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Disciplina:
História da Filosofia Medieval – Prof. Dr. João Batista Madeira
e-mail:. jbmadeira@yahoo.co.uk
Prof. Dr. João Batista Madeira
Guia de Disciplina
Caderno de Referência de Conteúdo
© Ação Educacional Claretiana, 2010 – Batatais (SP)
Preparação Revisão
Aletéia Patrícia de Figueiredo Felipe Aleixo
Isadora de Castro Penholato
Aline de Fátima Guedes
Maiara Andréa Alves
Camila Maria Nardi Matos
Rodrigo Ferreira Daverni
Elaine Aparecida de Lima Moraes
Elaine Cristina de Sousa Goulart Projeto gráfico, diagramação e capa
Lidiane Maria Magalini Eduardo de Oliveira Azevedo
Luciana A. Mani Adami Joice Cristina Micai
Lúcia Maria de Sousa Ferrão
Luiz Fernando Trentin
Luis Antônio Guimarães Toloi
Patrícia Alves Veronez Montera
Raphael Fantacini de Oliveira
Rosemeire Cristina Astolphi Buzelli Renato de Oliveira Violin
Simone Rodrigues de Oliveira Tamires Botta Murakami
GUIA DE DISCIPLINA
1 APRESENTAÇÃO................................................................................................ VII
2 DADOS GERAIS DA DISCIPLINA.......................................................................... VIII
3 CONSIDERAÇÕES GERAIS ................................................................................. IX
4 BIBLIOGRÁFIA BÁSICA ...................................................................................... IX
5 BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR . ........................................................................ X
INTRODUÇÃO À DISCIPLINA
AULA PRESENCIAL.......................................................................................... 2
Todos os temas aqui abordados estão voltados para a visão de que, no período
medieval, a Filosofia era vista como um estilo de vida, como a “melhor” maneira de conduzir
a vida. Isto permite compreender a passagem das Filosofias Clássica, Grega e Romana
para a Filosofia Medieval, pois coloca as principais “escolas filosóficas” da antiguidade
como o pano de fundo no qual o Cristianismo se desenvolveu. O Estoicismo, o Ceticismo,
o Epicurismo e o Neoplatonismo, bem como outras filosofias, forneceram as doutrinas com
as quais o Cristianismo dialogou tanto sob os pontos de vista ético e político quanto sob os
pontos de vista cosmológico e metafísico. Esse é o tema da primeira unidade.
Desejamos que sua caminhada ao longo desta disciplina seja repleta de êxitos
nas realizações de seus estudos, suas pesquisas, suas interatividades e suas atividades!
Sugerimos que você não se limite ao conteúdo desse trabalho e, sim, o interprete
como um referencial por meio do qual possa expandir seu horizonte de conhecimentos
com o objetivo de formar sua própria opinião sobre o tema.
ATENÇÃO!
Aceite o desafio de construir uma comunidade interativa, pois, além de
significativos ganhos para sua vida pessoal e profissional, essa interação
colocará você em consonância com as novas exigências do mundo científico e
profissional. Afinal, conhecer é exercer seu direito de cidadania!
Objetivo geral
Objetivos específicos
Modalidade
( ) Presencial ( X ) A distância
ATENÇÃO!
É importante que você releia, no Guia Acadêmico do seu curso, as informações
referentes à metodologia e à forma de avaliação da disciplina História da
Filosofia Medieval, descritas pelo tutor na ferramenta “Cronograma” na Sala
de Aula Virtual – SAV.
ATENÇÃO!
Lembre-se de que a falta de
familiaridade com o tema
precisa servir de estímulo para o
3 CONSIDERAÇÕES GERAIS progresso de seu conhecimento.
Caso necessite de ajuda,
tenha dúvidas, comentários ou
Neste Guia de disciplina, você pode obter orientações e informações práticas, sugestões a fazer, estaremos,
sempre, à disposição.
relacionadas à disciplina História da Filosofia Medieval, para sua caminhada acadêmica.
Consulte o Guia acadêmico para maiores informações sobre a metodologia de ensino e
sobre o método de avaliação.
Esperamos que você atinja suas metas e que tenha um excelente aproveitamento
do curso! Bons estudos!
ATENÇÃO!
Com a pesquisa, você não
impõe fronteiras para sua
aprendizagem e pode construir
REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia: patrística e escolástica. São Paulo: Paulus,
2005. v. 2.
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IX
Batatais – Claretiano
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GUIA DE DISCIPLINA
Licenciatura em Filosofia
5 BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR
ABELARDO, P. Lógica para principiantes. Petrópolis: Vozes, 1994.
AQUINO, T. de. Seleção de textos. In: Coleção os pensadores. São Paulo: Nova Cultural,
1988.
BOÉCIO. Escritos. In: Opúscula sacra. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
Seja bem-vindo!
Bom estudo!
AULA PRESENCIAL
Objetivos
• Apresentar a disciplina História da Filosofia Medieval
no âmbito do curso de Licenciatura em Filosofia.
Conteúdos
• Passagem das Filosofias Clássica, Grega e Romana para a
Filosofia Medieval.
UNIDADE 1
CLÁSSICA PARA A FILOSOFIA
MEDIEVAL
Objetivos
• Entender a transição da Filosofia Clássica Grega e Romana
para a Filosofia Medieval.
Conteúdos
• A passagem da Filosofia Antiga para a Filosofia Medieval.
ATENÇÃO!
1 INTRODUÇÃO
Compartilhar ideias e opiniões
com seus colegas de curso faz
parte da construção de sua
aprendizagem! Na Sala de
Aula Virtual, você encontrará As principais escolas da filosofia grega antiga eram a Academia, que tinha sido
o apoio necessário para a
comunicação com eles. Com a fundada por Platão; a dos peripatéticos, seguidores de Aristóteles; os estoicos, da escola
pesquisa, essa ligação ficará fundada por Zenão; e os epicuristas, da escola fundada por Epicuro. Havia, ainda, outra
ainda mais envolvente, pois escola – se é que esse termo pode ser utilizado com algum sentido nesse caso, pois
você poderá criar uma relação
de troca de experiências que “escola” parece pressupor, necessariamente, um corpo doutrinal formado por um ou mais
contribuirá para sua formação e mestres para um ou mais discípulos; porém, no caso em questão, os adeptos dessa
para o enriquecimento de seus
conhecimentos. postura pertenciam a um grupo: o dos céticos1, que tentavam sempre levar as pessoas
a suspender o juízo e a considerar argumentos para ambas as partes (pró e contra) da
(1) Por derivar da Academia de
resposta dada a cada um dos problemas filosóficos centrais. Não se consideravam mestres,
Platão, o Ceticismo pode ser não professavam um corpo doutrinal específico e nem procuravam fazer discípulos. Os
considerado uma escola filosófica céticos surgiram da Academia de Platão.
e, ainda, uma das quatro mais
importantes escolas filosóficas do
período helenístico.
Assim, nesta unidade, você vai acompanhar o caminho da filosofia a partir das
escolas filosóficas na Grécia e em Roma com ênfase no período helenístico, ou seja, o
momento histórico-cultural posterior à morte de Alexandre Magno, que era o referencial
político da época posterior à morte de Aristóteles, o referencial filosófico. Esta unidade vai
cobrir o período que se seguiu até Santo Agostinho. Tal opção plenamente se justifica do
ponto de vista filosófico, apesar da advertência feita por Alain de Libera:
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Batatais – Claretiano
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UNIDADE 1
Licenciatura em Filosofia
humana ter sentido e valer a pena de ser vivida. Dessa maneira, “virtude” consiste em
conhecimento. Não o conhecimento do tipo teórico, mas o do tipo vívido no momento
da decisão. Mas que conhecimento seria esse? O conhecimento do bem, e dos graus de
bondade, e o do mal, e dos graus de maldade. Por exemplo, Sócrates, na obra platônica
Górgias, afirma que é preferível sofrer algum mal a impor um mal a outra pessoa. Assim, o
conhecimento real sobre o que é melhor e o que é pior de se fazer no momento da decisão
é o que constitui a virtude. É claro que esse conhecimento nem sempre é suficiente para
se fazer o bem, pois alguém pode saber o que é melhor, porém, devido às circunstâncias
adversas, estar impedido de fazê-lo. Contudo, saber o que é o bem e o que são os males
ou ter conhecimento do que é melhor e do que é pior certamente é uma das condições
para agir virtuosamente.
Assim, conhecimento não é apenas acreditar que se está certo, mas, também,
ter justificativa ou fundamento para sua convicção. Contudo, resta saber o que pode dar
estabilidade ao que é crido.
