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HISTÓRIA DA FILOSOFIA MEDIEVAL

CURSOS DE GRADUAÇÃO – EAD


História da Filosofia Medieval - Prof. Dr. João Batista Madeira

Meu nome é João Batista Madeira. Minha formação é em


Filosofia e em Teologia. Pertenci à primeira turma reconhe-
cida do curso de Licenciatura em Filosofia do Claretiano
(1990-1992). Sou formado em Teologia pelo Centro de Es-
tudos da Arquidiocese de Ribeirão Preto (1993-1996). Es-
pecializei-me em Filosofia Contemporânea pela PUC de
Minas Gerais - Belo Horizonte (1996-1998). Sou mestre em
Filosofia pela Universidade Católica de Lovaina - Katholieke
Universiteit Leuven (1999-2001) e doutor (bolsista CAPES),
também em Filosofia, pela mesma Universidade (2002-
2006). Fiz Pós-doutoramento em História das Ciências na Faculdade de Filosofia, Ciências
e Letras da USP-RP (bolsista FAPESP - 2008-2009). Participo do Centro de Filosofia Brasi-
leira (CEFIB) da UFRJ. Tenho experiência docente em várias disciplinas, como Lógica, Me-
tafísica, Ética, História da Filosofia e História da Filosofia Medieval.
e-mail: jbmadeira@yahoo.co.uk

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João Batista Madeira

HISTÓRIA DA FILOSOFIA MEDIEVAL


Caderno de Referência de Conteúdo

Batatais
Claretiano
2013
© Ação Educacional Claretiana, 2012 – Batatais (SP)
Versão: dez./2013

180 M153h

Madeira, João Batista


História da filosofia medieval / João Batista Madeira – Batatais, SP :
Claretiano, 2013.
200 p.

ISBN: 978-85-67425-69-6

1. A passagem da filosofia antiga para a filosofia medieval. 2. O cristianismo e o


mundo grego. 3. Plotino e sua influência no pensamento cristão. 4. A filosofia
patrística latina e Santo Agostinho. 5. A gênese da primeira escolástica, Boécio
e as traduções dos filósofos clássicos para o Latim. 6. João Escoto Erígena e
Anselmo de Cantuária. 7. Pedro Abelardo e Pedro Lombardo. 8. Influência Aristotélica
na formação do pensamento ocidental. 9. Filosofia árabe: Averróis e Avicena.
10. Santo Tomás de Aquino. Guilherme de Ockam e Duns Escoto. 11. A
segunda escolástica. I. História da filosofia medieval.
CDD 180

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Preparação Revisão
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Camila Maria Nardi Matos Felipe Aleixo
Carolina de Andrade Baviera Filipi Andrade de Deus Silveira
Cátia Aparecida Ribeiro Paulo Roberto F. M. Sposati Ortiz
Dandara Louise Vieira Matavelli Rodrigo Ferreira Daverni
Elaine Aparecida de Lima Moraes Sônia Galindo Melo
Josiane Marchiori Martins
Talita Cristina Bartolomeu
Lidiane Maria Magalini
Vanessa Vergani Machado
Luciana A. Mani Adami
Luciana dos Santos Sançana de Melo
Luis Henrique de Souza Projeto gráfico, diagramação e capa
Patrícia Alves Veronez Montera Eduardo de Oliveira Azevedo
Rita Cristina Bartolomeu Joice Cristina Micai
Rosemeire Cristina Astolphi Buzzelli Lúcia Maria de Sousa Ferrão
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Raphael Fantacini de Oliveira
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SUMÁRIO

CADERNO DE REFERÊNCIA DE CONTEÚDO


1 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 7
2 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO....................................................................... 9

Unidade 1 – DA FILOSOFIA ANTIGA À FILOSOFIA MEDIEVAL


1 OBJETIVOS......................................................................................................... 39
2 CONTEÚDOS...................................................................................................... 39
3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE................................................ 40
4 INTRODUÇÃO À UNIDADE................................................................................ 41
5 FILOSOFIA COMO ESTILO DE VIDA.................................................................. 53
6 FILOSOFIA NA GRÉCIA E EM ROMA................................................................. 56
7 AS ALMAS – EXISTÊNCIA SEPARADA E EXISTÊNCIA IMANENTE.................... 60
8 ESTOICOS, EPICURISTAS, CÍNICOS E CÉTICOS................................................. 65
9 O CRISTIANISMO E O MUNDO GREGO............................................................ 68
10 O NEOPLATONISMO E SUA INFLUÊNCIA NO PENSAMENTO POSTERIOR.... 71
11 A FILOSOFIA PATRÍSTICA LATINA..................................................................... 86
12 SANTO AGOSTINHO.......................................................................................... 87
13 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS......................................................................... 95
14 CONSIDERAÇÕES.............................................................................................. 96
15 E-REFERÊNCIAS................................................................................................. 97
16 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................... 98

Unidade 2 – AMBIENTE CULTURAL E EDUCACIONAL NA IDADE MÉDIA


1 OBJETIVOS......................................................................................................... 99
2 CONTEÚDOS...................................................................................................... 99
3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE................................................ 100
4 INTRODUÇÃO À UNIDADE................................................................................ 100
5 UMA VISÃO MEDIEVAL DE LÓGICA E LINGUAGEM........................................ 102
6 O DESENVOLVIMENTO DA TEMÁTICA DA RELAÇÃO ENTRE RAZÃO E FÉ..... 106
7 O PAPEL DA AUTORIDADE NA FILOSOFIA MEDIEVAL..................................... 113
8 O AMBIENTE CULTURAL DAS PRIMEIRAS UNIVERSIDADES.......................... 116
9 TEXTOS E FORMAS DE ENSINO UNIVERSITÁRIO............................................ 121
10 BOÉCIO E AS TRADUÇÕES DOS FILÓSOFOS CLÁSSICOS PARA O LATIM....... 123
11 ESCOTO ERÍGENA E ANSELMO DE CANTUÁRIA.............................................. 136
12 PEDRO ABELARDO E PEDRO LOMBARDO....................................................... 140
13 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS......................................................................... 144
14 CONSIDERAÇÕES.............................................................................................. 144
15 E-REFERÊNCIAS ................................................................................................ 145
16 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................... 146
Unidade 3 – ARISTOTELISMO E NEOPLATONISMO NO PENSAMENTO
MEDIEVAL OCIDENTAL
1 OBJETIVOS......................................................................................................... 147
2 CONTEÚDOS...................................................................................................... 147
3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE................................................ 148
4 INTRODUÇÃO À UNIDADE................................................................................ 149
5 FALSAFA – A FILOSOFIA EM ÁRABE – AVERRÓIS E AVICENA......................... 150
6 SANTO TOMÁS DE AQUINO.............................................................................. 153
7 JOÃO DUNS SCOTO........................................................................................... 165
8 ESSÊNCIA, EXISTÊNCIA E INDIVIDUAÇÃO....................................................... 167
9 O PROBLEMA DOS UNIVERSAIS....................................................................... 170
10 A SEGUNDA ESCOLÁSTICA............................................................................... 184
11 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS......................................................................... 196
12 CONSIDERAÇÕES.............................................................................................. 197
13 E-REFERÊNCIAS................................................................................................. 197
14 REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS ...................................................................... 199

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Caderno de
Referência de
Conteúdo

CRC

Ementa––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
A passagem da Filosofia Antiga para a Filosofia Medieval. O Cristianismo e o
mundo grego. O Neoplatonismo e sua influência no pensamento posterior. A Filo-
sofia Patrística Latina e Santo Agostinho. A gênese da primeira Escolástica; Boé-
cio e as traduções dos filósofos clássicos para o latim. João Escoto Erígena e An-
selmo de Cantuária. Pedro Abelardo e Pedro Lombardo. Influência aristotélica na
formação do pensamento ocidental. Filosofia Árabe: Averróis e Avicena. Santo
Tomás de Aquino. Guilherme de Ockham e Duns Escoto. A segunda Escolástica.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

1. INTRODUÇÃO
Seja bem-vindo!
Caro aluno, iniciaremos o estudo de História da Filosofia Me-
dieval. Neste Caderno de Referência de Conteúdo, você terá opor-
tunidade de se familiarizar com os autores e ideias que marcaram
a História da Filosofia Medieval.
Em cada uma das três unidades componentes deste Material
Didático Mediacional, você encontrará elementos que o ajudarão
8 © História da Filosofia Medieval

a compreender o contexto que propiciou o desenvolvimento das


reflexões sofisticadas e interessantes que caracterizam a Filosofia
da Idade Média.
À medida que você estudar a História da Filosofia Medieval,
descobrirá que temas vindos diretamente do passado se mostram
também interessantes a você, e que compreender a filosofia como
um estilo de vida, uma maneira de viver, ainda tem reflexos no
modo atual de procurar pautar a vida pela ética, pelo que é correto
e pelo que leva à vida com sentido.
Este CRC é parte obrigatória do currículo de todos os cursos
de Filosofia e, nos últimos anos, tem atraído um número cada vez
maior de interessados - não só no Brasil, como também no mundo
– em cursos de Pós-graduação em Filosofia Medieval. As publica-
ções na área também se multiplicam com melhores traduções de
seus autores ilustres e com textos de autores brasileiros compe-
tentes analisando os temas mais centrais.
A filosofia produzida por autores como Agostinho e Tomás
de Aquino pode parecer um pouco exótica num primeiro contato;
porém, com as informações que obterá no estudo deste CRC, você
perceberá que pode aprender muito com a Filosofia Medieval.
Para isso, você contará com o auxílio precioso da aula pre-
sencial e dos tutores deste CRC, além de inúmeras oportunidades
para refletir e discutir sobre suas ideias e ao interagir com seus
colegas de curso por meio da Lista e dos fóruns.
Nosso percurso será rico: observaremos, entre outros te-
mas, a transição da Filosofia Antiga Greco-romana para a Filosofia
Medieval; o estabelecimento do cristianismo; o Neoplatonismo e
seus ecos na História da Filosofia Medieval; a influência do pensa-
mento aristotélico; a Filosofia Patrística e a Escolástica.
Teremos a oportunidade de entrar em contato com os gran-
des expoentes do pensamento medieval, como Agostinho, Boécio,
João Escoto Erígena, Anselmo de Cantuária, Pedro Lombardo e
© Caderno de Referência de Conteúdo 9

Pedro Abelardo, Tomás de Aquino, Guilherme de Ockham, Duns


Escoto - e incluam-se entre eles os importantíssimos pensadores
árabes, como, por exemplo, Averróis e Avicena.
Após essa apresentação dos conceitos principais do CRC,
apresentaremos a seguir, no Tópico Orientações para o estudo, al-
gumas orientações de caráter motivacional, dicas e estratégias de
aprendizagem que poderão facilitar o seu estudo.

2. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO

Abordagem Geral

Prof. Dr. João Batista Madeira

Neste tópico, apresenta-se uma visão geral do que será es-


tudado neste CRC. Aqui, você entrará em contato com os assuntos
principais deste conteúdo de forma breve e geral e terá a oportu-
nidade de aprofundar essas questões no estudo de cada unidade.
Desse modo, essa Abordagem Geral visa fornecer-lhe o conheci-
mento básico necessário a partir do qual você possa construir um
referencial teórico com base sólida - científica e cultural - para que,
no futuro exercício de sua profissão, você a exerça com competên-
cia cognitiva, ética e responsabilidade social. Vamos começar nos-
sa aventura pela apresentação das ideias e dos princípios básicos
que fundamentam este CRC.
Introdução ao problema do estudo da Filosofia Medieval
O estudo de Filosofia Medieval tem atraído cada vez mais en-
tusiastas. Prova disso é o rápido crescimento do número de livros
e artigos dedicados a autores e temas genuinamente medievais. O
mercado de trabalho também tem crescido de modo considerável,
com muitas vagas para o ensino de Filosofia Medieval em institui-
ções de ensino públicas ou privadas.

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10 © História da Filosofia Medieval

Todavia, para pessoas de todas as faixas etárias, os temas


e abordagens filosóficas característicos da Idade Média podem
parecer tão incompreensíveis quanto as teorias econômicas mais
recentes. Mas com uma diferença: todo mundo parece concordar
que economistas, quando discutem "o grau de felicidade dos con-
sumidores americanos na década de 1950", estão fazendo um tra-
balho "útil e necessário".
Não queremos de modo nenhum desmerecer o trabalho dos
economistas! Porém, é o caso de nos perguntarmos: por que filó-
sofos que estudam, por exemplo, a teoria escotista da quididade,
não desfrutam do mesmo prestígio daqueles economistas?
Outra dificuldade que em geral se associa ao estudo da Fi-
losofia Medieval está diretamente ligada ao conteúdo religioso da
obra de muitos pensadores da época. Em relação a esse ponto,
a realidade brasileira é particularmente desafiadora: o dito popu-
lar "religião não se discute" pode esconder uma dificuldade maior
para o estudo da Filosofia Medieval.
É bem verdade que há um aspecto positivo associado a tal
dito popular. A índole pacífica do povo brasileiro considera melhor
cultivar a tolerância para com outras religiões e opiniões do que
se ver arrastado para a discriminação do diferente e para conflitos
religiosos armados. Porém, a falta de debate dificulta a difusão de
conhecimento.
A história está cheia de exemplos de intolerância religiosa
que confirmam a sabedoria de uma atitude de aceitação e de paz
numa sociedade multiétnica e plurirreligiosa. Em contrapartida,
não é o debate sobre temas religiosos que ocasiona conflitos, mas
o fato de as discordâncias de opinião muitas vezes gerarem belige-
rância. A reflexão sobre os fundamentos de uma religião tende a
ser benéfica, visto que as principais religiões pregam valores éticos
e atitudes de humildade e tolerância.
Outro fator que pode dificultar o interesse pelos estudos
medievais para grande parte dos jovens de hoje é a dificuldade de
© Caderno de Referência de Conteúdo 11

compreender o que motivava as reflexões dos autores medievais.


Primeiro convém pensar nas motivações atuais. Há uma tendência
"utilitarista" disseminada na cultura contemporânea.
É comum ouvir alguém perguntar a uma pessoa que acaba
de escolher seu curso universitário: "Por que uma pessoa jovem
como você resolveu estudar Filosofia?". O mesmo ocorre com So-
ciologia e outras ciências humanas menos conhecidas. É como se
alguém devesse escolher um curso universitário pensando na "uti-
lidade" que tal estudo pudesse ter para o mercado.
Há também uma tendência "relativista" disseminada na
cultura atual. Com frequência se conclui que respeitar a opinião
alheia significa que toda opinião deve necessariamente ser aceita,
sendo defensável simplesmente por ser uma opinião. Isso gera si-
tuações curiosas.
Por exemplo, uma pessoa confrontada com alguém que cri-
ticou algo escrito por ela logo pergunta: "Você está dizendo que
minha opinião está errada?" E, em seguida, acrescenta: "Mas eu
penso assim!". Claro que ninguém vai defender uma pessoa dog-
mática, cega ou tirânica, que somente considera a própria opinião
como verdadeira. As opiniões não estão corretas somente porque
alguém as defende. E nem toda defesa de opinião é aceitável.
Por fim, há também uma tendência "naturalista" dissemina-
da em nossa cultura. O naturalismo é mais uma abordagem geral
de temas ligados à vida e à ciência do que um conjunto de princí-
pios claramente elaborados.
Para explicar mais facilmente essa questão, utilizemos um
exemplo real. Um professor de Psicologia Cognitiva de uma co-
nhecida universidade brasileira ficou bastante surpreso quando
recebeu da grande maioria de seus alunos uma resposta afirma-
tiva para a pergunta: "Se eu tomasse uma porção de terra e uma
quantidade de água marinha, se eu separasse destas substâncias
os sais minerais e a água pura e colocasse tudo numa supermáqui-
na controlada por um poderoso computador, seria, em princípio,
possível obter como resultado um corpo humano vivo?"

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12 © História da Filosofia Medieval

Ora, a resposta afirmativa a tal questão implica que um cor-


po humano vivo seja composto apenas de elementos naturais. Ou
seja, em princípio, para obtê-lo basta juntar água pura e sais mi-
nerais, sem que seja necessário nenhum elemento "sobrenatural",
exterior à combinação química de elementos presentes na água
do mar. É justamente por causa destas tendências ao utilitarismo,
ao relativismo e ao naturalismo que o estudo da Filosofia Medieval
parece tão deslocado nos dias de hoje. Os pensadores medievais
tinham bases bem diferentes para produzir suas ideias e doutri-
nas. Vamos conhecê-las?
As bases da Filosofia Medieval
As principais bases da Filosofia Medieval são as ricas heran-
ças grega, romana e cristã. Do mundo greco-romano, além das fi-
losofias de Platão e de Aristóteles, a Idade Média herdou também
o pensamento de outras escolas filosóficas helenísticas, como o
epicurismo, o estoicismo, o ceticismo e o neoplatonismo.
Há alguns componentes que distinguem claramente a Fi-
losofia Medieval da Filosofia Antiga Greco-romana. Importantes
mudanças fizeram que a filosofia deixasse de ter as características
que marcaram a Filosofia Antiga e criaram progressivamente as
condições para que surgisse a Filosofia Medieval.
Quando colocamos a questão dessa maneira, alguém pode
imaginar que "de uma hora para outra" deixou de existir o modo
de pensar típico da Antiguidade, dando lugar ao modo de pensar
medieval. Isto, porém, não é totalmente correto. Claro que alguns
acontecimentos históricos levaram a mudanças culturais impor-
tantes e, por vezes, abruptas. Porém, a transformação do pensa-
mento filosófico ocorreu de modo progressivo.
Do cristianismo, a Filosofia Medieval herdou as noções de
monoteísmo; de criacionismo a partir do nada; de antropocen-
trismo em oposição ao cosmocentrismo grego e romano; de teo-
centrismo e das leis da moral, diretamente associadas à vontade
de Deus. Considerava-se, por exemplo, que a "queda do homem"
© Caderno de Referência de Conteúdo 13

ocorreu pela desobediência às leis de Deus, e que sua redenção


não depende dele mesmo: apenas Deus pode determiná-la.
A Idade Média herdou também o conceito de "Providência",
a quem se rende o indivíduo; da Redenção do homem pelo Deus
pleno de amor pela humanidade; da escatologia e da ressurreição
dos corpos; da História como realização do reino de Deus.
Todos esses elementos representaram uma grande novida-
de com relação à Filosofia Greco-romana, pois a Filosofia Antiga
apoiava-se sobre uma concepção de mundo politeísta. Além disso,
a noção de tempo de gregos e romanos antigos era a de tempo
circular, ou seja: assim como as estações se alternam num ritmo
anual fixo e perpétuo, tudo mais retorna em um ciclo.
Os antigos criam que havia uma orientação cosmocêntrica
do mundo, do qual o ser humano era apenas uma parte – e não
uma das partes mais poderosas. Gregos e romanos pensavam que
mesmo os deuses estavam submetidos às leis naturais.
Os gregos também imaginavam os deuses como seres envol-
vidos com seus próprios assuntos e indiferentes aos destinos hu-
manos. Ou seja, os deuses não se responsabilizariam por consertar
quaisquer erros humanos e mesmo quando se "apaixonavam" por
um homem ou uma mulher, eram movidos por um amor aquisitivo
(eros) e nunca por um amor donativo (ágape).
Os gregos concebiam a vida eterna, mas esta somente po-
deria ser pensada com relação a algo que não perecesse, como os
deuses ou as almas dos heróis e semideuses. Os gregos não acre-
ditavam que teriam um final definitivo, como na escatologia cristã.
Para eles, a História tem um caráter circular, ou seja, não tem início
nem fim, e retorna sempre idêntica.
Vamos refletir: o que teria motivado essa junção entre as
culturas greco-romana e a cristã?

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14 © História da Filosofia Medieval

Talvez o momento mais marcante da transformação cultural


operada pelo cristianismo tenha sido a conversão do imperador
Constantino Magno, que tornou o cristianismo a religião oficial do
Império Romano. Não se conhece a data exata da conversão de
Constantino. Sabe-se apenas que foi em algum momento entre
312 EC (Era Comum, ou seja, depois de Cristo) e 337 EC, data de
sua morte.
É inegável que a conversão do imperador teve como conse-
quência as conversões em massa. Cidadãos romanos adeptos de
outras religiões, ou que não eram religiosos, após a conversão de
Constantino se tornaram cidadãos de um "império cristão".
Um caso interessante de conversão em massa acontecia com
os funcionários do Império Romano. Eles tinham necessariamente
de aderir à religião oficial. Com eles, suas famílias inteiras também
se tornavam cristãs de um momento para o outro, por meio do ba-
tismo. Isto explica a necessidade, porém não explica a urgência.
Entendemos a necessidade da conversão, mas falta enten-
der a razão de sua urgência. A urgência dos funcionários públicos
romanos estava no fato de que sua autoridade dependia de sua
condição de "bons cidadãos". Ou seja, se em algum momento sua
autoridade ou sua adequação ao cargo que ocupavam fosse ques-
tionada, poderiam enfrentar graves dissensões e motins. Isso fazia
com que se adequassem rapidamente às exigências e aos padrões
do império.
E como este fato veio a se tornar um poderoso incentiva-
dor da reflexão filosófica? Surgiam questões ligadas à vida de cris-
tãos oficialmente aceitos e admirados, questões que não foram
enfrentadas pelos cristãos anônimos e clandestinos de outrora.
Algo interessante a ser analisado é a validade dos sacramentos ad-
ministrados por ministros cristãos quando estes renunciavam ou
recusavam a fé cristã.
Suponha que um presbítero cristão tivesse feito dois mil ba-
tizados em algum dos grandes centros urbanos do Império Roma-
© Caderno de Referência de Conteúdo 15

no. Suponha também que, ao fazer uma grande viagem por ter-
ras distantes, o tal presbítero caísse prisioneiro e fosse vendido
como escravo para algum povo fora dos limites do império romano
- lembre-se de que situações como essa não eram nem um pou-
co incomuns naqueles tempos conturbados. Ora, em cativeiro e
privado de meios para subsistir e para se libertar, era possível que
o prisioneiro fosse forçado a renegar seu cristianismo e a assumir
uma religião pagã.
O que aconteceria com os dois mil batizados que se torna-
ram cristãos pelas mãos de um presbítero que renegou o cristianis-
mo - antigamente se utilizava o termo "apóstata" para se referir a
tal pessoa –, continuariam cristãos ou não?
Hoje parece fácil responder a essa questão, pois há a noção
de que ninguém perde sua dignidade por uma limitação ou falha
alheia. Porém, naqueles primeiros séculos do cristianismo, mui-
tos defendiam que a validade de um sacramento – por exemplo,
a do batismo – dependeria da santidade do ministro que o admi-
nistrou.
Levando tal noção até as últimas consequências, conclui-se
que um romano cobrador de impostos, cuja autoridade dependia
diretamente do fato de ser um "bom cidadão romano'' e, portan-
to, de ser cristão, viveria sempre na incerteza quanto ao fato de
quem o batizou ainda ser cristão ou ter se tornado "apóstata".
Essas questões exigiram que os especialistas em religião cris-
tã do período, ou seja, os epíscopos, discutissem sobre a validade
dos sacramentos e sobre a relação dessa validade com a santidade
ou com a eventual apostasia do ministro que os administra. Não
iremos reconstruir todo o debate: observaremos diretamente a
solução para essa questão tão inquietante.
Eles deliberaram que os sacramentos imprimiam "caráter":
eram como as tatuagens que os soldados faziam quando ingressa-
vam no exército romano e que, ao menos naquela altura, uma vez
feitas, não podiam ser apagadas. Ou seja, aqueles que fossem bati-

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16 © História da Filosofia Medieval

zados podiam ficar tranquilos – mesmo que aquele que os batizou


viesse a renegar a fé cristã, eles continuariam cristãos autênticos.
Esse episódio serve para introduzir de maneira clara alguns
dos componentes da Filosofia Medieval que são estranhos às ten-
dências constitutivas da sociedade atual. A Filosofia Medieval vê a
História como um desenvolvimento em direção ao Bem Supremo,
que seria o Deus Cristão. Essa visão se liga intimamente àquela
que considera a Filosofia como um "estilo de vida".
Dessa maneira, a Filosofia cristã possibilitaria que a vida fos-
se o mais plena de sentido possível, pois auxiliaria na descoberta
da melhor coisa a se fazer em cada situação. Segundo essa visão,
mesmo diante de graves perigos, o destino de uma pessoa encon-
tra-se em alguém (Deus) que está para além das limitações da vida
presente.
Nesse contexto, a relação entre fé e razão faz todo o sentido.
A fé alimenta a esperança, enquanto a razão busca identificar nas
dificuldades momentâneas um significado maior, que as supere e
as leve a bom termo.
Lembremo-nos de que o homem medieval tinha noção da
relação entre causa e efeito, mas não desenvolvera nenhum "utili-
tarismo". Para ele, a verdadeira recompensa por escolher a melhor
vida possível nunca poderia ser uma vantagem pecuniária ou de
prestígio social.
A Filosofia Medieval aborda de maneira muito positiva a "au-
toridade". Os medievais recorriam às opiniões dos filósofos anti-
gos e às Sagradas Escrituras para resolver questões difíceis. Volte-
mos à discussão sobre a validade dos sacramentos.
É evidente que nem todas as opiniões tinham o mesmo
peso. As opiniões daqueles que condicionavam a validade dos sa-
cramentos à santidade - a "conduta irrepreensível" - dos ministros
que os administravam criavam dificuldades insuperáveis para as
pessoas e parece que não as ajudavam em nada.
© Caderno de Referência de Conteúdo 17

Sem dúvida, era melhor seguir a opinião daqueles que bus-


caram na cultura romana e nas Escrituras a solução que permitiu
às pessoas entender que os sacramentos têm um aspecto visível e
outro invisível, e que o aspecto invisível - o caráter -, impresso em
quem os recebe, é perene. Estamos nos referindo aos especialistas
em religião – os epíscopos, as autoridades cuja opinião tinha maior
peso. Não eram obedecidos cegamente: o "relativismo", ou seja, a
falácia de que todas as opiniões têm o mesmo valor, era evitado.
A Filosofia Medieval reserva um papel importante para o domínio
do suprassensível. Essa noção equivale ao conceito de elemento
sobrenatural que utilizamos anteriormente, ao explicar a tendên-
cia "naturalista" ora presente em nossa cultura. O aspecto invisível
dos sacramentos, ou seja, a força que eles têm de imprimir caráter
indelével a quem os recebe equivale ao suprassensível.
Você verá que essa noção também tem origem na Filosofia
Antiga e que foi mantida pela Filosofia Cristã por auxiliar na expli-
cação de vários elementos do cristianismo. O suprassensível asso-
cia um critério estável à verdade, e evita os erros de um "natura-
lismo" extremado – na concepção medieval, nenhum aglomerado
de elementos materiais seria suficiente para constituir um corpo
humano vivo.
Para compreender como a Filosofia Medieval articulava fé e
razão, o papel positivo da "autoritates" e a noção de suprassensí-
vel, dentre outras, é necessário voltar ao ambiente cultural e filo-
sófico em que surgiu e se desenvolveu o cristianismo e, posterior-
mente, a Filosofia Cristã.
No mundo mediterrâneo antigo, a Filosofia não consistia na
reflexão abstrata sobre a natureza do que poderia ser conhecido
ou sobre o valor do que precisa ser feito, de modo independente
da vida cotidiana de uma sociedade. Ao contrário, exigia o engaja-
mento total da pessoa no labor necessário para descobrir a verda-
de e para fazer o bem.
Para os filósofos, a Filosofia tratava-se de um estilo de vida
extremamente exigente, que absorvia a totalidade da pessoa. Para

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18 © História da Filosofia Medieval

compreender exatamente em que consistia esta abordagem da


Filosofia como "estilo de vida", é necessário voltar um pouco às
principais escolas filosóficas da Antiguidade.
As principais escolas da Filosofia Grega antiga eram a Acade-
mia, fundada por Platão; os peripatéticos, seguidores de Aristó-
teles; os estoicos, da escola fundada por Zenão; e os epicuristas,
seguidores de Epicuro.
Havia ainda outra escola, se é que o termo pode ser utilizado
neste caso, pois "escola" parece pressupor necessariamente um
corpo doutrinal transmitido por um ou mais "mestres" para um ou
mais "discípulos".
Os adeptos da postura em questão, os chamados céticos,
tentavam sempre levar as pessoas a suspender o juízo e a con-
siderar argumentos pró e contra a resposta dada a cada um dos
problemas filosóficos centrais. Os céticos não se consideravam
"mestres", não professavam um corpo doutrinal específico e nem
procuravam fazer discípulos.
Neoplatonismo e sua influência no pensamento posterior
A interpretação "tradicional" ganhou em seguida nova força
e deu origem ao platonismo médio e ao neoplatonismo. É este
último que interessa estudar aqui com mais detalhes, pois foi a
interpretação do platonismo que prevaleceu desde o século 3º EC
até os séculos 16 ou 17 EC.
O neoplatonismo reforçou o aspecto esotérico - não confun-
dir com 'exotérico', cujo significado de 'transmitido ao público sem
restrição' é exatamente o oposto - dos ensinamentos de Platão.
Nessa interpretação, Platão teria optado por "encobrir" o
verdadeiro conteúdo de suas doutrinas sob a superfície turva de
seus diálogos. Teria revelado plenamente o caráter politicamen-
te "subversivo" de sua filosofia apenas em seus "ensinamentos
orais", também conhecidos como "doutrinas não escritas".
O neoplatonismo postulava uma interpretação unitária dos
textos de Platão. Durante a História da Filosofia, possibilitou aos
© Caderno de Referência de Conteúdo 19

estudiosos de Aristóteles uma ferramenta adicional muito útil para


vencer as aparentes discrepâncias entre os textos aristotélicos: a
utilização de elementos das doutrinas esotéricas de Platão como
chaves de leitura. O recurso de admitir a compatibilidade entre
Platão e Aristóteles foi muito utilizado na Antiguidade e na Idade
Média.
Um grande representante do neoplatonismo na Antiguidade
foi Plotino (205-270 EC). Seu discípulo Porfírio assumiu explicita-
mente a tentativa de demonstrar a compatibilidade entre Platão
e Aristóteles. Como se verá posteriormente, isso foi muito impor-
tante para o surgimento das discussões medievais em torno do
Problema dos Universais.
Plotino foi um filósofo ainda claramente contextualizado na
Filosofia Antiga. No entanto, propunha uma brilhante síntese do
desenvolvimento da Filosofia, superando as escolas anteriores, ao
postular o conceito de verdade universal.
Em sua síntese, Plotino incorporou muitos dos pontos cen-
trais da metafísica de Aristóteles. Criou uma escola em Roma e foi
muito bem relacionado com a elite política da capital do Império
Romano. Aos cinquenta anos, iniciou a composição de sua obra
Tratado das Enéadas, mais tarde editada por seu discípulo Por-
fírio. Ainda que os neoplatônicos posteriores tenham discordado
em pontos relevantes de Plotino, pode-se dizer que eles aprofun-
daram, corrigiram e estenderam a visão plotiniana de verdade uni-
versal.
Nesse ponto, devemos lembrar a figura de Porfírio. Este filó-
sofo fenício desenvolveu a filosofia de Plotino, de quem foi discí-
pulo, acrescentando a ela um forte interesse pela prática religiosa
e pela interpretação alegórica como fontes de aquisição de sabe-
doria.
Porfírio também passou à História como um forte opositor
do cristianismo. Notabilizou-se pelas tentativas de demonstrar a

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20 © História da Filosofia Medieval

harmonia entre Platão e Aristóteles: produziu uma interessante


obra (embora pequena) sobre lógica conhecida como Isagoge,
onde explicou que nas Categorias, que tem passagens aparente-
mente antiplatônicas, Aristóteles não fala de metafísica.
Segundo Porfírio, Aristóteles refere-se ali a "coisas que po-
dem ser ditas sobre outras coisas", ou seja, não se refere a entes,
mas a termos. Foi a partir dos comentários à sua Isagoge – literal-
mente "introdução" – que se iniciou o célebre debate medieval
sobre o Problema dos Universais.
Agora, já podemos conhecer um pouco sobre o grande mes-
tre do Ocidente, ou seja, Santo Agostinho.
A Filosofia Patrística latina e Santo Agostinho
Ainda antes de sua conversão, Agostinho teve contato com
o ceticismo e com o neoplatonismo. Por meio da leitura da exor-
tação à Filosofia no Hortênsio, do romano Cícero, Agostinho des-
cobriu que a vida mais digna é aquela que busca constantemente
a sabedoria, cuja luz resplandecente transmite sentido a todo o
resto.
Depois de sua conversão definitiva ao cristianismo, Agos-
tinho integrou elementos de sua formação anterior e produziu
ideias poderosas. Uma delas foi a noção de verdade aprendida
da "Verdade Eterna", que permite compreender as coisas verda-
deiras que se experimentam no cotidiano. Há claros pontos de in-
terseção entre esta abordagem e o neoplatonismo de Plotino, que
postula a noção de verdade universal.
Outro ponto relevante do pensamento de Agostinho é sua
abordagem do problema do Mal. Devido às bases de seu pensa-
mento, Agostinho pôde desenvolver uma noção de mal como so-
breposição de um bem menor a um bem maior. Assim, o mal mo-
ral aparece como a escolha, feita pela pessoa, de um bem menor
em detrimento de um bem maior.
Assim, ao preferir as riquezas materiais aos bens espirituais,
a pessoa abre-se ao mal, pois escolheu um bem menor e descui-
© Caderno de Referência de Conteúdo 21

dou de bens maiores. O que está mais próximo do "Supremo Bem"


(Deus) é sempre melhor do que o que se encontra mais distante
d'Ele.
Esta abordagem refutou de maneira poderosa o maniqueís-
mo, que postulava que havia dois princípios igualmente podero-
sos, um princípio bom e um mau. Agostinho negou a existência do
mal metafísico e do mal.
Vejamos outro fundamento da Filosofia Medieval, que teve
sua origem em Agostinho: o interesse pela cognição humana,
encarada tanto como um meio para estabelecer a possibilidade
epistemológica da teologia, quanto como meio para conhecer e
compreender algo a respeito de Deus. Em Contra acadêmicos,
Agostinho propõe uma resposta muito bem elaborada e consisten-
te aos argumentos céticos dos filósofos da Academia de Platão.
Dessa maneira, propicia a base para a factibilidade de toda
investigação racional acerca da verdade. Posteriormente, no De
trinitate, procura entender a mente humana – não apenas em si
mesma, mas também na condição de modelo a partir do qual se
pode chegar à verdade e a Deus.
O problema do mal em Agostinho
A noção de que Deus é "uno" e, portanto, "bom", deve servir
como parâmetro para outras noções filosóficas. Sendo bom, Deus
não pode ser a origem do Mal, pois, em sua condição de divinda-
de, não é suscetível de ações acidentais, descuidos ou ignorância.
Considerando que o Mal não foi criado por Deus, deve haver
uma maneira de abordá-lo filosoficamente sem atribuir-lhe status
de criatura. Agostinho distinguiu o mal em três tipos: o Mal meta-
físico (que aqui chamamos de Mal), o mal físico (deformidades e
deformações) e o mal moral (más ações). Tanto o mal metafísico
quanto o físico, se existirem, foram criados em algum momento.
No entanto, Deus é "uno" e "bom". Isso significa que nem o
Mal, nem as deformidades ou deformações, podem ser eternos ou

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22 © História da Filosofia Medieval

ter sua origem em Deus. A conclusão de Agostinho é que somente


o mal moral pode existir no mundo, os outros dois tipos não exis-
tem. Aqui a preocupação genuinamente filosófica de Agostinho
fica evidente, pois ele segue uma lógica irrepreensível e se man-
tém em sintonia com as tradições filosóficas mais consistentes.
Ao mesmo tempo que recusa a existência do mal metafísico
e do mal físico, Agostinho postula que a origem do mal moral não
está em Deus, uma vez que Ele não pode originar qualquer tipo de
mal. Agostinho atribui o mal moral à livre escolha da pessoa que
pratica ações más.
Para ser consistente e não incorrer no erro de dizer que as
más ações causam, originam, são causadas ou decorrem de coisas
más, ele diz que as más ações são aquelas que erram o alvo, ou
seja, que não "buscam o maior bem possível".
Assim, para entender o mal moral, o filósofo não faz distin-
ção entre bem (Bem) e mal (Mal), mas entre escolher o bem maior
e escolher algum dos bens menores. A boa ação é aquela que visa
o maior bem possível e as más ações são todas aquelas que visam
a bens menores quando há um bem maior que poderia ser alme-
jado.
Novamente fica evidente que, ao mesmo tempo que comun-
ga com as doutrinas centrais do cristianismo, Agostinho está em
sintonia com as principais doutrinas filosóficas da Antiguidade,
pois preserva a liberdade de escolha do ser humano e garante a
possibilidade de que as más ações sejam imputadas àqueles que
as praticam.
Após essa breve abordagem sobre alguns dos pontos princi-
pais da filosofia agostiniana, podemos conhecer um pouco sobre o
famoso período denominado "Escolástica".
A Escolástica: Boécio, os falasifa e Tomás de Aquino
Com relação à Filosofia no ambiente cultural romano, é clara
a importância do trabalho de Anício Manlio Severino Boécio, filó-
© Caderno de Referência de Conteúdo 23

sofo cristão de inspiração neoplatônica. Sua vida foi trágica, e ter-


minou com sua condenação à morte. Contudo, Boécio nos legou a
obra Consolação da Filosofia, fruto de sua decisão de aproveitar os
últimos dias no cárcere para escrever uma obra filosófica falando
de temas como a liberdade e o sentido da vida humana diante das
forças hostis deste mundo.
Boécio nasceu em uma família romana e teve formação es-
merada, inclusive com profundo conhecimento da língua grega
e da Filosofia Antiga. Envolveu-se cedo com a política, durante o
tempo em que Roma era governada pelos ostrogodos, a partir da
cidade de Ravena.
Estudou Filosofia em Atenas e possivelmente em Alexandria.
Percebeu que em sua época o conhecimento da Filosofia em grego
no Ocidente era muito limitado e manifestou forte consciência da
missão de manter o contato do mundo ocidental com as obras dos
principais filósofos gregos.
O mundo latino ainda não tinha acesso aos textos e ao vo-
cabulário técnico tão necessários ao estudo da Filosofia. Boécio,
apesar da curta duração de sua vida, ajudou muito na resolução
destas dificuldades, pois traduziu e comentou a obra lógica de
Aristóteles e forneceu um vocabulário técnico em latim que se tor-
nou instrumento básico para os filósofos medievais.
Outra grande contribuição para o conhecimento das obras
dos filósofos gregos foi dada pelos filósofos árabes. A Filosofia em
árabe é também conhecida pelo termo falsafa. Os pensadores que
filosofaram em árabe são os falasifa. A História da Filosofia em
árabe remonta quase às origens do próprio Islã, cujo calendário se
inicia em 622 EC.
Nos primeiros séculos após sua fundação, já havia no am-
biente cultural islâmico o costume de discutir questões teológicas,
abordadas de modo filosoficamente muito interessante: impor-
tantes textos científicos e filosóficos da tradição siríaca estavam
disponíveis e eram estudados; a lógica aristotélica era usada nos
debates teológicos.

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24 © História da Filosofia Medieval

A partir do século 9 EC, assistiu-se a um intenso movimento


de traduções em Bagdá. Em consequência disso, iniciaram-se pro-
fundos debates sobre Lógica, Gramática, Teologia e Filosofia por
parte de muçulmanos, judeus e cristãos.
Tais debates versaram sobre a estrutura e a fundação do cos-
mos, sobre a natureza das entidades no mundo físico, a relação
do ser humano com o divino transcendente, os princípios da me-
tafísica, a natureza da Lógica, os fundamentos do conhecimento
humano e a busca pela vida feliz.
O período que vai do século 9º EC ao século 13 EC é o pe-
ríodo clássico da formação da Filosofia em língua árabe. Notamos
que neste período encontram-se, entre outros, os filósofos Al Kindi,
Al Farabi, Avicena, Avicebrom, Averróis e Maimônides. Há que se
observar que a Filosofia em árabe não se reduziu aos pensadores
etnicamente árabes: incluiu também pensadores persas e judeus.
A falsafa não esteve preocupada apenas com o pensamento
de Aristóteles. Foi também fortemente influenciada pelo pensa-
mento neoplatônico. Isto não causa surpresa quando se considera
que os principais comentadores gregos, com exceção de Alexandre
de Afrodísias, eram neoplatônicos.
Não é este o momento de se estabelecer um contraste entre
Filosofia Árabe e Filosofia Judaica. Embora se saiba que as histórias
destas duas correntes se distinguem em alguns pontos, sabe-se
também que no período clássico da falsafa ambas caminharam
paralelamente. A denominação que escolhemos, "Filosofia em
árabe", permite falar dos traços comuns a ambas sem a necessi-
dade de tal contraste.
A recepção da Filosofia em árabe na Europa Ocidental evi-
dencia o fato de que textos escritos em árabe tiveram papel im-
portantíssimo para a História da Filosofia Ocidental. Há testemu-
nhos de estudos árabes no sul da Itália e na Sicília que datam do
século 12 EC.
© Caderno de Referência de Conteúdo 25

Ao nos debruçarmos sobre os textos filosóficos em árabe ou


sobre suas traduções que chegaram até nós, notamos uma grande
riqueza. Destaquemos alguns pontos:
• As traduções árabes de textos filosóficos gregos.
• Os tratados sistemáticos sobre a falsafa.
• Os comentários a Aristóteles, de Al Farabi a Averróis.
Portanto, a falsafa é uma importante via para o estudo da
tradição filosófica, pois estabelece uma ligação entre a Filosofia
Clássica Antiga e a Filosofia Medieval. Os textos foram traduzidos
para o latim ao longo dos séculos, principalmente por meio dos
esforços dos tradutores de Toledo, a partir da metade do século
12 EC. Entre esses tradutores, destacam-se Gerardo de Cremona e
Domingos Gundissalvo.
Os insights de Averróis e seus comentários exaustivos aos
textos aristotélicos inicialmente foram recebidos com muita sim-
patia. Porém, logo alguns argumentos e doutrinas presentes no
pensamento de Averróis causaram perplexidade entre os estudio-
sos do Ocidente cristão. Sobretudo com relação à eternidade do
mundo e à natureza da alma: havia uma clara discordância com a
crença cristã na criação ex nihilo e na imortalidade da alma huma-
na individual.
A figura de Tomás de Aquino é emblemática no contexto do
pensamento da Idade Média. Do ponto de vista da teologia cristã,
não há qualquer dúvida de que Tomás foi o grande nome do perí-
odo. Ele não recebeu apenas um título, mas vários: Doutor Angéli-
co, Doutor Comum, Doutor Universal, Divino Tomás, dentre outros
títulos apreciativos.
Tanta proeminência de sua obra teológica poderia dar a im-
pressão de que este foi o único campo do saber no qual ele foi
excelente, ou que foi o principal. Todavia, suas contribuições filo-
sóficas foram importantíssimas e duradouras.

