
arquitectos como Antonio da Sangallo, o novo, e Vignola à arquitectura
miguelangelesca 1036.

Pese embora a grandiloquência da linguagem «herreriana», a


arquitectura espanhola sempre revelou um multidireccionalismo que lhe
permitiu, mesmo numa época de claro domínio do «estilo severo», o
desenvolvimento de formulários arquitectónicos fora da centralidade do
gosto régio. Enquanto Herrera e os seus discípulos optavam por uma
ortodoxia classicista que determinava um cada vez maior despojamento, na
região da Andaluzia alguns arquitectos assimilavam uma linguagem
italianizante direccionada para um experimentalismo maneirista 1037. Este
facto é claramente provado pela obra arquitectónica de arquitectos como
Francisco del Castilho, Ginés Martinez de Aranda, Cristobal de Rojas ou
Hernan Ruiz.

Fernando Checa destaca o papel de Francisco del Castilho, o Moço,


formado em Itália durante quase uma década – onde chegou a trabalhar na
Villa Giulia debaixo da direcção de Vasari, Miguel Ângelo e Ammanati –
demonstrando a sua formação de natureza «serliana» e maneirista na igreja
paroquial de Huelva, em Santo Ildefonso de Jaén e na Catedral de Jaén,
obra iniciada por Valdevira.

1035
Ceballos citado por Fernando Checa, Arquitectura del renacimiento..., pág. 350.
1036
Cfr. Fernando Checa, Arquitectura del renacimiento..., pág. 354.
1037
Fernando Checa, Arquitectura del renacimiento..., pág. 359.

498
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Talvez o paradigma desta realidade – a um tempo descentralizada e


regional mas com formação teórica consistente – se encontre na figura de
Hernan Ruiz, o «moço» (c.1514-1569). Teve uma formação familiar
tradicional mas adaptou-se rapidamente às novas regras da modernidade,
amadurecendo a sua aprendizagem com uma das águias da renascença
espanhola, Diego de Siloe, para quem chegou mesmo a trabalhar como um
autêntico «debuxador» de projectos arquitectónicos do mestre. Em 1557
tornar-se-á «mestre maior» da Catedral de Sevilha sendo da sua
responsabilidade o risco final e de remate da célebre Giralda catedralícia
bem como da Casa do Cabido, com o seu vestíbulo e ante-câmara, obras
profundamente influenciadas pelas doutrinas italianas do experimentalismo
maneirista praticado pelo arquitecto também na igreja de Nossa Senhora da
Assunção, em Arecena (Huelva), ou as igrejas da Anunciação e do Hospital
de la Sangre em Sevilha.

A sua prática arquitectónica foi acompanhada de um estudo dos


principais tratados da Época Moderna. Se o seu testamento, redigido em
1569, fala especificamente no facto de possuir cópias dos escritos de
Alberti e Durer, através do seu Manuscrito de Arquitectura denota o
conhecimento do incontornável Vitrúvio e especialmente da totalidade dos
escritos serlianos. Usa, ostensivamente, os textos acerca da Perspectiva e da
Geometria, bem como os célebres Livros III e IV, dedicados às Ordens
Arquitectónicas e aos monumentos «antigos» e contemporâneos. Por sua
vez, o Libro Estraordinario leva-o a projectar variantes de portais e janelas
bem dentro do «engenho» maneirista. Manuscrito desorganizado e
anárquico – não preparado para publicação – é uma síntese pessoal do seu
saber arquitectónico, dos estudos teóricos que empreendeu e ao gosto da
arquitectura que praticou 1038.

1038
Cfr. Alfredo J. Morales, Hernan Ruiz..., pág. 129-159.

499
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

8.2. Impacto e influência espanhola na arquitectura


portuguesa

O período histórico-artístico em análise abrange a dominação filipina


entre 1580-1640, sendo portanto incontornável colocar a questão acerca da
possível influência espanhola na arquitectura nacional, exactamente num
período em que as linguagens modernas se definem no todo da Península
Ibérica. Devemos começar por considerar que, numa análise imediata à
história da arquitectura quinhentista ibérica, se poderia pensar numa
plantarização dos modelos desenvolvidos por todo o território espanhol que
dimanavam da Corte para o recente incorporado Reino de Portugal. Tal não
veio a acontecer.
Nunca a historiografia portuguesa se dedicou a tratar esta questão,
exceptuando quando refere as importantes obras de iniciativa «filipina»
como São Vicente de Fora ou a reforma do Paço da Ribeira. Mesmo a
tradição de considerar o claustro nobre do Convento de Cristo de Tomar
como «claustro filipino» resulta tão só de um falso historicismo, de raiz não
científica, tão datado como as posições «nacionalistas» que levaram a
desconsiderar, durante séculos, um dos períodos mais ricos no que toca à
arquitectura e arte portuguesas.

8.2.1. Os arquitectos régios castelhanos em Portugal

É um dado histórico a presença em Portugal dos maiores nomes da


arquitectura espanhola como Juan de Herrera ou o seu discípulo e sucessor
no cargo de arquitecto-mor Francisco de Mora o que, dada a importância
das suas obras e os profundos conhecimentos em torno da modernidade
arquitectónica, poderia levar a supor uma qualquer influência, maior ou
menor, na arquitectura praticada em Portugal durante o período da «união
dinástica».

Juan de Herrera (1532-1597) acompanhou Filipe II aquando da sua


vinda a Portugal para ser legitimado como herdeiro do trono do reino
português. A entrada triunfal régia em Lisboa data de 29 de Maio de 1581,
prolongando a sua visita até 11 de Fevereiro de 1582. Não obstante, só em
1583 o seu arquitecto abandona o território português. Será durante este
período que Filipe II decide «in loco» concluir o claustro nobre do
Convento de Cristo de Tomar, reconstruir em grande parte os Paços Reais
de Lisboa e, respeitando a memória e desejo de seu primo D. Sebastião,
edificar a igreja de São Sebastião e São Vicente.
É uma manifesta impossibilidade pensar-se que nestas decisões Juan
de Herrera não tenha sido consultado. Foi-o certamente e, neste sentido, o
seu saber e papel aglutinador junto do monarca contribuíram certamente

500
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

para o alinhavar das primeiras ideias acerca do que reformar nos paços
régios e do como e onde planificar o templo vicentino. É neste sentido que
deve ser lida a informação que nos fornece frei Marcos da Cruz no seu
Catálogo dos Priores do Mosteiro de São Vicente, datado de 1626:
«Lançada a pra pedra fundamental se comessou com mto. fervor a
trabalhar na obra, que a Mag. De Del Rey Philippe ueyo uer depois duas
uezes, pegandosse mto delle, por ser debuxo, q elle madara fazer por Juan
de Herrera, seu architecto, aprovado, por Philippe 3o (Terzi) e outros
grandes arquitectos, e que por ele q tinha muito bom voto nestas materias»
1039
. Colocando de lado o problema interpretativo das vírgulas, este
«debuxo» seria um projecto geral do edifício, certamente a planimetria
inicial e não o projecto final e altimétrico pormenorizado do templo. Para
além desta referência não existe nenhuma outra que anuncie Juan de
Herrera como projectista de São Vicente de Fora em documento português
ou castelhano, mesmo naqueles que eram enviados a Madrid para serem
aprovados pelo monarca. Em resposta a este mutismo documental, as várias
informações que referem Filippo Terzi como autor do risco do templo e a
inarticulação da própria igreja com o ortodoxo estilo «herreriano» dão-nos
uma resposta cabal. O projecto global de São Vicente de Fora foi delineado
por Filippo Terzi e edificado no terreno por Baltasar Álvares, mesmo após
a morte do arquitecto italiano.

A historiografia espanhola interessou-se pelo problema da autoria do


projecto de São Vicente de Fora e duas das suas mais reputadas figuras,
Agustin Bustamante e Fernando Marías, rejeitaram liminarmente a «tese
herreriana», defendendo que a traça se deve atribuir a Terzi. Conhecedores
profundos da obra de Juan de Herrera, releram os dados existentes,
concluindo que é o projecto do arquitecto italiano elaborado cerca de 1590
que é referendado pelo monarca aquando da sua morte, em 1597 1040. Quer
em termos espaciais, quer em termos estilístico-formais, a experimentação
espacial de obras «herrerianas» como a igreja de São Lourenço do Escorial
e o projecto inacabado da Catedral de Valhadolid desvinculam-no
cabalmente da paternidade vicentina. A existir um projecto «herreriano»
em 1582 ele foi meramente geral e conjuntural e nada mais do que isso,
dado que o traço arquitectónico «herreriano» é não só inconfundível como
incorruptível e ortodoxa era a sua visão acerca do que a arquitectura
«clássica» representava para si. Di-lo nos seus escritos e nas suas obras.
Permanece ainda por explicar o prolongamento da presença de Juan
de Herrera em Lisboa – supervisão dos primeiros momentos das obras dos
Paços Reais, de São Vicente de Fora, análise de questões relacionadas com

1039
Citado em Ayres de Carvalho, As obras de Santa Engrácia..., pág. 80.
1040
Consulte-se Agustin Bustamente e Fernando Marías, «Francisco de Mora y la arquitectura
portuguesa», II Simpósio Luso-Espanhol de História da Arte, pág. 299.