ATENÇÃO! Platão pensava que, para caminhar em direção a uma vida melhor, era necessário um
É importante lembrar que Platão,
quando se referia à busca por tipo de conversão, ou seja, era preciso voltar-se para um novo sentido. A pessoa devia deixar de
uma vida melhor, pensava na lado as coisas deste mundo mutável e voltar-se para as “Formas” imutáveis.
coletividade, ou seja, na pólis.
A busca por uma “salvação
individual” virá com o helenismo. Para melhor compreendermos a “conversão” da qual tratamos, vamos relembrar
a célebre Alegoria da Caverna, de Platão. Para isto, observemos o texto a seguir, que
explica, em detalhes, esse “voltar-se para uma nova direção”:
Alegoria da Caverna
Imaginemos uma caverna subterrânea onde, desde a infância, geração após geração,
seres humanos estão aprisionados. Suas pernas e seus pescoços estão algemados de
tal modo que são forçados a permanecer sempre no mesmo lugar e a olhar apenas
a frente, não podendo girar a cabaça nem para trás nem para os lados. A entrada da
caverna permite que alguma luz exterior ali penetre, de modo que se possa, na semi-
obscuridade, enxergar o que se passa no interior. A luz que ali entra provém de uma
imensa a alta fogueira externa. Entre ele e os prisioneiros - no exterior, portanto - há
um caminho ascendente ao longo do qual foi erguida uma mureta, como se fosse a
parte fronteira de um palco de marionetes. Ao longo dessa mureta-palco, homens
transportam estatuetas de todo tipo, com figuras de seres humanos, animais e todas
as coisas. Por causa da luz da fogueira e da posição ocupada por ela os prisioneiros
enxergam na parede no fundo da caverna as sombras das estatuetas transportadas,
mas sem poderem ver as próprias estatuetas, nem os homens que as transportam.
Como jamais viram outra coisa, os prisioneiros imaginavam que as sombras vistas são
as próprias coisas. Ou seja, não podem saber que são sombras, nem podem saber
que são imagens (estatuetas de coisas), nem que há outros seres humanos reais fora
da caverna. Também não podem saber que enxergam porque há a fogueira e a luz no
exterior e imaginam que toda a luminosidade possível é a que reina na caverna.
Ao lado dessa distinção, Platão também pensa outra. A Ideia ou Forma Justiça
é única, ao passo que as ações justas são várias. A Forma Bem é única, ao passo que as
coisas boas são várias. Nesse sentido, Platão também acrescenta Formas que não são,
necessariamente, padrões perfeitos. A Brancura é o padrão para as coisas brancas; a
Verdura é o padrão para as coisas verdes; a Negritude é o padrão para as coisas negras.
A razão pela qual essas últimas Formas não são, necessariamente, padrões perfeitos é
justamente porque admitem outras brancuras, outras verduras e outras negritudes.
Nas Leis, Platão introduz a noção de que a cadeia de mudanças que se observa
faz crer que tenha de haver uma causa primeira e que esta tenha iniciado tais mudanças
nas outras coisas, sem ter sido ela própria iniciada por outra coisa. O poder de originar
movimento é Alma (Anima) e “Alma” é divindade. As almas mais elevadas são aquelas
que causam os movimentos mais elevados, ou seja, elas são as almas que causam os
movimentos celestes. Seus movimentos são os das esferas celestes que se movem sem
sair do lugar. O automovimento das divinas esferas celestes é, portanto, sempre regular
e uniforme.
Aristóteles tinha uma abordagem bem semelhante, sendo que ele fazia uma
distinção adicional entre “movente” (ou motor) e “movido”. As esferas celestes são
moventes não-movidos. As demais coisas do mundo são somente movidas.
O demiurgo criou as coisas do nível mais baixo a partir dos padrões, que são as
Formas. As coisas recebem os reflexos das Formas em um receptáculo, que é, na verdade,
o espaço vazio. Na hierarquia assim estabelecida, há na abordagem neoplatônica, o Uno–
Bem, o Intelecto–Nous, a Alma–Psyche do mundo e as coisas materiais–mal. O mais
elevado é o Uno-Bem enquanto o mais baixo é o nível das coisas materiais–mal.
INFORMAÇÃO:
Para enriquecer seus
Quadro 1 Paralelo entre Platão e Aristóteles. conhecimentos, sugerimos que
você acesse o site indicado
na fonte deste quadro e que
DOUTRINA Platão Aristóteles visualize o paralelo entre os
pensamentos de Platão e de
Gnosiologia Intenta resolver o problema da vida Intenta resolver o problema do ser Aristóteles na integra.
Ideias ou Realidade objetiva: Mundo das Não existem modelos reais das
universais Ideias coisas sensíveis
Não se contrapõe ao particular, mas Não se contrapõe ao particular, mas
O universal
lhe é anterior lhe é posterior
Mundo transcendente, hiperurânio,
Nega a realidade ontológica do
onde estão as ideias nas quais
mundo platônico das Ideias.
O Ser se concentra toda a realidade. Aí
Existem somente as substâncias
residem as substâncias imutáveis
individuais particulares e concretas.
que são o objeto da ciência.
Recebe o seu sentido primitivo de
Recebe o seu sentido primitivo de
cima,
baixo, do concreto
da Ideia
Fonte: adaptado de CARVALHO, José Geraldo Vidigal de. Consciência.org. Disponível em: <http://
www.consciencia.org/plataoaristotelesvidigal.shtml>. Acesso em: 15 jan. 2010.
Se houver seis coisas no mundo que tenham uma forte semelhança entre si, há
que se pensar que, necessariamente, tem de haver uma sétima, ou seja, se postular que
haja a Forma a partir da qual aquelas seis foram plasmadas. Para Aristóteles, uma coisa apta
para receber a forma de algo tem de ser transformada por uma causa movente para, de fato,
receber tal forma. Um pedaço de cobre tem de receber a forma de esfera pela atuação de
uma causa que pode dar-lhe tal forma. O cobre está apto em potência a receber a forma de
esfera, porém, não há, para Aristóteles, a necessidade de se postular uma Forma imaterial
de esfera que tenha servido de padrão para que uma esfera de bronze fosse plasmada.
Para Aristóteles, a alma é a forma de um corpo que tem vida em potência. Assim,
a alma é a atualização da vida que o corpo está apto a ter. A forma, nesse caso, vai muito
além do formato externo, pois se trata da estrutura profunda e altamente complexa de um
organismo vivo. A alma não pré-existe àquele corpo particular assim como a forma esférica
de uma esfera de bronze não pré-existe àquela esfera particular. Plantas e animais têm alma
porque estão vivos. A alma humana tem funções vegetativas (como as plantas) e sensitivas
(como os animais) somadas à capacidade intelectual. Nesse último aspecto é que parece
haver espaço para se pensar em algo da alma humana que poderia sobreviver ao perecimento
do corpo. Aristóteles, porém, nunca disse nada de maneira explícita a esse respeito e,
provavelmente, não tinha claro, para si, se haveria ou não necessidade de postular alguma
parte imortal na alma humana. Alguns aristotélicos (peripatéticos) posteriores interpretaram
passagens dos livros de Aristóteles, como significando que haveria uma alma única para toda
a humanidade, não-particular a nenhum ser humano tomado individualmente, mas que cada
ser humano seria receptor dos pensamentos de uma única alma humana separada dele. Esse
tema retornará na sessão deste caderno que trata da filosofia árabe.
Para os estoicos, a aquisição de bens não faz parte do que é bom. O Bem é buscar
todas as coisas racionalmente, sendo que esse buscar é, de fato, o único e verdadeiro
Bem. As outras coisas são buscadas não porque são boas, mas porque são preferíveis.
Assim, a autopreservação é buscada por ser preferível – e os estoicos esforçavam-se para
manterem-se vivos – porém, não a todo custo. A máxima de agir de acordo com a razão
implicava na possibilidade de fazer concessões e numa certa medida de tolerância para
com as circunstâncias particulares. Entretanto, no momento em que ficasse claro que
tais concessões e que tolerar determinadas coisas não levariam a nada de preferível, os
estoicos estavam preparados para fazer grandes sacrifícios, inclusive aceitando perder
a própria vida. Em política, assim como em ética, liberdade era o valor principal para os
estoicos.Para os estoicos, está sempre ao alcance da pessoa assentir ou não a uma cadeia
de pensamentos, pois, para eles, o homem sábio nunca assente a algo que seja falso, mas
somente ao que é certo e real.
Os epicuristas tinham uma posição bem clara de que o bem, para os seres
humanos, era o prazer. É claro que uma vida de excessos punha em grande risco a
possibilidade de se viver prazerosamente. A moral epicurista era baseada no autocontrole
e na moderação, pois estes seriam os meios que poderiam assegurar uma vida prazerosa
para o maior número de pessoas possível.
