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DA HISTÓRIA
CURSOS DE GRADUAÇÃO – EAD
Historiografia e Teoria da História – Profa. Dra. Renata Cardoso Belleboni Rodrigues
HISTORIOGRAFIA E TEORIA
DA HISTÓRIA
Batatais
Claretiano
2013
© Ação Educacional Claretiana, 2010 – Batatais (SP)
Versão: dez./2013
907.2 C84h
ISBN: 978-85-8377-071-8
CDD 907.2
Preparação Revisão
Aline de Fátima Guedes Cecília Beatriz Alves Teixeira
Camila Maria Nardi Matos Felipe Aleixo
Carolina de Andrade Baviera Filipi Andrade de Deus Silveira
Cátia Aparecida Ribeiro Paulo Roberto F. M. Sposati Ortiz
Dandara Louise Vieira Matavelli Rodrigo Ferreira Daverni
Elaine Aparecida de Lima Moraes Sônia Galindo Melo
Josiane Marchiori Martins
Talita Cristina Bartolomeu
Lidiane Maria Magalini
Vanessa Vergani Machado
Luciana A. Mani Adami
Luciana dos Santos Sançana de Melo
Luis Henrique de Souza Projeto gráfico, diagramação e capa
Patrícia Alves Veronez Montera Eduardo de Oliveira Azevedo
Rita Cristina Bartolomeu Joice Cristina Micai
Rosemeire Cristina Astolphi Buzzelli Lúcia Maria de Sousa Ferrão
Simone Rodrigues de Oliveira Luis Antônio Guimarães Toloi
Raphael Fantacini de Oliveira
Bibliotecária Tamires Botta Murakami de Souza
Ana Carolina Guimarães – CRB7: 64/11 Wagner Segato dos Santos
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forma e/ou qualquer meio (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação e distribuição na
web), ou o arquivamento em qualquer sistema de banco de dados sem a permissão por escrito do
autor e da Ação Educacional Claretiana.
CRC
Ementa––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
O processo de mudanças nos paradigmas epistemológicos da historiografia: alte-
rações após a incorporação de novos temas, novos métodos e novas linguagens
pelos historiadores; vertentes teóricas do conhecimento histórico pós-moderno:
séculos 20 e 21; a História enquanto narrativa; a História enquanto discurso; a
História enquanto literatura e ficção; História e Representação.
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1. INTRODUÇÃO
Seja bem-vindo ao estudo de Historiografia e Teoria da His-
tória!
Nos Cadernos de Referência de Conteúdos Metodologia da
História I e II, você foi apresentado a algumas correntes historiográ-
ficas, cuja última representante estudada foi a Escola dos Annales.
No entanto, você igualmente foi iniciado nas discussões pós-mo-
dernas. O intuito deste novo Caderno de Referência de Conteúdo é
aprofundar seus conhecimentos sobre as mudanças nos paradigmas
da História ocorridos no contexto da Nova História Cultural.
10 © Historiografia e Teoria da História
será possível que você inicie seus estudos tendo um panorama ge-
ral do que será discutido no decorrer deste livro-texto.
Pronto para mais uma etapa de aprimoramento de seus co-
nhecimentos históricos? Então, vamos juntos construir e recons-
truir alguns conceitos. Vamos com Mnemosine caminhar por te-
mas já visitados e adentrar em algumas discussões novas.
Você está sendo apresentado ao Caderno de Referência de
Conteúdo Historiografia e Teoria da História, que tem como objeti-
vo apresentar o processo de mudanças ocorridas nos paradigmas
epistemológicos da historiografia – mais especificamente, aque-
las alterações que tiveram início após a incorporação de novos te-
mas, novos métodos e novas linguagens pelos historiadores, em
especial por aqueles da Escola dos Annales. Nessa etapa, você terá
acesso às vertentes teóricas do conhecimento histórico pós-mo-
derno: final do século 20 e início do 21. Terá a oportunidade de
aferir os diferentes conceitos de História que foram trabalhados
e discutidos nesse período: História enquanto narrativa; História
enquanto discurso; História enquanto literatura e ficção e História
e Representação.
Bem, desde o início deste curso você tem lido, com certa
frequência, expressões como “historiografia”, “pesquisas histo-
riográficas”, “abordagens historiográficas; elas lhe são familiares,
não? Se já não se tornaram lugar comum, irão se tornar nesta reta
final e no decorrer das pesquisas que você realizará após o fim da
Graduação, pois lembre-se: um professor de História deve ser um
pesquisador bem informado, em constante atualização, que esteja
“por dentro” das discussões que ocorrem no meio acadêmico na-
cional ou estrangeiro. Mas você aprendeu os significados desses
termos? Saberia identificar e explicar os diferentes conceitos de
História e os tipos de historiografia existentes? Este Caderno de
Referência de Conteúdo irá auxiliá-lo nessa tarefa.
Outros suportes a que poderá recorrer para rever conceitos
e teorias são os dos Cadernos de Referência de Conteúdos Meto-
© Caderno de Referência de Conteúdo 13
Esse conceito não é fruto dos anos 1960-1990, mas ganha força
com a publicação do livro A condição pós-moderna, do filósofo
francês Jean-François Lyotard, em 1979. Em resumo, no pós-mo-
dernismo, toda e qualquer fonte deve ser pensada como um texto
a ser lido, em que os significados estão aí para ser decodificados
ou desconstruídos; portanto, não resta dúvida de que o real ou a
realidade não podem ser atingidos e, em outras palavras, de que a
História se tornou um discurso verossímil.
Essa condição pós-moderna vai contra alguns paradigmas
ditos da modernidade. Passa-se, definitivamente, a se divulgar a
ideia de que o conhecimento não é objetivo, que é, ao contrário,
subjetivo, que a verdade é relativa, que há mundos e passados
diferentes e que as explicações são, de fato, interpretações. O de-
terminismo e o reducionismo são rejeitados e a história global e a
história universal são descartadas. Afirma-se, ainda, que a História
não estuda o Homem, pois este deu lugar aos homens, mulheres,
crianças, escravos, homossexuais etc.
O segundo esclarecimento refere-se à Nova História Cultu-
ral. Seus representantes alçaram voos bem altos nessas contendas
contra os tradicionais paradigmas da historiografia. Lyn Hunt, Mi-
chel de Certeau, Roger Chartier, Michel Foucault e Hyden White
são alguns dos nomes que podemos citar. E esses mesmos nomes
mostram-nos que esse movimento não foi exclusivo no meio aca-
dêmico francês; pelo contrário, trata-se de um movimento inter-
nacional que encontrou eco na Inglaterra, Estados Unidos, Itália,
Rússia, Alemanha, Holanda e mesmo no Brasil. Mas o que carac-
teriza a Nova História Cultural? O que ela apresenta de novo ou
repensado? Quais suas contribuições para a difícil tarefa do his-
toriador diante do passado que não se revela, mas que clama por
olhares?
Como o próprio nome já indica, o privilégio ao cultural é a
característica-chave. Não há sugestões de novas fontes, mas de
nova abordagem, a antropológica, o que significa afirmar que o
nas prisões, nas escolas, na família, nos asilos, nas fábricas, nos
exércitos e não só no Estado e na Igreja. Os interstícios do poder
podem ser encontrados (e devem ser procurados pelos historia-
dores) nos sentimentos, na consciência, na intuição. Mas ele não
estudou o poder pelo poder. Ele buscou compreender, por meio
dos discursos, como o poder possibilitou novas práticas, novas
tecnologias de poder: como passamos da internação à prisão, da
liberdade à disciplina.
Contudo, não foi somente rumo à abordagem ou ao uso de
novos conceitos que os debates se dirigiram. A forma da escrita da
História também foi questionada. E, nesse contexto, a relação da
História com a Literatura entrou em questão. A proposta naquele
momento, dos anos 1970-1980, foi a da narrativa, mesmo que esta
levantasse questionamentos sobre a cientificidade da História. Afi-
nal, escrever uma narrativa é também escrever uma ficção, e, se
é ficção, não é história. O medo da ficção não era, porém, o único
que vagava pelos escritórios das universidades; havia, também, o
receio do retorno da narrativa histórica tradicional que enfatizava
os grandes feitos dos grandes homens em grandes acontecimen-
tos. O que vimos, no entanto, foi uma nova narrativa que conside-
rou o cotidiano das pessoas comuns e os acontecimentos triviais.
Uma narrativa de curtíssima duração, absorta num acontecimen-
to, e não mais a velha narrativa explicativa à procura de causas e
efeitos.
O crítico literário Hayden White foi um dos responsáveis pelo
debate que veementemente foi travado em torno da não distinção
entre História e ficção. Ele não relutou em considerar as narrativas
históricas como ficções verbais, cujos conteúdos são tão inventa-
dos como achados, e cujas formas apresentam muito em comum
com as narrativas literárias. Assim, de acordo com seu pensamen-
to, é preciso que o historiador levante algumas questões, como:
qual o tipo de modelo linguístico utilizar? E, dentre os tropos do
discurso (metáfora, metonímia, sinédoque e a ironia), qual empre-
gar? Se assim o historiador faz, ou seja, se ele se utiliza de tropos,
© Caderno de Referência de Conteúdo 21
Glossário de Conceitos
As definições a seguir são importantes para a compreensão
do conteúdo a ser estudado no Caderno de Referência de Conteú-
do Historiografia e Teoria da História. Elas também poderão ser
encontradas no interior das unidades, no entanto, ter acesso a
elas antes de iniciar a sua jornada rumo ao conhecimento histo-
riográfico poderá facilitar a sua compreensão e construção de seu
conhecimento. Vale ressaltar que os conceitos aqui utilizados con-
sideram o contexto historiográfico.
1) Cliometria: tendência no interior da História Econômica
que aplica a técnica da análise estatística e da econome-
tria (análise quantitativa) à História.
2) Discurso: um jogo de escritura, de leitura, de troca; em-
preendimento mediador; a forma por meio da qual os
indivíduos proferem e apreendem a linguagem como
uma atividade produzida historicamente determinada;
a prática da linguagem; prática instituinte, criadora de
acontecimentos, imagens e referenciais de comporta-
mento.
3) Episteme: são tendências particulares de um período
histórico.
4) Escolasticismo dogmático: Escolástica – linha da filoso-
fia medieval; difundia a ideia de que todas as respostas
podem ser encontradas nas Sagradas Escrituras ou nas
obras de religiosos. Escolasticismo dogmático marxista:
todas as repostas podem ser encontradas no conflito en-
tre as classes sociais.
5) Estrutura: tudo o que em uma sociedade, ou numa eco-
nomia, tem uma duração suficientemente longa; é o que
muda lentamente.
6) Genealogia: deve ser compreendida como proveniência,
e não como origem primeira.
© Caderno de Referência de Conteúdo 23
HISTORIOGRAFIA E
TEORIA DA HISTÓRIA
Historiografia na Antiguidade
Heródoto e Tucídides
História enquanto pesquisa
Historiografia no Medievo
Homens, obras e
acontecimentos vistos como
resultados dos desígnios
divinos.
Historiografia na Idade
Moderna
Positivismo e Escola Metódica
Historiografia
Contemporânea
Contribuições a partir
dos Annales
Novos
contextos
Nova História
História
Homens e Cultural:
histórias práticas e
representações
Mentalidades
Questões Autoavaliativas
No final de cada unidade, você encontrará algumas questões
autoavaliativas sobre os conteúdos ali tratados. Responder, discu-
tir e comentar essas questões, relacionando-as com a prática do
ensino de História, pode ser uma forma de você medir o seu co-
nhecimento, de ter contato com questões pertinentes ao assunto
tratado e de lhe ajudar na preparação para a prova final, que será
dissertativa. Mais ainda: é uma maneira privilegiada de você ad-
quirir uma formação sólida para a sua prática profissional.
Bibliografia Básica
É fundamental que você use a Bibliografia Básica em seus
estudos, mas não se prenda só a ela. Consulte, também, as biblio-
grafias complementares.
Dicas (motivacionais)
O estudo deste Caderno de Referência de Conteúdo convida
você a olhar, de forma mais apurada, a Educação como processo
2. CONTEÚDOS
• Conceito e tipos de historiografia.
• A produção historiográfica no decorrer dos tempos (a
partir de Heródoto até Annales e História Nova).
Busto de Heródoto
Busto de Tucídides
Políbio
Salústio
Salústio (Caio Salústio Crispo – 86-35 a.C), historiador e
político latino, foi um dos narradores dos acontecimen-
tos políticos do final do período republicano de Roma e
considerado, por alguns estudiosos, como o introdutor
da história filosófica na historiografia latina. Após uma
conturbada passagem pela política romana como go-
vernador da Numídia, norte da África, sob a proteção de
César, dedicou-se somente à atividade de escritor. Suas
obras mais conhecidas são Conjuração de Catilina (Lúcio
Sérgio Catilina, tido como um político sem escrúpulos) e
Vida de Jugurta (rei da Numídia), narrativas históricas de
fatos acontecidos em Roma (imagem e texto disponíveis em: <http://www.net-
saber.com.br/biografias/ver_biografia_c_3108.html>. Acesso em: 25 maio 2009.
Tácito
Cícero
Cícero (Marco Túlio Cícero – 106 a.C – 43 d.C.) nasceu
numa antiga família da classe equestre e, chegando à
maioridade, foi entregue aos cuidados do célebre senador
e jurista romano Múcio Cévola, que o pôs a par das leis
e das instituições políticas de Roma. Estudou filosofia e
oratória. Foi questor, edil, pretor e cônsul. Com o primeiro
Triunvirato e fora da política, voltou às atividades forense
e literária. Foi exilado na Grécia e voltou de forma quase
triunfal. Tentou novamente a política, mas sem tanto su-
cesso. Autor das obras: Sobre os Fins, Controvérsias Tus-
culanas, Sobre os Deveres, Os Tópicos, Os Acadêmicos,
A Natureza dos Deuses, Sobre a Arte Adivinhatória, Sobre
o Destino, Sobre o Orador, e as mais conhecidas: A Re-
pública, redigida em 51 a.C., e Sobre as Leis (imagem e texto disponíveis em:
<http://www.pucsp.br/~filopuc/verbete/cicero.htm>. Acesso em: 25 maio 2009).
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Aristóteles
Beda
Isidoro de Sevilha
Marc Bloch
Lucien Febvre
Jacques Le Goff
Michel Vovelle
Robert Mandrou
4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
“Historiografia”, “pesquisas historiográficas”, “abordagens
historiográficas” – esse termo e essas expressões lhe são familia-
res, não? Em praticamente todo o material disponibilizado a você
até o momento e em tantos outros ainda por vir, os conceitos de
“historiografia” e “historiográfico(a)” tornaram-se e irão se tornar
lugar comum. Mas você apreendeu o(s) significado(s) desses ter-
mos? Saberia identificar e explicar os tipos de historiografia exis-
tentes? Esses são os propósitos desta unidade: levá-lo a identificar
e a entender a historiografia e as suas aplicações.
Há, também, outro objetivo a ser alcançado: rever algumas
questões já estudadas por você. Nos Cadernos de Referência de
Conteúdos Metodologia da História I e II, você entrou em contato
com as discussões historiográficas acerca das teorias da História a
partir de Heródoto até os pós-modernos – estes últimos vistos bre-
vemente. Desse modo, esta unidade tem o intuito de invocar Mne-
mosine, a personificação da memória, para contextualizá-lo dian-
te do que veremos nas próximas unidades. Rememorando, ficará
mais fácil entender os debates sobre as mudanças nos paradigmas
da História que vêm ocorrendo nos grandes centros acadêmicos
nacionais e estrangeiros, essencialmente nas últimas décadas.
É importante salientar que veremos apenas alguns ele-
mentos-chave desse processo historiográfico. Esta unidade não
objetiva retomar todo o conhecimento já adquirido nem mesmo
5. O QUE É HISTORIOGRAFIA?
Eis um conceito simples de se explicar: em resumo, historio-
grafia é a escrita da História. Quem dera ser realmente tão sim-
ples. Este é um daqueles momentos em que ditados populares não
são meros clichês: “a simplicidade é complexa”. O problema reside
no fato de que escrever a História implica considerar contextos di-
ferentes (do tema, do historiador), ideologias diversas (do histo-
riador, da editora, do público), fontes utilizadas para a pesquisa
(escritas, orais, iconográficas), questionamentos dirigidos a essas
fontes, teoria empregada para análise.
Assim, é interessante que você tenha acesso a distintas
definições de historiografia, para além daquela já citada. Vejamos
dois casos!
“A historiografia seria assim a melhor vacina contra a inge-
nuidade” (SILVA; SILVA, 2006, p. 189).
O que apreender de uma assertiva como essa? Se aceitarmos
que historiografia é o questionamento acerca da produção e da
escrita da História, sobre o(s) discurso(s) dos historiadores e seus
métodos, compreenderemos que, se conhecemos o que influencia
os historiadores em suas escolhas de temas a abordar e na teoria
a seguir, se conhecemos o resultado de suas pesquisas, se temos
acesso aos erros e acertos por eles elencados, a ingenuidade não
© U1 - Historiografia, Teoria da História e Retrospectiva istoriográfica 37
6. A HISTORIOGRAFIA NA ANTIGUIDADE
Antes de adentrar na produção de Heródoto e Tucídides, é
importante entendermos o contexto no qual a escrita da História
nasceu: aquele da oralidade e, também, da mitologia.
Para o Grego das épocas arcaica e clássica, a palavra repre-
sentava o poder por excelência. Vejamos o que o helenista Jean-
-Pierre Vernant tem a dizer a esse respeito (o termo “Grego” é uti-
lizado aqui em maiúsculo não só para caracterizar os habitantes da
Grécia, mas igualmente compreendendo-o como uma categoria
que inclui homens e mulheres, crianças, jovens e adultos, todos
incluídos dentro de um contexto social e cultural maior):
O que implica o sistema da polis é primeiramente uma extraordiná-
ria proeminência da palavra sobre todos os outros instrumentos de
poder... A palavra não é mais o termo ritual, a fórmula justa, mas
o debate contraditório, a discussão, a argumentação (VERNANT,
1996, p. 34).
riam suceder. Por isso, a poesia é algo de mais filosófico e mais sério
do que a História, pois prefere aquele principalmente o universal, e
esta o particular (ARISTÓTELES. 2003, 9, 50).
7. A HISTORIOGRAFIA NO MEDIEVO
A Historiografia no Medievo está intrinsecamente ligada ao
Cristianismo. Basta lembrar, com o auxílio dos Cadernos de Refe-
rência de Conteúdos História Medieval I e II, que, durante muito
tempo, a Igreja foi a detentora do saber. Nesse período, os ho-
mens, suas obras e os acontecimentos só ganhavam importância
se vistos como resultados dos desígnios divinos.