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26 © História da Filosofia Medieval

Dentre as razões pelas quais a excelência filosófica de Tomás


é hoje pouco conhecida, destacamos a impopularidade da Filoso-
fia Medieval como um todo. Porém, atualmente estamos teste-
munhando um crescente interesse e um número considerável de
publicações dedicadas justamente aos pontos centrais da filosofia
de Tomás.
As generalizações apressadas encontradas em obras que tra-
zem biografias resumidas de filósofos ou apresentações "sintéti-
cas" de correntes filosóficas muitas vezes divulgam a existência de
uma "filosofia aristotélico-tomista". Esta abordagem sugere que
Tomás apenas continuou ou explicou o pensamento de Aristóteles.
A rigor, tal ponto de vista é inadequado. A razão para recusá-
-lo é justamente o fato de que, em mais de quinze séculos que
separam Aristóteles e Tomás, a Filosofia desenvolveu-se em aspec-
tos que Aristóteles não contemplou (e nem poderia tê-lo feito),
pois o estoicismo, o ceticismo, o neoplatonismo e o cristianismo
são temporalmente posteriores a ele.
Obviamente, há uma proximidade muito grande entre a filo-
sofia do Estagirita e elementos importantes da filosofia de Tomás,
pois este dedicou muito de sua extensa obra aos comentários e
explicações sobre a obra de Aristóteles. Entretanto, há sinais claros
de que Tomás tratou de temas e questões não contempladas por
Aristóteles, pelo menos não de maneira explícita.
Exemplos de inovação não faltam quando comparamos a
obra de Tomás com a obra de Aristóteles. A noção de criação ex
nihilo, a inserção da matéria primeira no contexto temporal, a pos-
tulação de que o objeto da metafísica é o ens commune, são con-
ceitos que consideram a filosofia aristotélica, mas que não foram
tratadas por Aristóteles em qualquer parte de sua obra.
Este foi nosso primeiro contado com o tema deste CRC. Es-
peramos que tenha sido sugestivo e importante para introduzi-lo
na Filosofia Medieval. Temos agora um longo percurso pela frente,
que, esperamos, seja enriquecedor e estimulante para todos os
envolvidos.
Bons estudos!
© Caderno de Referência de Conteúdo 27

Glossário de Conceitos
O Glossário de Conceitos permite a você uma consulta rá-
pida e precisa das definições conceituais, possibilitando-lhe um
bom domínio dos termos técnico-científicos utilizados na área de
conhecimento dos temas tratados no CRC História da Filosofia Me-
dieval. Veja, a seguir, a definição dos principais conceitos:
1) Ágape: noção cristã que corresponde ao amor donativo
de Deus. Difere do amor Eros, que tinha um caráter aqui-
sitivo. Ou seja, Eros busca possuir, ao passo que o amor
ágape se doa.
2) Analogia: de modo geral, o termo é utilizado para desig-
nar uma comparação entre coisas parcialmente seme-
lhantes e parcialmente distintas. No período medieval, a
analogia foi utilizada para se analisar a comparação en-
tre Deus e as coisas criadas por Ele. Assim, com base nas
características que se vê nas coisas, pode-se dizer algo
sobre Deus, mas nunca de maneira precisa, pois Deus é
totalmente distinto de todas as coisas.
3) Argumento ontológico: é o método para se provar a
existência de Deus a partir da própria ideia de um ser
divino e de quais características um ser divino tem ne-
cessariamente de possuir. O mais famoso propositor de
tal argumento foi Anselmo de Cantuária.
4) Auctoritas/auctoritates: no período medieval, era re-
servado um papel central para as opiniões autoritativas,
ou seja, as opiniões que as gerações passadas consagra-
ram como corretas. Casos em que aparentemente ha-
veria bons motivos para se defender qualquer uma de
duas opiniões contrárias, recorria-se à opinião de algu-
ma autoridade passada para resolver a questão. De ma-
neira mais geral, o método escolástico das disputationes
sempre tinha uma parte dedicada à análise e à tentativa
de conciliação entre o tema apresentado e as posições
de alguma auctoritas.
5) Compatibilista/incompatibilista: as posturas medievais
diante da relação entre fé e razão podem ser classifica-
das em dois tipos. De um lado, havia aqueles que consi-

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28 © História da Filosofia Medieval

deravam que todas as verdades alcançadas pela fé eram


compatíveis com as verdades alcançadas pela razão.
Eram os compatibilistas. De outro lado, havia aqueles
que pensavam que fé e razão eram âmbitos totalmente
distintos e que as verdades de uma não eram acessíveis
à outra. Eram os incompatibilistas.
6) Conceitualismo: era a postura com relação aos univer-
sais que afirmava que estes correspondiam aos concei-
tos existentes na mente.
7) Criação ex nihilo: abordagem cristã da criação, segundo
a qual Deus criou todas as coisas a partir de coisa alguma
(literalmente "a partir do nada").
8) Emanação ou processão: doutrina neoplatônica que
descreve como os níveis ou planos inferiores têm sua
origem nos níveis ou planos superiores. Por exemplo,
o Intelecto emana ou procede do Uno. Trata-se de uma
maneira de associar a existência dos níveis inferiores à
realidade dos níveis superiores, sem, contudo, postular
qualquer diminuição ou perda por parte dos níveis su-
periores. Outros termos como "geração" e "produção"
pressupõem ao menos um esforço, quando não um des-
gaste, com o que os neoplatônicos não concordavam.
9) Ente e essência: maneira como os medievais denomina-
vam a distinção entre existência e ser. Ambos os termos
derivam do mesmo verbo, "ser", mas cada um com foco
em um aspecto distinto. Uma coisa é focar o que algo é e
outra é pensá-lo como existindo na realidade. A essência
é assimilada pelo pensamento e separada da realidade
concreta. O ente é o "ser", aquele que existe, indivíduo,
"coisa".
10) Epistrophé ou reversão: é o processo inverso ao da ema-
nação ou processão neoplatônica. É como os neoplatô-
nicos relacionavam os níveis ou planos mais baixos com
os níveis ou planos mais elevados. Julgavam que havia
algum tipo de relação, mas que não era de filiação ou
derivação.
11) Escolástica: doutrina filosófica da Idade Média que asso-
ciava a racionalidade platônica e aristotélica e a doutrina
© Caderno de Referência de Conteúdo 29

cristã. O termo deriva das scholae, modo como os me-


dievais descreviam os que partilhavam uma mesma ten-
dência ou corrente de pensamento filosófico. As mais fa-
mosas eram o tomismo, o escotismo e o nominalismo.
12) Esotérico: aquilo que é conhecido e transmitido a pou-
cos, aos escolhidos.
13) Exotérico: aquilo que é conhecido e transmitido a todos,
ao público em geral.
14) Falsafa/falasifa: falsafa é a maneira como os árabes
medievais se referiam à Filosofia. Os filósofos que pensa-
vam e escreviam em árabe eram, portanto, os falasifa.
15) Haecceitas: era o termo que João Duns Escoto utilizava
para descrever o caráter individual de algo: aquilo que,
quando é apontado pelo dedo indicador, pode ser cha-
mado de "isto" (em Latim, haec).
16) Hipóstase: termo neoplatônico para designar o que se
encontra em cada um dos níveis ou planos da realidade.
17) Iluminação: doutrina agostiniana que descreve como
as pessoas podem ter acesso à verdade a partir da ação
de Deus. Para Agostinho, não é com base na experiên-
cia mundana que se pode conhecer a verdade. A esta,
chega-se apenas por intermédio da luz que Deus irradia
sobre o entendimento humano.
18) Imputabilidade: possibilidade de se atribuir a culpa de
algo a alguém. Uma pessoa é imputável quando se pode
atribuir a ela a culpa por algo que ela fez ou deixou de
fazer.
19) Intelecto agente/intelecto possível ou passivo: concei-
to medieval baseado na maneira como Aristóteles se re-
feriu ao entendimento humano. O intelecto agente é a
parte da alma humana que ativamente torna "conhecí-
veis" os conteúdos da experiência sensorial. O intelecto
possível ou passivo é a parte do entendimento humano
em que os conceitos são impressos.
20) Logos ou ratio: termo muito amplo e com muitos sig-
nificados. No contexto do Problema dos Universais, era
a "raiz" de cada coisa na mente de Deus. Assim tudo o

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30 © História da Filosofia Medieval

que existe ou que pode existir tem sua origem ou raiz na


mente de Deus.
21) Maniqueísmo: doutrina inicialmente aceita, mas depois
combatida por Agostinho de Hipona. O maniqueísmo
postulava que todas as coisas derivavam de dois deuses
ou princípios eternos: um bom e outro mau.
22) Monoteísmo: crença judaico-cristão-islâmica de que há
um só Deus.
23) Navalha de Ockham: método associado ao filósofo me-
dieval Guilherme de Ockham, que dizia que não deve-
mos multiplicar os seres sem necessidade. Postular que
os universais têm existência real e autônoma é dizer
que eles são "seres". Portanto, utilizando-se tal método,
deve ser atribuída existência real e autônoma apenas
aos particulares.
24) Nominalismo: postura com relação aos universais que
os considera apenas como nomes. Quando se diz que
Sócrates, por exemplo, "é um homem", a palavra "ho-
mem" não se refere a algo realmente existente além
de "Sócrates". Ou seja, "homem" é apenas outro nome
para se referir a Sócrates e não tem outro referente.
25) Particular: Aristóteles denomina "Particular a propo-
sição que expressa inerência a alguma coisa ou a não
inerência a cada coisa" (An. pr., I, 1, 24 a 23). Segundo
Abbagnano (1998, p. 745), "O contrário da proposição P.
é a universal (v.). A lógica medieval indicou com a letra I
a proposição P. afirmativa e com a letra O a proposição
P. negativa. Uma proposição P. da forma "alguns F são
G" pode ser lida de várias as maneiras: "algum F é G",
"alguma coisa é ao mesmo tempo F e G", "alguma coisa
que é F é G", "Há um FG", "Existem FG", "FG existe" etc.
(cf. W. v. O. Quine, Methods of Logic, § 12)".
26) Patrística: termo utilizado para se referir aos patres (ou
padres) gregos e aos patres latinos. Trata-se de uma
maneira de dizer que os filósofos gregos e latinos dos
primeiros séculos do cristianismo prestaram um grande
serviço enfrentando e resolvendo inúmeras questões
difíceis no contexto da relação entre o cristianismo e a
© Caderno de Referência de Conteúdo 31

cultura clássica grega e latina. Foram verdadeiros "pais


da fé".
27) Predicáveis: coisas que podem ser ditas de outras coi-
sas. Termo técnico utilizado para se referir ao gênero,
à espécie, à diferentia (diferença), à propriedade e ao
acidente. Estes eram os "cinco termos" sobre os quais
escreveu o fenício Porfírio em sua obra Isagoge.
28) Quididade: termo medieval utilizado para falar do que a
coisa é em sua essência (em Latim se diz quid).
29) Realismo exagerado/realismo moderado: a postura
com relação aos universais que afirma serem eles enti-
dades realmente existentes é conhecida como "realis-
mo". Há algumas versões possíveis para esta postura: a
mais radical (realismo exagerado) diz que os universais
têm existência real separada, ou seja, que existem como
entidades fora dos particulares. A mais moderada (rea-
lismo moderado) afirma que os universais têm existên-
cia real, mas que existem apenas nos particulares e na
mente.
30) Scientia: os medievais consideravam o conhecimento
radical e rigoroso como scientia. Esse conceito não cor-
responde exatamente ao que hoje chamamos "ciência".
Para os medievais, a scientia correspondia ao conheci-
mento adquirido por meio do método demonstrativo,
ou seja, a partir de verdades universalmente válidas. O
método experimental utilizado nas ciências de hoje não
seria suficiente para a scientia.
31) Suprassensível: noção utilizada pelos platônicos para se
referir ao que não é percebido pelos sentidos, mas que
se sabe que é real por meio do entendimento.
32) Teologia negativa/teologia apofática: é a maneira de se
chegar a Deus pelo que ele não é, ou seja, a bondade
de Deus não é a bondade humana, a grandeza de Deus
não é a grandeza da mais alta montanha que existe, e as-
sim por diante. Para a teologia apofática ou negativa, de
Deus somente se pode saber e dizer com certeza o que
Ele não é. Para poder aplicar qualquer atributo a Deus,
é necessário acrescentar que Ele é hiper – ou super. A

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32 © História da Filosofia Medieval

bondade de Deus é hiperbondade. A generosidade de


Deus é superabundante. Os atributos que se quer dirigir
a Deus somente dizem o quanto Ele está além do que
pode ser pensado ou dito.
33) Universais: para a Escolástica, eram os termos e conceitos
gerais. Segundo Abbagnano (1998, p. 982), "Esse termo
teve dois significados principais: 1º significado objetivo,
em virtude do qual indica uma determinação qualquer,
que pode pertencer ou ser atribuída a várias coisas; 2º
significado subjetivo, em virtude do qual indica a possi-
bilidade de um juízo (que diga respeito ao verdadeiro
e ao falso, ao belo e ao feio, ao bem e ao mal etc.) ser
válido para todos os seres racionais". No Problema dos
Universais, vale o significado clássico ou objetivo. "Nesse
sentido, o U. pode ser considerado no duplo aspecto on-
tológico e lógico. Ontologicamente, o U. é a forma, a idéia
ou a essência que pode ser partilhada por várias coisas e
que confere às coisas a natureza ou o caráter que tem em
comum" (ABBAGNANO, 1998, p. 982).

Esquema dos Conceitos-chave


Para que você tenha uma visão geral dos conceitos mais
importantes deste estudo, apresentamos, a seguir (Figura 1), um
Esquema dos Conceitos-chave. O mais aconselhável é que você
mesmo faça o seu esquema de conceitos-chave ou até mesmo o
seu mapa mental. Esse exercício é uma forma de você construir o
seu conhecimento, ressignificando as informações a partir de suas
próprias percepções.
É importante ressaltar que o propósito desse Esquema dos
Conceitos-chave é representar, de maneira gráfica, as relações en-
tre os conceitos por meio de palavras-chave, partindo dos mais
complexos para os mais simples. Esse recurso pode auxiliar você
na ordenação e na sequenciação hierarquizada dos conteúdos de
ensino.
© Caderno de Referência de Conteúdo 33

Com base na teoria de aprendizagem significativa, entende-se


que, por meio da organização das ideias e dos princípios em esque-
mas e mapas mentais, o indivíduo pode construir o seu conhecimen-
to de maneira mais produtiva e obter, assim, ganhos pedagógicos
significativos no seu processo de ensino e aprendizagem.
Aplicado a diversas áreas do ensino e da aprendizagem es-
colar (tais como planejamentos de currículo, sistemas e pesquisas
em Educação), o Esquema dos Conceitos-chave baseia-se, ainda,
na ideia fundamental da Psicologia Cognitiva de Ausubel, que es-
tabelece que a aprendizagem ocorre pela assimilação de novos
conceitos e de proposições na estrutura cognitiva do aluno. Assim,
novas ideias e informações são aprendidas, uma vez que existem
pontos de ancoragem.
Tem-se de destacar que "aprendizagem" não significa, ape-
nas, realizar acréscimos na estrutura cognitiva do aluno; é preci-
so, sobretudo, estabelecer modificações para que ela se configure
como uma aprendizagem significativa. Para isso, é importante con-
siderar as entradas de conhecimento e organizar bem os materiais
de aprendizagem. Além disso, as novas ideias e os novos concei-
tos devem ser potencialmente significativos para o aluno, uma vez
que, ao fixar esses conceitos nas suas já existentes estruturas cog-
nitivas, outros serão também relembrados.
Nessa perspectiva, partindo-se do pressuposto de que é
você o principal agente da construção do próprio conhecimento,
por meio de sua predisposição afetiva e de suas motivações in-
ternas e externas, o Esquema dos Conceitos-chave tem por ob-
jetivo tornar significativa a sua aprendizagem, transformando o
seu conhecimento sistematizado em conteúdo curricular, ou seja,
estabelecendo uma relação entre aquilo que você acabou de co-
nhecer com o que já fazia parte do seu conhecimento de mundo
(adaptado do site disponível em: <http://penta2.ufrgs.br/eduto-
ols/mapasconceituais/utilizamapasconceituais.html>. Acesso em:
11 mar. 2010).

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34 © História da Filosofia Medieval

Figura 1 Esquema dos Conceitos-chave do Caderno de Referência de Conteúdo História da


Filosofia Medieval.

Como você pode observar, esse Esquema dá a você, como


dissemos anteriormente, uma visão geral dos conceitos mais im-
portantes deste estudo. Ao segui-lo, você poderá transitar entre
um e outro conceito deste CRC e descobrir o caminho para cons-
truir o seu processo de ensino-aprendizagem. Por exemplo, os
© Caderno de Referência de Conteúdo 35

conceitos que representam os dogmas cristãos (Criação do mundo


ex nihilo, Deus ex maquina, Pecado Original, Salvação e Ressur-
reição) engendram as principais discussões do período medieval,
como, por exemplo, a Questão dos Universais.
O Esquema dos Conceitos-chave é mais um dos recursos de
aprendizagem que vem se somar àqueles disponíveis no ambien-
te virtual, por meio de suas ferramentas interativas, bem como
àqueles relacionados às atividades didático-pedagógicas realiza-
das presencialmente no polo. Lembre-se de que você, aluno EaD,
deve valer-se da sua autonomia na construção de seu próprio co-
nhecimento.

Questões Autoavaliativas
No final de cada unidade, você encontrará algumas questões
autoavaliativas sobre os conteúdos ali tratados, as quais podem
ser de múltipla escolha, abertas objetivas ou abertas dissertati-
vas.
Responder, discutir e comentar essas questões, bem como
relacioná-las com a prática do ensino de Filosofia, pode ser uma
forma de você avaliar o seu conhecimento. Assim, mediante a re-
solução de questões pertinentes ao assunto tratado, você estará
se preparando para a avaliação final, que será dissertativa. Além
disso, essa é uma maneira privilegiada de você testar seus conhe-
cimentos e adquirir uma formação sólida para a sua prática profis-
sional.
Você ainda encontrará, no final de cada unidade, um gabari-
to que lhe permitirá conferir as suas respostas sobre as questões
autoavaliativas de múltipla escolha ou abertas objetivas.

As questões de múltipla escolha são as que têm como respos-


ta apenas uma alternativa correta. Por sua vez, entendem-se por
questões abertas objetivas as que se referem aos conteúdos
matemáticos ou àqueles que exigem uma resposta determinada,
inalterada. Já as questões abertas dissertativas obtêm por res-

Claretiano - Centro Universitário


36 © História da Filosofia Medieval

posta uma interpretação pessoal sobre o tema tratado; por isso,


normalmente, não há nada relacionado a elas no item Gabarito.
Você pode comentar suas respostas com o seu tutor ou com seus
colegas de turma.

Bibliografia Básica
É fundamental que você use a Bibliografia Básica em seus
estudos, mas não se prenda só a ela. Consulte, também, as biblio-
grafias complementares.

Figuras (ilustrações, quadros...)


Neste material instrucional, as ilustrações fazem parte inte-
grante dos conteúdos, ou seja, elas não são meramente ilustra-
tivas, pois esquematizam e resumem conteúdos explicitados no
texto. Não deixe de observar a relação dessas figuras com os con-
teúdos do CRC, pois relacionar aquilo que está no campo visual
com o conceitual faz parte de uma boa formação intelectual.

Dicas (motivacionais)
O estudo deste CRC convida você a olhar, de forma mais apu-
rada, a Educação como processo de emancipação do ser humano.
É importante que você se atente às explicações teóricas, práticas
e científicas que estão presentes nos meios de comunicação, bem
como partilhe suas descobertas com seus colegas, pois, ao com-
partilhar com outras pessoas aquilo que você observa, permite-se
descobrir algo que ainda não se conhece, aprendendo a ver e a
notar o que não havia sido percebido antes. Observar é, portanto,
uma capacidade que nos impele à maturidade.
Você, como aluno do curso de Graduação na modalidade
EaD, necessita de uma formação conceitual sólida e consistente.
Para isso, você contará com a ajuda do tutor a distância, do tutor
presencial e, sobretudo, da interação com seus colegas. Sugeri-
mos, pois, que organize bem o seu tempo e realize as atividades
nas datas estipuladas.
© Caderno de Referência de Conteúdo 37

É importante, ainda, que você anote as suas reflexões em


seu caderno ou no Bloco de Anotações, pois, no futuro, elas pode-
rão ser utilizadas na elaboração de sua monografia ou de produ-
ções científicas.
Leia os livros da bibliografia indicada, para que você amplie
seus horizontes teóricos. Coteje-os com o material didático, discu-
ta a unidade com seus colegas e com o tutor e assista às videoau-
las.
No final de cada unidade, você encontrará algumas questões
autoavaliativas, que são importantes para a sua análise sobre os
conteúdos desenvolvidos e para saber se estes foram significativos
para sua formação. Indague, reflita, conteste e construa resenhas,
pois esses procedimentos serão importantes para o seu amadure-
cimento intelectual.
Lembre-se de que o segredo do sucesso em um curso na
modalidade a distância é participar, ou seja, interagir, procurando
sempre cooperar e colaborar com seus colegas e tutores.
Caso precise de auxílio sobre algum assunto relacionado a
este CRC, entre em contato com seu tutor. Ele estará pronto para
ajudar você.

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EAD
Da Filosofia Antiga
à Filosofia Medieval

1
1. OBJETIVOS
• Entender a transição da Filosofia Antiga greco-romana
para a Filosofia Medieval.
• Compreender os principais elementos que caracterizaram
a novidade filosófica do cristianismo.

2. CONTEÚDOS
• A passagem da Filosofia Antiga para a Filosofia Medieval.
• O cristianismo e o mundo grego.
• O Neoplatonismo e sua influência no pensamento poste-
rior.
• A Filosofia Patrística latina e Santo Agostinho.
• O problema do Mal e a questão do Tempo em Agostinho.
40 © História da Filosofia Medieval

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que
você leia as orientações a seguir:
1) Compartilhar ideias e opiniões com seus colegas faz
parte da construção de sua aprendizagem. Na Sala de
Aula Virtual, você encontrará o apoio necessário para a
comunicação com seus colegas de curso. Com a pesqui-
sa, essa relação ficará ainda mais envolvente, pois vocês
poderão criar uma relação de troca de experiências que
contribuirá para sua formação e para o enriquecimento
de seus conhecimentos.
2) Lembre-se de que, apesar de utilizarmos aqui o termo
"epistemologia", ele não era utilizado no período medie-
val.
3) É importante lembrarmo-nos de que Platão, quando se
referia à busca de uma vida melhor, pensava na coletivi-
dade, ou seja, na Pólis. A busca de uma "salvação indivi-
dual" só viria com o helenismo.
4) A pesquisa faz com que você elimine as fronteiras de sua
aprendizagem, e possa construir um conhecimento am-
plo e profundo sobre o assunto consultado. Sugerimos,
portanto, que você leia as obras citadas nas referências
bibliográficas.
5) Além de consultar as obras citadas nas Referências Bi-
bliográficas, você pode buscar informações na lista de
sites indicados em E-Referências para enriquecer seus
estudos.
6) Não deixe de testar seu aprendizado, respondendo com
muita atenção as questões autoavaliativas. Perceba suas
dificuldades e procure supri-las, retornando o estudo ou
tirando suas dúvidas com seu tutor.
7) Procure assistir ao filme Santo Agostinho. Com ele você
poderá enriquecer suas fontes de pesquisa. Assista,
também, aos vídeos do Prof. Carlos Nougué sobre Santo
Agostinho, disponíveis em: <http://www.youtube.com/
watch?v=0wwsYBOrnLo&NR=1>; <http://www.youtube.
com/watch?v=99ijVdrHJdg>. Acesso em: 09 maio 2011.
© U1 - Da Filosofia Antiga à Filosofia Medieval 41

8) Você pode encontrar mais informações sobre Plotino no


conteúdo do CRC História da Filosofia Antiga. Relembrar
os temas estudados em tal CRC irá auxiliá-lo na compre-
ensão do tratamento que será dado ao seu estudo de
História da Filosofia Medieval. Portanto, não deixe de
pesquisar e relembrar o conteúdo já visto!

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Importantes mudanças fizeram que a Filosofia deixasse
de ter as características que marcaram a Filosofia Antiga e cria-
ram progressivamente as condições para que surgisse a Filosofia
Medieval. Como já foi dito em nossa Abordagem geral, quando
abordamos a questão desta maneira, alguém pode ficar com a im-
pressão que de uma hora para outra deixou de existir o modo de
pensar típico do mundo antigo e que em seu lugar surgiu o modo
de pensar medieval. Porém, isso não é totalmente correto. É claro
que alguns acontecimentos históricos levaram a mudanças cultu-
rais muito importantes. No entanto, a transformação deu-se de
maneira lenta e progressiva.
Um dos acontecimentos históricos que alterou para sempre
o horizonte cultural da humanidade foi o advento do cristianismo.
Não há dúvidas de que a mensagem cristã, sobretudo depois que
se difundiu pelas principais regiões do mundo antigo, operou uma
significativa mudança cultural. Prova disso é o fato de que, a partir
do momento em que aderiam à fé cristã, as pessoas abandonavam
seus costumes anteriores e se dispunham inclusive a morrer por
sua nova fé.
Contudo, talvez o momento mais marcante da transforma-
ção cultural operada pelo cristianismo tenha ocorrido quando o
imperador Constantino se converteu e tornou o cristianismo a re-
ligião oficial do Império Romano. Como consequência, acontece-
ram as conversões em massa de ímpios ou de pessoas de outras
religiões.

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42 © História da Filosofia Medieval

Um caso interessante de conversão em grande número,


naquele contexto, acontecia com os funcionários do Império Ro-
mano. Eles necessariamente tinham que aderir à religião oficial.
Juntamente com eles, suas famílias inteiras também se tornavam
cristãs de um momento para o outro, por meio do batismo.
Restava, contudo, uma tarefa bastante complexa: familiari-
zar-se com o conteúdo da fé cristã, para poder aderir imediata e
radicalmente a ela. A função de ensinar os pontos fundamentais da
fé cabia aos ministros, sobretudo aos ordenados, ou seja, aos diá-
conos, presbíteros e bispos. Só que algumas questões que surgiam
eram novas e surpreendentemente complexas. Vejamos um exem-
plo que pode demonstrar como uma questão de preceito religioso
fomentou um interessantíssimo debate filosófico e teológico.
Durante os séculos em que o cristianismo foi uma religião
pouco conhecida e até perseguida, não havia grande dificuldade
em saber quem era cristão e em confirmar se tal pessoa era au-
têntica em sua fé. As comunidades cristãs nos tempos das gran-
des perseguições eram pequenas e com muita frequência corriam
imensos riscos para se reunir e para praticar seu culto.
Muitos cristãos confirmavam sua fidelidade com o próprio
sangue, ou seja, tornavam-se mártires. Todavia, no momento em
que o cristianismo passa a ser religião de Estado, o número de ba-
tizados torna-se grande demais para que as pessoas se conheçam
ou mesmo se reconheçam facilmente como adeptos da mesma fé.
Também não havia mais necessidade de que as pessoas corressem
graves riscos ou suportassem o martírio como meio de confirmar
a fé.
Naquele contexto, surgiu a importante questão de quais se-
riam os meios para descobrir quem era fiel ao cristianismo e quem
não era, e quais seriam as implicações da infidelidade para a vali-
dade dos sacramentos administrados por infiéis.
Uma questão assim poderia parecer meramente abstrata,
voltada apenas para discussões de intelectuais. Entretanto, trata-
© U1 - Da Filosofia Antiga à Filosofia Medieval 43

va-se de algo muito mais concreto e premente. O entendimento


geral considerava inválido e vazio qualquer sacramento adminis-
trado por alguém que não fosse de fato cristão, ou por alguém que
tivesse abandonado ou que mais tarde abandonasse a fé. Então,
havia o risco permanente de que alguém que fora batizado, tendo-
se tornado cristão em função daquele sacramento, o deixasse de
ser no exato momento em que o ministro que o batizou abando-
nasse a fé cristã - tanto faz se por opção, por fraqueza ou mediante
tortura.
Portanto, era uma possibilidade bastante inquietante a de
que, por ações ou atitudes alheias, uma pessoa deixasse de estar
em condições de desempenhar suas funções de maneira adequa-
da, ou até mesmo perdesse totalmente sua autoridade, pois os
funcionários do "império cristão" tinham que ser cristãos autên-
ticos.
Assim, percebe-se como a adesão de Constantino ao cristia-
nismo significou também uma necessidade de pensar problemas
novos, o que levou as principais figuras da cultura da época a se
interessar pelos elementos principais da mensagem cristã. Mas
quais seriam esses elementos?
Para responder a tal questão, seria interessante citar Giovan-
ni Reale e Dario Antiseri (2005). No volume dedicado à Patrística
e Escolástica, de sua imponente obra História da filosofia (em 7
volumes), eles dizem que:
As mais significativas contribuições filosóficas da mensagem bíblica
são:
1. O conceito de monoteísmo que substitui o politeísmo grego;
2. O criacionismo a partir do nada, que faz o ser depender de um
ato da vontade de Deus, e que se contrapõe à proibição de
Parmênides da geração do ser do não ser;
3. Uma concepção do mundo fortemente antropocêntrica que
não tem precedentes na filosofia helênica, que foi mais cos-
mocêntrica;
4. Uma interpretação da lei moral diretamente ligada à vontade
de Deus: Deus seria a fonte definitiva da lei moral e o dever

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44 © História da Filosofia Medieval

do homem estaria em obedecer seus mandamentos. Para o


grego, ao contrário, a lei teria o seu fundamento na natureza e
a ela também Deus estaria vinculado;
5. Uma desobediência à lei teria causado a queda do homem;
6. O resgate desta situação depende não do homem, mas da ini-
ciativa gratuita de Deus; para os gregos - em particular para os
órficos e para os filósofos que neles se inspiraram - depende-
ria, ao contrário, apenas do homem;
7. A Providência de que fala a Bíblia, diversamente da grega (em
particular socrática e estoica), dirige-se ao homem individual;
a ela está ligada a Redenção operada por Deus por amor da
humanidade;
8. Esta atenção de Deus pelo homem revoluciona completamen-
te o conceito do amor em vários sentidos: primeiramente,
porque o amor cristão (ágape) é característica eminentemente
divina, enquanto que para os gregos Deus era amado e não
amante; em segundo lugar porque a dimensão do eros helêni-
co era aquisitiva, enquanto a do ágape cristão é donativa;
9. Tal inversão não diz respeito apenas ao tema do amor, mas a
toda a série dos valores dos gregos, que o cristianismo ilumina
sobre a base do discurso das bem-aventuranças, em que se
privilegia a dimensão da humildade e da mansidão;
10. Igualmente importante é a mudança de perspectiva na escato-
logia - que não está mais ancorada apenas no dogma da imor-
talidade da alma, mas também no da ressurreição dos corpos;
É significativo, por fim, o novo sentido da história, como progresso
para a salvação e para a realização do reino de Deus: o desenvolvi-
mento da história segundo os gregos, tem um andamento circular
(a história não tem início nem fim, mas retorna sempre idêntica),
enquanto o bíblico-cristão acontece segundo um trajeto retilíneo,
que tem um fim e uma consumação (o juízo universal).

A clareza de Reale e de Antiseri no resumo apresentado aju-


da a perceber que não se tratou apenas de fazer algumas conces-
sões filosóficas para poder acomodar a mensagem cristã a temas
e problemas já pensados pela Filosofia Antiga. De fato, várias dou-
trinas filosóficas antigas tiveram que ser repensadas quase que em
sua totalidade.
Mais do que simplesmente utilizar a Filosofia Antiga para ex-
plicar elementos da fé cristã, tratou-se de pensar de novo, de pen-
© U1 - Da Filosofia Antiga à Filosofia Medieval 45

sar a partir de novos pontos de vista tudo o que já tinha sido pen-
sado na Antiguidade, além de verificar a medida de concordância
ou discordância que havia entre filosofia e mensagem cristã.
Contudo, quem pensar em rompimento radical com a he-
rança filosófica antiga também pode estar se distanciando do que
ocorreu naquele momento. No final da Antiguidade Clássica, já ha-
via um vocabulário comum, do qual usufruíam tanto as escolas fi-
losóficas quanto os convertidos ao cristianismo que possuíam uma
educação refinada. Mas, isso quer dizer que havia uma Filosofia e
que depois passou a haver, ao menos no Ocidente, uma "Filosofia
Cristã"?
O tema "Filosofia Cristã" foi muito debatido no século 20 EC,
pois alguns críticos da Filosofia Medieval, principalmente aqueles
que queriam desvalorizá-la e propor que não fosse estudada, jus-
tificavam suas posições com o argumento de que o que aconteceu
na Idade Média em termos de Filosofia não teve nada de criativo
e nem mesmo de genuinamente filosófico. Segundo tais críticos,
teria sido apenas uma apropriação de alguns temas e métodos fi-
losóficos da Antiguidade, corrompidos por uma abordagem emi-
nentemente teológica.
Tal crítica, sobretudo vinda daqueles que pensam que há
uma separação radical e mesmo uma incompatibilidade completa
entre religião e razão, parece ter sido muito aceita durante certo
período em alguns círculos filosóficos do século passado. Étienne
Gilson (2006, p. 6) assim retrata esta questão:
O verdadeiro problema [...] é de ordem filosófica e muito mais gra-
ve. Reduzido à sua fórmula mais simples, consiste em perguntar se
a própria noção de filosofia cristã tem sentido e, subsidiariamente,
se corresponde a uma realidade. Naturalmente, trata-se não de
saber se houve cristãos filósofos, mas de saber se pode haver fi-
lósofos cristãos. Neste sentido, o problema se colocaria da mesma
maneira a propósito dos muçulmanos e dos judeus. Todos sabem
que a civilização medieval se caracteriza pela extraordinária impor-
tância que o elemento religioso nela adquire. Tampouco se ignora
que o judaísmo, o islamismo e o cristianismo produziram então cor-
pos de doutrinas em que a filosofia se combinava de uma forma

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46 © História da Filosofia Medieval

mais ou menos feliz com o dogma religioso, designado pelo nome,


aliás muito vago, de escolástica. A questão está precisamente em
saber se essas escolásticas, sejam elas judaicas, muçulmanas ou
mais especialmente cristãs, merecem o nome de filosofias. Ora, a
partir do momento em que o problema é colocado nesses termos,
longe de parecer evidente, a existência e a própria possibilidade
de uma filosofia cristã se tornam problemáticas, a tal ponto que
partidos filosóficos opostos parecem estar de acordo para recusar
a essa expressão qualquer significado positivo.

O que Gilson quer dizer com "partidos filosóficos opostos" é


que tanto seus contemporâneos (da década de 1930), que tinham
uma abordagem racionalista pura da relação entre religião e ra-
zão, quanto os neo-escolásticos (os neotomistas), pensavam que
havia uma distinção essencial entre religião e filosofia. Ou seja, era
uma tendência muito forte na primeira metade do século passado
considerar que não houvera um esforço filosófico autêntico e con-
tinuado ao longo dos vários séculos costumeiramente conhecidos
como "período medieval".
Essa visão originava-se no fato de que naquele período a
religião desempenhava um papel central e a filosofia era usada
apenas em alguns aspectos ou de maneira fragmentária. Seria
algo análogo a uma secretária executiva que por vezes usasse um
martelo com alguma finalidade pontual. Para isso, ela não teria de
usar necessariamente algum conhecimento de carpintaria ou de
construção civil.
É claro que os neotomistas pensavam que um tipo de sínte-
se entre filosofia e religião tinha sido feito por Tomás de Aquino
(autor medieval que estudaremos em outra unidade). Porém, na
compreensão dos neotomistas, mesmo nesse caso isso somente
tinha sido possível porque Tomás se propôs a permanecer no âm-
bito da razão.
Felizmente, a postura de desvalorização da Filosofia Medie-
val perdeu força nas últimas décadas do século 20 EC. Isso ocor-
reu principalmente em consequência do trabalho de medievalistas
renomados e extremamente competentes e de historiadores da
© U1 - Da Filosofia Antiga à Filosofia Medieval 47

Filosofia. Com abertura e espírito acadêmico, esses profissionais


propuseram-se a estudar filósofos e ideias medievais sem pre-
conceitos e de maneira sistemática. Hoje, os livros de História da
Filosofia Medieval se multiplicam. Novos aspectos e abordagens
contribuem para que a Filosofia produzida por vários autores me-
dievais seja vista como original e digna de ser estudada a fundo.
Uma das razões para tal mudança talvez esteja ligada à pró-
pria visão da Filosofia como algo mais do que um simples exercício
racional de abstração. Ou seja, à medida que progridem nossos
conhecimentos sobre o que significava adotar uma determina-
da filosofia na Antiguidade, com todas as implicações racionais e
vivenciais que tal adesão implicava, parece cada vez mais lógico
pensar que acontecia algo semelhante no caso da adesão ao cris-
tianismo. Para aprofundar esse olhar, seria interessante voltarmos
os olhos para a Filosofia Antiga Clássica e considerá-la como "estilo
de vida".

Será que houve mesmo a Idade Média?


Para que você possa refletir sobre essa problemática, con-
vém lembrar as palavras do Prof. Carlos Arthur Ribeiro do Nasci-
mento em seu excelente livro O que é filosofia medieval. O Prof.
Carlos Arthur nos coloca a questão nos seguintes termos:
Pois a idade média também foi inventada. Um pedagogo alemão
chamado Christoph Keller, em latim Cellarius (1638-1707), consa-
grou a divisão da história antiga, medieval e moderna. Consagrou
também a idéia que se generalizou sobre o período medieval.
Keller ou Cellarius escreveu três manuais: um de filosofia antiga
(1685), um de história da idade média (1688) e um de história nova
(1696). A idade média, segundo Keller, estende-se da época do im-
perador Constantino (324) até a tomada de Constantinopla pelos
turcos (1453). Se em vez da primeira data, adotarmos a da tomada
de Roma pelo chefe germânico Odoacro em 476, teremos a perio-
dização corrente nas escolas. Keller fixou também a idéia de que
este período intermediário entre a antiguidade e a época moderna
nada produziu de importante. Foi um período não só estéril, mas
de retrocesso: a "idade das trevas" (NASCIMENTO, 1992, p. 8-9).

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48 © História da Filosofia Medieval

Contudo, o próprio Prof. Carlos Arthur Nascimento (1992, p.


9) chama-nos a atenção para a controvérsia que envolve a noção
de que tenha havido uma Idade Média e sobre as datas escolhidas
para delimitá-la:
Tanto a periodização da história ocidental em an­tiga, medieval e
moderna como a interpretação negativa do período medieval fo-
ram e são objeto de profundas críticas. Não há nenhuma razão evi-
dente para privilegiar como marcos de início e limite as datas de
476 e 1453. Não é também nada claro que os mil anos compreen-
didos entre estas datas consti­tuam um único período. Além disso,
nada mais es­tranho do que supor que a humanidade tenha sido
vítima durante tão longo tempo de uma irreparável estupidez e,
repentinamente, se tenha curado da doença com o renascimento
no século XV.

Portanto, há vários motivos que nos levariam a pensar em


outras nomenclaturas e datas para delimitar esse período da His-
tória da Filosofia. O Prof. Nascimento (1992, p. 9-10) ainda nos
apresenta uma forte razão paras que reflitamos sobre as implica-
ções de uma abordagem negativa da Idade Média:
Se consultarmos os próprios medievais, constata­remos que eles
não se consideravam no meio de coisa nenhuma. Achavam, antes,
que estavam no final da história ou, no mínimo, que eram os her-
deiros de gente muito mais importante que tinha vivido an­tes de-
les. Bernardo de Chartres, no século XII, fez uma comparação que
ficou famosa: 'Somos comparáveis a anões montados nos om­bros
de gigantes, o que nos possibilita ver mais coisas que os antigos
e mais longínquas; não pela acuidade de nossa própria vista nem
pela nossa grande estatura corporal, mas porque nos levantam e
nos exal­tam àquelas alturas pela sua grandeza gigantesca'.

Como você pôde ver, esta é uma visão bastante positiva do


valor da filosofia produzida naquele período. Talvez seja impossí-
vel recusar o termo "Idade Média", pois ele já é tão consagrado
que seria bastante complicado propor sua exclusão dos livros de
História. Alguns autores utilizam os termos "patrística" e "escolás-
tica", que, juntos, poderiam servir para nos referirmos aos pensa-
dores medievais de maneira mais neutra.
Contudo, também naquele período da História havia um
termo com sentido tão pejorativo quanto o que Keller procurou
© U1 - Da Filosofia Antiga à Filosofia Medieval 49

imputar ao período que chamou de Idade Média. Aqui também


faremos uso do texto do Prof. Carlos Arthur. Apesar de ter sido
publicada em 1992, sua obra conserva-se totalmente atual:
Pelo menos no meio universitário, supõe-se que seja um grande
elogio chamar alguém de filósofo. Não passa em geral pela nos-
sa cabeça a idéia de que uma pessoa possa dispensar esse título
ou até se sentir ofendida com ele. Ora, é precisamente isto o que
acontecia com a maioria ou mesmo a totali­dade daqueles a quem
chamamos hoje em dia de "filósofos medievais".
De fato, os filósofos, para estes supostos "filósofos medievais",
eram ou pagãos ou infiéis. O filósofo por excelência para os uni-
versitários dos séculos XIII e XIV, Aristóteles, era exatamente um
pagão, isto é, alguém que, tendo vivido antes de Cristo, não tivera
nenhum contato com a mensagem cristã. Outros filósofos respeita-
díssimos como Avicena, Averróis ou Maimônides eram infiéis, pois
os dois primeiros eram muçulmanos e o último judeu.
Quando aqueles a quem chamamos de "filósofos medievais" que-
riam se referir aos autores cristãos mais antigos (a quem chamamos
hoje de Padres da Igreja), chamavam-nos de "os santos". Distingui-
-los dos filósofos. Eles próprios se consideravam como mestres da
sagrada doutrina ou, como dizemos atualmente, teólogos. Se um
teólogo recorresse à fi­losofia nos seus trabalhos teológicos não era
cha­mado de filósofo, mas de teólogo filosofante ou sim­plesmente
de filosofante (NASCIMENTO, 1992, p. 10-11).

Logo após o trecho citado, o Prof. Carlos Arthur Nascimento


explica que, para nos familiarizarmos com os termos utilizados pe-
los medievais e para termos uma noção mais precisa do que eles
pensavam da Filosofia, é necessário ter em conta o que diz o Novo
Testamento. Há duas passagens do apóstolo Paulo no discurso que
ele fez em sua estadia em Atenas: a passagem que abordaremos é
narrada nos Atos dos Apóstolos (17, 16-34). Consideraremos tam-
bém o trecho da primeira carta de Paulo aos cristãos da cidade de
Corinto (1 Cor 1,17-2,16).
Como lembra o Prof. Carlos Arthur, a atitude de Paulo nesses
dois textos é bas­tante distinta. Nos Atos, Paulo não vê dificuldade
em se servir de alguns es­quemas conhecidos das escolas filosó-
ficas daquela época e que já vinham sendo utilizados pelos ju-
deus de cultura grega. Na verdade, ele se utiliza de uma estratégia

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50 © História da Filosofia Medieval

de oratória conhecida por "acomodação", ou seja, faz um esforço


para que sua pregação se assemelhe o máximo possível ao que os
filósofos gregos do período diziam.
O que está em questão não é fazer concessões excessivas
ao gosto dos ouvintes, mas apresentar-lhes o conteúdo de manei-
ra compreensível. É muito provável que os filósofos estoicos que
estavam entre os ouvintes de Paulo naquele dia pudessem ter fei-
to um discurso semelhante. Ao proceder daquela maneira, Paulo
sinalizava para a sua convicção de que não haveria uma ruptura
radical entre a teologia grega e a mensagem cristã. A mensagem
cristã seria apenas a realização ou o aprimoramento da tradição
teológica grega.
A grande dificuldade de Paulo naquela pregação veio quan-
do ele introduziu o tema "ressurreição de Cristo", pois esta noção
não tinha qualquer correspondente no pensamento grego clássi-
co. Como vimos anteriormente, essa era uma grande novidade da
mensagem bíblica. Tal noção pode até ter aguçado a curiosidade
de alguns poucos ouvintes, mas não o suficiente para que resol-
vessem ouvir o restante da pregação.
Não se sabe ao certo se Paulo se ressentiu daquela experiên-
cia ou se simplesmente a considerou inadequada para ser repetida
em outros lugares. Sabe-se que em outra passagem, na Primeira
carta aos Coríntios (que, como o próprio nome indica, se refere à
pregação em Corinto, que talvez tenha acontecido logo em segui-
da à pregação em Atenas), Paulo diz:
Eu mesmo, quando fui ter convosco, irmãos, não me apresentei
com o prestígio da palavra ou da sa­bedoria para vos anunciar o
mistério de Deus. Pois, não quis saber outra coisa entre vós a não
ser Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado (1 Cor 2,1-2).

Uma possibilidade de interpretação desta passagem, como


nos diz o Prof. Carlos Arthur, é considerar que em Corinto Paulo
não quis utilizar a filosofia e que esta lhe seria supérflua, sendo
a pregação da ressurreição a única questão relevante na ocasião.
Em todo caso, os medievais assim o entenderam, e colocaram os
© U1 - Da Filosofia Antiga à Filosofia Medieval 51

filósofos num nível mais baixo, identificando a filosofia com a sa-


bedoria dos pagãos.

Filosofia Medieval como continuação e plenificação da Filosofia


Antiga
Há, contudo, boas razões para pensarmos que a herança
cultural greco-latina sobreviveu ao longo dos séculos na Filosofia
Medieval. Você verá nas unidades seguintes que o grande desen-
volvimento da filosofia de Platão, Aristóteles e de outros grandes
filósofos teve influência direta no pensamento dos medievais.
Se há uma figura que já está presente nos primeiros momen-
tos da Filosofia Medieval, e que serve como base para afirmar a
continuidade e o aprimoramento da Filosofia Clássica na Idade
Média, esta figura é Aurelius Augustinus, isto é, Agostinho de Hi-
pona (354-430 EC). Você já teve oportunidade de entrar em con-
tato com esse pensador no tópico Abordagem geral. Estudaremos
algumas das principais contribuições de Agostinho mais adiante.
Contudo, já podemos apontar para alguns pontos interessantes
desta figura. Contaremos novamente com o auxílio inestimável do
Prof. Carlos Arthur Nascimento.
Agostinho estudou e assimilou o que havia de melhor na
produção cultural greco-romana durante o período em que se pre-
parava para a carreira de professor de retórica. Contudo, apesar
de fascinantes, as coisas que aprendeu não lhe forneceram a paz
completa que almejava. Somente depois de se converter ao cris-
tianismo, toda a cultura que tinha assimilado começou a fazer sen-
tido para sua vida. Então, ele não se fechou em si, mas percebeu
que era sua missão transmitir às gerações posteriores a sua verda-
deira "enciclopédia de cultura cris­tã".
A genialidade de Agostinho está, sobretudo, no fato de que
ele não apenas amalgamou elementos dispersos da cultura greco-
romana com elementos da mensagem bíblica, mas também de-
senvolveu um novo ideal de cultura e de orientação filosófica que

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52 © História da Filosofia Medieval

apontava para a Filosofia como estilo de vida e para a Filosofia


Cristã como plenitude de todo o processo.
Na obra de Agostinho A doutrina cristã (De doctrina christia-
na 11, 40, 60-61), encontram-se várias referências à experiência
que "funda" o povo de Israel, descrita no livro bíblico do Êxodo.
Dentre outras passagens, ele aponta para Ex. 3, 21-22. Naquela
passagem, Deus instrui os judeus a pedirem emprestado aos egíp-
cios vários itens de adorno e vestimenta, de tal maneira que não
partissem do Egito sem nada levar.
Uma das possibilidades de interpretação desta passagem é
justamente considerar que os judeus levaram consigo os compo-
nentes mais ricos da cultura egípcia, pois quem empresta elemen-
tos de outra cultura não "sai de mãos vazias" após a convivência,
nem empobrece ou "despoja" os membros da outra cultura.
No Livro da Sabedoria, que pertence a um conjunto de li-
vros bíblicos muito posteriores ao livro do Êxodo, o autor retoma
a mesma passagem e explica que os judeus, ao saírem do Egito,
tinham a prerrogativa (conquistada por seu trabalho) de levar con-
sigo tudo aquilo que tinha sido produzido no Egito com o trabalho
dos judeus. Não se tratava de "apropriação indébita", visto que os
judeus tinham contribuído decisivamente com seu trabalho para
tudo aquilo que foi produzido no Egito naquele período.
A interpretação de Agostinho daquele episódio considera
que o cristianismo tem o direito de retomar todo o legado da Fi-
losofia da Antiguidade, pois ele é o único que pode levar a cultura
humana à plenitude. Agostinho julgava que a cultura antiga culmi-
nou em fracasso. Aqui não se deve esquecer o fato de que ele viu
muito de perto os grandes sinais da derrocada do Império Romano
do Ocidente, inclusive a decadência moral e social que a acompa-
nharam. Não é de se admirar, portanto, que Agostinho tenha con-
siderado os pagãos como "injustos possuidores" dos tesouros da
Filosofia Clássica - tais tesouros deveriam ser colocados a serviço
dos melhores objetivos, e não usados para prolongar um sistema
de administração imperial falido e desumano.
© U1 - Da Filosofia Antiga à Filosofia Medieval 53

Como veremos no tópico a seguir, dedicado a Agostinho,


uma de suas contribuições mais decisivas à Filosofia foi sua ati-
tude com relação à interação entre fé e razão. Ele foi o primeiro
a apontar para o fato de que a fé era componente essencial para
levar à plenitude a investigação filosófica. Ou seja, era necessário
que "entender" e "crer" estivessem em perfeita harmonia: segun-
do ele, para crer, era necessário entender - a expressão latina é
fides quaerens intelectum. Um não pode prescindir do outro, isto
é, também para entender é necessário crer - intellectus quaerens
fidem.
Agostinho demonstra, desta maneira, que os conteúdos da
fé não podem ser irracionais, da mesma maneira que as verdades
filosóficas não podem contrariar a fé.

Fé e razão –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Você quer saber como esta posição influenciou as gerações futuras? Leia o texto
da encíclica Fides et ratio que aparecerá no conteúdo da Unidade 2, e irá perce-
ber que a história iniciada na Antiguidade teve continuidade e chegou aos dias
atuais ainda cheia de vigor e relevância.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Isto somente pode ser entendido quando se pensa a filosofia
como estilo de vida. Vamos investigar como a filosofia ganhou essa
característica no período medieval?

5. FILOSOFIA COMO ESTILO DE VIDA


No mundo mediterrâneo antigo, a filosofia não consistia na
reflexão abstrata sobre a natureza do que poderia ser conhecido
ou sobre o valor do que precisa ser feito, de maneira desligada
da vida cotidiana das sociedades. Ao contrário, a filosofia exigia
engajamento total da pessoa no labor necessário para descobrir a
verdade e fazer o bem. Para os filósofos, a filosofia era um estilo
de vida extremamente exigente, que absorvia totalmente a pes-
soa. Para compreender exatamente em que consistia a abordagem
da "filosofia como estilo de vida", precisamos voltar um pouco às
principais escolas filosóficas da Antiguidade.
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54 © História da Filosofia Medieval

As principais escolas da Filosofia Grega Antiga eram a Aca-


demia, fundada por Platão; os peripatéticos, seguidores de Aristó-
teles; os estoicos, da escola fundada por Zenão; e os epicuristas,
seguidores de Epicuro.
Havia ainda outra escola, se é que este termo pode ser utili-
zado com algum sentido neste caso, pois "escola" parece pressu-
por necessariamente um corpo doutrinal transmitido por um ou
mais "mestres" para um ou mais "discípulos". Referimo-nos aos
céticos, que tentavam sempre levar as pessoas a suspender o juízo
e a considerar argumentos pró e contra a resposta dada a cada um
dos problemas filosóficos centrais. Não se consideravam mestres,
não professavam um corpo doutrinal específico e nem procuravam
fazer discípulos.
Os céticos surgiram na Academia de Platão. Por derivarem
dessa academia, também podem ser considerados uma escola fi-
losófica. De fato, configuravam uma das quatro mais importantes
escolas do período helenístico.

Figura 1 Platão e Aristóteles.


© U1 - Da Filosofia Antiga à Filosofia Medieval 55

Uma importante advertência deve ser feita com relação ao


estudo da História da Filosofia Medieval: apesar de normalmente
se associar a filosofia do Ocidente cristão no período medieval ao
estudo e discussão das obras e do pensamento de Aristóteles - por
influência de Santo Tomás de Aquino, entre outros -, é possível
dizer que em vários aspectos Platão foi o filósofo grego que mais
influenciou a Filosofia Medieval latina. Principalmente no período
que vai do século 4º EC ao século 11 EC (EC significa Era Comum
ou Era Cristã, ou seja, depois de Cristo, d. C.), visto que naquele
período o Ocidente cristão tinha perdido contato com parte signi-
ficativa das principais obras de Aristóteles.
Apesar da grande influência do pensamento platônico, o
acesso direto aos textos filosóficos de Platão foi também muito
restrito no Ocidente cristão, situação que perdurou até a edição
completa das obras deste filósofo, no século 15 EC. Porém, as
ideias platônicas circularam por meio de muitas fontes, principal-
mente obras dos autores antigos mais famosos, cujo exemplo mais
emblemático talvez tenha sido Plotino. Você verá mais informa-
ções a respeito disso no Tópico 6 desta unidade.
A seguir, você vai acompanhar o caminho da Filosofia des-
de as escolas filosóficas na Grécia e em Roma, com ênfase para
o período helenístico, ou seja, para o momento histórico-cultural
posterior à morte de Alexandre Magno – este, o referencial políti-
co da época posterior à morte de Aristóteles, que por sua vez foi o
referencial filosófico. Nesta unidade, cobriremos o período que se
seguiu até Santo Agostinho. Tal opção se justifica plenamente do
ponto de vista filosófico, apesar da advertência feita por Alain de
Libera:
A história da filosofia medieval é escrita, em geral, do ponto de vis-
ta do cristianismo ocidental. Esse gesto não é isento de conseqüên-
cias: ele fixa os objetos, os problemas, os campos de investigação,
avalia, distribui, poda, reparte segundo suas perspectivas, interes-
ses, tradições, impõe seus esquecimentos, imprime suas diretivas
e direções. Leva, enfim, a acreditar na unidade de um período no
qual se quer, a rigor, redescobrir as tensões, as minorias e as dis-
sonâncias, com a condição de permanecer no seio de um mesmo

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56 © História da Filosofia Medieval

contínuo espácio-temporal, no espaço do jogo histórico definido


pelo horizonte "familiar" da história européia. A duração histórica
em que se inscreve a história da filosofia medieval é sempre a do
Ocidente cristão. São os acontecimentos da história ocidental cristã
que fornecem a grade mínima de legibilidade, que impõem a pe-
ridiocização - peridiocização sumária (o filósofo é menos exigente
que o historiador das técnicas ou das mentalidades), necessaria-
mente sumária, pois, visto de Paris ou de Oxford, o mundo medie-
val é homogêneo o bastante, as crises que o traspassam são sufi-
cientemente escassas para permitir que largas faixas de duração
venham fornecer o suporte linear, o friso único no qual inscrever
o encadeamento quase automático dos "movimentos de idéias" e
"das correntes doutrinais" (DE LIBERA, 1998, p. 7).