Os céticos, cujo nome literalmente quer dizer “aqueles que buscam”, discordavam
dos estoicos para os quais havia clareza sobre o que é certo e verdadeiro. Os céticos
concordavam com os estoicos que somente valeria a pena assentir ao que fosse, de
fato, certo e verdadeiro, porém, como não é possível ao ser humano ter acesso ao certo
e verdadeiro, eles advogavam a suspensão do juízo, ou seja, não assentir a qualquer
encadeamento de pensamentos. Os céticos não se consideravam dogmáticos no sentido
de fazerem afirmações, pois eles apenas diziam que lhes parecia que nada era certo e real,
ainda que algumas coisas lhes parecessem ser boas o suficiente para motivar ações.
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UNIDADE 1
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Há, porém, inúmeros outros pontos em que o Cristianismo pode ser contrastado
com as escolas filosóficas. O Cristianismo postulava que uma vida cheia de sentido e
até mesmo feliz estava ao alcance de escravos, pobres, fracos e deficientes. Platão e
Aristóteles pensavam que esses tipos de pessoas não qualificavam como aptas a uma
vida feliz. Neste ponto, o Cristianismo tinha semelhanças com o estoicismo. Os estoicos
pensavam que uma vida com sentido era a vida vivida de acordo com a natureza ou
a razão. Os cristãos, por sua vez, acreditavam que uma vida com sentido era a vida
vivida de acordo com a vontade de Deus. A diferença estava em que, para os estoicos, a
natureza-razão era “Deus”, enquanto os cristãos pensavam em Deus como pessoal. Os
epicuristas pensavam que os deuses não se importavam com os seres humanos, porém,
para os cristãos, Deus importa-se com todas as pessoas. A semelhança estava no fato de
que tanto epicuristas quanto cristãos pensavam que as pessoas têm de viver na amizade
de outras pessoas.
Os cristãos entendiam que uma vida com sentido leva à felicidade, se não nesta
vida, ao menos na vida depois da morte. Os estoicos diziam que mesmo os escravos podiam
viver uma vida com sentido, mesmo quando torturados ou crucificados. No entanto, para
os estoicos, a morte era o fim, logo, a felicidade de estar fazendo a coisa certa era a única
que se poderia alcançar.
Outro ponto da doutrina cristã, que pareceu ser de difícil explicação, foi o fato
de que a morte de Cristo trouxe salvação para a humanidade. Uma das abordagens mais
usuais era a de que, pela morte, Jesus ganhou valor diante de Deus, e que, depois, teria
transferido esse valor para a humanidade, porém, como Jesus era Deus, ficava complicado
ver como ele poderia ter adquirido valor que já não possuísse, e ainda mais difícil seria
transferir algo de sua natureza divina para a humanidade.
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UNIDADE 1
Licenciatura em Filosofia
Romano. Aos 50 anos, iniciou a composição de sua obra Eneades, que seria depois editada
por seu discípulo Porfírio. Ainda que os neoplatônicos posteriores tenham discordado
de Plotino em pontos relevantes, pode-se dizer que eles aprofundaram, corrigiram e
estenderam a visão plotiniana da verdade universal.
Aqui, ainda cabem algumas palavras sobre Porfírio (232-309 EC), que
desenvolveu a filosofia de Plotino acrescentando um forte interesse em prática religiosa
e em interpretação alegórica como fontes de aquisição de sabedoria. Porfírio também
passou pela história como um forte opositor do Cristianismo.
Agostinho teve contato, ainda antes de sua conversão, com o ceticismo e com o
neoplatonismo. Por meio da leitura da exortação à filosofia em Hortênsio, do romano Cícero,
Agostinho descobriu que a vida mais digna de ser vivida é aquela que busca, constantemente,
a sabedoria, cuja bela luz resplandecente transmite sentido a todo o resto.
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UNIDADE 1
Licenciatura em Filosofia
O Problema do Mal
Quando se referia ao mito de Sísifo para falar do caráter árduo e por vezes
inútil do trabalho extenuante, a narrativa mítica não se importava com o fato de que o
fígado das pessoas quase nunca se regenera, completamente, da noite para o dia, nem
com o fato de que o trabalho produz não apenas o sustento para o corpo, mas abre
perspectivas para ganhos futuros. Portanto, nem é possível pensar nos seres humanos
como “sísifos” nem se pode pensar no trabalho como sempre sendo extremamente
extenuante e inglório. A abordagem filosófica do ser humano como homo faber, isto é, a
definição do ser humano como um ser que utiliza a sua criatividade e a sua engenhosidade
para transformar o mundo e as coisas, de maneira a obter os melhores frutos no presente
e a facilitar sua vida futura, isto não somente se aplica, em princípio, aos seres humanos,
como também engloba diferentes facetas do trabalho que permitem ver sentido até nos
esforços mais extenuantes.
Desta maneira, a noção filosófica de que Deus é uno e, portanto, bom, deve servir
como balizamento para outras noções filosóficas. Deus, sendo bom, não pode ser a origem
do Mal, pois, no caso da divindade, não há ação acidental, não há descuido ou ignorância.
Se Deus não criou o Mal, deve haver uma maneira de abordar, filosoficamente, o Mal, sem
atribuir-lhe status de criatura. Agostinho distinguiu o Mal em três tipos: o mal metafísico
(que aqui chamamos de “Mal”); o mal físico (deformidades e deformações) e o mal moral
(más ações). E, visto que tanto o mal metafísico quanto o mal físico, se existirem, têm
de ter sido criados em algum momento, pois Deus é uno e bom, o que significa que nem
o Mal nem as deformidades ou deformações podem ser eternos ou terem sua origem em
Deus, a conclusão de Agostinho é que somente o mal moral pode existir no mundo, pois os
outros dois tipos não existem. Aqui, a preocupação genuinamente filosófica de Agostinho
fica evidente, pois ele segue uma lógica irrepreensível e se mantém em sintonia com as
tradições filosóficas mais consistentes.
Que o homem é livre, é uma afirmação tão antiga quanto o próprio pensamento
cristão. O cristianismo não inventou a ideia de liberdade; se preciso, ele até se
defenderia da acusação de tê-la criado. Desde o século II, Irineu nos lembra
que, se a Escritura considerou necessário “manifestar” a liberdade, foi entretanto
uma lei tão antiga quanto o próprio homem que Deus promulgou ao revelá-la:
veterem legem libertatis hominis manifestavit [tradução: ‘manifestou a lei antiga
da liberdade do homem’]. A insistência com a qual os Padres da Igreja ressaltam
a importância dessa ideia deve, no entanto, reter inicialmente nossa atenção,
assim como a natureza muito especial dos termos com que eles o fizeram.
Ao criar o homem, Deus lhe prescreveu algumas leis, mas deixou-o senhor para
prescrever a sua, no sentido de que a lei divina não exerce nenhum constrangimento
sobre a vontade do homem. Podemos dizer que, desde o despertar do pensamento
cristão, uma série de termos filosóficos, cujas equivalências são instrutivas por si
próprias, recebe nele direito de cidadania. Deus criou o homem dotado de uma
alma racional e de uma vontade, isto é, com um poder de escolher análogo ao
dos anjos, já que os homens, como os anjos, são seres dotados de razão. Fica
estabelecido, portanto, desde esse momento, que a liberdade é uma ausência de
constrangimento, inclusive em relação à lei divina; que ela pertence ao homem
pelo fato de ele ser racional e se exprimir pelo poder de escolha que sua vontade
possui: líber, rationalis, potestas electionis [tradução: ‘livre’, ‘racional’, ‘poder de
escolha’] são termos que não se separarão mais desde então. Não se separarão
tampouco da tese central que os fez serem aceitos pelos pensadores cristãos e,
por assim dizer, impôs seu uso. Deus criou o homem livre, porque lhe deixou a
responsabilidade do seu fim último. Cabe a ele escolher entre o caminho que leva
à felicidade e o caminho que leva a uma miséria eterna; o homem é um lutador,
que nem tem que contar apenas com suas próprias forças, mas que deve contar
com elas; senhor de si, dotado de uma verdadeira independência [...] colabora
eficientemente para o seu destino (GILSON, 2006, p. 367-368).
A Questão do Tempo
O enigma proposto pelo tempo não pode ser facilmente desvendado pela razão,
e é por isto mesmo que é descrito por Agostinho como complexo. Isto decorre da natureza
do próprio tempo e, também, em decorrência das insuficiências da linguagem humana.
O enigma é tal que, diante da pergunta ontológica “O que é, por conseguinte, o tempo?”