501
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

a fortificação da cidade, «espionagem cultural» relacionada com o ensino


teórico e o projecto da Academia das Matemáticas de Madrid, como pensa
Rafael Moreira 1041, esta questão está ainda em aberto.

Francisco de Mora (1552-1610) esteve em Lisboa entre 1605 e 1608,


portanto, pouco tempo antes de falecer. A parca informação que se conhece
liga-o a obras nos Paços Reais da Ribeira, isto se tomarmos em linha de
conta o que se diz aquando da nomeação para o almoxarifado da casa real,
em 1612, do arquitecto Teodósio de Frias – que tinha passado uma longa
temporada em Madrid completando a sua formação no círculo régio bem
perto de Mora – quando é aconselhado a zelar para que «de todo seiam
acabadas as obras dos ditos pasos e estreuarias, que por meu mandado se
fazem junto a porta de Santa Cna para que tudo siga as trasas que deixou
ordenadas Frco de Morera» 1042. Ainda em 1616, uma acta da vereação de
Lisboa recordava o facto de os trabalhos seguirem «cõforme apontamentos
de Frco de Moura» 1043. Recorde-se que com a morte de Terzi em 1597 as
obras dos monumentais paços ribeirinhos tinham ficado a cargo do pai de
Teodósio, o arquitecto Nicolau de Frias, muito apreciado por Filipe II,
falecido no mesmo ano que o arquitecto espanhol. Rafael Moreira afirma
que, por esta altura, as obras no célebre Torreão se encontravam concluídas
e se trabalhava na decoração da Sala do Trono 1044.

É de todo impossível pensar-se que a jornada de três anos em


Portugal tenha algo que ver com questões como, por exemplo, a
fortificação e defesa da costa lisboeta, dada a posição plenipotenciária e
exclusiva de Leonardo Turriani nesta matéria e a relativa pouca experiência
do arquitecto espanhol. Francisco de Mora deve ter-se deslocado a Portugal
numa função de vistoria directa das obras régias para maior e mais
completa informação do monarca, numa altura em que as fábricas mais
importantes se descentralizam nas mãos de Turriani, Frias e Álvares.

Certa parece ser a informação que dá conta do envio para Castela de


um projecto seu acerca dos Paços Reais de Almeirim em 1608 1045 sendo
igualmente possível que seja sua a traça do convento carmelita eborense

1041
Consulte-se Rafael Moreira, «A aula de arquitectura do Paço da Ribeira e a Academia de
Matemáticas de Madrid», As relações artísticas entre Portugal e Espanha na época dos Descobrimentos,
pág. 70-74.
1042
Cfr. Sousa Viterbo, Dicionário..., Tomo II, pág. 391-392.
1043
Cfr. Ayres de Carvalho, D. João V..., Vol. II, pág. 27-28.
1044
Rafael Moreira, «O torreão do Paço da Ribeira», pág. 45-46 refere que os dois desenhos existentes no
Arquivo Geral de Simancas referentes à «Planta de la torrezilla q esta al cano dela Galeria del Palascio
de Lisboa» incluem inscrições que não são de Terzi e que parecem ser de Francisco de Mora. Todavia
estas plantas deverão ser anteriores ao momento da visita de Mora acima documentada.
1045
BA, 51-VIII-19, fls. 73vº-74. Cfr. Miguel Soromenho, «Classicismo, italianismo e estilo chão. O
ciclo filipino», História da Arte Portuguesa, Vol. 2, pág. 381.

502
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

por volta de 1601. Sabe-se que o arquitecto realizou desenhos para a


edificação da Cartuxa de Évora, perdendo o concurso para Casale. Numa
perspectiva inversa, Marías e Bustamante chegam a afirmar que a sua
igreja de São Barnabé do Escorial poderá ter sido influenciada pelos
modelos tipológicos jesuítas aplicados em São Roque e no Espírito Santo
de Évora, da mesma forma que o pátio do Castelo dos duques de Feria em
Zafra, Badajoz, faz lembrar os claustros de Tomar e Coimbra de Filippo
Terzi 1046.
Também o seu sobrinho e sucessor, Juan Gómez de Mora, esteve em
território português mas nada se conhece acerca dos motivos que
conduziram à sua vinda para além do facto de ter redigido em 1626 uma
descrição de vários monumentos ligados à iniciativa filipina intitulada
Relación de las casas que tiene el Rey en España.

8.2.2. Breve nota acerca das influências escurialenses na


arquitectura portuguesa

O Escorial marcou um estilo, uma época e um modelo. Será, por


ventura, necessário um estudo aprofundado para verificar, de forma
cirúrgica e microscópica, as possíveis influências directas do complexo de
São Lourenço do Escorial na arquitectura portuguesa, levado a cabo com
alguma profundidade pela historiografia da arte e merecendo certamente
um estudo doutoral amadurecido. Depois de definitivamente posta de lado
a intervenção nas plantas e alçados finais das obras «filipinas» de São
Vicente de Fora e do Paço da Ribeira por parte de Juan de Herrera –
provadas pelos próprios especialistas espanhóis – o estudo deveria também
ter em conta um alargado ensaio no campo da arte, cultura e mentalidades
ainda não realizado.

Os arquitectos portugueses conheciam a realidade arquitectónica


castelhana e, com toda a certeza, a fábrica escurialense. Para além das
visitas à Corte filipina do arquitecto italiano Filippo Terzi – já plenamente
formado nos modelos da sua pátria transalpina e que se traduziram na
planta da igreja vicentina, na reforma do claustro tomarense e na altimetria
do torreão ribeirinho – Baltasar Álvares foi por várias vezes a Madrid,
levando planos e debuxos para aprovação régia e, provavelmente, o mesmo
aconteceria a outros arquitectos posteriores. Teodósio de Frias teve o
privilégio de estudar e terminar a sua formação se não com Herrera, pelo
menos com Francisco de Mora e de todos os mestres portugueses tinha um
conhecimento privilegiado acerca do estilo «herreriano» plenipotenciário
em Espanha. Não obstante, na totalidade da arquitectura portuguesa, as
1046
Cfr. Agustin Bustamante e Fernando Marías, «Francisco de Mora y la arquitectura portuguesa», pág.
301.

503
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

influências «escorialescas» parecem pontuais e periféricas em relação ao


modelo italiano e à própria tradição construtiva nacional.

Numa das recentes notas acerca desta problemática, Paulo Varela


Gomes refere dois momentos específicos onde se podem vislumbrar
influências de São Lourenço do Escorial: a planta da igreja da Misericórdia
de Faro e a planimetria global do Hospital da Luz, em Carnide.
Reflectindo acerca da planta centralizada, o historiador identifica o
seu reaparecimento em 1582 na planta grega inscrita em quadrado do
templo da Misericórdia de Faro, obra patrocinada por D. Afonso de Castelo
Branco, derivando do Escorial pelo «desenho dos pilares centrais – que
cortam os ângulos do cruzeiro exactamente como sucede em S. Lourenço,
dando a esta parte da igreja uma expressão quase poligonal» 1047.
Em Lisboa, Baltasar Álvares projectou o Hospital da Luz de Carnide
como se se tratasse de um «pequeno Escorial», com a capela axial ao
claustro e entrada, afirmando Varela Gomes que se mostra «um arquitecto
próximo de Herrera, especialmente na escolha do partido arquitectónico do
hospital, que foi pensado como um bloco quadrangular de tipo escurialense
com fachadas corridas a toda a volta e capela central após um pátio» 1048.
Não deixa, contudo, de chamar a atenção para o italianismo da capela, para
uma certa dificuldade de harmonizar as proporções e uma «austeridade que
lembra a arquitectura sebástica anterior» – diríamos, por outras palavras,
uma tradição construtiva nacional fruto da aprendizagem inicial de mestre
Álvares. O mesmo se pode afirmar quando consideramos o monumental
projecto inicial de Santos-o-Novo, que por vezes tem sido erradamente
directamente ligado ao Escorial.

Duas pistas bem mais visíveis passam pelas figuras dos marqueses de
Castelo Rodrigo e do conde de Portalegre.
D. João da Silva, conde de Portalegre, forneceu debuxos da «castra
doloris» erguida no Escorial a Nicolau de Frias que neles se baseou para
fazer construir igual monumento fúnebre em Belém, na celebração das
exéquias de Filipe II. Por seu turno, os Castelo Rodrigo fizeram edificar o
seu palácio em zona nobre da cidade de Lisboa inspirados nos alcáceres
castelhanos e citaram o modelo escurialense na cripta que guardaram para
si e fizeram construir na igreja de São Bento da Saúde. Não será por acaso
que Teodósio de Frias foi o arquitecto escolhido para riscar a obra – tal
como certamente projectou a cripta para o Sacramento de Alcântara 1049.

1047
Cfr. Paulo Varela Gomes, Arquitectura, Religião e Política em Portugal no Século XVII..., pág. 58-
63.
1048
Paulo Varela Gomes, Arquitectura, Religião e Política em Portugal no Século XVII..., pág. 65.
1049
Sobre este assunto veja-se capítulo neste trabalho.