Neste percurso, você verá quais foram as preocupações cen-


trais da Filosofia no período, ou seja, verá que houve intenso de-
bate sobre as possibilidades de se alcançar o conhecimento verda-
deiro. Verá que tal debate está ligado a questões que abarcavam a
psicologia filosófica, a metafísica, a ética e a política. E como tudo
isto estava ligado à busca da boa vida, pois saber o que é o ser hu-
mano, o que é o mundo, o que é a divindade e o que o ser humano
pode e consegue saber de certo e verdadeiro, são os instrumentos
essenciais para definir como o ser humano pode agir para atingir
suas metas.
O cristianismo entra nesse contexto, pois foi um estilo de
vida escolhido inicialmente por poucos, mas que experimentou
grande sucesso e enorme expansão nos primeiros séculos de seu
surgimento e depois manteve hegemonia inconteste no Ocidente
durante toda a Idade Média.

6. FILOSOFIA NA GRÉCIA E EM ROMA


No período helenístico e no período romano da filosofia, o
pensamento de Platão foi considerado principalmente em relação
à metafísica, à epistemologia e à ética.
Neste contexto, o termo epistemologia refere-se a quais
condições devem e podem ser alcançadas para que o que se pensa
possa ser considerado como conhecimento real.
© U1 - Da Filosofia Antiga à Filosofia Medieval 57

Metafísica, aqui, significa o mesmo que Aristóteles chamou


de teologia (filosofia primeira); portanto, aquele ramo do saber
que investiga o ser ou a realidade como ela é em si mesma – que
no período medieval considera o objeto Deus do ponto de vista da
reflexão filosófica.
Ética refere-se à reflexão sobre a ação humana, principal-
mente no contexto político da pólis grega. Enfatiza o coletivo, e
não o individualismo que virá com o helenismo: a Academia era
um centro de ativistas e estudos políticos e constitucionais.
Para compreender melhor o que isso significa, é interessante
ter em mente que Platão associou a superação dos problemas da
humanidade com o governo dos Reis-Filósofos, pois estes seriam
os únicos que saberiam de verdade o que faz a vida humana ter
sentido e valer a pena ser vivida.
Desta maneira, virtude consiste no conhecimento, não o
conhecimento teórico, mas aquele que está vívido no momento
da decisão. Mas que tipo de conhecimento seria este? O conheci-
mento do bem e dos males, dos graus de bondade e dos graus de
maldade. Por exemplo, na diálogo platônico Górgias, vemos a afir-
mação de Sócrates de que é preferível sofrer algum mal a impor
um mal a outra pessoa.
Assim, o conhecimento real no momento da identificação do
melhor e do pior a se fazer é o que constitui a virtude. Claro que
esse conhecimento nem sempre é suficiente para se fazer o bem,
pois alguém pode saber o que é melhor, mas, devido a circunstân-
cias adversas, estar impedido de fazê-lo. Porém, saber o que é o
bem e o que são os males, ter conhecimento do que é melhor e do
que é pior, certamente são condições para agir virtuosamente.
A partir disso, podemos concluir que conhecimento é im-
portante. Todavia, conhecimento é distinto de "opinião", que os
gregos chamavam doxa: às vezes parece que alguém está certo em
suas opiniões, porém depois se descobre que de fato não estava. A
"opinião", ou "crença", varia ao sabor do momento. E mesmo que

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58 © História da Filosofia Medieval

alguém esteja correto ao acreditar em algo, pode depois perder a


convicção e abandonar a meio caminho o que estava fazendo.
Portanto, conhecimento não é apenas a crença de que se
está certo, mas, também, a posse de justificativas ou fundamentos
para sua convicção. Contudo, resta saber o que pode dar estabili-
dade ao que é crido.
Neste ponto é necessário recordar a teoria platônica das
Ideias ou Formas. Se as coisas que se consideram justas ou boas
podem ter alterado o seu status com o passar do tempo, a Justiça
e o Bem permanecem sempre os mesmos.
Platão pensa na Justiça e no Bem como formas ou padrões
que orientam os que buscam as ações justas e os bons resultados.
Porém, as Ideias ou Formas não estão nem no tempo nem no es-
paço, visto que tudo o que está no tempo e no espaço é mutável,
transitório. Esses ideais – as Ideias ou Formas – são relembrados
por cada um, pois já foram vistos numa existência anterior. Este
último ponto configura a doutrina platônica da reminiscência.
Platão pensava que para caminhar em direção a uma vida
melhor era necessário um tipo de conversão, ou seja, era neces-
sário voltar-se para uma nova direção. A pessoa devia deixar de
lado as coisas deste mundo mutável e voltar-se para as Formas
imutáveis.
Para compreendermos melhor a "conversão" da qual trata-
mos, vamos relembrar a célebre Alegoria da caverna de Platão.
Observemos o texto a seguir, que explica em detalhes este "voltar-
se para uma nova direção":

Alegoria da Caverna –––––––––––––––––––––––––––––––––––


Imaginemos uma caverna subterrânea onde, desde a infância, geração após ge-
ração, seres humanos estão aprisionados. Suas pernas e seus pescoços estão
algemados de tal modo que são forçados a permanecer sempre no mesmo lugar
e a olhar apenas a frente, não podendo girar a cabeça nem para trás nem para
os lados. A entrada da caverna permite que alguma luz exterior ali penetre, de
modo que se possa, na semi-obscuridade, enxergar o que se passa no interior.
A luz que ali entra provém de uma imensa e alta fogueira externa. Entre ela e
© U1 - Da Filosofia Antiga à Filosofia Medieval 59

os prisioneiros – no exterior, portanto – há um caminho ascendente ao longo do


qual foi erguida uma mureta, como se fosse a parte fronteira de um palco de ma-
rionetes. Ao longo dessa mureta-palco, homens transportam estatuetas de todo
tipo, com figuras de seres humanos, animais e todas as coisas. Por causa da luz
da fogueira e da posição ocupada por ela os prisioneiros enxergam na parede no
fundo da caverna as sombras das estatuetas transportadas, mas sem poderem
ver as próprias estatuetas, nem os homens que as transportam.
Como jamais viram outra coisa, os prisioneiros imaginavam que as sombras vis-
tas são as próprias coisas. Ou seja, não podem saber que são sombras, nem
podem saber que são imagens (estatuetas de coisas), nem que há outros seres
humanos reais fora da caverna. Também não podem saber que enxergam por-
que há a fogueira e a luz no exterior e imaginam que toda a luminosidade possí-
vel é a que reina na caverna.
Que aconteceria, indaga Platão, se alguém libertasse os prisioneiros? Que faria
um prisioneiro libertado? Em primeiro lugar, olharia toda a caverna, veria os ou-
tros seres humanos, a mureta, as estatuetas e a fogueira. Embora dolorido pelos
anos de imobilidade, começaria a caminhar, dirigindo-se à entrada da caverna e,
deparando com o caminho ascendente, nele adentraria. Num primeiro momento
ficaria completamente cego, pois a fogueira na verdade é a luz do sol e ele ficaria
inteiramente ofuscado por ela. Depois, acostumando-se com a claridade, veria
os homens que transportam as estatuetas e, prosseguindo no caminho, enxerga-
ria as próprias coisas, descobrindo que, durante toda a sua vida, não vira senão
sombra de imagens (as sombras das estatuetas projetadas no fundo da caverna)
e que somente agora está contemplando a própria realidade.
Libertado e conhecedor do mundo, o prisioneiro regressaria à caverna, ficaria
desnorteado pela escuridão, contaria aos outros o que viu e tentaria libertá-los.
Que lhe aconteceria nesse retorno? Os demais prisioneiros zombariam dele, não
acreditariam em suas palavras e, se não conseguissem silenciá-lo com suas
caçoadas, tentariam fazê-lo espancando-o e, se mesmo assim, ele teimasse
em afirmar o que viu e os convidasse a sair da caverna, certamente acabariam
por matá-lo. Mas, quem sabe alguns poderiam ouvi-lo e, contra a vontade dos
demais, também decidissem sair da caverna rumo à realidade (PLATÃO, ver E-
Referências).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Há níveis de realidade. Para cada nível, existe um processo
dialético – um movimento ascendente, do empírico ao ideal, e um
descendente, do ideal ao empírico. Portanto, importa escolher os
níveis mais elevados. No nível superior, está a Ideia ou Forma do
Bem. Alguém busca ações justas porque estas são boas. Alguém
busca coisas belas porque pensa que elas são melhores. Enfim, a
Ideia do Bem é a mais elevada, pois serve de critério para todas as
outras.
Portanto, as Ideias ou Formas são os padrões perfeitos, ao
passo que as coisas que as refletem nunca atingem a perfeição

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60 © História da Filosofia Medieval

completa. A Justiça é o padrão perfeito, mas as ações justas nunca


são justas de maneira absoluta. O Bem é o padrão perfeito, contu-
do as boas ações nunca são boas em sentido pleno, pois nunca são
perfeitamente boas.
Platão também propõe outra distinção. A Ideia ou Forma
"Justiça" é uma, ao passo que as ações justas são várias. A Forma
"Bem" é uma, ao passo que as coisas boas são várias. Nesse sen-
tido, Platão também acrescenta Formas que não são necessaria-
mente padrões perfeitos. A "Brancura" é o padrão para as coisas
brancas; a "Verdura" é o padrão para as coisas verdes; a "Negritu-
de" é o padrão para as coisas negras. Estas últimas Formas não são
necessariamente padrões perfeitos justamente porque admitem
outras brancuras, outras verduras e outras negritudes.
Aristóteles às vezes chamava as formas platônicas de uni-
versais. Esse fato gera inúmeras interpretações e confusões, pois
os universais aristotélicos podem ser entendidos como formas
gramaticais. Entretanto, não é evidente que para cada forma gra-
matical aristotélica corresponda necessariamente uma forma real
platônica. Outra dificuldade para a compreensão dos universais
aristotélicos é a distinção entre universal lógico e universal meta-
físico. Neste CRC, teremos ainda ocasião de tratar especificamente
dos universais.

7. AS ALMAS – EXISTÊNCIA SEPARADA E EXISTÊNCIA


IMANENTE
Conforme estudamos anteriormente, Aristóteles entendia
as formas platônicas como formas gramaticais ou como universais.
Platão, porém, considerava que existiam outras entidades reais
além das Formas. Para ele, há almas humanas que existem mesmo
antes de serem unidas a um corpo particular. Mas há também ou-
tros tipos de almas.
© U1 - Da Filosofia Antiga à Filosofia Medieval 61

No diálogo platônico Sofista, pergunta-se se é possível pen-


sar num ser real que possa agir e sofrer ações sem que tenha vida,
alma e entendimento. A resposta óbvia parece ser esta: para atri-
buir a capacidade de agir e a capacidade de sofrer a ação a tal ser
real, é necessário, de fato, atribuir-lhe vida, alma e entendimento.
Seguidores de Platão, tais como Plotino, Porfírio e Proclo, atribu-
íram à inteligência e à vida um lugar mais elevado ainda do que
às Formas. As Formas seriam partes da vida de uma inteligência
superior (Nous).

Nous ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
O Nous comunica-se com as formas nele inscritas – há um deslocamento pro-
gressivo das ideias como formas transcendentes para categorias da mente de
Deus.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
No diálogo Leis, Platão introduz a noção de que a cadeia de
mudanças que se observa faz crer que deva haver uma causa pri-
meira a iniciar tais mudanças nas outras coisas, sem que ela pró-
pria tenha sido iniciada por algo. O poder de originar movimento é
"Alma" (Anima), e Alma é divindade.
As Almas mais elevadas são aquelas que causam os movi-
mentos mais elevados, ou seja, são as Almas que causam os mo-
vimentos celestes. Seus movimentos são os das esferas celestes,
que se movem sem sair do lugar. O automovimento das divinas
esferas celestes é, portanto, sempre regular e uniforme.
Aristóteles tinha uma abordagem bem semelhante. Porém,
fazia uma distinção adicional entre movente (ou "motor") e mo-
vido. As esferas celestes são moventes não movidos. As demais
coisas do mundo são somente movidas.
Em um dos diálogos platônicos, Timeu, notamos que a alma
divina desempenha um papel proeminente. Há nesse diálogo uma
longa narrativa mítica de como o demiurgo ou "artesão" plasmou
o cosmos. O mundo tem, portanto, um artífice divino, e aí reside
seu início: o demiurgo trouxe o mundo à existência, dando-lhe for-

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62 © História da Filosofia Medieval

ma e organização, espelhando-se nas Formas. O demiurgo é Alma,


ao passo que o mundo tem Alma, e algumas partes do mundo
também têm Almas. Portanto, há uma hierarquia de Almas.
O demiurgo criou as coisas do nível mais baixo utilizando as
Formas como padrões. As coisas recebem os reflexos das Formas
em um receptáculo, que na verdade é o espaço vazio.
Na hierarquia estabelecida pela abordagem neoplatônica,
temos o Uno – Bem, o Intelecto – Nous, a Alma – Psyche do mun-
do e as coisas materiais – Mal. O mais elevado é o Uno – Bem, e o
mais baixo é o nível das coisas materiais – Mal.
No que se refere às Formas, a principal diferença entre o
pensamento de Aristóteles e o de Platão consiste na rejeição de
Aristóteles à existência separada das Formas. Para o Estagirita, a
Forma ou Ideia "Humanidade" não existe a não ser de maneira
imanente, ou seja, nos vários seres humanos.
Os seres humanos têm uma semelhança entre si, mas não
têm semelhança com alguma forma separada de todos eles. Não
há a Forma "Humanidade" no mundo das Formas ou Ideias, pois
para ele não há o mundo das Formas separadas. Para relembrar as
diferenças básicas entre o pensamento de Aristóteles e de Platão,
observe o Quadro 1:

Quadro 1 Paralelo entre Platão e Aristóteles


DOUTRINA Platão Aristóteles
Intenta resolver o Intenta resolver o
Gnosiologia
problema da vida. problema do ser.
Realidade objetiva: Não existem modelos
Ideias ou universais
Mundo das Ideias. reais das coisas sensíveis.
Não se contrapõe ao Não se contrapõe ao
O universal particular, mas lhe é particular, mas lhe é
anterior. posterior.
© U1 - Da Filosofia Antiga à Filosofia Medieval 63

DOUTRINA Platão Aristóteles


Mundo transcendente,
Nega a realidade
hiperurânio, onde estão
ontológica do mundo
as ideias nas quais
platônico das Ideias.
O Ser se concentra toda a
Existem somente as
realidade. Aí residem as
substâncias individuais
substâncias imutáveis que
particulares e concretas.
são o objeto da ciência.
Recebe o seu sentido Recebe o seu sentido
  primitivo de cima, da primitivo de baixo, do
Ideia. concreto.
Fonte: Adaptado de CARVALHO, Côn. José Geraldo Vidigal de. Disponível em: <http://www.
consciencia.org/plataoaristotelesvidigal.shtml>. Acesso em: 15 jan. 2010.

Para Platão, se houver seis coisas no mundo que tenham


uma forte semelhança entre si, há que se pensar que necessaria-
mente deve haver uma sétima. Ou seja, haverá uma Forma a partir
da qual as seis coisas foram plasmadas. Já Aristóteles considera
que uma coisa apta para receber a forma de algo deve ser trans-
formada por uma causa movente para de fato receber a tal forma.
Um pedaço de cobre, para receber a forma de esfera, necessita da
atuação de uma causa que lhe dê tal forma. O cobre está poten-
cialmente apto a receber a forma esférica, contudo não há, para
o Estagirita, a necessidade de se postular uma Forma imaterial de
esfera que tenha servido de padrão para que uma esfera de bronze
fosse plasmada.
Analisemos agora um segundo ponto importante de distin-
ção entre Platão e Aristóteles: apesar de o Estagirita ter escrito
longamente a respeito de causas moventes na Física, não há em
seu pensamento nada equivalente ao demiurgo platônico. Para
Aristóteles, a Natureza (physis) é eterna. Sempre haverá cobre, es-
feras de cobre, seres humanos, peixes etc. Isto se depreende do
fato de que a primeira causa movente, que não é movida e, por-
tanto, é "una", está perpetuamente causando as coisas. Os neo-
platônicos seguiram Aristóteles quando afirmaram que o mundo
emana eternamente do Uno. Assim, espelham a relação entre a
ação da primeira causa movente e a existência de todas as coisas
do mundo, em perpétuo movimento.

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64 © História da Filosofia Medieval

Para Aristóteles, a alma é a forma de um corpo que tem vida


em potência. É, portanto, a atualização da vida que o corpo está
apto a ter. A forma, neste caso, vai muito além do formato externo,
pois equivale à estrutura profunda e altamente complexa de um
organismo vivo. A alma não pré-existe a um corpo particular, as-
sim como a forma esférica de uma esfera de bronze não pré-existe
àquela esfera particular. Plantas e animais têm alma porque estão
vivos. A alma humana tem funções vegetativas (como as plantas) e
sensitivas (como os animais), somadas à capacidade intelectual.
Neste último aspecto, parece haver espaço para se pensar
em algum tipo de sobrevivência da alma humana ao perecimento
do corpo. Porém, Aristóteles nunca disse nada de maneira explíci-
ta a este respeito e provavelmente não tinha claro para si se have-
ria ou não necessidade de postular a imortalidade de alguma parte
da alma humana.
Mais tarde, alguns aristotélicos (peripatéticos) deram às
passagens dos livros de Aristóteles a interpretação de que haveria
uma alma única para toda a humanidade. A alma não seria parti-
cular a nenhum ser humano tomado individualmente – cada ser
humano seria receptor dos pensamentos de uma única alma hu-
mana separada dele. Retornaremos a esse tema quando tratarmos
da filosofia árabe.
Aristóteles admitiu também a existência de outras entida-
des, que Platão chamaria de "almas", e que o Estagirita chamou
de "inteligências".
Por fim, a terceira importante distinção entre Platão e Aris-
tóteles encontra-se no campo da Ética. Aristóteles não postulava a
Ideia de Bem e nem qualquer outra Ideia que exercesse tal função.
O Ser tem um caráter constitutivo "bom", mas não existe para o
Estagirita o "Bem Absoluto" no sentido platônico, como entidade
separada das coisas que são boas. Ele considerava a vida boa (eu-
daimonia) uma atividade que está de acordo com as virtudes. Há
muitas virtudes. Por exemplo, coragem e justiça, necessárias para
© U1 - Da Filosofia Antiga à Filosofia Medieval 65

a ação política perfeita. Outras virtudes, como a sabedoria e sapi-


ência, são necessárias para a atividade intelectual perfeita.
Na opinião de Tucídides, todos os seres humanos, em ques-
tões políticas, buscam competição, sucesso e glória. Para ele, por-
tanto, o ser humano seria autocentrado e os princípios morais te-
riam apenas uma pequena influência sobre ele. Sócrates criticaria
abertamente essa concepção. Para Platão, a vida virtuosa é a mais
digna de ser vivida, o que implica a possibilidade de estar na com-
panhia de pessoas amigas. Ele considerava que a função da políti-
ca é assegurar que haja cidades onde este tipo de vida possa ser
vivida.
Contudo, a vida virtuosa no modelo platônico seria acessível
somente a uma pequena minoria. Aristóteles, cuja posição é bem
semelhante à de Platão, em relação a esse aspecto assume uma
postura "biológica", pois pela biologia se nota que a natureza é um
princípio de desenvolvimento na direção de uma meta. O natural
não é o que se vê mais comumente, mas sim o que pode ser visto
ao se contemplarem os espécimes mais maduros e melhor desen-
volvidos. Se alguém quer saber o que é um ser humano por natu-
reza, basta olhar para a aristocracia ateniense em seu auge.
Aristóteles não estava preocupado em mudar o mundo. Se
a Academia era uma espécie de escola para revolucionários, o Li-
ceu era mais como um centro de estudos universitários no sentido
atual. De fato, Aristóteles propunha o caminho "do meio", aconse-
lhando seus ouvintes a evitar polarizações.
No tópico a seguir, você irá relembrar um pouco das escolas
filosóficas que dominaram o cenário filosófico durante o período
alexandrino e romano da filosofia.

8. ESTOICOS, EPICURISTAS, CÍNICOS E CÉTICOS


Materialistas com relação à Física, os estoicos fizeram impor-
tantes contribuições para a Lógica, e, principalmente, para a Epis-

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temologia. No âmbito da Ética, postulavam que a ação virtuosa é o


único bem e que agir pervertidamente é o único mal, avançando,
portanto, no conceito de que é preferível sofrer um mal que causar
um mal a outra pessoa.
Para Aristóteles, a vida virtuosa era de longe o maior bem,
mas os bens materiais, em certa medida, também eram necessá-
rios. Já para os estoicos, os bens materiais não eram necessários de
forma nenhuma. Mesmo um escravo podia viver uma vida virtuo-
sa. Assim, nenhuma ameaça de privação ou promessa de recom-
pensa podia dissuadir um estoico de agir virtuosamente ou forçá-
lo a agir pervertidamente. Isto fez deles formidáveis participantes
da política romana, pois eles enfrentavam generais e imperadores
e não hesitavam nem mesmo diante da morte iminente. Por vezes
até o suicídio lhes parecia lícito, desde que tal ação aparecesse
como a única maneira de agir de maneira virtuosa em determina-
da circunstância.
Sobre os estoicos, ainda se pode acrescentar uma grande
vantagem de sua atitude diante da vida: Sendo "independentes"
(não desejando o que está além das sua possibilidade de controle)
e não necessitando de bens materiais, sua felicidade não podia ser
destruída por algum acidente externo, nem podia ser subtraída em
circunstância nenhuma. O bem seria viver sempre de acordo com
a razão (logos). Para eles, equanimidade seria a principal virtude.
Como todos os seres humanos, os estoicos começaram bus-
cando a autopreservação, mas desenvolveram um sentido pro-
fundo de viver de acordo com a natureza - neste caso, entendido
como "viver de acordo com a razão". Assim entendemos por que
um estoico poderia preferir a morte a agir contra a natureza-razão.
Para eles, a aquisição de bens não é parte do que é bom. O
Bem consiste única e verdadeiramente em buscar todas as coisas
racionalmente. As outras coisas são buscadas não porque sejam
boas, mas porque são preferíveis. Assim, a autopreservação é bus-
cada por ser preferível - e os estoicos esforçavam-se para se man-
ter vivos. Porém, não a qualquer custo.
© U1 - Da Filosofia Antiga à Filosofia Medieval 67

A máxima "agir de acordo com a razão" implicava a possibi-


lidade de fazer concessões e certa tolerância para com as circuns-
tâncias particulares. Contudo, no momento em que ficasse claro
que tais concessões e que a tolerância de determinadas coisas não
levariam a nada de preferível, os estoicos estavam preparados a
fazer grandes sacrifícios, inclusive aceitando perder a própria vida.
Em Política, assim como em Ética, liberdade era o valor principal
para os estoicos.
Na perspectiva estoica, está sempre ao alcance de uma pes-
soa a escolha entre assentir ou não a uma cadeia de pensamentos.
Para eles, o homem sábio nunca assente a algo que seja falso, mas
somente ao que é certo e real. Importantes aspectos da Ética dos
estoicos foram assimilados pelos neoplatônicos e pelos padres da
Igreja Cristã.
Passemos aos epicuristas. Eles tinham uma posição bem cla-
ra de que o bem para os seres humanos era o prazer. Claro que
uma vida de excessos punha em grande risco a possibilidade de
se viver prazerosamente. A moral epicurista, portanto, baseava-se
no autocontrole e na moderação, pois estes seriam os meios para
assegurar uma vida prazerosa para o maior número de pessoas
possível.
Os epicuristas abordavam de maneira tranquilizadora a ques-
tão das divindades. Afirmavam que os seres humanos nada de-
viam temer dos deuses, pois estes estão apenas preocupados com
seus próprios afazeres e não se importam com os seres humanos
ou com as coisas humanas. Para os epicuristas, os seres humanos
devem ter a mesma atitude para com os deuses, ou seja, devem
viver como se os deuses não existissem.
Em relação à ciência, os epicuristas aderiam à abordagem
atomista de Demócrito, cuja principal característica consistia em
considerar que tudo era formado por átomos de movimento osci-
lante, para baixo e para cima, que se tornam erráticos e colidem
uns com os outros, formando aglomerados que duram por algum

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68 © História da Filosofia Medieval

tempo, mas que depois se desfazem. O ser humano seria um des-


tes aglomerados de átomos e a morte seria apenas o desfazer de
um deles, desconsiderando-se a imortalidade da alma. Na verda-
de, a alma também seria um conjunto de átomos que se desfaz
com a morte, e não haveria, assim, razão para temer o que possa
vir a acontecer ao final da vida.
A respeito dos cínicos, não há muito a dizer nesta nossa con-
textualização, exceto que advogavam uma vida voltada apenas
para as necessidades mais básicas de sobrevivência, não se impor-
tando com nada que pudesse ser considerado supérfluo.
Os céticos, cujo nome literalmente quer dizer "aqueles que
buscam", discordavam dos estoicos, para os quais havia clareza so-
bre o que é certo e verdadeiro. Os céticos concordavam com os
estoicos em sua concepção de que somente valeria a pena assentir
ao que fosse de fato certo e verdadeiro. Porém, como não é possí-
vel ao ser humano ter acesso ao certo e verdadeiro, eles advoga-
vam a suspensão do juízo. Ou seja, o não assentimento a qualquer
encadeamento de pensamentos.
Os céticos não se consideravam dogmáticos (no sentido de
impor pressupostos ou afirmações). Diziam que apenas lhes pare-
cia que nada era certo e real, ainda que algumas coisas lhes pare-
cessem ser boas o suficiente para motivar ações.
No tópico a seguir, iremos analisar um pouco da religião que
predominou durante todo o período medieval, ou seja, o cristia-
nismo, a principal manifestação cultural do período em questão.

9. O CRISTIANISMO E O MUNDO GREGO


A relação entre cristianismo e filosofia nem sempre foi de
mútua compreensão. O apóstolo Paulo referiu-se por vezes à opo-
sição dos filósofos (sabedoria dos homens) à noção de ressurrei-
ção dos mortos. Estoicos e epicuristas eram materialistas e pensa-
vam que o corpo se dissolvia com a morte. Platônicos viam a alma
© U1 - Da Filosofia Antiga à Filosofia Medieval 69

como imortal. Os cristãos, porém, acreditavam que o ser humano


era um todo e que este todo é que devia ser ressuscitado.
Há, contudo, inúmeros outros pontos em que o cristianismo
contrasta com as escolas filosóficas. O cristianismo postulava que
uma vida cheia de sentido e até mesmo feliz estava ao alcance de
escravos, pobres, fracos, deficientes. Platão e Aristóteles, ao con-
trário, não qualificavam tais pessoas como aptas a uma vida feliz.
Nesse ponto, o cristianismo tinha semelhanças com o estoi-
cismo. Os estoicos pensavam que uma vida com sentido era a vida
vivida de acordo com a natureza ou razão. Os cristãos, por sua vez,
acreditavam que a vida plena de sentido era aquela vivida de acor-
do com a vontade de Deus. Note: para os estoicos, a natureza-ra-
zão cumpria função equivalente à de "Deus', enquanto os cristãos
pensavam em Deus como pessoa.
Observemos agora a relação de proximidade que é possível
estabelecer entre o epicurismo e o cristianismo. Os epicuristas
pensavam que os deuses não se importavam com os seres huma-
nos. Para os cristãos, porém, Deus importa-se com todas as pesso-
as. À parte dessa diferença fundamental, tanto epicuristas quanto
cristãos pensavam que o ser humano deve viver cultivando a ami-
zade com outras pessoas.
Voltemos à relação cristianismo-estoicismo. Os cristãos en-
tendiam que uma vida com sentido leva à felicidade, se não nesta
vida, ao menos na vida depois da morte. Os estoicos diziam que
até os escravos podiam viver uma vida com sentido, mesmo quan-
do torturados ou crucificados. Porém, para os estoicos, a morte
era o fim: portanto, a felicidade de estar fazendo a coisa certa era
a única que se podia alcançar.
Passemos à percepção do conceito de Deus. Para o cristia-
nismo, Deus é justo e misericordioso. Os gregos, em contraste,
consideravam os deuses egoístas e invejosos. Os epicuristas, como
já vimos, os consideravam totalmente indiferentes aos seres hu-
manos. Os estoicos, por sua vez, tinham algo em comum com os

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70 © História da Filosofia Medieval

cristãos, pois pensavam que Deus exerce influência direta sobre as


partes individuais do universo. Outros filósofos gregos pensavam
que Deus nem ao menos conhece os seres humanos individual-
mente. Já para Aristóteles, o único objeto do pensamento de Deus
era ele mesmo.
Também observamos diferenças importantes entre o cristia-
nismo e o pensamento dos filósofos gregos em questões como o
status do universo e a concepção de História. Para a maioria dos
filósofos gregos, o universo é eterno, sem começo nem fim, e por-
tanto não foi criado por Deus (a exceção seria a concepção platô-
nica, que reservou um espaço para o demiurgo na organização do
mundo e na formação das coisas).
Em geral, os gregos concebiam o tempo como algo cíclico,
cuja configuração presente seria parte de um mecanismo com par-
tes que se alternam, mas que em algum momento futuro retor-
nariam à mesma composição e estado em que já estiveram. Para
os cristãos, porém, Deus criou o mundo em um tempo não muito
distante e vai levá-lo a termo talvez num futuro próximo.
Você acabou de ver nuances do cristianismo que, apesar de
diferentes em muitos aspectos do que admitiam as escolas filosó-
ficas gregas, puderam ao menos ser compreendidas com facilidade
pelos filósofos da época. Houve, porém, partes da doutrina cristã
que se mostraram muito mais complexas e difíceis de serem com-
preendidas. Uma delas foi a doutrina da natureza trinitária de Deus.
Em geral, os gregos consideravam que havia vários deuses.
Platão e Aristóteles, por sua vez, pensavam que havia apenas um
Deus. Os cristãos, no entanto, acreditavam que Deus é uno, porém
que o mesmo Deus uno é uma trindade de elementos distintos.
Pensavam ainda que um desses três elementos se tornou um ser
humano e morreu. Normalmente, os cristãos utilizaram termos da
filosofia de Aristóteles para explicar sua doutrina. Porém, aos filó-
sofos da época, essa questão sempre pareceu demasiado opaca
ou misteriosa.
© U1 - Da Filosofia Antiga à Filosofia Medieval 71

Outro aspecto do cristianismo difícil de ser compreendido


pelos filósofos da época foi tratado pelos padres latinos – o mais
importante deles foi Agostinho de Hipona – que desenvolveram
os conceitos de pecado original, Graça e predestinação. Que eram
noções difíceis de serem reconciliadas com a noção de Misericór-
dia Divina.
Outro ponto da doutrina cristã que pareceu ser de difícil ex-
plicação foi o fato de que a morte de Cristo trouxe salvação para
a humanidade. Uma das abordagens mais usuais era de que pela
morte Jesus ganhou valor diante de Deus e que depois teria trans-
ferido este valor para a humanidade. Porém, como Jesus era Deus,
era complicado explicar como ele poderia ter adquirido valor que
já possuía, e ainda mais difícil seria transferir algo de sua natureza
divina para a humanidade.
Outra corrente filosófica da antiguidade clássica que teve
forte influência no pensamento dos filósofos e teólogos medievais
foi o neoplatonismo de Plotino e Porfírio. Esta escola terá um pa-
pel fundamental na formação intelectual de Santo Agostinho. Va-
mos relembrar um pouco dessa corrente filosófica?

10. O NEOPLATONISMO E SUA INFLUÊNCIA NO PEN-


SAMENTO POSTERIOR
O caráter aberto e a variedade e complexidade dos textos de
Platão deram ensejo a muitas estratégias de interpretação. Dentre
estas, destacamos a "tradicional" e a "cética", que surgiram no in-
terior da própria Academia de Platão.
Como vimos anteriormente, as correntes surgidas a partir
da Filosofia Antiga influenciaram de várias maneiras as tendências
filosóficas das gerações posteriores. Se a interpretação dita "tradi-
cional" remonta aos sucessores imediatos da Academia e tencio-
nou continuar o ambicioso projeto metafísico sugerido em algu-
mas obras platônicas – por exemplo, no Filebo –, a interpretação

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72 © História da Filosofia Medieval

"cética" não demorou a surgir e privilegiou outras passagens dos


textos de Platão intentando fazer dele um cético.
A interpretação "tradicional" ganhou em seguida nova força
e deu origem ao "platonismo médio" e ao neoplatonismo. A este
segundo, interessa-nos estudar aqui com mais detalhes, pois ele
se tornou, por assim dizer, a interpretação dominante do platonis-
mo entre o século 3º EC e os séculos 16 e 17 EC.
O neoplatonismo reforçou o aspecto esotérico, isto é, "para
poucos", dos ensinamentos de Platão - não confundir com exoté-
rico, cujo significado é exatamente o oposto, ou seja, aquilo que
pode ser transmitido ao público sem restrição. Segundo essa in-
terpretação, Platão teria optado por "encobrir" o verdadeiro con-
teúdo de suas doutrinas sob a superfície turva de seus diálogos e
somente revelado plenamente o caráter politicamente "subversi-
vo" de sua filosofia nos "ensinamentos orais", também conhecidos
como "doutrinas não escritas".
O neoplatonismo postulava uma interpretação unitária dos
textos de Platão. Com o decorrer da História da Filosofia, possi-
bilitou aos estudiosos de Aristóteles uma ferramenta adicional e
muito útil para vencer as aparentes discrepâncias dos textos aris-
totélicos, ao utilizar elementos das doutrinas esotéricas de Platão
como chaves de leitura. Tal postura, que postulava a compatibili-
dade entre Platão e Aristóteles, foi muito utilizada na Antiguidade
e na Idade Média.
Um grande representante dessa corrente filosófica na Anti-
guidade foi Plotino. Seu discípulo Porfírio assumia explicitamente
que tencionava demonstrar a compatibilidade entre Platão e Aris-
tóteles e, como veremos, foi muito importante para o surgimento
das discussões medievais em torno do Problema dos Universais.
O neoplatonismo seguiu sendo uma força filosófica bastante
ativa em Atenas, em Roma, em Alexandria, no Egito e em muitos
outros lugares. Vamos estudá-lo mais a fundo?
© U1 - Da Filosofia Antiga à Filosofia Medieval 73

Quando se fala em neoplatonismo, imediatamente vem à


mente daquelas pessoas que já tiveram algum contato com este
termo o nome do filósofo Plotino, que viveu no século 3º EC, bem
como os nomes de Porfírio, Jamblico e Proclo.
Num sentido mais amplo, "neoplatonismo" pode ser usado
para todos aqueles que foram influenciados de alguma manei-
ra pelas ideias daqueles filósofos neoplatônicos. Neste segundo
sentido, pode-se falar de neoplatonismo em Agostinho, Boécio,
Pseudo-Dionísio, João Escoto Erígena, na Filosofia Medieval Árabe
e até mesmo em Marsílio Ficino, Nicolau de Cusa, Giordano Bruno
– apenas para citar alguns exemplos.
O grande proveito que podemos ter ao utilizar esse termo
está na possibilidade de nos referirmos à filosofia mais proeminen-
te no mundo greco-romano do século 3º EC até o século 6º EC. Nos
quatro séculos em que o neoplatonismo, que pode ser considera-
do como a última fase da Filosofia Antiga, dominou o pensamento
filosófico ocidental, fica evidente a relação direta entre essa escola
filosófica e o cristianismo.
Tal relação evoluiu de uma mútua rejeição até uma mútua
influência, de tal maneira que o pensamento cristão e a teologia
cristã no período medieval não podem ser compreendidos em sua
totalidade a menos que se leve em consideração os principais ele-
mentos da Filosofia Neoplatônica.
Para possibilitar uma abordagem mais sistemática, a melhor
estratégia parece ser relembrar o pensamento de Plotino, que é
estudado de maneira mais completa no CRC de História da Filoso-
fia Antiga, para depois fazermos observações mais pontuais sobre
as doutrinas mais específicas de Porfírio, Jamblico e Proclo.
Para que se possa entender melhor o significado do termo e
suas implicações, será interessante primeiro falarmos do contexto
histórico e da significação do termo neoplatonismo.

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74 © História da Filosofia Medieval

Desde a Antiguidade, muitos foram os pensadores que se re-


feriram a si mesmos como "seguidores de Platão". O fato de assim
se considerarem não impedia que tivessem as opiniões mais di-
versas e que muitas vezes fossem de encontro às ideias de outros
seguidores de Platão.
É bem provável que todos eles tivessem ao menos um pouco
de razão, visto que o pensamento de Platão é tão rico e tão cheio
de sutilezas que pode ser desenvolvido em muitas direções distin-
tas. Historicamente, é possível identificar ao menos quatro fases
do platonismo:
1) A Velha Academia, cuja inclinação metafísica dominou a
escola de Platão nas primeiras gerações depois da morte
do grande mestre.
2) A partir do século 3º AEC (Antes da Era Comum), tornou-
se prevalente o ceticismo.
3) No século 1º AEC, a Academia voltou a uma orientação
dogmática, misturando o pensamento platônico com
uma boa dose de estoicismo.
4) O neoplatonismo (à época de Plotino).
Apesar de essa breve apresentação da história do desenvol-
vimento do platonismo sempre se referir à Academia, é evidente
que em vários centros do mundo helenizado o platonismo conti-
nuou ativo e extremamente influente. Na terceira fase, também
conhecida como "Médio Platonismo", há um retorno a muitos dos
princípios da velha Academia, porém com uma importante dife-
rença: os "medioplatônicos" utilizaram amplamente a terminolo-
gia e até mesmo as doutrinas de outras escolas.
Nesse contexto, a mais importante influência foi a dos pe-
ripatéticos. Ali foram criadas as condições para o surgimento do
pensamento de Plotino, algumas vezes acusado de ser apenas um
repetidor do pensamento do filósofo médio-platônico Nemésio.
Mesmo que futuras pesquisas venham a se desenvolver e até
mesmo a mostrar que Plotino foi apenas uma figura de destaque
numa corrente filosófica já completamente desenvolvida (Médio
© U1 - Da Filosofia Antiga à Filosofia Medieval 75

Platonismo), será muito útil considerá-lo como o divisor de águas


da tradição platônica, pois ele não somente deixou uma obra mui-
tíssimo mais vasta que a de seus antecessores, como também sis-
tematizou as doutrinas platônicas de maneira brilhante. Portanto,
a decisão de considerar Plotino como fundador do neoplatonismo
é artificial, porém bastante útil.
É claro que Plotino e seus seguidores nunca se referiram a si
mesmos como "neoplatônicos". Como a quase totalidade dos ter-
mos utilizados para se referir aos períodos da História da Filosofia
– Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea - bem como os ter-
mos para descrever áreas ou tendências filosóficas, os pensadores
hoje chamados de "neoplatônicos" foram caracterizados com um
termo criado por historiadores da arte em tempos recentes. Ploti-
no e seus seguidores consideravam-se simplesmente platônicos.
A razão para inventar um termo novo está ligada ao fato de
que quando os estudos do pensamento de Platão ganharam novo
impulso no período do Renascimento, houve uma grande confu-
são entre as doutrinas do próprio Platão e as de Plotino e seus
seguidores.
O platonismo era basicamente visto apenas pelos olhos dos
pensadores neoplatônicos, com um elemento complicador: pla-
tonismo e cristianismo eram misturados e até confundidos. A so-
lução mais adequada foi estabelecer uma diferenciação entre as
doutrinas de Platão e as de Plotino e seus seguidores.
Contudo, apesar das diferenças que talvez existam entre o
pensamento de Platão e o dos neoplatônicos, não há dúvidas de
que estes últimos eram seus autênticos seguidores. Porém, era
totalmente impossível que os neoplatônicos pudessem ignorar os
desenvolvimentos filosóficos ocorridos nos seis séculos que sepa-
ram Platão de Plotino.
No século 3º EC, era muito improvável que algum pensador
ocidental conseguisse falar de Filosofia sem considerar os elemen-
tos estoicos ou peripatéticos tão amplamente disseminados, que
inclusive haviam se tornado parte da própria linguagem filosófica.

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76 © História da Filosofia Medieval

Não há dúvida de que mesmo os mais fervorosos defensores


do platonismo não hesitariam em utilizar todos os recursos que ti-
vessem ao seu alcance a fim de apresentar suas ideias da maneira
mais convincente possível.
Nesse contexto, é bom lembrar que Aristóteles sempre foi
visto como pertencendo de certo modo à tradição platônica. Al-
guns o criticaram abertamente, mas, a partir de Porfírio, Platão e
Aristóteles foram cada vez mais considerados como concordantes
nas questões essenciais.
Uma diferença importante entre a abordagem platônica e a
abordagem dos neoplatônicos estava na orientação política que
Platão imprimiu à sua filosofia - lembre-se de que dissemos que
a Academia era uma escola para revolucionários políticos. Os ne-
oplatônicos estavam muito mais voltados para dentro de si e para
coisas mais elevadas, e não deram grande importância ao engaja-
mento nas coisas públicas e na política.
Uma razão óbvia para isso era o fato de Platão ter vivido
numa cidade-estado pequena e homogênea, onde o cidadão tinha
como prerrogativa, ou, em certa medida, até como obrigação, par-
ticipar das assembleias. Ali era decidido o destino daquela cidade-
estado. Por sua vez, os neoplatônicos estavam inseridos no contex-
to altamente complexo e heterogêneo do Império Romano.
Portanto, não é de se estranhar que os neoplatônicos não
tivessem o menor entusiasmo pela Ética e pela Filosofia Política de
Platão, mas que se interessassem vivamente pelos aspectos espe-
culativos de seu pensamento.
Platão não foi apenas um pensador original. Ele incorporou
de maneira brilhante as principais contribuições dos pensadores
anteriores e influenciou decisivamente os pensadores que vieram
depois dele. Some-se a isso as contribuições de Aristóteles e dos
estoicos, e é possível dizer que os neoplatônicos não apenas repre-
sentaram o ápice do pensamento platônico, mas o ápice de toda a
herança filosófica da Antiguidade.
© U1 - Da Filosofia Antiga à Filosofia Medieval 77

Historicamente, o neoplatonismo encontra-se numa posição


muito peculiar e até certo ponto controversa. A escola filosófica
neoplatônica foi a que conviveu de maneira mais intensa com o
cristianismo. Como já vimos, análises mais apressadas os conside-
raram como incompatíveis ou confundiram as principais doutrinas
de um com as principais doutrinas de outro.
Em vista da complexidade do contexto geral do neoplatonis-
mo e do fato de que para compreender bem os principais textos
desta escola se faz necessário um conhecimento bastante profun-
do dos filósofos anteriores, seu estudo é muitas vezes deixado de
lado: em sentido estrito, nem pertence à Filosofia Clássica, nem
pertence totalmente à Filosofia Medieval. Contudo, apesar dessa
complexidade, vale a pena dedicar algumas páginas aos principais
filósofos neoplatônicos. Iniciamos com o pensamento de Plotino.

Plotino
Quanto à vida e às obras de Plotino, por sorte há uma excep-
cional fonte de informações: seu discípulo Porfírio, o fenício.
Plotino nasceu em 204/205, provavelmente em Licópolis, no
Egito. Nada se conhece sobre suas origens, mas sabe-se que escre-
veu em grego. Aos 28 anos, começou seus estudos filosóficos com
Amônio de Saccas em Alexandria, onde esteve por cerca de onze
anos. Quando tinha em torno de 40 anos, mudou-se para Roma e
naquela cidade iniciou sua escola filosófica. Ali permaneceu pelo
resto da vida, passando apenas os seus últimos dias em Campânia.
Poucos filósofos da Antiguidade legaram mais obras para a
História do que Plotino. Todas as suas obras conhecidas chegaram
até os dias atuais. Os assuntos tratados por ele apresentam grande
variedade de temas e extensão.
O editor de suas obras, Porfírio, rearranjou os tratados de
acordo com os temas, em seis conjuntos com nove tratados cada.
Por isso ficaram conhecidos como o Tratado das Enéadas (o prefi-
xo enea representa nove).

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78 © História da Filosofia Medieval

Para conseguir chegar a tal formato, Porfírio dividiu alguns


tratados e estabeleceu uma ordem pedagógica de apresentação
destes. É claro que o resultado de tal esforço editorial acaba por
ser um tanto artificial, pois força uma sequência que existe apenas
vagamente e ignora o fato de que alguns tratados pertencem a
duas ou mais classificações distintas.
Os tratados de Plotino foram fruto das discussões que acon-
teciam no interior de sua escola filosófica. Geralmente estavam
inseridos no contexto da exegese de algum importante texto filo-
sófico antigo, usualmente de Platão ou de Aristóteles.
De acordo com Porfírio, Plotino via de regra não falava dire-
tamente do texto lido, mas colocava diante dos ouvintes o pensa-
mento de Amônio Saccas, de quem fora seguidor, àquele respeito.
Quanto à maneira de escrever de Plotino, Porfírio informa que ele
escrevia de maneira compulsiva e que não relia o que tinha escrito
devido a seus problemas visuais. A crer nestas informações, não
é de causar surpresa que o estilo das obras desse autor seja tão
obscuro.
Todavia, a tradição normalmente considerou Plotino como
um pensador sistemático, sendo que seu sistema nunca é revela-
do na totalidade e para inferi-lo é necessário considerar diferentes
partes de seus escritos.
Outra noção usualmente associada a Plotino é a de que cada
um de seus tratados pressupõe todos os outros e todo o sistema,
ou seja, ou a pessoa que lê Plotino compreende a totalidade de sua
filosofia ou não conseguirá entender nenhuma de suas partes.
Contudo, não é muito fácil identificar o referido "sistema
plotiniano". Como quer que seja, há nos tratados de Plotino claros
sinais de sua genialidade, sensibilidade e talento para tratar dos
principais problemas enfrentados pelo neoplatonismo. Vamos ver
alguns exemplos?
© U1 - Da Filosofia Antiga à Filosofia Medieval 79

A metafísica de Plotino
Tanto em Plotino quanto nos demais neoplatônicos, é possí-
vel identificar com clareza a visão de que a realidade está organi-
zada hierarquicamente em níveis ou planos. Plotino chamou esse
planos de hipóstasis, termo que adquiriu um sentido técnico mui-
to forte e que foi inclusive utilizado (em grego) pela teologia cristã
para se referir às Pessoas da Santíssima Trindade. Vejamos os prin-
cipais níveis ou planos da hierarquia plotiniana:

Figura 2 Estrutura hierárquica das hipóstasis de Plotino.

A realidade é estruturada desta maneira porque, em pleno


acordo com a longa tradição filosófica grega, há a necessidade de
explicar o mundo da experiência cotidiana em função de uma na-
tureza superior, mais real e intrínseca a ele. O Uno, o Intelecto e a
Alma são princípios - têm a mesma função explicativa que a arché
tinha para os primeiros pensadores gregos – no sentido tradicional
do termo.
A hierarquia neoplatônica é sobretudo uma hierarquia de
graus de unidade: cada nível ou plano tem um tipo característico
de unidade, sendo que o Uno está no topo como o nível absoluta-
mente simples e superior a tudo.