(Conf, XI, 14, 17), Agostinho não se envergonha de ter que responder: “Se ninguém me
perguntar, eu sei; porém, se quiser explicar a quem me perguntar, já não sei” (Ibid.). Se
por um lado Agostinho reconhece seu fascínio e sua perplexidade diante da questão, por
outro não detém nem foge do problema e ousa uma resposta.
9 CONSIDERAÇÕES
Como você viu nesta unidade, o Cristianismo significou uma novidade do ponto
de vista filosófico, pois introduziu doutrinas que não estavam presentes na Filosofia
Clássica, tais como a responsabilidade individual pelos próprios atos e a criação ex nihilo,
ou seja, a partir do nada. O Cristianismo também significou um momento necessário de
reflexão sobre a história e sobre o lugar da pessoa humana no universo. No momento em
que Constantino Magno se converteu ao Cristianismo e fez com que o Império Romano
passasse a ter o Cristianismo como religião oficial, as doutrinas cristãs ganharam o status
de doutrinas centrais para a vida das pessoas em todo o Império Romano. O Cristianismo
entrou em diálogo direto com as outras tradições filosóficas e rejeitou alguns pontos, mas
recuperou outros, principalmente do estoicismo e do neoplatonismo. A principal figura
naquele contexto foi Agostinho de Hipona, pois não somente foi o principal expoente da
patrística, como também influenciou diretamente as posteriores gerações de filósofos e de
teólogos, pelo menos até que houve uma grande alteração do panorama em decorrência
da redescoberta das principais obras de Aristóteles a partir do século 12 EC. A influência
de Agostinho diminuiu com o crescimento da influência de Aristóteles. Entretanto, não só
o estudo de Agostinho não cessou como foi retomado muitas e muitas vezes. Contudo,
a Filosofia Medieval também estava ligada às formas de ensino e de transmissão de
doutrinas, como você verá na próxima unidade.
ATENÇÃO!
Além das obras citadas na
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UNIDADE 1
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Sites Pesquisados
REALE, G. & ANTISERI, D. História da filosofia: Patrística e Escolástica. São Paulo: Paulus,
2005. v. 2.
UNIDADE 2
EDUCACIONAL NA IDADE
MÉDIA
Objetivos
• Apresentar os contextos histórico e educacional em que
se desenvolveu a escolástica latina.
Conteúdos
• Ensino e pesquisa nas universidades do século 13.
ATENÇÃO!
1 INTRODUÇÃO
Quando for realizar seus
estudos, escolha um ambiente
que possa lhe proporcionar
concentração, ou seja, um lugar
calmo, arejado e estimulante. Como você viu na Unidade 1, a Filosofia Medieval, em seus momentos iniciais,
Esteja certo de que o ambiente
e o meio contribuirão de ou seja, no período da patrística, estava mais voltada para a apologética – a defesa das
maneira significativa para sua doutrinas cristãs essenciais – do que para a elaboração sistemática do pensamento. Isto
aprendizagem. foi decorrente do caráter de novidade do Cristianismo, pois várias das doutrinas centrais
deste não tinham equivalência na Filosofia Clássica. O Cristianismo postula a criação ex
nihilo, a responsabilidade individual humana, a centralidade do ser humano em meio às
criaturas, a imortalidade da alma humana individual, dentre outras pregações. Como tudo
isso era novidade no ambiente cultural da antiguidade, a primeira tarefa dos filósofos
cristãos foi, naquele momento, defender a fé cristã e explicar que tais doutrinas não
estavam em desacordo completo com a razão.
Nesta unidade, você verá que a Filosofia Medieval se desenvolveu num contexto
em que a relação entre razão e fé era tema importante e em que a maneira de ver
a auctoritas era auxílio fundamental para evitar os erros doutrinários e para estimular
os debates. O recurso à auctoritas estabelecia os parâmetros e balizava as discussões.
Você verá, também, que, para compreender as principais características da Filosofia
Medieval, principalmente nos textos e nas doutrinas medievais que chegaram aos dias
de hoje, é necessário entender o ambiente cultural e educacional da Idade Média. Assim
contextualizadas, as principais figuras do pensamento desse período ganham nova luz.
Pensadores como Boécio, Anselmo de Cantuária, Pedro Abelardo e Pedro Lombardo se
destacaram naquele contexto. Você verá o porquê.
Aqui, não é o momento para desenvolver essa temática e para tratar de todas
as implicações da relação entre filosofia e teologia e entre fé e razão. Contudo, os vários
autores medievais são, geralmente, inscritos ou no grupo dos compatibilistas (em que os
resultados conquistados pelos caminhos da razão e pelos caminhos da fé são perfeitamente
compatíveis) ou no grupo dos incompatibilistas (em que os resultados do exercício filosófico
e os resultados do exercício teológico são incompatíveis e, frequentemente, opostos).
Como você verá, ao longo desta unidade, a posição filosoficamente mais aceita talvez
tenha sido a dos compatibilistas, como a de Anselmo de Cantuária, que veremos ao final
desta unidade.
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UNIDADE 2
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INTRODUÇÃO
« CONHECE-TE A TI MESMO »
1. Tanto no Oriente como no Ocidente, é possível entrever um caminho que, ao longo
dos séculos, levou a humanidade a encontrar-se progressivamente com a verdade
e a confrontar-se com ela. É um caminho que se realizou — nem podia ser de outro
modo — no âmbito da autoconsciência pessoal: quanto mais o homem conhece a
realidade e o mundo, tanto mais se conhece a si mesmo na sua unicidade, ao mesmo
tempo que nele se torna cada vez mais premente a questão do sentido das coisas e
da sua própria existência. O que chega a ser objecto do nosso conhecimento, torna-
se por isso mesmo parte da nossa vida. A recomendação conhece-te a ti mesmo
estava esculpida no dintel do templo de Delfos, para testemunhar uma verdade
basilar que deve ser assumida como regra mínima de todo o homem que deseje
distinguir-se, no meio da criação inteira, pela sua qualificação de «homem», ou
seja, enquanto «conhecedor de si mesmo».
Aliás, basta um simples olhar pela história antiga para ver com toda a clareza como
surgiram simultaneamente, em diversas partes da terra animadas por culturas
diferentes, as questões fundamentais que caracterizam o percurso da existência
humana: Quem sou eu? Donde venho e para onde vou? Porque existe o mal? O
que é que existirá depois desta vida? Estas perguntas encontram-se nos escritos
sagrados de Israel, mas aparecem também nos Vedas e no Avestá; achamo-las
tanto nos escritos de Confúcio e Lao-Tze, como na pregação de Tirtankara e de
Buda; e assomam ainda quer nos poemas de Homero e nas tragédias de Eurípides
e Sófocles, quer nos tratados filosóficos de Platão e Aristóteles. São questões que
têm a sua fonte comum naquela exigência de sentido que, desde sempre, urge
no coração do homem: da resposta a tais perguntas depende efectivamente a
orientação que se imprime à existência.
2. A Igreja não é alheia, nem pode sê-lo, a este caminho de pesquisa. Desde que
recebeu, no Mistério Pascal, o dom da verdade última sobre a vida do homem,
ela fez-se peregrina pelas estradas do mundo, para anunciar que Jesus Cristo é
«o caminho, a verdade e a vida» (Jo 14, 6). De entre os vários serviços que ela
deve oferecer à humanidade, há um cuja responsabilidade lhe cabe de modo
absolutamente peculiar: é a diaconia da verdade. (1) Por um lado, esta missão
torna a comunidade crente participante do esforço comum que a humanidade
realiza para alcançar a verdade, (2) e, por outro, obriga-a a empenhar-se no
anúncio das certezas adquiridas, ciente, todavia de que cada verdade alcançada
é apenas mais uma etapa rumo àquela verdade plena que se há--de manifestar
na última revelação de Deus: «Hoje vemos como por um espelho, de maneira
confusa, mas então veremos face a face. Hoje conheço de maneira imperfeita,
então conhecerei exactamente» (1 Cor 13, 12).
3. Variados são os recursos que o homem possui para progredir no conhecimento
da verdade, tornando assim cada vez mais humana a sua existência. De entre
eles sobressai a filosofia, cujo contributo específico é colocar a questão do sentido
da vida e esboçar a resposta: constitui, pois, uma das tarefas mais nobres da
humanidade. O termo filosofia significa, segundo a etimologia grega, «amor à
sabedoria». Efectivamente a filosofia nasceu e começou a desenvolver-se quando
o homem principiou a interrogar-se sobre o porquê das coisas e o seu fim. Ela
demonstra, de diferentes modos e formas, que o desejo da verdade pertence
à própria natureza do homem. Interrogar-se sobre o porquê das coisas é uma
propriedade natural da sua razão, embora as respostas, que esta aos poucos
vai dando, se integrem num horizonte que evidencia a complementaridade das
diferentes culturas onde o homem vive.
