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FLORES DA
ESCRIVANINHA
ENSAIOS
FLORES DA
ESCRIVANINHA
ENSAIOS
2° reimpressão
Preparação:
Márcia Copola
Revisão:
Otacílio Nunes Jr:
Murina Tronca
Perrone-Moisés, Leyla.
Flores da escrivaninha : ensaios / Leyla
Perrone-Moisés - São Paulo : Companhia das
Letras, 1990.
Bibliografia
ISBN 85-7164-117-X
CDD - 801.95
90-1386 869.945
Indices para catálogo sistemático:
1.Crítica literária 801.95
2. Ensaios : Século 20 : Literatura brasileira
869.945
3. Século 20 : Ensaios :Literatura brasileira
869.945
2006
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político até as isoladas, que se apli-
integradas num vasto projeto pela imaginaço, pelo fa
pequenos consertos no real:
cam a fazerque nOS compensa, por alguns momentos, da insatis-
de-conta,
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Inúmeros são os escritores que definem a
literatura a partir da
falta. Flaubert: *A vida é tão horrível que Só se pode
evitando-a, e podemos fazê-lo quando se vive no suportá-la
Fernando Pessoa: "A literatura, com0 mundo da arte".
não
toda arte, é uma confissão
de que a vida basta". No entanto, nenhum dos dois escreveu
ssm2 obra que se possa caracterizar cOmo uma fuga para um
mun
dn mais alegre do que oreal. E Borges, cujas
fábulas podem pare
cer àprimeira vista, como desvinculadas do real, afirma: A lite
ratura nasce da infelicidade. A felicidade não exige nada. A infeli
cdade guer ser transformada em qualquer coisa". Essa "cojsa"
em que se transforma a intelicidade éque pode
compensar a falta,
não pelo que ela cria ou representa, mas por seu modo de ser. A
isso voltaremos mais adiante.
Inventar um outro mundo mais pleno ou evidenciar as lacunas
desse em que vivemos são duas maneiras de reclamar da falta.
Mas aí chegamos ao grande paradoxo que funda o fazer literáio.
A literatura empreende suprir a falta por um sistema que
em falta, em falso: esse sistema é a linguagem. Os signos
funciona
são substitutos das coisas, seu uso repousa numa verbais
mera
de correspondência: tal coisa será representada por tal convenção
signo. As
sim, dizer as coisas é aceitar perdê-las, distanciá-las e até mesmo
anulá-las. A linguagem não pode substituir o mundo, nem ao
menos representá-lo fielmente. Pode apenas evocá-lo, aludir a ele
através de um pacto que implica a perda do real concreto.
A linguagem tem uma função referencial e uma pretensão
representativa. Entretanto, o mundo criado pela linguagem nunca
está totalmente adequado ao real. Narrar uma história, mesmo
que ela tenha realmente ocorrido, é reinventá-la. Duas pessoas
nunca contam o mesmo fato da mesma forma: a simples escolha
s pormenores a serem narrados, a ordenação dos fatos e o ân
Bulo de que eles são encarados, tudo isso cria a possibilidade de
m e uma histórias, das quais nenhuma seráa "real". Sempre es
tará faltando, na história, algo do real; e muitas vezes se estará
criando, na história, algo que faltava no real. Ou melhor, algo que,
o se produzirna história, revela uma imperdoável falha no real.
Escrever um poema étambém, pelo tema, magnificar um ou
vários aspectos do real, desprezando outros; pela forma, ritmar as
palavras como um convite a ritmar o mundo, criar harmonias de
som ede sentido que não se percebem na linguagem corrente; ins-
que Valéry define como a "hesitação entre o someo sen
lido", Na mônada do poema, 0 mundo fica momentaneamente
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cifrado,a captação do particular insinuando que uma plenituce a
mundo é desejável e possível.
Ohorizonte da literatura ésempre o real que se pretende ro.
presentar em sua dolorosa condição de falta ou
ma proposta alternativa de completude. Mas,
reapresentar nu-
por ser
literatura nunca pode ser realista.O chamado realismo nada
é do que um conjunto de efeitos, baseados
linguagem,maisa
em
variam historicamente. Céline assim explicava sua convençóes que
experiência
aparentemente realista: quando se mergulha um bastão na água
ele parece torto pelo efeito da refração; então, se quisermos que
ele pareça reto, temos de quebrá-lo antes de mergulhá-lo na água
Essa água que obriga a entortar oreal, para que ele volte a
ser o que realmente era, é a linguagem literária. Já dizia
Wordsworth: A poesia é uma linguagem distorcida". Qualquer
linguagem deforma as coisas, e a linguagem plena do escritor, para
dar verdade às coisas, assume decididamente seu
estatuto de ar
tifício e de ilusão. Daí a importância da forma e sua
relação com a
verdade, na literatura.