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80 © História da Filosofia Medieval

Em função do Postulado de Autossuficiência da Causa - ou


seja, uma causa somente se configura se é suficiente para explicar
a existência do que é causado, apontando para uma característica
presente na natureza daquela coisa -, o Uno é causa de tudo que
existe: tudo que existe tem unidade, e o que não tem unidade não
existe.
Portanto, cada nível ou plano da realidade aponta para o ní-
vel superior, que tem uma unidade mais real. Aqui ocorre o mes-
mo que na dialética ascendente de Platão.
A grande contribuição de Plotino em comparação com seus
antecessores está no fato de que ao postular o Uno como o nível
mais superior, ele concorda em parte com aqueles que, como Aris-
tóteles, pensavam haver um primeiro princípio simples.
No entanto, Plotino discorda deles quanto à necessidade de
tal primeiro princípio ser um tipo de intelecto. Ele apontou que
todo intelecto pressupõe um tipo de pluralidade, pois deve haver
no mínimo uma distinção conceitual entre o intelecto e seu objeto
ou seus objetos. Ou seja, o Uno não pode ser intelecto. Intelecto
entra na hierarquia, mas em um nível abaixo do Uno.
Você deve estar se perguntando sobre qual seria a relação
entre os vários níveis ou planos propostos por Plotino. De fato, os
níveis superiores de certa maneira "produzem" os níveis abaixo
deles. Plotino e os neoplatônicos adotaram a terminologia de Pla-
tão para afirmar que os níveis inferiores "participam" dos níveis
superiores.
Dessa maneira, podemos dizer que os níveis hierarquicamen-
te inferiores passam a ter a característica dos níveis superiores.
Os neoplatônicos também seguem Platão no que se refere
às noções de modelo, imitação e imagem. Neste contexto, a no-
vidade do neoplatonismo está no conceito de "emanação". Este
termo se tornou tão popular entre os neoplatônicos que o utilizam
virtualmente em todos os seus textos. Plotino frequentemente se
© U1 - Da Filosofia Antiga à Filosofia Medieval 81

refere à analogia do sol e da luz que este irradia, ou ainda do fogo


e do calor ou de outras semelhantes, para ilustrar a maneira como
uma hipóstasis superior gera uma inferior.
Às vezes Plotino refere-se à metáfora do fluir. Os neoplatô-
nicos posteriores também utilizam o termo processão para des-
crever a emanação da hipóstasis inferior a partir da superior. Con-
tudo, o que todos os neoplatônicos insistem em ressaltar é que a
causa, ou seja, a hipóstasis superior, não sofre qualquer alteração
no processo e nada perde com a emanação.
Os neoplatônicos também afirmam que os níveis inferiores
"tendem" para os níveis superiores. Eles chamaram isto de epis-
trophé, que em Português seria algo como "reversão". Ou seja, o
que é produzido tende à causa não afetada que o produz. Aqui, as
analogias utilizadas anteriormente não parecem ser de grande ser-
ventia, pois a claridade na parede não aponta de maneira inequí-
voca para a fonte luminosa que a produziu - pode ter sido causada
por qualquer fonte luminosa e ainda assim ter a mesma aparência.
Os neoplatônicos, porém, pensavam que algum tipo de re-
versão era necessário para que o processo de emanação fosse
completo. Claro que aqui não se trata de uma questão de suces-
são temporal, pois nem a emanação nem a reversão acontecem no
tempo. Para os neoplatônicos, a emanação estabelece a distinção
entre a hipóstasis superior e a inferior, ao passo que a reversão
estabelece a identificação entre elas, a qual não é completa, pois o
que emanou é claramente outro com relação à sua fonte.
O pensamento de Plotino também apresenta uma reflexão
interessante a respeito do lugar do ser humano na ordem hierár-
quica da realidade. O ser humano é identificado com a parte supe-
rior de sua alma, ou seja, com a razão. A alma humana é distinta
do corpo e sobrevive a ele: ela é essencialmente parte do plano
inteligível e tem sua fonte no Intelecto, do qual depende constan-
temente.

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82 © História da Filosofia Medieval

Estes são apenas alguns dos elementos da visão de Plotino


a respeito do homem, mas bastam para demonstrar o caráter pla-
tônico de sua Antropologia Filosófica. Vamos passar agora ao seu
discípulo mais conhecido?

Porfírio
Porfírio foi um homem de grande cultura e dedicou grande
tempo e esforço para compor sua obra filosófica, impressionante
pela extensão e pela profundidade. A difusão do neoplatonismo
deve muito a ele.
Sabe-se muito pouco sobre a vida de Porfírio, apenas que
ele nasceu em torno de 234 EC, na cidade fenícia de Tiro. Sabe-se
também que ele estudou em Atenas sob a orientação de Longino e
que posteriormente se juntou à escola de Plotino, em Roma.
De sua obra, sabemos que escreveu sobre uma grande varie-
dade de temas, que incluem desde comentários às obras de Platão,
Aristóteles, Teofrasto, Ptolomeu e Plotino, até ensaios filosóficos e
teológicos. Dessa imensa produção, muito pouco restou até hoje.
Todavia, pode-se dizer que o pouco que restou teve uma
enorme influência. Talvez sua principal contribuição tenha sido
permitir uma harmonização entre o pensamento de Platão e o de
Aristóteles. Até Porfírio, parece que os neoplatônicos tinham uma
postura muito crítica com relação a Aristóteles.
Uma das principais críticas era sobre a obra Categorias, que
sempre foi considerada a primeira obra do Órganon – que, por
sua vez, vinha em primeiro lugar no elenco das obras do Estagirita.
Sabe-se que de fato a obra Categorias contém passagens com alto
grau de antiplatonismo, como, por exemplo, a precedência atribu-
ída à substância primeira com relação ao gênero e à espécie - as
substâncias segundas.
A importância de Porfírio nesse contexto foi determinante,
e sua obra, Isagoge, passou a ser sempre colocada antes de Cate-
© U1 - Da Filosofia Antiga à Filosofia Medieval 83

gorias, pois assim se estabelecia o acordo essencial entre Platão e


Aristóteles deste o início dos estudos das obras do Estagirita.
Isso era possível graças à interpretação de Porfírio de que
a obra Categorias na verdade não é uma obra de metafísica em
sentido estrito, mas sim uma obra que trata dos predicáveis. Ou
seja, trata de coisas que podem ser ditas, com sentido, a respeito
de outras coisas.
Assim entendida, a obra Categorias não poderia ser antipla-
tônica, pois trata das expressões com significado que se referem
aos fenômenos sensíveis. Tais expressões têm precedência na or-
dem da experiência, mas não tem precedência ontológica – esta
pertence às Formas ou Ideias Platônicas.
A obra Isagoge – os temas que aborda e as questões das
quais deixa de tratar – foi discutida intensamente no famoso Pro-
blema dos Universais, que estudaremos adiante, na Unidade 3.
Neste momento, apenas é interessante citar as questões que Por-
fírio deixou de abordar:
Antes de mais, no que tange aos gêneros e às espécies, acerca da
questão de saber (1) se são realidades subsistentes em si mesmas
ou se consistem apenas em simples conceitos mentais, (2) ou, ad-
mitindo que sejam realidades subsistentes, se são corpóreas ou in-
corpóreas, e, (3) neste último caso, se são separadas ou se existem
nas coisas sensíveis e dependem delas, eu evitarei em falar, porque
tais questões representam uma pesquisa mais profunda e exigem
uma outra investigação e mais ampla; em compensação, procurarei
mostrar-te, no que diz respeito aos gêneros, às espécies e aos ou-
tros (termos) em questão, como os antigos e, de modo particular,
os Peripatéticos, trataram desses problemas de um ponto de vista
mais lógico (SANTOS. Ver E-Referências).

Como você verá no Tópico 7 da Unidade 2, dedicado a Boé-


cio, tais questões se tornaram irresistíveis para os filósofos poste-
riores.

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84 © História da Filosofia Medieval

Proclo
Proclo é o terceiro importante pensador neoplatônico cuja
grande influência pode ser percebida na posteridade. Ainda na ju-
ventude foi para Atenas estudar Filosofia platônica, e, posterior-
mente, tornou-se diretor da Academia. Foi o pensador neoplatôni-
co com a maior capacidade sistematizadora e escreveu uma vasta
obra.
Em sua obra há tratados sistemáticos de filosofia – por exem-
plo, seu Elementos de teologia – nos quais ele aplica o método
estritamente dedutivo euclidiano. Autores bem posteriores, como
Descartes e Espinosa, vão valer-se da mesma estratégia.
Em seu Elementos de teologia, Proclo começa pelo ponto
mais elevado de sua hierarquia e desce aos outros níveis, cobrin-
do as três primeiras hipóstases, nas quais "teologia" coincide com
metafísica, pois se trata do estudo das primeiras causas. Nas de-
mais obras, ele se dedica sobretudo aos temas platônicos.
As contribuições de Proclo estão mais ligadas à sua capaci-
dade sistematizadora e à sua ampla influência, e não tanto a pos-
síveis contribuições originais para o neoplatonismo. Este não é o
momento de nos aprofundarmos nas particularidades do sistema
de Proclo, um sistema que, em linhas gerais, é muito parecido com
o de Plotino. Contudo, pode-se dizer quem em certo aspecto a Fi-
losofia Medieval muito deve a ele.
Proclo foi um pagão piedoso, e naquela época os pagãos já
eram uma minoria combatida em diversas frentes. Embora nunca
tenha se convertido ao cristianismo, um escritor pouco posterior a
ele, o famoso Pseudo-Dionísio Aeropagita, utilizou o sistema divi-
sado por Proclo para constituir sua "teologia cristã".
Depois de Proclo, a Academia teve um importante mestre:
Damasceno. Este escreveu um livro intitulado Os princípios, no
qual defende um princípio inefável acima do Uno - abordagem
compartilhada por Jâmblico. Foi em 529, durante o tempo em que
© U1 - Da Filosofia Antiga à Filosofia Medieval 85

Damasceno dirigiu a Academia, que o Imperador Justiniano deci-


diu fechar a escola de Platão definitivamente.
O platonismo já era ativo em Alexandria havia muito tempo,
e continuou sua longa história naquela cidade do Egito. Ainda que
o conhecimento que se tem dele seja muito limitado e cheio de
falhas, sabe-se que o contato entre Atenas e Alexandria foi cons-
tante, embora o neoplatonismo de Alexandria fosse muito menos
inclinado a especulações metafísicas e mais voltado para os co-
mentários a Aristóteles.
Em Alexandria, havia também menos fervor na defesa do pa-
ganismo. Eles contavam inclusive com cristãos entre seus filósofos,
dentre os quais se destaca João Filopono, um comentador notável
e crítico de Aristóteles.
As vitórias finais do cristianismo (e, posteriormente, do is-
lamismo) sobre o "Pagão Império Romano" em grande parte da
Europa, do Oriente Médio e da África, pôs um fim ao neoplatonis-
mo em sentido estrito. Porém, muitas ideias neoplatônicas e em
alguns casos até mesmo obras de autores neoplatônicos continua-
ram a circular e foram absorvidas por outras culturas.
No mundo cristão, Plotino e Porfírio influenciaram os padres
da Igreja, tanto os de língua grega quanto os de língua latina. Por
meio de Pseudo-Dionísio, Proclo também teve grande impacto en-
tre os cristãos. A teologia medieval cristã é desta maneira cheia
das cores do neoplatonismo.
Posteriormente, quando os grandes pensadores árabes e ju-
daicos passaram a ser estudados no Ocidente, várias das contribui-
ções filosóficas do neoplatonismo retornaram ao mundo ociden-
tal, como você verá no Tópico 5 da Unidade 3. O neoplatonismo foi
também muito influente no século 17 EC e até mesmo no século
20 EC, em pensadores como, por exemplo, Henri Bergson.

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86 © História da Filosofia Medieval

11. A FILOSOFIA PATRÍSTICA LATINA


Não há dúvidas de que contemporaneamente aos desenvol-
vimentos do neoplatonismo, aquele período também viu a forte
ascensão do cristianismo, sobretudo depois da conversão e do ba-
tismo cristão do Imperador Constantino.
Se no caso de Porfírio houve oposição declarada entre
neoplatonismo e cristianismo, no caso do neoplatonismo de
Alexandria havia cooperação entre ambos. A tal ponto que Fi-
lopono, um cristão, pôde deixar marcar de forma indelével
à filosofia desenvolvida naquela cidade.
Devido às muitas diferenças entre cristianismo, de um lado,
e filosofia e outras formas de sabedoria vindas da Antiguidade, de
outro, surgiu a necessidade de defesa da "idoneidade" da fé cristã.
Isso ocorreu em muitos momentos da História, e especialmente na
passagem da Antiguidade para a Idade Média.
Citemos aqui os exemplos de Tertuliano e Lactâncio, dois re-
presentantes da patrologia latina - ou seja, defensores da fé cristã
que escreveram sua teologia em Latim na Antiguidade. Como vere-
mos, não é porque sua obra é predominantemente teológica que
não se pode encontrar nela importantes concepções filosóficas e
claras indicações de que para eles, como para a grande maioria
dos autores medievais, a filosofia era vista, sobretudo, como uma
atitude perante a vida.
A seguir, você irá se dedicar ao estudo de um dos principais
filósofos da tradição ocidental, trata-se de Santo Agostinho. Va-
mos lá?
© U1 - Da Filosofia Antiga à Filosofia Medieval 87

12. SANTO AGOSTINHO


Biografia ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Na tradição cristã, o mais importante filósofo do início


da Idade Média foi Santo Agostinho, que viveu no Im-
pério Romano entre 354 e 430 depois de Cristo. Uma
de suas obras mais conhecidas é chamada Confissões.
Nesse livro, Agostinho descreve sua própria vida e, nos
três últimos capítulos, apresenta uma famosa interpre-
tação do Gênesis bíblico. No pensamento de Agosti-
nho, encontra-se uma grande influência da filosofia
grega. Antes de se tornar cristão, ele havia estudado
diversos filósofos, principalmente da tradição neopla-
tônica (associada a Platão, com uma visão religiosa
e mística). No entanto, acima dessa influência, existe
Figura 3 Santo Agostinho. principalmente sua fé cristã e seu esforço para atingir
a verdade (Adaptado de UNICAMP, 2010. Ver E-Refe-
rências)
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Falar de Aurélio Agostinho (354-430 EC) em poucas palavras


é tarefa impossível. Além de ter sido reconhecidamente um gran-
de orador e professor de retórica latina por profissão, foi uma das
grandes figuras do cristianismo, tendo produzido obras filosóficas
e teológicas lidas e admiradas até hoje por teólogos, filósofos, es-
tudiosos de literatura, psicólogos etc.
Aqui, não é possível estender muito o estudo de seu pensa-
mento. Analisaremos alguns aspectos do pensamento agostinia-
no, mas fica a recomendação insistente para que todos os inte-
ressados busquem a leitura dos textos do próprio Agostinho, para
se aprofundar e compreender melhor o pensamento desta grande
figura da cultura.
Ainda antes de sua conversão, Agostinho teve contato com o
ceticismo e com o neoplatonismo. Por meio da leitura da exorta-
ção à filosofia no Hortênsio, do romano Cícero, descobriu que a vida
mais digna de ser vivida é aquela que busca constantemente a sabe-
doria, cuja bela luz resplandecente transmite sentido a todo o resto.

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88 © História da Filosofia Medieval

Depois de sua conversão definitiva ao cristianismo, Agos-


tinho integrou elementos de sua formação anterior e produziu
ideias poderosas como a noção de verdade "aprendida da Verdade
Eterna", que permite compreender as coisas verdadeiras experi-
mentadas no cotidiano. Há claros pontos de interseção entre essa
abordagem e o neoplatonismo de Plotino, que postula a noção de
verdade universal.
Outro ponto relevante do pensamento agostiniano é sua
abordagem do problema do mal. Devido às bases de seu pensa-
mento, Agostinho pôde desenvolver uma noção de mal como sen-
do a sobreposição de um bem menor a um bem maior. Portanto, o
"mal moral" aparece como a escolha de um bem menor em detri-
mento de um bem maior. Por exemplo: ao preferir as riquezas ma-
teriais aos bens espirituais, a pessoa abre-se ao mal, pois escolheu
um bem menor e descuidou dos bens maiores.
O que está mais próximo do Supremo Bem é sempre melhor
do que o que se encontra mais distante d'Ele. Essa abordagem re-
futou de maneira poderosa o maniqueísmo, que postulava que ha-
via dois princípios igualmente poderosos, um princípio bom e um
mau. Agostinho negou a existência ao Mal metafísico e ao mal.
Outro ponto importante para o desenvolvimento da Filosofia
Medieval que teve origem no pensamento agostiniano é o inte-
resse pela cognição humana, tanto como meio para estabelecer a
possibilidade epistemológica da teologia quanto como meio para
conhecer e compreender algo a respeito de Deus.
Em Contra acadêmicos, Agostinho propõe uma resposta
muito elaborada e consistente aos argumentos céticos dos filóso-
fos da Academia de Platão e, desta maneira, propicia a base para a
factibilidade de toda investigação racional acerca da verdade. Pos-
teriormente, em De trinitate, Agostinho procura entender a mente
humana não apenas em si mesma, mas também na condição de
modelo a partir do qual se pode chegar à verdade e a Deus.
© U1 - Da Filosofia Antiga à Filosofia Medieval 89

O problema do Mal e a questão do Tempo em Agostinho


Aqui será interessante compreendermos um pouco mais so-
bre o problema do mal e sobre a solução apresentada por Agosti-
nho para esta questão. Também será útil entendermos a discussão
a respeito do Tempo proposta pelo mesmo autor.
A primeira questão a ser levada em conta no contexto do
problema do mal é a evidente diferença entre visão pré-filosófica
e visão filosófica. Principalmente considerando a cosmologia que
surge da relação entre a narrativa mítica e a abordagem filosófica,
que você conheceu nos estudos sobre as origens da Filosofia no
CRC de História da Filosofia Antiga.
A segunda questão importante é relativa à exigência filosó-
fica de afirmar a necessidade da livre escolha da pessoa para que
sejam possíveis a imputabilidade dos erros ou a valorização das
boas ações.
A primeira questão permite avaliar o caráter genuinamente
filosófico do pensamento de Agostinho. O contraste entre a nar-
rativa mítica e a abordagem filosófica parece não deixar dúvidas
sobre o que pertence ao campo do mítico e o que pertence ao
campo do filosófico.
Que fique claro: aqui não iremos estudar as narrativas que
falam de deuses e portentos naturais utilizadas pelos filósofos com
a intenção de explicar doutrinas filosóficas. Seria mais ou menos
como a distinção que há entre a criança que produz um desenho
de sua família e um psicólogo que "reproduz" um desenho infantil
sobre a família com o intuito de explicar alguma noção de uma
determinada corrente de psicologia. Pois bem! A narrativa mítica
não se importava com contradições nem com comparações entre
seres ou coisas que nada tinham de semelhante.
Tomemos dois personagens mitológicos como exemplo: Sí-
sifo, condenado a transportar pedras ao topo de uma pilha que,
ao concluída, desaba e faz com que o trabalho tenha de se reini-

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90 © História da Filosofia Medieval

ciar, eternamente. E Prometeu, titã que ousou roubar o segredo


do fogo dos deuses e o deu os homens. Foi acorrentado por Zeus a
um rochedo, e condenado a ter seu fígado eternamente devorado
por corvos - o fígado reconstituía-se todos os dias.
Quando se referia ao mito de Sísifo para falar do caráter ár-
duo e por vezes inútil do trabalho extenuante, ou ao mito do Pro-
meteu, que, assim como Sísifo, está preso a um destino estático, a
narrativa mítica não se importava com o fato de que o fígado das
pessoas quase nunca se regenera completamente da noite para
o dia e nem com o fato de que o trabalho produz não apenas o
sustento para o corpo, mas abre perspectivas para ganhos futuros.
Portanto, não é possível pensar os seres humanos como sendo to-
dos "sísifos", nem se pode pensar o trabalho como sendo sempre
extremamente extenuante e inglório.
Consideremos a abordagem filosófica do ser humano como
homo faber, isto é, a definição do ser humano como um ser que
utiliza sua criatividade e sua engenhosidade para transformar o
mundo de maneira a obter os melhores frutos no presente e a faci-
litar sua vida futura. Ela não somente se aplica aos seres humanos
em geral, também engloba diferentes facetas do trabalho e permi-
te ver sentido até nos esforços mais extenuantes.
Feita esta reflexão, pode-se avaliar o pensamento agostinia-
no do ponto de vista de seu rigor filosófico. Os frutos de tal aná-
lise trariam nova luz para a questão da assimilação de categorias
filosóficas por parte de Agostinho. Paralelamente, temos o fato de
ele ter sido declarado "santo" pela Igreja Católica, que já é prova
suficiente de sua completa adesão ao cristianismo.
Nesse contexto, duas noções genuinamente filosóficas são a
unicidade de Deus e sua decorrente consistência ou constância. A
filosofia na Antiguidade caminhou lentamente para a constatação
de que um dos atributos do Ser devia ser a unicidade, ou seja, de
que o Ser teria em sua essência um caráter constitutivo de "uno".
© U1 - Da Filosofia Antiga à Filosofia Medieval 91

Não é o momento de aprofundar essa discussão, mas você


deve se lembrar de seus estudos de Aristóteles, nos quais viu que
a metafísica aristotélica se refere ao Ser como sendo uno, belo,
bom e verdadeiro. Tomás de Aquino, que estudaremos na Unida-
de 3 deste CRC, demonstrou com maestria que o que Aristóteles
diz sobre o Ser se aplica, sobretudo, a Deus.
Desta maneira, a noção filosófica de que Deus é "uno" e,
portanto, "bom", deve servir como balizamento para outras no-
ções filosóficas. Deus, sendo bom, não pode ser a origem do Mal,
pois no caso da divindade não há ação acidental, não há descuido
ou ignorância. Deve haver uma maneira de abordar filosoficamen-
te o Mal sem atribuir-lhe status de criatura, se admitimos que ele
não foi criado por Deus.
Agostinho distinguiu o mal em três tipos: o Mal metafísi-
co (que aqui chamamos de "Mal"), o mal físico (deformidades e
deformações) e o mal moral (más ações). Tanto o Mal metafísico
quanto o mal físico, se existirem, foram criados em algum momen-
to. Deus é "uno" e "bom", o que significa que nem o Mal e nem
as deformidades ou deformações podem ser eternos e nem terem
sua origem em Deus. A conclusão de Agostinho é que somente o
mal moral pode existir no mundo; os outros dois tipos não exis-
tem. Aqui sua preocupação genuinamente filosófica fica evidente,
pois ele segue uma lógica irrepreensível e se mantém em sintonia
com as tradições filosóficas mais consistentes.
Ao mesmo tempo que recusa a existência do mal metafísico
e do mal físico, Agostinho postula que a origem do mal moral não
está em Deus. Pois Deus não pode originar qualquer tipo de mal.
Agostinho atribuiu o mal moral à livre escolha da pessoa que prati-
ca más ações. Para ser consistente e não incorrer no erro de dizer
que as más ações causam, originam, são causadas ou decorrem de
coisas más, Agostinho diz que as más ações são aquelas que erram
o alvo. Ou seja, que não buscam o maior bem possível.

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92 © História da Filosofia Medieval

Assim, a distinção feita por Agostinho para entender o mal


moral não é entre bem (Bem) e mal (Mal), mas entre encolher
o Bem maior e escolher algum dos bens menores. A ação boa é
aquela que visa o maior bem possível e as más ações são todas
aquelas que visam bens menores quando há um bem maior que
poderia ser almejado. Novamente fica evidente que Agostinho está
em sintonia com as principais doutrinas filosóficas da Antiguidade,
pois preserva a liberdade de escolha do ser humano e garante a
possibilidade de imputação de culpa pelas más ações àqueles que
as praticam.
Agostinho também está em plena sintonia com as doutrinas
centrais do cristianismo. Infelizmente, aqui não há espaço para ex-
plicar em detalhes este último ponto. Porém, cabe lembrar o que
diz Étienne Gilson (2006, p. 367-368) a respeito da liberdade e do
livre arbítrio:
Que o homem é livre é uma afirmação tão antiga quanto o próprio
pensamento cristão. O cristianismo não inventou a idéia de liber-
dade; se preciso, ele até se defenderia da acusação de tê-la criado.
Desde o século II, Irineu nos lembra que, se a Escritura considerou
necessário "manifestar" a liberdade, foi entretanto uma lei tão an-
tiga quanto o próprio homem que Deus promulgou ao revelá-la:
veterem legem libertatis hominis manifestavit [tradução: 'manifes-
tou a lei antiga da liberdade do homem']. A insistência com a qual
os Padres da Igreja ressaltam a importância dessa idéia deve no
entanto reter inicialmente nossa atenção, assim como a natureza
muito especial dos termos com que eles o fizeram.
Ao criar o homem, Deus lhe prescreveu algumas leis, mas deixou-o
senhor para prescrever a sua, no sentido de que a lei divina não
exerce nenhum constrangimento sobre a vontade do homem. Po-
demos dizer que, desde o despertar do pensamento cristão, uma
série de termos filosóficos cujas equivalências são instrutivas por si
próprias, recebe nele direito de cidadania. Deus criou o homem do-
tado de uma alma racional e de uma vontade, isto é, com um poder
de escolher análogo ao dos anjos, já que os homens, como os an-
jos, são seres dotados de razão. Fica estabelecido, portanto, desde
esse momento, que a liberdade é uma ausência de constrangimen-
to, inclusive em relação à lei divina; que ela pertence ao homem
pelo fato de ele ser racional e se exprimir pelo poder de escolha
que sua vontade possui: líber, rationalis, potestas electionis [tra-
dução: 'livre', 'racional', 'poder de escolha'] são termos que não se
© U1 - Da Filosofia Antiga à Filosofia Medieval 93

separarão mais desde então. Não se separarão tampouco da tese


central que os fez serem aceitos pelos pensadores cristãos e, por
assim dizer, impôs seu uso. Deus criou o homem livre, porque lhe
deixou a responsabilidade do seu fim último. Cabe a ele escolher
entre o caminho que leva à felicidade e o caminho que leva a uma
miséria eterna; o homem é um lutador, que nem tem que contar
apenas com suas próprias forças, mas que deve contar com elas;
senhor de si, dotado de uma verdadeira independência... colabora
eficientemente para o seu destino.

Também sobre a relação entre a solução agostiniana para o


problema do mal e sobre a imputabilidade, observados pelo pris-
ma cristão, vale a pena rever o que Nair de Assis Oliveira (1995)
escreve nos itens "b" e "c" da introdução a O livre arbítrio:
b) O mal moral é o pecado. Esse depende de nossa má vontade. E
a má vontade não tem "causa eficiente" [não tem origem divina,
portanto], e sim muito mais "causa deficiente". Por sua natureza,
a vontade deveria tender para o Bem supremo. Mas, como exis-
tem muitos bens criados e finitos, a vontade pode vir a tender
a eles e, subvertendo a ordem hierárquica, preferir a criatura a
Deus, optando por bens inferiores, em vez dos bens superiores.
Sendo assim, o mal deriva do fato de que não há um único bem, e
sim muitos bens, consistindo precisamente o pecado na escolha
incorreta entre esses bens. O mal moral, portanto, é "adversio
a Dei" e "conversio ad criaturam". O fato de se ter recebido de
Deus uma vontade livre é para nós grande bem. O mal é o mau
uso desse grande bem.
c) O mal físico, como as doenças, os sofrimentos e a morte, tem
significado bem preciso para quem reflete na fé: é a consequên-
cia do pecado original, ou seja, é consequência do mal moral. A
corrupção do corpo que pesa sobre a alma não é a causa, mas a
pena do primeiro pecado (AGOSTINHO, 1995, p. 16-17).

Agostinho produziu uma abordagem altamente sofisticada


do tempo e da eternidade nas Confissões. Tal visão é tão brilhante
que pode ser considerada, sem qualquer sombra de dúvida, uma
das mais brilhantes construções teóricas acerca da eternidade e
do tempo na História da Filosofia. Ainda hoje a visão agostiniana
encontra apreço entre os estudiosos da ciência moderna.
O filósofo africano começa suas investigações observando
que o tempo é assunto muito familiar. Quando alguém fala do
tempo, compreende-se claramente o que se está dizendo. Tanto

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94 © História da Filosofia Medieval

quem fala dele quanto quem ouve outros falarem sobre este as-
sunto (Confissões, XI, 17). Entretanto, quando se deixa o senso co-
mum de lado e se busca uma explicação mais elaborada do ponto
de vista filosófico ou científico, há imediatamente a percepção de
que se está diante de um "problema muito complexo", um
implicatissimum aenigma (Confissões, XI, 22, 28).
O enigma proposto pelo tempo não pode ser facilmente des-
vendado pela razão e por isso mesmo é descrito por Agostinho
como complexo. Isto decorre da natureza do próprio tempo e tam-
bém em decorrência das insuficiências da linguagem humana. O
enigma é tal que, diante da pergunta ontológica "O que é, por con-
seguinte, o tempo?" (Confissões, XI, 14, 17), Agostinho não se en-
vergonha de responder: "Se ninguém me perguntar, eu sei; porém,
se quiser explicar a quem me perguntar, já não sei" (Confissões,
XI). Se Agostinho reconhece seu fascínio e perplexidade diante da
questão, por outro lado ele não detém e nem foge do problema e
ousa uma resposta.
A resposta agostiniana ao problema do tempo implica dois
níveis distintos:
1) Há a necessidade de enfrentar com disposição e criativi-
dade uma discussão acerca da distinção entre tempo e
eternidade. Essa será uma boa oportunidade para Agos-
tinho demonstrar seu rompimento com os maniqueus e,
indiretamente, com alguns autores da filosofia grega an-
tiga que eram claramente refratários à noção de criação
e da consequente noção de linearidade do tempo.
2) A abordagem agostiniana volta-se para a natureza on-
tológica do tempo, ou seja, para a pergunta nos moldes
socrático-platônicos: "o que é o tempo"?
A natureza ontológica do tempo é analisada por Agostinho
sob dois aspectos: um aspecto visa o tempo do ponto de vista sub-
jetivo. Analisa a categoria "tempo", isto é, o tempo qualitativo ou
da consciência, voltando-se para a interioridade humana, para a
alma, e nesta, de maneira específica, para a memória.
© U1 - Da Filosofia Antiga à Filosofia Medieval 95

A memória compreende o tempo em sua condição de passa-


do, presente e futuro, com a primazia do presente. A seguir, Agos-
tinho expande sua reflexão de tal maneira que há até mesmo a
abertura para a possibilidade de se abordar o tempo do ponto de
vista objetivo, ou seja, o tempo quantitativo, em seu caráter de
"algo criado", e que está obviamente fora do homem, mas que
deixa marcas indeléveis na alma humana.
Para Agostinho, o grande e complexo enigma do tempo é, ao
mesmo tempo, interior ao ser humano, que é "portador do tem-
po", e excedentemente exterior, pois este está "imerso no tempo",
que lhe é transcendente.

13. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS


Sugerimos que você procure responder, discutir e comentar
as questões a seguir, que tratam da temática desenvolvida nesta
unidade. Ou seja, da transição da Filosofia Clássica greco-romana
para a Filosofia Medieval e dos principais elementos que caracteri-
zaram a novidade filosófica do cristianismo.
A autoavaliação pode ser uma ferramenta importante para
você testar o seu desempenho. Se você encontrar dificuldades em
responder a essas questões, procure revisar os conteúdos estuda-
dos para sanar as suas dúvidas. Esse é o momento ideal para que
você faça uma revisão desta unidade. Lembre-se de que, na Edu-
cação a Distância, a construção do conhecimento ocorre de forma
cooperativa e colaborativa; compartilhe, portanto, as suas desco-
bertas com os seus colegas.
Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu
desempenho no estudo desta unidade:
1) Considerando os componentes do cristianismo que não estavam presentes
na Filosofia Clássica antiga, e com base no que estudou nesta unidade, co-
mente sobre quais seriam as implicações filosóficas do antropocentrismo e
da noção de providência individual para a filosofia medieval.

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96 © História da Filosofia Medieval

2) Exponha, de forma clara, em que medida a conversão do Imperador Cons-


tantino Magno se tornou uma oportunidade para a reflexão filosófica me-
dieval.

3) Faça uma lista sobre os pontos centrais da reflexão de Agostinho de Hipona


sobre o mal.

4) Em que medida se pode dizer que o tema do tempo e da eternidade foi


tratado com brilhantismo por Agostinho de Hipona? Atente para as inova-
ções de Agostinho sobre o tema, aproveitando para avaliar se seu aprendi-
zado lhe permite dissertar com propriedade sobre o assunto. Esta é uma das
questões fundamentais da Filosofia Medieval e deve ficar bem clara em sua
resposta a posição do filósofo.

14. CONSIDERAÇÕES
Como você viu nesta unidade, o cristianismo significou uma
novidade do ponto de vista filosófico, pois introduziu doutrinas
que não estavam presentes na Filosofia Clássica, tais como a res-
ponsabilidade individual pelos próprios atos e a criação ex nihilo,
ou seja, a partir do nada.
Esse também foi um momento necessário de reflexão sobre
a História e sobre o lugar da pessoa humana no universo. No mo-
mento em que Constantino Magno se converteu e fez que o Impé-
rio Romano passasse a ter o cristianismo como religião oficial, as
doutrinas cristãs ganharam o status de doutrinas centrais para a
vida das pessoas em todo o Império Romano.
O cristianismo entrou em diálogo direto com as outras tra-
dições filosóficas, rejeitando alguns pontos e recuperando outros
– principalmente do estoicismo e do neoplatonismo. A principal
figura naquele contexto foi Agostinho de Hipona, pois ele não
somente foi o principal expoente da patrística, como também in-
fluenciou diretamente as gerações posteriores de filósofos e teó-
logos.
Houve uma grande alteração do panorama em decorrência
da redescoberta das principais obras de Aristóteles, a partir do sé-
culo 12 EC. A influência de Agostinho diminuiu com o crescimento
© U1 - Da Filosofia Antiga à Filosofia Medieval 97

da influência de Aristóteles. Porém, o estudo de Agostinho não


cessou, e continuou sendo retomado muitas e muitas vezes.
Na próxima unidade, você verá que a Filosofia Medieval tam-
bém estava ligada às formas de ensino e de transmissão de dou-
trinas.

15. E-REFERÊNCIAS

Lista de figuras
Figura 1 Platão e Aristóteles. Disponível em: <http://www.consciencia.org/
bancodeimagens/displayimage-476.html>. Acesso em: 08 jan. 2010.
Figura 3 Santo Agostinho. Disponível em: <http://www.snpcultura.org/pedras_
angulares_santo_agostinho_2.html>. Acesso em: 16 dez. 2009.

Lista de quadros
Quadro 1 Paralelo entre Platão e Aristóteles. Disponível em: <http://www.consciencia.
org/plataoaristotelesvidigal.shtml>. Acesso em: 15 jan. 2010.

Sites pesquisados
DANTAS, L. G., CAVALCANTE JUNIOR, F. S. A autobiografia agostiniana na obra A vida
feliz. Disponível em: <http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a15/dancava01.htm>.
Acesso em: 15 dez. 2009.
HIRSCHBERGER, J. Os neoplatônicos e o Neoplatonismo - História da Filosofia Antiga.
Disponível em: <http://www.consciencia.org/os-neoplatonicos-e-o-neoplatonismo-
historia-da-filosofia-antiga>. Acesso em: 15 dez. 2009.
PLATÃO. O mito da caverna. Disponível em: <http://www.historianet.com.br/conteudo/
default.aspx?codigo=796>. Acesso em: 31 jan. 2011.
PACHECO, M. C. M. A Filosofia Medieval e a Questão da  Interpretação – A palavra e
os Textos - entre a Letra e o Espírito. Disponível em: <http://www.hottopos.com.br/
mirand9/candid2.htm>. Acesso em: 15 dez. 2009.
SANTOS, B. S. Antologia de textos (Porfírio, Boécio, Ockham). Disponível em: <http://
www.bentosilvasantos.com/cms/index.php?download=OS%20UNIVERSAIS%20-%20
Porfirio,%20Boecio%20e%20Ockham.pdf>. Acesso em: 06 out. 2010.
UNICAMP. Santo Agostinho e a interpretação do gênesis. Disponível em: <http://www.ifi.
unicamp.br/~ghtc/Universo/cap05.html>. Acesso em: 15 jan. 2010
Universidade Federal de São Carlos. Filosofia Helênico Romana. Disponível em: <http://
www.cfh.ufsc.br/~simpozio/novo/2216y160.htm#TopOfPage>. Acesso em: 15 dez.
2009.

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98 © História da Filosofia Medieval

16. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


AGOSTINHO, Santo. Livre-arbítrio. São Paulo: Paulus, 1995.
______. Confissões. São Paulo: Paulus, 1997.
DE LIBERA, A. A filosofia medieval. São Paulo: Loyola, 1998.
FRANGIOTTI, R. Padres apostólicos. São Paulo: Paulus, 1995.
GILSON, E. O espírito da filosofia medieval. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
NASCIMENTO, C. A. R. do. O que é filosofia medieval. São Paulo: Brasiliense, 1992.
REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia: Patrística e Escolástica. São Paulo: Paulus,
2005. v. 2.
EAD
Ambiente Cultural
e Educacional
na Idade Média
2
1. OBJETIVOS
• A nalisar o contexto histórico e educacional em que se de-
senvolveu a escolástica latina.
• Compreender a relevância histórica dos principais expo-
entes do pensamento daquele período.

2. CONTEÚDOS
• E nsino e pesquisa nas universidades do século 13 EC.
• Boécio e as traduções dos filósofos clássicos para o La-
tim.
• João Escoto Erígena e Anselmo de Cantuária.
• Pedro Abelardo e Pedro Lombardo.
100 © História da Filosofia Medieval

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que
você leia as orientações a seguir:
1) Quando for realizar seus estudos, escolha um ambiente
que possa lhe proporcionar concentração, ou seja, um
lugar calmo, arejado e estimulante. Esteja certo de que
o ambiente contribuirá de maneira significativa para sua
aprendizagem.
2) O ambiente cultural da Idade Média proporcionou o
surgimento de grandes universidades e catedrais mo-
numentais. Antes de iniciarmos o estudo desta unidade,
leia o pequeno texto a seguir, sobre o impacto causado
pela magnificência da arquitetura gótica:

Chartres
As maravilhosas catedrais góticas são,
sem dúvida, alguns dos mais belos frutos
oferecidos pelo Cristianismo à civilização.
Nascida num período turbulento, mas tam-
bém extremamente fecundo, a arte dos go-
dos difundiu-se da Europa para o mundo
inteiro. Seus idealizadores tinham como
objetivo levar os homens até o seu Criador,
proporcionando-lhes, por meio do esplen-
dor, da beleza e mesmo da magnificência,
a possibilidade de experimentar uma for-
ma de contato com Ele. (...) Podemos encontrar em quase toda a Europa bons
exemplares dessas obras-primas de engenharia e arte. Na França, por exemplo,
há algumas de rara beleza. Partindo de Paris rumo a sudoeste, antes de percor-
rer noventa quilômetros já contemplaremos à distância as duas torres altaneiras
da catedral de Chartres, distintas e belas, elevando-se graciosamente em meio
aos ondulantes campos de trigo (imagem e texto disponíveis em: <http://www.
arautos.org/view/show/4480-a-catedral-de-chartres>. Acesso em: 18 jan. 2010).

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Como você viu na Unidade 1, a Filosofia Medieval, em seus
momentos iniciais (ou seja, no período da patrística), esteve mais
voltada para a apologética - defesa das doutrinas cristãs essenciais
- do que para a elaboração sistemática do pensamento. Isto de-
© U2 - Ambiente Cultural e Educacional na Idade Média 101

correu do caráter de novidade do cristianismo, pois várias de suas


doutrinas centrais não tiveram um equivalente exato na Filosofia
Clássica.
O cristianismo postula a criação ex nihilo, a responsabilidade
individual humana, a centralidade do ser humano entre as cria-
turas, a imortalidade da alma humana individual, dentre outras
doutrinas. Como tudo isso era novidade no ambiente cultural da
Antiguidade, a primeira tarefa dos filósofos cristãos foi, naquele
momento, defender a fé cristã e explicar que tais doutrinas não
estavam em desacordo completo com a razão.
Você também notou que a figura de Agostinho se destacou
entre os expoentes da patrística. Ele não somente tinha formação
e genialidade ímpares, mas também passou por um processo de
conversão. Ou seja, num primeiro momento, estudou e aprofun-
dou-se nas visões filosóficas mais em voga e mais bem-sucedidas
de sua época.
Nenhuma daquelas visões satisfez seu anseio de um estilo
de vida pleno de sentido, o que o levou a abraçar uma alternativa
mais viável para suas ambições pessoais e intelectuais, o cristia-
nismo. Agostinho é, neste sentido, um autor extremamente inte-
ressante para estudarmos quando queremos entender a relação
entre cristianismo e Filosofia Clássica.
Em Agostinho, o cristianismo de fato encontra-se com o pen-
samento clássico. Apesar de haver também elementos estoicos e
até céticos em seu pensamento, é a influência do neoplatonismo
que ali se destaca. Em outros momentos de nosso estudo, você
notará que o neoplatonismo também influenciou decisivamente
autores posteriores.
Nesta unidade você verá que a Filosofia Medieval se desen-
volveu num contexto em que a relação entre razão e fé era tema
importante e em que a maneira de ver a auctoritas era auxílio fun-
damental para evitar os erros doutrinários e para estimular os de-
bates. O recurso à auctoritas estabelecia os parâmetros e balizava
as discussões.

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102 © História da Filosofia Medieval

Você verá também que para compreender as principais ca-


racterísticas da Filosofia Medieval, principalmente nos textos e
doutrinas medievais que chegaram aos dias atuais, é necessário
entender o ambiente cultural e educacional da Idade Média.
Após estarem bem contextualizadas, as principais figuras
do pensamento daquele período ganharão nova luz. Pensadores
como Boécio, Anselmo de Cantuária, Pedro Abelardo e Pedro Lom-
bardo se destacaram naquele contexto e você logo verá o porquê.
Devemos observar, também, a maneira muito particular
como os filósofos e teólogos medievais entendiam linguagem
e lógica. Não por acaso, várias das mais célebres discussões da-
quele período estão relacionadas com questões ligadas à lógica,
ou à decisão sobre o vocabulário técnico mais apropriado para se
fazer filosofia e teologia. Nesta unidade, você verá a importância
de Boécio para este aspecto das especulações filosóficas da Idade
Média.

5. UMA VISÃO MEDIEVAL DE LÓGICA E LINGUAGEM


É muito difícil não exagerar a importância que discussões
nos âmbitos da linguagem e da lógica tiveram para a formação do
pensamento na Idade Média. Não está aqui em questão se as dis-
cussões levantadas por estudiosos medievais de Gramática e de
Lógica têm valor em si mesmas ou se esses temas apenas pode-
riam ser estudados com algum sentido por estudiosos de outras
áreas do saber.
Tais discussões suscitavam interesse. E, evidentemente, ao
abordar as temáticas próprias de suas áreas, os gramáticos e ló-
gicos medievais desenvolveram um vocabulário técnico, técnicas
de análise sofisticadas e estratégias de argumentação lógica que
tiveram influência profunda e duradoura na maneira como todo e
qualquer estudante medieval era educado nas sete artes liberais.
© U2 - Ambiente Cultural e Educacional na Idade Média 103

A educação dos estudantes medievais nas artes liberais reve-


lava dois importantes aspectos constitutivos da filosofia produzida
naquele período. Por um lado, havia a ênfase no estudo dos textos
vindos das auctoritates. Os esforços para interpretar e reconciliar
tais textos foi responsável por inúmeros desenvolvimentos da Fi-
losofia Medieval.
Por outro lado, o método de ensino, que dava destaque mui-
to grande à oralidade, influenciou diretamente a maneira como
os textos escritos por muitos filósofos do período chegaram até
os dias de hoje. Você verá adiante quais são as implicações destes
fatos.
Mas qual seria a diferença básica entre a abordagem con-
temporânea e a abordagem medieval de lógica e linguagem?
A diferença principal é que, para os medievais, lógica e lin-
guagem têm primordialmente uma orientação cognitiva, ou seja,
a linguagem teria sido criada para expressar a verdade. A lógica,
para permitir a passagem segura de uma verdade à outra. Isto
obviamente não representa a concepção contemporânea desses
conceitos.
As tensões e implicações da abordagem medieval são clara-
mente perceptíveis, por exemplo, em Agostinho e em Tomás de
Aquino. Agostinho desconfiava da habilidade humana para expres-
sar verdades por intermédio do discurso. Como sua profissão era a
retórica, ele estava muito atento para as múltiplas maneiras como
a linguagem poderia ser usada, principalmente com relação aos
riscos que ela trazia.
Agostinho também apontou a necessidade de se abandonar
o uso corriqueiro da linguagem para que alguém possa aprender
diretamente do Cristo – Mestre Interior e a Palavra Divina.
Tomás era muito mais otimista com relação à utilidade da
linguagem humana. Ele apontava para a função própria da lingua-
gem de dar a conhecer a verdade durante o processo de interme-
diação do conhecimento de nossos conceitos.

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104 © História da Filosofia Medieval

Segundo ele, o discurso humano é necessário para a execu-


ção das tarefas sociais, tais como advertir sobre o perigo, apontar
para a utilidade das coisas e orientar sobre o justo e o injusto. Isso
porque, além de tudo, a sociedade humana está baseada na habi-
lidade de dizer a verdade.
Para Tomás, a noção primária de linguagem era a de um sis-
tema racional autogovernado que poderia ser estudado à parte do
contexto e da intenção do falante. Bastaria, portanto, concentrar-
se nas proposições como unidades linguísticas que comunicam a
informação necessária para um conhecimento hierarquicamente
organizado, que os medievais chamavam de scientia.
Essa visão implica que sentenças que tenham significado não
podem se desviar sintática ou semanticamente da verdade e que
seus componentes correspondam exatamente aos conceitos do
falante, cujo objetivo é comunicar a verdade.
No caso da lógica, todos os medievais estavam atentos para
a relação entre a partir de uma verdade conhecida e chegar a uma
verdade ainda não conhecida. Apesar de também observarem as-
pectos formais, os medievais jamais pensaram que o estudo da
lógica consistisse exclusivamente no estudo de sistemas formais.
Isso implica que estudar lógica no contexto medieval não
poderia depender, como no caso da lógica contemporânea, dos
aspectos particulares de um sistema. Dependeria da relação com a
verdade permanente, que não é dependente do ser humano, mas
deriva da ordem racional das coisas instituídas pela Divindade.
Obviamente, isso não significa que todo raciocínio era ne-
cessariamente correto, pois ainda ficava aberta a possibilidade de
falha humana na identificação das premissas verdadeiras e de erro
decorrente de premissas confusas e ambíguas.
© U2 - Ambiente Cultural e Educacional na Idade Média 105

Uma das confusões que costumeiramente podem ocorrer


é entre o que é a predicação essencial (de subiecto) e o que é a
predicação acidental (in subiecto). Aqui não iremos desenvolver
essa temática do ponto de vista histórico nem do ponto de vista
doutrinal.
No entanto, é interessante notar que predicação era o termo
medieval para designar o estudo do que é dito sobre outras coisas
(assunto do livro aristotélico Categorias) e do que pode ser dito
sobre outras coisas (assunto do livro Isagoge, do filósofo fenício
Porfírio). Vejamos agora algumas implicações e exemplos referen-
tes a este ponto.
Os medievais estavam conscientes de que há uma diferença
fundamental entre o que se diz sobre as coisas do mundo e o que
se diz sobre Deus. Uma pessoa pode ser dita "justa", como quando
se diz "aquele homem é justo". No entanto, não poderia ser dito
"aquele homem é a Justiça".
Em relação a Deus, porém, não há distinção entre o atributo
e a essência, sendo assim igualmente verdadeiro dizer que "Deus
é justo" e que "Deus é a Justiça". Nesse caso, portanto, havia uma
diferença entre a predicação essencial feita de Deus e a predica-
ção acidental feita das coisas.
O que se pode dizer sobre Deus se refere a tudo o que impli-
ca a essência ou substância e o que se pode dizer sobre as coisas
se refere ao que está nelas. Tal distinção era fundamental para o
desenvolvimento da teologia medieval.
A origem de tal distinção estava em Avicena, e mais remota-
mente na leitura neoplatônica de Aristóteles. Alain de Libera (1998,
p. 258-259) cita o texto de Avicena para confirmar este ponto:
Há dois tipos de predicação: uma delas é unívoca, como quando
dizemos que Sócrates é homem, pois homem é predicado de Só-
crates verdadeira e univocamente; a outra é denominativa, assim
como a brancura é predicado de homem, com efeito, diz-se que o

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106 © História da Filosofia Medieval

homem é branco e que-tem-a brancura, mas não é dito ser bran-


cura. Do mesmo modo, caso se diga "um corpo branco" e "a cor
branca", a definição do predicado não é predicado igualmente de
dois sujeitos.

Claramente se percebe que "branco" não é dito de uma pes-


soa particular da mesma maneira que se diz que aquela pessoa é
"homem". Isto ocorre, segundo os medievais, porque na própria
maneira de dizer que aquela pessoa é branca já se pressupõe que
há uma diferença essencial entre sujeito e predicado. Este tipo de
predicação nunca poderia ser utilizado para se dizer algo de Deus,
pois em Deus nada há de acidental. Esse é, portanto, mais um
exemplo do estudo da linguagem feito pelos medievais, que tinha
implicações para a ontologia e para a teologia.

