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Eurídice Figueiredo

POR UMA CRÍTICA FEMINISTA:


leituras transversais
de escritoras brasileiras

Porto Alegre

1º edição
ÉE
2020

editora
copyright O 2020 editora zouk

Projeto gráfico e edição: Editora Zouk


Revisão: Tatiana Tanaka
Capa: Maria Williane
Foto da capa: Patricia Stavis - Apresentação do projeto
“Weightless Days” na Bienal de São Paulo de 2008.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD


Elaborado por Odilio Hilario Moreira Junior - CRB-8/9949

F475p Figueiredo, Eurídice

Por uma crítica feminista / Eurídice Figueiredo. - Porto Alegre, RS :


Zouk, 2020.
384 p.; l6cm x 23cm. - (Estudos de literaturas contemporâneas)

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-5778-004-6

1. Crítica literária. 2. Feminismo. I. Título. II. Série.

CDD 809
2020-1511 CDU 82.09
Índice para catálogo sistemático:
1. Crítica literária 809
2. Crítica literária 82.09

Este livro contou com o apoio financeiro do


Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

direitos reservados à
Editora Zouk
r. Cristóvão Colombo, 1343 sl. 203
90560-004 — Floresta - Porto Alegre - RS — Brasil
f.51. 3024.7554

www.editorazouk.com.br
Feminismos e feministas:
contra a dominação masculina

“Uma mulher deve saber que com os homens acontece diferen-


te [...). Privilégio não é palavra feminina. Conquista é. Essa luta
por uma paridade urgente que nos convoca a umas, mas não
a todas. Essa capacidade de nos livrarmos da injustiça que nos
espera na sala às cinco da manhã”
(Cinthia Kriemler)

A dominação masculina

Pierre Bourdieu (2010, p. 5) afirma no prefácio à edição alemã de seu


livro A dominação masculina (edição francesa original de 1998) que o que
aparece, na história, como eterno é simplesmente o resultado do trabalho de
eternização realizado por instituições interligadas tais como a família, a igreja,
a escola, o esporte e o jornalismo. Trata-se, assim, de discutir e desconstruir
essa visão naturalista e essencialista da relação entre os sexos inserindo a di-
mensão histórica. “A força particular da sociodiceia masculina lhe vem do
fato de ela acumular e condensar duas operações: ela legitima uma relação de
dominação inscrevendo-a em uma natureza biológica que é, por sua vez, ela
própria uma construção social naturalizada” (2010, p. 33, grifos do autor).
Se há invariáveis que persistem, é preciso verificar quais são os me-
canismos e as instituições históricas que continuamente reafirmam essas in-
variáveis. Fazer isso traz consequências na concepção e realização de estra-
tégias que visam a transformar o estado atual da relação de forças material
e simbólica entre os sexos. Como o princípio de perpetuação da relação de
dominação se dá em instâncias como a escola e o Estado, percebe-se hoje no
Brasil a insistência das forças conservadoras em impedir a ampla discussão
nas escolas de questões políticas e de gênero através de projetos de lei cha-
mados na mídia de “escola sem partido” e “contra a ideologia de gênero”. Eles
querem delegar toda a formação de crianças e adolescentes à família quando
é justamente no seio da família que acontecem mais frequentemente o abuso
sexual, a intolerância e a discriminação. Ensinar na escola assuntos ligados à
sexualidade ajuda a proteger as crianças.

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Como a força da ordem masculina é naturalizada, dispensa justificação:
a visão androcêntrica impõe-se como neutra e universal e não tem necessida-
de de ser enunciada em discursos para legitimá-la. Verifica-se, com efeito, que
a sociedade patriarcal determinou que os homens ocupam o espaço público
enquanto as mulheres são restritas ao espaço privado da casa. No Brasil, a
presença de mulheres no espaço público, principalmente na política, é rare-
feita. Assim, são os homens que fazem as leis que dizem respeito à educação
das crianças e jovens, assim como as que pretendem decidir sobre os direi-
tos reprodutivos das mulheres. As poucas mulheres que conseguem ascender
a postos de comando político são, muitas vezes, porta-vozes do patriarcado
porque a dificuldade para operar uma mudança reside no fato de os pensa-
mentos dos dominados se basearem nas estruturas de dominação, “seus atos
de conhecimento são, inevitavelmente, atos de reconhecimento, de submissão”
(2010, p. 22, grifos do autor).
Desse modo, percebemos que na transmissão familiar as mães são as
mantenedoras da ordem patriarcal e vemos manifestações na mídia de mu-
lheres que combatem o feminismo. Isso tornou-se particularmente assustador
nas chamadas redes sociais nesse momento em que assistimos à ascensão dos
movimentos de extrema-direita no Brasil (e em outros países também). “Os
dominados aplicam categorias construídas do ponto de vista dos dominantes
às relações de dominação, fazendo-as assim ser vistas como naturais. O que
pode levar a uma espécie de autodepreciação ou até autodesprezo sistemáti-
cos” (2010, p. 46). Portanto, a resistência contra a imposição simbólica deve se
dar através de uma luta cognitiva que, às vezes, parece perdida, tal a resistên-
cia às mudanças sociais/culturais. As mulheres, em sua maioria, continuam
sendo sexistas e adotam atitudes que favorecem a prevalência dos homens A
noção de tecnologias de gênero de Teresa de Lauretis está ligada a políticas
de autorrepresentação, ao modo com que cada sujeito se relaciona com os
códigos reguladores; assim como Judith Butler, ela aponta como as mulheres
operam através de mecanismos psíquicos de autossujeição. “É nessa trama
complexa de relações em que o social não impede a agência individual - auto-
consciência que poderá se tornar prática política emancipadora — e é através
dessas “tecnologias de gênero que é possível falar da experiência (das mulhe-
res)” (ARFUCH, 2013, p. 96).
Pensando no Brasil, a educação sexual e a liberação dos costumes desde
os anos 1960 provocaram mudanças no comportamento das mulheres, o que
se verifica nas publicações em geral (impressas ou digitais), assim como na
literatura, como veremos nos capítulos subsequentes. Mas isso se restringe a