504
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

8.2.3. A Arquitectura Carmelita: a «importação de um modelo»

A influência da arquitectura espanhola em Portugal durante todo este


período deve centrar-se na importação da tipologia do templo carmelita, na
sequência da reforma de Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz.

8.2.3.1. As directivas «carmelitas»

Não foi somente a Companhia de Jesus que se preocupou com as


questões relacionadas com a tipologia formal e ornamental do templo
cristão. Também na ordem carmelita reformada por Santa Teresa de Ávila,
existe uma constante no modelo arquitectónico escolhido a partir da casa-
mãe de Ávila, de raiz «albertiana» e romana, e que foi tido em conta na
quase totalidade dos conventos carmelitas edificados a partir da segunda
metade de Quinhentos, arquétipo que se plantariza por toda a Espanha e
chega a Portugal por influência directa.

Nos seus escritos, Santa Teresa manifestava a opção pelo sentido


monacal da arquitectura considerando que deveria ser pobre sem deixar de
ser bela embora despojada, isto é, que «não se lavrem edifícios sumptuosos,
mas sim humildes, e as celas não sejam maiores de doze pés em quadra».
A defesa da sacralidade do lugar era levada ao extremo quando verberava
que «jamais se lave, senão fora da igreja, nem haja coisa curiosa, senão de
madeira tosca, e seja pequena e de peças baixas» 1050.

Revestem-se de extrema importância as notas e directivas que se


encontram no Manual para los prelados descalços de Nuestra Señora del
Carmen, editado por Domingo la Iglesia no ano de 1624.
Quanto ao local de edificação dos conventos carmelitas recomenda-
se que se construam «fora dos lugares (mas não longe deles, para que se
possa atender a nossa quietude, e juntamente à salvação das almas) ou em
seus arrabaldes, onde não haja ruído, e concurso de seculares» e
aconselha-se a que «não se receba fundação onde haja risco de com o
nosso encerramento não se possam sustentar os Religiosos, nem entrem em
Convento novo sem estar de todo acabado com Igreja, e claustra, e
cumprido o número de Religiosos nos demais Conventos da Província,
salvo dois, ou três, para cuidar da fábrica». 1051
Que «todos os nossos edifícios se façam com traça da Ordem, e
conforme às medidas e disposição de nossas leis, fol. 48. numero 6. e não
se altere cousa alguma da traça, se esqueça, ou aumente, sem especial
licença de N. P. G. ou consentimento dos Artífices da Religião; os quais

1050
Citado em Santiago Sebastián, Contrarreforma y Barroco, pág. 239.
1051
Manual para los prelados descalços de Nuestra Senõra del Carmen, fl. 16.

505
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

guardem em tudo as medidas da lei, sob pena de suspensão de ofício,


segundo a gravidade do delito ; e aos que o fizerem, ou permitirem alguma
das sobreditas cousas. Para o edifício que ultrapassar os cem ducados, se
requer licença do Provincial» 1052. Esta norma declara peremptoriamente o
cumprimento de um «modelo» que deve ser seguido, sofrendo alterações no
caso de consulta e posterior licença do Provincial Geral da Ordem.

8.2.3.2. Os modelos castelhanos

A tipologia do templo carmelita foi fixada pelo arquitecto régio


Francisco de Mora (1552-1610), discípulo de Herrera e um dos mais
produtivos mestres contribuintes para o designado «herrerianismo»,
característico da arquitectura espanhola deste período.
A igreja desenvolve-se a partir de uma fachada-nartéx com arcaria
tripartida articulada com uma planta rectangular em cruz latina com braços
do cruzeiro pouco profundos interseccionados com nave única por um
sistema abobadado semi-circular, neutralizando o cruzeiro em virtude de
uma leitura longitudinal do edifício. Promove-se uma escala dimensional
não monumental e um despojamento que conduz a uma leitura escorreita e
lisa dos componentes arquitectónicos do edifício.

Os conceitos de Francisco de Mora foram postos em prática por um


dos seus colaboradores, designadamente em Medina de Rioseco e Madrid.
O frade carmelita Alberto de la Madre de Dios (1575-1635), emérito
tracista, terá funções intermediárias entre o arquitecto e os mestres
construtores. É ele que risca o projecto que foi entregue ao mestre de
pedraria Juan del Valle em 1606 para o Convento de San José de Medina
de Rioseco, perto de Valhadolid, fundado três anos antes. Segue o modelo
descrito supra exceptuando a fachada, com portal único quadrangular 1053.

Todavia, o modelo mais importante – e onde o mesmo tracista


carmelita intervém – é o do Convento da Encarnação de Madrid, edificado
entre 1611 e 1616, partindo de uma concepção do arquitecto régio Juan
Goméz de Mora (1586-1648), sobrinho de Francisco e último representante
do paradigma «herreriano», mas também o seu primeiro crítico. Edificado
por ordem expressa de Filipe IV, seguindo os desejos da rainha Margarida,
apresenta as características gerais dos seus precedentes com pequeno átrio,
nártex e fachada tripartida, onde se destaca a arcaria central, terminada em
frontão triangular 1054.

1052
Manual para los prelados..., fl. 16vº.
1053
Cfr. Agustin Bustamante Garcia, La arquitectura clasicista del foco vallisoletano..., pág. 418-421.
1054
Consulte-se Ramón Guerra de la Veja, Madrid de los Austrias, pág. 84-87. Recorde-se que o actual
estado interior resulta desvirtuado pela profusa decoração barroca setecentista.

506
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

8.2.3.3. Os modelos portugueses

Na década de 80, Horta Correia destacava já a inequívoca fonte


«castelhana» dos modelos nacionais, quando afirmava que «os Carmelitas
Descalços são a única família religiosa que sistematicamente se serve do
mesmo modelo de igreja para os seus conventos, a partir da Igreja dos
Remédios de Évora (1601-1614), do discípulo de Herrera, Francisco de
Mora. Mas muitas das soluções carmelitanas são, em parte, utilizadas por
outras congregações» 1055. Esta tipologia repete-se nos conventos nacionais,
destacando-se neste estudo, embora sumariamente, cinco exemplos da
arquitectura carmelita descalça em Portugal – Lisboa, Évora, Coimbra,
Aveiro e Porto.

8.2.3.3.1. Convento de Nossa Senhora dos Remédios de Lisboa

A primeira casa dos carmelitas descalços foi fundada na capital do


Reino. Segundo rezam as crónicas, Santa Teresa de Ávila pretendeu fundar
em Portugal a sua reformada ordem logo a seguir a Alcácer Quibir,
manifestando esse desejo numa missiva secreta datada de 15 de Agosto de
1578, conhecida e publicada «pos-mortem»: «Depoys que Deos Nosso
Senhor pera me consolar da pena que tive com a perda do exercito
portugues nos campos africanos me disse que a permittira por achar aos
portugueses dispostos, fiquey com tam grande estimaçam da Nação
Portuguesa na qual até os soldados estragados nas outras estavam tam
bem dispostos, que me sobrevieram grandes dezejos de ir fundar algumas
casas do nosso Carmello reformado naquelle Reyno, parecendo me que
resultaria disso grande glória a Deos e augmento da Religiam com os
sogeytos portugueses que se me representavam tam bons e inclinados à
virtude. Pedi à sua Divina Magestade com a mayor instancia que pude me
fizesse esta mercê, e dia d’Asssumpçam da Rainha dos Anjos me disce o
Senhor ‘Tu, filha, não irás a Portugal fundar casas de tua reforma, mas
iram tuas filhas e teos filhos, porque quero augmentar o numero de bons
Religiosos que ha naquelle Reyno com os teos, e que cresça o motivo de
suspender o castigo que lhe dey e uzar de misericordia com elle. Tambem
será levada a elle tua man esquerda, que lhe quero dar a mam de huma
tam amada sposa pera o levantar da miseria em que estava caìdo e
restituilo às felicidades antigas e darlhe o penhor de outras aventajadas’»
1056
.
No Capítulo Geral de 3 de Março de 1581, celebrado em Alcalá de
Henares, acertando-se o objectivo de estender a reforma carmelita a outros

José Eduardo Horta Correia, «A arquitectura - maneirismo e estilo chão», pág.128.


1055
1056
Segundo a crónica de frei Melchior de Santa Ana (1629), citado em História dos Mosteiros,
Conventos e Casas Religiosas..., Vol. II, pág. 80-81.

507
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

países, logo frei Jerónimo Graciano propôs o reino português, confiando


nas palavras e promessa de Santa Teresa. Numa circunstância que poderia
ser no mínimo desfavorável – em pleno período de mutações políticas que
conduziriam à união ibérica – a ideia foi avante com a eleição de frei
Ambrosio Mariano, religioso italiano, natural do reino de Nápoles. Frei
Mariano e alguns companheiros chegam a Lisboa a 1 de Outubro de 1581.
Com a presença de Filipe II na capital do reino português, o frade carmelita
chegou a recusar uma esmola régia de renda no valor de cem mil reais
anuais para a casa conventual, decido apenas que estava a pedir licença de
fundação ao arcebispo D. Jorge de Almeida e aos responsáveis camarários.
«E assim prevenido das licenças necessarias pera fundar na cidade, trattou
o Reverendo Padre Frey Ambrosio de buscar sitio acommodado pera a
fundaçam, e vistos varios mostrou mays satisfaçam de humas cazas que
eram de Francisco do Campo de Tavora e de Dona Micia Ribeyra, sua
mulher, com os quaes falando o Padre Mariano, se ajustou sem
difficuldade o preço do aluguel, dando lhes palavra de lhas venderem tanto
tivesse dinheyro pera as pagar» 1057.