6. O DESENVOLVIMENTO DA TEMÁTICA DA RELAÇÃO


ENTRE RAZÃO E FÉ
Graças aos esforços dos "padres" gregos e latinos, o cristia-
nismo adquiriu status de filosofia autêntica. A partir daquele mo-
mento é possível se falar de "Filosofia Cristã". A patrística forneceu,
portanto, um "certificado de qualidade filosófica" ao cristianismo
e legou termos e concepções filosóficas que muito auxiliaram a
filosofia posterior.
Os textos produzidos por Agostinho foram lidos e relidos pe-
los principais expoentes da Filosofia em todo o período posterior,
pelo menos até o início do século 17 EC.
Foi justamente pelo novo status filosófico do cristianismo
que o período posterior – que pode ser chamado de "Escolástica"
latina – pôde se dedicar a apresentações sistemáticas e estabele-
cer as bases para as grandes elaborações filosóficas de Tomás de
Aquino e de João Duns Escoto. Porém, antes de passarmos para as
filosofias mais elaboradas, é necessário entender melhor o contex-
to cultural e educacional daquele período.
© U2 - Ambiente Cultural e Educacional na Idade Média 107

Uma temática da Filosofia Medieval que começou a se dese-


nhar na época, mas que somente iria adquirir cores mais intensas
nos séculos 13 e 14 EC, é a da relação entre razão e fé. Esta temáti-
ca também pode ser estudada através da relação entre as discipli-
nas Filosofia e Teologia.
Veremos nesta unidade que, em consequência da divisão
dos estudos e da organização das instituições de ensino, foi re-
forçada certa noção de hierarquia entre as duas disciplinas. Como
veremos, a Filosofia era estudada no início da educação formal e
a Teologia era estudada nos estudos já aprofundados, em nível su-
perior.
Há claramente uma diferença metodológica entre Filosofia e
Teologia. A Filosofia, para atingir seus níveis mais elevados de so-
fisticação científica, desde Aristóteles, precisa encontrar os primei-
ros princípios e as primeiras causas. Isso significa que o primeiro
foco da Filosofia é o que tem prioridade na compreensão, ou seja,
o que se descobre a priori.
Já a Teologia baseia-se principalmente nas verdades revela-
das, transmitidas através da tradição e confirmadas pelas autori-
dades religiosas. Há claramente uma ênfase no que vem na se-
quência das verdades reveladas, portanto, no que se descobre a
posteriori.
Essas diferenças foram suficientes para que alguns postulas-
sem que o que se descobre pela razão - âmbito da Filosofia - é
incompatível com o que se descobre pela fé - âmbito da Teologia.
Em contrapartida, outros autores não negaram as distinções
entre Filosofia e Teologia, mas postularam que a verdade é una e
única. Segundo essa visão, o resultado final do exercício filosófico
é idêntico ao do exercício teológico, pois ambos procuram e, em
última instância, alcançam a verdade, que é uma e a mesma.
Uma terceira atitude nesta questão é dizer que fé e razão
não são incompatíveis nem compatíveis, mas que são inteiramen-

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108 © História da Filosofia Medieval

te distintas, sendo que o caminho traçado pela Filosofia é um, e


outro totalmente distinto é traçado pela Teologia.
Como vimos, Agostinho já tinha inaugurado o estudo da cog-
nição humana em seus mais profundos componentes, a fim de de-
senvolver as discussões de cunho teológico. Da mesma maneira
que nos dias atuais, algumas das discussões mais instigantes e que
atraem mais a curiosidade das pessoas são as ligadas à Astrono-
mia, à Física Quântica e à Genética, na Idade Média as discussões
mais excitantes intelectualmente eram sobre problemas e avanços
nos esforços para compreender algo sobre Deus.
Portanto, desde Agostinho as discussões teológicas eram
responsáveis pelo avanço científico de maneira similar aos avan-
ços da ciência que hoje advêm das pesquisas astronômicas e dos
desenvolvimentos no campo da Física Quântica.
Não iremos desenvolver agora essa temática, nem tratar de
todas as implicações da relação entre Filosofia e Teologia, ou entre
fé e razão. Contudo, os autores medievais são geralmente inscritos
ou no grupo dos compatibilistas (os resultados conquistados pe-
los caminhos da razão e pelos caminhos da fé são perfeitamente
compatíveis) ou no grupo dos incompatibilistas (os resultados do
exercício filosófico e os do exercício teológico são incompatíveis, e
frequentemente opostos).
Como você verá ao longo desta unidade, a posição filosofica-
mente mais aceita talvez tenha sido a dos compatibilistas, como a
de Anselmo de Cantuária.
A temática relativa à relação entre fé e razão é ainda extre-
mamente atual e o trecho a seguir, extraído da encíclica Fides et
ratio, do Papa João Paulo II, exemplifica com perfeição esse fato:

Conhece-te a ti mesmo ––––––––––––––––––––––––––––––––


Introdução
1. Tanto no Oriente como no Ocidente, é possível entrever um caminho que, ao
longo dos séculos, levou a humanidade a encontrar-se progressivamente com
a verdade e a confrontar-se com ela. É um caminho que se realizou – nem po-
© U2 - Ambiente Cultural e Educacional na Idade Média 109

dia ser de outro modo – no âmbito da autoconsciência pessoal: quanto mais o


homem conhece a realidade e o mundo, tanto mais se conhece a si mesmo na
sua unicidade, ao mesmo tempo que nele se torna cada vez mais premente a
questão do sentido das coisas e da sua própria existência. O que chega a ser
objecto do nosso conhecimento torna-se por isso mesmo parte da nossa vida. A
recomendação conhece-te a ti mesmo estava esculpida no dintel do templo de
Delfos, para testemunhar uma verdade basilar que deve ser assumida como re-
gra mínima de todo o homem que deseje distinguir-se, no meio da criação inteira,
pela sua qualificação de "homem", ou seja, enquanto "conhecedor de si mesmo".
Aliás, basta um simples olhar pela história antiga para ver com toda a clareza
como surgiram simultaneamente, em diversas partes da terra animadas por cul-
turas diferentes, as questões fundamentais que caracterizam o percurso da exis-
tência humana: Quem sou eu? Donde venho e para onde vou? Por que existe
o mal? O que é que existirá depois desta vida? Estas perguntas encontram-se
nos escritos sagrados de Israel, mas aparecem também nos Vedas e no Avestá;
achamo-las tanto nos escritos de Confúcio e Lao-Tze, como na pregação de
Tirtankara e de Buda; e assomam ainda quer nos poemas de Homero e nas
tragédias de Eurípides e Sófocles, quer nos tratados filosóficos de Platão e Aris-
tóteles. São questões que têm a sua fonte comum naquela exigência de sentido
que, desde sempre, urge no coração do homem: da resposta a tais perguntas
depende efectivamente a orientação que se imprime à existência.
2. A Igreja não é alheia, nem pode sê-lo, a este caminho de pesquisa. Desde que
recebeu, no Mistério Pascal, o dom da verdade última sobre a vida do homem,
ela fez-se peregrina pelas estradas do mundo, para anunciar que Jesus Cristo é
"o caminho, a verdade e a vida" (Jo 14, 6). De entre os vários serviços que ela
deve oferecer à humanidade, há um cuja responsabilidade lhe cabe de modo
absolutamente peculiar: é a diaconia da verdade. (1) Por um lado, esta missão
torna a comunidade crente participante do esforço comum que a humanidade
realiza para alcançar a verdade, (2) e, por outro, obriga-a a empenhar-se no
anúncio das certezas adquiridas, ciente todavia de que cada verdade alcançada
é apenas mais uma etapa rumo àquela verdade plena que se há de manifestar
na última revelação de Deus: "Hoje vemos como por um espelho, de maneira
confusa, mas então veremos face a face. Hoje conheço de maneira imperfeita,
então conhecerei exactamente" (1 Cor 13, 12).
3. Variados são os recursos que o homem possui para progredir no conhecimen-
to da verdade, tornando assim cada vez mais humana a sua existência. De entre
eles sobressai a filosofia, cujo contributo específico é colocar a questão do sen-
tido da vida e esboçar a resposta: constitui, pois, uma das tarefas mais nobres
da humanidade. O termo filosofia significa, segundo a etimologia grega, "amor à
sabedoria". Efectivamente a filosofia nasceu e começou a desenvolver-se quan-
do o homem principiou a interrogar-se sobre o porquê das coisas e o seu fim.
Ela demonstra, de diferentes modos e formas, que o desejo da verdade pertence
à própria natureza do homem. Interrogar-se sobre o porquê das coisas é uma
propriedade natural da sua razão, embora as respostas, que esta aos poucos
vai dando, se integrem num horizonte que evidencia a complementaridade das
diferentes culturas onde o homem vive.
A grande incidência que a filosofia teve na formação e desenvolvimento das
culturas do Ocidente não deve fazer-nos esquecer a influência que a mesma
exerceu também nos modos de conceber a existência presentes no Oriente. Na
realidade, cada povo possui a sua própria sabedoria natural, que tende, como
autêntica riqueza das culturas, a exprimir-se e a maturar em formas propriamente

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110 © História da Filosofia Medieval

filosóficas. Prova da verdade de tudo isto é a existência duma forma basilar de


conhecimento filosófico, que perdura até aos nossos dias e que se pode consta-
tar nos próprios postulados em que as várias legislações nacionais e internacio-
nais se inspiram para regular a vida social.
4. Deve-se assinalar, porém, que, por detrás dum único termo, se escondem sig-
nificados diferentes. Por isso, é necessária uma explicitação preliminar. Impelido
pelo desejo de descobrir a verdade última da existência, o homem procura adqui-
rir aqueles conhecimentos universais que lhe permitam uma melhor compreen-
são de si mesmo e progredir na sua realização. Os conhecimentos fundamentais
nascem da maravilha que nele suscita a contemplação da criação: o ser humano
enche-se de encanto ao descobrir-se incluído no mundo e relacionado com ou-
tros seres semelhantes, com quem partilha o destino. Parte daqui o caminho que
o levará, depois, à descoberta de horizontes de conhecimentos sempre novos.
Sem tal assombro, o homem tornar-se-ia repetitivo e, pouco a pouco, incapaz de
uma existência verdadeiramente pessoal.
A capacidade reflexiva própria do intelecto humano permite elaborar, através da
actividade filosófica, uma forma de pensamento rigoroso, e assim construir, com
coerência lógica entre as afirmações e coesão orgânica dos conteúdos, um co-
nhecimento sistemático. Graças a tal processo, alcançaram-se, em contextos
culturais diversos e em diferentes épocas históricas, resultados que levaram à
elaboração de verdadeiros sistemas de pensamento. Historicamente isto gerou
muitas vezes a tentação de identificar uma única corrente com o pensamento fi-
losófico inteiro. Mas, nestes casos, é claro que entra em jogo uma certa "soberba
filosófica", que pretende arvorar em leitura universal a própria perspectiva e visão
imperfeita. Na realidade, cada sistema filosófico, sempre no respeito da sua inte-
gridade e livre de qualquer instrumentalização, deve reconhecer a prioridade do
pensar filosófico de que teve origem e ao qual deve coerentemente servir.
Neste sentido, é possível, não obstante a mudança dos tempos e os progressos
do saber, reconhecer um núcleo de conhecimentos filosóficos, cuja presença é
constante na história do pensamento. Pense-se, só como exemplo, nos princí-
pios de não-contradição, finalidade, causalidade, e ainda na concepção da pes-
soa como sujeito livre e inteligente, e na sua capacidade de conhecer Deus, a
verdade, o bem; pense-se, além disso, em algumas normas morais fundamentais
que geralmente são aceites por todos. Estes e outros temas indicam que, para
além das correntes de pensamento, existe um conjunto de conhecimentos, nos
quais é possível ver uma espécie de património espiritual da humanidade. É
como se nos encontrássemos perante uma filosofia implícita, em virtude da qual
cada um sente que possui estes princípios, embora de forma genérica e não
reflectida. Estes conhecimentos, precisamente porque partilhados em certa me-
dida por todos, deveriam constituir uma espécie de ponto de referência para as
diversas escolas filosóficas. Quando a razão consegue intuir e formular os prin-
cípios primeiros e universais do ser, e deles deduzir correcta e coerentemente
conclusões de ordem lógica e deontológica, então pode-se considerar uma razão
recta, ou, como era chamada pelos antigos, orthòs logos, recta ratio.
5. A Igreja, por sua vez, não pode deixar de apreciar o esforço da razão na con-
secução de objectivos que tornem cada vez mais digna a existência pessoal. Na
verdade, ela vê, na filosofia, o caminho para conhecer verdades fundamentais
relativas à existência do homem. Ao mesmo tempo, considera a filosofia uma aju-
da indispensável para aprofundar a compreensão da fé e comunicar a verdade
do Evangelho a quantos não a conhecem ainda.
© U2 - Ambiente Cultural e Educacional na Idade Média 111

Na seqüência de iniciativas análogas dos meus Predecessores, desejo também


eu debruçar-me sobre esta actividade peculiar da razão. Faço-o movido pela
constatação, sobretudo em nossos dias, de que a busca da verdade última apa-
rece muitas vezes ofuscada. A filosofia moderna possui, sem dúvida, o grande
mérito de ter concentrado a sua atenção sobre o homem. Partindo daí, uma razão
cheia de interrogativos levou por diante o seu desejo de conhecer sempre mais
ampla e profundamente. Desta forma, foram construídos sistemas de pensamen-
to complexos, que deram os seus frutos nos diversos âmbitos do conhecimento,
favorecendo o progresso da cultura e da história. A antropologia, a lógica, as
ciências da natureza, a história, a linguística, de algum modo todo o universo do
saber foi abarcado. Todavia, os resultados positivos alcançados não devem levar
a transcurar o facto de que essa mesma razão, porque ocupada a investigar de
maneira unilateral o homem como objecto, parece ter-se esquecido de que este é
sempre chamado a voltar-se também para uma realidade que o transcende. Sem
referência a esta, cada um fica ao sabor do livre arbítrio, e a sua condição de pes-
soa acaba por ser avaliada com critérios pragmáticos baseados essencialmente
sobre o dado experimental, na errada convicção de que tudo deve ser dominado
pela técnica. Foi assim que a razão, sob o peso de tanto saber, em vez de ex-
primir melhor a tensão para a verdade, curvou-se sobre si mesma, tornando-se
incapaz, com o passar do tempo, de levantar o olhar para o alto e de ousar atingir
a verdade do ser. A filosofia moderna, esquecendo-se de orientar a sua pesquisa
para o ser, concentrou a própria investigação sobre o conhecimento humano. Em
vez de se apoiar sobre a capacidade que o homem tem de conhecer a verdade,
preferiu sublinhar as suas limitações e condicionalismos.
Daí provieram várias formas de agnosticismo e relativismo, que levaram a investi-
gação filosófica a perder-se nas areias movediças dum cepticismo geral. E, mais
recentemente, ganharam relevo diversas doutrinas que tendem a desvalorizar
até mesmo aquelas verdades que o homem estava certo de ter alcançado. A le-
gítima pluralidade de posições cedeu o lugar a um pluralismo indefinido, fundado
no pressuposto de que todas as posições são equivalentes: trata-se de um dos
sintomas mais difusos, no contexto actual, de desconfiança na verdade. E esta
ressalva vale também para certas concepções de vida originárias do Oriente: é
que negam à verdade o seu carácter exclusivo, ao partirem do pressuposto de
que ela se manifesta de modo igual em doutrinas diversas ou mesmo contraditó-
rias entre si. Neste horizonte, tudo fica reduzido à mera opinião. Dá a impressão
de um movimento ondulatório: enquanto, por um lado, a razão filosófica conse-
guiu avançar pela estrada que a torna cada vez mais atenta à existência humana
e às suas formas de expressão, por outro tende a desenvolver considerações
existenciais, hermenêuticas ou lingüísticas, que prescindem da questão radical
relativa à verdade da vida pessoal, do ser e de Deus. Como conseqüência, des-
pontaram, não só em alguns filósofos mas no homem contemporâneo em geral,
atitudes de desconfiança generalizada quanto aos grandes recursos cognosci-
tivos do ser humano. Com falsa modéstia, contentam-se de verdades parciais
e provisórias, deixando de tentar pôr as perguntas radicais sobre o sentido e o
fundamento último da vida humana, pessoal e social. Em suma, esmoreceu a
esperança de se poder receber da filosofia respostas definitivas a tais questões.
6. Credenciada pelo facto de ser depositária da revelação de Jesus Cristo, a
Igreja deseja reafirmar a necessidade da reflexão sobre a verdade. Foi por este
motivo que decidi dirigir-me a vós, venerados Irmãos no Episcopado, com quem
partilho a missão de anunciar "abertamente a verdade" (2 Cor 4, 2), e dirigir-me
também aos teólogos e filósofos a quem compete o dever de investigar os diver-

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112 © História da Filosofia Medieval

sos aspectos da verdade, e ainda a quantos andam à procura duma resposta,


para comunicar algumas reflexões sobre o caminho que conduz à verdadeira
sabedoria, a fim de que todo aquele que tiver no coração o amor por ela possa
tomar a estrada certa para a alcançar, e nela encontrar repouso para a sua fadiga
e também satisfação espiritual.
Tomo esta iniciativa impelido, antes de mais, pela certeza de que os Bispos,
como assinala o Concílio Vaticano II, são "testemunhas da verdade divina e ca-
tólica" (3). Por isso, testemunhar a verdade é um encargo que nos foi confiado a
nós, os Bispos; não podemos renunciar a ele, sem faltar ao ministério que rece-
bemos. Reafirmando a verdade da fé, podemos restituir ao homem de hoje uma
genuína confiança nas suas capacidades cognoscitivas e oferecer à filosofia um
estímulo para poder recuperar e promover a sua plena dignidade.
Há um segundo motivo que me induz a escrever estas reflexões. Na carta encí-
clica Veritatis splendor, chamei a atenção para "algumas verdades fundamentais
da doutrina católica que, no contexto actual, correm o risco de serem deformadas
ou negadas". (4) Com este novo documento, desejo continuar aquela reflexão,
concentrando a atenção precisamente sobre o tema da verdade e sobre o seu
fundamento em relação com a fé. De facto, não se pode negar que este período,
de mudanças rápidas e complexas, deixa sobretudo os jovens, a quem pertence
e de quem depende o futuro, na sensação de estarem privados de pontos de
referência autênticos. A necessidade de um alicerce sobre o qual construir a
existência pessoal e social faz-se sentir de maneira premente, principalmente
quando se é obrigado a constatar o carácter fragmentário de propostas que ele-
vam o efêmero ao nível de valor, iludindo assim a possibilidade de se alcançar o
verdadeiro sentido da existência. Deste modo, muitos arrastam a sua vida quase
até a borda do precipício, sem saber o que os espera. Isto depende também do
facto de, às vezes, quem era chamado por vocação a exprimir em formas cultu-
rais o fruto da sua reflexão, ter desviado o olhar da verdade, preferindo o sucesso
imediato ao esforço duma paciente investigação sobre aquilo que merece ser
vivido. A filosofia, que tem a grande responsabilidade de formar o pensamento
e a cultura através do apelo perene à busca da verdade, deve recuperar vigoro-
samente a sua vocação originária. É por isso que senti a necessidade e o dever
de intervir sobre este tema, para que, no limiar do terceiro milênio da era cristã,
a humanidade tome consciência mais clara dos grandes recursos que lhe foram
concedidos, e se empenhe com renovada coragem no cumprimento do plano de
salvação, no qual está inserida a sua história (JOÃO PAULO II, 2010).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Pelo que você acabou de ler no texto da encíclica Fides et
ratio, fica evidente que o debate entre fé e razão não somente
continua atualíssimo, como também conserva muito do que foi
seu impulso inicial no período medieval. Se fé e razão pareceram
e ainda parecem ser campos totalmente distintos, tal distinção di-
minui consideravelmente quando se reflete sobre a Filosofia como
estilo de vida, como fizemos na Unidade 1.
© U2 - Ambiente Cultural e Educacional na Idade Média 113

Naquela unidade, vimos que há inclusive inúmeras possibi-


lidades de comparação entre as escolas filosóficas do período he-
lenístico, principalmente o estoicismo, e o cristianismo. Você verá
no decorrer desta unidade que também o neoplatonismo produ-
ziu textos nos quais o elemento religioso é muito presente. Isto
sem falar de pensadores como Sócrates e Platão, cuja religiosidade
transparece em inúmeros pontos.
Tendo isto em mente, não é nenhuma surpresa que na Idade
Média o cristianismo tenha se preocupado em oferecer um con-
texto no qual fé e razão se harmonizam perfeitamente, e que essa
preocupação ainda esteja presente hoje.
A seguir, trataremos do papel da autoridade na Filosofia Me-
dieval, tema que dá continuidade às discussões abordadas nes-
te tópico. No contexto de Filosofia Cristã, as figuras centrais do
cristianismo também aparecem como autoridades respeitadas do
ponto de vista filosófico.

7. O PAPEL DA AUTORIDADE NA FILOSOFIA MEDIE-


VAL
Uma temática associada de certa maneira com a que aca-
bamos de abordar no tópico anterior é o papel da autoridade no
contexto medieval.
Trata-se, na verdade, de um componente bastante comum
de toda a produção cultural medieval, pois quase sempre as dis-
cussões - você verá em seguida nesta unidade como as disputatio-
nes eram importantes no sistema de ensino da escolástica - incluí-
am as opiniões das principais autoridades (auctoritates) a respeito
das teses discutidas.
O uso que fazemos hoje do termo "autoridade" não cor-
responde ao termo auctoritas medieval. Uma autoridade no sen-
tido moderno pode impor suas opiniões e obrigar a obediência
das pessoas que lhe são subalternas, que por medo ou respeito

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114 © História da Filosofia Medieval

aceitam tais imposições. Mas dificilmente uma discussão acadê-


mica nos dias de hoje seria resolvida tendo como base principal as
opiniões de pessoas que faleceram quatrocentos anos atrás, por
mais que aquelas pessoas tenham sido autoridades respeitadas
em seus dias.
As auctoritates medievais tampouco eram encaradas como
impositoras de vontades que deveriam ser obedecidas e não ques-
tionadas. Claro que eram pontos de referência em temas nos quais
tinham alcançado excelência. Mas, sem um caráter impositivo, as
auctoritates propiciavam o alimento essencial para aprofundar e
desenvolver as discussões e chegar ao nível mais elevado e com-
petente da abordagem de um tema.
Você pode pensar que tal método de aprofundamento é um
pouco "estranho". Mas pense no fato de que para correr mais rá-
pido e com mais eficiência sempre é melhor utilizar calçados e rou-
pas apropriados. Todos são livres para correr com pés descalços e
roupas pesadas, mas quem quiser ter um melhor desempenho vai
procurar os meios mais adequados.
Pois bem! Os medievais tinham a convicção de que as Escri-
turas forneciam a verdade mais completa. Portanto, não é de se
admirar que nas discussões medievais as Escrituras desempenhas-
sem um papel tão importante.
O mesmo valia para os grandes filósofos e teólogos da épo-
ca. Uma vez que tinham suas auctoritates confirmadas, passavam
a figurar entre as opiniões verdadeiras a serem inseridas nas dis-
cussões todas as vezes que isso pudesse ajudar a alcançar a verda-
de mais elevada. Esse movimento "epistemológico" utilizado pe-
los medievais é claramente representado pela famosa afirmação
de Bernardo de Chartres (apud NASCIMENTO, 1992, p. 9-10), que
você já viu na Unidade 1, mas que convém relembrar.
Somos anões elevados nos ombros de gigantes. Assim vemos me-
lhor e mais longe do que eles, não porque nossa vista seja mais
aguda ou a nossa estatura mais alta, mas porque eles nos elevam
até o nível de toda a sua gigantesca altura.
© U2 - Ambiente Cultural e Educacional na Idade Média 115

Com a ascensão das ordens e instituições religiosas no Oci-


dente no século 11 EC, a preocupação com a ortodoxia incentivou
o costume cada vez mais frequente de referir-se aos pronuncia-
mentos das pessoas à frente daquelas ordens e instituições como
palavra final, como a confirmação da verdade. Nesse contexto, o
caso mais emblemático é a autoridade papal, que até hoje desfru-
ta de prestígio.
Nesse aspecto, os medievais eram coerentes com sua visão
hierárquica da realidade. Na visão de mundo medieval, todo o uni-
verso estava organizado e ordenado. Mesmo as elucubrações apa-
rentemente mais deslocadas da realidade, como a discussão da
hierarquia celeste feita por Tomás de Aquino, estavam em perfeita
sintonia com o ambiente cultural medieval.
Conhecendo esse contexto, podemos entender melhor a
preocupação com o que se pode saber sobre Deus, pois Deus está
no topo da hierarquia e tudo o que se pudesse saber sobre Ele
certamente iluminaria e explicaria melhor todas as coisas que es-
tavam mais abaixo d'Ele, ou seja, todo o restante do universo.
O mesmo se pode dizer sobre as auctoritates, pois estando
acima e, portanto, mais próximas do topo, propiciavam a base para
as investigações que procuravam alcançar os níveis mais elevados
e as verdades mais completas.
Contudo, representar os medievais como homens preocupa-
dos em apenas repetir o que tinha sido dito no passado, como pes-
soas que evitavam contrariar opiniões pré-estabelecidas, é uma
postura totalmente incorreta. A Patrística e a Escolástica repre-
sentaram momentos de muita vitalidade cultural e de profundo
e sincero esforço por descobrir a verdade. Você verá no próximo
tópico como o surgimento das universidades é prova evidente de
honestidade intelectual.

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116 © História da Filosofia Medieval

8. O AMBIENTE CULTURAL DAS PRIMEIRAS UNIVER-


SIDADES
Já podemos notar a redescoberta do interesse pelo ambien-
te cultural e educacional medieval e das consequências que ain-
da hoje o legado das instituições medievais tem para a educação
e a cultura atual em Hastings Rashdall, no final do século 19 EC.
Rashdall escreveu que as instituições que se originaram no perí-
odo medieval têm papel importante e perene para a história da
humanidade:
As instituições que a Idade Média nos legou são de um valor maior
e mais imperecível do que suas catedrais. E a universidade é ni-
tidamente uma instituição medieval - tanto quanto a monarquia
constitucional, ou os parlamentos, ou o julgamento por meio do
júri. As universidades e os produtos imediatos das suas atividades,
pode ser afirmado, constituem a grande realização da Idade Média
na esfera intelectual. Sua organização, suas tradições, seus estudos
e seus exercícios influenciaram o progresso e o desenvolvimento
intelectual da Europa mais poderosamente, ou (talvez deveria ser
dito) mais exclusivamente, do que qualquer escola, com toda a pro-
babilidade, jamais fará novamente [...] (RASHDALL apud OLIVEIRA,
2010, p. 1824).

A prosperidade econômica dos séculos 11 e 12 EC, visível


pelo surgimento de cidades e pela especialização do trabalho, ti-
veram, também, importantes consequências para o mundo do sa-
ber.
A educação formal não estava mais confinada aos monasté-
rios e escolas religiosas, e viu nascer um novo grupo de intelectu-
ais profissionais com novas aspirações. Aqueles homens não esta-
vam mais satisfeitos com o ideal cristão de sabedoria, e aspiravam
ao domínio da educação humana como um todo. Puseram-se com
afinco na busca incessante de recuperação da herança intelectual
da Antiguidade.
Novamente vale a pena ler o que Rashdall escreveu a respei-
to desta temática:
© U2 - Ambiente Cultural e Educacional na Idade Média 117

[...] A universidade, não menos do que a Igreja Romana e a hierar-


quia feudal encabeçada pelo Imperador Romano, representa uma
tentativa de concretizar um ideal de vida em um dos seus aspectos.
Ideais convertem-se em grandes forças históricas pela sua corpo-
rificação em instituições. O poder de corporificar seus ideais era o
gênio peculiar do pensamento medieval, assim como seu defeito
mais evidente assenta-se na correspondente tendência para ma-
terializá-los [...] Nossa atenção estará voltada em sua maior parte
confinada às primeiras e típicas universidades [...] quando nós com-
paramos Bolonha com Paris e Paris com Oxford e Praga, verificamos
que as universidades de todos os países e de todas as épocas são,
na realidade, adaptações, sob várias condições, de uma e mesma
instituição (apud OLIVEIRA, 2010, p. 1825).

Mesmo nos movimentos mais iniciais da Idade Média, era


possível notar um afluxo para os centros eclesiais. Principalmente
para as escolas catedrais, que ao longo de todo o período medieval
forneceram o apoio financeiro essencial ao ensino.
Os professores/pesquisadores que trabalhavam naquelas
instituições desfrutavam de privilégios iguais aos do clero, mes-
mo não sendo obrigados a ascender a graus mais elevados do sa-
cramento da Ordem. Não eram, portanto, obrigados a se tornar
diáconos, presbíteros ou bispos. Na verdade, para eles o status
clerical muitas vezes era o mais eficaz meio de proteção contra as
autoridades locais, em regiões frequentemente hostis e por vezes
até brutais.
O panorama que acabamos de apresentar é bem apropria-
do para descrever a parte central da França, embora também seja
aplicável à descrição de outras regiões de características similares.
Naquele contexto, as escolas surgiam e entravam em declínio em
um curto período.
As escolas mais famosas eram Laon, Rheims, Metun e Chartres.
O sucesso súbito de uma escola quase sempre era ligado à presen-
ça de um professor afamado. Por outro lado, em relação a Paris é
possível falar de florescimento contínuo das escolas, sendo que os
mais famosos professores das outras escolas francesas ensinaram
naquela cidade em algum momento de suas carreiras. A preocupa-

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118 © História da Filosofia Medieval

ção com o currículo e com o sucesso do ensino era cotidiana para


os professores.
A situação do ensino no norte da Itália era consideravelmen-
te distinta, pois escolas seculares sempre estiveram presentes ali,
e enfatizavam mais o estudo de Direito, não as artes liberais ou a
Teologia. Portanto, os problemas do norte da Itália eram, em gran-
de medida, diferentes. Porém, foi justamente o ambiente hostil
que existia por lá que forçou os estudantes a se organizarem.
Visto que durante os séculos 12 e 13 EC cresceu exponen-
cialmente o número de estudantes e professores na França, In-
glaterra, norte da Espanha e norte da Itália, houve também uma
busca crescente por privilégios e por uma melhor organização dos
estudos, principalmente no tocante à concessão e ao controle das
licenças para ensinar.
Os professores começaram a se organizar em corporações,
seguindo práticas comuns às organizações medievais. Assim, as úl-
timas décadas do século 12 EC viram o surgimento de universida-
des que figuram entre as criações medievais mais perenes. Assim
surgiram as universidades de Paris, Bologna, Oxford e Coimbra.
O nível de organização e de seleção dos estudantes das uni-
versidades nos séculos seguintes era muito heterogêneo, pois de-
pendia do apoio financeiro disponível e da qualidade dos profes-
sores. Nas universidades menores, havia uma dependência muito
maior em relação às autoridades locais do que nas maiores.
Algumas universidades ofereciam um ensino eminentemen-
te técnico para pessoas que apenas desejavam obter competências
básicas para uma carreira na administração civil ou eclesiástica.
Desde o século 12 EC, as escolas já tinham uma tendência
para se especializar em determinada área. Assim, Paris era mais
voltada para o estudo de artes liberais e Teologia, ao passo que
Bolonha se dedicava mais a Direito Civil e Direito Canônico. Con-
tudo, os currículos não eram rigidamente definidos e se alteravam
© U2 - Ambiente Cultural e Educacional na Idade Média 119

ao longo do tempo, sobretudo em razão do surgimento de novos


materiais de estudo e de alterações de interesse por parte dos pro-
fessores.
As divisões básicas do currículo estavam ligadas ao contexto
das diversas faculdades. A primeira e mais fundamental era volta-
da para as sete artes liberais, ou seja, as três artes da linguagem
- gramática, retórica e dialética - e as quatro artes matemáticas -
geometria, aritmética, astronomia e música. Eram, na verdade, os
estudos filosóficos.
Em geral, os estudantes de Artes tinham entre 15 e 21 anos
de idade. Apesar de não haver nenhum exame de admissão, o fato
de as aulas serem ministradas em Latim e possivelmente até em
Grego restringia bastante o número dos que estavam aptos a fre-
quentar o curso de Artes.
Somado a isto, havia o fato de que a continuação dos es-
tudos implicava gastos vultosos. É fácil entender por que apenas
um pequeno número concluía o curso de Artes e seguia para os
estudos mais aprofundados de Teologia, Direito ou Medicina, visto
que originalmente a formação em artes era pré-requisito para as
faculdades superiores.
Dentre as faculdades superiores, a de Direito tendia a rece-
ber mais alunos, pois grande parte dos estudantes de artes ambi-
cionava fazer carreira na administração civil ou eclesiástica.
A carreira de Teologia trazia uma grande carga teórica que
envolvia um conhecimento altamente especializado. Como era a
única das três a continuar exigindo de maneira explícita a forma-
ção em Artes, não é de se estranhar que, de um longo período
da História – sobretudo o período medieval –, as mais sofisticadas
discussões filosóficas que chegaram até nós provenham de obras
de Teologia.
É claro que o maior volume de textos medievais acessíveis
hoje foi essencialmente material utilizado no âmbito do curso de

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120 © História da Filosofia Medieval

Artes. Contudo, boa parte deste material não desperta grande in-
teresse filosófico nos dias atuais, ainda que vez ou outra se encon-
tre material de excelente qualidade entre os textos de aula. Muitas
vezes, isso ocorre com materiais de Lógica, Gramática e Astrono-
mia.
Portanto, o curso de Artes era fundamental. Principalmente
os primeiros anos, que proporcionavam aos alunos a aquisição da
competência em Gramática e Lógica – as chaves para compreen-
der a Filosofia Medieval. Essas disciplinas forneciam, para o uso da
língua latina, competência linguística e vocabular altamente técni-
ca e precisa.
O fato de que o material disponível para a reconstrução da
vida intelectual na Idade Média ser composto de tantos escritos
pode fazer com que nos esqueçamos de que, em enorme medi-
da, o ensino universitário naquele período era oral. A causa de tal
fato é evidente: os livros eram muito raros, em consequência da
dificuldade de produzir manuscritos e do alto custo envolvido no
processo.
A centralização da produção de livros certamente contribuiu
para uma maior disseminação dos textos e para uma redução sig-
nificativa no preço de cada exemplar. Contudo, as bibliotecas pri-
vadas permaneceram raras no período. Este quadro só foi alterado
com o advento da impressão.
As bibliotecas das escolas melhoraram significativamente a
partir do final do século 13 EC. Porém, o acesso aos textos era qua-
se sempre restrito aos alunos das faculdades superiores.
Portanto, a preponderância do ensino oral era algo previsí-
vel, principalmente para os estudantes mais jovens. Essa necessi-
dade, porém, foi se tornando uma virtude à medida que foi se dis-
seminando a crença de que se aprende muito mais rápido e com
mais proveito por meio do método oral.
© U2 - Ambiente Cultural e Educacional na Idade Média 121

Em função disso, é mais fácil compreender por que os textos


medievais que temos hoje estão tão corruptos: a transmissão oral
não primava pela exatidão literal. Além disso, percebemos que os
estudantes medievais tinham um grande número de fórmulas, ci-
tações, modelos de argumentos e de movimentos padrão, todos
calcados em suas memórias.
Os estudantes não utilizavam textos como fontes, mas como
ferramentas para auxiliá-los a recordar o que já tinham memori-
zado. Ou seja, eram uma fonte útil de argumentos ou distinções
e não uma ferramenta para reconstruir o pensamento de algum
filósofo em particular.
Tal quadro foi sendo mudado muito lentamente com o aces-
so mais generalizado aos textos. No século 14 EC, nos comentários
às Sentenças de Pedro Lombardo, já se encontram argumentações
muito complexas com citações exatas de autores da época, o que
só terá sido possível com a consulta direta e minuciosa de textos
escritos.

9. TEXTOS E FORMAS DE ENSINO UNIVERSITÁRIO


O ponto chave de qualquer curso universitário era o manual
(conhecido como littera). A pesquisa e o ensino tinham obrigato-
riamente que explicar a littera, mostrando sua estrutura e conte-
údo, provando sua consistência interna e harmonizando qualquer
contradição aparente, seja dentro da própria littera, seja entre ela
e alguma autoridade. Os manuais (litterae) determinavam a estru-
tura dos cursos universitários.
As aulas eram conhecidas como lectio (plural: lectiones) e
eram divididas em ordinárias, extraordinárias e correntes. As or-
dinárias, baseadas na littera da disciplina, eram repetidas regular-
mente. A lectio extraordinária podia ser também baseada em um
material diferente do manual daquela disciplina. A lectio corrente
era uma curta recensão dos problemas principais ligados a deter-
minado texto padrão.

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122 © História da Filosofia Medieval

No século 13 EC, as principais tarefas de um mestre em Te-


ologia eram a lectio, a pregação e a disputatio. As disputationes
(plural de disputatio) aconteciam com muita frequência, às vezes
uma vez por semana, e eram parte integrante do currículo escolar.
Ainda assim, eram menos frequentes que as lectiones, porém não
menos importantes.
As disputationes deram origem aos textos chamados em Fi-
losofia Medieval de quaestiones disputatae, que são fonte riquíssi-
ma para o estudo da filosofia daquele período.
Na metade do século 13 EC, a disputatio ocorria da seguinte
maneira: no primeiro dia, o mestre, os bacharéis da faculdade e os
alunos se reuniam. O mestre, então, fazia uma breve introdução e
apontava um de seus bacharéis para receber e refutar os argumen-
tos apresentados pela audiência contra sua mestre.
O bacharel escolhido tratava das principais questões refe-
rentes à tese do mestre (quando necessário, recebia alguma ajuda
do próprio mestre). A duração dessa primeira seção da disputatio
podia chegar a três horas. No próximo dia disponível, todos se reu-
niam novamente. O mestre resumia os argumentos pró e contra e
dava sua solução (determinatio) para a questão proposta.
Duas vezes por ano, no advento e na primavera, havia as
chamadas disputationes quodlibetales (literalmente "disputas so-
bre quaisquer questões"). Recebiam esse nome porque podiam
abordar qualquer tema e ser iniciadas por qualquer pessoa da as-
sembleia.
Se, por um lado, os estudiosos da filosofia medieval unani-
memente apontam para o fato de que a disputatio era o mais de-
senvolvido e importante traço do método escolástico, por outro,
permanecem muitas dúvidas sobre as pressuposições e antece-
dentes históricos da disputatio.
Não há dúvidas de que a disputatio concretiza, de maneira
excelente, o procedimento dialético descrito por Aristóteles: apre-
© U2 - Ambiente Cultural e Educacional na Idade Média 123

sentação do problema (chamado por Aristóteles de "aporia"), em


que se estabelecem as opiniões conflitantes dos filósofos (chama-
dos de endoxa e phainomena); resolução das dificuldades; refor-
mulação da opinião de maneira abrangente.
A dificuldade de se atribuir a origem e a estrutura da dispu-
tatio diretamente a Aristóteles reside no fato de que ela já esta-
va em pleno vigor mesmo antes que os textos de Aristóteles que
descrevem com detalhes esse processo fossem redescobertos no
Ocidente cristão. O primeiro testemunho escrito da disputatio me-
dieval está presente no texto autobiográfico de Pedro Abelardo Sic
et non.

10. BOÉCIO E AS TRADUÇÕES DOS FILÓSOFOS CLÁS-


SICOS PARA O LATIM
Biografia ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Anício Mânlio Severino Boécio, da velha estirpe dos


Anícios, nasceu em 470. Sob Teodorico foi investido
em altas funções administrativas, é cônsul e magister
palatii. Dando crédito a uma intriga política, o rei mandou
executá-lo cruelmente em Pavia, em 525, depois de
ter sofrido uma longa prisão. Boécio queria traduzir
em latim todas as obras de Platão e ARISTÓTELES
Figura 1 Boécio. (Adaptado de HIRSCHBERGER, 2009).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Como foi visto na Unidade 1, não há como compreender a
relação entre o Cristianismo e a Filosofia sem fazer referência clara
e direta ao contexto filosófico da Antiguidade filosófica clássica. E
a figura de Boécio (470-525 EC) é emblemática neste sentido, pois
não somente ele foi cronologicamente o "último dos romanos",
como também em grande medida foi o "primeiro dos escolásticos
latinos".

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124 © História da Filosofia Medieval

Com relação à filosofia no ambiente cultural romano, é clara


a importância do trabalho do filósofo cristão de inspiração neopla-
tônica Anício Manlio Severino Boécio (470-525 EC). Os principais
acontecimentos de sua vida excepcional foram sua condenação à
morte e sua decisão de escrever uma obra chamada Consolação da
Filosofia. Boécio nasceu em uma família romana e teve formação
esmerada, adquirindo inclusive profundo conhecimento do Grego
e da Filosofia Clássica. Desde cedo ele se envolveu em política,
durante o tempo em que Roma era governada pelos ostrogodos a
partir da cidade de Ravena.
Pode-se dizer que Boécio é o principal representante dessa socie-
dade romana e de sua cultura, porém um representante relativa-
mente mais refinado. Manifestava, como se sabe, a consciência da
missão urgente de manter viva essa tradição, sobretudo porque
constatava o atraso da cultura latina comparada à do oriente gre-
go. O mundo latino não tinha, ainda, adquirido a possibilidade de
um estudo sério, científico, da filosofia, que parece ser o apanágio
dos gregos. Eis para onde tendem os escritos de Boécio, o auxílio
que eles devem fornecer. Enquanto cônsul, enfatiza que o dever de
assegurar a instrução pública é um dos deveres dos quais ele foi
investido e aos quais pretende permanecer fiel [...] (SAVIAN FILHO,
2005, p. 28-29).

Embora tenha tido uma vida curta e tenha galgado uma po-
sição que equivalia ao cargo de primeiro ministro, seu sucesso pro-
fissional terminou em grande tragédia: foi condenado por traição.
Na prisão, antes da execução, teve tempo para escrever Consola-
ção da Filosofia, uma obra que figura com justiça entre as obras-
primas da literatura latina.
A decisão de dedicar o pouco tempo de vida que lhe restava
a discutir a providência divina e a verdadeira felicidade evidencia
que ele concebia a Filosofia como um estilo de vida, pois estava
disposto a enfrentar toda e qualquer dificuldade de maneira altiva
e corajosa. Como vimos na Unidade 1, o estoicismo e o cristianis-
mo tinham posições semelhantes em relação a qual seria a atitu-
de mais adequada para enfrentar as dificuldades da vida. Boécio
certamente bebeu nessas duas fontes: o estoicismo romano e o
cristianismo.
© U2 - Ambiente Cultural e Educacional na Idade Média 125

A atividade política de Boécio não o desviou nunca da filosofia, de


cujo valor cultural ele claramente se apercebeu. O seu objetivo pa-
rece ter sido colocar ao serviço da jovem civilização que desabro-
chava no reino gótico os tesouros da sabedoria grega que pudera
conhecer em Atenas. Tinha querido traduzir para o latim tudo o que
conhecia de Aristóteles e, sem dúvida, de Platão e do platonismo
[...]. Por isso, o papel de Boécio foi capital como veículo da filoso-
fia grega e sobretudo da lógica de Aristóteles. Transmitiu também
idéias estóicas, neoplatônicas e agostinianas. A sua influência foi
profunda durante toda a Idade Média; foi o verdadeiro educador
do Ocidente (STEENBERGHEN, 1984, p. 54-55).

Boécio também pode ser inserido no contexto do escolasti-


cismo latino, pois seus esforços para explicar e comentar os textos
de Platão e Aristóteles, traduzindo-os do Grego para o Latim, são
idênticos aos esforços feitos por tantos outros escolásticos de pe-
ríodos posteriores.
Os escolásticos vivem numa extraordinária confiança na razão para
penetrar nas profundezas do mistério. Para eles a fé não é um caris-
ma extraordinário, cuja transcendência se situe fora da maneira de
pensar. É antes a encarnação da verdade divina em nosso espírito.
A fé tende à busca de razões de sua esperança; procurar formular,
estudar e resolver os problemas de maneira racional no âmbito do
mistério. [...] A fé fornece a verdade divina que permite usar a razão
sem equívoco (ZILLES, 1996, p. 57- 61).

Como veremos na Unidade 3, as contribuições dos filósofos


árabes e judeus e de Alberto Magno, Tomás de Aquino e tantos
outros, ocorreram no contexto da correta compreensão do pensa-
mento filosófico clássico e da produção de traduções e comentá-
rios que bem explicassem tal pensamento.
Boécio é chamado o último romano e o primeiro escolástico. Ex-
prime-se assim, muito acertadamente, o seu papel de intermediá-
rio. Ele próprio, aliás, esteve plenamente consciente dessa tarefa.
Compenetrado em sua missão de transmissor de um patrimônio
cultural fadado ao declínio, quis servir de educador daqueles po-
vos ainda jovens e robustos que, ignorantes do idioma grego, não
tinham acesso para as obras de Aristóteles e os diálogos de Platão.
Alentava, ademais, o generoso ideal de reunir numa síntese com-
preensiva as doutrinas de Aristóteles e Platão. Seu propósito era
traduzir para o latim todas as obras deles e, na base de uma série
de comentários, demonstrar o acordo substancial entre os dois fi-
lósofos. Basta relancear a obra de Boécio para darmos conta do

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126 © História da Filosofia Medieval

quanto pôde realizar e de quão longe a realidade dista do seu gran-


dioso ideal (BOEHNER; GILSON, 1970, p. 210).

A obra de Boécio foi fundamental para a transmissão da lógi-


ca aristotélica aos séculos posteriores, pois tudo o que se conhecia
a respeito desse assunto no Ocidente cristão até o século 12 EC
eram as traduções das duas primeiras obras do Organon, isto é,
Categorias e De interpretatione. Além disso, os termos técnicos
latinos cunhados por Boécio foram as peças-chave para os desen-
volvimentos posteriores em Lógica e em Metafísica.
Reflitamos: será que vale a pena nos determos um pouco
mais neste pensador? Para responder a esta questão, convém ob-
servar o que significou Boécio para o mundo ocidental.
Para a apresentação que se segue, a obra de referência con-
tinua sendo a de Étienne Gilson, sobretudo A filosofia na idade
média, cuja leitura recomendamos vivamente. Os elementos que
serão destacados nesta seção se baseiam na apresentação feita
por Gilson.
No contexto da História da Filosofia, alguns elementos que
a tradição associa a determinados pensadores têm de passar pelo
crivo de uma análise criteriosa e radical. Por exemplo, suponha-
mos que alguém resolvesse questionar o caráter cristão da obra
de Boécio.
Em primeiro lugar, aqui cabe uma explicação: a tradição sem-
pre associou Boécio com a figura de um pensador cristão, mas, se
ele de fato o era, é de se supor que alguma parte de sua obra
demonstre inequivocamente a sua adesão ao cristianismo. Essa
prova cabal do cristianismo de Boécio se encontra em sua obra
Opuscula sacra, que consiste em um conjunto de escritos tradicio-
nalmente atribuídos a ele.
Note que esses eram, porém, os úni­cos de seus escritos cujo
conteúdo cristão é indiscutível. Se, por alguma razão, forem iden-
tificados sinais fortes e coerentes de que se trata de obra de outro
© U2 - Ambiente Cultural e Educacional na Idade Média 127

autor e não de Boécio, isso nos deixaria sem outros textos para
estabelecer se Boécio realmente foi, se não um mártir, ao menos
um autor cristão.
Com o tempo, no entanto, acrescentou-se uma informação
que teve caráter decisivo para esta questão: foi descoberto por
Holder, em 1877, um fragmento de Cassiodoro que atribui a Boé-
cio um Librum de sancta Trinitate et capita quaedam dogmática.
Isso parece ter posto fim à dúvida sobre a orientação cris-
tã de Boécio e decidido a questão em favor da autenticidade das
Opuscula (A este respeito, ver o interessante texto de Jean Lauand,
disponível no tópico E-Referências).
Todavia, a respeito de Boécio não interessa apenas saber se
era um autêntico pensador cristão. Sobretudo, interessa saber so-
bre quais foram as obras que produziu. Ele escreveu sobre um con-
siderável conjunto de temas, e, em todos os aspectos da Filosofia
que ele abordou, sua influência na Idade Média foi enorme.
Entretanto, sua autoridade foi mais difundida no terreno
da Lógica. Deve-se a ele um primeiro comentário sobre a Introdu-
ção (Isagoge) de Porfírio, traduzida em latim por Mário Vitorino,
e um segundo comentário sobre a mesma obra, porém acrescido
de uma tradução mais adequada, produzida por ele mesmo; uma
tradução e um comentário da obra Categorias de Aristóteles; uma
tradução e dois comentários da obra De interpretatione, um para
principiantes, outro para leitores já mais avançados; as traduções
de Primeiros Analíticos, Segundos Analíticos, Argumentos sofísti-
cos e Tópicos, de Aristóteles. Depois, uma série de tratados de
lógica:
a) Introductio ad categoricos syllogismos.
b) De syllogismo categorico.
c) De syllogismo hypothetico.
d) De divisione.
e) De differentis topicis.
f) Enfim, um comentário sobre os Tópicos, de Cícero, que
chegou incompleto até nós.

