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LEYLA PERRONE-MOISÉS

FLORES DA
ESCRIVANINHA
ENSAIOS

COMPANHIA DAS LETRAS


LEYLA PERRONE-MOISÉS

FLORES DA
ESCRIVANINHA
ENSAIOS

2° reimpressão

COMPANHIA DAS LETRAS


Copyright © 1990, by Leyla Perrone- Moisés
Capa:
Moema Cavalcanti

Preparação:
Márcia Copola
Revisão:
Otacílio Nunes Jr:
Murina Tronca

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CP)


(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Perrone-Moisés, Leyla.
Flores da escrivaninha : ensaios / Leyla
Perrone-Moisés - São Paulo : Companhia das
Letras, 1990.

Bibliografia
ISBN 85-7164-117-X

1. Crítica literária 2. Ensaios brasileiros 1.


Título.

CDD - 801.95
90-1386 869.945
Indices para catálogo sistemático:
1.Crítica literária 801.95
2. Ensaios : Século 20 : Literatura brasileira
869.945
3. Século 20 : Ensaios :Literatura brasileira
869.945

2006

Todos os direitos desta ediço reservados à


EDITORA SCHWARCZ LTDA.
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8
ACRIAǤO
DO TEXTO LITERÁRIO

Otítulo que mne propuseram, e que aceitei, é extremamente


ambicioso. Querer sintetizar, numa breve comunicação, as
questões que esse título anuncia, seria uma pretensão ou uma in
genuidade. Fique, pois, desde logo claro que pretendo apenas le
vantar aqui alguns pontos que me parecem fundamentais, deixan
do o campo aberto para os depoimentos dos escritores e as inter
venções dos ouvintes que se seguirão às minhas colocações.
"A criação do texto literário." Embora pareça bastante neutro,
em suageneralidade, esse título jáimplica uma determinada teoria
da literatura. A palavra criação supõe o tirar do nada, o tornar ex
istente aquilo que não existia antes. Éuma palavra teológica. As
sim como Deus criou o mundo a partir do Verbo, assim o autor
literário instauraria um mundo novo, nascido de sua vontade e de
sua palavra. Para oleitor, esse mundo seria doado, com todas as
suas maravilhosas novidades, como o jardim do Éden a Adão. A
palavra criação, aplicada ao fazer artístico, pertence ao vocabulário
do idealismo românticO; presume que o artista não imita a nà
tureza, mas cria uma outra natureza, gerada por um excesso de
caráter divino e destinada a uma completude autônoma.
Entretanto, o título proposto acopla criação a outra palad
que aponta para outras teorias, mais recentes. É a palavra texto.
Ao introduzir-se a palavra texto, remete-se para a
materialidade
do escrito, e atenua-se o inefável da palavra criacão. Forma-Se as
sim um título de compromisso, de conciliação entre o "divino da
gênese eo "humano, demasiadamente humano" do objeto criado.
Como, porém, as alianças contaminam, o próprio texto, aqul
sultante de uma criação, torna-se um obieto algo miraculoso, o
mo uma pomba surgida de uma cartola.
100
Poderíamos substituir a palavra criação por outras, quase
sinônimas. (Existirão realmente sinônimos, isto é,
tenham exatamente o mesmÍ significado?) Se
palavras que
substituíSsemos
a
palavra criação pela palavra invenção, por exemplo, já seria ou-
tra teoria da literatura que estaria pór detrás. "A invencão do
texto literário." Invenção é também a criação de uma coisa no
Va. mas não de modo divino e absoluto. Inventar é usar o en
oenho humano, é interferir localizadamente no conjunto dos
artefatos de que o homem dispõe para tornar sua vida mais rica
e mais interessante. Dentro de um sistema de Verdade, in
venção tem até algo de pejorativo. Diz-se de uma mentira: isso é
umainvenção. Daí haver algo de provocador no uso da palavra
invenção para designar o fazer artístico. Oescritor que diz "eu
invento" recusa as verdades absolutas e os valores estáveis,
ressalta sua habilidade mais do que sua inspiração. O inventor
não acredita necessariamente em Deus; trabalha no mundo dos
recursos humanos. Chamada de invenção, a obra de arte é com
parável à pólvora ou ao avião. Aceita-se assim que uma in
venção também écircunscrita no temp0: ela serásubstituída por
outra, mais engenhosa, mais moderna. Essa é uma palavra cara
às vanguardas do século xx, que defendem o constante produzir
donovO comoum valor.
Outra palavra quase sinônima das duas anteriores é a palavra
produção. "A produção do texto literário." Essa éuma palavra
marcadamente materialista. Em economia, produçãoéa criaçào
necessidades materiais
de bense de serviços capazes de suprir as coletivi
do homem. Produção implica quantidade de objetos equalquer
dade de produtores e consumidores. Não tem, portanto,palavra in
a
conotação sobrenatural; éainda mais terrena do que possíveis,
como éa
venção. E, das três palavras aqui apresentadas
com a palavra texto, com
que se liga de modo mais homogêneo concreto. Inserido num
preendido este como objeto material e
produção, o texto fica equiparado a um produto do
processo de guarda-chuva ou uma máquina de
mundo industrial, como um
COstura.
duas palavras poderiam ainda substituir, nesse univer
Outras palavras representaç§o e
as três anteriores: seriam as
so vocabular, deveríamos retirar a palavra texto e