A tomada de posse das moradias e a cerimónia solene realizada deu-


se a 4 de Outubro de 1581, tornando-se a partir daqui na primeira casa
carmelita descalça de Portugal. Habitaram as moradias até 1604, mas
quando as quiseram adquirir não chegaram a acordo com os proprietários e
depois de propostos novos locais, o padre geral frei Francisco da Madre de
Deus veio a «escolher o em que agora se acham, visinho à freguesia de
Sanctos o Velho, na estrada que vay pera Alcantera», comprando a
particulares os terrenos necessários, depois de obterem licença das
comendadeiras de Santos.

Deste modo, «ajustada a compra do sitio pera o convento, lançou o


Padre Vigario Provincial a primeyra pedra do edificio, huma quarta feyra
vinte sete de Setembro de 1606, quasi dous annos depoys d(e) estarem os
Padres no convento da Madre de Deos. E applicandose deligencia e
actividade à obra, que com esmolas de muytos devotos que pera ella
concorriam se adiantou tanto que quando foy no anno de 1611 se poz o
convento em estado de se poder habitar». Este foi o efectivo momento de
entrada no edifício conventual (1611) mas, como era usual, estava ainda
longe a sua conclusão: «Era o convento em que os Padres se recolheram
em tudo muy limitado, porque nam só havia estreytesa nos aposentos dos
Religiosos, e nas officinas do convento, mas tambem na igreja, que
accommodaram no que hoje he portaria e alpendre, mas nam se
descuidaram os Padres de melhorar a igreja fazendo outra nova na qual

1057
Cfr. História dos Mosteiros, Conventos e Casas Religiosas..., Vol. II, pág. 86.

508
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

em dia de Paschoa de 1613, com grande consolaçam dos Religiosos e


gosto dos seculares vizinhos e de outros que professavam amor à Religiam,
colocou o Senhor o Padre Vigario Provincial acrescentando mayor alegria
ao dia de Paschoa veram ao Senhor de posse já de sua igreja em que
foram continuando as obras, aprefeyçoando o que esta imperfeyto» 1058.

Em súmula, embora o Convento de Nossa Senhora dos Remédios de


Lisboa tivesse sido o primeiro a ser fundado no reino português, a
instalação definitiva em Santos-o-Velho deu-se apenas em 1606. Em 1611
os religiosos davam entrada nos edifícios mas em 1613, por altura da
deposição do Santíssimo Sacramento na igreja, esta encontrava-se ainda
inconclusa. É bem provável que a fábrica do templo carmelita tenha
encontrado uma importante ajuda na família dos Meneses, essencialmente,
por parte de D. Brás Teles de Meneses, Senhor da Lamarosa, grande
general da armada portuguesa, falecido a 16 de Agosto de 1637. Encontra-
se sepultado ao Evangelho, num dos braços do transepto da igreja
carmelita, ao lado da esposa, D. Catarina Maria de Faro Henriques e
Gusmão.
A singela igreja é descrita pelo cronista anónimo da primeira década
de Setecentos da seguinte forma: «Entrando pella unica porta que tem se
acha huma igreja cujo coro assenta sobre a abobeda do portico entrando
tambem alguma parte no principio do corpo da igreja que nam differe
muyto em grandesa da que costumam ter as dos Padres Carmelitas
Descalsos. A capella mor he proporcionada ao corpo com seo retabolo ao
antigo que como tal carese de tribuna». «Collateraes à capella mor ficam
no cruzeyro duas capellas à face que nam sam grandes mas asseadas. No
mesmo cruzeyro, fronteyra à porta pella qual quem vem à sancristia e do
claustro entra nelle, fica huma capella, a qual abre no topo hum arco de
vinte palmos de vam que se remata na cimalha da igreja, e o ditto vam
vestem marmores brancos e vermelhos, das quaes pedras sam as paredes
da capella em que estam embibidos dous arcos em correspondencia, dentro
dos quaes se vem duas sepulturas lavradas de marmore», cada uma deles
dos patronos acima citados. Destacando apenas a primeira capela à
Epístola, onde tinha sepultura o doutor Inácio Ferreira, dedicada a São
José, conclui afirmando que «as outras capellas do corpo da igreja nam
tem cousa singular que mereça particular relaçam» 1059.

A igreja lisboeta participa das características gerais da tipologia


carmelita. Fachada com nártex de tripla arcaria e remate cimeiro triangular,
planta de cruz latina com nave única, transepto pouco profundo e capela-
mor. Com a excepção da abóbada abatida que suporta o coro-alto, toda a
1058
Cfr. História dos Mosteiros, Conventos e Casas Religiosas..., Vol. II, pág. 88-89.
1059
Cfr. História dos Mosteiros, Conventos e Casas Religiosas..., Vol. II, pág. 90-93.

509
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

cobertura superior é revestida por abóbadas de canhão interseccionadas por


cúpula central ao cruzeiro. Por sua vez, as quatro capelas ao longo da nave,
intercomunicantes, integram cobertura de arestas simples. Nos panos de
parede, pilastras, cimalhas e molduras em mármores rosados, ornato que se
estende à capela dos Meneses.

8.2.3.3.2. Convento de Nossa Senhora dos Remédios de Évora

A fundação do convento eborense teve as suas origens em 1594 «sob


auspícios do arcebispo D. Teotónio de Bragança no fundo da Rua do
Raimundo, em casas e albergaria da Senhora dos Remédios, que
posteriormente se transformaram na ermida de Na Sa das Brotas» 1060. D.
Teotónio tinha conhecido Santa Teresa em Ávila, impressionou-se com a
causa e logo tentou autorização para fundar uma casa conventual em 1579.
Iniciadas as obras depois da licença camarária, os carmelitas tomaram
posse da ermida a 9 de Novembro de 1594, abrindo-se os alicerces do novo
templo em 1601 na presença do prior frei Pedro de São José.
A transferência dos frades para a casa conventual verificou-se no ano
de 1606 mas a sagração da igreja apenas se deu em 1614, em tempos de D.
José de Melo que ficará com direitos de padroado da igreja e sepulcro na
capela-mor 1061. Para a sua conclusão muito deve ter contado a ajuda do
fidalgo Álvaro de Miranda Henriques, que tinha doado em 1613, 200.000
reais de esmola para a conclusão das obras.

Se não se conhece documentação directa acerca da obra conventual,


encontrava-se citado o contrato para a feitura do sepulcro do arcebispo
eborense. A 11 de Julho de 1626 1062, o licenciado Luís de Azambuja,
representando D. José de Melo, concertava-se com o pedreiro Pedro
Álvares Moniz 1063, da vila de Estremoz, para «aver de fazer hu sepullco de
pedra marmore no alltar mor da ygreya de nosa senhora dos remedios
extramuros desta cidade de que ylustrysima he padroeyro no alltar mor da
dita ygreya da parte do evangelho pera entero de sua ylustrysima», a troco
de 180.000 reais. A «sepulltura a de ser comforme a hua trasa que ao fazer
desta se apresemtou e com as comdisois e decllarasois comteudas e
decllaradas nas costas da dita trasa escrytas en castelhano». Fica-se deste

1060
Inventário Artístico de Portugal. Concelho de Évora, pág. 314.
1061
1614 é também a data que se escopra num florão da abóbada. Cfr. Inventário Artístico de Portugal.
Cidade de Évora, pág. 315.
1062
ADE, Cartório Notarial de Évora, Livro 421, fl. 81vº. Citado mas não publicado em súmula
documental de Vítor Serrão em Túlio Espanca, «Nova Miscelânea», A Cidade de Évora, pág. 106.
Contrariamente à paginação aqui apontada, só existe o primeiro fólio da lavra documental, tendo sido
visivelmente arrancados do actual livro notarial os fólios subsequentes.
1063
Pedro Álvares Moniz foi o construtor da Fonte Grande de Vila Viçosa, segundo traças de Pero Vaz
Pereira em 1618 e reformou a capela e embasamento do retábulo de S. Manços ou das Relíquias da Sé de
Évora em 1622, pela qual colecta 13.000 reais.

510
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

modo a saber que o projecto foi debuxado por um arquitecto espanhol –


neste mesmo ano em que Juan Goméz de Mora se encontrava em Portugal.
O jazigo tumular de D. José de Melo, falecido em 1633, apresenta-nos uma
traça «clássica» tradicional com frontão e colunas dóricas.