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128 © História da Filosofia Medieval

Pode-se dizer que, pelo conjunto desses tratados, Boécio foi


a grande referência no campo da Lógica da Idade Média. Até o
momento em que, no século 13 EC, o Organon completo de Aristó-
teles (isto é, as seis obras lógicas escritas por ele e que seus edito-
res agruparam logo no início das edições completas) foi traduzido
para o latim e diretamente comentado.
A própria obra lógica de Boécio será objeto de uma desco-
berta progressiva. Desde Alcuíno até meados do século 12 EC, en-
contrar-se-ia aos poucos o grupo de escritos que mais tarde seria
cha­mado de Logica vetus. O Heptateuchon, de Teodorico de Char-
tres, contém quase todos esses escritos, e podemos ver o lugar
que nele ocupa Boécio:
a) Porfírio: Introdução.
b) Aristóteles: Categorias; De interpretatione, Primeiros
Analíticos, Tópicos, Sophistici elenchi.
c) Pseudo-Apuleio: De interpretatione.
d) Mário Vitorino: De definitionibus.
e) Boécio: Introductio ad categoricos syllogismos; De syllo-
gismo categorico, De syllogismo hypothetico, De topicis
differentiis.
f) Cícero, Tópicos.
A influência de Boécio nos séculos 11 e 12 EC pode ser con-
firmada pelo fato de que os escritos de lógica de Abelardo, talvez
o mais famoso e mais controverso autor daquele período, eram
basicamente uma série de comentários sobre os comentários de
Boécio, que Abelardo conheceu pessoalmente.
Os Segundos Analíticos de Aristóteles, até então ausentes
no Ocidente, seriam agregados à lista das obras lógicas de leitura
obrigatória ao longo do século 12 EC. O resultado da redescoberta
das obras aristotélicas perdidas e dos comentários de Boécio ain-
da desconhecidos no Ocidente foi que a lista revisada constituiu o
que se convencionou chamar Lógica nova.
© U2 - Ambiente Cultural e Educacional na Idade Média 129

Mas por que Boécio foi tão influente? Será que é apenas um
efeito do acaso? O próprio Boécio chama para si esse papel de
intermediário entre a Filosofia Grega e o mundo latino. Sua inten-
ção inicial era traduzir todos os tratados de Aristóteles, todos os
diálogos de Platão, e demonstrar por comentários a concordância
fundamental das duas doutrinas.
Boécio só conseguiu cumprir efetivamente uma pequeníssi-
ma parte de seu ambicioso projeto, mas o valor de sua obra para o
Ocidente não é menos impressionante. Ele legou às gerações pos-
teriores uma obra rica e suficientemente representativa para que
sua abordagem sistemática seja sentida com clareza. Tudo indica
que os pontos principais que ele quis comunicar foram preserva-
dos e incorporados à cultura filosófica da posteridade.
Além de um tratado sobre os sentidos da vida humana e da
cultura, na excelente obra De consolatione pbilosophiae, Boécio
deu de presente à Idade Média a imagem alegórica da Filosofia
que aparece em estátuas ou nas fachadas de algumas igrejas. Tam-
bém naquela obra, Boécio forneceu uma definição de Filosofia e
uma taxonomia das ciências que lhe são subsidiárias.
A filosofia é descrita como o amor à Sabedoria. Muito além de
uma simples habilidade prática, ou mesmo de algum tipo de conhe-
cimento especulativo abstrato, ela tem um caráter de presença real.
A Sabedoria é o pensamento que pensa a si, cuja atividade põe em
movimento todas as suas partes, mas que não depende daquelas
outras coisas para que possa existir. Ela basta a si mesma.
A Sabedoria é também a fonte luminosa que torna o pensa-
mento humano claro e lhe transmite uma finalidade última, ins-
pirando-o a buscá-la. Assim, a Filosofia, ou o "amor à Sabedoria",
não apenas é entendida como a busca da Sabedoria, mas pode
com justiça significar igualmente a busca de Deus ou o amor a
Deus.
Em sua totalidade, a Filosofia é constituída por duas partes:
uma teórica ou especulativa e outra ativa ou prática. O primeiro

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130 © História da Filosofia Medieval

componente, ou seja, a Filosofia especulativa, ramifica-se em tan-


tas ciências quantas são as classes a estudar.
Há três tipos de objetos "de conhecimento verdadeiro": os
intelectíveis, os inteligíveis e os naturais. Com o termo "intelectí-
veis", que já se encontra em Mário Vitorino, Boécio refere-se aos
seres que existem ou deveriam existir fora da matéria – Deus e os
anjos, e talvez também as almas separadas de seus corpos.
Por outro lado, os "inteligí­veis" são seres concebíveis pelo
pensamento puro, mas que se encontram em corpos. São as almas
enquanto estão unidas a seus respectivos corpos. Ou seja, toma-
das isoladamente, as almas são "intelectíveis", porém quando ain-
da estão ligadas aos corpos, são "inteligíveis".
A área do saber que tem como objeto o intelectível é a Te-
ologia. Boécio não especifica qual seria o termo para se referir à
ciência do inteligível, mas, em sintonia com o pensamento dele,
bem se poderia chamá-la de "psicologia filosófica", ou, como ou-
tras tradições escolheram, "ideias psicológicas".
O terceiro tipo de objeto são os corpos naturais, cuja ciência
é a fisiologia, ou, co­mo hoje ainda se diz, a física. Designando com
um só nome o conjunto das disciplinas que a compõem, Boécio
chama de quadrivium o grupo de quatro ciências que cobre o es-
tudo da Natureza: Aritmética, Astronomia, Geometria e Música.
Para Boécio, trata-se de nada mais do que do "quádruplo caminho
para a Sabedoria".
Essas ciências são, de fato, os caminhos que a Sabedoria per-
corre, e quem os ignorasse não poderia preten­der ser alguém que
ama a Sabedoria. Como a filosofia teórica se divide de acordo com
os objetos a conhecer, assim a filosofia prática se divide de acordo
com os atos a consumar.
Ela compreende três partes: a que fornece as balizas para
que saibamos como nos conduzirmos sozinhos pela aquisição das
virtudes; a que orienta como tornar o Estado adequado para que
© U2 - Ambiente Cultural e Educacional na Idade Média 131

as virtudes prudência, justiça, força e temperança possam reinar;


e, por fim, a que trata da "economia doméstica", ou seja, da ad-
ministração da vida em família. A essas quatro partes da Filosofia
se somam três outras disciplinas, cujo conjunto forma o trivium: a
Gramática, a Re­tórica e a Lógica. Tais disciplinas não estão priorita-
riamente voltadas para o aspecto gnosiológico, mas para efetivá-
-las.
Todavia, este último ponto não é muito claro no caso da lógi-
ca. Há na lógica um componente de techné (Arte, no sentido gre-
go), ou seja, Boécio interroga-se se deve abordá-la como parte da
Filosofia ou como um instrumento a serviço dela. As duas teses
pare­cem-lhe complementares no sentido de que discernir o falso
e o verossímil do verdadeiro é uma techné.
Nesse aspecto, a Lógica está inserida na Filosofia como um
componente essencial. Todavia, cada uma das outras partes da Fi-
losofia também necessitam de um instrumental para exercer exa-
tamente a função da Lógica. Nesse sentido, a Lógica serve a todas
as outras partes da Filosofia, da mesma maneira que os membros
inferiores são partes do corpo como um todo e ao mesmo tempo
servem aos objetivos de outras partes do corpo no que concerne
ao deslocamento no espaço.
A obra lógica de Boécio é, por um lado, um grande comen-
tário à lógica do Estagirita, e, por outro, é um esforço enorme de
interpretação desta, tendo como pano de fundo a harmonia entre
esta e as teses centrais da Filosofia neoplatônica.
Não é por acaso que Porfírio está fortemente presente como
influência na obra de Boécio. Essa informação é necessária para
compreendermos o porquê das reações viscerais contrárias às po-
sições de Boécio sobre o objeto da lógica de Aristóteles no século
12 EC. Como Boécio se tornou leitura obrigatória para todos os
que queriam comentar o Órganon a partir daquele período, os que
retinham as doutrinas aristotélicas de Boécio concordavam intei-
ramente com ele.

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132 © História da Filosofia Medieval

Em contrapartida, os que identificavam os elementos neo-


platônicos, discordavam veementemente de Boécio. Aqui você não
deve se esquecer da grande controvérsia em torno dos universais
e do que o neoplatonismo de Boécio significava em tal contexto.
Voltaremos ao Problema dos Universais na Unidade 3. Po-
rém, adiantemos que este problema representou para os medie-
vais mais uma oportunidade do que uma obsessão. Ou seja, alguns
tendem a ver na Filosofia Medieval uma preocupação excessiva
com os universais, mas parece muito mais adequado descobrir nas
discussões frequentes e na versão que os autores medievais nos
legaram delas as posições metafísicas que as motivaram.
Os medievais não estavam excessivamente fascinados pelos
universais; aproveitaram as discussões para exercitar a compre-
ensão que tinham das questões mais importantes suscitadas pela
interpretação de Platão e pela harmonia ou oposição desta com a
interpretação de Aristóteles. Em relação a esse ponto, vale a pena
relembrar as palavras de Étienne Gilson:
Considera-se, com razão, como ponto de partida da controvérsia,
uma passagem de seu Isagoge (Introdução às Categorias de Aris-
tóteles), em que, depois de haver anuncia­do que seu estudo teria
por objeto os gêneros e as espécies, o platônico Porfírio acrescenta
que deixa para mais tarde a decisão sobre se os gêneros e as espé-
cies são realidades subsistentes em si ou simples concepções do
espírito; ade­mais, supondo-se que sejam realidades, ele se recusa,
en­quanto isso, a dizer se são corpóreos ou incorpóreos, en­fim, su-
pondo que sejam incorpóreos, ele declina de exami­nar se existem
à parte das coisas sensíveis ou somente uni­dos a elas. Como bom
professor, Porfírio simplesmente evitava colocar problemas de alta
metafísica no início de um tratado de lógica escrito para principian-
tes. As questões cuja discussão evitava formavam, não obstante,
um magnífico programa, bem tentador para homens que se encon-
trarão, assim, intimados a escolher entre Platão e Aristóteles sem
ter à sua disposição, pelo menos até o século XIII, nem Aristóteles,
nem Platão. Ora, o fato é que o próprio Boécio não imitou a discri-
ção de Porfírio e que, em seu desejo de conciliar Platão e Aristóte-
les, propôs as duas soluções (2006, p. 163-164).

Logo em seguida, Gilson (2006, p. 164) fala do papel de Boé-


cio nestas discussões:
© U2 - Ambiente Cultural e Educacional na Idade Média 133

Em seus dois comentários sobre a Introdução às Cate­gorias de Aris-


tóteles, é, naturalmente, a resposta de Aristóte­les que prevalece.
Boécio demonstra, em primeiro lugar, a impossibilidade de as idéias
gerais serem substâncias. A tí­tulo de exemplo, tomemos a idéia do
gênero "animal" e a da espécie "homem". Os gêneros e as espécies
são, por de­finição, comuns a grupos de indivíduos; ora, o que é co­
mum a vários indivíduos não pode ser um indivíduo. Isso é ainda
mais impossível porque o gênero, por exemplo, per­tence inteira-
mente à espécie (um homem possui inteira­mente a animalidade), o
que seria impossível se, sendo ele mesmo um ser, o gênero devesse
dividir-se entre suas di­versas participações. Mas suponhamos, ao
contrário, que os gêneros e as espécies representados por nossas
idéias gerais (universais) não sejam mais que simples noções do es-
pírito. Em outras palavras, suponhamos que absolutamente nada
corresponda, na realidade, às idéias que temos deles; nessa segun-
da hipótese, nosso pensamento não pensa nada pensando-as. Mas
um pensamento sem objeto é tão-só um pensamento de nada; não
é sequer um pensamento. Se to­do pensamento digno desse nome
tem um objeto, é preciso que os universais sejam pensamentos de
alguma coisa, de modo que o problema de sua natureza recomeça
imediata­mente a se colocar.

Na maioria das vezes, a grande controvérsia encontra-se as-


sociada ao tipo de questão que Porfírio não quis enfrentar direta-
mente. Isto é, a algo que Boécio e muitos outros filósofos antes
dele, prioritariamente em língua grega, e depois dele, prioritaria-
mente em língua latina, consideraram uma oportunidade muito
boa para ser desperdiçada.
A oportunidade era a de se posicionar com relação às duas
grande tradições filosóficas, a de Platão e a de Aristóteles. Boécio,
apesar de ser neoplatônico em muitos aspectos, curiosamente op-
tou pela posição de um comentador antigo que não era neoplatô-
nico. Novamente compensa ler o comentário de Gilson:
Em presença desse dilema, Boécio adere a uma solu­ção que toma
de Alexandre de Afrodísia. Os sentidos nos comunicam as coisas
no estado de confusão ou, pelo me­nos, de composição; nosso es-
pírito (animus), que desfruta do poder de dissociar e de recompor
esses dados, pode dis­tinguir nos corpos, para considerá-las à parte,
propriedades que só se encontram neles em estado de mistura. Os
gêne­ros e as espécies estão nesse caso. Ou o espírito os desco­bre
em seres incorpóreos, e nesse caso acha-os abstratos; ou encontra-
-os em seres corpóreos, e nesse caso extrai dos corpos o que eles

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134 © História da Filosofia Medieval

contêm de incorpóreo para considerá-lo à parte como forma nua e


pura. É o que fazemos, tirando dos indivíduos concretos dados na
experiência as noções abstratas de homem e de animal. Objetar-
-se-á, talvez, que isso ainda é pensar o que não é; mas a objeção
seria frívola, pois não há erro em distinguir pelo pensamento o que
é unido na realidade, contanto que se saiba que o que se dis­tingue
assim pelo pensamento é unido na realidade. Nada mais legítimo
do que pensar a linha à parte da superfície, embora se saiba que só
existem corpos sólidos. O erro seria pensar como conjuntas coisas
que não o são na realidade: um busto de homem e a anca de um
cavalo, por exemplo. Nada veda, pois, que se pensem à parte os
gêneros e as es­pécies, embora eles não existam à parte. É essa a
solução do problema dos universais: subsistunt ergo circa sensibi-
lia, intelliguntur autem praeter corpora, eles subsistem em liga­ção
com as coisas sensíveis, mas os conhecemos à parte dos corpos.
Portanto, Boécio transmitiu à Idade Média mais que uma simples
colocação do problema dos universais, e a so­lução que propunha
para ele era, sim, a de Aristóteles, mas não a propunha sem reser-
vas. "Platão", acrescentava, "pen­sa que gêneros, espécies e outros
universais não são apenas conhecidos à parte dos corpos, mas tam-
bém que existem e subsistem fora deles, ao passo que Aristóteles
pensa que os incorpóreos e os universais são, de fato, objetos de
conhe­cimento, mas só subsistem nas coisas sensíveis. Qual dessas
opiniões é verdadeira, não tenho a intenção de decidir, por­que é de
uma filosofia mais elevada. Assim, ativemo-nos a seguir a opinião
de Aristóteles, não que a aprovemos mais, senão porque este livro
está escrito tendo em vista as Cate­gorias, cujo autor é Aristóteles
(GILSON, 2006, 1pp. 164-165).

A grande vantagem de ler os comentários de Boécio, sobre-


tudo o segundo, no qual ele apresenta, como dissemos, a sua pró-
pria tradução da Isagoge de Porfírio, é que fica muito claro para
quem o lê que não se trata de uma discussão já resolvida. A in-
trodução que Boécio acrescenta ao seu comentário aponta justa-
mente para a ligação inexorável entre uma solução para aquelas
dificuldades e o desenvolvimento de uma "psicologia filosófica"
abrangente e sistemática.
Portanto, não é surpresa que as gerações de filósofos que se
seguiram quiseram sempre elaborar sua própria resposta e comen-
taram novamente a Isagoge. A tradição dos comentários à Isagoge
estendeu-se até o final da Idade Média – mas sempre passando
pelos comentários de Boécio.
© U2 - Ambiente Cultural e Educacional na Idade Média 135

Talvez aqui seja interessante citar o trecho do próprio Boé-


cio, em que ele apresenta a solução que lhe pareceu ser a melhor
para o Problema dos Universais:
No momento, esta é a questão sobre os assuntos mencionados
acima. Procuraremos resolvê-los, de acordo com Alexandre [de
Afrodisia], raciocinando deste modo: não sustentamos que todo
ato intelectivo que venha através de um objeto, sem que o mesmo
objeto esteja (realmente) disposto, deva ser visto como falso ou
vazio. Uma opinião falsa ocorre, em vez de um ato intelectivo, só
nas coisas constituídas por uma composição (compositio). De fato,
se alguém compõe e une com o entendimento aquilo que a natu-
reza não permite que seja unido, ninguém ignora que isto é falso,
como, por exemplo, se alguém une um cavalo e um homem em sua
imaginação e forma um centauro. Mas se aplica este procedimento
por divisão e por abstração, não é uma coisa real existente, mas
outra coisa própria do intelecto. Entretanto, esta intelecção não é
de todo falsa. De fato, existem muitas coisas que têm o seu ser em
outros [seres], dos quais não podem ser absolutamente separados,
ou, se deles são separados, não subsistem por nenhuma razão.
E para tornar isto claro através de um exemplo amplamente conhe-
cido, consideremos o seguinte: a linha é alguma coisa que existe
em um corpo. Aquilo que esta é, pertence a tal corpo, ou seja, esta
realiza o próprio ser mediante o corpo. Isto nos ensina o seguin-
te: se a linha estivesse separada do corpo, não subsistiria. Quem,
alguma vez, apreendeu com os sentidos uma linha separada de
um corpo? Mas a mente, quando apreende em si mesma as coisas
confusas e misturadas através dos sentidos, é capaz de distingui-las
mediante o pensamento.
De fato, a faculdade sensitiva nos transmite, unida aos mesmos
corpos, todas as coisas incorpóreas que têm o seu ser nos corpos.
Mas a mente, que tem a faculdade de unir as coisas desunidas e
de distinguir as coisas unidas, distingue de tal modo as coisas que
lhes são oferecidas pelos sentidos que apreende e vê a natureza
incorpórea por si sem os corpos nos quais é realizada. De fato, são
diversas as propriedades incorpóreas misturadas nos corpos, e se-
paráveis do corpo.
Portanto, os gêneros e as espécies e os demais predicáveis se en-
contram ou nas coisas incorpóreas, ou nas coisas que são corpó-
reas. Ora, se a mente as encontra nas coisas incorpóreas, então aí
tem imediatamente uma compreensão incorpórea do gênero. Se,
ao contrário, detecta os gêneros e as espécies nas coisas corpóreas,
então segundo o próprio costume remove a natureza daquilo que
é incorpóreo das coisas corpóreas e a contempla simples e pura,
como se fosse a forma em si mesma. Do mesmo modo, quando a

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136 © História da Filosofia Medieval

mente percebe essas coisas [formas ou naturezas incorporas] mis-


turadas aos corpos, separando-as [enquanto] incorpóreas, contem-
pla e examina somente as coisas incorpóreas.
Ninguém diga, portanto, que pensamos o falso a propósito da li-
nha, visto que mediante a mente a apreendemos como se estivesse
separada das coisas corpóreas, ainda que não possa existir separa-
da dos corpos.
De fato, nem toda intelecção que se concebe a partir das coisas
apreendidas, diferentes das coisas mesmas que existem, deve ser
considerada falsa, mas, como se disse acima, a única coisa que a
torna falsa é dada pela composição, como quando colocando jun-
tos um homem e um cavalo pensamos que o centauro existe [na
realidade]. Mas a intelecção que faz isto mediante divisões e abs-
trações eliminando aspectos que existem nas coisas, não somente
não é falsa, mas, antes, é a única capaz de encontrar aquilo que é
verdadeiro nas propriedades das coisas.
Portanto, coisas deste tipo existem nas coisas corpóreas e sensí-
veis, mas são conhecidas separadamente das coisas sensíveis justa-
mente com o objetivo de contemplar a natureza e compreender as
propriedades específicas (BOÉCIO apud SANTOS, 2010, p. 26-27).

O trecho que você acabou de ler exemplifica com grande


precisão tudo o que vimos nesta seção sobre Boécio. A solução
apresentada por ele faz jus à melhor tradição aristotélica, pois re-
toma o pensamento do grande comentador do Estagirita na An-
tiguidade, Alexandre de Afrodísias. Muitos o consideram como o
maior comentador grego de Aristóteles da antiguidade. Ao mesmo
tempo, Boécio deixa aberta a porta para uma das noções mais ca-
ras ao neoplatonismo, que era a da realidade do suprassensível.
Chegou o momento de passarmos a algumas considerações
muito breves sobre outras figuras relevantes da Filosofia Medie-
val.

11. ESCOTO ERÍGENA E ANSELMO DE CANTUÁRIA


João Escoto Erígena
Biografia–––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Procedia certamente da Irlanda, onde havia nascido no começo do século IX,
mas não sabemos quando deixou sua ilha para atravessar o Canal da Mancha
e começar assim a fazer parte plenamente desse mundo cultural que estava re-
© U2 - Ambiente Cultural e Educacional na Idade Média 137

nascendo em torno dos carolíngios, em particular de Carlos o Calvo, na França


do século IX. Assim como não conhecemos a data exata do seu nascimento,
tampouco conhecemos a de sua morte que, segundo os especialistas, deve ter
sido por volta do ano 870.
[...] Na verdade, o trabalho teológico de João Escoto não teve muita sorte. O
final da era carolíngia fez que se esquecessem de suas obras e uma censura
por parte da autoridade eclesiástica criou sombras sobre sua figura. João Esco-
to representa um platonismo radical, que às vezes parece aproximar-se de uma
visão panteísta, ainda que suas intenções pessoas subjetivas tenham sido sem-
pre ortodoxas. Até hoje chegaram algumas obras de João Escoto Erígena, entre
as quais merecem ser recordadas, em particular, o tratado Sobre a divisão da
natureza e as Exposições sobre a hierarquia celeste de São Dionísio (Adaptado
de PAPA BENTO XVI, 2009).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
João Escoto Erígena (c.800-877 EC) combinou o pensamen-
to de Pseudo-Dionísio Areopagita, cujas obras ele traduziu para o
Latim, com outras fontes do pensamento antigo e com Agostinho
para desenvolver um tipo de "neoplatonismo cristão". Sua obra
apresenta um conceito que considera quatro abordagens da na-
tureza:
1) Natureza criadora e não criada.
2) Natureza criadora e criada.
3) Natureza não criadora e criada.
4) Natureza não criada e não criadora.
O pensamento de Escoto Erígena também foi muito impor-
tante por ter sido desenvolvido num momento de revitalização da
educação formal.
Além disso, discutia a questão da correspondência ou não
correspondência da estrutura lógica do discurso a uma estrutura
lógica da realidade – se a decisão fosse pela primeira alternativa,
então voltar-se-ia a uma realidade voltada para o Sumo Bem, tal
qual pensado pelo neoplatonismo.

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Anselmo de Cantuária
Biografia–––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Nascido em 1033, no montanhoso vale de Aosta, norte
da Itália, desde muito cedo Anselmo tende ao caminho
da fé e da investigação que brilhantemente tomaria
pelo resto de sua vida. Aos 23 anos, sai de casa e
vaga pelas terras da Burgúndia e da França, até que,
em 1059, chega à Normandia e se instala na famosa
escola da abadia de Bec, regida pelo grande Lanfranc,
a quem viria substituir em 1063, quando este se muda
para a Cantuária.
É a partir de então que Bec cresce mais do que
nunca. Anselmo escreve aí as suas principais
obras e ganha fama, servindo também como con-
Figura 2 Anselmo de selheiro a governantes e nobres por toda a Euro-
Cantuária. pa. No ano de 1093, torna-se arcebispo da Can-
tuária, mais uma vez sucedendo o seu agora já falecido mestre Lanfranc.
Tão sólida era a sua fé cristã que enfrentou as ânsias absolutistas do próprio rei
inglês Guilherme Rufus, exilando-se por quase uma década, até que Henrique
1º, soberano de atitudes mais conciliares, fez com que Anselmo voltasse a ocu-
par a sua sé. Mas não demora muito e, insatisfeito, sai em novo exílio, até 1107.
Apesar de todos esses problemas, continua a escrever importantes obras teoló-
gicas. Anselmo morre em 21 de abril de 1109 (SANTOS, 2011).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Anselmo de Aosta ou de Cantuária (1033-1109 EC) coloca a
existência de Deus em primeiro plano em sua filosofia. Para ele,
a questão impõe-se não por uma insuficiência da fé de quem crê,
mas por exigência de uma fé pautada pela razão.
Na obra Monologion - cujo título era na verdade Exemplum
meditandi de ratione fidei –, Anselmo argumenta a favor da exis-
tência de Deus como Bem Supremo, como grandeza suprema,
como ente supremo e como natureza suprema (quatro vias ansel-
mianas).
Em seu Proslogion - cujo título era Fides quaerens intellectum -,
Anselmo argumenta a favor da condição de real e necessária da
existência de Deus, visto ser Deus o que de maior pode ser pen-
sado.
No Monologion, o caminho começa por algo de que a própria
razão, sozinha, pode se convencer: de que há uma natureza única
© U2 - Ambiente Cultural e Educacional na Idade Média 139

que se basta a si mesma em sua eterna beatitude, que é suprema


em relação a todos os entes e que, por sua bondade onipotente,
dá a todos eles a condição de serem algo e de o serem bem.
Alguns irmãos de hábito pediram-me muitas vezes e com insistên-
cia para transcrever, sob forma de meditação, umas idéias que lhes
havia comunicado em conversação familiar, acerca da essência divi-
na e outras questões conexas com esse assunto. Isto é, atendendo
mais a como deveria ser redigida esta meditação do que à facilida-
de da tarefa ou à medida das minhas possibilidades, estabelece-
ram o método seguinte: sem, absolutamente, recorrer, em nada, à
autoridade das Sagradas Escrituras, tudo aquilo que fosse exposto
ficasse demonstrado pelo encadeamento lógico da razão, empre-
gando argumentos simples, com um estilo acessível, para que se
tornasse evidente pela própria clareza da verdade (ANSELMO, Mo-
nológio, Prólogo).

Nesta teologia racional há duas dimensões da divindade: a


natureza divina em si mesma (em sua exclusiva autossuficiência)
e a acepção da natureza divina em sua relação com os entes que
dela dependem.
Fica claro, então, que a criatura racional deve colocar todo o seu
poder e querer para recordar, compreender e amar o bem supre-
mo, finalidade para a qual ela reconhece ter recebido a sua existên-
cia (ANSELMO, Monológio, Cap. LXVIII).

Contudo, o próprio Anselmo ressalva que sua exposição não


deve ser entendida separadamente de toda a tradição filosófica
cristã:
[...] se alguém tiver a impressão de que, neste opúsculo, alguma
coisa pareça demasiadamente nova ou que não esteja de acordo
com a verdade, rogo-lhe não tachar-me, precipitadamente, de ino-
vador presunçoso ou de assertor da falsidade. Leia primeiro o De
Trinitate, do citado Santo Agostinho, e, depois, julgue o meu opús-
culo segundo essa obra (ANSELMO, Monológio, Prólogo).

Há o argumento da bondade - coisas boas levando ao Bem


Supremo; o da grandeza - quantidade qualitativa; o da existência
- tem que existir para ser causa dos outros; e da perfeição - proce-
dendo não ao infinito é perfeição das perfeições.

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140 © História da Filosofia Medieval

12. PEDRO ABELARDO E PEDRO LOMBARDO


Pedro Abelardo
Biografia ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Filho de cavaleiro, Abelardo nasceu em Bourg du Pa-
lais, perto de Nantes, em 1079. O pai, que era erudito,
cuidou para que Abelardo fosse devidamente instru-
ído nas ciências da época. Abelardo apaixonou-se
tanto pelos estudos, que renunciou a carreira militar
do pai e o direito à primogenitura. O próprio Abelardo
admite, no entanto, que nunca deixou de ser solda-
do, pois adorava os torneios de lógica! Educado na
escola de Roscelino, famoso nominalista, Pedro Abe-
lardo deixou-se influenciar pelo seu mestre. Em Paris
tornou-se discípulo de Guilherme de Champeaux, o
mestre dos mestres da dialética parisiense da época
Figura 3 Pedro Abelardo. (CAMPOS, 2010).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Pedro Abelardo (1079-1142 EC) era filho de um nobre bre-
tão, mas renunciou a seguir os passos do pai para dedicar-se aos
estudos das artes liberais e da Teologia. Foi muito famoso como
mestre, poeta e tutor.
Ora aconteceu que eu me aplicasse, de início, a discorrer sobre o
próprio fundamento da nossa fé por meio de analogias propostas
pela razão humana, e que eu compusesse para os meus alunos um
tratado Sobre a Unidade e a Trindade de Deus. Eles me pediam
argumentos humanos e filosóficos, e insistiam mais naqueles que
pudessem ser entendidos do que proferidos, dizendo ser supérflua
a prolação de palavras em a compreensão das mesmas, e que não
se pode crer naquilo que antes não se entendeu, e que é ridículo
alguém pregar aos outros o que nem ele próprio nem aqueles que
ensina podem compreender com o intelecto (ABELARDO, 1973, p.
268).

A vida de Abelardo também foi marcada pela tragédia: ele se


apaixonou e se casou com Heloísa, sobrinha de um cônego pari-
siense em cuja casa ele estava hospedado. Abelardo não somente
foi submetido à emasculação, como também à rebeldia dos mon-
ges do mosteiro ao qual, como abade, tentou reformar. Também
sofreu repetidas acusações de heterodoxia em suas ideias.
© U2 - Ambiente Cultural e Educacional na Idade Média 141

Apesar de todas essas calamidades, Abelardo tornou-se im-


portante figura do escolasticismo medieval. Sua obra muito serviu
para os desenvolvimentos posteriores em Lógica e em Teologia -
em particular, na área de Teologia Moral.
Meu pai foi um pouco versado nas letras antes de haver cingido o
cinturão de soldado e mais tarde abraçou com tanto amor as letras
que se dispôs a fazer com que nelas fossem instruídos, antes dos
exercícios militares, quaisquer filhos que tivesse. E, sem dúvida,
assim foi feito. Por isso, tratou com tanto mais cuidado da minha
formação quanto mais me dedicava o seu afeto, uma vez que era
o seu filho primogênito. Eu, na verdade, quanto mais longe e mais
facilmente me adiantei nos estudos das letras, tanto mais ardente-
mente a elas me apeguei, e fui seduzido por um tão grande amor
por elas que, abandonando aos meus irmãos a pompa da glória
junto com a herança e a prerrogativa dos primogênitos, renunciei
completamente à corte de Marte para ser educado no regaço de
Minerva (ABELARDO, 1973a, p. 250).

Abelardo esteve diretamente ligado ao desenvolvimento do


ambiente de estudos em Paris e, a partir da aplicação do mode-
lo parisiense, ao desenvolvimento de outras universidades. Suas
discussões sobre o Problema dos Universais foram igualmente in-
fluentes nas discussões posteriores.
Ali, o que era mais conveniente ao meu estado de vida, eu me
aplicava grandemente ao estudo da ciência sagrada mas sem ter
abandonado totalmente o ensino das artes seculares com as quais
eu estivera mais habituado e que eles reclamavam bastante de
mim. Fiz das artes liberais uma espécie de anzol com o qual, sob
o engodo do sabor filosófico, eu os atraía ao estudo da verdadeira
filosofia, tal como a História Eclesiástica, de Eusébio, recorda que
costumava fazer Orígenes, o maior dos filósofos cristãos (ABELAR-
DO, 1973a, p. 267).

Outra figura importante para o desenvolvimento do ambien-


te e da maneira de estudar e de pensar do escolasticismo medieval
foi Pedro Lombardo (1095-1160 EC). Vamos conhecer um pouco
sobre este filósofo?

Pedro Lombardo
Biografia–––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Quem era portanto Pedro Lombardo? Mesmo se as notícias sobre a vida são
escassas, podemos contudo reconstruir as linhas essenciais da sua biografia.

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142 © História da Filosofia Medieval

Nasceu entre os séculos XI e XII, nas redondezas de Novara, no Norte da Itália,


num território outrora pertencente aos Longobardos: precisamente por isto foi-lhe
dado o apelativo "Lombardo". Ele pertencia a uma família de condições modes-
tas, como podemos deduzir da carta de apresentação que Bernardo de Claraval
escreveu a Gilduíno, superior da abadia de São Vítor em Paris, para lhe pedir
que hospedasse gratuitamente Pedro, que desejava ir àquela cidade por motivos
de estudo. [...]
Pedro Lombardo iniciou os seus estudos em Bolonha, depois foi a Reims, e por
fim a Paris. A partir de 1140 ensinou na prestigiosa escola de Notre-Dame. Esti-
mado e apreciado como teólogo, oito anos mais tarde foi encarregado pelo Papa
Eugénio III de examinar as doutrinas de Gilberto Porretano, que suscitavam
muitos debates, porque eram consideradas não totalmente ortodoxas. Tendo-se
tornado sacerdote, foi nomeado Bispo de Paris em 1159, um ano antes da sua
morte, em 1160 (Adaptado de PAPA BENTO XVI, 2010).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Pedro Lombardo coletou e sistematizou de maneira brilhan-
te o pensamento – em Latim, sententiae - de inúmeros pensadores
anteriores em seu livro das Sentenças (o título completo era
Sententiae in IV libris distinctae, que, traduzido, seria algo como
"Os quatro livros das Sentenças").
Sentenças tornou-se o principal livro de Teologia entre o sé-
culo 13 EC e o século 16 EC. Portanto, foi o ponto de partida para
as discussões filosoficamente relevantes de Alberto Magno, Tomás
de Aquino, João Duns Escoto, Guilherme de Ockham e muitos ou-
tros.
O equivalente à tese de doutorado em Teologia naquele pe-
ríodo era o comentário às Sentenças de Pedro Lombardo que o
candidato a doutor em Teologia produzia. Por consequência, na
maior parte dos casos o ensino de Teologia era baseado em tais
comentários.
A atualidade de Pedro Lombardo pode ser vista claramente
pela referência feita recentemente a ele por Bento XVI:

Papa explica Pedro Lombardo ––––––––––––––––––––––––––


Bento XVI concedeu nesta quarta-feira a última audiência geral de 2009. Em seu
encontro com fiéis e turistas esta manhã na Sala Paulo VI, o pontífice prosseguiu
a série de catequeses que vem fazendo sobre a cultura cristã da Idade Média. O
tema de hoje foi o teólogo Pedro Lombardo.
© U2 - Ambiente Cultural e Educacional na Idade Média 143

Pedro Lombardo ensinou na prestigiosa escola de Notre-Dame; magistério este,


que motivou e modelou a obra-prima que nos deixou: Sentenças. Composto no
século XII, seria o livro usado em todas as escolas de teologia até ao século XVI.
O método teológico consistia em dar a conhecer, estudar e comentar o pensa-
mento dos Padres da Igreja. Depois de ter cuidadosamente recolhido as senten-
ças – isto é, as fontes patrísticas –, ele distribuiu-as num quadro sistemático e
harmonioso, que inclui quase todas as verdades da fé católica.
"Face aos riscos atuais de fragmentação e desvalorização de algumas verdades,
o papa destacou a exigência irrenunciável da apresentação orgânica da fé, pois
as diversas verdades iluminam-se mutuamente, e apresentam, em sua visão to-
tal e unitária, a harmonia do plano de salvação e a centralidade do mistério de
Cristo" - disse aos presentes.
Bento XVI repetiu esta explicação em várias línguas, como o faz sempre nas au-
diências abertas ao público. E na sequência, saudou diretamente os peregrinos
de língua portuguesa, agradecendo os votos, preces e sinais de amizade rece-
bidos nestes dias de festa. Naturalmente o papa fez votos de felicidades a todos
pelo ano novo que se inicia (RADIO VATICANA, 2010).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Os estudiosos de filosofia medieval frequentemente recor-
rem aos comentários escritos pelos principais filósofos às Senten-
ças de Pedro Lombardo. Como seguiam a ordem do texto, ou seja,
os temas tradicionalmente tratados nos comentários ao livro vi-
nham sempre no mesmo lugar.
Como muitos dos expoentes da Filosofia Medieval não tive-
ram oportunidade de escrever obras sistemáticas, a única oportu-
nidade de comparar o pensamento de um filósofo com o de outro
de maneira mais ou menos inequívoca era recorrendo ao texto
onde se sabia de antemão que cada autor tinha que se posicionar
sobre os mesmos temas.
É claro que num contexto anterior a Gutemberg não se pode
exigir de todos os autores conhecer os textos de maneira compe-
tente e rigorosa. Porém, o fato ressaltado pelo texto do papa que
acabamos de ler – de que Pedro Lombardo apresentou os pontos
básicos da fé de maneira orgânica – acaba por auxiliar a compara-
ção entre pensadores muitos distintos.
Todos tinham que escrever seus comentários de maneira já
muito bem definida pela tradição e acabavam por se posicionar
com clareza a favor ou contra as interpretações das principais es-
colas filosóficas medievais.

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144 © História da Filosofia Medieval

13. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS


Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu
desempenho no estudo desta unidade:
1) A Filosofia Medieval tinha uma abordagem muito interessante sobre o pa-
pel das auctoritates e utilizava um método de ensino muito específico. Em
que medida estes dois fatores influenciaram a maneira como os estudantes
medievais estudavam?

2) Em quais grupos os principais autores medievais podem ser inscritos, levan-


do em conta a sua postura quanto à relação razão e fé? Qual é a caracterís-
tica principal de cada grupo?

3) Qual era a exigência básica para se poder fazer os estudos nos cursos univer-
sitários medievais? Quais faculdades existiam naquele período?

4) Por que Boécio foi tão influente na Idade Média? Será que isto foi apenas
um efeito do acaso?

5) Qual é a importância de Pedro Lombardo para o estudo de importantes te-


mas da Filosofia Medieval?

6) Tendo em vista o desenvolvimento do platonismo, estabeleça de forma clara


em que sentido as figuras de Plotino, Porfírio e Proclo são interessantes para
entendermos o pensamento de Boécio.

14. CONSIDERAÇÕES
Nesta unidade, você aprendeu um pouco mais sobre o sur-
gimento das primeiras universidades. Aprendeu sobre os métodos
e os componentes da vida docente e da vida estudantil e sobre
como a Filosofia era parte da vida de mestre e estudantes.
A Filosofia continuou a ser encarada como o melhor estilo
de vida possível. Nos casos mais emblemáticos, de Boécio e de
Abelardo, ela serviu muito para consolá-los nos momentos em que
enfrentaram suas calamidades pessoais.
Era a profissão dos intelectuais medievais, mas também in-
fluenciava diretamente seu estilo de vida e suas esperanças para o
futuro, para a vida presente e para a vida depois da vida terrena.
© U2 - Ambiente Cultural e Educacional na Idade Média 145

Como você viu, o conhecimento e a discussão de várias das


contribuições da Filosofia Clássica não cessou. Porém, outros pon-
tos ganharam destaque e novas e importantes contribuições foram
feitas por Boécio, Anselmo, Abelardo e vários outros.
Várias obras dos autores clássicos mais importantes foram
perdidas no Ocidente cristão e isso teve, é claro, grandes impli-
cações. Neste momento, portanto, é interessante que você tenha
contato com alguns dos problemas e das doutrinas que assumiram
papel central na Filosofia Medieval a partir do momento em que
tais obras voltaram a circular no Ocidente cristão em traduções
latinas. Todos esses elementos serão apresentados com clareza na
próxima unidade.

15. E-REFERÊNCIAS

Lista de figuras
Figura 1 Boécio. Disponível em: <http://symploke.trujaman.org/index.php?title=Boecio>.
Acesso em: 16 jan. 2010.
Figura 2 Anselmo de Cantuária. Disponível em: <http://www.dm.ieab.org.br/imagens/
sobre/ieab/anselmo.gif >. Acesso em: 08 fev. 2011.
Figura 3 Pedro Abelardo. Disponível em: <http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/
hfe/momentos/abelardo/index.html>. Acesso em: 18 jan. 2010

Sites pesquisados
CAMPOS, S. L. de B. Pedro Abelardo: "Intelligo ut Credam". Disponível em: < http://www.
filosofante.org/filosofante/?mostra=noticia&ver=1&id=186&le=F02&label=F%E9%20
e%20Raz%E3o>. Acesso em: 18 jan. 2010.
HIRSCHBERGER, J. Boécio: o último romano. Disponível em: <http://www.consciencia.
org/filosofia_medieval5_boecio.shtml>. Acesso em: 15 dez. 2009.
LAGE, A. C. P. Universidade Medieval. Disponível em: <http://www.histedbr.fae.unicamp.
br/navegando/glossario/verb_c_universidades_medievais.htm>. Acesso em: 15 dez.
2009.
LAUAND, J. Cassiodoro e as Institutiones: o trabalho dos copistas. Disponível em: < http://
www.hottopos.com/videtur31/jean-cassiodoro.htm>. Acesso em: 04 fev. 2011.
MEIRINHOS, J. F. A Filosofia no Século XII – Renascimento e resistências, continuidade e
renovação. Disponível em: <http://www.hottopos.com.br/mirand9/meirin.htm>. Acesso
em: 15 dez. 2009.

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146 © História da Filosofia Medieval

OLIVEIRA, T. Universidades medievais: uma história e uma memória educacional. Disponível


em: <http://www.faced.ufu.br/colubhe06/anais/arquivos/164TerezinhaOliveira.pdf>.
Acesso em: 05 Jan. 2010.
PAPA BENTO XVI. Santo Anselmo de Aosta. Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_
father/benedict_xvi/audiences/2009/documents/hf_ben-xvi_aud_20090923_po.html>.
Acesso em: 15 dez. 2009.
PAPA BENTO XVI. Bento XVI apresenta filósofo e teólogo João Escoto Erígena. Disponível
em: < http://www.zenit.org/article-21843?l=portuguese>. Acesso em: 08 fev. 2011.
PAPA BENTO XVI. Pedro Lombardo: organizador da Teologia de seu tempo!. Disponível
em: <http://www.promotoresdavida.org.br/teologos/213-pedro-lombardo-organizador-
da-teologia-de-seu-tempo>. Acesso em: 07 fev. 2011.
PAPA JOÃO PAULO II. Fides et ratio. Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/
john_paul_ii/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_15101998_fides-et-ratio_po.html>.
Acesso em: 05 jan. 2010.
RADIO VATICANA. Papa explica Pedro Lombardo. Disponível em: <http://www.
radiovaticana.org/BRA/Articolo.asp?c=345709>. Acesso em: 05 jan. 2010.
SANTOS, B. S. Antologia de textos (Porfírio, Boécio, Ockham). Disponível em: <http://
www.bentosilvasantos.com/cms/index.php?download=OS%20UNIVERSAIS%20-%20
Porfirio,%20Boecio%20e%20Ockham.pdf>. Acesso em: 17 dez. 2010.
SANTOS, R. Argumento ontológico provoca discussões até hoje. Disponível em: <http://
educacao.uol.com.br/filosofia/anselmo-de-cantuaria.jhtm>. Acesso em: 07 fev. 2011.

16. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ABELARDO, P. A história das minhas calamidades. São Paulo: Abril, 1973.
______. Lógica para principiantes. São Paulo: Abril, 1973.
ANSELMO DE BEC, S. Monológio. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
______. Proslógio. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
BOÉCIO Escritos. (OPÚSCULA SACRA). São Paulo: Martins Fontes, 2005.
BOEHNER, P.; GILSON, E. História da filosofia cristã. Petrópolis: Vozes, 1970.
DE LIBERA, A. A filosofia medieval. São Paulo: Loyola, 1998.
GILSON, E. O espírito da filosofia medieval. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
NASCIMENTO, C. A. R. do O que é filosofia medieval. São Paulo: Brasiliense, 1992.
REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia: Patrística e Escolástica. São Paulo: Paulus,
2005. v. 2.
SAVIAN FILHO, Juvenal. Introdução. In: BOÉCIO. Escritos: Opuscula Sacra. São Paulo:
Martins Fontes, 2005.
STEENBERGHEN, F. V. História da Filosofia: período cristão. Lisboa: Gradiva, 1984.
ZILLES, U. Fé e razão no pensamento medieval. Porto Alegre: Edipucrs, 1996.
EAD
Aristotelismo
e Neoplatonismo
no Pensamento
Medieval Ocidental
3
1. OBJETIVOS
• Contextualizar a recepção e os desdobramentos da filoso-
fia de Aristóteles na Idade Média.
• Discutir alguns dos temas mais centrais da Filosofia Me-
dieval.

2. CONTEÚDOS
• Influência Aristotélica na formação do pensamento oci-
dental.
• Filosofia em Árabe: Averróis e Avicena.
• Santo Tomás de Aquino, Guilherme de Ockham e Duns
Escoto.
• Essência, Existência e Individuação.
• O Problema dos Universais.
• Segunda escolástica.
148 © História da Filosofia Medieval

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que
você leia as orientações a seguir:
1) Lembre-se de que o estudo de História, incluindo a His-
tória da Filosofia, pressupõe um acúmulo de conheci-
mentos que é indispensável à compreensão dos conteú-
dos vindouros. A partir das questões autoavaliativas que
você respondeu na unidade anterior, avalie suas dificul-
dades até aqui e releia o conteúdo que julgar necessário.
Isso será de grande valia para o estudo desta unidade.
2) Agora que chegamos à última unidade do estudo de
História da Filosofia Medieval, vale a pena assistirmos
a alguns filmes sobre o assunto. Lembre-se de que, em-
bora a linguagem cinematográfica seja interessantíssi-
ma como instrumento lúdico para melhor visualização
de um contexto histórico, você deve sempre manter-se
atento e crítico. O olhar crítico é indispensável para que
valha pena a experiência do cinema. A seguir, você terá
algumas indicações de filmes que retratam o contexto
medieval:
• O sétimo selo (1957). Direção: Ingmar Bergman. Tema:
Peste Negra na Idade Média, cavalaria, Cruzadas. In-
teressante para um primeiro contato com o ambiente
medieval.
• O nome da rosa (1986). Direção: Jean-Jacques An-
naud. Baseado no romance homônimo do italiano
Umberto Eco, esse suspense retrata o período da Es-
colástica, a proibição às obras da Filosofia Clássica e a
ação dos tribunais da Inquisição.
• Em nome de Deus (1988). Direção: Clive Donner. Esse
drama épico retrata a bela e triste história de Pedro
Abelardo e Heloísa. Traz como pano de fundo as uni-
versidades medievais e o contexto filosófico da Esco-
lástica.
© U3 - Aristotelismo e Neoplatonismo no Pensamento Medieval Ocidental 149

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
A recepção das obras de Aristóteles no Ocidente cristão sig-
nificou um salto de qualidade na discussão de questões tradicio-
nais da Filosofia e, ao mesmo tempo, introduziu elementos impor-
tantes para a discussão de novos temas.
As traduções para o Latim das obras dos pensadores que es-
creveram em Árabe foram elementos determinantes nesse contex-
to. Contudo, tais traduções teriam permanecido incompreensíveis
se não fosse o trabalho de interpretação e explicação de autores
como Alberto Magno, Tomás de Aquino, João Duns Escoto e tantos
outros.
A criatividade daqueles autores na elaboração de distinções
lógicas e metafísicas era imensa. Os textos escritos por eles foram
extremamente numerosos e a grande maioria permanece em for-
mato manuscrito e no Latim original.
Mesmo assim, o interesse que despertavam não desapare-
ceu. Vários dos autores mais estudados da Filosofia Moderna e
Contemporânea deram seus primeiros passos filosóficos mais ar-
rojados depois de lerem e estudarem autores medievais.
Entretanto, o interesse da Filosofia Medieval para as discus-
sões atuais não precisa ser a única justificativa para estudar aque-
les autores. Você ficará ainda mais convencido disso com a leitura
e o estudo propostos nesta unidade.
Portanto, nesta unidade você se familiarizará um pouco mais
com a História da Filosofia em Árabe. A partir desse contexto, você
perceberá que discussões a respeito de temas como a Essência e
a Existência, a verdade que vem pela fé e a verdade que vem pela
razão, o problema da Individuação, e, principalmente, discussões
a respeito do Problema dos Universais, são excelentes portas para
o aprofundamento do estudo da Filosofia Medieval.