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um pequeno mundo de classe média branca (em sua maioria) que mora nas
grandes cidades. A violência física e simbólica, o feminicídio, os ataques à
comunidade LGBT, a pedofilia, são muitas as frentes da luta feminista pela
igualdade de direitos entre homens e mulheres.
Não se trata de ignorar ou subestimar a violência física; ao estudar a
violência simbólica, Bourdieu (2010, p. 46, grifos do autor) quer demonstrar
a força e a pertinência em se entender as relações de dominação. Ele quer
provar que as estruturas de dominação são “produto de um trabalho incessante
(e, como tal, histórico) de reprodução, para o qual contribuem agentes especiífi-
cos [...) e instituições, famílias, Igreja, Escola, Estado”. O efeito da dominação
simbólica (de etnia, de gênero, de cultura, de língua etc.) não se exerce na ló-
gica pura das consciências cognoscentes, mas nos esquemas de percepção e de
ação que são constitutivos dos habitus. A lógica da dominação masculina só
pode ser compreendida se atentarmos para “os efeitos duradouros que a ordem
social exerce sobre as mulheres (e os homens), ou seja, às disposições espon-
taneamente harmonizadas com esta ordem que as impõe” (2010, p. 49-50).
Às emoções corporais (vergonha, humilhação, timidez) ou as paixões
e os sentimentos (admiração, respeito), são muitas as maneiras pelas quais as
mulheres se submetem ao juízo dominante mesmo quando estão em conflito
interno; elas estabelecem uma cumplicidade implícita e inconsciente com as
censuras inerentes às estruturas sociais. Não se trata de atribuir às mulheres a
responsabilidade/culpa pela sua submissão, mas a violência física e simbólica
aprisiona mulheres em relações amorosas abusivas que muitas vezes redun-
dam em feminicídio.
O poder simbólico só pode se exercer com a colaboração dos domi-
nados; nesse sentido é preciso verificar que as próprias estruturas cognitivas
presentes na sociedade induzem os dominados a pensar e agir em favor dos
dominadores. Os dominados, no caso, as mulheres, não agem de forma livre
e consciente, agem sob o efeito das formas prescritas pelo poder, dissemi-
nadas e inscritas em seus corpos. O sujeito dominado interioriza “esquemas
de percepção e de disposições (a admirar, respeitar, amar etc.) que o tornam
sensível a certas manifestações simbólicas do poder” (BOURDIEU, 2010, p.
52-53, grifo do autor).
Assim, a revolução simbólica convocada pelo movimento feminista não
pode ser um ato voluntarista que visasse a mudar as consciências; ela necessita
de uma transformação radical das condições sociais que criaram a dominação
masculina. A violência simbólica se passa “aquém da consciência e da von-
tade”, o que lhe confere um “poder hipnótico” (2010, p. 54). No processo de

19
violência, enquanto
socialização, os homens aprendem a dominar, a exercer a
ilégio masculino é também
as mulheres aprendem a submissão. Porém, o priv
uma armadilha, pois eles precisam a to do instante à de,; é um
provar sua virilida
ponto de honra. Aptos para a guerra e para OS Jogos violetas € e po rem à
de, à fraqueza.
pressão: se não corresponderem, serão associados à feminilida
a vulnera-
Esse ideal impossível de virilidade torna-se à base em que se funda
s: isso
bilidade na medida em que ela tem de ser atestada pelos outros homen
até as formas mais
se manifesta desde jogos inocentes (quem mija mais longe)
estados
violentas, como os estupros coletivos. Certos tipos de coragem manif
pelos homens são, na verdade, decorrências (ou correlatas) ao medo de não
serem aceitos, de serem considerados “mulherzinhas”. Seja na guerra ou nas
ditaduras, ao praticar torturas e ao estuprar, os homens estão provando que
são fortes e não são dominados pelos sentimentos. “A virilidade [...] é uma no-
ção eminentemente relacional, construída diante de outros homens, para os
outros homens e contra a feminilidade, por uma espécie de medo do femini-
no, e construída, primeiramente dentro de si mesmo” (BOURDIEU, 2010, p.
67, grifo do autor). No romance Mulheres que mordem de Beatriz Leal (2015,
p. 77), o personagem do torturador/estuprador de prisioneiras políticas na
Argentina afirma que não sentia prazer em fazer nenhuma das duas coisas;
era, porém, obrigado, caso contrário ficaria malvisto pelos colegas. “Não tinha
como não estuprar quando havia mais agentes comigo. Era o que era feito,
simplesmente. Não se questionava. Não tentei não fazer. Mas imagino que se
eu não estuprasse junto, viraria piada no centro. Seria ou bicha ou comunista”
Meninos e meninas são, desde a mais tenra infância, tratados de ma-
neira diferente: na escola, os professores tendem a dar mais atenção aos me-
ninos do que às meninas, como já foi demonstrado em muitas pesquisas; no
mundo do trabalho, a relação paternalista inclui o assédio sexual e moral nas
situações em que o chefe, homem, é cercado de mulheres, todas em
cargos
subalternos. A luta feminista contribuiu para o empoderamento de mulheres,
que começaram a denunciar esse tipo de assédio
que se configurou em mo-
vimentos como Me too, Balance ton porc,
Ni una a menos, Mexeu com uma
mexeu com todas.
Nos
; debates púb“LI:
licos, as mulheres convidá adas são
presença neé desvaloria
pouco escutadas, sua
zada. Os homens adotam uma pos
E ição paternalista, dando
pro Winhos e fazendo elogios. Na hora
de falar, cortam-lhes à
] Sn ar sua presença, as mul
bri
h eres vão
à ser i
clhoai parece
bráaexibicionismo, sua sedução :
reforçará os clic
E hês.
AsAtoa
s s
discrimi-
mpo todo, mesmo com hom
ens bem-intencionados
Termos pseudocarinhosos infantilizam as mulheres, perguntas absurdas são
feitas. No caso de atrizes, em geral perguntam sobre seus vestidos, suas histó-
rias amorosas ou seus filhos, nunca sobre seu papel no filme ou na peça.
Existe um double standard, uma dissimetria na avaliação das atividades
de
masculinas e femininas. A avaliação difere se se trata de um homem ou
uma mulher. Bourdieu (2010, p. 81) mostra que o olhar “é um poder simbó-
lico cuja eficácia depende da posição relativa daquele que percebe e daquele
que é percebido, e do grau em que os esquemas de percepção e de apreciação
postos em ação são conhecidos e reconhecidos por aquele a quem se aplicam”.
Apesar dos avanços, o corpo da mulher hoje continua sofrendo o escrutínio
do ponto de vista masculino, o que gera mal-estar, vergonha do próprio cor-
po quando ele não corresponde ao paradigma. Fenômenos decorrentes dessa
pressão pelo corpo perfeito são a magreza das modelos, a anorexia e a bulimia
entre as mulheres, o abuso de cirurgia plástica e outros procedimentos que
têm levado mulheres à morte. Como elas existem para o olhar dos homens
que vão avaliá-las, tentam atrair sua atenção, agradá-los, seduzi-los. A ausên-
cia de autonomia na sua autoavaliação cria a necessidade do outro para se
construir, cavando uma distância entre corpo real e corpo ideal.
O acesso ao poder “coloca as mulheres em situação de double bind: se
atuam como homem, elas se expõem a perder os atributos obrigatórios da
feminilidade e póem em questão o direito natural dos homens às posições de
poder; se elas agem como mulheres, parecem incapazes e inadaptadas à situa-
ção” (BOURDIEU, 2010, p. 84). Quando as mulheres ocupam posições do-
minantes, têm de satisfazer algumas exigências suplementares, banindo toda
conotação sexual de sua apresentação pessoal, o que é facilmente perceptível
em figuras públicas como Angela Merkel, Hillary Clinton e outras.
Independentemente de sua posição no espaço social, as mulheres estão
“separadas dos homens por um coeficiente simbólico negativo que, tal como a
cor da pele para os negros, ou qualquer outro sinal de pertencer a um gru-
po social estigmatizado, afeta negativamente tudo que elas são e fazem, e
está na própria base de um conjunto sistemático de diferenças homólogas”
(BOURDIEU, 2010, p. 111, grifos do autor). Apesar das experiências comuns,
as mulheres estão separadas umas das outras por diferenças econômicas, ra-
ciais e culturais, que afetam sua maneira de perceber a dominação masculina.
Essa questão da interseccionalidade fica muito visível na discussão do femi-
nismo negro ou no feminismo decolonial. Por isso a sororidade reivindica-
da por algumas feministas foi muito criticada e está constantemente sendo
reavaliada.