O Convento de Nossa Senhora dos Remédios poderá ter sido


projectado por Francisco de Mora. Horta Correia afirma que este é o
modelo para todos os templos carmelitas portugueses que «repetem o
protótipo eborense, por seu turno, oriundo do Convento da Encarnação de
Madrid» 1064. Define o estereótipo como «igreja em cruz latina abobadada,
com cúpula no cruzeiro e nártex profundo. A fachada, de severidade
escorialesca, desenha-se em forma de rectângulo encimado por frontão
ladeado por esferas sobre plintos cúbicos. Três arcos, sendo o central mais
elevado, formam a galilé, sobre a qual se repete uma composição tripartida
constituída por uma janela central, acompanhada a um e outro lado pelas
armas do Reino e da congregação» 1065.

8.2.3.3.3. Colégio de São José dos Marianos de Coimbra

Os carmelitas descalços marcaram também presença na longa lista de


colégios religiosos conimbricenses, instalando-se provisoriamente nas
moradias do conde de Portalegre a partir de 1603. A primeira pedra do
complexo colegial foi lançada a 11 de Outubro de 1606, na presença de D.
Afonso de Castelo Branco e em 1608 acolhia os primeiros religiosos 1066.

Tal como em grande parte dos seus congéneres, desconhece-se quase


tudo acerca da construção do colégio, bem como o autor do risco que,
todavia segue o modelo «importado» e oficial espanhol. Uma década
depois da cerimónia oficial do início da fábrica a igreja começa a receber
legados em troca de sepultura nas suas capelas.
A 7 de Julho de 1616 1067, Luís de Lemos da Costa, testamenteiro do
licenciado António de Lemos, contrata-se com os carmelitas descalços para
que este seja sepultado na capela do Santo Cristo: «Elles padres lhe davão
a capella collateral da djta sua igra que esta de fora das grades quamdo
entrão pella porta princjpall e mão esquerda pera nella estar sepulltado o
corpo do dito deffunto que por ora estava depossitado no claustro do dito
mosteiro». António de Lemos lega ao colégio 90.000 reais da sua fazenda
mais 50.000 para o sepulcro, sendo ainda obrigado a custear uma imagem
de Cristo para a capela bem como «a ornametar lloguo ha dita capella de

1064
José Eduardo Horta Correia, Arquitectura Portuguesa..., pág. 62.
1065
José Eduardo Horta Correia, «A arquitectura – maneirismo e estilo chão» pág. 126 - 127.
1066
Cfr. António de Vasconcelos, Os colégios universitários..., pág. 264.
1067
AUC, Colégio de São José dos Marianos, Livro nº 7, documento avulso.

511
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

quatro vestimetas e quatro frontais das cores e ffeitio que ho reitor e mais
padres do dito collegio ordenare», «e por detras do xpõ que esta na dita
capella pora hum retabollo com seu resplandor dourado».

A 7 de Janeiro de 1648 1068 era a vez de Sebastião de Mendanha


Castelo Branco, cidadão de Coimbra, se contratar com os carmelitas para
tratar da sua sepultura familiar, «jumto a grade da capella major» e «da
parte de fora della jumto da capella de samto amgello», desembolsando
4.000 reais de esmola e renda. Enfim, na década de 50 o colégio recebe
mais valias fruto das bondades do doutor António Leitão – que doa um foro
de seis alqueires de azeite por ano para que estivesse sempre acesa a
lâmpada da capela de Santa Maria Madalena, que ele próprio fundou da
igreja do dito colégio 1069 – e do padre vigário de Sangalhos, Vicente Lopes
Leitão que, a 16 de Outubro de 1659 lhes faz doação de 200.000 reais 1070.

Tomem-se em consideração a singela e precisa descrição de


Nogueira Gonçalves: «A igreja foi lançada a norte. Precede-a um pequeno
adro lajeado a que dá acesso uma porta aberta num muro que alinha pela
frontaria do hospital. A fachada da mesma é enquadrada de duas altas
pilastras de cantaria, nas quais se apoia o remate desta, em forma de frontão
simplificado, com acrotérios de grossas esferas e, no vértice, desenvolvida
cruz. Na parte inferior abrem-se três arcos simples para um breve átrio, ao
centro do qual fica a porta da igreja, rectangular e simples. Acima da
tríplice arcada, uma facha lisa corta a frontaria. Na parte média deste
segundo espaço cava-se um nicho, agora vazio, de colunelos e de frontão
interrompido e ondulado, lendo-se no remate S IOZEPH. Ladeiam-no dois
brasões da ordem do Carmo, dentro de caixilhos rectangulares. Acima do
nicho corta-se grande janela também rectangular, e já dentro do frontão um
pequeno óculo. Completam a fachada dois corpos mais baixos, na linha das
capelas, rematados duma aleta composta, a qual estabelece o equilíbrio
entre eles e o corpo central. Na ala do lado esquerdo abre-se a porta duma
pequena quadra que serviria de portaria e dava acesso ao claustro. O
interior da igreja é modesto, pequeno, sem ornatos mas gracioso, seguindo
um padrão arquitectónico usual na cidade, no século anterior: nave, com
duas pequenas capelas a cada lado, transepto, não excedendo a linha das
capelas e com a altura da nave, altura que se conserva na capela-mor,
pequena rectangular, da mesma largura da nave. No cruzeiro, uma cúpula

1068
AUC, Colégio de São José dos Marianos, Livro nº 7, documento avolso.
1069
Segundo registo de 31 de Março de 1659. Cfr. AUC, Colégio de São José dos Marianos, Livro 4, fl.
390.
1070
AUC, Colégio de São José dos Marianos, Livro nº 7, documento avulso. Assinam como testemunhas
os pedreiros de Celas, Luís Pinheiro e Miguel Mendes.

512
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

sem tambor. Abóbadas de tijolo e simples. O topo do braço do cruzeiro, do


lado da epístola, rasga-se em arco para uma ampla capela» 1071.

8.2.3.3.4. Convento do Carmo de Aveiro

A fundação do Convento do Carmo em Aveiro ficou a dever-se a D.


Brites de Lara e Meneses, filha de D. Manuel de Noronha e Meneses,
primeiro duque de Vila Real 1072. Casada com D. Pedro de Médicis, filho de
Cosme I, que veio para Portugal no comando da infantaria italiana que fez
parte da expedição portuguesa de 1578 mas que, com o desastre de Alcácer
Quibir e a consequente perda da independência, passou a servir o império
filipino. Enviuvando em 1604, veio para Aveiro cujos duques eram seus
parentes e recolheu-se no Convento de Jesus. Desde cedo pretendeu fundar
um convento carmelita na vila mas o ensejo só foi alcançado depois da sua
morte, através de D. Raimundo, duque de Aveiro, seu sobrinho.
Chegados a Aveiro, os carmelitas conseguiram licença da edilidade a
22 de Julho de 1613, secundada a 12 de Outubro desse mesmo ano pelo
bispo de Coimbra e pela autorização régia obtida a 16 de Julho de 1615 1073.
Iniciaram a construção de novo edifício na antiga rua de São Paulo, tendo-
se abrigado temporariamente no paço construído por D. Brites de Lara até à
conclusão das obras. O mestre de pedraria responsável pela edificação do
complexo conventual foi o «mestre de obras da cidade» Pedro de Araújo,
presente no auto lavrado entre os religiosos e os responsáveis camarários.

A parte conventual encontrava-se edificada pelo ano de 1620, sendo


celebrada a primeira missa a 15 de Março. No entanto, só a partir deste
momento se iniciou a construção da igreja, tal como aponta o contrato entre
D. Brites de Lara e os religiosos datado de 25 de Agosto de 1626, no qual,
como padroeira, se responsabiliza pelo seu custeamento, recebendo em
troca sepulcro eterno na capela-mor da mesma igreja onde se encontra em
sumptuoso túmulo de mármore polícromo, claramente influênciado pela
tipologia que Jerónimo de Ruão debuxou para os túmulos régios da capela-
mor de Santa Maria de Belém, em Lisboa.

O sistema aplicado participa de todas as características gerais do


templo carmelita, com grandes similitudes com o congénere portuense no
que toca ao seu espaço interino. Planta de cruz latina, nave única precedida
por nártex, transepto e capela-mor pouco profunda. A nave é ritmada por
1071
Inventário..., pág. 138-139.
1072
Recolhem-se as informações essenciais em Francisco Ferreira Neves, «D. Brites de Lara e Meneses,
fundadora e padroeira do Convento de Nossa Senhora do Carmo, em Aveiro», Arquivo do Distrito de
Aveiro, pág. 229-234 e Inventário Artístico de Portugal. Distrito de Aveiro, zona sul, pág.127-130.
1073
Francisco Ferreira Neves, «D. Brites de Lara e Meneses, fundadora e padroeira do Convento de Nossa
Senhora do Carmo, em Aveiro», pág. 230.

513
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

pilastras, tendo de cada lado, uma capela rasgada por arco de volta perfeita.
A abóbada de cinco tramos com lunetas cobre o nave, sendo que os dois
primeiros tramos correspondem ao coro-alto suportado por arco abatido.
No cruzeiro, cúpula e retabulária nos braços do transepto. A fachada
desenvolve a tripla arcaria de acesso à galilé e é rematada por frontão
triangular.