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150 © História da Filosofia Medieval

5. FALSAFA – A FILOSOFIA EM ÁRABE – AVERRÓIS E


AVICENA
A história da Filosofia em Árabe remonta quase às origens
do próprio Islã. Nos primeiros séculos após sua fundação (622 EC)
já havia no ambiente cultural islâmico o costume de discutir ques-
tões teológicas com uma abordagem filosoficamente muito inte-
ressante, pois importantes textos científicos, médicos e filosóficos
da tradição siríaca estavam disponíveis e eram estudados. A lógica
aristotélica era usada nos debates teológicos.
No século 9º EC, iniciou-se um intenso movimento de tra-
duções em Bagdá e, como consequência, iniciaram-se profundos
debates sobre Lógica, Gramática, Teologia e Filosofia, por parte de
muçulmanos, judeus e cristãos.
Tais debates versaram sobre a estrutura e a fundação do cos-
mos, sobre as naturezas das entidades no mundo físico, a relação
do ser humano com o divino transcendente, os princípios da Me-
tafísica, a natureza da Lógica, os fundamentos do conhecimento
humano e a busca pela vida feliz.
Portanto, consideramos que o período que vai do século 9º
EC ao século 13 EC é o período clássico da formação da Filosofia
em Árabe. Notamos que nesse período se encontram Al Kindi, Al
Farabi, Avicena, Avicebrom, Averróis e Maimônides, entre outros.
Há que se observar que a Filosofia em Árabe não se reduziu, por-
tanto, aos pensadores etnicamente árabes, mas incluiu também
pensadores persas e judeus.
Também é fato notável que a Falsafa (A filosofia em língua
árabe) não esteve preocupada apenas com o pensamento de Aris-
tóteles, mas sentiu fortemente a influência do pensamento ne-
oplatônico. Isto não é surpresa quando se considera que quase
todos os principais comentadores gregos, com a exceção de Ale-
xandre de Afrodísias, eram neoplatônicos.
© U3 - Aristotelismo e Neoplatonismo no Pensamento Medieval Ocidental 151

Não iremos nos dedicar a estabelecer aqui um contraste


entre Filosofia Árabe e Filosofia Judaica. Embora se saiba que as
histórias destas duas correntes se distinguem em alguns pontos,
sabe-se que no período clássico da falsafa ambas caminharam pa-
ralelamente. A denominação que optamos por utilizar, "Filosofia
em Árabe", permite falar dos traços comuns de ambas sem a ne-
cessidade de tal contraste.
A recepção da Filosofia em Árabe na Europa Ocidental evi-
dencia o papel preponderante que textos escritos em Árabe tive-
ram para a História da Filosofia Ocidental. Encontram-se testemu-
nhos de estudos árabes no sul da Itália e na Sicília que datam do
século 12.
Observando os textos filosóficos em Árabe ou suas tradu-
ções que chegaram até nós, notamos uma grande riqueza. Dentre
outros pontos, destacam-se:
• As traduções árabes de textos filosóficos gregos.
• Os tratados sistemáticos sobre a Falsafa.
• Os comentários à obra de Aristóteles, de Al Farabi a Aver-
róis.
A Falsafa é, portanto, uma importante via para o estudo da
tradição filosófica, pois serve para estabelecer uma ligação entre
a Filosofia Clássica e a Filosofia Ocidental. Os textos foram tradu-
zidos para o Latim ao longo dos séculos, principalmente pelos es-
forços concentrados de tradutores de Toledo a partir da metade
do século 12 EC. Os tradutores mais importantes daquele período
foram Gerardo de Cremona e Domingos Gundissalvo.
Os insights de Averróis e seus comentários exaustivos aos
textos aristotélicos foram inicialmente recebidos com muita sim-
patia, porém logo ficou claro aos estudiosos do Ocidente cristão
que em Averróis havia argumentos e doutrinas que causavam per-
plexidade. Sobretudo com relação à eternidade do mundo e à na-
tureza da alma, havia uma clara discordância com a crença cristã
na criação ex nihilo e na imortalidade da alma humana individual.

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152 © História da Filosofia Medieval

Esta breve apresentação certamente não faz jus à importân-


cia desse tema para o estudo da Filosofia Medieval. Porém, pode
servir de estímulo para que você procure ler mais a respeito e se
aprofundar no assunto. Um exemplo de texto que poderá servir
para tal finalidade é o livro Falsafa - a filosofia entre os árabes, de
autoria de Miguel Attie Filho. Nele você encontrará, dentre outras
informações interessantes, o seguinte trecho:
[A] principal característica da falsafa é ser medieval. Tal condi­ção
traz consigo uma grande bagagem de pré-conceitos a respeito da
Idade Média e, consequentemente, da filosofia praticada nesse pe-
ríodo. Se a binômia tabuleta em que se lê "razão e fé" pôde guardar
um olhar estreito em relação ao todo da filosofia medieval, mais
ainda poderia sê­-lo em relação à falsafa. A isso se acrescenta, não
raramente, uma visão distorcida dos povos semitas, de modo geral,
e dos árabes, em particular.
Outra característica da falsafa é ter sido uma novidade no cenário
da filosofia que, até então, já se havia construído e alicerçado ao
longo de, pelo menos, 1200 anos. Afinal, até o século VIII d.C., a
filosofia havia se desenvolvido principalmente entre os povos gre-
gos, no interior do império romano e entre a cristandade do Orien-
te e do Ocidente. A novidade repousa no fato de que, nesse pano-
rama de povos e culturas, também passou a figurar o povo árabe.
E, assim como o helenismo, quando absorvido por outras culturas,
teve que se adaptar às características locais, o mesmo aconteceu
no caso da falsafa. Os ingredientes da filosofia e das ciências gre-
gas também se adaptaram à cultura e à religião dos árabes. Esse
encontro resultou numa filosofia original e renovada que não se
confunde com particularidades filosóficas anteriores. Além disso,
a filosofia que havia sido até então um patrimônio praticamente
exclusivo da língua grega, latina e siríaca, chegou, pela primeira vez,
a ser escrita em língua árabe. Nesse caso, não é difícil imaginar que
os termos e os conceitos filosóficos tiveram de seguir um novo iti-
nerário para serem adaptados ao novo idioma.
Outro ponto relevante é o fato de a filosofia se confrontar com uma
nova religião. O islamismo recebeu a filosofia pouco mais de 150
anos pós o seu nascimento. A filosofia, nascida entre os mitos gre-
gos, trans­portada juntamente com os deuses para o panteão de
Roma, absorvida pelos padres da igreja para cimentar os dogmas
da cristandade, havia se confrontado, até então, com outras formas
de religião, mas não ainda com o islamismo. Foi a falsafa que se en-
carregou de fazer com que os princípios filosóficos se deparassem,
pela primeira vez, com os dogmas religião islâmica, o que foi sem
dúvida um novo desafio para ambas.
A falsafa foi a responsável não só pela imersão do pensamento da
filosofia grega entre os árabes, mas também pela transmissão da
filosofia grega ao Ocidente. Na medida em que o paradigma gre-
© U3 - Aristotelismo e Neoplatonismo no Pensamento Medieval Ocidental 153

go foi um dos res­ponsáveis pela construção filosófica do Ocidente,


não é difícil imaginar que falsafa ocupe um lugar histórico muito
peculiar. Sobre o meridiano da filosofia oriental e ocidental, a meio
caminho da contemplação de dois – ou mais – caminhos, a falsafa
contribuiu sobremaneira para inúmeras transformações da filoso-
fia do Oriente e do Ocidente. É assim que, por exemplo, muitas
teses desenvolvidas no interior da falsafa possuem ­aos moldes das
duas faces da alma propostas por Ibn Sīnā – duas frontes distintas:
uma voltada para o Oriente e a outra para o Ocidente (ATTIE FILHO,
2002, p. 32-34).

Com a leitura desse trecho escrito pelo Prof. Miguel Attie Fi-
lho, você certamente se convenceu de que a Filosofia em língua
árabe é um tema muito interessante e genuinamente filosófico, e
não é uma versão menos original da Filosofia. Ao contrário, a tradi-
ção filosófica grega, com todos os seus valores e originalidade, foi
preservada pelos povos do Oriente Médio, de parte da África e da
parte da Europa onde se falava Árabe.
Você verá que essa tradição foi retransmitida ao Ocidente
Cristão e foi fundamental para os grandes desenvolvimentos filo-
sóficos daquele período.

6. SANTO TOMÁS DE AQUINO


Santo Tomás de Aquino

Biografia ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Tomás de Aquino nasceu pelos fins de 1224, em
Roccaseeca, na região de Nápoles, de uma família
nobre. Aos cinco anos foi para o Claustro de Mon-
te Cassino. Aos quatorze vai estudar em Nápoles.
Teve como mestre do quadrivium Pedro de Hibérnia,
autor de comentários sobre Aristóteles e a quem To-
más deve o seu primeiro contacto com os filósofos
gregos. Aos vinte anos entra na ordem dos domini-
canos, dirigindo-se um ano depois para Paris, onde
continua os estudos; e depois, de 1248 a 1252, em
Colônia, junto de Alberto Magno. [...] Na côrte-papel
travou conhecimento com o seu confrade Guilher-
me de Morbeca (Moerbeke), que lhe fez seguras
traduções das obras de Aristóteles e também tra-
duziu para latim tratados de Proclo, Arquimedes, do
comentador de Aristóteles, Alexandre de Afrodísias,
Figura 1 Tomás de Aquino.

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154 © História da Filosofia Medieval

Temístio, Amônio, João Filopono e Simplício, o que foi de extraordinária impor-


tância para Tomás e a sua filosofia. De 1269 a 1272 acha-se de novo em Paris,
alcançando, nesses anos, o auge da sua vida científica. Mas também cheios, por
certo, de aborrecidas lutas contra os professores do clero secular que, como por
ocasião da sua primeira estada em Paris, também agora se voltam contra o en-
sino dos regalares. A essas acrescentam-se as lutas contra o averroísmo latino
ou antes, o aristotelismo radical de Sigéeio de Brabante e de Boécio de Dácia.
E ainda contra as oposições provenientes da escola franciscana, sobretudo de
João Peckham. [...] Convocado por Gregório X para o Concílio de Lião, morre
na viagem, aos 7 de março de 1274, no Convento dos cistercienses em Fossa
nuova (Adaptado de HIRSCHBERGER, 2010).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
A figura de Tomás de Aquino (1225-1274 EC) é emblemática
no contexto do pensamento da Idade Média. Do ponto de vista da
Teologia Cristã, não há qualquer dúvida de que Tomás foi a grande
figura do período. Ele recebeu vários títulos apreciativos: "Doutor
Angélico", "Doutor Comum", "Doutor Universal", "Divino Tomás",
dentre outros.
A proeminência de sua obra teológica poderia levar a pen-
sar que esse foi o único campo do saber no qual ele atuou com
excelência, ou pelo menos que foi o principal. Todavia, sabemos
que suas demais contribuições filosóficas foram importantíssimas
e duradouras.
A excelência filosófica de Tomás é hoje menos conhecida,
dentre outras razões, porque a Filosofia Medieval como um todo é
pouco conhecida. Porém, os últimos anos têm testemunhado um
crescente interesse e um número considerável de publicações de-
dicadas justamente aos pontos centrais da filosofia de Tomás.
As generalizações apressadas encontradas em biografias
resumidas de filósofos ou em apresentações "sintéticas" de cor-
rentes filosóficas propagam muitas vezes a noção de que há uma
"filosofia aristotélico-tomista". Essa abordagem sugere que Tomás
apenas continuou ou explicou o pensamento de Aristóteles.
A rigor, tal ponto de vista se mostra inadequado. A razão
para o recusarmos é justamente o fato de que nos quinze séculos
ou mais que separam Aristóteles de Tomás a Filosofia se desenvol-
© U3 - Aristotelismo e Neoplatonismo no Pensamento Medieval Ocidental 155

veu em aspectos que Aristóteles não contemplou e nem poderia


ter contemplado, pois o estoicismo, o ceticismo, o neoplatonismo
e o cristianismo lhe são temporalmente posteriores.
Obviamente, há uma relação muito próxima entre a filosofia
do Estagirita e elementos importantes da filosofia de Tomás, pois
este último dedicou muito de sua impressionantemente e extensa
obra a comentar e a explicar a obra de Aristóteles. Entretanto, há
sinais claros de que Tomás tratou de temas e questões das quais
Aristóteles não tratou, pelo menos não de maneira explícita ou
clara.
Não faltam exemplos de inovação na obra de Tomás, quando
comparada com a obra de Aristóteles. A noção de criação ex nihilo,
a inserção da matéria primeira no contexto temporal, a postulação
de que o objeto da Metafísica é o ens commune. Todas são dou-
trinas que consideram a Filosofia Aristotélica, mas que não foram
tratadas por Aristóteles em qualquer parte de sua obra.
Como acontece com as principais correntes filosóficas, há
uma boa medida de controvérsia na identificação de uma nota
fundamental da filosofia de Tomás. Um grande número de espe-
cialistas, sobretudo aqueles ligados às leituras de Tomás do início
do século 20 EC, insiste que o tomismo é, sobretudo, uma filosofia
realista, pois consideram que Tomás parte da realidade em suas
análises.
Tais autores confirmam suas opiniões com a constatação de
que a Suma teológica de Tomás faz referências muito frequentes a
realidades concretas. Porém, há uma tendência crescente nos dias
atuais a ler Tomás mais como um conceptualista.
Lembremo-nos de que Tomás é historicamente anterior a
autores como Guilherme de Ockham e João Duns Escoto, não ten-
do, portanto, se posicionado em termos de "realismo" e "nomina-
lismo", como o fizeram posteriormente escotistas e ockhamistas.

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156 © História da Filosofia Medieval

Uma justificativa mais convincente para considerar o to-


mismo como "realista" é a predileção de Tomás pela aplicação da
"abstração". Segundo o Prof. Landim Filho (2009), assim se deve
entendê-la:
A filosofia tomásica distingue três modos de abstração: [i] a abs-
tração do todo, também denominada de abstração do universal a
partir do particular; [ii] a abstração da forma da matéria sensível
e, [iii] finalmente, uma operação do intelecto que alguns denomi-
nam de abstração precisiva, que se caracteriza por excluir o princí-
pio individuante da natureza específica de uma coisa. Note-se que
esse "modo de abstração" explica a formação de termos abstratos,
tais como "brancura, "humanidade", a partir de termos concretos,
como "branco", "homem", obtidos por abstração do todo. Tomás,
no entanto, não denomina essa operação de abstração.

Nesse trecho, vemos claramente as características que aca-


bamos de destacar na obra de Tomás de Aquino. Por um lado,
trata-se de uma abordagem filosófica cujo ponto de partida é Aris-
tóteles. O método da "abstração" vem do Estagirita. Entretanto, o
uso que Tomás faz de tal método é próprio e sua aplicação difere
daquela feita por Aristóteles, que o utilizou em contexto diverso.
Por outro lado, a relação com a realidade é clara, pois em
todos os modos de abstração, o ponto de partida é o particular,
o material. Nesse sentido, de fato é possível afirmar que o pensa-
mento de Tomás tem um caráter realista.
As implicações de tal orientação são diversas e cheias de
consequências. O mesmo Prof. Landim Filho (2009) observa:
Mas, no contexto da epistemologia tomásica, a abstração faz parte
de uma "teoria" mais geral de distinção entre as coisas. Na expli-
cação do que é conhecer, Tomás distinguiu, ao menos duas, ope-
rações do intelecto: a intelecção dos indivisíveis, denominada pos-
teriormente de apreensão quididativa e o juízo por composição e
divisão. Pela primeira operação, o intelecto apreende o que é a coi-
sa, isto é, apreende uma quididade ou uma propriedade inteligível.
A segunda operação visa "o ser da coisa", isto é, visa a atualidade
ou a realidade daquilo que foi apreendido pela primeira operação.
Como a verdade é a conformidade do intelecto à coisa, o juízo por
composição e divisão, na medida em que visa "o ser da coisa", en-
volve verdade ou falsidade.
© U3 - Aristotelismo e Neoplatonismo no Pensamento Medieval Ocidental 157

Os preconceitos com relação à Filosofia Medieval são ain-


da mais infundados no que concerne ao pensamento de Tomás. A
atitude dele com relação à verdade nada tem de "dogmática" no
sentido corrente do termo.
Para alguém que estiver em dúvida a respeito da honestida-
de intelectual de Tomás, basta observar que em sua obra ele fre-
quentemente diz que a busca da verdade não passa pela aceitação
irrestrita ou pela rejeição da opinião de quem quer que seja. Isso
fica claro quando o próprio Tomás afirma que "O estudo da filoso-
fia não é para se saber o que os homens pensaram, mas para que
se manifeste a verdade" (De coelo et mundo, I, 22. In: AQUINO,
1998).
Frases como essa não deixam dúvidas quanto à verdadeira
motivação de Tomás. Some-se a esse fato a abertura que ele con-
feriu à leitura de Avicena e Averróis e a frequência com que citou
os dois como autoridades para questões filosóficas. Quando suas
posições filosóficas estavam em desacordo com algum dos dois,
Tomás foi igualmente justo e apontou o que julgava ser o erro da
posição contrária à sua.
Tomás também ajuda a compreender melhor a característi-
ca medieval de organizar-se em torno das "escolas". Não somente
havia uma preocupação de classificar o pensamento próprio ou do
autor que se estava estudando. Parte importante da interpretação
dada à determinada doutrina ou trecho citado passava pela iden-
tificação precisa do contexto "escolástico" no qual se inseria tal
doutrina ou autor.
Isso demonstra uma consciência de que o saber é construído
de maneira coletiva e articulada. Tomás afirma:
Os homens mutuamente se auxiliam para a consideração da verda-
de. De duas maneiras: um auxilia o outro nesta consideração: dire-
ta ou indiretamente. Diretamente, são auxiliados por aqueles que
encontraram a verdade, porque, como foi dito acima, enquanto
cada um dos que a encontraram, as introduz num só contexto que
introduz os pósteros em grande conhecimento da verdade. Indire-

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158 © História da Filosofia Medieval

tamente, enquanto os anteriores, errando a respeito da verdade,


deram aos posteriores ocasião de se exercitarem, para que, havida
por sua diligente discussão, a verdade apareça com clareza [In II
Met. 1, n° 289] (apud MOURA, 2009).

Como conclusão deste tópico, convém ler com atenção o tre-


cho que D. Odilo Moura cita na introdução de sua tradução de A
Filosofia de S. Tomás de Aquino e as XXIV Teses Tomistas:
Lê-se num dos magistrais livros de Tresmontant: "O cristianismo
comporta - é isto que este trabalho quer pôr em luz - certas impli-
cações e certas teses, uma certa estrutura metafísica que não são
quaisquer. Quero dizer que as questões admiravelmente reconhe-
cidas como derivadas do domínio metafísico, relativas ao ser criado
e ao ser incriado, ao uno e ao múltiplo, o futuro, a temporalidade,
o material e o sensível, a alma e o corpo, o conhecimento, a liber-
dade, o mal, etc. – o cristianismo acrescenta algumas respostas que
lhe são próprias (ainda que comuns com o judaísmo), originais e
que o definem, o constituem no plano metafísico. A doutrina cristã
do Absoluto deriva por uma parte, e sob certo ângulo da metafísica…
Por que a doutrina cristã do Absoluto não entrará com o mesmo
título que as outras na história das filosofias humanas?[...] A Escri-
tura Sagrada, a teologia bíblica, a teologia cristã contêm na verdade
um número de doutrinas, de teses, que por direito decorrem da
razão natural. Existe uma filosofia natural no interior da Revelação"
(MOURA, 2009).

Neste trecho veem-se expressas várias características da fi-


losofia de Tomás de Aquino, que são também em grande medida
características marcantes da Filosofia Medieval. A partir do que foi
exposto neste tópico emerge uma apresentação da originalidade
da filosofia de Tomás, que ao mesmo tempo leva em conta as ba-
ses genuinamente filosóficas da mesma.
Inovação e fidelidade à tradição são dois dos talentos mais
fortes do pensamento de Tomás de Aquino. Mas será que ele sem-
pre filosofou partindo ou balizando-se pela Bíblia ou por autores
cristãos? Se assim foi, como podemos distinguir sua Teologia de
sua Filosofia?
© U3 - Aristotelismo e Neoplatonismo no Pensamento Medieval Ocidental 159

Metafísica Tomista
Tomás escreveu sua Summa contra gentiles entre 1258 e
1264. Basicamente, ela continha duas seções. A primeira era com-
posta pelos Livros I, II e III, que cobrem as verdades que são natu-
ralmente acessíveis ao intelecto humano. A segunda é o Livro IV,
que cobre as verdades cujo acesso não se dá pela razão natural,
tais como as verdades relativas à Trindade, à Encarnação, aos sa-
cramentos cristãos e à Ressurreição.
Portanto, a primeira parte da Summa contra gentiles trata
das verdades sobre Deus que são conhecidas por intermédio das
capacidades naturais do entendimento humano. Ou seja, a partir
do simples uso da razão, a pessoa pode saber que Deus existe, que
Deus é um e que Deus é bom. Cada um dos três primeiros livros
desta obra explora diversos meios pelos quais a humanidade co-
nheceu Deus utilizando a razão natural.
Por sua vez, o Livro VI explora os mesmos temas, só partindo
da perspectiva da Revelação. Nesta parte da obra, Tomás apresen-
ta as verdades de fé do cristianismo. Primeiro Deus aparece em
sua economia interna (a Trindade), depois em sua ação no mundo
(Encarnação e Sacramentos) e finalmente como o fim último de
todas as coisas (Redenção pela Ressurreição).
Consequentemente, a primeira parte dessa obra de Tomás
pressupõe uma base metafísica que independe da revelação. Não
por acaso, em vários outros pontos, como, por exemplo, em seus
comentários a obras como a Metafísica de Aristóteles, Tomás de-
senvolveu uma reflexão metafísica que pressupõe apenas o sim-
ples uso da razão.
Uma obra curta, mas extremamente interessante para ilus-
trar o pensamento metafísico de Tomás, é o De ente et essentia. Há
duas excelentes traduções recentes desse texto para o Português:
a edição bilíngue publicada pelo Prof. Carlos Arthur do Nascimento
em 1995 e a tradução do Prof. Mário Santiago de Carvalho, que se
encontra disponível online.

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160 © História da Filosofia Medieval

Recomendamos vivamente a leitura de ambas. As duas tra-


duções apresentam muito bem essa obra que, apesar de peque-
nina, foi muito influente e nos auxiliará muito na compreensão do
pensamento metafísico de Tomás e da Idade Média.
Neste momento não é possível nos aprofundarmos muito
nas riquezas dessa obra de Tomás, mas convém citar um trecho da
introdução que o Prof. Francisco Benjamin de Souza Neto escreveu
para a tradução do Prof. Carlos Arthur:
É possível divisar, nesta altura do De Ente et Essentia, a Metafísica
subjacente às cinco vias. Para além da forma, é divisado o ser, ESSE
e não ENS. A argumentação pressupõe a teoria geral da substân-
cia, até aqui exposta, ainda que de forma concisa: tudo o que não
é o seu esse, recebe-o: ora, o Ato Puro, pressuposto pela própria
atualidade do possível, da matéria à forma desta isenta, por defi-
nição não é receptivo, porque isento de toda passividade; logo é
puro ESSE. Tal identidade é plenitude de ser, não indigência; não é
ela carência da essência, mas o próprio ser supra-essencial, supe-
reminentemente compreensivo de toda a escala das perfeições da
essência. Insusceptível de ser recebido, tal esse não pode ser o ser
do mundo como totalidade nem multiplicar-se, pois o multiplicar-
-se exige a adição da diferença e a pureza do ato implica a absoluta
simplicidade irreceptiva de um ato subseqüente. A fortiori, exclui-
-se a matéria, pois esta importaria composição. Há, portanto, um
lugar entre o puro ESSE e a substância composta, para a substância
separada, pura forma. A angelologia há de instalar-se no âmbito
desta possibilidade metafísica. Apenas, importa notar que, simples
come essências porque puras formas, tais substâncias são, como
entes, distintas do ser que lhes cabe. São elas também únicas no
ser que lhes cabe, pois sendo puras formas, não há nelas ou fora
delas qualquer fator de multiplicação numérica. Com efeito, no
que concerne às substâncias compostas, Tomás de Aquino defende
aqui e após a tese segundo a qual a multiplicação destas se faz em
razão da matéria assinalada pela quantidade, tese esta que há de
ser um dos aspectos mais discutidos de seu pensamento. Feita a
precisão acima, o pensamento humano, o quanto é-lhe possível,
abrange o ente na totalidade de suas possibilidades, do puro ESSE à
pura potência, do absolutamente necessário ao simplesmente pos-
sível. É só então que, no movimento conjunto do opúsculo, o autor
se permite traçar a escala hierárquica dos entes, que desce do Ato
Puro de ser, o ESSE, passa pela potência em relação ao ser e desce
à potência em relação à forma, à matéria-prima. O capítulo V do De
Ente et Essentia é a brilhante e concisa exposição desta concepção.
Com ele, chega o autor ao "ordo essendi" de sua ontologia (SOUZA
NETO, 1995).
© U3 - Aristotelismo e Neoplatonismo no Pensamento Medieval Ocidental 161

A metafísica de Tomás é, portanto, toda voltada para o ente.


O ente é o que existe na realidade, novamente confirmando o que
foi dito sobre o viés realista da filosofia de Tomás.
Contudo, não se demora a compreender que Deus tem um
papel fundamental na metafísica desse filósofo. É justamente as-
sim que se supera um realismo ingênuo, pois o ente e a essência
são apreendidos pelo entendimento conforme este os concebe e
não como se existissem fora e independentemente do pensamen-
to. De ente et essentia é a obra que permite estudar a metafísica
de Tomás em seu aspecto sistemático.

As cinco vias da existência de Deus


Com relação às provas da existência de Deus apresentadas
por Anselmo, que em Filosofia são conhecidas como "Argumento
Ontológico da existência de Deus", Tomás de Aquino diz que são
corretas em si, mas que o ser humano, por ser limitado e finito,
não pode de verdade abarcar toda a ideia de Deus como aquilo
que de maior pode ser pensado. O ser humano não pode conhecer
a Deus de maneira completa e, portanto, não pode utilizar o Argu-
mento Ontológico para nada.
Tomás propõe cinco vias ou caminhos que levam à consta-
tação da existência de Deus. Todas elas são a posteriori, ou seja,
partem dos efeitos para chegar à Causa Suprema. As vias são: mo-
vimento; causa eficiente; ser possível e ser necessário; graus de
perfeição; e governo do mundo (telos).
No encadeamento em que um movimento causa o outro,
não se pode retroceder infinitamente. Dessa maneira, chega-se
necessariamente a um Movente Não Movido, ou seja, no final do
encadeamento está algo que causa movimento (movente), mas
que não é movido por outra coisa (não movido). E assim, em cada
uma das outras vias chega-se, respectivamente, à Causa Eficiente
Suprema; ao Ser Necessariamente Necessário; à Suma Perfeição;
ao Fim Último que tudo governa.

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162 © História da Filosofia Medieval

Todas as provas tomistas põem em jogo dois elementos distintos: a


constatação de uma realidade sensível que requer uma explicação
e a afirmação de uma série causal de que essa realidade é a base e
Deus o topo. O caminho mais manifesto é o que parte do movimen-
to. Há movimento no universo; é o fato a explicar, e a superioridade
dessa prova não está em ser mais rigorosa do que as outras, mas
em que seu ponto de partida é mais fácil de captar. Todo movimen-
to tem uma causa, e essa causa deve ser exterior ao ser que está
em movimento; de fato, não se poderia ser, ao mesmo tempo e sob
o mesmo aspecto, princípio motor e coisa movida. Mas o próprio
motor deve ser movido por um outro, e esse por outro mais. Logo,
forçoso é admitir ou que a série das causas é infinita e que não há
primeiro termo, mas então nada explicaria que exista movimento,
ou que a série é finita e que há um primeiro termo, e esse primeiro
termo é Deus.
O sensível não nos coloca apenas o problema do movimento. Pois
não só as coisas se movem, como antes de se moverem existem e,
na medida em que são reais, têm certo grau de perfeição. Ora, o
que dissemos das causas do movimento podemos dizer das causas
em geral. Nada pode ser causa eficiente de si mesmo, pois para se
produzir era preciso ser anterior, enquanto causa, a si mesmo en-
quanto efeito. Toda causa eficiente supõe, pois, uma outra, a qual
por sua vez supõe uma outra. Ora, essas causas não mantêm en-
tre si uma relação acidental; elas se condicionam, ao contrário, de
acordo com certa ordem, e é precisamente por isso que cada causa
eficiente explica de fato a seguinte. Assim sendo, a primeira causa
explica a que está no meio da séria, e a que está no meio explica
a última. Há, pois, uma primeira causa da série para que haja uma
causa média e uma causa última, e essa primeira causa eficiente é
Deus.
Consideramos agora o próprio ser. Aquele que nos é dado está em
vias de perpétuo devir; certas coisas se engendram, logo podiam
existir; certas outras se corrompem, logo podiam não existir. Poder
existir ou não existir é não ter uma existência necessária; ora, o
necessário não precisa de causa para existir, e precisamente por
ser necessário, existe por si mesmo; mas o possível não possui em
si a razão suficiente de sua existência e, se só houvesse o possível
nas coisas, não haveria nada. Para que aquilo que podia ser seja, é
preciso antes de mais nada algo que seja e o faça ser. Isso significa
que, se há alguma coisa, é que há em algum lugar o necessário.
Ora, também aqui, esse necessário exigirá uma causa ou uma série
de causas que não seja infinita, e o ser necessário por si, causa de
todos os seres que lhe devem sua necessidade, não poderia ser
outro senão Deus.
© U3 - Aristotelismo e Neoplatonismo no Pensamento Medieval Ocidental 163

Um quarto caminho passa pelos graus hierárquicos de perfeição


que se observam nas coisas. Há graus na bondade, na verdade,
na nobreza e nas outras perfeições desse gênero. Ora, o mais ou
menos sempre supõe um termo de comparação, que é o absolu-
to. Portanto, há um verdadeiro e um bem em si, isto é, afinal de
contas, um ser em si que é a causa de todos os outros seres e que
chamamos de Deus.
O quinto caminho baseia-se na ordem das coisas. Todas as opera-
ções dos corpos naturais tendem a um fim, muito embora estes
sejam, em si, desprovidos de conhecimento. A regularidade com a
qual alcançam seu fim mostra bem que não chega até ele por aca-
so, e essa regularidade só pode ser intencional ou desejada. Já que
são desprovidos de conhecimento, é preciso que alguém conheça
por eles, e é essa inteligência primeira, ordenadora da finalidade
das coisas, que chamamos Deus. (GILSON, 1995, p. 658-660).

A importância que Tomás atribui às vias como meio para pro-


var a existência de Deus se torna evidente conforme se percebe
que o conceito de Ser, para esse filósofo, está diretamente ligado
à demonstração da existência de Deus – que ele diz ser ipsum esse
per se subsistens, o que, traduzido, seria algo como "o próprio ser
subsistente por si".
Os atributos do Ser apontam, na verdade, para a existência
de algo que tenha todos aqueles atributos de maneira plena. Ora,
para que um ser atinja tal plenitude em seus atributos, ele decerto
terá um caráter supremo, e isso somente pode ser realizado por
Deus.
Há um aspecto curioso das vias que Tomás propõe para se
provar a existência de Deus. À primeira vista, parece que se trata
de um discurso direto que visa dizer a respeito de Deus tudo o que
ele é. Entretanto, quando se observa mais atentamente, percebe-
se que o percurso em cada uma das vias se inicia com a identifi-
cação de uma hierarquia, ou seja, de coisas que formam um todo
ordenado com uma característica qualquer.
Seja no caso do movimento, da perfeição, da causalidade efi-
ciente, da bondade ou da causalidade final, sempre há uma ordem
determinada por um aspecto determinado. Só que o que é dito é

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164 © História da Filosofia Medieval

que aquela ordem necessariamente pressupõe um grau máximo


ou um item primeiro naquela sucessão, que tem que estar no topo
ou no início da cadeia.
Em resumo, toma-se a ordem das coisas e conclui-se que,
por serem ordenadas, as coisas pressupõem uma outra coisa,
maior ou mais primordial que elas.
No entanto, tal discurso não afirma de fato algo sobre as coi-
sas; ele na verdade nega que elas sejam suficientes para explicar
ou sustentar a ordem em que se encontram. Também se pode con-
siderar que o discurso sobre Deus procede, nas vias propostas por
Tomás, como discurso negativo.
Deus não é um movente movido. Ou seja, diz-se que as coi-
sas em movimento são movidas e ao mesmo tempo movem. Isso
levaria, em última instância, a um  movente não movido. Tomás
(apud REALE; ANTISERI, 2003, p. 247) diz: "Com efeito, é certo e
consta dos sentidos, que neste mundo algumas coisas se movem";
mas diz também que "Portanto, é necessário chegar a um primeiro
motor que não seja movido por outro". É um discurso que afirma
sempre sobre Deus o que ele não é.
Esse fato não passou despercebido ao longo da História e
muitos comentadores viram ali a influência do neoplatônico Pseu-
do-Dionísio. No que concerne ao suprassensível, também há se-
melhanças com o pensamento de Agostinho.
Obviamente, o suprassensível está acima de qualquer pos-
sibilidade de ser percebido, pois os sentidos não o podem sentir.
Todavia, a razão consegue chegar indiretamente a ele, por meio
de um movimento ascendente. Deus está, portanto, sempre além
de onde o ser humano pode chegar com sua razão natural, sem,
entretanto, estar jamais fora do alcance da razão humana.
As vias de Tomás são exemplos desse esforço que não cobre
todo o percurso até Deus, mas que abre o caminho e, ao iniciá-lo,
tem um lampejo do ponto de chegada. No entanto, ele não seria
© U3 - Aristotelismo e Neoplatonismo no Pensamento Medieval Ocidental 165

capaz de descrever de maneira completa e definitiva as caracterís-


ticas daquele ponto de chegada.

7. JOÃO DUNS SCOTO


Biografia ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Foi Professor em Oxônia, Cambridge e Paris. Em


1308 foi chamado para Colônia, onde morreu com
42 anos de idade. O volume de sua obra literária é
espantoso dada a curteza da sua vida. Os mais im-
portantes dos seus escritos são: as Quaestiones sub-
tilissimas in metaphysicam Aristotelis (autênticos só
os primeiros nove livros); Quaestiones ao De anima-
de Aristóteles (provavelmente autêntico); o Tractatus
de primo principio (edição crítica de M. Müller, 1941);
Opus Oxoniense; Reportata Parisiensia; Quodlibeta.
Há uma nova edição crítica das obras de Duns Esco-
to sob a direção de P. C. Balic, em curso de publica-
Figura 2 João Duns Scoto ção (Adaptado de HIRSCHBERGER, 2007).

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Para João Duns Escoto (1266-1308 EC), a importância estava
na ordem essencial, ou seja, na ordem que se atribui ao ser. Na
quididade e não na ordem acidental ou dos indivíduos dentro da
espécie e do gênero (excedente/excedido; causa eficiente/efeito;
e causa final/dirigido a um fim).
Nenhuma coisa possui uma relação de ordem essencial para
consigo mesma. Em nenhuma ordem essencial é possível o círcu-
lo. O que não é posterior ao anterior, tampouco é posterior ao
posterior. Cabe a uma só natureza o primado na tríplice ordem da
eficiência, da finalidade e da eminência.
O conhecimento do particular e do universal não se dá nem
pelo particular e nem pelo universal, mas pela natureza comum.
Para Tomás, a natureza comum não tem unidade.
A sequência argumentativa de Duns Escoto a respeito do ser
e de como chegar dos seres finitos tomados em comum - ens commune

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166 © História da Filosofia Medieval

- ao ser infinito, ou seja, a Deus, é complexa, mas cheia de sutileza


e sofisticação. Para reconstituir toda a argumentação seria neces-
sário um texto mais longo. Porém, uma apresentação sistemática
talvez já sirva como aperitivo.
Que as coisas são aquilo que são, descobre-se pelo simples
fato de que os sentidos as percebem. Um muro amarelo é assim
classificado porque ao se olhar para ele se vê que ele é amarelo.
Contudo, se há muros amarelos, é porque há algo neles que pos-
sibilita que sejam amarelos - pense, em contraste, no céu noturno
que "não pode" ser amarelo.
Há algo comum a todas as coisas amarelas que possibilita
que sejam dessa cor. Este algo pode ser chamado de "natureza" e
de "efetiva", pois faz de fato com que aquelas coisas sejam ama-
relas.
Mas, se cada coisa que se percebe pelos sentidos tem que
ter uma "natureza efetiva", é de se supor que haja algo "efetivo"
que venha em primeiro lugar na sequência das coisas que fazem
outras coisas serem aquilo que são. É o que se pode denominar
"efetivo simplesmente primeiro": nunca deixaria de ser o que é e
não teria se tornado o que é por força de outra "natureza efetiva",
não tendo tampouco sido causado ou forçado a agir por outra cau-
sa que não ela mesma.
O "efetivo simplesmente primeiro" é, portanto, sempre atu-
almente o que é. Existe sempre e necessariamente. Somente uma
natureza pode ter essas prerrogativas. Tal natureza é o fim último e
a mais nobre entre todas as naturezas. Tal natureza é una e única.
O primeiro efetivo é sempre atual, porque contém virtual-
mente toda a atualidade possível. O primeiro fim último é ótimo
porque contém virtualmente toda atualidade possível. O primeiro
na ordem de nobreza é o mais perfeito de todos, porque contém
de modo nobre toda a perfeição possível. Tais atributos somente
podem pertencer a Deus.
© U3 - Aristotelismo e Neoplatonismo no Pensamento Medieval Ocidental 167

8. ESSÊNCIA, EXISTÊNCIA E INDIVIDUAÇÃO


A recuperação da Metafísica de Aristóteles pelos pensado-
res medievais, junto com as traduções da metafísica de Avicena,
no século 12 EC, e dos comentários à Metafísica de Averróis, no
século 13 EC, prepararam o caminho para que os pensadores me-
dievais se concentrassem na "ciência do ser enquanto ser". Porém,
com o estudo aprofundado dos textos, vieram também importan-
tes questões a serem respondidas.
No livro quarto da Metafísica, Aristóteles fala da "ciência
que estuda o ser enquanto ser" e a contrasta com as ciências par-
ticulares, que se restringem a investigar os atributos de uma parte
do ser.
Porém, no livro sexto da Metafísica, depois de falar da "ciên-
cia que estuda os seres enquanto seres", Aristóteles fala das três
ciências teoréticas: a Física, a Matemática e a "Filosofia Primeira".
A última somente é possível quando se debruça sobre as entida-
des separadas e imóveis.
O próprio Aristóteles diz que se não houvesse entidades imó-
veis e separadas, a Física seria a primeira ciência. Contudo, se há
uma substância imóvel, então a ciência que trata de tal substância
será a primeira.
Avicena e Averróis discordaram sobre o objeto de estudo da
Metafísica. Avicena diz que apesar de também tratar de Deus –
sendo que somente ela trata de Deus – a Metafísica concentra-se
mesmo é no "ser enquanto ser". Já Averróis discorda que Deus
seja estudado na Metafísica, pois Deus é de fato estudado na Físi-
ca, e diz que "ser enquanto ser" significa "Substância".
Os pensadores dos séculos 13 e 14 EC normalmente concor-
daram com Avicena. Porém, o tipo de relação que havia precisa-
mente entre "ser enquanto ser" e o ser divino nem sempre era
abordado da mesma maneira pelos diferentes pensadores daque-
le período.

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168 © História da Filosofia Medieval

Tomás de Aquino diz que o objeto da metafísica é o ens com-


mune. Mas, como para ele Deus não está incluído nesta condição,
sendo, porém, a causa dela, parece que Tomás admite a possibili-
dade de que a Metafísica também trate de Deus.
Contudo, em algumas passagens de seu comentário à Me-
tafísica, ele parece defender que a existência de Deus somente
pode ser provada pela Física, conforme queria Averróis. Dentre
os principais pensadores escolásticos, a grande voz discordante é
Guilherme de Ockham (1285-1347 EC), pois para ele não há um
objeto único da Metafísica.
Desde Boécio, os pensadores medievais tiveram que tratar
da questão da essência e da existência nos seres criados. O motivo
inicial para este debate é um dos axiomas do De hebdomadibus,
no qual Boécio diz que o ser (esse) e o que existe têm que ser dis-
tintos. Se, em seres simples como Deus, o ser e o que existe são
idênticos, nos seres criados não é assim. Portanto, eles são com-
postos, e suas partes são distintas.
Avicena teria proposto uma distinção radical, postulando
que a existência seria uma forma de acidente que deveria ser adi-
cionada à essência. Averróis criticou esta posição e afirmou que
ela comete o mesmo erro da distinção entre o ser e a unidade.
O perigo, segundo Averróis, seria o de tender ao infinito,
sempre necessitando de supor outro acidente para dar conta da
maneira como a existência é adicionada ao ser real.
Ora, tudo o que existe é necessariamente "um", isto é, "in-
dividual". Mas o que torna aquilo que existe "individual"? Para es-
tudar o tema da individuação, seria produtivo considerar algumas
hipóteses de trabalho:
1) Analisar o indivíduo como sendo um composto substan-
cial de matéria e forma, possuidor de acidentes, de ma-
neira que a individuação ocorreria ou por alguns ou por
todos os seus traços atuais.
© U3 - Aristotelismo e Neoplatonismo no Pensamento Medieval Ocidental 169

2) Se tais traços são substanciais, então a individuação


ocorreria ou pela matéria ou pela forma, ou por ambas.
3) Por outro lado, a individuação pode ocorrer por algum
traço não categorial. Portanto, nem substancial nem aci-
dental.
4) Talvez o problema da individuação tenha que ser rejei-
tado, pois a individualidade do indivíduo poderia ser en-
tendida como metafisicamente primitiva.
A individuação é parte de um problema maior ligado à ques-
tão da identidade e da diferença. O que quer que faça Sócrates,
por exemplo, ser o ser que é, também o torna diferente de todos
os outros indivíduos da mesma espécie.
A solução para o problema da individuação proporá, de algu-
ma maneira, um elemento constitutivo do indivíduo. Nesta linha,
"Sócrates" é entendido como um ser que possui traços essenciais
e acidentais. Isso abre algumas possibilidades de posições com re-
lação à individuação.
Boécio, no De trinitate, postula que a variedade de aciden-
tes produz uma diferença numérica. Outra posição possível seria
entender parte da essência da substância – por exemplo, a forma
– como sendo equivalente à individualidade, decorrente da unifor-
midade na concepção das categorias.
Traços do indivíduo podem ser iguais aos traços de outros in-
divíduos, mas em última instância os traços de um indivíduo estão
ligados a um pedaço particular de matéria. A posição de Tomás é
a de que há dois tipos de substância: somente forma ou matéria-
forma, sendo a matéria potência quantificada.
Há ainda outros posicionamentos sobre essa questão. Por
exemplo, o de que a individuação vem da conjunção entre matéria
e forma. Outra possibilidade seria postular a individuação passan-
do por algo fora das categorias, como, por exemplo, a existência.
Ou ainda postular que a individualidade é primitiva.

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170 © História da Filosofia Medieval

9. O PROBLEMA DOS UNIVERSAIS


A famosa discussão medieval a respeito do Problema dos
Universais tinha implicações para uma ampla gama de disciplinas
e estava intimamente ligada ao dia a dia dos autores daquele pe-
ríodo, pois influenciava diretamente tanto o que aqueles autores
escreviam quanto o que ensinavam.
Portanto, a preocupação com o status dos universais pode
ser reconstituída analisando-se desde as obras de juventude até as
obras maduras de um determinado autor medieval.
Com o objetivo de ilustrar a relevância da discussão a respei-
to dos universais, seria interessante primeiro abordar a questão a
partir de uma curta história, ou melhor, de duas versões da mesma
curta história, pois esta proverá uma oportunidade para reflexão.
Imagine que em um lugar público há um grupo de pesso-
as envolvidas em uma conversa cujo tom é formal, mas que está
bastante animada. Os tópicos discutidos na conversa são de inte-
resse comum. Subitamente, alguém nota que outra pessoa está
se aproximando. Porém, a distância que a separa do grupo ainda
é bastante considerável, sendo, portanto, quase impossível distin-
guir quem possa ser aquela pessoa.
Pois bem, a pessoa que notou a aproximação pensa que o
fato de outra pessoa se aproximar daquele grupo provavelmen-
te será de interesse comum e comunica ao grupo a aproximação.
Ao se tornar o centro das atenções, a pessoa que acabou de falar
acrescenta a única informação que lhe é possível adicionar naque-
le momento: "é homem". Porém, assim que a pessoa se aproxima
suficientemente, é possível dizer com certeza: "é Sócrates".
Há uma segunda versão da história. O mesmo grupo de pes-
soas está envolvido numa animada discussão de cunho formal. Po-
rém, desta vez o grupo se encontra em um país longínquo, conhe-
cido pela flora e fauna exóticas.
© U3 - Aristotelismo e Neoplatonismo no Pensamento Medieval Ocidental 171

Novamente algo se aproxima do grupo, vindo de um pon-


to bem distante. Uma pessoa nota o fato e chama a atenção das
demais, apontando e dizendo: "é um animal". Esta é toda a infor-
mação que a pessoa pode acrescentar, pois era uma espécie des-
conhecida de animal.
Em ambos os casos, é possível notar elementos interessan-
tes daquilo que os medievais chamavam de "predicação". Para
eles, era possível divisar um conjunto bem definido de regras que
regiam as coisas que poderiam ser ditas, com peso de afirmação
verdadeira, a respeito de outras coisas.
Um primeiro elemento é a pressuposição de que alguém
que dizia alguma coisa de alguma outra coisa, estivesse dizendo
algo verdadeiro e relevante - nas duas versões da história narradas
anteriormente, trata-se de conversa formal e pública. Assim, di-
zer que "aquilo é um homem", pressupunha que "homem" estava
sendo dito de "aquilo" de maneira apropriada e verdadeira.
Um segundo elemento importante é o fato de que no pri-
meiro caso, "homem" e "Sócrates" eram informações dadas sobre
o mesmo indivíduo que se aproximava e ambas eram ditas da mes-
ma maneira apropriada e verdadeira.
Entretanto, levemos a abordagem medieval até as últimas
consequências. Como na segunda versão da história, a única coisa
que podia ser dita daquilo que se aproximava era "é um animal",
então aquele indivíduo era um "indivíduo vago". Ou seja, ao me-
nos até aquele momento, era "indistinto" de outros animais, pois
não tinha características próprias.
Ora, alguém pode dizer que aquele animal tinha sim carac-
terísticas próprias, só que ainda eram desconhecidas. Mas, para
os medievais, não se tratava de simplesmente dizer que aquele
animal ainda seria conhecido, mas de entender como "animal",
e apenas isto, podia ser dito dele de maneira apropriada e verda-
deira.