21
não são simples papéis,
Para Bourdieu (2010, p. 122-123), os gêneros
ros que fundamenta a
eles estão inscritos nos corpos. “É a ordem dos gêne
e insultos - e é
eficácia performativa das palavras - e mais especialment dos

o
nta-
também ela que resiste às definições falsamente revolucionárias do volu

as
heres é a intuição, o
rismo subversivo” A qualidade clássica atribuída às mul

om
dominados,
chamado sexto sentido. “Forma peculiar da lucidez especial dos
universo mesmo, inse-
o que chamamos de “intuição feminina é, em nosso

as
estratégias como
parável da submissão objetiva e subjetiva” (2010, p. 42). As
inação,
magia e feitiçaria, que são insuficientes para destruir a relação de dom

hoamunman
acabam confirmando a representação dominante delas como seres maléficos.
No caso extremo, ao longo da história, mulheres foram queimadas nas fo-
gueiras porque eram taxadas de bruxas; O adultério feminino era atribuído à
dissimulação no romance do século XIX, como em Dom Casmurro, Madame
Bovary ou Anna Karenina; ainda hoje a violência física e simbólica contra as

soam
mulheres costuma ser justificada pela perfídia feminina.

Os feminismos

Joan Scott (2019, p. 54), no seu seminal artigo “Gênero: uma categoria
útil para análise histórica”, publicado pela primeira vez em 1986 na American
Historical Review, considera mais útil usar a categoria de gênero para assinalar

ra
que “o mundo das mulheres faz parte do mundo dos homens, que ele é criado

ea
(
dentro e por esse mundo”. Ao fazer isso, ela rejeita a ideia de esferas separadas
e postula que, ao estudar o gênero, se avança na discussão das relações sociais
entre os sexos. Recusando o “caráter fixo e permanente da oposição binária”,
afirma a necessidade de uma “historicização e de uma desconstrução autên-
tica dos termos da diferença sexual” (2019, p. 64). O pensamento da historia-
dora estadunidense, próximo tanto de Bourdieu quanto de Foucault, enfatiza
a organização social preconizando que é preciso “substituir a noção de que
o poder social é unificado, coerente e centralizado” e defender o conceito de
poder como “constelações dispersas de relações desiguais constituídas pelo
discurso nos (campos de força” (2019, p. 66). Sua definição de gênero envolve
duas partes: 1. é “um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas di-
ferenças percebidas entre os sexos”; 2. é “uma forma primeira de significar as
relações de poder” (2019, p. 67). Ela levanta imagens preconcebidas e fixas do
papel das mulheres na sociedade ao longo da história e como, na atualidade,
algumas igrejas e grupos conservadores pretendem reforçar os estereótipos
(da mulher-mãe no recôndito do lar) a fim de enrijecer as relações de poder.

22
aa
Contra a dominação masculina, uma parcela de mulheres se levantou
em várias ondas de feminismo. Se, num primeiro momento, houve um femi-
nismo que parecia entrar em guerra com os homens, em outro, feministas
pontuaram a necessidade de ganhar a colaboração dos homens na luta contra
o sexismo e a misoginia. Tanto bell hooks em O feminismo é para todo mundo
quanto Chimamanda Adichie em Sejamos todos feministas insistem na ideia
de que o feminismo deve ser ensinado aos homens porque a sociedade só vai
mudar quando todos se transformarem. “Homens de todas as idades precisam
de ambientes em que sua resistência ao sexismo seja reafirmada e valorizada.
Sem ter homens como aliados na luta, o movimento feminista não vai progre-
dir” (hooks, 2018a, p. 31). Também Marie-France Hirigoyen (2006, p. 77) em
A violência no casal afirma que o feminismo deve ser para todos: “De nada
nos serve aprofundar ainda mais o fosso existente entre os sexos e considerar
toda a população masculina como potencialmente violenta. Seria mais útil
lutar contra as mentalidades sexistas dos homens e das mulheres, e ensinar
as mulheres a perceberem os primeiros sinais de violência e denunciá-los”.
Como Bourdieu já salientara, se as mulheres contribuem para a manutenção
da ordem patriarcal, elas também precisam entender que estão presas a esse
mecanismo social que as prejudica. Não basta ser voluntarista, o movimento
feminista precisa traçar estratégias para atingir um público maior e deixar de
ser visto como um movimento de mulheres anti-homem. O feminismo visa a
acabar com o sexismo e a misoginia, eliminando preconceitos e defendendo
direitos iguais para todos.
Para participar da vida política e do debate epistemológico, as femi-
nistas têm elaborado teorias cada vez mais sofisticadas sobre as imposições
da sociedade falocrática, sobre as construções discursivas que concernem às
mulheres e sobre a literatura produzida por mulheres. Não existe unanimida-
de sobre nada, pelo contrário, são muitas as discussões e as dissensões. Uma
delas diz respeito justamente à importância da teoria ou à sua rejeição, em
proveito de mais prática política. Nelly Richard (2002, p. 144) considera que
“O feminismo renunciar à teoria seria se privar das ferramentas que lhe per-
mitem compreender e, ao mesmo tempo, transformar o sistema de imagens,
representações e símbolos que compõem a lógica discursiva do pensamento
da identidade social dominante”. Muitas teóricas feministas, apoiadas na des-
construção de Derrida, questionam a consistência de um ser mulher original
e coerente que se oporia ao homem, no binarismo característico da metafísica
ocidental que Derrida se propôs a desconstruir. A adesão ao desconstruti-
vismo dificultou as delimitações do feminismo porque a entidade “mulher”