Essa historiografia produziu genealogias, anais (reais e mo-
násticos) e cronologias de acontecimentos sucedidos nos reinados
dos seus senhoris ou da sucessão de abades. Nos documentos, en-
contramos, igualmente, hagiografias e biografias de reis. Os textos
ainda podiam exaltar uma dinastia como condenar aqueles que
não seguiam os preceitos do Cristianismo.
A escrita dessas fontes estava sob a responsabilidade de
hagiógrafos, cronistas, integrantes do clero episcopal ligados ao
poder e por monges. Como exemplo dessa historiografia, citamos:
História Eclesiástica do Povo Inglês, do século 8, de autoria de
Beda, o Venerável, e Etimologias, de Isidoro de Sevilha.
© U1 - Historiografia, Teoria da História e Retrospectiva istoriográfica 43
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Informações complementares sobre a Revue Historique–––––
Em 1870, ocorreu a derrota do exército francês na guerra franco-prussiana.
Com essa derrota, a França sentiu a necessidade de reescrever sua história
e de construir sua identidade. O pensamento histórico alemão teve grande
influência nesse contexto. Dentre os autores mais conhecidos desse período,
citamos: Gabriel Monod, Charles Seignobos e Ernest Lavisse. Todos eles, ao
lado de Theodor Mommsen, serviram de modelo e inspiração para as gerações
posteriores de historiadores franceses.
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9. O SÉCULO 20 E OS ANNALES
Segundo Burke (1991, p. 127):
Da produção intelectual, no campo da historiografia, no século XX,
uma importante parcela do que existe de mais inovador, notável e sig-
nificativo origina-se da França. A historiografia jamais será a mesma.
3ª geração de 1968...
Fase também conhecida por História Nova ou Nova Histó-
ria. Essa geração particularmente nos interessa, pois os questiona-
mentos apresentados no decorrer deste Caderno de Referência de
Conteúdo são oferecidos a nós pelos integrantes desse grupo ou
por estudiosos que questionaram os paradigmas da história a par-
tir das discussões desse grupo. Por esse motivo, um item separado
abordará o tema.
que ele fala sobre a verdade. Esse tema ainda será estudado nas
demais unidades.
Para auxiliá-lo numa reflexão crítica sobre a historiografia,
após alguns fragmentos, foram inseridos comentários direcionan-
do a leitura. Sugerimos que após essa leitura dirigida, você busque
pelo artigo na íntegra e elabore seu próprio bloco de anotações.
O artigo pode ser consultado na íntegra no site disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
-90742005000200008&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 4 jun. 2010.
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Sendo uma obra de crítica, Como se deve escrever a história estava, portanto,
vivamente inserida na prática historiográfica do século II d.C.. O que não significa
necessariamente que os vários exemplos ridículos de histórias e historiadores
citados por Luciano tenham realmente existido. O próprio Luciano parece extre-
mamente irônico ao garantir a veracidade das histórias por ele criticadas:
Dir-lhes-ei então, em detalhes, o quanto me lembro haver ouvido alguns his-
toriadores dizerem recentemente na Jônia, e agora mesmo na Acaia, des-
crevendo essa mesma guerra. E, em nome das Graças, que ninguém deixe
de acreditar no que vou dizer. Pois eu juraria por sua veracidade, se fosse
próprio inserir um juramento em um tratado.
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Para Luciano, o poder romano era uma constatação evidente e explícita: nin-
guém se atreveria a combatê-lo, pois ele já havia submetido e conquistado todos
os povos. Com efeito, a época da vida de Luciano, o século II d.C., foi o auge do
poderio imperial romano, o período dos Antoninos, e a dificuldade de se escrever
uma história justa era que a maioria dos historiadores, “negligenciando contar
o que ocorreu [os eventos], gastam seu tempo no elogio dos chefes e dos ge-
nerais, elevando os nossos até as nuvens e depreciando os do inimigo além de
toda a medida”.
Tratava-se, portanto, de mais do que um panfleto literário. Como se deve escre-
ver a história era, também, um panfleto anti-romano. E a crítica era feita em um
campo que, para a maior parte dos antigos, era naturalmente político, a historio-
grafia:
[...] como o judeu Flávio Josefo traduziu a história da guerra judaica em gre-
go para formar um contraste com o florescimento da mentirosa historiografia
filo-romana, assim – mais ou menos um século mais tarde – o sírio Luciano
reagiu com o opúsculo Como se deve escrever a história na ocasião da
explosão de uma historiografia filo-romana que floresceu a partir da euforia
provocada pelas vitórias de Lúcio Vero.
Luciano, embora não critique os romanos diretamente nem uma vez, resume
seus preceitos para a história dizendo que é necessário escrever a história “com
o verdadeiro […] mais do que com a adulação [kolakeía]”. Portanto, o alvo das
críticas de ambos eram os historiadores aduladores, intelectuais que estavam
mais preocupados com os favores dos poderosos do que com a narrativa dos
eventos ou com o rigor histórico, as preocupações de um verdadeiro historiador.
Além disso, ao escrever em grego, ambos os autores visavam, evidentemente,
a um público que falava grego e, certamente, suas críticas eram dirigidas aos
historiadores que escreveram histórias romanas em grego. Ora, qual seria a re-
lação possível entre esses intelectuais gregos e seus senhores romanos senão
a adulação e a troca de favores?
Podemos ler, assim, em Luciano, uma forte oposição entre a verdade que a his-
tória deveria possuir e a adulação que, na maior parte dos casos, era o que se lia
nas narrativas dos historiadores. A oposição central do Como se deve escrever
a história não é, portanto, entre verdade e mentira, como poderíamos pensar
inicialmente; é entre verdade e adulação, pois a história era um assunto político
que exigia imparcialidade e justiça.
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Verdade x mentira... história x ficção? Será que podemos
fazer tal associação? Se a adulação não é uma escrita justa e ver-
dadeira, ela não pode ser estudada como um produto de uma si-
tuação? Em outras palavras, por que adular? A quem atingir com
o texto? Sabendo que muitos escritores antigos trabalhavam dire-
tamente ligados a órgãos do governo, como analisar a produção
deles? Que cuidados tomar quando da análise desse tipo de do-
cumento?
© U1 - Historiografia, Teoria da História e Retrospectiva istoriográfica 51
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A única ação possível para Luciano contra o poder invencível de Roma e seus
aduladores era a crítica. Em diversas obras de Luciano os filósofos cínicos –
como Diógenes, Crates, Menipo e outros – são encarregados dessa crítica que,
mesmo cômica e caricatural, não perde sua mordacidade. Eles são os médicos
das paixões – as doenças da mente humana – e o próprio Luciano, pela boca de
Diógenes, nos diz qual a função do crítico cínico: “Sou um libertador de homens
e um médico de suas paixões; para dizer tudo, quero ser um profeta da verdade
e da franqueza.”
Não se pode deixar de observar que quase todas essas virtudes aparecem na
definição do historiador ideal em Como se deve escrever a história:
Assim, pois, para mim, deve ser o historiador: sem medo, incorruptível, livre
[eleútheros], amigo da franqueza [parresías] e da verdade [alétheias]; como
diz o poeta cômico, alguém que chame os figos de figos e a gamela de
gamela; alguém que não admita nem omita nada por ódio ou por amizade;
que a ninguém poupe, nem respeite, nem humilhe; que seja juiz equânime,
benevolente com todos até o ponto de não dar a um mais que o devido;
estrangeiro nos livros, sem cidade, independente [autónomos], sem rei, não
se preocupando com o que achará este ou aquele, mas dizendo o que se
passou.
Assim, vemos que, para Luciano, o historiador deve ser uma espécie de filósofo
cínico, livre e sem medo de ser sincero. Mais uma vez, é possível ligar essa pas-
sagem ao problema da adulação: se o historiador cometesse o erro de bajular os
poderosos, estaria abdicando de sua liberdade e de sua auto-suficiência.
Para todos os lados que se olhe, a adulação surge como um pecado a ser evi-
tado. Como a adulação não devia ter espaço em uma obra de história, Luciano,
para criticar esse vício, escreveu um panfleto com a forma de uma teoria da
história. Em Como se deve escrever a história, os aspectos teóricos do tratado
estão a serviço da intenção crítica; uma crítica surgida das necessidades políti-
cas do presente. Se a circunstância da guerra e das histórias adulatórias que ela
gerou não ocorresse, imagino que Luciano não teria escrito um tratado sobre a
história.
Segundo Luciano, seus conselhos funcionavam “de uma maneira dupla”; ensina-
vam os historiadores “a escolher isso e evitar aquilo”. Assim, ele começa a parte
teórica de seu tratado catalogando “os vícios que seguem nos calcanhares dos
historiadores medíocres” e ensinando, precisamente, como não se deve escre-
ver a história.
Não à toa, dada a insistência de Luciano contra a adulação, a primeira distinção
feita por ele é entre a história e o panegírico: com efeito, os historiadores “igno-
ram que não é um istmo estreito que delimita e separa a história do panegírico
[enkómion], mas que há entre os dois uma grande muralha e, como dizem os
músicos, uma distância de duas oitavas”.
A posição de Luciano nessa guerra entre a filosofia e a sofística é clara: ele se
posiciona contra a retórica vazia, simples discursos de aparato, sem conteúdo.
Luciano começou sua carreira como orador e nunca deixou de sê-lo, mas voltou
o arsenal da retórica e da sofística contra os filósofos, sofistas, historiadores,
gramáticos ou qualquer outro que considerasse hipócrita ou mentiroso.
A retórica, para Luciano, deveria ser uma retórica idealizada que seguisse “as
pegadas de Demóstenes, Platão e alguns outros”. Mas a retórica dos antigos
não existia mais; fora substituída por uma retórica das aparências, simples or-
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Juntamente com a retórica sem conteúdo, Luciano renega o prazer dos discursos
e não lhes permite um lugar na história. No entanto, os maus historiadores acha-
vam que era possível distinguir entre o prazeroso e o útil quando se tratava de
história. “Por essa razão”, prossegue, eles “trazem elogios para ela [a história],
para dar prazer e divertimento aos leitores”. Eles não sabem quão longe estão
da verdade, pois “a história tem uma única tarefa e um único objetivo – o que é
útil – e isso deriva somente da verdade”. Por isso, os historiadores “não pode[m]
admitir uma mentira, mesmo em pequenas doses”, enquanto os oradores de sua
época não se importavam em mentir para obter seus resultados: o prazer dos
ouvintes, a fama e a fortuna resultantes do sucesso na carreira declamatória.
No entanto, Luciano concede que possa haver lugar para elogios em uma obra
historiográfica, desde que eles sejam controlados pelo interesse da posteridade
e pela utilidade. Tanto os elogios (épainoi) quanto as censuras (psógoi) deviam
ser “cuidadosos e bem considerados, livres de contaminação pelos informantes,
suportados pela evidência [metà apodeíxeon], curtos e não inoportunos, pois os
envolvidos não estão sendo acusados no tribunal”.
Ou seja, há um lugar para o elogio na historiografia, desde que “seja feito na
hora certa e que se mantenha dentro de limites razoáveis”. O grande problema,
portanto, não parece ser o elogio em si, mas o exagero do seu uso. Além disso,
quando Luciano diz que o elogio na historiografia deve se basear em evidências
(metà apodeíxeon), mostra a antiga filiação daquela com a verdade e afasta-a
ainda mais da retórica epidítica. Com efeito, assim como a apódeixis da retórica
aristotélica, a história deveria partir de fatos verdadeiros e mostrar sua causa.
Isto fica bem claro no prefácio de Heródoto:
[...] esta é a demonstração da investigação [historíes apódexis] de Heródoto
de Halicarnasso, para que nem as coisas feitas pelo homem se apaguem
com o tempo, nem que as grandes e maravilhosas obras, algumas realiza-
das [apodechthénta, i.e., demonstradas] pelos gregos, outras pelos bárba-
ros, se tornem inglórias, tanto em outros respeitos, quanto sobre a causa
[aitíen] pela qual eles moveram guerra uns contra os outros.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Isso poderia significar que o historiador sempre vai acrescentar algo aos fatos,
malgrado sua precisão e imparcialidade? Talvez. Mas creio que isso seria ler Lu-
ciano pensando em Hayden White. Luciano, como todos os antigos, acreditava
na possibilidade de “narrar a história tal como ela aconteceu”. Além do que, não
podemos esquecer que o espelho criticado por Platão e Aristóteles é o objeto,
o disco metálico que reflete imagens. Na literatura grega, no entanto, o espelho
aparece quase sempre com um sentido figurado. E esse sentido sempre se re-
flete sobre o plano moral....
A única tarefa do historiador é contar o que aconteceu. Quando um homem vai
escrever história, deve ignorar todo o resto.
Vê-se novamente nessa passagem a questão da verdade da historiografia opos-
ta à adulação dos poderosos. Como já dissemos antes, essa é a oposição central
em Como se deve escrever a história.
Ao utilizar o espelho como metáfora para a mente do historiador, creio que Lu-
ciano estava, como nos demais exemplos citados, ressaltando o aspecto moral e
ético da história. Pois se o espelho reflete tanto o certo quanto o errado, é tarefa
Notas
*
Professor de Teoria da História e Historiografia no Depto. de História da Uni-
versidade Estadual de Goiás – UEG, Formosa, GO. CEP 73802-000. e-mail:
a.lemelopes@gmail.com
1
Como se deve escrever a história, 2. Luciano se refere à guerra iniciada pelo rei
parto Vologésio IV na primavera do ano 162 e vencida pelo co-imperador Lúcio
Vero quatro anos depois (o triunfo foi celebrado em 12 de outubro de 166). A
edição consultada para as obras de Luciano é Lucian in eight volumes. Londres,
Cambridge, Mass.: William Heinemann, Harvard University, 1913-1959; as tradu-
ções, exceto quando indicado, são minhas.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
5) O que ficou sem uma compreensão mais apurada? Releia e tente sanar suas
dúvidas.
13. CONSIDERAÇÕES
Você estudou, nesta unidade, os diferentes conceitos de his-
toriografia e viu que o conceito de Teoria da História é pratica-
mente indissociável. O fato de esses conceitos serem polissêmicos
indica que as definições são construções históricas, ou seja, a es-
crita da História e tudo o que isso implica, é fruto de uma época
e reflete a forma de pensamento característica dessa época. Ao
mesmo tempo, com essa constatação, um problema é apresen-
tado: podemos afirmar que há uma única forma de pensamento
característica de um período? A resposta leva-nos a um esforço
de reflexão que nos convida a compreender a nossa própria con-
cepção de História e de método histórico. A saída mais pondera-
da para tamanha dificuldade é conhecer as diferentes dinâmicas
históricas que se apresentarão na sequência e, a posteriori, nos
engajarmos nos conceitos que mais se evidenciam pertinentes às
nossas próprias ideias.
Você igualmente foi convidado a recorrer à sua memória e
rever alguns pontos-chave das diferentes etapas do estudo e da
produção historiográfica. Viu, ainda, que o conceito de História foi
modificado no tempo e espaço e foi embutido de ideologias, des-
pido de outras. Do mesmo modo, relembrou que novos objetos e
temáticas ganharam espaço nas pesquisas históricas, assim como
outras disciplinas das Ciências Sociais vieram contribuir (com com-
plementações, métodos e críticas) para com o entendimento do
2. CONTEÚDOS
• Pós-modernismo.
• Micro-história.
• Nova História Cultural.
Carlo Ginzburg
Lynn Hunt
Marcel Mauss
Marcel Mauss (1872-1950). Sociológo e antropólogo francês
que defendeu a teoria de que os elementos centrais de toda
sociedade é o intercâmbio e a dádiva. Uma de suas principais
obras é Ensaio sobre a Dádiva. Aprimore seus conhecimentos
acessando o site disponível em: <http://biografias.netsaber.
com.br/ver_biografia_c_2596.html>. Acesso em: 18 mar.
2010 (imagem <http://www.kalipedia.com/kalipediamedia/
penrelcul/media/200707/18/hisfilosofia/20070718klpprcf
il_220.Ies.SCO.jpg>. Acesso em: 23 jun. 2010).
Claude Lévi-Strauss
Claude Lévi-Strauss (1908) foi um etnólogo e antropólogo
francês que fundou a corrente humanista do estruturalismo
e que acreditava na reconstrução das leis que regem a so-
ciedade. Pretendia demonstrar, a partir do estudo dos mi-
tos, a possibilidade de sistematizar o pensamento humano.
Entre suas obras mais significativas, estão Tristes Trópicos,
Antropologia Estrutural e O Pensamento Selvagem. Você
encontra a biografia completa desse autor no site disponível
em: <http://biografias.netsaber.com.br/ver_biografia_c_605.
html>. Acesso em: 18 mar. 2010 (imagem disponível em:
<http://ouiouioui.wordpress.com/2008/12/06/claude-levi-
-strauss-frances-no-brasil/>. Acesso em: 22 jun. 2010).
Dominick LaCapra
Dominick LaCapra (1939) é historiador americano e pro-
fessor de Estudos Humanísticos na Universidade de Cor-
nell. Seus estudos estão centrados em História Cultural,
História Intelectual e Crítica Literária. É autor de Rethin-
king Intellectual History: Texts, Contexts, Language. Saiba
mais sobre sua vida e obra no site disponível em: <http://
www.people.cornell.edu/pages/dcl3/>. Acesso em: 18 mar.
2010 (imagem disponível em: <http://stormblast.wordpress.
com/2008/10/08/repensar-la-historia-intelectual-y-leer-tex-
to-dominick-lacapra/>. Acesso em: 22 jun. 2010).
Robert Darnton
Robert Darnton (1939) é um historiador cultural norte-america-
no que sempre se preocupou com a divulgação em massa do
conhecimento. Ficou mais conhecido pelo público acadêmico
brasileiro após a publicação de O Grande Massacre dos Ga-
tos, livro em que utiliza a ideia de Geertz, que diz que um rito
pode ser lido como um texto. Para saber mais detalhes sobre o
autor, acesse o site disponível em: <www.cpdoc.fgv.br/revista/
arq/59.pdf>. Acesso em: 18 mar. 2010 (imagem disponível em:
<http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI11475-
15295,00-ROBERT+DARNTON+O+ALUNO+DEPENDE+DE
MAIS+DO+GOOGLE.html.>. Acesso em: 22 jun. 2010).
Jacques Derrida
Jacques Derrida (1930-2004), filósofo francês fortemente
influenciado por Sigmund Freud e Martin Heidegger, foi um
dos mais importantes estudiosos do pós-estruturalismo e
pós-modernismo. Derrida foi o precursor de uma reflexão
crítica sobre a filosofia e seu ensino. Foi, ainda, o criador
do método chamado de desconstrução. Segundo esse
sistema, não se trata de destruir, e, sim, de decompor os
elementos da escrita para descobrir partes do texto que
estão dissimuladas. Em seguida, Derrida criou outros dois
© U2 - O Pós-modernismo: Reação e Contrarreação 63
4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Na língua francesa, tournant critique; em inglês, epistemolo-
gical crises; e, em nosso idioma, tempo de incerteza. Nos últimos
anos, essa tem sido a discussão, um tanto inquietante, na historio-
grafia de um modo geral.