Parase pensar essa relação da literatura com a verdade, vale a
pena lembrar os variáveis sentidos da palavra mnito. Para os
primitivos, o nito é a história verdadeira por povos
muitos desses povos, são oS relatos do quotidiano que excelência; em
dos de "histórias falsas", Em nossa são chama
tomou o sentido de coisa puramentecivilização, aoe, contrário, mito
tirosa. Mais do que duas concepçõesimaginária
diferentes
portanto, men
da
dois modos diferentes de buscá-la. verdade, são
Muito diverso de um devaneio
fantasioso, o mito é um sistema simbólico
lizado. O modo literário de buscar a rigorosamente forma
modo simbólico do mito. verdade continua sendo o
Contrariamente ao que pensam os que têm uma concepça0
meramente instrumental da linguagem, a
vamente chamada de artifício), na formalização (pejorar
a busca de uma certa literatura, não é alienação e sim
vel porque só ela dáverdade. trabalho da forma éindispensa
O
aquela viso agucada que abre trilhas 1
emaranhado das coisas. Ao selecionar. o escritor atribui
ao fazer um arranjo novo
sugere uma valores
por esse artifício da
forma reordenacão do mundo.
real, e é por atingir essa que
a
literatura
verdade atinge uma verdade do
que ela escandaliza. Flaubelt
diziaque nunca é ofundo que
O
trabalho da forma se escandaliza mas a forma.
exerce emquetodos da obra
literária, desde as grandes estruturas, sustentam a narrativa
os níveis
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ou opoema e são suas linhas de força invisíveis, até o lavor minu
cioso do estilo, que consiste em colocar as palavras em determina
da ordem, pesandocomo numa balança os sons e os ritmos. A for
ma buscada pelo escritor énão apenas essa forma sensível na ma
terialidade do discurso mas, ao mesmo tempo, a forma do sentido,
noarranjo justo das referências, na exploração das conotações. A
forma é, assim, uma espécie de rede ardilosamente tramada para
colher, no real, verdades que não se vêem a olho nu, e que, vistas,
obrigam a reformular o próprio real.
Sópode ser escritor aquele que conhece e aceita esse percur
so enviesado do real às palavras e das palavras ao real, aquele que
sabe que seu caminho éo indireto. Dizia Clarice Lispector:
Escrever éomodo de quem tem a palavra como isca: a palavra pes
cando o que não é palavra. Uma vez que se pescou a entrelinha, po
dia-se com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não
palavra, ao morder a isca, incorporou-a.
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No ato de recriação.da obra pela leitura, aa proposta inicial se am-
pliae as intenções primitivas do autor são superadas. Entreo di-
zer e 0 ouvir, entre o escrever e o ler, ocorrem cOisas maiores do
propósitos de um emissor e as
que oos
inconsciente expectativas de um receptor:
há um saber circulando na linguagem, instituiçãoe
bem comumde autores e leitores
Ogue importa, assim, não são as intenções mensageiras do
autor (por melhores que sejam), e sim sua capacidade de imprimir
à obra aquele impulso poderoso e aquela abertura estimulante
que convideo leitor a prosseguir sua criação. Todavia, assim como
oautor não é o dono absoluto da obra, que o ultrapassa, o leitor
também não pode ter a pretensão de ser soberano em sua leitura.
Aleitura éum aprendizado de atenção, de sensibilidade e de in
vencão. A grande obra não pode ser lida de qualquer maneira, ao
bel-prazer da pura subjetividade do leitor, porque nela estão ins
critas aquelas linhas de força que podem ser moduladas e prolon
gadas, mas não anuladas.
Na circulação entre a proposta que é a obra e sua recepção
pelo leitor cria-se não propriamente um mundo paralelo, repre
sentado, e sim uma visão valorativa do mundo em que vivemos.
Assim, a obra literária é construção do real e convite reiterado ao
seu ultrapassamento. Essa compreensão permitida pela obra
iterária édiversa da compreensão racional, visada pelos discursos
instrumentais da ciência e da filosofia; é uma inteligência sensível,
que se opera em nossa mente como em nosso corpo, pelo poder
de uma linguagem em que as palavras evocam objetos, mas são,
a0 mesm0 tempo, objetos sensíveis e até mesmo sensuais.
Assim, a literatura nunca estáafastada do real. Trabalhar o
imaginário pela linguagem não éser capturado pelo imaginário,
mas capturar, através do imaginário, verdades do real que não se
dao a ver fora de uma ordem simbólica. A fuga do real, ou seu
Oposto, o realismo, nunca se efetuam totalmente na literatura,
POIs as duas atitudes têm o real como horizonte e a linguagem co
mo mediaç o. A linguagem é obstáculo, no caminho do real, mas