2
«
passou a ser vista como uma categoria não válida. Mesmo falar de mulher es”,
a fim de dar ênfase às mulheres reais em sua existência social, não resolve
plenamente a questão porque se subsume que elas se opõem aos homens em
sua existência igualmente real, desembocando, mais uma vez, no binarismo.
Esse impasse seria profundamente desmobilizador; no entanto, às feministas
demonstraram que a diferença de gênero é fundamental na estruturação so-
cial e discursiva acerca da representação sexual. Nelly Richard (2002, P. 160)
assinala que, ao não admitir a força estruturante da diferença masculino/fe-
minino, “cujo valor regula todo o universo da representação, as filosofias da
desconstrução também podem se dar ao luxo de não reconhecer a força da
transversalidade crítica, elaborada pela análise feminista dos jogos da diferen-
ça sexual, no campo do pensamento contemporâneo”.
Para Nelly Richard (2002, p. 157), o “diferencial está na vontade femi-
nista de não ceder ao ceticismo pós-moderno da crise de valor e fundamento,
que costuma arrastar tal constatação” para prosseguir na luta contra o peso
da hegemonia masculinista. Desse modo se configuram “novas políticas e
poéticas da subjetividade: da torção desconstrutiva [...] para o desejo eman-
cipatório [...]” (2002, p. 158). Retomando Spivak, Richard trata do “essencia-
lismo operacional” como um recurso estratégico na luta feminista: ainda que
se reconheça que não existe um sujeito estável chamado “mulher” ainda que
não se possa reconhecer no signo “mulher” um sentido ontológico coerente
e unificado, pode-se apelar para o nome das mulheres na perspectiva de um
coletivo que deve se organizar contra a hegemonia masculinista.
Rosi Braidotti (1997, p. 125) também adota esse “essencialismo ope-
racional” de Spivak, assinalando que o ponto de partida das
lutas feministas
continua a ser “a vontade política de afirmar a es
pecificidade da experiên-
cia corporal feminina vivida, a recusa a descorporificar
a diferença sexual,
transformando-a num sujeito antiessencialista alegadamen
te pós-moderno,
e a vontade de refazer a cone xão entre o debate
inteiro sobre a diferença e
istên cia e experi
a existên E ência cor porais das mulheres”
Em outras palavras, ape-
sar da chamada “crise do sujeito”
.

, ela admite que a diferença sex


. . »
.

ontológica porque a sexualidade ual pode ser


é constitutiva do sujeito, ainda
tosÉ postos em cena nune ca d evam ser que os sujei-
considerados como entidades
nao pensa o essencialismo como fixas. Ela
algo bi
Spivak, considerá-lo como um
a est

24
sujeito e objeto da investigação” (1987, p. 221). Seja na luta de independên-
cia da Índia (que ela analisa), seja na luta dos negros e dos indígenas, seja
em qualquer luta política, as mulheres têm uma pauta própria, além da pauta
comum, e não há possibilidade de negar a interseção do gênero nos embates
levados a cabo pelos subalternos.
Braidotti (1997, p. 134) enfatiza a importância do corpo, não como algo
biológico, mas como uma “interface entre o biológico e o social, ou seja, en-
tre o campo sociopolítico da microfísica do poder e a dimensão subjetiva”.
“Encorajar as mulheres a pensar, dizer e escrever o feminino é um gesto de
autolegitimação que deixa para trás séculos de pensamento falologocêntrico,
que silenciou as mulheres” (1997, p. 136). O feminismo assim concebido abre
possibilidades para o devir-mulher das mulheres, criando um vínculo simbó-
lico e suscitando uma aliança de mulheres. A partir de Luce Irigaray, ela pos-
tula um feminismo no “presente condicional” um tempo de utopia, “o poético
tempo da ficção”. “Mais relacionado com o tempo do sonho, é o tempo verbal
da potencialidade aberta e, consequentemente, do desejo, no sentido de uma
teia de condições de possibilidade interconectadas” (1997, p. 142).
Elizabeth Grosz (2000, p. 82-85) destaca alguns elementos para desen-
olver uma análise não dicotômica do corpo dentro de uma filosofia feminista
do corpo: 1. diante da impossibilidade de fugir totalmente ao binarismo, ela
propõe expressões como “subjetividade corporificada” e “corporalidade psi-
quica” a fim de não ignorar a materialidade do corpo, que pode ser subsumida
na visão do construcionismo; 2. a corporalidade não deve ser associada só à
um sexo. “As mulheres não podem mais ter a função de ser o corpo para os
homens, enquanto os homens são deixados livres para escalar as alturas da
reflexão teórica e da produção intelectual”. 3. não reconhecer um corpo como
modelo ou paradigma de saúde e beleza, antes, afirmar a multiplicidade de
corpos reais, sugerindo a existência de um campo como “espaço descontínuo,
não homogêneo, não singular, um espaço que admite a diferença, a incomen-
surabilidade, intervalos ou lacunas entre tipos”; 4. escapar tanto da visão dua-
lista quanto da visão biologizante e essencialista. “O corpo deve ser visto como
um lugar de inscrições, produções ou constituições sociais, políticas, culturais
e geográficas. O corpo não se opõe à cultura”; 5. na reconceitualização do
corpo, tanto o polo psíquico quanto o social devem se articular. “Qualquer
modelo adequado deve incluir uma representação psíquica do corpo vivido
do sujeito, tanto quanto da relação entre gestos, posturas e movimento do
corpo na constituição dos processos de representações psíquicas”; 6. há que
reconhecer todos os lados constitutivos do corpo. “Frente ao construcionismo

25
(quase) natureza de-
social, a tangibilidade do corpo, sua materialidade, sua
o é o corpo como
vem ser invocadas”; por outro lado, o que deve ser enfatizad
produto cultural.

Elizabeth Badinter e Margaret Atwood: más feministas?