Você acompanhou, na Unidade 1, que mudanças no con-
ceito de História e na prática historiográfica ocorrem desde a
Antiguidade e que, a partir dos anos 1960, as transformações se
acentuaram. Com a terceira geração dos Annales e a Nova Histó-
ria, conhecemos e revimos as abordagens da História das Menta-
lidades; porém, ainda podemos observar que houve uma procura
pela História Quantitativa e tivemos um retorno – se é que assim
podemos afirmar – do marxismo, agora não mais de caráter tão
ortodoxo. O destaque ao cultural em detrimento do político e do
econômico foi a característica marcante desse momento.
As novas abordagens ajudaram os historiadores a se afastar
dos inventários que estavam acostumados a apresentar, das es-
truturas e regularidades reconhecidas, ou seja, todas as certezas
longa e largamente difundidas foram sacudidas. O que um dia foi
uma reação contra a história política tradicional (de grandes feitos
e grandes homens) provocou uma contrarreação: as mentalidades
esconderam-se sob o título de História Cultural, a Micro-história
procurou olhar mais de perto determinadas particularidades, e o
social e o político voltaram com roupagem nova.
Mas ainda não terminou. Para além dos questionamentos
a respeito das abordagens teóricas, igualmente foi questionada a
forma do discurso historiográfico, ou seja, os historiadores toma-
6. A MICRO-HISTÓRIA
A proposta da Micro-história é reduzir a escala de observa-
ção do historiador (incluindo espacialidade e temporalidade) na
tentativa de buscar elementos que, analisando em escala maior,
passariam despercebidos. Seus objetos geralmente são práticas
culturais específicas (festas religiosas, por exemplo), ocorrências
(um determinado crime, um julgamento específico, suicídios), ci-
dades, indivíduos, famílias ou lugares determinados. Entende-se
que uma micro-ocorrência fornece dados para a compreensão de
uma característica cultural maior.
De acordo com Peter Burke (2005, p. 60-64), a Micro-história
foi uma reação contra:
1 – o estilo de história social que empregava métodos quantitativos
e descrevia tendências gerais;
2 – a relação entre a História e a Antropologia;
3 – a grande narrativa (história triunfalista) que se interessava, qua-
se que exclusivamente, pelos nomes e fatos ocidentais, ou seja,
Cristandade, Renascença, Revolução Francesa etc.;
O que é cultura?
Como compreender o que é a Nova História Cultural sem
entendermos o que é cultura? Não há como. Você já parou para
pensar qual conceito de cultura utiliza no dia a dia, em seus es-
tudos? Mas é possível entender o que é cultura? Cardoso (2005)
surpreende-nos ao divulgar uma pesquisa em que apontou a exis-
tência de, aproximadamente, 164 conceituações diferentes para
esse termo.
Portanto, mais uma vez, deparamo-nos com um conceito po-
lissêmico. E, mais uma vez, somos chamados a optar por apenas
um deles, pois disso depende a nossa abordagem às fontes. Mas,
ao menos, uma certeza vem nos acalantar: podemos descartar to-
dos aqueles julgamentos que localizam a cultura no cerne da elite,
ou seja, que apregoam que as camadas sociais menos favorecidas
(financeira e intelectualmente) não são detentoras nem produto-
ras de cultura. Esse preconceito já não é mais aceito no meio aca-
dêmico.
Vejamos exemplos de significações de cultura que alguns es-
tudiosos nos deixaram como legado para serem seguidas, critica-
das ou, ao menos, refletidas:
1) Para Bronislaw Malinowski (in BURKE, 2005, p. 43), cul-
tura abrange "as heranças de artefatos, bens, processos
técnicos, idéias, hábitos e valores".
2) Segundo Edward Tylor (in BURKE 2005, p. 43), cultura "é
o todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte,
moral, lei, costume e outras aptidões e hábitos adquiri-
dos pelo homem como membro da sociedade" (BURKE,
2005, p. 43).
3) De acordo com Clifford Geertz (in BURKE, 2005, p. 52),
cultura:
[...] é um padrão, historicamente transmitido, de significados in-
corporados em símbolos, um sistema de concepções herdadas,
expressas em formas simbólicas, por meio das quais os homens se
comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas
atitudes acerca da vida.
© U2 - O Pós-modernismo: Reação e Contrarreação 71
A viragem antropológica
Na historiografia, encontramos a expressão inglesa “cultural
turn”, que também faz referência à viragem antropológica.
A viragem antropológica: assim foi definido esse encontro –
que se iniciou na década de 1960, mas que se firmou na década de
1990 – entre a História e a Antropologia. Dentre os primeiros re-
sultados dessa junção, temos o aparecimento de expressões como
“história antropológica”, “antropologia histórica” e “etno-história”.
De qualquer modo, seja qual for a acepção escolhida pelo historia-
dor, dentre essas três, ela revela o campo de interesse e as possi-
bilidades interpretativas das fontes e das histórias, melhor ainda,
das culturas. Outro efeito foi a definição da abordagem às fontes,
ou seja, a grande preocupação da Nova História Cultural passou
a ser o simbólico e suas interpretações e não necessariamente a
inclusão de novas fontes. Afinal, como afirmou, de modo enfático,
Ernest Cassirer (1975, p. 45), "o homem não é outro senão o ani-
mal symbolicum”.
Além de Geertz, os antropólogos Marcel Mauss e Claude
Lévi-Strauss foram igualmente retomados, mesmo com propostas
diferentes. Porém, Benatte (2007, p. 3-4) define bem esse passeio
dos historiadores pela Antropologia:
De modo geral, o olhar histórico-antropológico dos praticantes da
nouvelle histoire é bastante variado em suas inspirações. Eles não
observam uma fidelidade estrita a um determinado "clã" ou escola
do pensamento antropológico; antes praticam um certo ecletismo
vagabundo adaptado a seus interesses específicos de pesquisa. O
que eles parecem buscar na ciência social vizinha não é um corpus
conceitual sistêmico ou uma teoria geral da cultura, mas sim um
aguçar da sensibilidade para a diferença e alteridade do passado
empiricamente cognoscível.
8. TEXTO COMPLEMENTAR
Ninguém melhor do que o próprio autor para falar dele mes-
mo. Num bate-papo quase informal, Carlo Ginzburg apresenta-se.
Vejamos o que o estudioso da Micro-história tem a nos dizer sobre
suas influências e contribuições. A entrevista completa encontra-
-se na revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 3, n. 6, 1990, p.
254 -263.
tanto do lado paterno quanto materno. Meu pai, Leone Ginzburg, nasceu em
Odessa e foi para a Itália criança. Viveu em Turim e foi colega de colégio e amigo
de Bobbio, que depois escreveu a introdução da coletânea póstuma de seus
escritos, um texto muito bonito e comovente. Meu pai era professor de literatura
russa, mas em 1932, quando os fascistas exigiram que os professores jurassem
fidelidade ao regime, pediu demissão. Em 1934 entrou na conspiração antifas-
cista e tomou-se líder de um grupo em Turim que tinha ligações com a França.
Foi preso e passou dois anos na cadeia. Quando saiu, foi um dos fundadores da
Editora Einaudi, junto com Cesare Pavese. Logo depois que começou a guerra,
em 1940, como era muito vigiado, foi confinado numa cidadezinha nos Abruzzi. A
família foi junto, e passei minha primeira infância, até 1943, nesse lugarejo. Nes-
se ano o rei destituiu Mussolini, e meu pai voltou para Roma, que estava ocupada
pelos alemães. Sempre ligado à conspiração antifascista, foi preso e morreu na
prisão alemã em Roma em 1944.
Minha mãe, Natalia Ginzburg, Levi em solteira, era filha de um histologista muito
conhecido e importante, professor da Universidade de Turim. Três dos alunos de
meu avô receberam o prêmio Nobel [...]
Depois da guerra, minha mãe recomeçou a escrever. É uma romancista muito
conhecida, e seus livros foram traduzidos em vários países, inclusive no Brasil.
[...]
Nasci portanto nessa família de intelectuais, o que sem dúvida representou um
privilégio cultural. Ao mesmo tempo, há o fato de que éramos judeus e de que,
um pouco devido à guerra, conservei uma lembrança muito nítida da perseguição
sofrida. [...]
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Observe como o percurso pessoal do autor influenciou seus
escritos. Uma de suas obras mais importantes trata de um proces-
so inquisitório. Por esse e outros motivos é que, na atualidade, se
considera a subjetividade do autor.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
L.O.- Por que história?
Quando eu era criança, sonhava em ser escritor, o que era até previsível já que
minha mãe escrevia. Depois, pensei em ser pintor. Pintei na adolescência, che-
guei a estudar um pouco de pintura, mas, num determinado momento, percebi
que não era pintor. E o curioso é que tanto a literatura como a pintura têm a ver
com o que faço hoje. Existe uma dimensão literária no trabalho do historiador e
tenho muita consciência desse elemento. [...]
[...]
Mas há ainda um outro fato ligado a essa escolha. Havia na Scuola Normale
um historiador medievalista chamado Arsenio Frugoni, não tão importante como
Cantimori, mas muito bom professor, autor de um livro sutil e inteligente sobre
um herege queimado pela Igreja Romana no século XII. Assim que entrei para
a universidade, ainda interessado em literatura, Frugoni tentou convencer-me a
estudar história e me deu um ensaio de Croce para ler. E o fato é que o primeiro
livro de história que eu havia lido era justamente a História da Europa, de Croce,
um pouco por influência familiar. Meu pai havia sido um discípulo de Croce [...]
Aliás, faço parte da última geração na Itália que leu realmente Croce. Depois
disso, não se leu mais. E isso foi importante para mim, mesmo que eu não goste
de Croce. Há coisas boas nele, mas faço uma história totalmente diferente da
que ele propõe.
Voltando ao meu tempo de escola, Frugoni me deu o ensaio de Croce para ler,
um célebre ensaio sobre um marquês napolitano que abraçou o protestantismo
no século XVI. Comecei a lê-lo e percebi que não me interessava nem um pouco.
Disse a Frugoni que não ia estudar história, porque era uma disciplina que não
me despertava interesse. Depois de ter ouvido Cantimori e ter mudado de idéia,
voltei a Frugoni. Eu tinha que escolher um tema de estudo, e ele me sugeriu que
trabalhasse com os Annales. Perguntei: “O que é isto?” É interessante que na-
quela época, 1958, houvesse alguém na Itália propondo os Annales como tema
a um estudante que não sabia do que se tratava. De toda forma, havia a coleção
completa dos Annales numa biblioteca de Pisa, o que prova que as ligações eram
mais antigas. Hoje existe na Itália uma idéia equivocada de que a influência dos
Annales teria começado nos anos 70, quando na verdade se iniciou muito antes.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
O despertar para a História não é um caminho livre. Nem
sempre o que estudamos nos chama a atenção. Mas neste proces-
so de escolhas, as leituras são imprescindíveis. Não é necessário
um Croce, mas as obras dos estudiosos ligados aos Annales, são
um belo começo.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Comecei então a ler os Annales desde os primeiros números. Li Marc Bloch e
fiquei muito impressionado, sobretudo com Les rois taumaturges, que na época
não era visto como um livro importante [...]
Além desse encontro com Marc Bloch, houve outro fato fundamental. Li o livro
de um historiador italiano muito importante, Federico Chabod, sobre a história
religiosa do Estado de Milão no século XVI e as primeiras reações à Reforma
Protestante. [...] Chabod havia trabalhado intensamente com os arquivos mila-
neses, e tinha encontrado uma minuta de documento oficial em cujo verso havia
algumas frases sobre a predestinação que haviam sido riscadas. E Chabod fazia
uma análise maravilhosa desse documento esquecido, riscado, quase destruído,
[...] A análise de Chabod era realmente extraordinária, sobretudo sua idéia de
recuperar um documento como aquele para a história. Hoje, pensando retros-
pectivamente, acho que naquele momento, mesmo de uma forma obscura, com-
preendi o que se podia fazer com a história.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
A.A.- E assim o senhor decidiu ser historiador.
Sim. No ano seguinte eu devia escolher um outro tema de estudo, e lembro
que estava passeando quando pensei: “Vou estudar as feiticeiras.” Eu não sabia
nada sobre o
assunto, mas de uma forma totalmente imediata soube que o que me interessava
eram as
feiticeiras ou feiticeiros, e não a perseguição que sofreram. [...] Como eu não
conhecia nada, fui para a biblioteca e comecei a ler o verbete stregholeria na En-
ciclopédia Italiana. [...] gosto muito de começar trabalhos completamente novos,
sobre coisas a respeito das quais não conheço nada. Sempre tento explicar aos
meus alunos que o que existe de realmente excitante na pesquisa é o momento
da ignorância absoluta. Penso que não se deve ter medo de ser ignorante, e sim
procurar multiplicar esses momentos de ignorância, porque o que interessa é
justamente a passagem da ignorância absoluta para a descoberta de algo novo.
Considero que o verdadeiro perigo está em nos tomarmos competentes.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
“Penso que não se deve ter medo de ser ignorante... Consi-
dero que o verdadeiro perigo está em nos tomarmos competen-
tes". Essas são assertivas de impacto. Procurar saber, não aceitar
os fatos como dados, conhecer as diferentes representações de
um mesmo tema é essencial ao historiador e ao professor de His-
tória. Quando cremos que já sabemos muito ou que somos pos-
suidores de uma verdade inquestionável, adentramos no perigoso
terreno de usos inadequados do passado.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
A.G. - Por que a escolha das feiticeiras como tema de estudo?
Certamente pesou nessa escolha a idéia de que os fenômenos religiosos são
importantes. Mas havia outra coisa também, que na época me escapou de uma
maneira surpreendente: a idéia de trabalhar com marginais, com hereges, podia
estar ligada ao fato de eu ser judeu. Reprimi completamente essa associação,
e foi um amigo que me alertou para ela numa conversa, como algo evidente.
Havia ainda outro elemento muito profundo em meu interesse pelas feiticeiras: a
fascinação pelos contos de fadas que minha mãe lia quando eu era criança. [...]
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
A sua condição de excluído da História levou-o a estudar os
personagens marginais. Sobre essa temática, as obras de Michele
Perrot são fundamentais. Sugerimos a leitura de Os excluídos da
História: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2001.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
L.O. - O senhor falou em Croce. Vico também foi uma influência em seus anos
de formação?
Vico é realmente um grande clássico. Foi redescoberto no começo do século
XIX, mas sobretudo foi redescoberto por Croce. [...] Mas essa questão de in-
fluências é complicada, porque no início temos uma certa porosidade intelectual
que depois vai desaparecendo. E acho que esse período de porosidade é crucial,
porque é então que se forma um arcabouço cultural, assim como antes já se
formou um arcabouço psicológico. Alguns dos livros mais importantes que li, li
antes dos 22 anos. Até essa época eu não havia lido Vico, mas tinha lido o diário
de Pavese. E Pavese refletiu muito sobre Vico [...]
[...] Também através de Pavese li outras coisas importantes. [...]
Acredito que no fundo os livros de história talvez não tenham sido a coisa mais
importante que li. Acho que Guerra e paz de Tolstoi, por exemplo, me marcou
muito mais profundamente do que qualquer livro de história, inclusive os de Marc
Bloch. Assim também Dostoievski. Ou seja, os romances foram os livros que
mais me tocaram.
Devo mencionar ainda outra grande descoberta que fiz em minha vida: o War-
burg Institute, em Londres. [...]
Uma ocasião, quando eu ainda estudava em Pisa, fui a Londres visitar minha
mãe, [...] Cantimori também estava lá, e me levou para conhecer o Warburg Ins-
titute. Fiquei fascinado pelo instituto, pela história da arte, pela possibilidade de
trabalhar com história da arte numa perspectiva mais ampla. Em 1964, quando
estava preparando meu livro Os andarilhos do bem, ganhei uma bolsa de um
mês e fui para Londres. Trabalhei como um louco, descobri a obra de Gombrich,
sobretudo Art and illusion, comprei os livros de Saxl, voltei para a Itália com uma
mala cheia de livros. Comecei a ler Gombrich, e foi uma experiência extraordi-
nária, algo que me marcou muito. Escrevi então um artigo sobre a tradição da
Biblioteca Warburg, que depois foi publicado na coletânea Mitos, emblemas, si-
nais. Enviei o artigo a Gombrich, e a seu convite voltei a Londres por um ano. E
isso para mim foi muito importante.
Na Itália como no Brasil, as pessoas perceberam meu trabalho através da tra-
dição dos Annales. Sem dúvida os Annales foram importantes para mim. Nos
últimos 15 anos tenho sido regularmente convidado a ir a Paris para discutir com
o grupo dos Annales. Mas acho que meu arcabouço intelectual é mais heterogê-
neo. Houve outras coisas que me marcaram.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
L.O. - O senhor é um historiador italiano internacionalmente conhecido. Como se
deu sua inserção nos meios intelectuais internacionais?
Acho que esta é uma pergunta importante porque tem implicações que vão muito
além do meu caso pessoal. Publiquei Os andarilhos do bem em 1966, e tive uma
resenha anônima no Times Literary Supplement - era o texto de Hobsbawm, que
não o assinou. Alguns anos mais tarde, saiu outra resenha bastante elogiosa na
Bibliothèque de I’Humanisme et Renaissance. Era um texto de Bill Monter, um
historiador americano que trabalhou com feitiçaria, história espanhola, Inquisição
etc. [...] em 1973 fui para Princeton.
Quando cheguei aos Estados Unidos, descobri que havia pesquisadores que
conheciam Os andarilhos do bem. [...] Mas só no final dos anos 70, quando O
queijo e os vermes começou a ser traduzido, o caminho foi aberto. [...] O momen-
to era propício, havia uma conjuntura internacional favorável, Braudel escreveu
dizendo que era um livro muito. bom, que devia ser traduzido...
Penso que a traduzibilidade de meus livros está ligada ainda a outro elemento.
Entre os historiadores italianos sempre prevaleceu, e prevalece até hoje, com ra-
ras exceções, a tendência a escrever para profissionais. Há muito de implícito no
que se escreve, e isso dificulta a tradução. [...] mas desde muito cedo decidi que
gostaria de trabalhar de maneira diferente, de escrever tanto para profissionais
quanto para um público mais amplo. E foi o que fiz em Os andarilhos do bem e
O queijo e os vermes. [...]
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Tornar-se conhecido por suas pesquisas no meio acadêmico
não é tarefa fácil. Para além dos elogios, há inúmeros casos de
obras importantes que caíram no esquecimento em virtude das
ferrenhas críticas recebidas. Também há o problema da tradução:
se não se conhece bem a língua e os termos técnicos próprios de
cada teoria, corre-se o risco de se ter uma versão, e não uma tra-
dução. Isso implica uma leitura muito diferente daquela proposta
pelo autor. Eni Puccinelli Orlandi, em seu livro Interpretação (São
Paulo: Pontes, 2004), fala em "deslizamento de sentidos". Porém,
não podemos negar que, devido às traduções, temos acesso às
diferentes produções acadêmicas mundiais.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
A.A.- Poderia nos falar um pouco sobre seu último livro, Storia noturna?