expressão. Mas, para usá-las,
representação literária" ou "a expressão lite
deixar apenas "a jåestamos em outras
categorias
rária". E essefato nos mostra que teóricas.
discursivas eem outras visadas
101
Por que fica impróprio "a representaçãodo texto literário"
"a expressão do texto literário"? Porque representação e ex
pressão, diferentemente das três palavras previamente sugeridas.
remetem para algo anterior ao texto, algo de preexistente: um
mundo (no caso da representação), um indivíduo (n0 caso da ex
pressão). Representação éa palavra mais antiga em nossa teoria
literária; éa mimese de Aristóteles. Supõe uma visão do real e
uma determinada imitação que, mesmo sendo uma transfor
mação, tem omundo como ponto de partida. Expressão pertence
ao vocabulário da psicologia e foi valorizada pelo romantismo tar
dio, que privilegia, no ato de escrever, o sujeito emissor, com sua
personalidade e seus afetos.
Ambas as palavras estão atualmente postas sob suspeita, na
teoria literária, porque a filosofia contemporânea duvida da possi
bilidade de se captar o mundo como uma totalidade representável
e a lingüística questiona a anterioridade da idéia à palavra, a pri
mazia do sentido sobre o dito.
E agora, como ficamos? O que faz o escritor? Cria? Inventa?
h Produz? Representa? Exprime? A respeito de cada um desses
verbos manifestei uma margem de reserva, que écaracterística de
um certo mal-estar da teoria literária atual, pouco propensa às
definições categóricas e totalizantes, mais desconfiada de seus
pressupostos filosóficos e mais cética a respeitode suas possibili
dades científicas".
Esse mal-estar terminológjco não deve, entretanto, desenco
rajar-nos. As palavras devem ser revisitadas, reexaminadas e ex
ploradas, elas nos ajudam na aproximação do saber que buscamos
na medida mesma em que conhecemos seus pressupostos eseus
limites. E essa foi minha intenção ao examiná-las aqui, de modo
forçosamente sumário. Criação, invenção, produção, represen
tação, expressão qualquer dessas palavras já um tanto desgas
tadas, com as quais se tenta captar o fazer literário, pode ser por
nós agora retomada, contanto que explicitemos o modo como ds
estamoS retomando.
A literatura, felizmente, continua existindo, apesar de nao
acreditarmos mais na possibilidade de a linguagem representar ou
expressar um real prévio, criar, inventar ou produzir um objelo
que seja auto-suficiente ou, pelo contrário, reabsorvido e utilizado
pelo real concreto. Aliteratura parte de um real que pretende di-
zer, falha sempre ao dizê-lo, mas ao falhar diz outra coisa, desven-
da um mundo mais real do que aquele que pretendia
dizer.
102
A literatura nasce de uma dupla
talta: uma falta sentida no
mundo, que se pretende suprir pela linguagem, ela própria
em seguida com
falta. sentida
Aprimeira falta éexperimentada por todos, no
mundo fisico a
que chamamos real. O mundo em que VIvemos, omundo em que
tronecamos diariamente, nao e satistatório. Essaéuma constatacão
a gue se chega bem cedo, na existncia. Ao
nascermos, o primeiro
esforço para respirare o choro emitido em conseqüência jáeviden
iom a falta do conforto do úero materno. Nos
dias e meses
seguintes o bebêpercebe (reclamando) o fato de que a mãe não es
tásempre presente, como ele o desejaria, ou de que seu corpo não
estáem permamente bem-estar. Esse descontentamento primário
que nos traz o estar no mundo só faz acentuar-se pela vida afora, à
medida que àsimples sensação da falta se acrescentam as especu
lações racionais sobre como as coisas deveriam ser e não são.
Quando digo que o mundo não ésatisfatório, pensa-se logo
(concordando) no mundo atual, desde as ameaças de guerra nu
clear até os problemas gritantes de nossa realidade brasileira. Mas
seria ilusório pensar que nos cabe o doloroso privilégio de viver
um real insatisfatório. Todos os momentos da história do homem
foram vividos como insatisfatórios ou mesmo insuportáveis.
Flaubert gostava de lembrar são Policarpo, um mártir do século I
de nossa era, que dizia: "Meu Deus, em que século me fizestes
nascer!". Dezessete séculos mais tarde, o escritor francês retoma
Va essas palavras como suas. Cem anos depois, eu comentei com
Osman Lins essa citação de Policarpo/Flaubert. O escritor bra
Sileiro concordou com ela, acrescentando por sua conta: *Em que
Seculo e em que lugar me fizestes nascer!". Podemos arrematar
Com Borges em sua fina ironia, dizendo a respeito de alguém:
"Coube-lhe, como a todos, maus tempos para viver",
que torna o real de nosSo momento histórico mais aguda
mente insatisfatório éa maior complexidade de dados de que dis
Pomos, aumentando nossa capacidade de conhecer e, paradoxal
ente, impedindo-nos de chegar a uma visão de conjunto. Oque
a, e ja houve em doses mais confortadoras para o homem, são
modos de à o mundo nos causa: pela re-
insatisfação que
reagir
aceitando os desienios da providÇncia e remetendo o mun
"glao,
do sem falhas para oalém-morte: pela ação social, desde aquelas