A grande incidência que a filosofia teve na formação e desenvolvimento das
culturas do Ocidente não deve fazer-nos esquecer a influência que a mesma
exerceu também nos modos de conceber a existência presentes no Oriente. Na
realidade, cada povo possui a sua própria sabedoria natural, que tende, como
autêntica riqueza das culturas, a exprimir-se e a maturar em formas propriamente
filosóficas. Prova da verdade de tudo isto é a existência duma forma basilar de
conhecimento filosófico, que perdura até aos nossos dias e que se pode constatar
nos próprios postulados em que as várias legislações nacionais e internacionais
se inspiram para regular a vida social.
4. Deve-se assinalar, porém, que, por detrás dum único termo, se escondem
significados diferentes. Por isso, é necessária uma explicitação preliminar. Impelido
pelo desejo de descobrir a verdade última da existência, o homem procura adquirir
aqueles conhecimentos universais que lhe permitam uma melhor compreensão
de si mesmo e progredir na sua realização. Os conhecimentos fundamentais
nascem da maravilha que nele suscita a contemplação da criação: o ser humano
enche-se de encanto ao descobrir-se incluído no mundo e relacionado com outros
seres semelhantes, com quem partilha o destino. Parte daqui o caminho que o
levará, depois, à descoberta de horizontes de conhecimentos sempre novos. Sem
tal assombro, o homem tornar-se-ia repetitivo e, pouco a pouco, incapaz de uma
existência verdadeiramente pessoal.
A capacidade reflexiva própria do intelecto humano permite elaborar, através
da actividade filosófica, uma forma de pensamento rigoroso, e assim construir,
com coerência lógica entre as afirmações e coesão orgânica dos conteúdos, um
conhecimento sistemático. Graças a tal processo, alcançaram-se, em contextos
culturais diversos e em diferentes épocas históricas, resultados que levaram à
elaboração de verdadeiros sistemas de pensamento. Historicamente isto gerou
muitas vezes a tentação de identificar uma única corrente com o pensamento
filosófico inteiro. Mas, nestes casos, é claro que entra em jogo uma certa «soberba
filosófica», que pretende arvorar em leitura universal a própria perspectiva e
visão imperfeita. Na realidade, cada sistema filosófico, sempre no respeito da sua
integridade e livre de qualquer instrumentalização, deve reconhecer a prioridade
do pensar filosófico de que teve origem e ao qual deve coerentemente servir.
Neste sentido, é possível, não obstante a mudança dos tempos e os progressos
do saber, reconhecer um núcleo de conhecimentos filosóficos, cuja presença é
constante na história do pensamento. Pense-se, só como exemplo, nos princípios
de não-contradição, finalidade, causalidade, e ainda na concepção da pessoa como
sujeito livre e inteligente, e na sua capacidade de conhecer Deus, a verdade,
o bem; pense-se, além disso, em algumas normas morais fundamentais que
geralmente são aceites por todos. Estes e outros temas indicam que, para além
das correntes de pensamento, existe um conjunto de conhecimentos, nos quais é
possível ver uma espécie de património espiritual da humanidade. É como se nos
encontrássemos perante uma filosofia implícita, em virtude da qual cada um sente
que possui estes princípios, embora de forma genérica e não reflectida. Estes
conhecimentos, precisamente porque partilhados em certa medida por todos,
deveriam constituir uma espécie de ponto de referência para as diversas escolas
filosóficas. Quando a razão consegue intuir e formular os princípios primeiros e
universais do ser, e deles deduzir correcta e coerentemente conclusões de ordem
lógica e de ontológica, então pode-se considerar uma razão recta, ou, como era
chamada pelos antigos, orthòs logos, recta ratio.
5. A Igreja, por sua vez, não pode deixar de apreciar o esforço da razão na
consecução de objectivos que tornem cada vez mais digna a existência pessoal.
Na verdade, ela vê, na filosofia, o caminho para conhecer verdades fundamentais
relativas à existência do homem. Ao mesmo tempo, considera a filosofia uma
ajuda indispensável para aprofundar a compreensão da fé e comunicar a verdade
do Evangelho a quantos não a conhecem ainda.
Na sequência de iniciativas análogas dos meus Predecessores, desejo também
eu debruçar-me sobre esta actividade peculiar da razão. Faço-o movido pela
constatação, sobretudo em nossos dias, de que a busca da verdade última
aparece muitas vezes ofuscada. A filosofia moderna possui, sem dúvida, o
grande mérito de ter concentrado a sua atenção sobre o homem. Partindo daí,
uma razão cheia de interrogativos levou por diante o seu desejo de conhecer
sempre mais ampla e profundamente. Desta forma, foram construídos sistemas
de pensamento complexos, que deram os seus frutos nos diversos âmbitos do
conhecimento, favorecendo o progresso da cultura e da história. A antropologia,
a lógica, as ciências da natureza, a história, a linguística, de algum modo todo o
universo do saber foi abarcado. Todavia, os resultados positivos alcançados não
devem levar a transcurar o facto de que essa mesma razão, porque ocupada a
investigar de maneira unilateral o homem como objecto, parece ter-se esquecido
de que este é sempre chamado a voltar-se também para uma realidade que o
transcende. Sem referência a esta, cada um fica ao sabor do livre arbítrio, e a sua
condição de pessoa acaba por ser avaliada com critérios pragmáticos baseados
essencialmente sobre o dado experimental, na errada convicção de que tudo deve
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ser dominado pela técnica. Foi assim que a razão, sob o peso de tanto saber,
em vez de exprimir melhor a tensão para a verdade, curvou-se sobre si mesma,
tornando-se incapaz, com o passar do tempo, de levantar o olhar para o alto e de
ousar atingir a verdade do ser. A filosofia moderna, esquecendo-se de orientar a
sua pesquisa para o ser, concentrou a própria investigação sobre o conhecimento
humano. Em vez de se apoiar sobre a capacidade que o homem tem de conhecer
a verdade, preferiu sublinhar as suas limitações e condicionalismos.
Daí provieram várias formas de agnosticismo e relativismo, que levaram a
investigação filosófica a perder-se nas areias movediças dum cepticismo geral. E,
mais recentemente, ganharam relevo diversas doutrinas que tendem a desvalorizar
até mesmo aquelas verdades que o homem estava certo de ter alcançado. A
legítima pluralidade de posições cedeu o lugar a um pluralismo indefinido, fundado
no pressuposto de que todas as posições são equivalentes: trata-se de um dos
sintomas mais difusos, no contexto actual, de desconfiança na verdade. E esta
ressalva vale também para certas concepções de vida originárias do Oriente: é
que negam à verdade o seu carácter exclusivo, ao partirem do pressuposto de que
ela se manifesta de modo igual em doutrinas diversas ou mesmo contraditórias
entre si. Neste horizonte, tudo fica reduzido a mera opinião. Dá a impressão de
um movimento ondulatório: enquanto, por um lado, a razão filosófica conseguiu
avançar pela estrada que a torna cada vez mais atenta à existência humana e às suas
formas de expressão, por outro tende a desenvolver considerações existenciais,
hermenêuticas ou linguísticas, que prescindem da questão radical relativa à
verdade da vida pessoal, do ser e de Deus. Como consequência, despontaram,
não só em alguns filósofos mas no homem contemporâneo em geral, atitudes
de desconfiança generalizada quanto aos grandes recursos cognoscitivos do ser
humano. Com falsa modéstia, contentam-se de verdades parciais e provisórias,
deixando de tentar pôr as perguntas radicais sobre o sentido e o fundamento
último da vida humana, pessoal e social. Em suma, esmoreceu a esperança de se
poder receber da filosofia respostas definitivas a tais questões.
6. Credenciada pelo facto de ser depositária da revelação de Jesus Cristo, a Igreja
deseja reafirmar a necessidade da reflexão sobre a verdade. Foi por este motivo
que decidi dirigir-me a vós, venerados Irmãos no Episcopado, com quem partilho
a missão de anunciar «abertamente a verdade» (2 Cor 4, 2), e dirigir-me também
aos teólogos e filósofos a quem compete o dever de investigar os diversos aspectos
da verdade, e ainda a quantos andam à procura duma resposta, para comunicar
algumas reflexões sobre o caminho que conduz à verdadeira sabedoria, a fim de
que todo aquele que tiver no coração o amor por ela possa tomar a estrada certa
para a alcançar, e nela encontrar repouso para a sua fadiga e também satisfação
espiritual.
Tomo esta iniciativa impelido, antes de mais, pela certeza de que os Bispos, como
assinala o Concílio Vaticano II, são «testemunhas da verdade divina e católica»
(3). Por isso, testemunhar a verdade é um encargo que nos foi confiado a nós,
os Bispos; não podemos renunciar a ele, sem faltar ao ministério que recebemos.