É o livro mais longo que escrevi, e no qual trabalhei mais de 15 anos, com lon-
gos intervalos [...] Storia noturna foi um livro muito difícil de escrever, embora eu
estivesse muito apaixonado pela pesquisa. Durante muito tempo achei que não
seria capaz de terminá-lo. Publiquei-o em abril de 1989, mas mesmo agora tenho
a impressão de que foi escrito por alguém que não eu. É claro que quando penso
no livro, lembro de quando o escrevi, mas relendo alguns trechos sempre tenho
sentimentos de surpresa. [...]
Storia noturna aborda o problema do sabá numa perspectiva ao mesmo tempo
histórica e morfológica. A primeira parte é histórica, a segunda é morfológica, e
há ainda uma terceira parte em que faço uma comparação entre as duas pers-
pectivas e tento operar uma convergência. Há uma conclusão e uma introdução
teórica bastante longa. Na primeira parte, começo com o sabá, ou seja, a reunião
das feiticeiras, vista pelos inquisidores, pelos juízes. Analiso a idéia de complô,
que é algo muito importante. Há um pequeno trecho na introdução em que falo
do papel do terrorismo, porque penso que há uma relação entre a percepção que
tive dessa idéia do complô e o terrorismo na Itália a partir de 1969. [...]
Na segunda parte, tento compreender aquilo que considero ser o núcleo folcló-
rico do sabá, ou seja, o vôo mágico e a metamorfose em animais. Coloquei-me
o problema do núcleo folclórico e procurei recolher fenômenos com uma preo-
cupação puramente formal, alheia a qualquer consideração de ordem histórica,
cronológica ou geográfica. Reconstituí séries de fenômenos ligados entre si do
ponto de vista estrutural, no nível da morfologia profunda, dispersos pelo conti-
nente eurasiano.
Na terceira parte, há um capítulo que se chama justamente “Conjecturas eura-
siáticas”, em que tento propor uma série histórica, apresentar relações históricas
documentadas que poderiam explicar essa dispersão de dados. Nesse momen-
to, porém, achei que isso não era suficiente e utilizei Lévi-Strauss, que é o inter-
locutor mais importante do livro. [...] o que mais me impressionou foi a discussão
de Lévi-Strauss, ao dizer que a explicação histórica não bastava. E o que tentei
fazer nesse terceiro capítulo, que é o mais longo e talvez o mais audacioso do
livro, foi combinar as duas abordagens.
Disponível em: <http://virtualbib.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/viewFi-
le/2300/1439>. Acesso em: 10 maio 2010).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
9. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
Responder às questões propostas a seguir, discuti-las e co-
mentá-las com seus colegas favorecerão a compreensão da te-
mática desenvolvida nesta unidade. A autoavaliação, se efetuada
com frequência, torna-se uma forte ferramenta para testar seu
conhecimento e averiguar seu desempenho. Dificuldades podem
surgir durante a elaboração das respostas; assim, procure revisar
os conteúdos estudados para sanar as suas dúvidas. Lembre-se de
que, nesta modalidade de ensino, a construção do conhecimento
depende muito de seu esforço e da colaboração dos agentes edu-
cacionais.
1) O que caracteriza o movimento historiográfico pós-moderno?
10. CONSIDERAÇÕES
Nesta unidade, você apreendeu que, no chamado período
pós-moderno, os tradicionais paradigmas historiográficos foram
abandonados pelos historiadores engajados na Nova História, em
particular por aqueles defensores da Micro-história e da Nova His-
tória Cultural. O resultado mais expressivo dos novos debates é a
crença e a defesa da assertiva de que a História é relativa, ou seja,
que as verdades absolutas não têm espaço no tempo das incertezas.
Você, igualmente, foi chamado a compreender que os con-
ceitos de pós-modernismo e cultura são polissêmicos e, mais uma
11. E-REFERÊNCIAS
Sites pesquisados
BENATTE, Antônio Paulo. História e antropologia no campo da Nova História. In: Revista
História em Reflexão. v. 1 n. 1, UFGD, Dourados, jan./jun. 2007. Disponível em: <http://
www.historiaemreflexao.ufgd.edu.br/historiaemreflexao_ed1/antropologia.pdf?PHPSE
SSID=456defffb0a850c46bd073be760feb9b>. Acesso em: 13 nov. 2008.
MARTINS, Estevão de Rezende. História. Disponível em: <http://criticanarede.com/fil_
história.html>. Acesso em: 18 out. 2008.
2. CONTEÚDOS
• História e Discurso.
• Michel de Certeau e o conceito de prática.
• Roger Chartier e o conceito de representação.
Michel de Certeau
Roger Chartier
4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Nas unidades anteriores, você refletiu sobre as mudanças
no conceito de História e historiografia. Conferiu que, com a pós-
-modernidade, as verdades absolutas, a História e o Homem Uni-
versais ruíram. A História deu lugar às histórias; a verdade, às ver-
dades; o Homem, aos homens, mulheres, crianças, operários.
Neste momento, chamamos sua atenção para outras noções
polissêmicas, divulgadas por alguns historiadores, muito impor-
tantes à Nova História Cultural: discurso, verdade, práticas e re-
presentações.
Para reconhecermos os modos de aplicação desses termos
na escrita da História, faremos uso das argumentações e pesquisas
de Roger Chartier, Michel de Certeau (de modo direto) e de Lynn
Hunt e Keith Jenkins (de modo subscrito).
Vamos lá!
5. HISTÓRIA E DISCURSO
Para iniciar nossa discussão, retomaremos, a princípio, um
fragmento da segunda citação da Unidade 1, quando Carbonell
responde o que é historiografia. Na sequência, veremos alguns au-
tores definindo o que é a História.
"O que é historiografia? Nada mais que a história do discur-
so – um discurso escrito e que se afirma verdadeiro – que os ho-
mens têm sustentado sobre seu passado [...]” (CARBONELL, 1987,
p. 6, grifo nosso).
De acordo com Jenkins (2004, p. 52, grifo nosso):
A história é um discurso cambiante e problemático, tendo como
pretexto um aspecto do mundo, o passado, que é produzido por
um grupo de trabalhadores cuja cabeça está no presente [...], que
tocam seu ofício de maneiras reconhecíveis uns para os outros [...]
e cujos produtos, uma vez colocados em circulação, vêem-se sujei-
tos a uma série de usos e abusos.
História e Verdade
Segundo Schaff (1978, p. 92), a definição clássica de verdade
é a seguinte: “é verdadeiro um juízo do qual se pode dizer que o
que ele enuncia é na realidade tal como o enuncia".
Na historiografia anterior aos Annales, houve uma preocu-
pação entre um grande grupo de estudiosos de apontar a verdade
histórica: o que realmente aconteceu e como aconteceu. As fontes
falavam por elas mesmas. Mas essas mesmas fontes passaram a
ser compreendidas como fragmentos do passado; então, só sabe-
mos parte desse passado. Se sabemos parte, não conhecemos o
todo e, sem o todo, não temos o real ou a verdade. Enfim, "não há
lugar em que o real se dê" (BOURDÉ, 1990, p. 206). Finalmente, só
podemos concluir que aplicar o conceito de verdade objetiva ao
passado histórico é algo bem problemático.
Mas há uma ressalva a ser feita: o que ocorre nesse ambien-
te pós-moderno não é o abandono da verdade ou do real em troca
© U3 - História: discurso, práticas e representações 89
Cultural, dentre eles, Roger Chartier, a quem você está sendo ace-
nado a conhecer nas linhas a seguir.
Roger Chartier é professor e diretor do Centro de Pesquisas
Históricas na Ecole des Hautes Etudes em Ciências Sociais na Fran-
ça (Paris). Suas pesquisas privilegiam a compreensão e a importân-
cia da leitura na Europa moderna. No entanto, igualmente analisa
a relação entre o texto e o leitor também na era da informática.
Podemos citar alguns de seus livros como parte de sua vasta con-
tribuição aos estudos de História: Práticas da leitura, Aventura do
livro: do leitor ao navegador, História da leitura no mundo ociden-
tal, A ordem dos livros e Formas e sentido - Cultura escrita: entre
distinção e apropriação e o mais conhecido entre o público acadê-
mico brasileiro História cultural, entre práticas e representações.
Seus ensaios exemplificam e discutem uma história cultural
da sociedade, ou seja, compreende que as estruturas ditas objetivas
são, na verdade, culturalmente constituídas ou construídas. Assim,
ele entende que a sociedade em si mesma é uma representação
coletiva (cf. BURKE, 1991, p. 98). Resumindo, para esse estudioso,
a História Cultural deve voltar seus interesses para a identificação
da maneira como em distintos lugares e ocasiões uma determinada
realidade cultural é construída, pensada, dada a ler.
De modo mais específico, suas pesquisas, assumidas como
uma prática histórica particular, giram em volta de três polos:
[...] de um lado, o estudo crítico dos textos, literários ou não, canô-
nicos ou esquecidos, decifrados nos seus agenciamentos e estraté-
gias; de outro lado, a historia dos livros e, para além, de todos os
objetos que contém a comunicação do escrito; por fim, a análise
das práticas que, diversamente, se apreendem dos bens simbóli-
cos, produzindo assim usos e significações diferenciadas (CHAR-
TIER, 1991, p. 178).
O conceito de representação
No interior da História Cultural, mais precisamente na Nova
História Cultural, o conceito de representação ganhou espaço jun-
tamente com os conceitos de mito, imaginário, memória etc. No
entanto, quando esse conceito ou noção (uma vez que o termo
ainda é analisado) é lido, é a Chartier que ele nos remete. Mas o
que significa e como ele utiliza essa ideia?
Em primeiro lugar, é preciso conhecer quais significados tra-
dicionais são amplamente utilizados para explicar a representação:
• primeiro, a representação apresentando uma coisa au-
sente (o que se representa é diferente daquilo que é re-
presentado);
• segundo, a representação como exposição de uma pre-
sença;
Para Chartier, seja qual for o uso, a representação deve ser
compreendida como:
[...] o produto do resultado de uma prática. A literatura, por exem-
plo, é representação, porque é o produto de uma prática simbólica
que se transforma em outras representações [...] Então, um fato
nunca é o fato. Seja qual for o discurso ou meio, o que temos é a
representação do fato. A representação é uma referência e temos
que nos aproximar dela, para nos aproximarmos do fato. A repre-
sentação do real, ou o imaginário é, em si, elemento de transfor-
mação do real e de atribuição de sentido ao mundo (MAKOWIECKY,
2003, p. 4).
a apropriação, a nosso ver, visa uma história social dos usos e das
interpretações, referidas as suas determinações fundamentais e
inscritas nas práticas específicas que as produzem.
O mendigo conhecido
O mendigo é visto como
FINAL DO SÉULO 11 ATÉ é bem acolhido na
instrumento de salvação
INÍCIO DO 13 comunidade ou no
para o rico.
mosteiro.
Criação de instituições
O mendigo deve ser hospitalares, caridades
SÉCULO 13 ORDENS
estimado por seu valor paroquiais, esmolas de
MENDICANTES
humano. príncipes, projetos de
educação.
SÉCULO 16 Marginalização do mendigo Desconfiança
Exclusão (representada pela Açoitamentos,
SÉCULO 17
cabeça raspada) condenações
Reeducação e, em casos
Passa a ser visto como um
mais extremos, punições
CAPITALISMO vagabundo, um criminoso,
exemplares (incluindo a
um perigo para o sistema.
prisão).
7. TEXTO COMPLEMENTAR
A seguir, você poderá ler fragmentos de uma entrevista con-
cedida por Roger Chartier, em 16 de setembro de 2004, à cientista
política Isabel Lustosa quando de sua vinda ao Brasil por ocasião
do Seminário de História Cultural realizado na Casa Rui Barbosa
– Rio de Janeiro. Nessa entrevista, Chartier fala de sua noção de
História, de sua produção e de autores e temas diversos. Por meio
dessa leitura, você poderá conhecer um pouco mais desse his-
toriador e compreender mais afundo alguns conceitos utilizados
pela historiografia.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
A minha geração foi, no Brasil, talvez a última em que a leitura dos clássicos da
literatura universal era um hábito. Acho que isso criou um universo de referência
para a nossa geração que é diferente dos jovens de hoje. De que maneira esse
universo de referências culturais originadas da leitura dos clássicos está na base
da visão de mundo do historiador de hoje em dia? Por outro lado, de que maneira
esse universo de referência cultural mais ampliado contribuiu para a aceitação de
abordagens interdisciplinares?
Chartier: Não devemos pensar que o passado era necessariamente melhor [...]
Acho, ao contrário, que hoje se lê mais do que nos anos 1950. Inclusive por-
que o computador não é apenas um novo veículo para imagens ou jogos. Ele é
responsável também pela multiplicação da presença do escritor nas sociedades
contemporâneas [...] Podem não ser necessariamente leituras fundamentais, en-
riquecedoras, mas são leituras. Não se pode dizer, portanto, que estejamos as-
sistindo ao desaparecimento da cultura escrita. O problema é qual cultura escrita
persiste [...] O fato de que os textos lidos pelos adolescentes no computador,
suas leituras prediletas, não pertençam àquele repertório definido como literário
não é necessariamente algo ruim. O problema está numa certa discrepância en-
tre essa nova cultura e os modelos de referência que, a nosso ver, seriam mais
consistentes e forneceriam mais recursos para a compreensão do mundo social,
a compreensão de si mesmo e a representação do outro. Para isto não tenho
resposta, mas me parece que há duas posições que se deve evitar. Uma é a que
considera que essa presença da literatura na realidade cotidiana pertence a um
mundo definitivamente desaparecido. Não me parece um diagnóstico adequa-
do, pois há, na atualidade, um esforço dentro da escola e fora da escola para
preservar a cultura literária [...] A outra posição é a dos que pensam que não há
© U3 - História: discurso, práticas e representações 101
nada de proveitoso, útil ou fundamental nesse novo mundo. Postura que me pa-
rece muito inadequada quando pensamos nas possibilidades educativas criadas
pelas novas tecnologias, nas diversas experiências para a alfabetização, para a
transmissão do saber à distância. Acho que é responsabilidade dos intelectuais,
dos meios de comunicação, dos editores, assegurar a transmissão de um saber
sobre o mundo, através de projetos que vinculem a dimensão estética ou a di-
mensão científica com a existência cotidiana. Para que as pessoas não sejam
totalmente submetidas às leis do mercado, à incerteza ou à inquietude, o essen-
cial é dar a cada um instrumentos que lhe permita decifrar o mundo em que vive
e a sua própria situação neste mundo. Esse saber que pode vir da sociologia, da
literatura, da história, possibilitaria a resistência às imposições dominantes que
vêm de todas as partes: dos discursos ideológicos, das mensagens dos veículos
de comunicação, da cultura de massa etc [...] Mas me parece que, se há um ca-
minho não literário para se adquirir saber sobre o mundo social, por que procurar
os instrumentos mais vulneráveis para decifrar esse mundo?
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Livros impressos ou e-books? Conhecimento ou informação?
O autor faz-nos asseverar que essas perguntas não são mais viá-
veis ou, ao menos, estão descontextualizadas. Na atualidade, os
dois universos literários (impresso e midiático) podem e devem
ser utilizados para a compreensão das culturas. Eles próprios são
elementos distintos de uma mesma cultura ou ajudam a compor
um universo cultural paralelo. A questão não é usar ou deixar de
usar esses recursos, mas saber fazer um uso adequado.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Apesar da valorização teórica que a moderna historiografia tem promovido da
narrativa sempre vejo os historiadores a trabalharem ainda com um certo pudor,
acompanhando cada fato narrado de uma análise minuciosa daquele aspecto
ou então recorrendo ao chamado argumento de autoridade. Parece-me que isso
prejudica o resultado do ponto de vista da narrativa, pois, em geral, a torna frag-
mentada e desinteressante. O que você acha?
Chartier: Entre os anos 1950 e 60, os historiadores buscavam uma forma de
saber controlado, apoiado sobre técnicas de investigação, de medidas estatís-
ticas, conceitos teóricos etc. Acreditavam que o saber inerente à história devia
se sobrepor à narrativa, pois achavam que o mundo da narrativa era o mundo
da ficção, do imaginário, da fábula. Desta perspectiva os historiadores recha-
çaram a narrativa e desprezaram os historiadores profissionais que seguiam
escrevendo biografias, história factual e tudo isso. A tradição francesa dos An-
nales foi uma das que levou mais longe essa tendência. Hoje, no entanto, a
situação tornou-se muito mais complicada. Uma das razões é que autores como
Hayden White e Paul Ricoeur mostraram que, mesmo quando os historiadores
utilizam estatísticas ou qualquer outro método estruturalista, produzem uma
narrativa. Quer dizer: quando dizem que tal coisa é conseqüência ou causa de
outra, estabelecem uma ordem seqüencial, se valem de uma concepção da
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Há algum tempo fiz a resenha de um livro de ensaios do antropólogo James
Clifford. Tive uma certa sensação de desconforto diante de leitura pós-moderna
e desconstrutivista que ele faz da tradição etnográfica. A etnografia foi um ins-
trumento criado pela cultura ocidental para entender pessoas de outras culturas,
não significando que aquelas pessoas tivessem a mesma ânsia de nos entender
ou de entenderem a si mesmas, ou, ainda, que achassem que a etnografia seria
a ferramenta adequada para isto. Cada cultura tem os seus próprios meios de
se relacionar com o mundo. A meu ver, sempre se parte de uma base histórica,
ideológica ou cultural para fazer alguma coisa, para pensar ou para agir. O pós-
-modernismo foi um exercício de desconstrução da cultura ocidental, e nossa
base é o universo de informações que compõem a cultura ocidental. Ela é que
nos fornece os instrumentos e a motivação para pensarmos sobre nós e sobre o
mundo. E até para fazer a crítica dessa maneira de pensar.
Chartier: Penso que, em certo sentido, o trabalho de James Clifford está em
paralelo ao de Hayden White. Acho que é algo legitimo fazer historiadores e
antropólogos refletirem sobre a própria escrita. Durante muito tempo a escrita
foi vista como um meio neutro para falar sobre o passado ou para descrever o
outro. Daí ter sido fundamental fazer dela um objeto de reflexão, tal como fez
White, ao pensar sobre o papel, na escrita do historiador, de elementos como a
retórica e as figuras que se manejam para escrever sobre o passado. O mesmo
fez James Clifford com relação aos dispositivos que os antropólogos utilizam em
seu trabalho. Outra contribuição fundamental dessa corrente foi a idéia de que
há uma descontinuidade necessária entre o presente e o passado [...] a qual não
pode ser anulada pela idéia de universalidade e de compreensão de si próprio
[...] Mas tanto no texto de White quanto no de Clifford há um relativismo absoluto.