103
político até as isoladas, que se apli-
integradas num vasto projeto pela imaginaço, pelo fa
pequenos consertos no real:
cam a fazerque nOS compensa, por alguns momentos, da insatis-
de-conta,

fação causada pelo real. imaginacão A


Detenhamo-nos nesse último recurso, 0 da
de prazer
imaginação como fuga ou compensação, como prêmio
entretanto. exto
exercitada por todos os seres humanos. Alguns,
riorizam sua imaginação, inscrevem-se em objetos expostos à per
a
cepção de outras pessoas. Esse è o modo artistiCO de exercer
imno
imaginaçãoe de compensaro que falta no mundo. Não nos
ta, por enquanto, o valor desse fazer, 1sto é, se oobjeto produzido
realiza ounão o objetivo de substituir um real insatisfatório. Ten.
tar dar uma forma concreta ao imaginado é, de qualquer modo.
uma atividade de tipo artístico.
Detodas as práicas de que podemos valer-nos para refazer o
real, com a ajuda da imaginação, a que aqui nos ocupa é a
literária, isto é, a reconstrução do mundo pelas palavras. Nas
histórias inventadas podemos, eventualmente, encontrar um mun
do preferível àquele em que vivemos; em certos poemas podemos
encontrar os dados do real harmonizados de modo mais satis
fatório. Mas dizer que a obra literária compensa assim, positiva
mente, as falhas do real levar-nos-ia a uma visãoidlica da literatu
ra: supor que todas as narrativas e todoS os poemas apresentam
um mundo mais belo, mais prazeroso do que o mundo real. A li
teratura seria então aquele famoso $sorriso da sociedade", e o es
critor uma incorrigível Poliana ou um inofensivo sonhador.
As obras estão aí para desmenti-lo. Que dizer daquelas
narra
tivas que nos mostram um mundo ainda mais terrível do que esse,
játão insatisfatório, que nos cerca? E
daqueles poemas que na
testam uma dor ou um pavor ainda maiores do que os quotidiana
mente nos assaltam? E esse é o modo de ser histórico da
literaturd
contemporânea, mais para o negro do que para o cor-de-TOSa.
Ora, nessas obras negativas lê-se ainda
mais claramente a 1nsats
fação causada pela falta. Acentuar o que está mal,
ceptível egeneralizado até o insuportável, éainda torná-oindire pei
tamente, o que deveria ser e não é. sugerit.
Na sua gênese e na sua realização, a literatura aponta sempre
para o que falta, no mundo e em nós. Ela empreende dizer as
coisas como são, faltantes, ou como deveriam ser, completas.
Trágica ou epifânica, negativa ou positiva, ela está sempre dizendo
que o real não satisfaz.