Reafirmando a verdade da fé, podemos restituir ao homem de hoje uma genuína
confiança nas suas capacidades cognoscitivas e oferecer à filosofia um estímulo
para poder recuperar e promover a sua plena dignidade.
Há um segundo motivo que me induz a escrever estas reflexões. Na carta encíclica
Veritatis splendor, chamei a atenção para «algumas verdades fundamentais da
doutrina católica que, no contexto actual, correm o risco de serem deformadas
ou negadas». (4) Com este novo documento, desejo continuar aquela reflexão,
concentrando a atenção precisamente sobre o tema da verdade e sobre o seu
fundamento em relação com a fé. De facto, não se pode negar que este período, de
mudanças rápidas e complexas, deixa sobretudo os jovens, a quem pertence e de
quem depende o futuro, na sensação de estarem privados de pontos de referência
autênticos. A necessidade de um alicerce sobre o qual construir a existência
pessoal e social faz-se sentir de maneira premente, principalmente quando se é
obrigado a constatar o carácter fragmentário de propostas que elevam o efémero
ao nível de valor, iludindo assim a possibilidade de se alcançar o verdadeiro
sentido da existência. Deste modo, muitos arrastam a sua vida quase até à borda
do precipício, sem saber o que os espera. Isto depende também do facto de, às
vezes, quem era chamado por vocação a exprimir em formas culturais o fruto
da sua reflexão, ter desviado o olhar da verdade, preferindo o sucesso imediato
ao esforço duma paciente investigação sobre aquilo que merece ser vivido. A
Pelo que você acabou de ler no texto da encíclica Fides et ratio, fica evidente
que o debate entre fé e razão não somente continua atualíssimo, como também conserva
muito do que foi seu impulso inicial no período medieval.
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As instituições que a Idade Média nos legou são de um valor maior e mais
imperecível do que suas catedrais. E a universidade é nitidamente uma instituição
medieval – tanto quanto a monarquia constitucional, ou os parlamentos, ou
o julgamento por meio do júri. As universidades e os produtos imediatos
das suas atividades, pode ser afirmado, constituem a grande realização da
Idade Média na esfera intelectual. Sua organização, suas tradições, seus
estudos e seus exercícios influenciaram o progresso e o desenvolvimento
intelectual da Europa mais poderosamente, ou (talvez deveria ser dito) mais
exclusivamente, do que qualquer escola, com toda a probabilidade, jamais fará
novamente [...] (Disponível em: http://www.faced.ufu.br/colubhe06/anais/
arquivos/164TerezinhaOliveira.pdf. Acesso em: 05 Jan. 2010).
Em função disso, torna-se mais fácil compreender por que os textos medievais
que se têm hoje estão tão corruptos, uma vez que a transmissão oral não primava pela
exatidão literal. Entretanto, percebe-se que os estudantes medievais tinham um grande
numero de fórmulas, de citações, de modelos de argumentos e de movimentos padrão,
todos calcados em suas memórias. Os estudantes não utilizavam textos como fontes,
mas como ferramentas para auxiliá-los a recordar o que tinham já memorizado, ou seja,
como fonte útil de argumentos ou de distinções, não como ferramenta para reconstruir
o pensamento de algum filósofo em particular. Tal quadro foi sendo mudado, muito
lentamente, com o acesso mais generalizado aos textos, até se chegar ao ponto em que,
no século 14 EC, nos comentários às Sentenças, de Pedro Lombardo, já se encontravam
argumentações muito complexas com citações exatas de autores contemporâneos, o que
somente foi possível por meio da consulta direta e minuciosa de texto escritos.
Duas vezes por ano, uma no advento e a outra na primavera, havia as chamadas
disputationes quodlibetales (literalmente “disputas sobre quaisquer questões”) – assim
chamadas pela possibilidade de serem abordados quaisquer temas e de serem iniciadas
por qualquer pessoa da assembleia.
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Embora tenha tido uma vida curta e tenha galgado uma posição equivalente ao
cargo de primeiro ministro, seu sucesso profissional terminou em uma grande tragédia,
pois foi condenado à morte por traição, tendo tempo na prisão, antes da execução, para
escrever a Consolação da Filosofia, uma obra justamente contada como uma das principais
obras primas da literatura latina. Tal decisão de dedicar o pouco tempo de vida que lhe
restava a discutir a providência divina e a verdadeira felicidade coloca em evidência,
mais uma vez, que sua concepção de filosofia era a de um estilo de vida, pois o filósofo
estava disposto a enfrentar toda e qualquer dificuldade de maneira altiva e corajosa.
Como também visto na Unidade 1, o estoicismo e o cristianismo tinham muita semelhança
nessa questão sobre qual seria a atitude mais adequada para enfrentar as dificuldades
da vida no mundo. Boécio certamente bebeu nestas duas fontes: estoicismo romano e
Cristianismo.
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O pensamento de Escoto Erígena foi muito importante, também, por ter sido
desenvolvido em um momento de revitalização da educação formal, conjuntamente com
uma discussão sobre a questão se a estrutura lógica do discurso correspondia ou não a
uma estrutura lógica da realidade. Se a decisão fosse pela primeira alternativa, então
voltar-se-ia a uma realidade direcionada para o Sumo Bem, tal qual o pensado pelo
neoplatonismo.
Para que você possa compreender melhor, veja a seguir um trecho da obra
Monologion:
Alguns irmãos de hábito pediram-me muitas vezes e com insistência para
transcrever, sob forma de meditação, umas idéias que lhes havia comunicado
em conversação familiar, acerca da essência divina e outras questões conexas
com esse assunto. Isto é, atendendo mais a como deveria ser redigida esta
meditação do que à facilidade da tarefa ou à medida das minhas possibilidades,
estabeleceram o método seguinte: sem, absolutamente, recorrer, em nada,
à autoridade das Sagradas Escrituras, tudo aquilo que fosse exposto ficasse
demonstrado pelo encadeamento lógico da razão, empregando argumentos
simples, com um estilo acessível, para que se tornasse evidente pela própria
clareza da verdade (ANSELMO, 1984, s.n.).
Contudo, o próprio Anselmo ressalva que sua exposição não deve ser entendida
separadamente de toda a tradição filosófica cristã, como podemos verificar no Prólogo da
obra Monológio:
[...] se alguém tiver a impressão de que, neste opúsculo, alguma coisa pareça
demasiadamente nova ou que não esteja de acordo com a verdade, rogo-lhe
não tachar-me, precipitadamente, de inovador presunçoso ou de assertor da
falsidade. Leia primeiro o De Trinitate, do citado Santo Agostinho, e, depois,
julgue o meu opúsculo segundo essa obra (ANSELMO, 1984, s.n.).
Meu pai foi um pouco versado nas letras antes de haver cingido o cinturão de
soldado e mais tarde abraçou com tanto amor as letras que se dispôs a fazer
com que nelas fossem instruídos, antes dos exercícios militares, quaisquer
filhos que tivesse. E, sem dúvida, assim foi feito. Por isso, tratou com tanto
mais cuidado da minha formação quanto mais me dedicava o seu afeto, uma
vez que era o seu filho primogênito. Eu, na verdade, quanto mais longe e mais
facilmente me adiantei nos estudos das letras, tanto mais ardentemente a elas
me apeguei, e fui seduzido por um tão grande amor por elas que, abandonando
aos meus irmãos a pompa da glória junto com a herança e a prerrogativa dos
primogênitos, renunciei completamente à corte de Marte para ser educado no
regaço de Minerva (ABELARDO, 1973, p. 250).
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UNIDADE 2
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9 CONSIDERAÇÕES
Nesta unidade, você aprendeu um pouco mais sobre o surgimento das primeiras
universidades, bem como sobre os métodos e os componentes da vida docente e da vida
estudantil e sobre como a filosofia era parte da vida de mestre e estudantes. A filosofia
continuou a ser encarada como o melhor estilo de vida possível, sendo que, nos casos mais
emblemáticos, de Boécio e de Abelardo, a filosofia lhes serviu muito para consolá-los nos
momentos em que enfrentaram suas calamidades pessoais. A filosofia era a profissão dos
intelectuais medievais, apesar de, também, influenciar diretamente o seu estilo de vida
e as suas esperanças futuras para a vida presente e para a vida depois da vida terrena.