Não posso aceitar a idéia que está identificada com o pós-modernismo de que
todos os discursos são possíveis porque remetem sempre à posição de quem
o enuncia e nunca ao objeto. De acordo com essa visão, o discurso é sempre
autoproduzido: não diz nada sobre o objeto e diz tudo sobre quem o escreveu.
Parece-me uma conclusão equivocada [...] ,porque, tanto no caso da história
quanto no da antropologia, uma produção de saber é possível e necessária [...]
Esta justaposição de situações históricas ou situações antropológicas onde não
existe nenhuma comunicação, nenhum intercâmbio, nem sequer de saberes,
parece uma forma terrivelmente reducionista daquilo que poderia ser um pro-
jeto de conhecimento compartilhado. Razão pela qual estou completamente em
desacordo com essa postura pós-moderna, essa idéia de que não há nenhuma
possibilidade de conhecimento. É diferente dizer que esse conhecimento sempre
esteve organizado a partir dos esquemas de percepção, de classificação e com-
preensão do observador. E que, se existem formas de descontinuidade culturais,
é preciso, assim mesmo, fazer um esforço para entender o passado e o outro.
Pois foi a partir dessa dupla perspectiva que se construiu um saber, e me parece
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Neste momento temos a sensação de que tudo se tornou possível: práticas que
haviam sido banidas por um conjunto de acordos internacionais no pós-guer-
ra vêm sendo implementadas pelos EUA na guerra no Iraque ou ao manterem
pessoas presas sem julgamento em Guantânamo. Ao mesmo tempo, ocorre a
perda de força de organismos internacionais, como a ONU. Na medida em que
sabemos que as grandes idéias são filtradas e incorporadas à agenda do senso
comum, a perspectiva radicalmente relativista do pós-moderno não teria influído
de alguma forma nesse tipo de política, esvaziando a confiança em algumas
conquistas do humanismo e da cultura do Ocidente?
Chartier: O maior paradoxo do pós-modernismo é que nasce de uma perspec-
tiva crítica das autoridades, das hierarquias e dos elementos dominantes, mas,
com a introdução da dimensão epistemológica do relativismo, a análise fica sem
nenhum recurso para fundamentar esta postura crítica. Pois, se tudo é possível,
todos os discursos podem ser diferentes por sua competência retórica, por sua
arte de expressão, mas em termos de saber e como instrumento crítico não há
diferença entre eles. Cria-se uma tensão fundamental. Hayden White, por exem-
plo, é um humanista que compartilha os valores morais do humanismo. Mas a
aplicação de sua perspectiva não dá à história instrumentos para produzir um
conhecimento crítico, desmentir as falsificações e estabelecer um saber verda-
deiro. Porque, se não há nenhum critério para estabelecer diferenças entre os
discursos dos historiadores, torna-se muito difícil criticar os discursos engano-
sos, as falsificações e as tentativas de reescrita do passado. Este é, me parece,
o grande limite do pós-modernismo: a contradição entre sua intenção e a sua
epistemologia.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Se não nos é possível "[...] desmentir as falsificações e esta-
belecer um saber verdadeiro [...]”, como lutar contra os maus usos
do passado, aqueles que, com finalidades político-ideológicas,
modificaram a história em favor próprio (como o governo de Vichy,
na França, que interpretou, a seu modo, a história gaulesa para
justificar o apoio às forças nazistas)? Nicole Loraux (1993) alerta-
© U3 - História: discurso, práticas e representações 105
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Em seu livro “O grande massacre dos gatos”, Robert Darnton adota as idéias e
os métodos de Clifford Gertz, dando tratamento etnográfico a um objeto de estu-
do histórico. Esse foco ampliado sobre um detalhe me parece produzir uma visão
distorcida do objeto. De que forma você vê esse tipo de investigação?
Chartier: Houve um grande debate depois da publicação do livro de Darnton.
Uma das críticas mais fortes feitas a ele tem a ver com a sua identificação com as
idéias de Geertz e de sua tendência à textualização das estruturas, das práticas
rituais e de toda a cultura. O ponto de partida de Darnton, utilizando a idéia de
Geertz de que um rito pode ser lido como um texto, era que se podia pensar as
práticas sociais como se fossem textos [...] Os historiadores que trabalham com
textos desenvolvem, em primeiro lugar, uma análise crítica do texto. No entan-
to, Darnton quase não avança nessa direção [...] Ele menciona o texto de um
artesão, mas não lhe dá maior importância, porque pretende se colocar imedia-
tamente na situação de um espectador do massacre. Como Geertz em Bali. Não
podemos pensar que há uma identidade necessária entre a lógica propriamente
textual e as estratégias das práticas [...] O mais complicado para o historiador
é que essas práticas não-textuais, em geral, se encontram através de textos.
O desafio fundamental para o historiador é entender a relação entre os textos
disponíveis e as práticas que estes textos proíbem, prescrevem, condenam, re-
presentam, designam, criticam etc [...] As práticas do passado são acessíveis a
nós, em geral, através de textos escritos. E o historiador escreve sobre essas
práticas [...] O desafio fundamental é pensar conceitual e metodologicamente a
articulação e a distância entre as práticas e os discursos e evitar a repetição da-
quele momento, entre os anos 1950-60, em que a metáfora do texto se aplicava
a tudo: aos ritos, à sociedade etc. Era muito cômodo.
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Você já orientou muitos brasileiros. Ao longo desse tempo você leu muito sobre
o Brasil nas teses desses orientandos. A partir dessas leituras como você vê o
Brasil?
Chartier: Acho que há aqui uma circulação entre os campos disciplinares da an-
tropologia, da história e da sociologia cultural mais forte que em outros lugares. O
campo da educação, por exemplo, que em muitos países é muito especializado,
aqui me parece estar bastante integrado ao mundo das ciências sociais. A maior
parte dos trabalhos que orientei tratam de uma forma ou de outra do mundo das
práticas culturais, da história da publicação e da circulação dos textos e um pou-
co também do mundo social, da história da vida privada, das estruturas sociais
do Brasil colônia. Há uma vitalidade impressionante nesse tipo de investigação.
O problema é que na Europa ou nos Estados Unidos existe uma total falta de
interesse por outros territórios. Todo mundo está muito preso a seu próprio cam-
po de investigação e não se dá conta de que é possível aprender muito com
estudos sobre temas que não são os seus. Isso impede que circulem numerosos
trabalhos que mereceriam ter um reconhecimento mais forte. Para divulgar esses
trabalhos que têm uma força metodológica ou teórica inspiradora, seria preciso
fazer com que editoras norte-americanas traduzissem obras latino-americanas
para o público que não lê em espanhol [...] Tradução de Ana Carolina Delmas
Isabel Lustosa É cientista política, pesquisadora da Casa de Rui Barbosa, no Rio
de Janeiro, e autora de Insultos Impressos: a guerra dos jornalistas na Indepen-
dência (Companhia das Letras, 2000). Disponível em <http://pphp.uol.com.br/
tropico/html/textos/2479,3.shl>. Acesso em: 28 maio 2009.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
8. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
As questões a seguir são importantes não apenas para a fi-
xação do conteúdo, mas também para que você possa começar a
desenvolver uma atitude crítica e reflexiva diante dos temas apre-
© U3 - História: discurso, práticas e representações 107
9. CONSIDERAÇÕES
Nesta unidade, alguns conceitos importantes e caros à Nova
História Cultural ou à História pós-moderna, de um modo geral,
foram apresentados a você. Até mesmo o próprio conceito de His-
tória foi refletido em uma de suas significações.
O que é importante que fique registrado é o fato de que a
nova forma de ver a História, ou seja, enquanto discurso, implica
que os historiadores culturais não só tiveram de repensar o con-
ceito de verdade, como, também, questionar as verdades tidas
como absolutas. Michel de Certeau e Roger Chartier são exemplos
de historiadores que, repensando a História, contribuíram com o
emprego de conceitos ou noções que viabilizaram ver o passado
em sua forma múltipla e o homem em todas as suas categorias.
10. E-REFERÊNCIAS
Sites pesquisados
MAKOWIECKY, Sandra. Representação: a palavra, a idéia, a coisa. Cadernos de Pesquisa
Interdisciplinar em Ciências Humanas, n. 57, dez. 2003. Disponível em <http://www.
scribd.com/doc/4061978/Z-REPRESENTACAO-A-PALAVRA-A-IDEIA-A-COISA>. Acesso
em: 23 set. 2008.
CHARTIER, Roger. Cultura Popular: revisitando um conceito historiográfico. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, v. 8, n. 16, 1995, p. 179-192. Disponível em: <www.cpdoc.fgv.
br/revista/arq/172.pdf>. Acesso em: 14 out. 2008.
2. CONTEÚDOS
• Foucault e o pós-modernismo.
• Conceitos de discurso, poder, descontinuidade, episteme
e arqueologia.
Michel Foucault
Michel Foucault (1926-1984) esteve no Brasil algumas vezes.
Dentre as visitas, destacamos aquela de 1973, no Rio de Ja-
neiro, para o ciclo de conferências A Verdade e as Formas
Jurídicas e em 1975, em São Paulo, momento que coincidiu
com a morte do jornalista Vladimir Herzog, nas dependências
do DOI-CODI. Ao tomar conhecimento do ocorrido, Foucault
desmarcou seus compromissos acadêmicos e, no campus da
USP, leu um manifesto em protesto ao assassinato. Foucault
tomou nota de suas impressões. Para saber mais sobre o autor
e suas vindas ao Brasil, sugerimos a leitura do conteúdo do
site disponível em: <http://leiturasdahistoria.uol.com.br/ESLH/
Edicoes/4/imprime70338.asp>. Acesso em: 25 maio 2009 (ima-
gem disponível em: <http://www.nytimes.com/books/00/12/17/specials/foucault.html>.
Acesso em: 25 fev. 2009).
Jean-Paul Sartre
Jean Genet
Georges Canguilhem
Gilles Deleuze
Gilles Deleuze (1925-1995): para ele, a relação da filosofia
com a arte e a ciência deve ser de fundamental igualdade.
As três são vistas por ele como formas de saber diferentes,
mas de igual valor. Autor de Empirismo e Subjetividade,
Foucault e Péricles e Verdi, entre tantos outros títulos. Co-
nheça mais sobre Gilles Deleuze, acessando o site dispo-
nível em: <www.dossie_deleuze.blogger.com.br/>. Acesso
em: 26 mar. 2009 (imagem disponível em: <http://suple-
mentocultural.blogspot.com/2009_07_01_archive.html>.
Acesso em: 26 maio 2009).
Georges Dumézil
Jacques Lacan
4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
“Foucault revoluciona a História” – se é que, em algum mo-
mento, podemos afirmar que o fato é dado, esse é o caso. Esse fi-
lósofo, historiador ou (como preferia ser considerado) arqueólogo,
segundo Paul Veyne, revolucionou, tirou o chão dos historiadores,
levantou polêmicas e apresentou alternativas. Criticado ou acla-
mado, o fato é que Michel Foucault entrou na guerra contra os
tradicionais paradigmas historiográficos.
Formado em Psicologia e em Filosofia, Michel Foucault veio
parar na História. Não se tratou de um erro de percurso, mas de
um resultado de seus questionamentos, muitos dos quais têm
uma forte influência de Hegel (em menor proporção), Heidegger
(especialmente), Sartre e Nietzche. Outros fatores que possibili-
taram sua entrada no campo histórico foi sua crítica em relação à
ideia empobrecida do real daqueles historiadores que rejeitavam
o pensamento (o imaginado) a favor do social, bem como os temas
analisados em suas pesquisas. Contudo, mais importante que os
temas foi a diferente abordagem destes e os conceitos emprega-
dos que, em definitivo, o instalaram no seio da História.
Podemos citar dentre os conceitos introduzidos por Foucault
no dicionário dos historiadores os de “episteme”, “descontinuida-
des”, “arqueologia”, “genealogia”, “poder/saber”. Esse último duo
caracteriza toda sua obra.
Em suas andanças por universidades na Alemanha, Suécia,
Tunísia, Estados Unidos e França, manteve contato direto com
nomes como Jean-Paul Sartre, Jean Genet, Georges Canguilhem,
Gilles Deleuze, Georges Dumézil, Lacan etc. Todas essas expe-
riências (acadêmicas e em cafés) contribuíram nas escolhas de
seus temas.
Então, vamos revolucionar a História?
© U4 - O Efeito Foucault na Historiografia 117
5. DESPEDINDO DO PASSADO
Você vem acompanhando que, desde as décadas de
1960/1970, a História e seus conceitos têm sido repensados – e
como! No entanto, Marx (apud Rago 1995, p. 68) havia levantado
uma reflexão que, por muitos, foi esquecida:
7. MICROFÍSICA DO PODER
Embora o conceito de poder esteja fortemente presente no
livro Vigiar e Punir, ele permeia toda a obra de Foucault. Mas po-
der, para ele, não é absoluto ou controlado por uma pessoa, classe
ou instituição; é visto como uma “tecnologia”, a forma pela qual a
sociedade regula os seus membros, portanto, na produção e uso
do saber. “O poder existe como uma rede infinitamente complexa
de micropoderes, de relações de poder que permeiam todos os
aspectos da vida social” (O’BRIEN, 2001, p. 46).
Assim, esse controle está presente nas prisões, nas escolas,
na família, nos asilos, nas fábricas, nos exércitos etc. Os interstícios
do poder podem ser encontrados (e devem ser procurados pelos
historiadores) nos sentimentos, na consciência, na intuição.
Contudo, Michel Foucault não estudou o poder pelo poder.
Estudar o poder à sua maneira é buscar, por meio dos discursos,
como o poder possibilitou novas práticas, novas tecnologias de po-
der: da internação à prisão, da liberdade à disciplina. O corpo, no
contexto da obra do autor, passa a ser visto como o alvo do poder.
Do mesmo modo, a verdade passa pelo campo do poder. Se-
gundo o autor:
O importante, creio, é que a verdade não existe fora do poder ou
sem poder (não é − não obstante um mito, de que seria necessá-
rio esclarecer a história e as funções − a recompensa dos espíritos
livres, o filho das longas solidões, o privilégio daqueles que soube-
© U4 - O Efeito Foucault na Historiografia 121
8. OBRAS
Você já deve ter percebido que fica impossível negar a im-
portância de Foucault para a historiografia. Os temas, as novas for-
mas de abordá-los e os conceitos utilizados foram e ainda são ob-
jeto de discussões nos diferentes centros acadêmicos desde que
se lançou seu primeiro livro.
Em sua produção, temas como discurso, verdade e sexuali-
dade também são abordados. Para uma visão mais ampla desse
aspecto, vejamos alguns títulos de Michel Foucault:
• 1961: História da Loucura na Idade Clássica;
• 1963: Nascimento da clínica;
• 1966: As palavras e as coisas;
• 1969: Arqueologia do saber;
• 1970: A ordem do discurso;
• 1973: Eu, Pierre Rivière...;
• 1974: A verdade e as formas jurídicas;
• 1975: Vigiar e punir;
• 1976: História da sexualidade – a vontade de saber, v. I;
• 1984: História da sexualidade – o uso dos prazeres; Obras
póstumas: 1994: Dits et écrits, volumes I, II, III e IV;
• Este item também é obra póstuma: 1994: Resumo dos cur-
sos do Collège de France (1970-1982); Microfísica do poder.
INFORMAÇÃO:
As datas à esquerda dos títulos são aquelas referentes ao ano de
publicação na França, com exceção de Microfísica do poder, que
não foi publicado inicialmente naquele país.
“[...] Você não acha que certas obras mestras possuem uma
esmagadora superioridade sobre as outras? [...]” – apenas faz essa
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Evidentemente não lhe atribuiremos o propósito de renovar a moral estóica dos
gregos. Na última entrevista que a vida lhe permitiu conceder, ele se manifestou
claramente: não se encontrará jamais a solução de um problema atual em um
problema que, por estar situado em outra época, não é o mesmo senão que por
semelhança falaz. Ele jamais acreditou ver, na ética sexual dos gregos, uma
alternativa para a ética cristã, mas antes, o contrário. Não existem problemas si-
milares através dos séculos, nem em função de sua natureza, nem de sua razão;
o eterno retorno é assim um eterno partir (ele amava esta expressão de René
Char), e não existem mais do que as valorizações sucessivas. Em um perpétuo
new deal, o tempo redistribui as cartas sem cessar [...]
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Em sua primeira lição do ano de 1983 no College de France, Foucault opunha
a uma “filosofia analítica da verdade em geral”, sua própria preferência “por um
pensamento crítico que haveria de tomar a forma de uma ontologia de nós mes-
mos, uma ontologia da atualidade”; ele chegou, naquele dia, até a apelar para
“aquela forma de reflexão que, de Hegel à escola de Frankfurt, passa por Nietzs-
che e Max Weber”: se cuidará de levar longe demais esta analogia um tanto cir-
cunstancial, mas dela reterá duas coisas. Os livros de Foucault são, literalmente,
livros de um historiador, a menos que aos olhos daqueles que admitiram que não
existe história que não seja interpretativa. Mas Foucault não escreveu todos os
livros como historiador. Porque a história, essa interpretação, tem por segundo
programa o de ser um completo inventário. Claro que Foucault não se tornou
historiador mais do que daqueles pontos onde o passado encobre a genealogia
de nossa atualidade [...]
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
que, por vezes, é destacada: seus escritos são lidos como histo-
riográficos, filosóficos e mesmo antropológicos. Isso evidencia seu
ecletismo intelectual, suas leituras, sua postura diante do que será
analisado.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
A filosofia de Nietzsche – gostava de repetir Foucault – não era uma filosofia da
verdade, mas do dizer-verdadeiro. Para um guerreiro, as verdades são inúteis, e
mais ainda, são inacessíveis; se elas estivessem ditadas pela semelhança ou a
analogia com as coisas, poder-se-ia desesperar ao tentar alcançá-las, como afir-
ma Heidegger em um momento de seu percurso. Mas crendo buscar a verdade
das coisas, os homens acabam apenas por fixar as regras segundo as quais será
julgado o dizer como verdadeiro ou falso. Neste sentido, o saber não apenas é
o lugar dos poderes, uma arma do poder ou ele mesmo poder, ao mesmo tempo
que saber: ele não é mais do que poder, radicalmente, pois não é possível um
dizer-verdadeiro, mas que pela força das regras impostas em uma outra ocasião
por uma história da qual os indivíduos são, ao mesmo tempo e mutuamente,
atores e vítimas. Entendemos, então, por verdades, não as proposições verda-
deiras a descobrir ou a aceitar, mas o conjunto de regras que nos permitem dizer
e reconhecer aquelas proposições tidas por verdadeiras.