No bojo dos desdobramentos da noite de entregas de prêmios do Globo


de Ouro, em 7 de janeiro de 2018, no qual atrizes se vestiram de preto para
demonstrar seus protestos ao assédio sexual que muitas delas afirmavam
ter sofrido de diretores, produtores e atores, apareceu no jornal Le Monde o
manifesto Nous défendons une liberté d'importuner, indispensable à la liberté
sexuelle, assinado por 100 francesas dentre as quais a atriz Catherine Deneuve
e a escritora e crítica de arte Catherine Millet, autora de A vida sexual de
Catherine M. Alguns dias depois, Margaret Atwood publicava no jornal The
Globe and Mail o artigo Am I a bad feminist?.
Em posicionamento crítico aos movimentos Me too e Time is up,
Atwood e as francesas fizeram ponderações semelhantes, ainda que os termos
não tenham sido exatamente os mesmos. Em tempos virtuais, em que só se
lê o título, foi particularmente infeliz o manifesto das francesas, ao defender
o direito de “importunar”, já que isso é tudo o que as mulheres não aguentam
mais. Mas vale a pena destacar alguns pontos que me parecem
cruciais no
raciocínio delas: 1. não defendem o estupro, que é um crime,
nem o assé-
dio sexual; 2. postulam que as mulheres não são nem an;
os nem crianças, e
têm, portanto, a capacidade de fazer escolhas, dizer
não, superar cantadas ou
pequenos gestos indesejados; 3. criticam
a ampla circulação de denúncias e
delações públicas, veiculadas pela intern
et, sem que os acusados possam
defender dentro se
do sistema legal; 4. consideram negativa
zação das mulheres, que seria contrária a excessiva vitimi-
à sua emancipação; 5. veem um certo
piitanismo na atitude de ativistas que parecem odiar os
sexualidade; homens e recusar a
6. acusam o do i j
sob pena de serem seria ã
dera ci Plices
hm do ndo
AliásNi : patriarcad
do o.
irainat antes desses acontecimentos midiáticos, a filósofa francesa
inter já havia assinalado as
diferenças entre o feminismo
francês
MacKinnon e Andrea Dworkin seriam as principais representantes desse fe-
minismo radical que vê na história um continuum do martirológico feminino.
Badinter refuta esse vitimismo que caracterizaria o feminismo do outro lado
do Atlântico, o qual angaria a comiseração do público, porém não correspon-
de às aspirações da maioria das mulheres, além de exacerbar o conflito entre
homens e mulheres. Já as feministas liberais protestavam contra essa posição
“que conclamava à censura, pisoteava a liberdade sexual e soava como uma
declaração de guerra dirigida ao gênero masculino” (2005, p. 25). Badinter
concorda com a penalização do assédio sexual em relações hierárquicas ao
passo que considera indefensável a criminalização de qualquer assédio em
relações mais igualitárias, pois as mulheres podem se defender sozinhas. A
sociedade francesa que, na geração da segunda onda era muito permissiva,
está mudando e alguns fatos demonstram que as jovens não admitem mais
certos comportamentos.
No livro Le consentement (2020) Vanessa Springora conta como foi
seduzida e abusada pelo escritor Gabriel Matzneff, quando tinha 14 anos.
Premiado e cultuado, nunca escondeu suas preferências sexuais, tendo publi-
cado uma obra imensa em que sua pedofilia está sempre explicitada, tanto em
romances quanto em relatos autobiográficos (diários), como em Les moins de
seize ans e Mes amours décomposés. Nas tantas vezes em que esteve em pro-
gramas de televisão sobre literatura, como Apostrophes, animado por Bernard
Pivot, a única a contestá-lo foi Denise Bombardier, escritora e jornalista do
Quebec, em 1990. Ela foi execrada pela elite letrada francesa: Philippe Sollers,
por exemplo, chamou-a de megera mal-amada. Após a reviravolta causada
pela publicação do livro de Springora, as editoras retiraram de circulação a
maior parte dos livros de Matzneff, que começou a ser investigado pela jus-
tiça. Outro caso foi exposto por Andréa Bescond, que escreveu e encenou a
peça Les chatouilles a partir de sua experiência de abuso sexual na infância.
Em 2018, levou ao cinema (com Eric Métayer), tendo atuado como prota-
gonista; no Brasil, o filme recebeu o título de A inocência roubada. Nos dois
casos, o predador sexual é amigo dos pais.
Já em seu artigo, Atwood diz: “Uma guerra entre mulheres, diferente de
uma guerra em favor das mulheres, sempre agrada àqueles que não desejam
o bem das mulheres. Este é um momento importante. Espero que não será
desperdiçado” (2018). Em tempos extremos, são os extremistas que vencem;
a ideologia vira uma religião e quem não compactua vira traidor, apóstata,
herético; os moderados são aniquilados. O objetivo da ideologia é eliminar
a ambiguidade, própria da literatura. As ideias propugnadas pelas feministas
radicais podem acabar reforçando posições dos grupos conservadores em sua

27
agenda contra o aborto, a “ideologia de gênero”, a prostituição e a liberdade
sexual das mulheres. A guerra de ideias na internet, em que se prefere a “lacra-
ção” ao debate democrático, tem levado à chamada cultura do cancelamento,
em que pessoas que manifestam suas posições são expostas e “canceladas” por
seus seguidores. Sobre essa crise de comunicação em situações conflagradas,
Judith Butler (2019a, p. 17) escreve: “O dissenso é reprimido, em parte, ao se
ameaçar o falante com uma identificação com a qual é impossível conviver. Já
que seria hediondo ser identificado como traidor, como colaborador, a pessoa
deixa de falar ou fala de maneira truncada, a fim de evitar a identificação ater-
rorizante que a ameaça”. A “lacração” e o “cancelamento” induzem ao silencia-
mento, ao impedimento da livre expressão de ideias.
A reação recente de Atwood pode ser bem compreendida se lermos sua
obra literária, em especial os romances O conto da aia! (de 1985) e sua conti-
nuação, Os testamentos (2019). Trata-se de romances distópicos, à maneira de
Admirável mundo novo de Aldous Huxley (de 1932), 1984 de George Orwell
(de 1949) e Fahrenheit 451 de Ray Bradbury (de 1953). Em comum, os mun-
dos futuros imaginados pelos escritores têm governos autoritários que não
gostam de livros e controlam a vida das pessoas, em particular, a sexualidade.
Os protagonistas desses três romances são homens que se revoltam contra o
regime, enquanto Atwood focaliza a maneira como vivem as mulheres. A ação
dos romances se passa no país chamado Gilead, situado na costa leste dos
Estados Unidos, semidestruído depois de um conflito em que foram usadas
armas nucleares.
Em O conto da aia o mundo é visto sob a ótica de uma aia, Offred, ao
passo que em Os testamentos há três narradoras: uma moça de boa família,
destinada ao casamento, mas que se recusa, tornando-se uma Tia (Agnes ou
testemunha 369A), uma jovem que foi levada para o Canadá (Daisy ou bebê
Nicole ou testemunha 369B) e Tia Lydia, que sabe tudo sobre a criação e o
funcionamento do regime. Ao longo do livro, ela escreve em segredo, conspi-
rando para divulgar, através das duas protagonistas, Agnes e Daisy, os crimes
dos comandantes que detêm o poder. Após o golpe que criou Gilead, as pro-
fissionais como advogadas, juízas, professoras e médicas foram presas, mui-
tas delas torturadas e assassinadas. As quatro Tias fundadoras (Lydia, Vidala,
Helena e Elizabeth) foram cooptadas para trabalhar com/para os comandan-
tes. Note-se que o primeiro sintoma da perda da autonomia feminina se dá
quando as mulheres constatam que seus cartões de banco já não
funcionam,
ou seja, não têm mais acesso ao dinheiro.