Como você viu, o conhecimento e a discussão de várias das contribuições da Filosofia
Clássica não cessou, porém, outros pontos ganharam destaque e novas e importantes
contribuições foram feitas por Boécio, Anselmo, Abelardo e vários outros. No entanto,
várias obras dos autores clássicos mais importantes foram perdidas no ocidente cristão, e
isto teve, é claro, grandes implicações. Nesse momento, portanto, é interessante que você
tenha contato com alguns dos problemas e das doutrinas centrais da Filosofia Medieval a
partir do momento em que tais obras voltaram a circular no ocidente cristão em traduções
latinas. Todos esses elementos vão aparecer com clareza na próxima unidade.
10 E-REFERÊNCIAS
Chamadas numéricas
Sites pesquisados
11 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABELARDO, P. A. História das minhas calamidades. São Paulo: Abril, 1973.
ANSELMO DE BEC, Santo. Monológio. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
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UNIDADE 2
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REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia: patrística e escolástica. São Paulo: Paulus,
2005.
UNIDADE 3
NEOPLATONISMO NO
PENSAMENTO MEDIEVAL
OCIDENTAL
Objetivos
• Contextualizar a recepção e os desdobramentos da
filosofia de Aristóteles na Idade Média.
Conteúdos
• Influência aristotélica na formação do pensamento
ocidental.
• Segunda escolástica.
UNIDADE 3
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1 INTRODUÇÃO
A recepção das obras de Aristóteles no ocidente cristão significou um salto de
qualidade na discussão de questões tradicionais da filosofia ao mesmo tempo em que
introduziu elementos importantes para a discussão de novos temas. Nesse contexto,
foram determinantes as traduções para o latim das obras dos pensadores que escreveram
em árabe. Contudo, tais traduções teriam permanecido incompreensíveis se não fosse
o trabalho de interpretação e de explicação de autores como Alberto Magno, Tomás de
Aquino, João Duns Escoto e tantos outros.
Também é fato notável que a Falsafa não apenas esteve preocupada com
o pensamento de Aristóteles, mas sentiu, fortemente, a influência do pensamento
neoplatônico. Isto não é surpresa quando se considera que quase todos os principais
comentadores gregos, com a exceção de Alexandre de Afrodísias, eram neoplatônicos.
A apresentação a seguir certamente não faz jus à importância desse tema para
o estudo da Filosofia Medieval. Todavia, pode servir de estímulo para que você procure
ler mais a respeito e para que se aprofunde no assunto. Um exemplo de texto que poderá
servir para tal finalidade é o livro de autoria de Miguel Attie Filho. Nele, você encontrará,
dentre outras informações interessantes, o seguinte trecho:
[A] principal característica da falsafa é ser medieval. Tal condição traz consigo uma
grande bagagem de pré-conceitos a respeito da Idade Média e, consequentemente,
da filosofia praticada nesse período. Se a binômia tabuleta em que se lê “razão e
fé” pôde guardar um olhar estreito em relação ao todo da filosofia medieval, mais
ainda poderia sê-lo em relação à falsafa. A isso se acrescenta, não raramente, uma
visão distorcida dos povos semitas, de modo geral, e dos árabes, em particular.
Outra característica da falsafa é ter sido uma novidade no cenário da filosofia
que, até então, já se havia construído e alicerçado ao longo de, pelo menos,
1200 anos. Afinal, até o século VIII d. C., a filosofia havia se desenvolvido
principalmente entre os povos gregos, no interior do império romano e entre a
cristandade do Oriente e do Ocidente. A novidade repousa no fato de que, nesse
panorama de povos e culturas, também passou a figurar o povo árabe. E, assim
como o helenismo, quando absorvido por outras culturas, teve que se adaptar às
características locais, o mesmo aconteceu no caso da falsafa. Os ingredientes da
filosofia e das ciências gregas também se adaptaram à cultura e à religião dos
árabes. Esse encontro resultou numa filosofia original e renovada que não se
confunde com particularidades filosóficas anteriores. Além disso, a filosofia que
havia sido até então um patrimônio praticamente exclusivo da língua grega, latina
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UNIDADE 3
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e siríaca, chegou, pela primeira vez, a ser escrita em língua árabe. Nesse caso,
não é difícil imaginar que os termos e os conceitos filosóficos tiveram de seguir
um novo itinerário para serem adaptados ao novo idioma.
Outro ponto relevante é o fato de a filosofia se confrontar com uma nova religião.
O islamismo recebeu a filosofia pouco mais de 150 anos pós o seu nascimento. A
filosofia, nascida entre os mitos gregos, transportada juntamente com os deuses
para o panteão de Roma, absorvida pelos padres da igreja para cimentar os
dogmas da cristandade, havia se confrontado, até então, com outras formas de
religião, mas não ainda com o islamismo. Foi a falsafa que se encarregou de
fazer com que os princípios filosóficos se deparassem, pela primeira vez, com os
dogmas da religião islâmica, o que foi sem dúvida um novo desafio para ambas.
A falsafa foi a responsável não só pela imersão do pensamento da filosofia grega
entre os árabes, mas também pela transmissão da filosofia grega ao Ocidente.
Na medida em que o paradigma grego foi um dos responsáveis pela construção
filosófica do Ocidente, não é difícil imaginar que a falsafa ocupe um lugar histórico
muito peculiar. Sobre o meridiano da filosofia oriental e ocidental, a meio caminho
da contemplação de dois - ou mais - caminhos, a falsafa contribuiu sobremaneira
para inúmeras transformações da filosofia do Oriente e do Ocidente. É assim
que, por exemplo, muitas teses desenvolvidas no interior da falsafa possuem aos
moldes das duas faces da alma propostas por Ibn Sīnā – duas frontes distintas:
uma voltada para o Oriente e a outra para o Ocidente (ATTIE FILHO, 2002, p.
32-34).
podemos dizer das causas em geral. Nada pode ser causa eficiente de si mesmo,
pois para se produzir era preciso ser anterior, enquanto causa, a si mesmo
enquanto efeito. Toda causa eficiente supõe, pois, uma outra, a qual por sua vez
supõe uma outra. Ora, essas causas não mantêm entre si uma relação acidental;
elas se condicionam, ao contrário, de acordo com certa ordem, e é precisamente
por isso que cada causa eficiente explica de fato a seguinte. Assim sendo, a
primeira causa explica a que está no meio da séria, e a que está no meio explica
a última. Há, pois, uma primeira causa da série para que haja uma causa média
e uma causa última, e essa primeira causa eficiente é Deus.
Consideramos agora o próprio ser. Aquele que nos é dado está em vias de
perpétuo devir; certas coisas se engendram, logo podiam existir; certas outras
se corrompem, logo podiam não existir. Poder existir ou não existir é não ter
uma existência necessária; ora, o necessário não precisa de causa para existir, e
precisamente por ser necessário, existe por si mesmo; mas o possível não possui
em si a razão suficiente de sua existência e, se só houvesse o possível nas coisas,
não haveria nada. Para que aquilo que podia ser seja, é preciso antes de mais
nada algo que seja e o faça ser. Isso significa que, se há alguma coisa, é que há
em algum lugar o necessário. Ora, também aqui, esse necessário exigirá uma
causa ou uma série de causas que não seja infinita, e o ser necessário por si,
causa de todos os seres que lhe devem sua necessidade, não poderia ser outro
senão Deus.
Um quarto caminho passa pelos graus hierárquicos de perfeição que se observam
nas coisas. Há graus na bondade, na verdade, na nobreza e nas outras perfeições
desse gênero. Ora, o mais ou menos sempre supõe um termo de comparação,
que é o absoluto. Portanto, há um verdadeiro e um bem em si, isto é, afinal de
contas, um ser em si que é a causa de todos os outros seres e que chamamos
de Deus.
O quinto caminho baseia-se na ordem das coisas. Todas as operações dos corpos
naturais tendem a um fim, muito embora estes sejam, em si, desprovidos de
conhecimento. A regularidade com a qual alcançam seu fim mostra bem que não
chega até ele por acaso, e essa regularidade só pode ser intencional ou desejada.
Já que são desprovidos de conhecimento, é preciso que alguém conheça por
eles, e é essa inteligência primeira, ordenadora da finalidade das coisas, que
chamamos Deus (GILSON, 1995, p. 658-660).
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As coisas são aquilo que conscientemente se descobre pelo simples fato de que
os sentidos as percebem. Um muro amarelo é tal porque, ao se olhar para ele, se vê que
ele é amarelo. Contudo, se há muros amarelos, é porque há algo neles que os possibilita
serem amarelos – pense, em contraste, no céu noturno que “não pode” ser amarelo.
Comum a todas as coisas amarelas está algo que possibilita que sejam amarelas. Esse
algo pode ser chamado de “natureza” e de “efetiva”, pois faz, de fato, que aquelas coisas
sejam amarelas.