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[...] Em 1977, Foucault, em uma circunstância que prefiro esquecer, escreveu
no Le Monde uma coisa menos esquecível: que as liberdades e os direitos do
homem se fundam mais seguramente sobre a ação de homens e mulheres deci-
didos a usar o poder e defendê-los, que sobre a afirmação doutrinal da razão ou
do imperativo kantiano [...] Faz três ou quatro anos, no apartamento de Foucault,
olhávamos uma reportagem na tv sobre o conflito palestino/israelita; em um mo-
mento, a palavra foi concedida a um combatente de um dos lados (é indiferente
dizer qual). Este homem tinha um discurso distinto daqueles que se ouvem co-
mumente nas discussões políticas: “eu só sei de uma coisa”, dizia o combatente,
“e é que vou reconquistar a terra de meus ancestrais. Procuro isto desde que era
adolescente; ignoro de onde me vem esta paixão, mas é assim que é”. “Enfim, é
isto, tudo está dito e já não há mais nada a dizer”, disse Foucault.
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[...] Àquilo que chamamos uma cultura não possui nenhuma unidade de estilo,
é antes uma confusão de práticas discursivas rigorosamente interpretáveis, um
caos de precisão. Mas todas essas práticas têm em comum ser, ao mesmo tem-
po, empíricas e transcendentais, e como tais, constitutivas, há tanto tempo que
não podem ser eliminadas, e só o diabo sabe com qual recurso se haverão de
impor em cada caso esses “discursos” [...]. Foucault não se oporia se propusés-
semos que o transcendental é ao mesmo tempo histórico [...]
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Autêntica pintura da história universal, constância evidente dos tempos que tudo
apagam; entretanto, nós continuamos sem nada ver, e relendo Kant [...] A fi-
losofia de Foucault é ao mesmo tempo quase trivial e paradoxal. Foucault se
reconhece incapaz de justificar suas próprias preferências; não pode lançar mão
nem de uma natureza humana, nem de uma razão, nem de funcionalismo, nem
de uma essência, nem da adequação ao objeto. Todos, em suma somos iguais,
sem dúvida, mas se é que não se possam discutir mais os gostos e as valora-
ções, com que objetos ter escrito livros de história, que bem podem ser de moral
e que certamente são de filosofia? Pois um saber é um poder: ele impõe e se
nos impõe, não emana de uma natureza das coisas; mas possui, contudo, seu
limite: a atualidade.
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© U4 - O Efeito Foucault na Historiografia 127
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Os homens não podem fazer muito mais coisas do que valorar, não menos que
respirar, e se enfrentam por seus valores. Foucault vai tratar de impor uma de
suas preferências, resgatada dos gregos, à qual lhe parece ser de atualidade; [...]
A atualidade limita as preferências possíveis. Max Weber, outro nietzscheano,
havia exclamado com beleza: “posto que não existe a verdade dos valores e que
o céu se encontra dilacerado, cada um combate por seus deuses, e como novos
Lutero, peca resolutamente”: mas as posições inimigas não são assim reversí-
veis como indica Weber; a atualidade nunca é qualquer uma. Ser filósofo é fazer
o diagnóstico dos atuais possíveis, e ao fazê-lo, erigir o mapa estratégico. Com a
secreta esperança de influir na definição dos combates. Apanhado em sua finitu-
de, em seu tempo, o homem não pode senão pensar, não importa em que, nem
importa quando; já vai reclamar os romanos a abolição da escravidão ou refletir
sobre o equilíbrio internacional. Uma memória me vem, que data de 1979; aquele
ano Foucault inicia seu curso mais ou menos nesses termos: “Vou abordar certos
aspectos do mundo contemporâneo e de sua governamentalidade; este curso
não lhes dirá o que é que vocês devem fazer, ou contra quem devem comba-
ter, mas lhes proverá um mapa; e em função disso, lhes dirá: se vocês querem
atacar em tal ou qual direção, tudo bem, mas aqui há um nó de resistência e, ali
um acesso possível”. Foucault acrescenta também aqui algo do qual eu ignoro o
sentido exato: “enquanto a mim, não vejo, pelo menos até agora, quais critérios
são os que permitiriam decidir contra que coisa devemos nos enfrentar, salvo, tal-
vez, os critérios estéticos”; não devemos abusar destas últimas palavras, que po-
deriam não ser outra coisa senão uma confissão de ignorância, ou uma distância
que toma respeito das convicções de muitos de seus ouvintes. Tudo mais o que
pode haver aqui é um vago pressentimento do que será o grande tema no ano
de sua morte: não já os critérios estéticos, mas a idéia de um estilo de existência.
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Porque em L’usage des plaisirs e no Souci de soi, o diagnóstico da atualidade
é aproximadamente este: no mundo moderno, parece ter se tornado impossível
fundamentar uma moral. Não existe mais uma natureza ou uma razão diante a
qual render-se, nem uma origem com a qual estabelecer uma relação autêntica
[...]; a tradição ou a sujeição não são mais que situações de fato [...] O que per-
dura é que os mortais comuns são compostos de sujeitos, de seres desdobrados,
que mantêm uma relação ou de consciência ou de conhecimento de si consigo
mesmos. É sobre estas bases que julgará Foucault.
A idéia de um estilo da existência tem julgado um desempenhado um papel nas
conversações e, sem dúvida, na vida interior de Foucault durante os últimos me-
ses de uma vida que ele sabia ameaçada. “Estilo” não quer dizer aqui distinção;
a palavra está tomada no sentido dos gregos, para quem um artista era, antes
de qualquer coisa, um artesão, e uma obra de arte, uma obra. A moral grega está
bem morta e Foucault pensava que era pouco desejável e impossível ressuscitá-
-la: mas um detalhe desta moral, a saber, a idéia de um trabalho de si sobre si,
parecia suscetível de adquirir um sentido atual, a maneira de uma dessas colu-
nas dos templos antigos pagãos que, às vezes, se vê reinstaladas nos edifícios
mais recentes [...]
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Foucault, com uma visão ampla das coisas, não pretendeu que nos entregás-
semos, portanto a uma moral já formada dos pés à cabeça; considerava essas
façanhas acadêmicas mortas junto com a filosofia antiga. Mas nos sugeriu uma
saída. Levou consigo o resto de sua estratégia. Mas ele, de modo algum, pre-
tendeu apontar uma solução verdadeira ou definitiva; posto que a humanidade
se desloca sem parar, sendo também que alguma solução atual revela logo que
ela carrega seus perigos, toda solução é então imperfeita, e isso será sempre
assim: um filósofo é aquele que, para cada nova atualidade, diagnostica o novo
perigo, e mostra uma nova saída. Com esta concepção novíssima de filosofia, a
verdade clássica está morta, enquanto que, da confusão historicista moderna se
desprende nossa idéia de atualidade. [i]
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Foucault não experimentou o medo da morte: dizia isso às vezes a seus
amigos, quando a conversa recaía sobre o suicídio; e os fatos provaram,
ainda que de outra maneira, que não era arrogância. A prudência antiga havia
se tornado hábito pessoal para ele, inclusive de outras formas: durante os
oito últimos meses de sua vida, a redação de seus dois livros desempenhou
para ele o papel que a escritura filosófica e o diário pessoal desempenhavam
na filosofia antiga: a de um trabalho sobre si, o de uma auto-estilização (ele
mesmo publicou, naqueles dias, no número cinco de Corps ecrit, um penetrante
estudo sobre esta questão).
Durante esses oito meses, víamos trabalhar tenazmente escrevendo e reescre-
vendo seus dois livros, saldando esta grande dívida consigo mesmo; ele me fala-
va sem parar de seus livros ou me fazia verificar as traduções; Ao mesmo tempo
que se queixava de uma febre ligeira, mas incessante e de uma tosse tenaz que
o fazia ir de vagar, cortesmente me fazia pedir conselhos a minha mulher, que era
médica e que nada podia fazer, mas [...] ele sabia.
“Você deveria repousar”, eu dizia, “teus estudos de grego e latim te esgotaram”
– “sim, mas depois”, respondia; “antes eu tenho que terminar com esses dois
livrinhos”.
Retrospectivamente, sua atitude não tira o alento. Dar um exemplo vivo, não era
outra das tradições dos filósofos antigos? Tudo isso acabava por aclarar para
mim, em uma alucinação visual [ii], o mesmo dia da morte de Foucault, alguns
minutos antes do telefonema de Maurice Pinguet que me informou do aconteci-
do, quando eu estive em Tóquio, onde também uma rádio japonesa acabara de
anunciar a notícia.
O homem é um ser que confere sentidos e que algumas vezes estetiza também.
Um ano antes de sua morte, Foucault teve um dia a ocasião de falar sobre o ritual
da morte solene, tal como se o praticava na Idade Média e inclusive no século
XVII: o moribundo, rodeado de todos seus parentes, lhes deixava, de seu leito
de morte, suas lições. O historiador Philippe Ariès lamentou que em nossa época
esse grande integração social tenha caído em desuso. Foucault mesmo não se
lamentou de nada, mas escreveu isto: “eu prefiro a doce tristeza da desaparição
a esta morte cerimonial. Há algo de quimérico em querer reatualizar, em um ím-
peto nostálgico, as praticas que já não possuem mais nenhum sentido. Tratemos
de melhor de outorgar sentido e beleza à morte-desaparição”.
Notas
[i] Um dia, em que discutíamos sobre a verdade dos mitos, ele me dizia que a
grande questão, segundo Heidegger, era a de saber qual era o fundamento da
verdade; segundo Wittgenstein, a de saber o que se diz quando se diz o verda-
deiro: mas “a meu ver”, acrescentou textualmente (pois logo tomei nota daquela
frase), “a questão é: de onde vem a idéia de que a verdade seja, no mínimo,
verdadeira?”
[ii] Eu me encontrava neste momento na estrada; as últimas notícias sobre a saú-
de de Foucault tinham sido ruins; minha mulher me explicara que os médicos não
sabiam mais o que fazer e que o tratamento não estava correspondendo, quase,
com o diagnóstico oficial de sua doença. De repente, me vi ultrapassado por um
potente carro, de cor verde alegre, de eixos maiores do que a carroceria e com lar-
gos pneus; o carro, de modelo pouco comum, tinha um largo pára-brisa retangular
que deixava ver bem o interior. No instante que me restou, reconheci Foucault no
condutor, que, surpreso, voltou para mim seu perfil agudo e me sorrio com seus
delgados lábios. Imediatamente apertei o acelerador para alcançá-lo, mas desisti
em seguida, dando-me por conta de que o esforço era duplamente inútil: o carro
verde era rápido demais e, sobretudo, aquilo não tinha o aspecto da percepção,
e sim o perfume de uma alucinação. O carro desapareceu ao longe ou deixou de
existir, não sei. Não compreendi que seu largo pára-brisa dianteiro era um carro
fúnebre; foi um amigo que me fez ver isso meses mais tarde. Em contrapartida, o
duplo sentido da alucinação me foi clarificado; Foucault havia ido para onde todos
iremos e, em seus livros sobre o amor antigo, havia chegado mais longe que eu.
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12. CONSIDERAÇÕES
Há muito mais para se dizer de Foucault; as discussões não
terminam por aqui. No entanto, boa parte do que já foi dito em
outras unidades sobre o discurso, as práticas discursivas, a verda-
de e a escrita da História contém bastante de suas contribuições.
O livro A ordem do discurso, dentro do possível, deverá fazer parte
de sua biblioteca de obras lidas (afinal, quantos livros temos e que
ainda não lemos?).
Entretanto, acreditamos que as abordagens apresentadas
nesta unidade já lhe dão um bom parâmetro sobre as contribui-
ções de Michel Foucault para os debates sobre a mudança dos
tradicionais paradigmas historiográficos: a verdade, como nunca,
foi questionada e compreendida como construção histórica e não
mais como absoluta; o homem ganhou o seu plural, sua sexualida-
de, profissões, deixando de ser o Homem Universal; e, por fim e
mais importante, a História deixou de ver o passado como um fato
dado, pronto para ser desvelado; e tornou-se discurso.
Dentro do contexto da História enquanto discurso, um últi-
mo debate deverá ser considerado: para se mostrar, qual a forma
que a História toma para ser conhecida? A da narração? Mas, se é
narração, um dos recursos da Literatura, então ela é ficção? Esse
será o tema da nossa próxima unidade, em que discutiremos a His-
tória Narrativa e as contribuições de Hayden White.
Pronto para mais um desfio? Então vamos em frente!
13. E-REFERÊNCIA
Site Pesquisado
VIEIRA, Priscila P. Reflexões sobre A História da Loucura de Michel Foucault. Revista
Aulas. Dossiê Foucault. n. 3 – dezembro 2006/março 2007- Organização: Margareth Rago
e Adilton Luís Martins. ISSN 1981-1225 (disponível em <http://www.unicamp.br/~aulas/
pdf3/24.pdf>. Acesso em: 13 set. 2008).
EAD
História, Narrativa
e Ficção
5
1. OBJETIVOS
• Conhecer e analisar o conceito de narrativa e os debates
em torno dela.
• Conhecer e analisar as principais contribuições de Hayden
White.
• Compreender e demonstrar os conceitos utilizados em
sua produção acadêmica.
2. CONTEÚDOS
• A questão da narrativa na historiografia pós-moderna.
• As discussões levantadas por Hayden White sobre a nar-
rativa.
• As discussões levantadas por Hayden White sobre a rela-
ção entre a História e Ficção.
134 © Historiografia e Teoria da História
Paul Ricoeur
Paul Ricoeur (1913-2005): filósofo francês em cuja obra debateu
temas relacionados à Linguística, à Psicanálise, ao Estrutura-
lismo e à Hermenêutica. Dentre as principais citamos: História
e verdade e Tempo e narrativa. Visite o site oficial de Ricoeur,
que está disponível em: <http://ricoeur.iaf.ac.at/FR/index.htm>.
Acesso em: 23 jun. 2010.
Além desse site, há outro que traz informações sobre o au-
tor. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid
=S0103-40141997000200016>. Acesso em: 23 jun. 2010 (imagem disponível
em: <http://www.voltairenet.org/article125537.html>. Acesso em: 12 fev. 2009).
Hayden White
Hayden White (1928), historiador norte-americano, é professor
de Literatura Comparada na Universidade de Stanford e profes-
sor emérito na Universidade da Califórnia. É um dos grandes
reponsáveis pelo uso e pela adaptação das categorias da crítica
literária voltadas para a análise historiográfica. Para saber mais
sobre o autor, acesse os sites. Disponível em: <http://letrasartes.
blogspot.com/2008/10/histria-e-letras-verdade-e.html>. Acesso
em: 23 jun. 2010. Disponível em: <http://www.historiaehistoria.
com.br/materia.cfm?tb=alunos&id=4>. Acesso em: 23 jun. 2010
(imagem disponível em: <http://letrasartes.blogspot.com/2008/10/histria-e-letras-
-verdade-e.html>. Acesso em: 23 jun. 2010).
Jules Michelet
Jules Michelet (1798-1874): historiador francês considerado o
primeiro a afirmar que as massas eram e os principais agentes
das mudanças sociais e não as grandes personalidades. Seus
pensamentos acabaram por colaborar com os ideais da Revo-
lução Francesa. Entre suas obras, citamos História da França.
Veja a biografia desse autor no site disponível em: <http://www.
netsaber.com.br/biografias/ver_biografia_c_2425.html>. Acesso
em: 27 maio 2009 (imagem disponível em: <http://etablissements.ac-amiens.
fr/0601189s/index1.html>. Acesso em: 27 maio 2009).
Alexis de Tocqueville
Alexis de Tocqueville (1805-1859): pensador político e histo-
riador francês que se sobressaiu no meio intelectual devido às
suas análises da Revolução Francesa. Sua última obra: O An-
tigo Regime e a Revolução Francesa. Para saber mais sobre
ele, recomendamos a leitura do site disponível em: <http://www.
cdcc.usp.br/ciencia/artigos/art_24/conceitodemo.html>. Acesso
em: 23 jun. 2010 (imagem disponível em: <http://escoladeredes.
ning.com/profiles/blogs/nao-e-possivel-tratar-de-redes?id=2384710%3ABlogPo
st%3A46073&page=-1>. Acesso em: 23 maio 2009).
Jacob Burckhardt
Jacob Burckhardt (1818-1897): historiador suíço autor de A
Cultura do Renascimento na Itália, solidificou a ideia de que a
renascença italiana culminava com o desenvolvimento do indi-
víduo, a “descoberta” do mundo e do homem. Pesquise mais
sobre esse autor no site disponível em: <www.scielo.br/scie-
lo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882005000100006>.
Acesso em: 23 jun. 2010 (imagem disponível em: <http://
www.britannica.com/EBchecked/topic-art/84952/9118/Jacob-
-Burckhardt-1892>. Acesso em: 17 fev. 2009).
© U5 - História, Narrativa e Ficção 137
4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Os debates sobre os campos de atuação da História e demais
Ciências Sociais acabaram por discutir a inter, multi e transdiscipli-
naridade. Com isso, a relação da História e da Literatura entrou na
pauta. Do mesmo modo, essa relação também se inseriu no con-
texto da discussão sobre a verdade histórica. Ora, quem produz a
verdade? Ela pode ser objetiva? Como você já estudou nas demais
unidades, o pós-modernismo não acredita nessa objetividade da
verdade; assim, a História deve rever suas pretensões a um lugar
entre as ciências (contribuições para essa temática já foram dadas
por Valéry, Heidegger, Sartre, Lévi-Strauss e Michel Foucault). En-
tretanto, não é fácil “descer o degrau”, ou se deslocar dele rumo à
plataforma da Literatura ou da Arte. Estas são o fardo da História:
suas tentativas de justificar o seu ofício. Aos que criticam suas am-
biguidades, ela (a História) responde que nunca quis ser ciência.
Aos que a criticam por não utilizar a representação literária, ela se
posiciona como semiciência.
E como se libertar desse fardo?
Antes de mais nada, os historiadores precisam admitir a justificati-
va da revolta atual contra o passado [...] O historiador contempo-
râneo precisa estabelecer o valor do estudo do passado, não como
um fim em si, mas como um meio de fornecer perspectivas sobre o
presente que contribuam para a solução dos problemas peculiares
ao nosso tempo (WHITE, 1994, p. 53).
5. A QUESTÃO DA NARRATIVA
Entre as décadas de 1970 e 1980, a temática da narrativa voltou
a ser destaque em meio aos historiadores e outros pesquisadores das
Os tropos linguísticos
Para Hayden White, o historiador não tem de pensar apenas
na escolha do tipo de enredo, mas, igualmente, na escolha de um
dos quatro tropos linguísticos: metáfora, metonímia, sinédoque e
a ironia (as três últimas entendidas como espécies da primeira). Se
assim o historiador faz (utiliza-se de tropos), então a distinção que
existe entre a História e a ficção é de forma e não de conteúdo, ou
seja, tanto a História quanto a Literatura produzem uma narrativa
ficcional.