104
Inúmeros são os escritores que definem a
literatura a partir da
falta. Flaubert: *A vida é tão horrível que Só se pode
evitando-a, e podemos fazê-lo quando se vive no suportá-la
Fernando Pessoa: "A literatura, com0 mundo da arte".
não
toda arte, é uma confissão
de que a vida basta". No entanto, nenhum dos dois escreveu
ssm2 obra que se possa caracterizar cOmo uma fuga para um
mun
dn mais alegre do que oreal. E Borges, cujas
fábulas podem pare
cer àprimeira vista, como desvinculadas do real, afirma: A lite
ratura nasce da infelicidade. A felicidade não exige nada. A infeli
cdade guer ser transformada em qualquer coisa". Essa "cojsa"
em que se transforma a intelicidade éque pode
compensar a falta,
não pelo que ela cria ou representa, mas por seu modo de ser. A
isso voltaremos mais adiante.
Inventar um outro mundo mais pleno ou evidenciar as lacunas
desse em que vivemos são duas maneiras de reclamar da falta.
Mas aí chegamos ao grande paradoxo que funda o fazer literáio.
A literatura empreende suprir a falta por um sistema que
em falta, em falso: esse sistema é a linguagem. Os signos
funciona
são substitutos das coisas, seu uso repousa numa verbais
mera
de correspondência: tal coisa será representada por tal convenção
signo. As
sim, dizer as coisas é aceitar perdê-las, distanciá-las e até mesmo
anulá-las. A linguagem não pode substituir o mundo, nem ao
menos representá-lo fielmente. Pode apenas evocá-lo, aludir a ele
através de um pacto que implica a perda do real concreto.
A linguagem tem uma função referencial e uma pretensão
representativa. Entretanto, o mundo criado pela linguagem nunca
está totalmente adequado ao real. Narrar uma história, mesmo
que ela tenha realmente ocorrido, é reinventá-la. Duas pessoas
nunca contam o mesmo fato da mesma forma: a simples escolha
s pormenores a serem narrados, a ordenação dos fatos e o ân
Bulo de que eles são encarados, tudo isso cria a possibilidade de
m e uma histórias, das quais nenhuma seráa "real". Sempre es
tará faltando, na história, algo do real; e muitas vezes se estará
criando, na história, algo que faltava no real. Ou melhor, algo que,
o se produzirna história, revela uma imperdoável falha no real.
Escrever um poema étambém, pelo tema, magnificar um ou
vários aspectos do real, desprezando outros; pela forma, ritmar as
palavras como um convite a ritmar o mundo, criar harmonias de
som ede sentido que não se percebem na linguagem corrente; ins-
que Valéry define como a "hesitação entre o someo sen
lido", Na mônada do poema, 0 mundo fica momentaneamente
105
cifrado,a captação do particular insinuando que uma plenituce a
mundo é desejável e possível.
Ohorizonte da literatura ésempre o real que se pretende ro.
presentar em sua dolorosa condição de falta ou
ma proposta alternativa de completude. Mas,
reapresentar nu-
por ser
literatura nunca pode ser realista.O chamado realismo nada
é do que um conjunto de efeitos, baseados
linguagem,maisa
em
variam historicamente. Céline assim explicava sua convençóes que
experiência
aparentemente realista: quando se mergulha um bastão na água
ele parece torto pelo efeito da refração; então, se quisermos que
ele pareça reto, temos de quebrá-lo antes de mergulhá-lo na água
Essa água que obriga a entortar oreal, para que ele volte a
ser o que realmente era, é a linguagem literária. Já dizia
Wordsworth: A poesia é uma linguagem distorcida". Qualquer
linguagem deforma as coisas, e a linguagem plena do escritor, para
dar verdade às coisas, assume decididamente seu
estatuto de ar
tifício e de ilusão. Daí a importância da forma e sua
relação com a
verdade, na literatura.
Parase pensar essa relação da literatura com a verdade, vale a
pena lembrar os variáveis sentidos da palavra mnito. Para os
primitivos, o nito é a história verdadeira por povos
muitos desses povos, são oS relatos do quotidiano que excelência; em
dos de "histórias falsas", Em nossa são chama
tomou o sentido de coisa puramentecivilização, aoe, contrário, mito
tirosa. Mais do que duas concepçõesimaginária
diferentes
portanto, men
da
dois modos diferentes de buscá-la. verdade, são
Muito diverso de um devaneio
fantasioso, o mito é um sistema simbólico
lizado. O modo literário de buscar a rigorosamente forma
modo simbólico do mito. verdade continua sendo o
Contrariamente ao que pensam os que têm uma concepça0
meramente instrumental da linguagem, a
vamente chamada de artifício), na formalização (pejorar
a busca de uma certa literatura, não é alienação e sim
vel porque só ela dáverdade. trabalho da forma éindispensa
O
aquela viso agucada que abre trilhas 1
emaranhado das coisas. Ao selecionar. o escritor atribui
ao fazer um arranjo novo
sugere uma valores
por esse artifício da
forma reordenacão do mundo.
real, e é por atingir essa que
a
literatura
verdade atinge uma verdade do
que ela escandaliza. Flaubelt
diziaque nunca é ofundo que
O
trabalho da forma se escandaliza mas a forma.
exerce emquetodos da obra
literária, desde as grandes estruturas, sustentam a narrativa
os níveis