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172 © História da Filosofia Medieval

A questão, é claro, é se "animal" corresponde a apenas uma


coisa ou se corresponde a várias. Se for uma só coisa, como pode
ser dita sobre várias coisas, da mesma maneira apropriada e ver-
dadeira? Mas se são várias, como as pessoas sabem a que se refe-
re a palavra "animal" mesmo quando não estão olhando para o ser
que se aproxima, ou quando ainda não o conhecem?
Outra questão importante é entender como a pessoa que
avistou a aproximação de um animal exótico, mesmo sem jamais
tê-lo visto antes, é capaz de dizer de maneira apropriada e verda-
deira que "é um animal".
Será que aquela pessoa "reconheceu" a "animalidade" da-
quilo que se aproximava? Ou será que "animal" é somente uma
maneira de falar de coisas, assim como alguém pode utilizar a
palavra "fera" para falar de pessoas amigas e talentosas? Seria
"animal" uma espécie de apelido ou gíria que pode ser aplicado
a várias coisas, dependendo da escolha casual de quem utiliza a
palavra?
A questão parece confusa e irrelevante. Porém, pense que
você precisa se consultar com um especialista a fim de identificar
aquilo que está por trás dos sintomas incômodos que vem sentindo
há algum tempo. Suponhamos que o referido médico especialista
lhe diga que identificou o que está por trás dos sintomas e afirma
convictamente que é "espinhela caída". Com alguma desconfiança
e relutância, você paga a consulta e vai para casa.
Ao chegar à sua casa, você abre um dicionário e lê que "es-
pinhela caída" era um termo popular utilizado para descrever um
conjunto vago de sintomas incômodos pouco definidos. Sua rea-
ção certamente será de desgosto e irritação. Você provavelmente
telefonará imediatamente para o médico e lhe perguntará o que
aconteceu.
Pois bem, parece que há pelo menos um caso em que a abor-
dagem de que há palavras que são meros "apelidos" das coisas não
é exatamente satisfatória. Mas como é que os autores medievais
© U3 - Aristotelismo e Neoplatonismo no Pensamento Medieval Ocidental 173

resolviam tais dificuldades? Será que é possível manter-se sempre


coerente com uma mesma abordagem dessa questão?
É claro que muitos autores medievais se viram forçados a
alterar sensivelmente suas posições ao longo de suas carreiras, de
maneira que sua abordagem dos Universais em textos de Lógica
pode ser bastante distinta de sua abordagem do mesmo tema em
textos de Metafísica, por exemplo.
Alguns autores, porém, mantiveram alguma consistência ao
longo de todas as suas obras. Havia também uma preocupação de
muitos autores em se manterem fiéis ao pensamento de autores
da Antiguidade clássica. Na Idade Média, o autor preferido de mui-
tos em relação ao Problema dos Universais era Aristóteles. A tra-
dição inaugurada pelo Estagirita foi a tradição peripatética.
A tradição peripatética pode ser entendida como um esforço
coletivo de muitos autores ao longo da História da Filosofia para
esclarecer em detalhes o pensamento de Aristóteles e demonstrar
que tal pensamento é o mais adequado para se entender o intrin-
cado Problema dos Universais.
Dentre os mais influentes pensadores peripatéticos pode-se
elencar Alexandre de Afrodísias, Boécio, Alberto Magno, Tomás de
Aquino, João Duns Escoto, alguns outros pensadores medievais,
alguns pensadores renascentistas e alguns representantes do Aris-
totelismo Português, tais como Pedro da Fonseca.
A tradição peripatética tem traços bem definidos e pode ser
eficazmente contrastada com a posição dos filósofos árabes, de
Ockham e outros nominalistas, dos humanistas antiaristotélicos,
dentre outros. A tradição peripatética teve vários pontos em co-
mum com a tradição neoplatônica, pois também era interesse dos
autores neoplatônicos explicarem a filosofia de Aristóteles da ma-
neira mais adequada possível.
Contudo, como parece haver uma discordância significativa
entre o pensamento de Platão e o de Aristóteles quanto aos Uni-

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174 © História da Filosofia Medieval

versais, neoplatônicos e peripatéticos discordavam em pontos im-


portantes, como se verá a seguir.
Apesar de os autores antigos e medievais ditos peripatéticos
não terem postulado explicitamente a existência de um sistema
filosófico derivado da filosofia de Aristóteles, eles pressupunham
a existência de uma visão coerente e consistente dos Universais
nas obras lógicas, psicológicas, metafísicas, éticas e teológicas da
tradição peripatética.
O conjunto dessas disciplinas não era para eles um mero
elenco de áreas do saber desconexas. Era um todo articulado, e ao
entender bem uma dessas disciplinas, abre-se a possibilidade para
entender melhor as outras.
O desafio era descobrir a exata articulação entre as disciplinas,
mesmo que, para apontar exatamente qual seria o tal ponto em co-
mum entre elas, muitos autores tiveram que fazer enormes esforços
- esforços que nem sempre foram minimamente convincentes.
Tal dificuldade decorria da ambiguidade inerente aos textos
filosóficos, que pode ser detectada até mesmo nos textos aristoté-
licos mais famosos. A tarefa era, portanto, propor uma maneira de
ler Aristóteles que permitisse a determinado autor postular que
as ambiguidades seriam apenas aparentes e que, com uma expli-
cação mais elaborada, seria possível ler os textos aristotélicos de
maneira conjunta e não contraditória.
Se isso não fosse possível, então seria preciso concluir que
Aristóteles não foi consistente e que defendeu pontos de vista
conflitantes, sobretudo nas questões principais, como, por exem-
plo, em relação ao Problema dos Universais.
As temáticas envolvidas no Problema dos Universais são tão
antigas quanto a própria Filosofia. Porém, as discussões sobre a
exata articulação entre os vários ramos do saber na tradição peri-
patética ganhou um impulso renovado a partir do sucesso de um
texto supostamente escrito para explicar a primeira obra filosófica
© U3 - Aristotelismo e Neoplatonismo no Pensamento Medieval Ocidental 175

do corpus aristotelicum, ou seja, das obras de Aristóteles definidas


na ordem consagrada desde a Antiguidade. A obra em questão é
Categorias. O texto escrito pelo filósofo fenício Porfírio para intro-
duzi-la ficou conhecido como Isagoge, que literalmente quer dizer
"introdução".
Naquela obra, Porfírio propõe-se a explicar para o senador
romano Crisaório os cinco termos que Aristóteles utiliza em todos
os seus principais escritos, mas que nunca explica explicitamente
em lugar algum. Os cinco termos em questão são: o gênero, a es-
pécie, a diferença, o próprio e o acidente. São termos-chave, pre-
dicáveis das coisas, e cuja compreensão exata permitiria entender
as categorias aristotélicas.
As categorias são os dez conjuntos que conteriam o que é
dito sobre as coisas. Por exemplo, quando se diz "Sócrates é ho-
mem", o termo "homem" é a espécie de "Sócrates". Ao passo que,
quando se diz "Sócrates é animal racional", "animal" é o gênero de
Sócrates e "racional" é a diferença.
A Isagoge foi fundamental para o desenvolvimento do voca-
bulário técnico em Grego, sobretudo para a elaboração de taxono-
mias, ou seja, de classificações tais quais as que são amplamente
utilizadas em Biologia, Medicina, Direito, Teologia etc. Lembremos
que gênero e espécie ainda são termos técnicos utilizados nas
classificações biológicas dos seres vivos nos dias atuais.
Principalmente após a segunda tradução para o Latim da
Isagoge feita por Boécio e do comentário do mesmo autor que
a seguiu, as taxonomias feitas por autores latinos também foram
amplamente influenciadas pela Isagoge.
Os comentários de Boécio introduziram um elemento que não
estava claramente presente na Isagoge de Porfírio. Este último tinha
se "recusado" a tratar de algumas questões, que na opinião dele não
pertenciam a uma discussão mais profunda e mais extensa como a
que ele pretendia fazer na Isagoge. As questões eram:
• se "gênero" e "espécie" subsistiam nas coisas ou apenas
no pensamento;

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176 © História da Filosofia Medieval

• caso subsistissem nas coisas, se seriam corpóreos ou in-


corpóreos;
• se seriam separados das coisas nas quais subsistiam ou
não.
O segundo comentário de Boécio à Isagoge acrescenta a so-
lução peripatética para tais questões. A solução apresentada por
ele é a mesma de Alexandre de Afrodísia, ou seja, a de que gênero
e espécie estão nas coisas, mas somente têm existência separada
e universal no pensamento. Tal solução aponta para uma natura
communis, cujo caráter "comum" está no fato de que é a "natura"
que está nas coisas é a mesma que está no pensamento e nos ter-
mos que se referem àquelas coisas.
Assim, "humanidade", que é a "espécie" à qual pertence
"Sócrates", está em Sócrates, está no pensamento quando este
conclui que Sócrates é homem e está na sentença "Sócrates é ho-
mem". "Humanidade", porém, só é universal no sentido real no
pensamento.
Ao menos no Ocidente latino, todos os principais comenta-
dores que escreveram sobre a Isagoge de Porfírio depois de Boé-
cio sentiram-se no dever de tomar uma posição quanto ao status
da natura, ou seja, quanto ao status dos Universais.
Algumas das discussões mais importantes ocorreram no sé-
culo 12 EC e no século 14 EC. Porém, as discussões entre nomina-
listas, realistas e conceptualistas podem ser encontradas durante
todo o período medieval, em toda parte, mantendo-se presentes
mesmo após o século 16 EC.
Questões fundamentais sobre a importância e o papel da
Metafísica de Aristóteles estão envolvidas no Problema dos Uni-
versais. Dentre elas, destacamos:
• O debate sobre a possibilidade de um sistema filosófico
único para a Lógica, as Ciências Naturais, a Psicologia Filo-
sófica, a Ética, a Política etc.
© U3 - Aristotelismo e Neoplatonismo no Pensamento Medieval Ocidental 177

• A discussão sobre qual é a maneira mais adequada para


descrever os processos de percepção sensorial e de cog-
nição, tanto das coisas quanto do Ser e de Deus.

Questão de "prioridade"
Em sua forma mais elaborada, o Problema dos Universais pa-
rece permitir uma solução melhor se as questões principais forem
reorganizadas.
Como ninguém pressupõe que seja possível ver a "humani-
dade" parada na esquina ou a "humanidade" tomando um refri-
gerante num ambiente lotado, parece seguro dizer que todos con-
cordam que a "humanidade" somente pode ser encontrada em
cada um dos seres humanos, e somente neles.
Tampouco haveria problemas para saber o que é "universal"
e o que é "particular", pois ninguém pensaria em "Sócrates" como
sendo universal ou em "animal" como sendo particular, pois "Só-
crates" é claramente um indivíduo e "animal" se refere obviamente
a muitos seres. A principal dificuldade seria, portanto, saber o que
tem "prioridade" – tanto no que se refere à existência das coisas,
quanto ao que se refere ao entendimento (pensamento) em si.
Do ponto de vista do acesso imediato, parece que a priori-
dade deveria estar do lado dos particulares, pois é bem evidente
que o mundo está repleto de coisas particulares que são imedia-
tamente acessíveis aos sentidos. Contudo, parece inegável que as
coisas particulares do mundo são percebidas como pertencentes a
conjuntos, classes ou tipos de coisas.
Por exemplo: coisas frias são percebidas como frias e coisas
secas como secas. A particularidade das coisas seria provavelmen-
te insuficiente para lhes dar significado. Além disso, quando se diz
algo de algum particular, fica implícita a noção de que há uma rela-
ção real entre aquele particular e o que é dito dele.

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178 © História da Filosofia Medieval

Dizer "aquele ponto distante é um cachorro" somente pare-


ce ter sentido se de fato "cachorro" descrever algo real existente
no mundo. Ainda que nem sempre seja verdadeiro que "aquele
ponto distante" seja um cachorro –, por exemplo, quando a pessoa
que o diz está mentindo.
Note que "aquele ponto distante" seria provavelmente des-
provido de qualquer sentido se sempre permanecesse um "ponto
distante" e não se revelasse como um cachorro, um ser humano
ou um pedaço de cascalho. Até os pontos brilhantes mais distantes
do universo são estudados e classificados pelos cientistas.
Embora seja percebido antes, o particular é classificado a
partir de classes que já compõem o entendimento. Do ponto de
vista do entendimento, a classe - o universal - tem prioridade com
relação ao particular que pertence a ela.
A dificuldade, portanto, reside em encontrar a maneira de
traduzir a prioridade do universal do ponto de vista do entendi-
mento para a questão do que existe em primeiro lugar e de que
maneira.
Alguns autores clássicos não tiveram dúvidas sobre esta
questão ao atribuir uma existência real aos universais. Seria uma
existência anterior à dos particulares aos quais os universais são
atribuídos. As coisas podem ser ditas "boas" porque antes existe o
"Bem". Esta teria sido a posição de Platão.
Outros pensavam que os universais existem "objetivamen-
te", isto é, quando são pensados. Assim, no mundo existiriam
apenas os particulares, ao passo que no entendimento ganha-
riam existência os universais. O entendimento conheceria primei-
ramente o universal e somente "mediatamente" os particulares.
Esta teria sido a posição de Aristóteles e da tradição peripatética.

Unidade e "a aptidão para estar em muitos"


Outra questão importante com relação aos universais é jus-
© U3 - Aristotelismo e Neoplatonismo no Pensamento Medieval Ocidental 179

tamente o problema de que tudo o que existe tem unidade. Con-


tudo, a unidade dos universais não pode ser exatamente igual à
dos particulares.
"A maçã de número treze" é "uma" coisa, e isso somente
pode ser dito daquela maçã. Porém, "animal" é "uma" coisa que
pode ser dita de vários seres. O significado de "uma" na primeira e
na segunda situação tem que ser distinto.
Os autores medievais também se depararam com essa ques-
tão e entenderam que devia haver dois tipos de unidade. Uma seria
a unidade numérica, correspondente à primeira situação apresen-
tada; a outra seria a unidade formal, correspondente à segunda.
Tal solução abriu uma ampla gama de possibilidades.
Todavia, ao pensar a natura communis em termos de uni-
dade numérica e unidade formal, tem-se a incômoda sensação de
que o universal não poderia ter nenhuma das duas. Se tivesse a
unidade numérica, teria que ser particular em si e, portanto, nunca
poderia ser universal. Por outro lado, se tivesse a unidade formal,
seria sempre universal e nunca poderia estar em coisas particula-
res, pois tudo que existe no particular é particular.
Uma possibilidade é pensar a natura communis, ou essência,
como sendo "algo", mas algo que não tem unidade. Essa solução
foi desenvolvida por Avicena, quando diz que algo como "humani-
dade" é apenas "humanidade".
A vantagem de tal abordagem seria: não tendo unidade, os
universais não teriam que ser pensados em termos de unidade
numérica ou de unidade formal. Por outro lado, a dificuldade resi-
diria no fato de que, para que a natura communis pudesse ser per-
cebida, deveria haver naquele que percebe um aparato perceptivo
muito complexo e de difícil compreensão.
Uma segunda solução seria conceber a natura communis ou
essência como não sendo algo e, portanto, dissociada do conceito
de unidade. Tal maneira de compreender a questão foi proposta

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180 © História da Filosofia Medieval

por Tomás de Aquino e desloca os universais para o âmbito do


conceito.
Essa solução tem a mesma vantagem da anterior, do ponto
de vista da questão da unidade numérica e unidade formal, pois
também nesse caso não se aplicaria tal distinção. No entanto, tal
posição tem semelhanças com a posição nominalista.
Se bem compreendida, a posição tomista não é nominalista.
Porém, para um leitor desatento, poderia parecer que tomismo e
nominalismo, ao menos nesse aspecto, iriam na mesma direção.
Outra solução possível seria dizer que a natura communis
tem um tipo de unidade diferente da unidade numérica e dife-
rente da unidade formal. João Duns Escoto propôs que a natura
communis tem uma unidade menor que a numérica e menor que
a formal.
Ou seja, ela tem unidade e tem existência, mas a unidade
não chega a ser numérica e não chega a ser formal. A vantagem
de tal abordagem é que o aparato perceptivo nesse contexto não
tem que ser extremamente complexo. Ao contrário, pode ser bem
simples.
Portanto, a grande questão era encontrar uma maneira de
poder compreender os universais, ou seja, de pensá-los como algo
que tenha unidade - tudo o que pode ser compreendido é porque
possui unidade, pois o que não tem uma única definição é diverso
e incompreensível.
Ao mesmo tempo, tal compreensão deveria preservar a pro-
priedade dos universais de serem ditos a respeito de muitas coisas.
"Animal" é universal porque pode ser dito de maneira acertada a
respeito de muitos seres. Mas a definição de animal é apenas uma.
Por exemplo, "animal é substância corpórea sensível dotada
de movimento próprio". "Animal" tem assim unidade e aptidão
para estar em muitos, pois "animal" é parte da essência de muitos
seres.
© U3 - Aristotelismo e Neoplatonismo no Pensamento Medieval Ocidental 181

Posição nominalista versus doutrina escolástica tradicional


Como acabamos de ver, os universais foram estudados a
partir de uma posição que se poderia chamar de "realismo mo-
derado". Tal visão se encaixa em um tipo de realismo porque os
universais foram descritos como algo realmente existente no pen-
samento – tendo como substrato os particulares dos quais eles po-
dem ser predicados.
Cada ser humano é um ser particular e nada tem de univer-
sal, mas cada um possui em sua essência "humanidade". Embora
em "Sócrates" esta seja particular pelas características individuali-
zantes de "Sócrates", ela é a mesma natureza humana presente no
pensamento quando este percebe que Sócrates é um ser humano,
e é a mesma natureza humana presente na frase "Sócrates é um
ser humano".
Contudo, principalmente a partir das contribuições de Gui-
lherme de Ockham, o realismo foi duramente criticado por um
número considerável de pensadores medievais. A posição nomi-
nalista não foi invenção de Ockham, como fica claro pelo fato de
que já no século 12, portanto, dois séculos antes de Ockham, Pe-
dro Abelardo se manifestava contra a posição dos Nominales, que
naquele tempo eram os que defendiam que os universais eram
"meros sopros de vento da fala".
Tal posição nominalista extrema retiraria qualquer possibili-
dade de significado de termos como "homem" e, desta maneira,
a frase "declaração universal dos direitos do homem" seria des-
provida de qualquer sentido real. Vamos fazer agora um pequeno
intervalo em nosso raciocínio e conhecer um pouco mais sobre
Guilherme de Ockham.

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182 © História da Filosofia Medieval

Guilherme de Ockham–––––––––––––––––––––––––––––––––
Guilherme de Ockham, o Inceptor venerabilis, nasceu
pouco antes de 1300 ao sul de Londres, fêz-se francis-
cano, estudou em Oxônia, onde veio a ensinar, foi acu-
sado por ensinar doutrinas heterodoxas e citado a com-
parecer em Avinhão. Fugindo, acolheu-se à proteção de
Luís da Baviera. "Imperador, defende-me com a espada
e eu te defenderei com a pena", disse ele, segundo de
ordinário se refere. Desde 1320 viveu em Munique, onde
representa os interesses político-eclesiásticos de seu
senhor. Depois da morte deste procura reconciliar-se
com o Papa e retrata-se do procedimento anterior. Gui-
lherme morreu em 1319 em Munique, verossimilmente
de peste; foi aí mesmo sepultado.
As suas obras mais importantes são: Comentário das
Sentenças, Quodlibeta septem, Centiloquium theologicum, Quaes-tiones in libros
Physicorum, Summulae in libros Physicorum (= Philosophia naturalis), Summa
totius lógicae (Adaptado de HIRSCHBERGER, 2010).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
A crítica de Ockham ao realismo era um pouco mais sutil e
consistente do que a posição nominalista ingênua de alguns dos
contemporâneos de Abelardo.
Em primeiro lugar, Ockham insistia que tudo o que existe na
realidade é particular. Em segundo, afirmava que a questão dos
universais era meramente lógica e semântica, sendo assim perfei-
tamente solucionável com os recursos das ciências da linguagem.
Em terceiro, dizia que o próprio Aristóteles não sustentou em qual-
quer passagem de suas obras que gênero e espécie fossem partes
constitutivas reais das coisas e nem mesmo que o indivíduo fosse
uma substância composta.
Fica assim evidente que, de maneira geral, Ockham rejeitou
vigorosamente as principais ideias realistas. E, em particular, a po-
sição de Escoto. Junto com a ontologia realista, Ockham recusou
também a exposição escolástica tradicional da doutrina da abstra-
ção.
A exposição escolástica da doutrina da abstração mais cor-
rente no período medieval fazia uso frequente da doutrina das
"espécies", cuja essência era a seguinte:
© U3 - Aristotelismo e Neoplatonismo no Pensamento Medieval Ocidental 183

Na maioria dos casos, o objeto exterior está distante dos


sentidos externos - a visão, o tato, o olfato, a audição e a gustação
- e entre eles há o meio, que muitas vezes é o ar.
Assim, tomando o exemplo da visão, pode-se expor o pro-
cesso que vai do objeto externo ao intelecto com o recurso das
"espécies". Entre o objeto externo e a vista se forma a espécie ou
forma visível. A forma visível, ao atingir a vista, gera a forma sen-
sível, a qual é captada, já no interior do cérebro, pelo sensus com-
munis.
Há ainda a "diferença" temporal e espacial de "presença".
Ou seja: tanto a vista como o sensus communis operam apenas
enquanto o objeto exterior está presente. O sensus communis co-
munica a espécie ou forma sensível à phantasia, onde se gera o
phantasma.
A diferença fundamental entre phantasma e a "espécie" sen-
sível é que ele não opera apenas na presença do objeto exterior, e
pode, portanto, ser passado à memória para lá ficar estocado e ser
chamado a qualquer momento diante da faculdade cogitativa e/
ou da faculdade aestimativa.
A faculdade aestimativa é responsável por uma espécie de
cálculo com base em dados que não são totalmente presentes na
percepção sensorial direta. O fato de o Sol não ser pequeno e não
estar escondido atrás das montanhas não é algo que vem pelos
sentidos externos, pois a vista "vê" o Sol pequeno e o "vê" surgir e
se pôr atrás do horizonte.
Mas a faculdade cogitativa é capaz de "perceber" que o Sol
é imenso e que está muito distante da Terra. Nesse ponto, entra
em ação o Intelecto Agente que ilumina o phantasma, a fim de
realçar nele os traços gerais, como que separando-os das caracte-
rísticas individuantes. Assim "iluminado", o phantasma é elevado
ao nível de "espécie" ou forma inteligível e pode ser "apresenta-
do" ao Intelecto Possível que engendra o "conceito". Este último
é universal.

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184 © História da Filosofia Medieval

De certa maneira, podemos dizer que esse quadro geral es-


colástico do processo que leva do objeto exterior ao Intelecto Pos-
sível é muito mais eficaz e adequado para uma ontologia e uma
teoria do conhecimento realistas.
Essa é a razão pela qual Ockham rejeitou a doutrina das "es-
pécies" ou formas e propôs uma ontologia totalmente baseada no
particular e uma teoria do conhecimento muito complexa e de di-
fícil compreensão, cujas principais ideias ainda são discutidas até
hoje.

10. A SEGUNDA ESCOLÁSTICA


A Segunda Escolástica aconteceu de maneira principal na Pe-
nínsula Ibérica e envolveu uma renovação da Filosofia, da Teologia,
da Política e do Direito. Tal movimento foi iniciado na Espanha do
século 15 EC e em Portugal seus efeitos perduraram até o século
18 EC.
Muitas razões podem ser levantadas para tal ressurgimento
do escolasticismo ter ocorrido na Península Ibérica. Dentre outras,
estão o fato de o Humanismo e suas realizações filosóficas não te-
rem lançado bases tão profundas em Portugal e Espanha e o fato
de a península não ter experimentado nem as guerras e nem as
profundas divisões religiosas pelas quais passaram França, Ingla-
terra e Alemanha, para citar apenas alguns casos.
A Segunda Escolástica esteve intimamente ligada à Contrar-
reforma católica, principalmente depois do Concílio de Trento e
com a filosofia e a teologia de Tomás de Aquino emergindo como
sinônimos de ortodoxia e de verdade.
Contudo, não se tratou de pura e simplesmente repetir o que
Tomás tinha escrito: foi uma volta a Aristóteles, que foi traduzido
e reinterpretado, fundamentalmente a partir das chaves de leitura
propostas por Tomás e por João Duns Escoto.
© U3 - Aristotelismo e Neoplatonismo no Pensamento Medieval Ocidental 185

Os centros onde a Segunda Escolástica se desenvolveu foram


as universidades de Salamanca e Alcalá, na Espanha, e de Coimbra
e Évora, em Portugal. As ordens religiosas que mais contribuíram
no processo foram os dominicanos e os jesuítas.
Assim como Paris e nas outras universidades francesas dos
séculos 12 e 13 EC, naquelas cidades universitárias espanholas e
portuguesas havia uma intensa vida cultural, sobretudo ligada à
presença dos estudantes dos cursos de Artes e das faculdades de
Direito, Medicina e Teologia.
A designação Segunda Escolástica refere-se, sobretudo, ao
fato de que os temas tratados por seus principais expoentes no
campo filosófico não eram essencialmente diferentes daqueles
que ganharam destaque na Escolástica medieval. O que distinguiu
a Segunda Escolástica foi a preocupação sistemática e metodoló-
gica, mais ou menos eclética, com o modo de exposição, além do
uso erudito do Latim nos moldes renascentistas.

Será que estudar a "segunda escolástica" é filosoficamente


instigante?
Para ilustrar a importância e o caráter "escolástico" da filo-
sofia produzida no período da Segunda Escolástica, vamos analisar
mais de perto o pensamento dos filósofos que estudaram e ou que
trabalharam em Coimbra, Portugal, no século 16.
Nossa atenção vai se concentrar principalmente nos filóso-
fos chamados "conimbricenses". Um tema que pode nos ajudar a
contextualizar e compreender melhor a filosofia daquele período
é a reflexão sobre a imortalidade da alma.
Adicionalmente, tal estudo nos ajudará a compreender a li-
gação de temas como este com aquilo que se chama "psicologia
filosófica", ou melhor, "ideias psicológicas". Caso queira se apro-
fundar ainda mais no assunto, no tópico E-Referências você pode-
rá encontrar um link para uma versão anterior da exposição que se
segue, intitulado "Imortalidade da Alma e Percepção e Cognição
nos Conimbricenses".

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186 © História da Filosofia Medieval

Outra maneira de abordar a chamada "psicologia filosófica"


é considerá-la como o conjunto das teorias da percepção sensorial
e da cognição.
A relevância histórica do estudo da psicologia filosófica dos
conimbricenses está evidenciada pela relação estreita entre as
discussões protagonizadas por eles no contexto do V Concílio de
Latrão. Trata-se de um fato importantíssimo para a História da Psi-
cologia Filosófica dos séculos 16 e 17, principalmente para os jesu-
ítas e para René Descartes.
Contudo, para compreender a relevância daquele Concílio,
tem-se em primeiro lugar que analisar a história da doutrina cristã
da imortalidade da alma.
No contexto da tradição bíblica, tanto no que se refere ao
Antigo quanto ao que se refere ao Novo Testamento, não é nada
fácil encontrar elementos para sustentar que a concepção de imor-
talidade da alma era familiar ao judaísmo bíblico.
Há algumas dificuldades com relação a esse tema. Primei-
ro, na abordagem filológica, pois não parece haver nem no Antigo
nem no Novo Testamento um termo equivalente a "alma" enten-
dido como algo distinto de "corpo". Tanto nephesh quanto psyche
reforçam mais uma abordagem da pessoa humana como um todo,
como alguém que tem o "sopro de vida", do que uma separação
entre alma e corpo.

Informação complementar ––––––––––––––––––––––––––––––


Julius Guttmann, em seu A filosofia do judaísmo, pareceu identificar também
uma crença na imortalidade da alma na Bíblia Hebraica, talvez por influência das
crenças de outros povos. Na verdade ele de alguma maneira associa ressurrei-
ção e imortalidade da alma. Como suas afirmações são por demasia vagas, não
há como saber exatamente a que ele se refere (MADEIRA, 2009).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Estudar aprofundadamente a exegese dos textos certamen-
te é fundamental para estabelecer se o judaísmo do início do cris-
tianismo foi influenciado pelas concepções gregas ou persas, cer-
tamente muito antigas, de que a alma se separa do corpo e que
sobrevive indefinidamente num outro plano.
© U3 - Aristotelismo e Neoplatonismo no Pensamento Medieval Ocidental 187

Contudo, para os objetivos desta abordagem, é suficiente


ressaltar que há uma distinção significativa entre a "ressurreição"
que aparece em algumas passagens da Bíblia e a crença na imor-
talidade da alma. A ressurreição ou a elevação de alguns persona-
gens bíblicos ao céu tem três características importantes, exata-
mente opostas ao conceito de imortalidade da alma:
• Seria da pessoa toda e não de alguma parte da pessoa.
• Não ocorreria necessariamente depois da morte do cor-
po.
• Seria algo experimentado apenas por algumas pessoas -
não uma característica geral da pessoa humana.

A ressurreição –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Antes do Novo Testamento, o tema da ressurreição na Bíblia surge no livro de
Daniel e no segundo livro dos Macabeus, neste último caso a ressurreição é
apresentada como uma esperança num contexto em que famílias inteiras eram
exterminadas, impedindo, portanto, que a "permanência" através da descendên-
cia e da transmissão das tradições tivesse lugar. Se até o tempo dos Macabeus
não era necessário se preocupar com o pós-morte visto que terminada a existên-
cia da pessoa esta se juntaria aos seus antepassados no Sheol, "permanecendo"
em sua prole e nas tradições passadas de geração em geração, a partir daquela
situação de genocídio o tema da "permanência" individual após a morte se tornou
premente (MADEIRA, 2009).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
O que parece estar acima de qualquer dúvida é o fato de que
a imortalidade da alma não esteve sempre presente de maneira
inequívoca na tradição cristã, pois não foi herdada do judaísmo
e nem teria sido recebida de maneira natural por intermédio da
influência grega. Lembremo-nos de que a "crença de que após a
morte a sombra da pessoa iria para o Hades não equivalia a pen-
sar numa alma individual que sobrevivesse à destruição do corpo"
(MADEIRA, 2009).
Contudo, com o passar dos séculos, a crença na imortalidade
da alma se impôs como uma necessidade inescapável do pensa-
mento cristão, principalmente no que se refere à necessidade de
defender a igualdade e a dignidade entre todas as pessoas.

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188 © História da Filosofia Medieval

Ela se imporia como condição essencial para a responsabi-


lidade pessoal pelas próprias ações e, portanto, para a imputabi-
lidade das boas e das más ações de uma pessoa com vistas à sua
salvação ou condenação eterna.
Outra forte razão para a crença na imortalidade da alma no
cristianismo está ligada à crença na presença de Deus nas pessoas,
pois a revelação que chega aos ouvidos entra no entendimento da
pessoa e passa a lá residir na forma de "verdade".
Como a "verdade" possui os atributos divinos de ser única
e permanente, o local onde a verdade habita na pessoa tem que
permanecer, pois do contrário o caráter perecível do continente
(alma humana) sairia vencedor com relação ao caráter eterno da
verdade (Deus).
A Teologia da Antiguidade e da Idade Média defendem jus-
tamente o contrário, ou seja, que o divino e mais nobre promo-
ve a elevação do humano e perecível ao seu patamar. Portanto, a
crença na imortalidade da alma se impôs como necessária para o
cristianismo.
Feitas estas considerações, fica evidenciado o fato de que
no século 16, assim como nos anteriores, as autoridades eclesiás-
ticas viram-se na obrigação de reforçar a crença na imortalidade
da alma e de exortar os teólogos e filósofos cristãos a provar por
todos os meios possíveis que não havia incompatibilidade entre a
razão e a doutrina cristã.

Vamos relembrar um pouco de História da Filosofia?


No Renascimento houve um interessante debate a respeito
da imortalidade da alma cujas implicações epistemológicas, meta-
físicas e teológicas foram importantes para a História da Filosofia,
principalmente nos séculos 16 e 17.
No âmbito da metafísica, a questão principal envolvia a
existência ou não de algo que dá a vida aos seres humanos de tal
© U3 - Aristotelismo e Neoplatonismo no Pensamento Medieval Ocidental 189

maneira que eles adquiram um status de superioridade quando


comparados com outros animais, e que tenham a capacidade de
se perpetuar de alguma maneira.
Se houver algo que dá a vida, então deve haver uma alma
humana que transcende o corpo perecível. Contudo, há a questão
da evidência que pode ser encontrada para postular tal entidade,
e a dúvida sobre o que significa para o ser humano ser um "ser
espiritual".
Se a resposta para a questão inicial for que não há diferença
significativa entre os seres humanos e os outros animais, o que
implicaria em negar que o ser humano seja constituído por alma e
corpo, então surge a questão sobre o que seria a consciência e o
que seria a verdade.
De um problema metafísico se chega a um problema episte-
mológico. Se há verdade e se esta verdade reside na consciência,
então há um intelecto que apreende a verdade. Se a verdade per-
manece verdade, então é lícito perguntar se o intelecto que a co-
nhece também deve permanecer, ou seja, se o intelecto é eterno
assim como a verdade que está nele permanece sempre verdade.
Nesse contexto, surge uma questão teológica. É Deus quem
cria e mantém a verdade, sendo Ele próprio espiritual. Então o in-
telecto, uma vez que adquire a verdade, deve ser também teoló-
gico.
A questão é se o entendimento humano seria, portanto "di-
vino" em algum grau. E mesmo que a questão da distinção en-
tre mente e corpo for taxativamente negada, ainda permanece a
questão dos atributos divinos da verdade (que seria eterna, trans-
pessoal e comunicável).
Além disso, se o ser humano tem algo de divino, então se
coloca a questão da falibilidade e da fragilidade humana. Nessa
linha, impõe-se a questão referente à possibilidade de erro de jul-
gamento, tanto em nível intelectual quanto em nível moral, pois o

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190 © História da Filosofia Medieval

ser humano tem que ser responsável de alguma maneira por tais
erros de julgamento para ser imputável (passível de ser responsa-
bilizado por suas boas ou más ações).
Ainda que se negue o caráter espiritual do ser humano, os
princípios básicos da moralidade tem que ser de alguma maneira
associados diretamente com a natureza humana.
No contexto medieval, a questão da imortalidade da alma
surgia, dentre outros momentos, no debate sobre a mortalidade
do corpo e a salvação da alma individual, debate que estava ligado
às Sentenças de Pedro Lombardo.
A discussão ficou ainda mais complexa com a recepção dos
comentários de Averróis ao De anima, nos quais este parece negar
a imortalidade da alma individual, a salvação individual e a respon-
sabilidade humana pelas próprias ações.
Tomás de Aquino se dispôs a resolver essa dificuldade com
uma interpretação correta e adequada do texto de Aristóteles e
uma análise da estrutura da alma humana do ponto de vista teóri-
co, a fim de demonstrar em que sentido ontológico e epistemoló-
gico se pode dizer que a alma do indivíduo é imortal.
A partir de então, a abordagem teórica das questões referen-
tes à alma humana esteve ligada à questão de como o texto do De
anima poderia ser mais bem interpretado.
O Renascimento produziu importantes ferramentas filológi-
cas e linguísticas que permitiram estudar de maneira mais provei-
tosa tanto Aristóteles quanto os demais autores clássicos. Também
havia no período a preocupação em estudar Anatomia, Fisiologia
e as demais artes médicas, de tal maneira que houve importantes
discussões sobre a Anatomia e a Fisiologia cerebrais e sobre as
funções e faculdades da alma.
A questão da compatibilidade entre Aristóteles e a doutrina
cristã, central no século 13 EC e nos seguintes, foi perdendo força
e a imortalidade da alma passou a ser discutida sob o ponto de vis-
© U3 - Aristotelismo e Neoplatonismo no Pensamento Medieval Ocidental 191

ta das diferentes correntes teológicas. A questão epistemológica


concentrou-se no valor interpessoal da cognição.
No Concílio de Florença (1439), o filósofo bizantino Jorge Ge-
misto, conhecido como Pleto, lançou um ataque ao aristotelismo
latino dizendo que Aristóteles tinha sido inconsistente ao defender
a imortalidade da alma no De anima, mas não na Ética, e que por
isso Alexandre de Afrodísias tinha postulado que o Estagirita de-
fendia que a alma humana era mortal.
As reações a esse debate teriam levado Cosimo de Médici a
encarregar Marsilio Ficino de tornar acessíveis as fontes platônicas
e neoplatônicas. Ficino então compôs sua famosa obra Teologia
Platônica. Para Ficino, o principal erro de Averróis em seus comen-
tários tinha sido o de negar que a substância do intelecto pode
ser a forma que aprimora o corpo, que é a atualização da vida do
corpo.

Mas quais seriam as dificuldades para se pensar a compatibilidade


entre a razão e a doutrina cristã no século 16?
O debate sobre a imortalidade da alma seguiu esse rumo em
vários lugares, principalmente em Pádua, até que Pietro Pomponazzi
(1462-1525) publicou sua obra Tratado sobre a imortalidade da
alma, na qual ele postula que o ser humano ocupa o lugar médio
entre o material e o espiritual, entre o mortal e o imortal.
Pomponazzi refere-se às operações vegetativas e sensitivas
da alma que ocorrem ao nível corpóreo – portanto mortais – e às
operações intelectivas que operam independentemente do corpo
– portanto imortais. Em si, o ser humano não é mortal em sentido
absoluto e nem é imortal em sentido absoluto.
As soluções para a ambiguidade que se segue lhe pareciam
ser três:
• Todo homem teria uma alma mortal individual e uma
alma imortal universal.

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192 © História da Filosofia Medieval

• A alma intelectiva é uma força totalmente separada que


move a alma sensitiva.
• A alma humana é em si imortal, mas em certo sentido é
mortal.
A terceira solução seria a de Tomás de Aquino e, como con-
sequência, concebe as faculdades sensitivas e intelectivas como
uma mesma coisa (Suárez, 1960, com relação ao sensus communis
e a phantasia).
Considera também que a alma é a forma ou essência do ser
humano e não uma força externa; que há tantas almas quantos
seres humanos individuais; que a alma é colocada por Deus em
cada pessoa no momento em que esta é criada, mas sobrevive ao
perecimento do corpo.
Para Pomponazzi, o ser humano está a meio caminho entre
o mundo material e o mundo espiritual, sendo que o intelecto hu-
mano está intimamente ligado ao corpo, pois necessita dos senti-
dos para conhecer (necessita dos phantasmas). Como tudo isto faz
com que a questão da alma não possa ser resolvida com clareza,
ele defende a doutrina averroísta da dupla verdade - uma teológi-
ca e outra filosófica, independentes e distintas.
As conclusões de Pomponazzi estavam em flagrante desa-
cordo com a recomendação feita pelo V Concílio Lateranense de
alguns anos antes (1513), que exortava não somente os teólogos,
mas também os filósofos a utilizarem todos os meios para provar
tanto quanto possível a verdade da religião cristã de que a alma
humana individual é imortal.
Esse fato histórico ajuda a explicar porque a nascente Com-
panhia de Jesus produziu já no século 16 inúmeros comentários
manuscritos ao De anima de Aristóteles, sendo que três deles fo-
ram publicados ainda naquele século - os comentários ao De ani-
ma de Francisco Toledo (1574) e dos Conimbricenses (1598) e uma
sessão dedicada a pontos essenciais ligados ao De anima nos Co-
mentários à Metafísica de Aristóteles de Pedro da Fonseca (1589).
© U3 - Aristotelismo e Neoplatonismo no Pensamento Medieval Ocidental 193

Também há elementos para entender melhor por que tan-


to Pedro da Fonseca quanto os Conimbricenses questionam em
inúmeros lugares a autoridade filosófica do cardeal Tomás de Vio
Caetano. A razão para a atitude crítica e a rejeição de inúmeros
pontos da leitura que Caetano fez de Aristóteles por parte daque-
les jesuítas estaria ligada à rejeição da leitura de Aristóteles feita
em Pádua, principalmente por Pedro Pomponazzi. Caetano estu-
dou em Pádua e tinha ligação de amizade com Pomponazzi.
Nesse contexto, estava em jogo a tradição cujo proponente
principal foi Averróis: pensar que segundo a razão – ou seja, se-
gundo a obra de Aristóteles – a alma humana é mortal e o intelec-
to agente é único para todos os seres humanos e imortal.
Portanto, a imortalidade da alma humana individual somen-
te poderia ser provada em outro contexto, ou seja, somente pela
revelação é que tal prova poderia ser alcançada. É claro que Caeta-
no nunca desposou tal posição com toda a clareza, apesar de sua
posição parecer ter se alterado ao longo de sua carreira.
Contudo, vários pontos de sua exposição sobre percepção e
cognição propõem uma leitura que se distancia da tradição peripa-
tética escolástica e se aproxima dos resultados obtidos pelo aver-
roísmo e pelo aristotelismo renascentista seguidor de Alexandre
de Afrodísias.

Mas seria essa uma preocupação apenas com os aspectos


filosóficos da questão?
Outro elemento interessante surgiu com a análise do Co-
mentário ao De anima dos Conimbricenses: a constatação de que,
já na esteira de Pedro da Fonseca, a preocupação tinha se deslo-
cado da análise filológica do texto de Aristóteles - a explicação do
texto é uma parte muito pequena do referido Comentário - para a
resposta às principais questões filosóficas e teológicas suscitadas
pelo De anima.

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194 © História da Filosofia Medieval

Ou seja, o que importaria para eles não era descobrir se Aris-


tóteles defendia ou não a imortalidade da alma humana individu-
al, mas sim apresentar os argumentos de que a razão dispõe para
provar tal imortalidade. Temos que estar atentos aqui ao fato de
que o coroamento dessa libertação da interpretação estrita do tex-
to filosófico deu-se nas Disputationes metaphysicae de Francisco
Suárez (1597).
Para Suárez, a alma não pode ser destruída, pois não é de
natureza composta. Daí vem a consequente postulação de que no
âmbito do mental não há distinção entre faculdades sensitivas e
intelectivas. A alma, portanto, somente poderia ser destruída por
Deus. O corpo, por outro lado, é composto e por isso é perecível.
Os conimbricenses concordam com a definição aristotélica
de que a alma humana é "ato primeiro substancial ao corpo or-
gânico que tem vida em potência". Como "ato" entende-se que a
alma não é composta; como "ato primeiro substancial", entende-
-se que é distinta de suas operações e das formas naturais dos se-
res não vivos.
Segundo os conimbricenses, a alma é aquilo por meio do
qual vivemos, sentimos, mudamos de lugar e entendemos. A alma
não está toda em nenhuma parte do corpo, mas "toda em todas as
partes". Mas não da mesma maneira, pois a vista está no olho, a
phantasia no cérebro, enquanto o intelecto e vontade estão igual-
mente em todo o corpo.
A alma é forma do corpo e princípio de nossa atividade, sen-
do, portanto, simples, espiritual, subsistente, imortal e igual em
relação às almas das outras pessoas.

Qual seria a visão conimbricense a respeito da percepção?


O problema do papel da percepção no processo do conheci-
mento era considerado uma das questões centrais da Filosofia Es-
colástica. Considerando o conhecimento em sua forma mais sim-
© U3 - Aristotelismo e Neoplatonismo no Pensamento Medieval Ocidental 195

ples, pode-se dizer que se daria durante o processo de recepção


pelos sentidos da forma sem a matéria.
A forma sensível, depois de passar pelo sensus communis e
perder a diferença de presença, tornava-se o phantasma e este
posteriormente era elevado pelo intelecto e tornava-se a forma
inteligível.
No que concerne à faculdade sensitiva, os conimbricenses
entendem que seja considerada sob três aspectos, dos quais o pri-
meiro e o terceiro são passivos e o segundo é ativo:
• Recebe do objeto a forma.
• Depois de receber a forma, produz o ato de sentir.
• Recebe o ato de sentir.
No que diz respeito à necessidade das espécies sensíveis, os
conimbricenses defendem que é a espécie sensível que determina
a faculdade de sentir, em si indeterminada, para que receba este
ou aquele singular (Escoto, Alberto e Capreolo). Porém, para existir
e permanecer, a espécie sensível depende da presença do objeto.
Os sentidos internos podem ser divididos em quatro tipos:
sensus communis, phantasia, cogitativa (ou aestimativa) e memó-
ria. Porém, na verdade podem ser reduzidos a dois (como postu-
lou Fonseca): sensus communis e phantasia. Esta última, phanta-
sia, seria um único sentido, mas com as funções de imaginação,
cogitação e memória.
O autor do comentário ao De anima, Manuel de Góis, acres-
centa que "esta nossa opinião não contradiz a doutrina peripatéti-
ca". Na opinião de Manuel de Góis, em total acordo com Pedro da
Fonseca, não podem os dois sentidos externos serem reduzidos a
apenas um, como queria Suárez, e nem se pode rejeitar o sensus
communis, como queria Francisco Toledo.
Os conimbricenses também apresentam várias conclusões
interessantes que aqui não poderemos, contudo, estudar em de-

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196 © História da Filosofia Medieval

talhes. Por exemplo, explicam que a localização dos sentidos inter-


nos é: sensus communis na parte anterior do cérebro e phantasia
em todo o cérebro.
Também ensinam que o conhecimento intelectual pode ser
intuitivo e/ou abstrativo. Abstrativo ou de simples inteligência se-
ria o conhecimento de qualquer coisa que não está presente. In-
tuitivo ou de visão seria a percepção do objeto presente.

11. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS


Sugerimos que você procure responder, discutir e comentar
as questões a seguir que tratam da temática desenvolvida nesta
unidade, ou seja, a influência Aristotélica na formação do pen-
samento ocidental, o papel de Tomás de Aquino, Guilherme de
Ockham e Duns Escoto, principalmente com relação ao temas Es-
sência, Existência, Problema da Individuação e Problema dos Uni-
versais.
Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu
desempenho no estudo desta unidade:
1) Você seria capaz de apontar qual foi o papel da falsafa para a Filosofia Oci-
dental?

2) De que maneira você apresentaria as cinco vias para provar a existência de


Deus apresentadas por Tomás de Aquino? Qual é o ponto principal de cada
uma delas? E qual é o ponto que as unifica?

3) Qual foi o fato curioso com relação ao que se diz sobre Deus nas vias propos-
tas para provar a Sua existência?

4) Com base nos seus estudos, você seria capaz de se arriscar a dizer qual seria
a solução para o Problema da Individuação na Idade Média?

5) No que concerne ao famoso Problema dos Universais, em que consiste a


posição nominalista? E qual é a posição escolástica tradicional? Você já pode
diferenciá-las claramente?
© U3 - Aristotelismo e Neoplatonismo no Pensamento Medieval Ocidental 197

12. CONSIDERAÇÕES
Nesta terceira unidade, você pôde analisar a filosofia desen-
volvida pelos principais autores medievais, tais como o dominicano
Tomás de Aquino e o franciscano João Duns Escoto, dentre outros.
Esses autores se preocuparam com temas como Essência e
Existência; o Problema dos Universais; o Problema da Individuação;
as provas da existência de Deus etc. Lançaram mão de termos téc-
nicos como Ser (esse); natureza comum (natura communis); ser em
geral (ens commune); ente. O uso destes e de muitos outros termos
e as distinções produzidas por tal uso são sutis e complexos.
Contudo, após este contato mais próximo com a Filosofia
Medieval, sua curiosidade intelectual certamente ficou aguçada,
e você poderá aprofundar seus estudos com as referências com-
plementares.
Depois deste contato sistemático com a Filosofia Medieval,
você já tem condições de continuar suas leituras a respeito desse
período fascinante e instigante da História da Filosofia. É claro que
os temas estudados são muito complexos e sofisticados e não se
deixam compreender com uma leitura superficial e apressada - ali-
ás, você já percebeu que todos os filósofos importantes produzi-
ram textos profundos -, mas demandam muitas releituras e muita
dedicação.
Neste CRC de História da Filosofia Medieval, você teve um
bom aperitivo desse imenso arcabouço filosófico e desenvolveu
seu gosto por novos temas e autores. Isto certamente lhe será
muito útil nos estudos.

13. E-REFERÊNCIAS

Lista de figuras
Figura 1 Tomás de Aquino. Disponível em: <http://www.snpcultura.org/vol_cinco_vias_
cinco_impasses.html>. Acesso em: 15 dez. 2009.

Claretiano - Centro Universitário


198 © História da Filosofia Medieval

Figura 2 João Duns Scoto. Disponível em: <http://www.promotoresdavida.org.br/


images/stories/JuanEscoto.jpg>. Acesso em: 08 fev. 2011.
Figura 3 Guilherme de Ockham. Disponível em: <http://n.i.uol.com.br/licaodecasa/
biografias/ockham.jpg>. Acesso em: 08 fev. 2011.

Sites pesquisados
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em: <http://www.aquinate.net/portal/Tomismo/Antitomistas/antitomistas-guilherme-
de-ockham.htm>. Acesso em: 14 dez. 2009.
AQUINO, T. O ente e a essência. Trad. Mário Santiago de Carvalho. Disponível em: <http://
www.ief.uc.pt/UserFiles/stomasdeente.pdf>. Acesso em: 08 fev. 2011.
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<http://www.consciencia.org/aquinovidigal.shtml>. Acesso em: 14 dez. 2009.
FALCON, F. J. C. A Cultura Renascentista Portuguesa: disponível em: <http://www.letras.
puc-rio.br/Catedra/revista/1Sem_03.html>. Acesso em: 14 dez. 2009.
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Disponível em: <http://www.lusosofia.net/textos/costa_freits_manuel_barbosa_joao_
duns_escoto.pdf>. Acesso em: 14 dez. 2009.
HIRSCHBERGER, J. São Tomás de Aquino - História da Filosofia na Idade Média. Disponível
em: <http://www.consciencia.org/filosofia_medieval19_sao_tomas_de_aquino.shtml>.
Acesso em: 15 jan. 2010.
______. A escola franciscana mais recente: doutrinas antigas e novas – História da
Filosofia na Idade Média. Disponível em: <http://www.consciencia.org/filosofia_
medieval21_escola_franciscana.shtml>. Acesso em: 15 jan. 2010.
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Disponível em: <www.ufjf.br/bibliojf/files/2009/10/landim3.pdf>. Acesso em: 08 fev.
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Disponível em: <http://iiiseminariofariasbrito.blogspot.com/>. Acesso em: 09 fev. 2011.
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SOUZA NETO, F. B. Introdução à "O ente e a essência". Disponível em: <http://salterrae.
org/divulgacao-o-ente-e-a-essencia>. Acesso em: 08 fev. 2011.
© U3 - Aristotelismo e Neoplatonismo no Pensamento Medieval Ocidental 199

14. REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS


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______. O ente e a essência. Tradução de Carlos Arthur do Nascimento. Petrópolis: Vozes,
1995.
ATTIE FILHO, M. Falsafa - a filosofia entre os árabes. São Paulo: Palas Athena, 2002.
GILSON, E. A filosofia na idade média. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
______. A filosofia na idade média. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
LIBERA, A. de. A filosofia medieval. São Paulo: Loyola, 1998.
REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia: Patrística e Escolástica. São Paulo: Paulus,
2005. v. 2.
SUÁREZ, F. Commentaria una cum Quaestionibus in Libros Aristotelis De anima -
Comentarios a los libros de Aristóteles sobre el Alma, t. 1 Madrid: Sociedad de Estudios
y Publicaciones, 1978; t. II Madrid: Labor, 1981; t. III Madrid: Fundación Xavier Zubiri,
1991.
______. Disputaciones Metafísicas. Madrid: Editorial Gredos, 1960.

Claretiano - Centro Universitário


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