Para você compreender melhor: os tropos são desvios do
uso literal da linguagem que geram figuras de linguagem, ou seja,
7. TEXTO COMPLEMENTAR
Para aprofundar seus conhecimentos acerca do debate en-
tre História e Literatura, o texto a seguir mostrou-se um impor-
tante instrumento de reflexão; por isso, há a sua disponibilização
na íntegra. Ele é encontrado, em sua versão eletrônica, em Nuevo
Mundo Mundos Nuevos, Debates, 2006. Disponível em: <http://
nuevomundo.revues.org/1560>. Acesso em: 28 jan. 2006.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Se os conceitos são artifícios mentais que se propõem a interrogar e explicar o
mundo e que, articulados, resultam em constelações teóricas, ousaríamos dizer
que o desafio atual é o e assumir que as ciências humanas se voltam, “gros-
so modo”, para uma postura epistemológica diferenciada. Não se trata, aqui no
caso, de desenvolver toda a gama de conceitos e de redefinições teóricas orien-
tadoras das diferentes correntes que estudam a cultura nestas décadas finais do
século e do milênio. Apenas caberia assinalar que tais mudanças passam, com
freqüência, pelos caminhos da representação e do simbólico, assim como da
preocupação com a escrita da história e sua recepção.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
O que a autora quis nos dizer é que não estão sendo pro-
postas mudanças no interior das teorias, mas, sim, que as teorias
passam periodicamente por reflexões.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Preferimos concentrar nosso enfoque numa perspectiva que, a nosso ver, tem se
revelado profícua neste giro do olhar sobre o mundo e que redimensiona, por sua
vez, as relações entre a história e a literatura. Referimo-nos aos estudos sobre o
imaginário, que abriram uma janela para a recuperação das formas de ver, sentir
e expressar o real dos tempos passados.
Atividade do espírito que extrapola as percepções sensíveis da realidade con-
creta, definindo e qualificando espaços, temporalidades, práticas e atores, o
imaginário representa também o abstrato, o não-visto e não-experimentado. É
elemento organizador do mundo, que dá coerência, legitimidade e identidade. É
sistema de identificação, classificação e valorização do real, pautando condutas
e inspirando ações. É, podemos dizer, um real mais real que o real concreto[...]
O imaginário é sistema produtor de idéias e imagens que suporta, na sua feitura,
as duas formas de apreensão do mundo: a racional e conceitual, que forma o
conhecimento científico, e a das sensibilidades e emoções, que correspondem
ao conhecimento sensível.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Ao construir uma representação social da realidade, o imaginário passa a subs-
tituir-se a ela, tomando o seu lugar. O mundo passa a ser tal como nós o conce-
bemos, sentimos e avaliamos. Ou, como diria Castoriadis, a sociedade, tal como
tal é enunciada, existe porque eu penso nela, porque eu lhe dou existência – ou
seja, significação – através do pensamento. Os recentes estudos de Lucian Boia2
, historiador romeno, acenam para a possibilidade de estabelecer estratégias
metodológicas de acesso a este mundo do imaginário, crème de La crème da
historiografia atual.
Por um lado, há uma tentativa de viés antropológico (Gilbert Durand, Yves Du-
rand), que se baseia na idéia da possibilidade de divisar traços e rasgos de
permanência na construção imaginária do mundo, [...] Por outro lado, em uma
versão historicizada (Le Goff), articula-se o entendimento de que os imaginários
são construções sociais e, portanto, históricas e datadas, que guardam as suas
especificidades e assumem configurações e sentidos diferentes ao longo do tem-
po e através do espaço.
Admitindo, como propõe Boia, a possibilidade de conjugar, estrategicamente, as
duas posturas, que combinadas associariam os traços de permanência de estru-
turas mentais com as configurações específicas de cada temporalidade, desem-
bocamos na redescoberta da literatura pela história.
Clío se aproxima de Calíope, sem com ela se confundir. História e literatura cor-
respondem a narrativas explicativas do real que se renovam no tempo e no es-
paço, mas que são dotadas de um traço de permanência ancestral: os homens,
desde sempre, expressaram pela linguagem o mundo do visto e do não visto,
através das suas diferentes formas: a oralidade, a escrita, a imagem, a música.
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© U5 - História, Narrativa e Ficção 145
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O que nos interessa, [...], é discutir o diálogo da história com a literatura, como
um caminho que se percorre nas trilhas do imaginário, [...]
Para enfrentar esta aproximação entre estas formas de conhecimento ou discur-
sos sobre o mundo, é preciso assumir, em uma primeira instância, posturas epis-
temológicas que diluam fronteiras e que, em parte, relativizem a dualidade ver-
dade/ficção, ou a suposta oposição real/não-real, ciência ou arte3. Nesta primeira
abordagem reflexiva, é o caráter das duas formas de apreensão do mundo que
se coloca em jogo, face a face, em relações de aproximação e distanciamento.
Assim, literatura e história são narrativas que tem o real como referente, para
confirmá-lo ou negá-lo, construindo sobre ele toda uma outra versão, ou ainda
para ultrapassá-lo. Como narrativas, são representações que se referem à vida
e que a explicam. Mas, dito isto, que parece aproximar os discursos, onde está
a diferença? Quem trabalha com história cultural sabe que uma das heresias
atribuídas a esta abordagem é a de afirmar que a literatura é igual à história [...]
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A literatura é, no caso, um discurso privilegiado de acesso ao imaginário das
diferentes épocas. No enunciado célebre de Aristóteles, em sua “Poética”, ela é
o discurso sobre o que poderia ter acontecido, ficando a história como a narrativa
dos fatos verídicos. Mas o que vemos hoje, nesta nossa contemporaneidade, são
historiadores que trabalham com o imaginário e que discutem não só o uso da
literatura como acesso privilegiado ao passado — logo, tomando o não-aconteci-
do para recuperar o que aconteceu! — como colocam em pauta a discussão do
próprio caráter da história como uma forma de literatura, ou seja, como narrativa
portadora de ficção!4
Tomemos a faceta do não acontecido, elemento perturbante para um historiador
que tem como exigência o fato de algo ter ocorrido um dia. Mas, a rigor, de qual
acontecido falamos? Se estamos em busca de personagens da história, de acon-
tecimentos e datas sobre algo que se deu no passado, sem dúvida a literatura
não será a melhor fonte a ser utilizada. Falamos em fonte? A coisa se complica:
como a literatura, relato de um poderia ter sido, pode servir de traço, rastro, indí-
cio, marca de historicidade, fonte, enfim, para algo que aconteceu?
A sintonia fina de uma época, fornecendo uma leitura do presente da escrita,
pode ser encontrada em um Balzac ou em um Machado, sem que nos preocu-
pemos com o fato de Capitu, ou do Tio Goriot e de Eugène de Rastignac, terem
existido ou não. Existiram enquanto possibilidades, como perfis que retraçam
sensibilidades. Foram reais na “verdade do simbólico” que expressam, não no
acontecer da vida. São dotados de realidade porque encarnam defeitos e virtu-
des dos humanos, porque nos falam do absurdo da existência, das misérias e
das conquistas gratificantes da vida. Porque falam das coisas para além da moral
e das normas, para além do confessável, por exemplo.
Mas, sem dúvida, dirá alguém, no delineamento de tais personagens e na articu-
lação de tais intrigas, houve um Honoré de Balzac e um Joaquim Maria Machado
de Assis, o que não é pouca coisa [...] Sim, por certo, longe de negar a genialida-
de dos autores, ressaltamos a existência imprescindível dos narradores de uma
trama, que mediatizam o mundo do texto e o do leitor. E não esqueçamos, como
alerta Paul Ricoeur5, que os fatos narrados na trama literária, existiram de fato
para a voz narrativa!
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Mas, a rigor, o processo acima descrito para o âmbito da literatura não será o
mesmo nos domínios da História?
Neste campo temos também um narrador – o historiador – que tem também ta-
refas narrativas a cumprir: ele reúne os dados, seleciona, estabelece conexões e
cruzamentos entre eles, elabora uma trama, apresenta soluções para decifrar a
intriga montada e se vale das estratégias de retórica para convencer o leitor, com
vistas a oferecer uma versão o mais possível aproximada do real acontecido.
O historiador não cria personagens nem fatos. No máximo, os “descobre”, fa-
zendo-os sair da sua invisibilidade. A título de exemplo, temos o caso do negro,
recuperado como ator e agente da história desde algumas décadas, embora
sempre tenha estado presente. Apenas não era visto ou considerado, tal como
as mulheres ou outras tantas ditas “minorias”.
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Historiadores também mediatizam mundos, conectando escrita e leitura. Dele
também se espera performance exemplar, genial, talvez [...] E ele também não
tem, admitamos, certezas absolutas de chegar lá, na tal temporalidade já escoa-
da, irremediavelmente perdida e não recuperável, do acontecido.
Na reconfiguração de um tempo - nem passado nem presente, mas tempo his-
tórico reconstruído pela narrativa -, face à impossibilidade de repetir a experiên-
cia do vivido, os historiadores elaboram versões. Versões plausíveis, possíveis,
aproximadas, daquilo que teria se passado um dia. O historiador atinge pois a
verossimilhança, não a veracidade. Ora, o verossímil não é a verdade, mas algo
que com ela se aparenta. O verossímil é o provável, o que poderia ter sido e que
é tomado como tal. Passível de aceitação, portanto.
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Registramos, com isto, a mudança deliberada do tempo verbal: o poderia, o teria
sido, com o que a narrativa histórica, representação do passado, se aproximaria,
perigosamente, da definição aristotélica da poesia, pertencente ao campo da fic-
ção. Ou seja, as versões do acontecido são, de forma incontornável, um poderia
ter sido. A representação do passado feita pelo historiador seria marcada por
esta preocupação ou meta: a da de vontade de chegar lá e não da certeza de
oferecer a resposta certa e única para o enigma do passado.
Assim, a noção proposta por Paul Ricoeur de “representância” vem ao encontro
desta propriedade do trabalho do historiador: mais do que construir uma repre-
sentação, que se coloca no lugar do passado, ele é marcado pela vontade de
atingir este passado. Trata-se de uma militância no sentido de atingir o inatingí-
vel, ou seja, o que um dia se passou, no tempo físico já escoado.
O segredo semântico de aproximação dos discursos se encerra neste tempo
verbal: “teria acontecido”. O historiador se aproxima do real passado, recuperan-
do com o seu texto que recolhe, cruza e compõe, evidências e provas, na busca
da verdade daquilo que foi um dia. Mas sua tarefa é sempre a de representa-
ção daquela temporalidade passada. Ele também constrói uma possibilidade de
acontecimento, num tempo onde não esteve presente e que ele reconfigura pela
narrativa. Nesta medida, a narrativa histórica mobiliza os recursos da imagina-
ção, dando a ver e ler uma realidade passada que só pode chegar até o leitor
pelo esforço do pensamento.
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Por outro lado, no aprofundamento destas questões, constata-se que tem sido
tradicional reservar à literatura o atributo da ficção, negando esta condição ou
prática ao campo da história6.
Num giro de análise, poderíamos também acrescentar que o fato histórico é,
em si, também criação pelo historiador, mas na base de documentos “reais” que
falam daquilo que teria acontecido. Como diz Jauss, não é possível manter ainda
uma distinção ingênua e radical entre res factae e res fictae7, como se fosse pos-
sível chegar, por meio de documentos reais, a uma verdade incontestável e, por
outro lado, por meio de artifícios, ficar no mundo da fantasia ou pura invenção.
No contrafluxo da ficção, o que teríamos, a verdade? Se esta for, como pro-
põe Aristóteles, a correspondência do discurso com o real, já vimos que, nos
caminhos do resgate do real passado, a história se baseia mais em versões e
possibilidades do que certezas. O distante passado, como atingi-lo na sua inte-
gridade? E mesmo que, por um passe de mágica, para um outro tempo fôssemos
transportados, na posição de testemunha ocular dos fatos, o que veríamos? Sem
duvida, nossa visão seria diferente da do companheiro que nos acompanhasse
nesta viagem fantástica no túnel do tempo. E, ao retornar ao nosso tempo, tería-
mos múltiplas versões do acontecido!
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Os historiadores do tempo presente ou da história oral que o digam quão difícil é
lidar com os testemunhos dos diferentes protagonistas de um mesmo incidente ou
fato histórico. Quantos relatos e versões se tecem em cima de um mesmo fato!
Para construir a sua representação sobre o passado a partir das fontes ou ras-
tros, o caminho do historiador é montado através de estratégias que se aproxi-
mam das dos escritores de ficção, através de escolhas, seleções, organização
de tramas, decifração de enredo, uso e escolha de palavras e conceitos.
Mas então, poderíamos nos perguntar, os historiadores, tal como os escritores
de literatura, produziriam versões imaginárias do real? A narrativa histórica seria
uma espécie de ficção?
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Há, sem dúvida, uma definição corrente, explícita no conhecido dicionário Auré-
lio, que afasta da história a ficção: em uma primeira acepção, ficção é o ato de
fingir, simular, e em outra, significa coisa imaginária, fantasia, invenção, criação.
Tal definição corresponde a um estatuto reconhecido, a um senso comum que
chega até a academia: a história é diferente, é a narrativa organizada dos fatos
acontecidos, logo, não é fingimento ou engodo, delírio ou fantasia.
Preferimos definir a ficção na sua acepção que, como diz Natalie Davis8 estava
ainda presente no século XVI, antes do cientificismo do século XIX converter a
história na “rainha das ciências” e de colocar, não no seu horizonte mas no seu
campo efetivo de chegada, a verdade verdadeira do acontecido. Este posiciona-
mento antigo nos fala da ficção/fingere como uma criação a partir do que existe,
como construção que se dá a partir de algo que deixou indícios. A palavra fictio,
corrobora Ginzburg, está ligada a figulus, oleiro9, ou seja, aquele que cria a partir
de algo. No caso do historiador, este algo que existiu seriam as fontes, traços da
evidência de um acontecido, espécie de provas para a construção do passado.
Na complementação deste entendimento, que afasta a ficção da pura fantasia,
Carlo Ginzburg cita Isidoro de Sevilha, quando este escreveu dizendo que falso
era o não verdadeiro, fictio [fictum] era o verossímil.10
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Bem sabemos que o historiador está preso às fontes e à condição de que tudo
tenha acontecido. O historiador não cria o traço no seu sentido absoluto, eles
os descobre, os converte em fonte e lhes atribui significado. Há que considerar
ainda que estas fontes não são o acontecido, mas rastros para chegar a este.
Se são discursos, são representações discursivas sobre o que se passou; se são
imagens, são também construções, gráficas ou pictóricas, por exemplo, sobre o
real. Assim, os traços que chegam do passado suportam esta condição dupla:
por um lado, são restos, marcas de historicidade; por outro, são representações
de algo que teve lugar no tempo.
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Fontes como “restos” e como representações. Esse passado
que ganha significado não pode ser compreendido como único.
Essa é uma das ênfases que vêm sendo trabalhadas neste artigo.
Essa é uma reflexão que deverá fazer parte de seu cotidiano de
professor e pesquisador em História.
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Mas, a rigor, é o historiador que transforma estes traços em fontes, através das
perguntas que ele faz ao passado. Atribuindo ao traço a condição de documento
ou fonte, portador de um significado e de um indício de resposta às suas indaga-
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Em terceiro lugar, a ficção na história é controlada pelas estratégias de argu-
mentação – a retórica - e pelos rigores do método – testagem, comparação e
cruzamento -, na sua busca de reconstituir uma temporalidade que se passou
por fora da experiência do vivido. Sua versão do passado deve, hipoteticamen-
te, poder “comprovar-se” e ser submetida à testagem, pela exibição das fontes,
bibliografia, citações e notas de rodapé, como que a convidar o leitor a refazer o
caminho da pesquisa se duvidar dos resultados apresentados. O texto, por sua
vez, deve convencer o público leitor. O uso dos conceitos, das palavras, a cons-
trução de argumentos devem ser aceitos, colocando-se no lugar do ocorrido, em
explicação satisfatória.
Mas – e esta parece ser uma especificidade muito importante – a reconstituição
do passado vivido pela narrativa histórica dá a ver uma temporalidade que só
pode existir pela força da imaginação, como já foi apontado. Ficção, pois? Ficção
controlada? Ficção histórica, possível dentre de certos princípios? E este, no
caso, se apoiariam em desejo de veracidade e resultado de verossimilhança?
A história é um romance verdadeiro, disse o iconoclasta Paul Veyne no início da
década de 70. Verdadeiro porque aconteceu, mas romance porque cabe ao his-
toriador explicar o como. E, nesta instância, na urdidura do texto e da argumenta-
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Mas nos voltemos agora para uma segunda instância de análise, que é a do uso
da literatura pela história, sem que com isso estabeleçamos hierarquias de valor
sobre os modos de dizer o real. Quando nos referimos ao uso da literatura pela
história, nos reportamos ao lugar de onde se enuncia o problema e a pergunta
que, no caso, é o campo da história.
Sob esta segunda ótica, aí sim, podemos dizer que o diálogo se estabelece a
partir de uma hierarquização entre os campos, a partir do lugar onde são colo-
cadas as questões ou problemas. E, neste caso, a partir deste particular e espe-
cífico ponto de vista, podemos dizer que, quando a história coloca determinadas
perguntas, ela se debruça sobre a literatura como fonte.
Nesta medida, um diálogo se estabelece no jogo transdisciplinar e interdiscur-
sivo das formas de conhecimento sobre o mundo, onde a história pergunta, e a
literatura responde. É preciso ter em conta, contudo, que os discursos literário e
histórico são formas diferentes de dizer o real. Ambos são representações cons-
truídas sobre o mundo e que traduzem, ambos, sentidos e significados inscritos
no tempo. Entretanto, as narrativas histórica e a literária guardam com a realida-
de distintos níveis de aproximação.
A recorrência do “uso” de um campo pelo outro é, pois, possível, a partir de uma
postura epistemológica que confronta as tais narrativas, aproximando-as num mes-
mo patamar, mas que leva em conta a existência de um diferencial. Historiadores
trabalham com as tais marcas de historicidade e desejam chegar lá. Logo, freqüen-
tam arquivos e arrecadam fontes, se valem de um método de análise e pesquisa,
na busca de proximidade com o real acontecido. Escritores de literatura não tem
este compromisso com o resgate das marcas de veracidade que funcionam como
provas de que algo deva ter existido. Mas, em princípio, o texto literário precisa,
ele também, ser convincente e articulado, estabelecendo uma coerência e dando
impressão de verdade. Escritores de ficção também contextualizam seus persona-
gens, ambientes e acontecimentos para que recebam aval do público leitor.
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Mas se a literatura pode ser fonte para a história, uma terceira instância de análi-
se se introduz, que é a da especificidade e riqueza do texto ficcional.