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ou opoema e são suas linhas de força invisíveis, até o lavor minu
cioso do estilo, que consiste em colocar as palavras em determina
da ordem, pesandocomo numa balança os sons e os ritmos. A for
ma buscada pelo escritor énão apenas essa forma sensível na ma
terialidade do discurso mas, ao mesmo tempo, a forma do sentido,
noarranjo justo das referências, na exploração das conotações. A
forma é, assim, uma espécie de rede ardilosamente tramada para
colher, no real, verdades que não se vêem a olho nu, e que, vistas,
obrigam a reformular o próprio real.
Sópode ser escritor aquele que conhece e aceita esse percur
so enviesado do real às palavras e das palavras ao real, aquele que
sabe que seu caminho éo indireto. Dizia Clarice Lispector:
Escrever éomodo de quem tem a palavra como isca: a palavra pes
cando o que não é palavra. Uma vez que se pescou a entrelinha, po
dia-se com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não
palavra, ao morder a isca, incorporou-a.

Saber que o escritor só atinge o "deveras" como um "fingi


dor" (Fernando Pessoa), só alcança a verdade através de uma téc
nica, é ter consciência da gravidade de seu ofício: um fazer que
não é espontâneo mas conquistado. O que se conquista pela for
ma não é um mero objeto ornamental, mas um objeto onde o real
se dáa ver. O compromisso do escritor com o mundo passa por
Um compromisso com a forma; é o que Roland Barthes chamou
de "responsabilidade da forma".
A simples denúncia, pela linguagem, do que vai mal no mun
do, não tem a eficácia conseguida pelo trabalho da forma na lite
Tatura. Os artifícios do escritor revelam, ao mesmo tempo, o que
lalta no mundo e aquilo que nele deveria estar. Pela força de sua
aticulação, contraposta à "desordem asiática do mundo real"
(Borges), a obra literária demonstra que o homem écapaz de uma
armonia maior. Mesmo as obras cuja temática éa desordem e a
alta, quando possuem esa força da forma, cumprem uma funço
positiva. Nietzsche dizia: "Todas as coisas boas são fortes estimu
lantes em favor da vida: é aliás o caso de todo bom livro escrito
contra a vida".
Por outro lado, inventar e apresentar o inexistente é só apa-

rentemente uma ação alienante do real, pois, quando esse mundo


inventado se ergue com a perturbadora certeza que lhe dá aforma
justa, ele é um poderoso rival daquele que aceitávamos como real.
107
Já Aristóteles, em sua teoria da representação poética, defendi
nào averacidade mas a verossimilhança:
Não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de
tar o que podia acontecer, quer dizer, 0 que é possível represen-a
segundo
verossimilhança ea necessidade.

Representar oque poderia ter acontecido é sugerir o que


poderáacontecer, érevelar possibilidades irrealizadas do real
nesse sentido que a literatura pode ser e é
revolucionária:
por
manter viva a utopia, não como 0 imaginário impossível mas co.
mo oimaginável possível.
Clarice Lispector observava: "Escreverétantas vezes lembrar.
se do que nunca existiu". Lembrar-se do que nunca
existiu é no
conformar-se com o mnundo e suas histórias, não consideraro real
como o inelutável; éafirmar que as cOisas poderiam ter sido ou
tras, poderão ser outras. A função revolucionária da literatura n·n
consiste em emitir mensagens revolucionárias, mas em levantar.
por suas reordenações e invenções, uma dúvida radical sobre a fa
talidade do real, sobre o determinismo da história. E o que diz
Miguel Torga, em admiráveis versos: "Canta, poeta, canta!/ Violen
ta o silêncio conformado./ Cegacom outra luz a luz do dia./
Desas
sossegaomundo sossegado./ Ensina a cada alma a sua rebeldia".
Assim como a literatura não representa fielmente o real, tam
ém não age diretamente sobre ele. A falta pode ser dita, mas não
imediatamente suprida. Ainda Flaubert: "Somos feitos para dizê-lo.
não para tê-lo".O que a literatura pode, e faz, é ampliar nOSsa com
preensão do real, por um processo que consiste em destruí-loe re
construí-lo, atribuindo-lhe valores que, em si, ele não tem. Como
toda arte "representativa", aliás. Comentando um filme sobre 0
garimpo, que lhe foi mostrado, um velho garimpeiro observou: "lu
do o que estálá, a gente jáconhece: mas no filme tudo transparece
e a gente reconhece" (0 Estadode S. Paulo, 4 de maio de 1978).