8.2.3.3.5. Convento do Carmo do Porto

Depois de obtida licença de Filipe II em 1616, frei Tomás de São


Cirilo, definidor-geral dos carmelitas descalços apresenta, a 14 de Junho de
1617 1074, petição para fundar mosteiro na cidade do Porto, para «que se
possam acomodar numas casas até terem outras fora dos muros da cidade,
onde se acomodem e plantem mosteiro». O alto patrocínio pertencia aos
duques de Lerma, «patronos» da ordem, tal como refere o documento.
Ainda neste mesmo ano, a 22 de Junho 1075, firma-se um «Assento que se
tomou sobre o sítio em que os padres carmelitas hão de plantar seu
mosteiro, «perto dos muros dela (Porta do Olival) e em frente da
irmandade de Nossa Senhora da Graça, entre o caminho que vai para o
carregal e para a fonte das Virtudes» e um outro, no qual se declara que se
lhe darão 500 cruzados anualmente para ajuda das obras.

A primeira pedra foi colocada na presença do bispo D. Rodrigo da


Cunha, em Maio de 1619 1076. Estando alojados provisoriamente na rua de
São Miguel, os religiosos começam a ocupar o edifício em Junho de 1622.
A edificação da igreja só foi concluída em 1628, enquanto a decoração
interior se prolongou até 1650. Para o modelo portuense desconhece-se
qualquer informação acerca da construção faseada e do responsável pelo
projecto e fábrica arquitectónicos.

A igreja portuense, com frontispício organizado dentro do «cânone»


carmelita de tripla arcaria de acesso ao nártex e remate superior triangular,
embora com modificações setecentistas no ornato das cantarias, desenvolve
nave única, três capelas laterais de cada banda divididas por pilastras,
segmentando os abobadamentos de berço com lunetas. À entrada um arco
abatido sustém o coro-alto. O transepto apresenta cúpula central e capelas
nas faces dos braços – à Epístola, a capela de Nossa Senhora do Carmo, e
ao Evangelho, a capela de Nossa Senhora das Dores (1637). Quer o
transepto, quer a capela-mor são pouco profundas, como é usual nas
fábricas carmelitas.

1074
AHMP, Livro de Vereações, nº 41, fls. 208vº - 209.
1075
AHMP, Livro de Vereações, nº 41, fls. 211vº - 213.
1076
Inventário Artístico de Portugal. Cidade do Porto, pág.185-187.

514
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

8.2.4. Uma «excepção à regra»: Juan Moreno e a fachada


monumental da Sé de Viseu

O arquitecto salamantino Juan Moreno plasmou em Portugal o estilo


«herreriano» quando foi contratado para remodelar a fachada da Sé de
Viseu.
A reconstrução da fachada da catedral românico-gótica viseense
deveu-se à derrocada de uma das torres e do anterior frontispício
quinhentista. A 28 de Abril de 1635 1077 o cabido «ordenou e determinou
que se chamassem Arquitectos de Portugal e Castela pagando-lhes seus
caminhos e trabalhos para melhor traçarem as obras que se hão-de
reedificar e ao Arquitecto que veio de Coimbra lhe dessem seis mil réis e
ao Arquitecto que veio de Salamanca lhe dessem 14 tostões com mais
algum mimo enquanto estiver nesta cidade», «e assim mais que ao
Arquitecto João Moreno Castelhano de fazer a traça do portal da Sé ainda
que ele pediu seis mil réis lhe dessem de feito da dita traça dois mil réis e
se com eles se não contentasse lhe não dessem nada e ao Arquitecto de
Coimbra além dos seis mil réis lhe dessem algum regalo pois não levava
nada pelo feitio da traça que fez do portal». Este concurso público
conduziu à vinda de dois arquitectos de duas das cidades no eixo de
influência que sofria Viseu, Salamanca e Coimbra. À partida, pelo que se
infere pelo documento, o arquitecto português parece levar a melhor pelo
manifesto azedume causado pelos pedidos do mestre castelhano, mas tal
não viria a acontecer.
A decisão final é conhecida a 30 de Maio quando se determina que
se realize por conta do mestre de pedraria Manuel Fernandes, obrigado a
«fazer o dito portal da Sé pela traça que deixou o Arquitecto João Moreno
Castelhano morador em Salamanca» 1078. Inicia-se desta forma a
construção mas só uma década depois se saberá mais pormenores sobre a
obra e seus intervenientes. O risco do arquitecto espanhol dizia respeito não
só à fachada como à reconstrução das torres – essencialmente a Torre do
Relógio – e zimbórios pelo preço global de 900.000 reais tudo «para
perfeição da obra e traça que fez João Moreno, mestre e arquitecto de
obras de pedraria, morador na cidade de Salamanca, e com os mais
acrescentamentos feitos na traça pequena que fez David Álvares,
arquitecto morador desta dita cidade de Viseu, e na forma dos
apontamentos feitos pelo dito David Álvares que estão assinados por
Pedro Álvares, mestre de obras da Comarca de Coimbra» 1079.
1077
Alexandre Alves, «Elementos para um inventário artístico da cidade de Viseu. As grandes obras da
Sé», Beira Alta, pág. 74-75. Veremos de seguida que o arquitecto português não chegou a receber a soma
de 6.000 reais que aqui se enumera.
1078
Cfr. Alexandre Alves, «Elementos para um inventário artístico da cidade de Viseu. As grandes obras
da Sé», Beira Alta, pág. 75-76.
1079
Alexandre Alves, «O frontespício e as torres da catedral de Viseu», Beira Alta, pág. 269-274.

515
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

A partir destas informações podem ser reconstituídos os passos


essenciais da sua edificação. Em primeiro lugar responderam à chamada do
Cabido da Sé dois arquitectos, João Moreno, que ganhou o concurso, e um
arquitecto de Coimbra que propunha uma solução que passava pela
demolição da totalidade da torre em ruína e por uma «traça de muita
máquina e custo» 1080 para o frontispício, pela qual pedia 6.000 reais. Este
arquitecto era certamente António Tavares 1081, mestre de obras da cidade
de Coimbra, autor do projecto da Porta Férrea (1633) e principal
responsável pelas obras da Universidade promovidas pela iniciativa do
reitor D. Manuel de Saldanha que, curiosamente, é bispo de Viseu aquando
da feitura do contrato de 1646. Desta forma, o risco linear, severo e menos
dispendioso foi preferido face a um debuxo certamente ornado ao estilo do
arquitecto coimbrão, plasmado no portal nobre do Pátio da Universidade.

Apesar de ter sido arrematada por Manuel Fernandes, desde o


primeiro momento, D. Manuel de Saldanha não prescinde da presença de
um mestre seu conhecido para a aprovação dos apontamentos particulares
da obra, Pedro Álvares, que tinha trabalhado na Universidade de Coimbra
sob a supervisão de António Tavares 1082. Por sua vez, David Álvares,
mestre de pedraria viseense, chegou a fazer o menor lanço para a obra dos
zimbórios mas perde o concurso para Manuel Fernandes, vendo-se este na
condição de realizar «o que se continha nas ditas traças, as pilastras e
pirâmides na varanda que cerca os ditos zimbórios, na forma dos
apontamentos que o mesmo Manuel Fernandes fez por baixo dos
apontamentos do dito David Álvares», no prazo de dois anos e pelos ditos
900.000 reais lançados anteriormente 1083.

O convite e a consequente preferência pelo projecto de Juan Moreno


prende-se tão só com questões económicas e nada tem que ver com
questões de gosto ou estilo, muito menos com uma zona de penetração e
influência da arquitectura «herreriana» em território português. Trata-se de
uma experiência isolada por parte de um arquitecto já conhecido em Viseu
pelo facto de ser obra sua o mausoléu que a 1 de Maio de 1629 o doutor

1080
Como se afirma em documento coevo. Cfr. Alexandre Alves, «O frontespício e as torres da catedral
de Viseu», pág. 264.
1081
Como adiantamos em Carlos Ruão, «A Arquitectura da Sé Catedral de Viseu», Monumentos, pág. 17.
1082
Cfr. Lopes de Almeida, Artes e ofícios em documentos da Universidade, Vol. III, pág. 169-173.
1083
Os dois mestres pedreiros tinham, a 2 de Fevereiro de 1644, celebrado um contrato de parceria, mas a
preferência do Cabido por Manuel Fernandes levou David Álvares a interpor uma acusação contra a Sé
dizendo que tinha sido ele o autor do lança mais baixo, exactamente dos ditos 900.000 reais. Todavia, o
próprio Manuel Fernandes predispôs-se a pagar à sua custa tudo a que o Cabido pudesse ser condenado,
segundo um documento por si próprio redigido a 26 de Abril de 1646 e publicado por Alexandre Alves,
«Artistas e artífices nas dioceses de Lamego e Viseu», Beira Alta, pág. 525-526.

516
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Lourenço Coelho Leitão, desembargador da Relação do Porto, encomendou


a Gonçalo Coelho pintar e dourar e que se encontra no transepto 1084.