1 O romance foi adaptado para uma série de televisão que


faz muito sucesso.

% 28
Todas as mulheres têm o corpo e os cabelos cobertos por roupas largas
a fim de não provocarem a concupiscência masculina. Esse mundo distópico
pretensamente as protege, ao preço da eliminação da liberdade sexual. Elas
estão enclausuradas, cada classe social usando vestidos de cor característica,
em sua área demarcada. No período de formação, durante o qual as jovens
passam pelas mãos das “Tias”, espécie de freiras que as preparam para sua
missão, assistem a documentários que mostram a vida como era antes, com
cenas de extrema violência. A mensagem transmitida é: fiquem tranquilas, é
melhor serem castas e ter sexo mecânico do que serem livres numa socieda-
de ameaçadora. Como os homens lhes são apresentados como predadores, as
moças têm medo do sexo. Agnes e sua amiga Becka não aceitam o casamento
e se tornam Tias. Becka foi abusada pelo pai, dentista, desde os 4 anos de
idade e Agnes também, uma vez, quando esteve sozinha em seu consultório.
As meninas não têm contato com jovens do sexo masculino, aos 14 anos os
pais designam o futuro marido, geralmente muito mais velho. Esse mundo do
futuro é pior do que tudo que já existiu na sociedade ocidental no passado.
As mulheres podem ser esposas, aias, prostitutas, Tias e Martas (empre-
gadas domésticas). Mesmo as futuras esposas dos comandantes não aprendem
a ler nem escrever, sua instrução se limita a pequenos trabalhos domésticos
(como bordar). As únicas que sabem ler e têm acesso aos livros são as Tias.
As aias são destinadas à procriação em benefício dos comandantes e suas es-
posas; não têm direito nem a marido nem aos filhos. Elas perdem seu nome
ao entrar numa casa, recebendo o nome do homem ao qual passam a perten-
cer. Em O conto da aia, a protagonista se chama Offred (de Fred); não pode
circular pela casa, deve permanecer em seu quarto onde não há nada a fazer.
Não tem acesso a livros e revistas, nem a rádio e televisão. Não tem direito a
produtos de beleza de nenhum tipo. Não escolhe sua roupa, ela e suas congê-
neres usam sempre uma espécie de burca vermelha. Sua única distração é sair
todos os dias para fazer compras; em determinado ponto, encontra-se com a
companheira que lhe foi designada para isso. Conversam, medindo as pala-
vras, porque num regime repressivo em que reina a delação é difícil confiar
em alguém.
No seu período fértil, a aia deve se submeter ao ato sexual com o
Comandante, quando seu rosto e seu corpo são cobertos; a esposa fica deita-
da, emoldurando com suas pernas abertas a aia que é penetrada pelo marido.
O mesmo acontece na hora do parto: a esposa deita-se junto com a mulher
que expele o bebê. A criança pertence ao casal; a aia tem o direito de ama-
mentá-la durante alguns meses, em seguida, é enviada para outra casa para
que tenha outro bebê.

29
o ato sexual tem como úni-
Vê-se que a sexualid ade desaparece porque
r, finca que a
co objetivo a fertilização. É claro que o homem tem ns praze série
ndante faz com Ê aa
situação seja muito bizarra. No entanto, o Coma
a: convida-a para
de atos proibidos, como já havia feito com a sua antecessor
le. Ele lhe pede um beijo,
seu escritório à noite, onde conversam € jogam scrabb
te, que tem uma biblioteca
Apesar de os livros serem proibidos, o Comandan
mesmo trechos de Hive Depois
enorme, permite que leia velhas revistas e até
à fantasia e a
de ganhar sua confiança, dá-lhe antigas roupas de algum baile
onde po-
leva para fora da residência. Para sua surpresa, chegam num bordel,
jovens
derão fazer sexo sem limitações. Ela descobre que as prostitutas são as
rebeldes que não se sujeitaram à formação nem à vida de procriadoras. Em
to.
comum, nenhuma delas tem liberdade de sair de casa ou mudar de estatu
O Mayday, o movimento dos revoltosos, aparece mais explicitamen-
te em Os testamentos porque Daisy é a famosa bebê Nicole, levada para o
Canadá, que se torna o ícone da perda, da criança que deve ser recuperada.
Para isso existem as Pérolas, na verdade Tias experientes que vão ao Canadá
convencer os fugitivos a voltar para Gilead. Tia Lydia, Agnes e Daisy têm pa-
pel fundamental para o desenrolar da ação, porém não existe um final muito
esclarecedor, os dois romances terminam de maneira aberta.
É aqui que volto ao artigo da escritora canadense com o qual comecei
minha exposição. Ela critica o puritanismo e certa crispação nas relações de
homens e mulheres, considerando que isso pode favorecer os grupos retrógra-
dos de religiões neopentecostais e evangélicas que têm posições moralistas e
defendem pautas muito conservadoras. Qual é o resultado da aplicação dessa
pauta nesse mundo distópico de Atwood? As mulheres são, mais do que nun-
ca, oprimidas pelos homens. Atwood, Badinter e Deneuve, todas da mesma
geração, defendem uma liberdade que as mulheres conquistaram depois de
muita luta e que não se pode desperdiçar. Não vou recapitular em detalhes,
mas dá para lembrar alguns tópicos do que mudou em um século nos países
ocidentais: direito de votar e serem votadas, de estudar, de trabalhar, de circu-
lar livremente, de se vestir como quiserem, de administrar seu
dinheiro, de se
divorciar, de abortar.

Balanço

devidos Penscando em termos de Brasil,il,


há há questões
Õ urgentes que não avançam |
Í É : uação de grupos conservadores.
Uma delas é a necessidade da apro-
ç o da ei lei que permita
vaçã i a inte
i rrupçãoã voluntáráriia da gravidez e a assi
stência