A criação literária é um processo que tem dois pólos: o es-


critor e o leitor. A obra literária só existe, de fato e indefinida-
mente, enquanto recriada pela leitura, ofício que deve Ser tão ati-
Voquanto o do escritor.
Nesse processo, O escritor é o desencadeador, mas nào o dono
absoluto, como certo romantismo remanescente quer fazer crer.

108
No ato de recriação.da obra pela leitura, aa proposta inicial se am-
pliae as intenções primitivas do autor são superadas. Entreo di-
zer e 0 ouvir, entre o escrever e o ler, ocorrem cOisas maiores do
propósitos de um emissor e as
que oos
inconsciente expectativas de um receptor:
há um saber circulando na linguagem, instituiçãoe
bem comumde autores e leitores
Ogue importa, assim, não são as intenções mensageiras do
autor (por melhores que sejam), e sim sua capacidade de imprimir
à obra aquele impulso poderoso e aquela abertura estimulante
que convideo leitor a prosseguir sua criação. Todavia, assim como
oautor não é o dono absoluto da obra, que o ultrapassa, o leitor
também não pode ter a pretensão de ser soberano em sua leitura.
Aleitura éum aprendizado de atenção, de sensibilidade e de in
vencão. A grande obra não pode ser lida de qualquer maneira, ao
bel-prazer da pura subjetividade do leitor, porque nela estão ins
critas aquelas linhas de força que podem ser moduladas e prolon
gadas, mas não anuladas.
Na circulação entre a proposta que é a obra e sua recepção
pelo leitor cria-se não propriamente um mundo paralelo, repre
sentado, e sim uma visão valorativa do mundo em que vivemos.
Assim, a obra literária é construção do real e convite reiterado ao
seu ultrapassamento. Essa compreensão permitida pela obra
iterária édiversa da compreensão racional, visada pelos discursos
instrumentais da ciência e da filosofia; é uma inteligência sensível,
que se opera em nossa mente como em nosso corpo, pelo poder
de uma linguagem em que as palavras evocam objetos, mas são,
a0 mesm0 tempo, objetos sensíveis e até mesmo sensuais.
Assim, a literatura nunca estáafastada do real. Trabalhar o
imaginário pela linguagem não éser capturado pelo imaginário,
mas capturar, através do imaginário, verdades do real que não se
dao a ver fora de uma ordem simbólica. A fuga do real, ou seu
Oposto, o realismo, nunca se efetuam totalmente na literatura,
POIs as duas atitudes têm o real como horizonte e a linguagem co
mo mediaç o. A linguagem é obstáculo, no caminho do real, mas

e também possibilidade de fundá-lo, Fora da ordem da linguagem,


.aeapenas caos. Como lembra Octavio Paz, "a palavra não só
diz o mundo, mas também o funda ou o transforma". Pre
endendo substituir oreal ou. pelocontrário, espelhá-lo, sempre e
a ele que a literatura se refere. Tanto a fuga como o mergulho
obrigam-nos a ver esse real, a questioná-lo e areinventá-lo.
109
Como todas as atividades humanas (a partir da própria fala)
a literatura nasce da vivência da falta e da aspiração à comple,
tude. Essa completude, a literatura não nos pode dar. Oque ela
nos pode dar, isso sim, éuma forma de conhecimento que satisfaz:
não uma verdade abstrata e dada, mas uma verdade corporificada
e em obra.
Os inúmeros saberes carreados pela literatura são meros pre
textos para um saber maior: o saber da falta, e a permanente
manutenção do desejo de supri-la. O mundo deixa a desejar. as
palavras estão sempre em falta; a literatura o diz, insistente e ple.
namente.[1984]

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