Mas se cada coisa que se percebe pelos sentidos tem de ter uma “natureza
efetiva”, é de se supor que haja algo “efetivo” que venha em primeiro lugar na sequência
das coisas que fazem outras coisas serem aquilo que são. Isto que se pode denominar
“efetivo simplesmente primeiro” nunca deixaria de ser o que é e não teria se tornado o que
é por força de outra “natureza efetiva”, não tendo, tampouco, sido causado ou forçado a
agir por outra causa que não si mesmo.
Tomás de Aquino diz que o objeto da metafísica é o ens commune, mas, como
para ele, Deus não está incluído no ens commune, sendo, porém, a causa deste, parece
que Tomás admite a possibilidade da metafísica também tratar de Deus. Contudo, em
algumas passagens de seu comentário à Metafísica, ele parece defender que a existência
de Deus somente pode ser provada pela física – conforme queria Averróis. Dentre os
pensadores escolásticos principais, a grande voz discordante é Guilherme de Ockham3
(1285-1347 EC), pois, para ele, não há um objeto único da metafísica.
O que quer que faça Sócrates ser o ser que é, por exemplo, também o torna
diferente de todos os outros indivíduos da mesma espécie.
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UNIDADE 3
Licenciatura em Filosofia
Pois bem. A pessoa que notou a aproximação pensa no fato de outra pessoa se
aproximar daquele grupo; provavelmente, será, também, de interesse comum, e comunica
ao grupo acerca do fato. Ao se tornar o centro das atenções, a pessoa que acabou de falar
acrescenta a única informação que lhe é possível adicionar naquele momento: “é homem”.
Entretanto, assim que a pessoa se aproxima suficientemente, é, então, possível dizer, com
certeza, que “é o Sócrates”.
Outra questão importante é entender como é que a pessoa que viu um animal
exótico se aproximar e mesmo sem jamais tê-lo visto é capaz de dizer, de maneira
apropriada e verdadeira, que “é um animal”. Será que aquela pessoa “reconheceu” a
“animalidade” daquilo que se aproximava? Ou será que “animal” é somente uma maneira
de falar de coisas, assim como alguém pode utilizar a palavra “fera” para falar de pessoas
amigas e talentosas? Seria “animal” uma espécie de apelido ou de gíria que pode ser dito
de várias coisas, dependendo da escolha casual de quem utiliza a palavra?
Pois bem. Parece que há pelo menos um caso em que a abordagem de que há
palavras que são meros “apelidos” das coisas não é exatamente satisfatória. Mas como
é que os autores medievais resolviam essas dificuldades? Será que é possível manter-se
sempre coerente com uma mesma abordagem dessa questão?
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Questão de “prioridade”
Na sua forma mais elaborada, o Problema dos Universais parece permitir uma
melhor solução se as questões principais forem reelaboradas. Como ninguém pressupõe
que seja possível ver a “humanidade” parada na esquina ou a “humanidade” tomando
um refrigerante num ambiente lotado, parece seguro dizer que todos concordam que a
“humanidade” somente pode ser encontrada em cada um dos seres humanos, e somente
neles. Tampouco haveria problemas para saber o que é “universal” e o que é “particular”,
pois ninguém pensaria em “Sócrates” como sendo universal ou em “animal” como sendo
particular, pois “Sócrates” é, claramente, um indivíduo, e “animal” refere-se, obviamente,
a muitos seres. A principal dificuldade seria, portanto, saber o que tem “prioridade” tanto
no que se refere à existência das coisas quanto ao entendimento (pensamento) em si.
Sob o ponto de vista do acesso imediato, parece que a prioridade deveria estar do
lado dos particulares, pois é bem evidente que o mundo está repleto de coisas particulares
que são imediatamente acessíveis aos sentidos. Contudo, parece inegável que as coisas
particulares do mundo são percebidas como pertencendo a conjuntos, classes ou tipos de
coisas. Coisas frias são percebidas como frias e coisas secas como secas, por exemplo. A
particularidade das coisas seria, provavelmente, insuficiente para dar significado às coisas.
Mais: quando se diz algo de algum particular, fica implícita a noção de que há
uma relação real entre aquele particular e o que é dito dele. Dizer “aquele ponto distante
é um cachorro” somente parece ter sentido se, de fato, “cachorro” descrever algo de
real no mundo, ainda que nem sempre seja verdadeiro que “aquele ponto distante” seja
um cachorro, por exemplo, quando a pessoa que o diz está mentindo. E “aquele ponto
distante” seria, provavelmente, desprovido de todo sentido se sempre permanecesse um
“ponto distante” sem se revelar como um cachorro, um ser humano ou um pedaço de
cascalho. Até os pontos brilhantes mais distantes do universo são estudados e classificados
pelos cientistas.
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Embora seja percebido antes, o particular é classificado a partir das classes que
já estão no entendimento. Do ponto de vista do entendimento, a classe – o universal –
tem prioridade com relação ao particular que é dito pertencer a ela. A dificuldade está,
portanto, em como traduzir a prioridade do universal do ponto de vista do entendimento
para a questão do que existe em primeiro lugar e de que maneira. Alguns autores clássicos
não tiveram dúvidas sobre essa questão ao atribuir existência real aos universais anteriores
aos particulares dos quais os universais são ditos. As coisas podem ser ditas “boas” porque
antes existe o Bem, e assim por diante. Esta teria sido a posição de Platão.
Outra solução seria dizer que a natura communis tem um tipo de unidade
diferente da unidade numérica e diferente da unidade formal. João Duns Escoto propôs
que a natura communis tem uma unidade menor que a numérica e menor que a formal, ou
seja, tem unidade e tem existência, mas a unidade não chega a ser numérica e não chega
a ser formal. A vantagem de tal abordagem é que o aparato perceptivo, nesse contexto,
não tem que ser extremamente complexo, ao contrário, pode ser bem simples.
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De certa maneira, pode-se dizer que esse quadro geral escolástico do processo
que vai desde o objeto exterior até o Intelecto Possível é muito mais eficaz e adequado
para uma ontologia e uma teoria do conhecimento realistas; razão pela qual Ockham
rejeitou a doutrina das “espécies” ou formas e propôs uma ontologia totalmente baseada
no particular e uma teoria do conhecimento muito complexa e de difícil compreensão,
cujas principais ideias ainda são discutidas mesmo nos dias atuais.
6 A SEGUNDA ESCOLÁSTICA
A segunda escolástica aconteceu de maneira principal na península ibérica e
envolveu uma renovação da filosofia, da teologia, da política e do direito. Tal movimento
foi iniciado na Espanha do século 15 EC e em Portugal. Seus efeitos perduraram até o
século 18 EC. Muitas razões podem ser levantadas para o porquê de tal ressurgimento
do escolasticismo ter ocorrido na península ibérica, dentre outras, estão o fato de o
Humanismo e de suas realizações filosóficas não terem lançado bases tão profundas em
Portugal e Espanha e o fato de a península ibérica não ter experimentado nem as guerras
nem as profundas divisões religiosas pelas quais passaram França, Inglaterra e Alemanha,
para citar apenas alguns casos.
7 CONSIDERAÇÕES
Nesta terceira unidade, você acompanhou a filosofia desenvolvida pelos
principais autores medievais, tais como o dominicano Tomás de Aquino e o franciscano
João Duns Escoto, dentre outros. Esses autores medievais se preocuparam com temas
como Essência e Existência, o Problema dos Universais, o Problema da Individuação, as
provas da existência de Deus etc. Tais autores lançaram mão de termos técnicos como
“Ser” (esse), “natureza comum” (natura communis), “ser em geral” (ens commune),
“ente” e de muitos outros; as distinções produzidas com o uso de tais termos são sutis
e complexas. Contudo, depois desse contato próximo com a Filosofia Medieval, sua
curiosidade intelectual certamente ficou aguçada e você poderá aprofundar seus estudos
com as referências que adquiriu neste caderno.
Depois desse contato sistemático com a Filosofia Medieval, você já tem condições
de continuar suas leituras a respeito desse período fascinante e instigante da história da
filosofia. É claro que os temas estudados são muito complexos e sofisticados e não se
deixam compreender com uma leitura superficial e apressada – aliás, você já percebeu
que todos os filósofos importantes produziram textos profundos – mas demandam muitas
releituras e muita dedicação. Todavia, você teve um bom aperitivo de História da
Filosofia Medieval e desenvolveu seu gosto por novos temas e autores. Isto certamente
lhe será muito útil nos estudos.
8 E-REFERÊNCIAS
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9 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AQUINO, T. de. Seleção de textos. Coleção os pensadores. São Paulo: Nova Cultural,
1988.
ATTIE FILHO, M. Falsafa – a filosofia entre os árabes. São Paulo: Palas Athena, 2002.
REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia: patrística e escolástica. São Paulo: Paulus,
2005.