Juan Moreno (1565-1637), filho de entalhador e arquitecto de relevo


na área salamantina e tendo projectado obras como o desaparecido portal
de São Francisco-o-Grande ou a sacristia de Santo Estevão em Salamanca –
considerada a sua obra maior – especializou-se como «arquitecto de
retábulos» 1085.
O seu debuxo para a catedral viseense segue modelos próximos da
cultura arquitectónica do foco «vallisoletano», dentro do designado
«herrerianismo» que domina a arquitectura espanhola na segunda metade
do século XVI e primeira metade da centúria seguinte. Elevando-se em três
registos, parte de um arco abatido que encerra um nártex com molduras em
losangulos e elementos decorativos em «ponta de diamante», para terminar
em frontão triangular, pautando todo o portal a linguagem dórica de risco
livre e austero, tornando visível a síntese escorialesca em todo o desenho
do portal monumental.

1084
Segundo Alexandre Alves, A Sé-Catedral de Santa Maria de Viseu, pág. 68-69.
1085
Foi objecto de estudo por Alfonso Rodriguez Ceballos, «Juan Moreno y la Arquitectura Protobarroca
en Salamanca», Archivo Español de Arte, Vol. XLIX, Madrid, 1977.

517
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

518
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

Índice do Volume I

Introdução ____________________________________ pág. III

1. HISTORIOGRAFIA ARTÍSTICA, PERIODIZAÇÃO


E PROBLEMÁTICA ESTILÍSTICA _________________ pág. 1

1.1. A problemática em torno da periodização _________ pág. 3


1.1.1. O paradigma renascentista
1.1.2. O nascimento da consciência maneirista
1.1.3. O «estilo chão» e a sua rama
1.2. Os conceitos de Classicismo e Maneirismo: vantagens e
desvantagens na sua aplicação conceptual _________ pág. 16
1.2.1. «Clássico» e Classicismo
1.2.2. «Maniera» e Maneirismo
1.3. Maneirismo, «Classicismo» e a circunstância portuguesa
_____________________________________________ pág. 22
1.3.1. O «estado da arte» entre 1550-1650
1.3.2. A «opção maneirista», «italianismo» e «flamenguismo»
1.3.3. O «classicismo» nacional
1.3.4. Da utilidade do conceito de «estilo chão» como supra-estilo

2. DE PEDREIRO A ARQUITECTO ____________________ pág. 34

2.1. O conceito de Arquitecto da Antiguidade à Idade Moderna

2.1.1. A Antiguidade Clássica __________________________ pág. 35


2.1.1.1. A origem do étimo «arquitecto»
2.1.1.2. O «Kánon» da Arte e da Arquitectura
2.1.1.3. A posição social do arquitecto e o «mito do artista»
2.1.1.4. A Arquitectura segundo Vitrúvio
2.1.2. A Idade Média _________________________________ pág. 42
2.1.2.1. A herança do mundo antigo
2.1.2.2. A anonímia artística medieval
2.1.2.3. O Gótico e o «mestre construtor» baixo-medievo
2.1.2.4. A «geometria como saber»: de Villard de Honnecourt às
vistorias à Catedral de Milão
2.1.2.5. A «literatura de oficina»
2.1.2.6. O desenho medieval e as suas modalidades
2.1.2.7. A posição social do mestre construtor e os grémios medievais
2.1.3. O Renascimento e Maneirismo ____________________ pág. 55
2.1.3.1. O caso italiano
2.1.3.1.1. O conceito de arquitecto no «Quattrocento»

519
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

2.1.3.1.2. O conceito vitruviano de arquitecto


2.1.3.1.3. O «arquitecto humanista» segundo Leon Battista Alberti
2.1.3.1.4. A posição social do arquitecto
2.1.3.1.5. O «paradigma do arquitecto» no «Cinquecento»
2.1.3.1.6. A síntese vazariana e as artes do «disegno»
2.1.3.1.7. As Academias da Arte
2.1.3.2. O caso francês
2.1.3.3. O caso espanhol
2.1.3.3.1. O conceito de arquitecto e a consciência da modernidade
2.1.3.3.2. O ensino da arquitectura
2.1.3.3.3. A «traça» e o desenho arquitectónico
2.1.3.3.4. A Academia Real Matemática

2.2. A realidade portuguesa entre 1550 e 1640 __________ pág. 80

2.2.1. O Pedreiro ____________________________________ pág. 80


2.2.1.1. Aprendizagem
2.2.1.2. Examinação
2.2.1.3. O Regimento dos Pedreiros
2.2.1.4. Juiz do Ofício de Pedreiro
2.2.1.5. A Oficina de Pedraria e a organização do trabalho
2.2.2. Do Mestre de Pedraria a Arquitecto ________________ pág. 98
2.2.2.1. O mestre de pedraria «vestido» de arquitecto
2.2.2.1.1. Conceito, estatuto e posição social do mestre de pedraria
2.2.2.1.2. A prática do «debuxo» na primeira metade do século XVI
2.2.2.1.3. O conhecimento técnico-prático do mestre de pedraria
2.2.2.2. A hierarquização régia dos cargos de «mestre de pedraria»
2.2.2.2.1. O «Mestre de Obras dos Paços Régios»
2.2.2.2.2. O «Mestre de Obras da Comarca do Alentejo»
2.2.2.2.3. O «Mestre de Obras» de Patrocínio Régio
2.2.2.2.4. O antecedente do «Mestre de Todas as Obras Régias»
2.2.3. O Arquitecto __________________________________ pág. 114
2.2.3.1. O conceito de arquitecto e a «consciência de modernidade»
2.2.3.2. A prática do «debuxo» na segunda metade de Quinhentos
2.2.3.2.1. Definições terminológicas da representação do projecto
arquitectónico
2.2.3.2.2. A «praxis» do desenho arquitectónico na segunda metade do
século XVI
2.2.3.3. A hierarquia dos mestres arquitectos portugueses
2.2.3.3.1. O «arquitecto/engenheiro-mor» do reino de Portugal
2.2.3.3.2. O «Mestre das Ordens Militares»
2.2.3.3.3. O «Mestre de Obras» de Patrocínio Régio

520
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

3. A TRATADÍSTICA E O ENSINO DA ARQUITECTURA


_______________________________________________ pág. 129

3.1. Tratados e Teóricos da Arquitectura _____________ pág. 131

3.1.1. O Vitruvianismo _______________________________ pág. 131


3.1.1.1. O significado do Vitruvianismo
3.1.1.2. As edições e traduções modernas de Vitrúvio
3.1.1.3. Os tratados de arquitectura quatrocentistas
3.1.1.4. Filologismo, Arqueologia e a Academia Vitruviana
3.1.1.5. Para além de Vitrúvio: a procura da «ordem» nos tratados
quinhentistas italianos

3.1.2. O «Serlianismo» _______________________________ pág. 144


3.1.2.1. O restrito significado de «serlianismo»
3.1.2.2. Sebastiano Serlio
3.1.2.2.1. Dados biográficos e obra prática
3.1.2.2.2. A fortuna crítica a Serlio e o Classicismo
3.1.2.2.3. A produção teórica
3.1.2.2.4. O «Cânone» das cinco ordens da arquitectura
3.1.2.2.5. O carácter alegórico e iconológico das ordens arquitectónicas
3.1.2.2.6. A autoridade vitruviana e a «ellettione del bello»
3.1.2.2.7. «Licença» e «Modestia»
3.1.2.3. Breve nota sobre o «serlianismo» em França e Espanha

3.2. A Tratadística, o Ensino e a Aprendizagem em Portugal


_____________________________________________ pág. 162

3.2.1. A divulgação dos tratados de arquitectura __________ pág. 162


3.2.1.1. Os tratados de arquitectura nas bibliotecas portuguesas
3.2.1.1.1. Um exemplo: a livraria do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra

3.2.2. O Humanismo e a cultura vitruviana ______________ pág. 168


3.2.2.1. A tradição filológica humanista portuguesa e a literatura
vitruviana
3.2.2.1.1. O «não-vitruvianismo» em Portugal

3.2.3. De Sagredo a Serlio: a influência da tratadística em Portugal


_____________________________________________ pág. 175
3.2.3.1. O «Medidas del Romano» de Diego de Sagredo
3.2.3.2. Sagredo em Portugal e o entendimento do «ao romano»
3.2.3.2.1. As edições portuguesas do «Medidas del Romano»

521
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

3.2.3.2.2. Sagredo e a realidade da arquitectura portuguesa no virar da


primeira para a segunda metade do século XVI
3.2.3.3. O «ao romano» como declinação do nosso «Primeiro
Renascimento»
3.2.3.4. A «revolução serliana». A segunda metade do século XVI e a
teoria praticada como modernidade
3.2.3.4.1. O conhecimento teórico de Serlio
3.2.3.4.2. O conhecimento prático de Serlio