30
médico-hospitalar no sistema público de saúde. A discussão não avança, ao
contrário, vimos inclusive tentativas de retrocesso na lei atual que permite o
aborto em três situações: em caso de estupro, de feto anencéfalo e quando a
gravidez põe em risco a vida da mulher. Houve avanço com a aprovação e a
implementação da lei Maria da Penha em 2006 e, em 2015, a regulamentação
da lei que trata o feminicídio como crime hediondo, mas o fato é que a vio-
lência contra a mulher e a população LGBT é uma das mais altas do mundo.
Essa pauta neoconservadora acaba se manifestando no tipo de censura
que algumas feministas fazem à representação do corpo nu nas artes plásticas
e à representação da sexualidade em obras literárias que exaltariam a pedofilia
(como Lolita, de Nabokov) ou a visão machista de autores como Hemingway,
Norman Mailer ou Bukowski como faz Rebecca Solnit (embora ela, em úl-
tima instância, não proponha a censura). Como lembra o escritor Bernardo
Carvalho (2018, p. 2), uma coisa é combater o horror da vida real, outra, bem
diferente, proibir, censurar, banir a representação do horror. “Na dificuldade
em fazer cumprir a Justiça, nos comprazemos com a sanha moralista que se
satisfaz no ataque às representações” Ler Lolita não torna ninguém pedófilo,
e ao que se sabe, Nabokov nunca exerceu a pedofilia (diferente de Gabriel
Matzneff, como se depreende de seus diários). Ainda retomando Bernardo
Carvalho, “a verdade da arte é o que não queremos (ou podemos) ver nem
ouvir. Nada a ver com identificação ou empatia. Qualquer relativização des-
sa verdade seria uma traição” (2018, p. 2). Em outras palavras, é o horror à
consciência do desejo que sela o pacto conservador para o qual o desejo é o
demônio. Essa infantilização não supõe o sujeito do desejo e por isso mesmo
combate a diversidade sexual, como aconteceu em 2017 com a censura ao
Queermuseu em Porto Alegre ou a proibição, pelo prefeito Marcelo Crivella,
de uma revista que estampava um beijo gay na Bienal do Livro do Rio de
Janeiro em 2019. Respeitemos a transgressão da arte.
Transfeminismo

Nós, que conhecíamos a solidão, o desprezo, a violência.


« L , . m “ A s

Nós, que para ser tivemos de nos tornar outra


coisa que ninguém ensina”
(Naná DeLuca)

Helena Vieira explica que o transfeminismo surge como contraponto ao


feminismo cisgênero, a fim de dar visibilidade às pessoas trans. Como Judith
Butler demonstrou, o gênero é socialmente construído, portanto, não existe
diferença entre a mulher natural e a mulher que nasceu no corpo errado (no
| corpo de homem). É nesse contexto da teoria queer que se começa a empregar
| a noção de cisgênero como oposto do transgênero. “A noção de cisgeneridade
opera, no campo da linguagem, um primeiro corte-denúncia: o gênero, toma-
do por normal, é também construído; portanto, as pessoas não trans, assim
como as trans, se identificam com o gênero que professam” (VIEIRA, 2018, p.
360). De maneira similar às lésbicas como Adrienne Rich, que havia cunhado
a expressão “heteronormatividade compulsória”, Vieira postula que existe na
sociedade uma “cisnormatividade”, ou seja, considera-se “normal” uma pessoa
| cisgênero.
| Criticando a própria noção de normalidade, afirma que nascem crian-
| ças intersexo, com características de ambos os sexos. O grande problema é
| que, como os pais e, sobretudo, os médicos, querem uma definição sexual
clara e imediata, muitas vezes as crianças são operadas precoce e indiscri-
minadamente, sem que se dê a elas a possibilidade de fazer uma opção mais
tarde. O protocolo recomendado é que se aguarde, para que as pessoas inter-
sexuais possam se identificar com um gênero ou outro, ou ainda, se declarar
não binárias. O sociólogo Amiel Modesto Vieira, um ativista intersexo, diz
que foi operado duas vezes (bebê e adulto) para normalizar sua genitália; de-
clara que não se sente conectado ao seu corpo, construído pelos médicos, um
corpo sem forma. “A cirurgia não me transformou em uma mulher. Só me
deu uma parte genital, mas que não era minha” Ele aponta que “o poder mé-
dico trabalha com o segredo e o silêncio, o que não dá possibilidade de esse
assunto ser discutido em sociedade. Então a intersexualidade nasce e morre
dentro da sala de cirurgia” (apud SOUZA, 2019). A medicina já mapeou mais
de 40 estados intersexo, caracterizados por incompatibilidade entre órgãos e

61
tima
iguiidades sexuais. Estima-
ais,j ambigu
cromossomos sexuais, alterações hormon
eaexo. ERRA E Errei
O ers
se que 1% da populaçãoã mu ndial seja) int
guidade, os inte
Na Antiigui i rsex uai
vendidos em feiras como
Em algumas épocas/regiões, eram assassinados ou
monstros. Foucault (1988, p. 39) afirma: “Durante múuito temp ii hermafro-
ditas foram considerados criminosos, ou filhos do cume, Ja que sua dispo-
sição anatômica, seu próprio ser, embaraçava a lei que Ea o Bi
prescrevia sua conjunção”. Foucault escreveu o prefácio O livro auto logri-
fico de Herculine Barbin (1838-1868), uma pessoa intersexo, chamada então
de hermafrodita, que viveu como mulher até a idade adulta. Apesar de ser
de família pobre, estudou, tornando-se professora. Amou pera mulheres, 9
que era sempre malvisto. Não menstruou nem tinha seios. apos ser exami-
nada por um médico, foi designada como sendo do sexo masculino, adotan-
do o nome de Abel. Tanto um sexo quanto o outro em seu corpo era falha-
do, incompleto. Suicidou-se aos 30 anos, tendo deixado suas memórias, que
Foucault descobriu e publicou.
Marcia Tiburi (2016) criou uma personagem intersexo no romance
Uma fuga perfeita é sem volta. Klaus Wolf Sebastião, após o nascimento, foi
designado performativamente como menino pelos pais; nunca teve vida se-
xual e nunca mostrou seu corpo, que lhe parece um verdadeiro incômodo.
Ao longo de quase 600 páginas, Klaus fala de sua vida, dos diferentes níveis
de passado, de seu presente como empregado do museu na Alemanha, para
onde emigrou, da morte do pai anunciada por telefone pela irmã que vive em
Florianópolis. Só nos últimos capítulos do romance é que a questão sexual
se explicita, passando a falar de si no feminino. “Entre objetos perdidos
[...)
encontrei a mim mesma. Que sou outra pessoa (2016,
p. 595). Foi a morte do
pai que libertou a personagem, permitindo que se transformasse.
“A morte de
meu pai me traz um estranho descanso, como se eu mesmo
tivesse morrido
para que Agnes Atanassova pudesse cont
inuar sua meditação” (2016, p. 598).
E na última cena Klaus/Agnes tira a roupa de mulh
er, veste sua velha calça
Preta, porém conserva o colar de
pérolas no pescoço, o colar que evoca O
quadro , de Vermeer, citado alguma
s páginas antes. Ao final de uma
opressão sexual, a personagem vida de
de Tiburi ensaia uma libertação,
meta morfose que à leva à ass fazendo uma
umir| O sexo femini
inino, que era, des
sua vida, uma possibilidad de o início de
e de ser,
genitais não estão bem definidos e a criança tem elementos dos dois sexos,
ainda que alguns possam ser um pouco atrofiados. A recomendação da ONU
é que não se atribua um sexo de maneira performativa, assegurando a pos-
sibilidade de o sujeito vir a fazer sua autodesignação sexual na adolescência.
Existe em nossa sociedade um esforço em enquadrar os sujeitos no gê-
nero correspondente ao sexo biológico, criando assim a “disforia de gênero”,
que significa que “o discurso médico-clínico transforma em patologia o que é
uma questão identitária” (VIEIRA, 2018, p. 364). O transfeminismo, ao borrar
o gênero, põe em xeque as relações de poder e, nesse sentido, “é uma emer-
gência político-epistemológica para além das demandas das pessoas trans, co-
laborando para a construção de uma nova forma de estar no mundo, novas
relações com o desejo, o corpo, as identidades e as categorias de intelecção do
real” (2018, p. 367).
O romance Tudo pode ser roubado de Giovana Madalosso (2018, p. 115)
tem uma personagem trans, Tiana, que diz: “Eu sou tudo isso que eu sou, que
não é homem, nem mulher, talvez nem trans, porque às vezes também não
me sinto trans”. Ao ser interpelada, Tiana afirma que os outros é que compli-
cam, não entende “a obsessão das pessoas com gênero, uma necessidade de
viver enquadrando os outros numa categoria, como se a sexualidade e suas
derivações fossem a coisa mais importante que existe, quando na verdade são
apenas uma pequena parcela do que somos”. A argumentação de Tiana desfaz
qualquer noção de gênero: homem, mulher, trans, hetero, homo, nada disso
importa, são meros rótulos, etiquetas que são coladas nas pessoas, servindo
mais para criar clichês e preconceitos. De maneira galhofeira, e um pouco à la
Borges, Tiana se define como Áries com ascendente em pavão.
Na apresentação do livro Vidas trans se explica que a transexualida-
de não é um transtorno nem uma doença ou distúrbio psiquiátrico; trata-
-se, antes, de uma inadequação ao gênero que lhe foi atribuído ao nascer.
“Transgeneridade' é uma espécie de termo guarda-chuva, ou seja, abriga em
si as identidades trans, como travestis, transexuais e pessoas não binárias, por
exemplo” (MOIRA et al., 2017, p. 9). Para se reconhecer trans, a pessoa não
precisa se submeter a cirurgia, tratamento hormonal ou qualquer outro tipo
de procedimento.
Helena Vieira evoca o manifesto ciborgue de Donna Haraway (1994,
P. 249) segundo o qual os limites entre natural e artificial são permeáveis.
Haraway imagina um mundo sem gênero ou pós-gênero; seu mito do cibor-
gue “se refere a fronteiras violadas, fusões potentes e possibilidades perigosas
que as pessoas progressistas poderiam explorar como uma parte do trabalho