Sem dúvida, sabemos do potencial mágico da palavra e da sua força em atribuir
sentido ao mundo. O discurso cria a realidade e faz ver o social a partir da lingua-
gem que o designa e o qualifica. Já o texto de ficção literária é enriquecido pela
propriedade de ser o campo por excelência da metáfora. Esta figura de lingua-
gem, pela qual se fala de coisas que apontam para outras coisas, é uma forma
da interpretação do mundo que se revela cifrada. Mas talvez aí esteja a forma
mais desafiadora de expressão das sensibilidades diante do real, porque encerra
aquelas coisas “não-tangíveis” que passam pela ironia, pelo humor, pelo des-
dém, pelo desejo e sonhos, pela utopia, pelos medos e angústias, pelas normas
e regras, por um lado, e pelas suas infrações, por outro. Neste sentido, o texto
literário atinge a dimensão da “verdade do simbólico”, que se expressa de forma
cifrada e metafórica, como uma forma outra de dizer a mesma coisa.
A literatura é, pois, uma fonte para o historiador, mas privilegiada, porque lhe
dará acesso especial ao imaginário, permitindo-lhe enxergar traços e pistas que
outras fontes não lhe dariam. Fonte especialíssima, porque lhe dá a ver, de for-
ma por vezes cifrada, as imagens sensíveis do mundo. A literatura é narrativa
que, de modo ancestral, pelo mito, pela poesia ou pela prosa romanesca fala
do mundo de forma indireta, metafórica e alegórica. Por vezes, a coerência de
sentido que o texto literário apresenta é o suporte necessário para que o olhar do
historiador se oriente para outras tantas fontes e nelas consiga enxergar aquilo
que ainda não viu
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“A literatura dá acesso ao imaginário” e, de forma indireta,
fala do mundo. O mito, neste contexto, é um exemplo impor-
tante. Um estudo mitográfico, por exemplo, pode nos indicar as
diferentes interpretações que um mesmo mito recebeu (algumas
delas respeitando os limites da ficção e outras não). Para saber
mais a esse respeito, indicamos a obra de Marcel Detienne, A
invenção da Mitologia (Tradução de André Telles e Gilza Martins
Saldanha da Gama. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: UnB,
1992).
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A literatura cumpre, assim, um efeito multiplicador de possibilidades de leitura.
Estaríamos diante do “efeito de real” fornecido pelo texto literário que consegue
fazer seu leitor privilegiado — no caso, o historiador, com o seu capital espe-
cífico de conhecimento — divisar sob nova luz o seu objeto de análise, numa
temporalidade passada. Nesta dimensão, o texto literário inaugura um plus como
possibilidade de conhecimento do mundo.
O mundo da ficção literária — este mundo verdadeiro das coisas de mentira11 —
dá acesso para nós, historiadores, às sensibilidades e ás formas de ver a realida-
de de um outro tempo, fornecendo pistas e traços daquilo que poderia ter sido ou
acontecido no passado e que os historiadores buscam. Isto implicaria não mais
buscar o fato em si, o documento entendido na sua dimensão tradicional, na sua
concretude de “real acontecido”, mas de resgatar possibilidades verossímeis que
expressam como as pessoas agiam, pensavam, o que temiam, o que desejavam.
A verdade da ficção literária não está, pois, em revelar a existência real de per-
sonagens e fatos narrados, mas em possibilitar a leitura das questões em jogo
numa temporalidade dada. Ou seja, houve uma troca substantiva, pois para o
historiador que se volta para a literatura o que conta na leitura do texto não é o
seu valor de documento, testemunho de verdade ou autenticidade do fato, mas
o seu valor de problema. O texto literário revela e insinua as verdades da repre-
sentação ou do simbólico através de fatos criados pela ficção.
Mais do que isso, o texto literário é expressão ou sintoma de formas de pensar e
agir. Tais fatos narrados não se apresentam como dados acontecidos, mas como
possibilidades, como posturas de comportamento e sensibilidade, dotadas de
credibilidade e significância.
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Nesta última dimensão de análise que pensa a especificidade da literatura como
fonte, cabe retomar a já mencionada reconfiguração temporal. O conceito, de-
senvolvido por Ricoeur de maneira exemplar, nos coloca diante da possibilidade
de pensar a literatura na relação com a história como um inegável e recorrente
testemunho de seu tempo.
Admitimos que a literatura é fonte de si mesma enquanto escrita de uma sensibi-
lidade, enquanto registro, no tempo, das razões e sensibilidades dos homens em
um certo momento da história. Dos seus sonhos, medos, angústias, pecados e
virtudes, da regra e da contravenção, da ordem e da contramão da vida. A literatura
registra a vida. Literatura é, sobretudo, impressão de vida. E, com isto, chegamos
a uma das metas mais buscadas nos domínios da História Cultural: capturar a
impressão de vida, a energia vital, a enargheia presente no passado, na raiz da
explicação de seus atos e da sua forma de qualificar o mundo. E estes traços, eles
podem ser resgatados na narrativa literária, muito mais do que em outro tipo de do-
cumento. Como afirma Ginzburg, a poesia- ou literatura – constitui uma realidade
que é verdadeira para todos os efeitos, mas não no sentido literal.12
Sem dúvida que esta dimensão poderá ser contestada, sob o argumento de que
só a “literatura realista”, na linha de Balzac ou Zola, poderia ser alternativa ao
historiador para recuperar as sensibilidades de uma temporalidade determinada,
atuando como aquele plus documental de que se falou. Mas o que queremos
afirmar é que mesmo a literatura que reinstala o tempo de um passado remoto
ou aquela que projeta, ficcionalmente, a narrativa para o futuro são, também,
testemunhos do seu tempo.
Romances da Cavalaria no século XIX dão a ver o imaginário que o mundo no-
vecentista construía sobre a Idade Média, assim como a ficção cientifica de um
Jules Verne possibilita a leitura das utopias do progresso que embalavam os
sonhos e desejos dos homens do século passado. Deste ponto de vista, tudo é,
sob o olhar do historiador, matéria “histórica” para a sua análise.
Em suma, entendemos que todas estas questões enunciadas que, pensamos,
revela a riqueza de uma velha-nova história, se encontram ao abrigo da postura
que se convencionou chamar de história cultural. Esta, a partir de seus pressu-
postos e preocupações, proporciona uma abertura dos campos de pesquisa para
a utilização de novas fontes e objetos, entre as quais se encontra o texto literário.
Notas
1 Consulte-se, a propósito do tema:
2 Boia, Lucian. Pour une histoire de l’imaginaire. Paris, Belles Lettres, 1998.
3 Ver, por exemplo, o nº 47 da revista Traverses. Ni vrai ni faux (Traverses, Révue
du Centre Georges Pompidou, Paris, n.47, 1989).
4 Só como exemplo, podemos citar a polêmica em torno da obra de Hayden Whi-
te, Metahistória (São Paulo: Edit. da Universidade de São Paulo, 1992).
5 Ricoeur, Paul. Temps et récit. Paris: Seuil, 1983/5. 3v
6 Consultar, a propósito da literatura na sua aproximação com a história, envol-
vendo a questão da ficção, os números 54, 56 e 86 da revista Le Débat.
7 Jauss, Hans Robert. L’usage de la fiction en histoire. Le Débat, Paris, Galli-
mard, n.54, mars/avril 1989. p.81.
8. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
Para solucionar nossas dúvidas e promover o aprendizado
contínuo, o estudo e as autoavaliações são imprescindíveis. Leia
atentamente as questões propostas, responda-as e, assim que
possível, discuta e teça comentários acerca das respostas com seus
colegas da Sala de Aula Virtual. Esse exercício e debate irão auxiliá-
-lo na fixação do conteúdo e promover uma atitude reflexiva dian-
te dos temas estudados na Unidade 5.
1) Você compreendeu o que foi exposto até agora sobre as questões em torno
da narrativa? Exercite fazendo um resumo.
2) Qual a relação entre narrativa e ficção proposta por Hyden White?
3) Lembra-se dos significados e funções dos tropos? Para aprimorar seu co-
nhecimento, pesquise o significado dos quatro tropos citados pelo autor:
metáfora, metonímia, sinédoque e ironia.
4) Qual a teoria defendida por Hayden White?
9. CONSIDERAÇÕES
De acordo com White (1995, p. 22):
Diz-se às vezes que o objetivo do historiador é explicar o passado
através do “achado”, da “identificação” ou “descoberta” das “es-
tórias” que jazem enterradas nas crônicas; e que a diferença entre
“história” e “ficção” reside no fato de que o historiador “acha” suas
estórias, ao passo que o ficcionista "inventa” as suas. Essa concepção
da tarefa do historiador, porém, obscurece o grau de “invenção” que
também desempenha um papel nas operações do historiador.
10. E-REFERÊNCIAS
Sites pesquisados
OLIVEIRA, Carlos Eduardo França de. Narrativa e conhecimento histórico: alguns
apontamentos. Disponível em: <http://hid0141.blogspot.com/2009/02/narrativa-e-
conhecimento-historico.html>. Acesso em: 12 mar. 2009.
© U5 - História, Narrativa e Ficção 157
WEINSTEIN, Barbara. História sem Causa? A Nova História Cultural, a Grande Narrativa,
e o Dilema Pós-colonial. História, São Paulo, v. 22, n. 2, 2003. Disponível em: <history.fas.
nyu.edu/attach/1811>. Acesso em: 16 ago. 2008.
6
1. OBJETIVOS
• Retomar as principais características e contribuições da
historiografia pós-moderna.
• Conhecer e analisar as principais críticas à historiografia
pós-moderna, especialmente à Nova História Cultural.
2. CONTEÚDOS
• Características da historiografia pós-moderna.
• Críticas à historiografia pós-moderna.
4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Quando questionamentos são levantados acerca da História,
da historiografia e dos conceitos utilizados pelos historiadores, ou-
tras perguntas devem ser somadas às primeiras:
[...] de que lugar social ou institucional fala o autor? Quais são as
motivações profundas, as suas escolhas metodológicas, até mesmo
as suas opções políticas ou filosóficas? Procedendo deste modo,
evitam-se muitos erros de interpretação e perdas de tempo (BOUR-
DÉ, 1990, p. 215).
7. CONSIDERAÇÕES
A restauração é sempre incompleta.
Por mais que inúmeros detalhes fossem recuperados, o pas-
sado já passou, as fontes só respondem de acordo com as pergun-
tas que fazemos a elas, e o texto ganha forma para além de nossas
mentes. Tantos são os problemas e/ou caminhos para se atrever a
garantir que o que o historiador faz é o resgate do passado, como
escutamos inúmeras vezes no decorrer de nossa vida escolar.
No momento, enquanto o diálogo de surdos (racionalistas
versus pós-modernos) é transmitido, esperemos pelas marcas que
serão deixadas; vamos nos propor que nossa humana condição
seja provisória e, por esse motivo, que somos “[...] advogados de
idéias e não donos de idéias” (RIEDEL, 1988, p. 61).
De qualquer modo, não é possível desconsiderar os pressu-
postos do pós-modernismo e negar veementemente sua relevân-
cia, pois suscitou e ainda provoca interrogações.
Finalizando nossas discussões, fica uma reflexão. Foucault
(apud O’brien 2001, p. 37) teria dito: “Não me perguntem quem
8. TEXTO COMPLEMENTAR
O texto a seguir é um discurso acerca da religiosidade na
Grécia Clássica. Ele é um exercício de História Cultural que preten-
de evidenciar algumas práticas verossímeis na Antiguidade defen-
didas pelos historiadores filiados à Escola dos Annales e à História
Cultural. Ele se apresenta, portanto, como uma das verdades pos-
síveis sobre a prática religiosa grega.
Mais um fator de relevância que deve ser observado: por fazer parte de uma
tradição oral, os mitos ganharam inúmeras versões. Transmiti-lo somente era
possível por meio da técnica de memorização já citada anteriormente. Assim, te-
mos de aceitar o fato de que uma nova versão poderia apagar ou recobrir alguns
pontos da versão precedente, uma vez que a materialidade desta última residia
na voz do intérprete, do aedo que a apresentava ao seu público. No entanto,
mesmo com algumas modificações, os mitos passavam pela aprovação dos ou-
vintes que os recebiam como sendo um pequeno trecho de sua história passada
(a memória, considerada por Vernant como uma categoria psicológica de extre-
ma importância para os gregos, uma vez que torna possível a perpetuação da
tradição, foi também estudada por Marcel Detienne, 1992).
Em relação aos ritos, eles representavam a forma mais estável e completa da
relação entre homens e seres sobre-humanos. Dirigir preces a um ser sobre-
-humano significava, antes de tudo, atribuir-lhe uma existência. Os ritos eram
menos explícitos e didáticos que os mitos, pois, cada gesto, cada palavra tinha
um sentido específico, simbólico. Toda cerimônia ritual, na sua grande maioria,
contava com sacrifícios, que podiam ser oferecidos às divindades celestes ou
infernais. Em cada caso, havia particularidades que diferenciavam o ritual de
maneira marcante. Esses ritos podiam, por um lado, ser realizados em forma de
festas solenes, onde os deuses convidados estavam presentes, estabelecendo
a comunicação entre a terra e o céu. Por outro, podiam ser vistos como uma car-
nificina, uma cozinha ritualizada. Faz-se necessário esclarecer que os sacrifícios
ocorriam fora do templo, residência permanente dos deuses, e eram realizados
em altares externos, no bomos, que era um bloco de alvenaria quadrangular.
Vernant descreve o sacrifício de um animal oferecido a uma divindade celeste.
Vejamos os passos que, necessariamente deviam ser seguidos:
[...] um animal doméstico, enfeitado, [...] é conduzido em procissão
ao som de flautas até o altar, aspergido com água lustral e com um
punhado de grãos de cevada [...]. A cabeça da vítima é arrancada
então; corta-se-lhe a garganta. O sangue que jorra sobre o altar é
recolhido num recipiente. O animal é aberto: extraem-lhe as en-
tranhas, especialmente o fígado, que se examina para saber se os
deuses aceitam o sacrifício. Nesse caso, a vítima é imediatamente
esquartejada. Os ossos longos, [...], são colocados sobre o altar [...].
Certos pedaços, internos, são postos para grelhar sobre o altar no
mesmo fogo que expede à divindade a parte que lhe cabe, estabe-
lecendo assim o contato entre a Potência sagrada destinatária do
sacrifício e os executantes do rito [...] (VERNANT, 1996, p. 62).
Nos casos de sacrifícios a deuses infernais, os homens não podiam tocar na
vítima, não comiam de maneira alguma sua carne, sendo o sangue derramado
diretamente em fendas na terra que o levava aos deuses. Nesse caso, a vítima
devia desaparecer, ser totalmente queimada.
No entanto, faz-se necessário dizer que esses sacrifícios não deviam ser com-
preendidos como uma comunhão com os deuses. Não se partilhava do corpo ou
sangue da divindade, mas da vítima. O sacrifício tinha a função de estabelecer
contatos, e não experiências sobrenaturais, e, ainda, confirmavam a distância
entre homens e deuses.
Trata-se, como vimos, de práticas bem complexas. Por meio delas, a relação
homem-deus estabelecia-se. Se aceito o sacrifício, a guerra poderá ser travada,
Nix, olhava para o Sol e via Hélios, assim como o dia era Hemera. Mais do que
simples nomes daquilo que, para nós, modernos, são astros, em grego, eram
nomes de divindades.
Concluindo, a religiosidade grega foi algo real, vivido e sentido. Os mitos, os
ritos e a representação figurada fizeram parte da rede religiosa de um povo que
construiu sua religiosidade que a presenteou com santuários independentes, se-
parados do espaço profano (e também neste), ou seja, os gregos criaram seus
locais sagrados, organizaram seu calendário religioso, cantaram e pintaram seus
deuses e heróis. A religiosidade grega é uma construção histórica. Vernant obje-
tivou em suas análises compreender e nos fazer compreender esse estilo religio-
so, tão particularizado, do homem grego (sabendo da multiplicidade dele). Suas
metas foram alcançadas. Ele deixou evidente essa religiosidade e expôs porme-
nores e especificidades de uma crença apoiada numa tradição que englobava a
língua, o estilo de vida doméstico, o gestual, os sistemas de valores, as normas
da vida em sociedade, o sentir e o pensar.
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9. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
A avaliação constante deve ser um compromisso do aluno
de um curso a distância. Dessa forma, solidificam-se os conteúdos
estudados e é possível colocar-se criticamente diante do processo
de aprendizado. O aluno que se autoavalia tem melhores condi-
ções de aplicar o que aprendeu e de estabelecer reflexões acerca
do processo de aprendizagem. Portanto, essas questões devem
ser respondidas com a máxima atenção possível, já que funcio-
nam como fixação e revisão do que foi aprendido nesta unidade.
Para que o seu aprimoramento seja melhor, você deve fazer dessas
questões um momento de interação com o grupo. Para isso, discu-
ta com seus colegas o que você achou das questões e tente promo-
ver um debate acerca delas. Se encontrar alguma dificuldade em
resolvê-las, revise esta e outras unidades já estudadas e recorra à
Bibliografia Complementar.
1) Você finalizou a leitura e os estudos desta unidade. Compreendeu por com-
pleto o seu conteúdo? Para averiguar seu grau de conhecimento e compre-
ensão, elabore um quadro com as características positivas e negativas da
historiografia pós-moderna. Com a confecção desse quadro, você poderá
refletir sobre suas próprias posturas conceituais e metodológicas.
Pessanha, Luiz Felipe Baêta Neves e outros. Rio de Janeiro: Imago, 1988. (Textos
completos das exposições, comentários e respectivos debates orais do “Colóquio
Narrativa: Ficção e História”, realizado de 25 a 27 de novembro de 1987 e promovido
pelo setor de Literatura Brasileira do Departamento VI do Instituto de Letras da UERJ).
RÜSEN, J. Razão Histórica – Teoria da História: os fundamentos da ciência histórica.
Tradução de Estevão C. de Martins. Brasília, UnB, 2001.
SARIAN, H. A expressão imagética do mito e da religião nos vasos gregos e de tradição
grega. In: Cultura Clássica em Debate. Belo Horizonte: SBEC, 1987.
SILVA, K. V.; SILVA, M. H. (Orgs). Dicionário de conceitos históricos. 2. ed. São Paulo:
Contexto, 2006.
VERNANT, J. Figuras, ídolos, máscaras. Tradução de Telma Costa. Lisboa: Teorema, 1991.
______. A pessoa na religião. In: Mito e pensamento entre os gregos: estudos de
psicologia histórica. Tradução de Haiganuch Sarian. São Paulo: DIFEL, 1973.
______. Entre Mythe et Politique. Paris: Éditions de Seuil, 1996.
______. Langage religieux et vérité e Religion grecque, religions antiques. In: Religions,
histoires, raisons. Paris: Maspero, 1979.
______. Mito e Religião na Grécia Antiga. Tradução de Constança M. Cesar. Campinas:
Papirus, 1992.
______. O Homem Grego. Tradução de Maria J. V. de Figueiredo. Lisboa: Presença, 1994.
WHITE, H. Trópicos do Discurso: ensaios sobre a crítica da Cultura. Tradução de Alípio C.
F. Neto. São Paulo: USP, 1994 (Coleção Ensaios de Cultura).