3.2.4. O ensino da arquitectura em Portugal: da aprendizagem do


«antigo» à «aula de arquitectura» _________________ pág. 193
3.2.4.1. A aprendizagem do «antigo»
3.2.4.1.1. A vinda de artistas estrangeiros para Portugal
3.2.4.1.2. Realidade e quimera na problemática das viagens de
aprendizagem a Itália
3.2.4.2. O ensino teórico da arquitectura: da tradição à «aula de
arquitectura» do Paço da Ribeira
3.2.4.2.1. A tradição do ensino «científico» e a «aula de matemática» do
Cosmógrafo-mor do reino
3.2.4.2.2. Da «lição dos moços fidalgos» à «aula de esfera» de Santo
Antão
3.2.4.2.3. A «aula de arquitectura» do Paço da Ribeira

3.2.5. A produção teórica portuguesa ___________________ pág. 219

3.2.5.1. O «vanguardismo» de Francisco de Holanda ______ pág. 222


3.2.5.1.1. Dados biográficos
3.2.5.1.1. As «ciências do pintor» e o paradigma vitruviano
3.2.5.1.2. «Da pintura arquitecta»
3.2.5.1.3. Francisco de Holanda e Sebastiano Serlio
3.2.5.1.4. O «Da fabrica que falece à cidade de Lisboa»
3.2.5.1.5. Conclusão

3.2.5.2. Dois anónimos manuscritos da segunda metade do século XVI


___________________________________________ pág. 234
3.2.5.2.1. O manuscrito da Biblioteca Nacional
3.2.5.2.1.1. A razão da «autoria»
3.2.5.2.1.2. Influências teóricas
3.2.5.2.1.3. Análise descritiva da obra
3.2.5.2.1.4. O «paradigma vitruviano»
3.2.5.2.1.5. Conclusão
3.2.5.2.2. «Proposiçois mathematicas»
3.2.5.2.2.1. Dedicatória e interlocução ao leitor

522
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

3.2.5.2.2.2. Influências teóricas


3.2.5.2.2.3. A «razão da geometria» e uma invenção
3.2.5.2.2.4. Conclusão

3.2.5.3. O «manual vignolesco» de Filippo Terzi __________ pág. 258


3.2.5.3.1. Introdução
3.2.5.3.1. A ordem arquitectónica «vignolesca»
3.2.5.3.2. Ornatos e modelos alternativos

3.2.5.4. O «Livro Primeiro da Architectura Naval» de João Baptista


Lavanha ____________________________________ pág. 264
3.2.5.4.1. Dados biográficos e cargos profissionais
3.2.5.4.2. Fernando Oliveira e João Baptista Lavanha: a teoria ao serviço
da arquitectura naval
3.2.5.4.3. A definição vitruviana da arquitectura segundo Lavanha
3.2.5.4.4. O modelo vitruviano aplicado à arquitectura naval
3.2.5.4.5. Conclusão

3.2.5.5. O Tratado de Arquitectura de Mateus do Couto _____ pág. 281


3.2.5.5.1. Introdução
3.2.5.5.2. Influências teóricas
3.2.5.5.3. Análise descritiva da obra
3.2.5.5.4. Teoria da Beleza como «mimesis»
3.2.5.5.5. O «Tractado de Prospectiva»
3.2.5.5.6. Conclusão

3.2.5.6. A produção teórica fora da Corte ________________ pág. 301


3.2.5.6.1. O «manual de arquitectura» de Pedro de Araújo
3.2.5.6.2. A «Fabrica e uso da Ratio latino» de Pero Vaz Pereira

4. A PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA: O MODELO NACIONAL DA


«IGREJA-SALÃO» _________________________________ pág. 311

4.1. Origem e perenidade do modelo «hallenkirche» ____ pág. 313


4.2. A tradição «hispânica» e as teorias estereotómicas __ pág. 315
4.3. Caracterização estilística e valor de «modernidade» _ pág. 317
4.4. Miguel de Arruda e as Sés Quinhentistas __________ pág. 318
4.4.1. Sé de Miranda do Douro
4.4.2. Sé de Portalegre
4.4.3. Sé de Leiria
4.5. Os modelos regionais ___________________________ pág. 327
4.5.1. Santo Antão de Évora
4.5.2. Santa Maria do Castelo de Estremoz

523
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

4.5.3. Misericórdia de Beja


4.5.4. Misericórdia de Santarém
4.6. Conclusão ____________________________________ pág. 332

5. A CONTRA-REFORMA E A ARQUITECTURA _________ pág. 337

5.1. A Contra-Reforma, a Arte e a Arquitectura _______ pág. 339


5.1.1. O novo moralismo tridentino ________________________ pág. 339
5.1.2. A imagética tridentina e a teoria do «decorum» _________ pág. 341
5.1.3. A Contra-Reforma e a Arquitectura __________________ pág. 344
5.1.3.1. A arquitectura sacra segundo Carlo Borromeo
5.1.3.2. O templo cristão segundo Pietro Cataneo
5.1.3.3. Neo-medievalismo arquitectónico
5.1.4. A Companhia de Jesus _____________________________ pág. 351
5.1.4.1. O «modo nostro» contra o «estilo jesuítico»
5.1.4.2. A «casa-mãe» jesuíta: Vignola e o «Gesù» de Roma

5.2. Portugal e a Contra-Reforma ___________________ pág. 355


5.2.1. O contexto nacional da Reforma Católica _____________ pág. 355
5.2.2. A Companhia de Jesus em Portugal __________________ pág. 359
5.2.2.1. A arquitectura jesuítica portuguesa: da «church-box» ao modelo
romano
5.2.2.1.1. Colégio do Espírito Santo de Évora
5.2.2.1.2. Igreja de São Roque de Lisboa
5.2.2.1.3. Colégio de São Paulo de Braga
5.2.2.1.4. Colégio de Santarém
5.2.2.1.5. Colégio de Jesus de Coimbra
5.2.2.1.6. Colégio de Santo Antão-o-Novo de Lisboa
5.2.2.1.7. Colégio de São Lourenço do Porto

6. A ARQUITECTURA E ENGENHARIA MILITAR _______ pág. 425

6.1. A figura do «engenheiro» ou arquitecto militar ____ pág. 427


6.2. Um tratado ibérico de engenharia militar _________ pág. 431
6.3. A realidade portuguesa entre 1550 e 1650 _________ pág. 436
6.3.1. A criação do cargo de «mestre das obras dos muros e fortalezas»
________________________________________________ pág. 438
6.3.2. Fortificadores portugueses em meados de Quinhentos
________________________________________________ pág. 441
6.2.3.Os mestres italianos ___________________________ pág. 443
6.2.3.1. Tomaso Benedetto da Pesaro
6.2.3.2.Filippo Terzi
6.2.3.3.Giacomo Palearo

524
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

6.2.3.4.Giovanni Battista Cairati


6.2.3.5.Tiburzio Spannocchi
6.2.3.6.Giovanni Vicenzo Casale
6.2.3.7.Leonardo Turriani
6.2.4. A «aula de arquitectura» e a arquitectura militar _________ pág. 464
6.2.4.1.Francisco de Frias
6.2.4.2.António Simões
6.2.4.3.Henrique de França
6.2.4.4.Diogo Paes

7. UM VEÍCULO-OUTRO: A GRAVURA E A ARQUITECTURA DE


PENDOR «FLAMENGO» ____________________________ pág. 471

7.1. A Gravura como veículo de modernidade: do «grottesche»


italiano à «cartela» flamenga ____________________ pág. 473
7.1.1. O «grottesche» italiano
7.1.2. O «grottesche» reinventado: a «cartela flamenga»
7.1.3. Os conceitos de grotesco e «brutesco» português
7.1.4. A penetração dos sistemas decorativos em Portugal

7.2. A Arquitectura de pendor flamengo ______________ pág. 481


7.2.1. Hans Vredeman de Vries e a estampa flamenga como motivo
arquitectónico
7.2.2. O «flamenguismo» e a arquitectura maneirista portuguesa
7.3. A «arquitectura efémera» e a divulgação da estética nórdica
_____________________________________________ pág. 486

8. A CIRCUNSTÂNCIA DO PORTUGAL «FILIPINO» ______ pág. 491

8.1. O Classicismo à «maneira espanhola» ____________ pág. 493


8.1.1. O nascimento do «estilo severo» ou «desornamentado»
8.1.2. «Herrerianismo», Trento e experimentalismo maneirista
8.2. Impactos e influência espanhola na arquitectura portuguesa
_____________________________________________ pág. 500
8.2.1. Os arquitectos régios castelhanos em Portugal
8.2.2. Breve nota acerca das influências escurialenses na arquitectura
portuguesa
8.2.3. A Arquitectura Carmelita: a «importação de um modelo»
8.2.3.1. As directivas «carmelitas»
8.2.3.2. Os modelos castelhanos
8.2.3.3. Os modelos portugueses
8.2.3.3.1. Convento de Nossa Senhora dos Remédios de Lisboa
8.2.3.3.2. Convento de Nossa Senhora dos Rémédios de Évora

525
«O Eupalinos Moderno». Teoria e Prática da Arquitectura Religiosa em Portugal

8.2.3.3.3. Colégio de São José dos Marianos de Coimbra


8.2.3.3.4. Convento do Carmo de Aveiro
8.2.3.3.5. Convento do Carmo do Porto
8.2.4. Uma «excepção à regra»: Juan Moreno e a fachada monumental da
Sé de Viseu

526

Você também pode gostar