63
ou seja , é uma m ane ira de ultrapassar Os binarismos da
político necessário” idealismo e mate.
mente, animal e máquina,
metafísica ocidental (corpo e mais
smo de mulheres brancas, em suas
rialismo). Haraway critica o femini
negras; esse feminismo cibor-
variadas vertentes, que sempre ignoraram as e-se para todas
abr
natural de unidade,
e não reivindica nenhuma matriz
tífica feminista sobre os ciborgues,
as possibilidades. Ao tratar da ficção cien
possibilidades e limites polí-
Haraway (1994, p. 281) indica que eles “definem
ficção mundana de Homem
ticos bastante diferentes daqueles propostos pela
e Mulher” Ela não aborda, em nenhum momento, à questão das pessoas
ridas e monstruo-
trans, porém a imagem do ciborgue, em suas fusões híb
da numa perspectiva
sas bem como no uso de próteses, pode ser ressignifica
transfeminista.

Balanço

A questão da transgeneridade, que entrou muito recentemente na pau-


ta dos estudos feministas, ainda tem muito pouca bibliografia, porém, achei
importante incluí-la no livro, mesmo que de forma incipiente. Ela volta no
capítulo “Um palimpsesto de putas”, em que analiso o livro E se eu fosse puta?
de Amara Moira, a transexual mais emblemática no campo literário brasileiro,
o romance de Elvira Vigna, Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, que
também tem uma personagem trans, construída de maneira muito positiva,
além de O voo da guará vermelha de Maria Valéria Rezende (que não tem
nenhuma personagem trans). Como proponho leituras transversais, aquele
capítulo complementa este e vice-versa.

64
O continuum lésbico

“Desde o início eu achava a relação amorosa entre mulheres


mais misteriosa, mais secreta. Era como participar de uma
ordem iniciática totalmente vedada aos estranhos. Foi essa
aristocracia sentimental que sempre me atraiu”
| (Myriam Campello)

Introdução

Segundo Laura Arnés (2018), a personagem da lésbica aparece pela pri-


meira vez na literatura ocidental no século XVI na pluma do escritor fran-
cês Pierre de Bourdeille (mais conhecido como Pierre de Brantôme) no livro
As lésbicas. Na literatura do século XIX, na França, a lésbica era geralmente
prostituta ou cortesã, maneira pela qual aparece no romance O cortiço (1890)
de Aluísio Azevedo. Não me interessa reconstituir o olhar masculino sobre a
homossexualidade feminina nem retraçar um panorama da tradição ocidental
na escrita de mulheres. Se fosse fazer isso teria de remontar a Safo na Grécia
(em torno de 600 a.C.) e passar por importantes escritoras como Virginia
Woolf, Colette, Violette Leduc e tantas outras. Minha proposta se restringe a
inventariar a produção de escritoras brasileiras nos últimos 60 anos.
M. Jacqui Alexander (apud COLLINS, 2019, p. 284) assinala que o agen-
ciamento sexual e a autonomia erótica das mulheres constituem uma ameaça
para a sociedade burguesa bem pensante; considera emblemáticas as figuras
da prostituta e da lésbica que “rejeitam a família nuclear heterossexual que dá
sentido a tantas instituições sociais”, Todavia, essas não são as únicas figuras
que ameaçam o status quo: há que acrescentar as pessoas trans, além de todas
às mulheres que recusam o casamento e preferem ter uma vida sexual livre.
Judith Butler, no artigo “O falo lésbico e o imaginário morfológico”, do
livro Corpos que importam (2019b, p. 161), destaca que, quando o falo é lésbi-
CO, não se referindo, portanto, à anatomia masculina, o significante é cindido
Pois tanto recorda como desloca o masculinismo que o impulsiona”. Ao fazer
'Sso, ele explicita sua inconsistência e abre “a possibilidade de considerar a
anatomia - e a própria diferença sexual - como um lugar de ressignificações”.
Esse raciocínio de Butler tem tudo a ver com o caráter construído do gênero,
“omo ela já havia demonstrado em Problemas de gênero. Falar de falo lésbico

CEA
io he-
imag in ári a em co nt ra partida a um imaginár
promove uma alternativa rença sexual, des-
co het ero nor mat ivo base ad o na anatomia e na dife
gemôni esque-
e em “uma perspectiva crítica,
loca o simbólico hegemônico e ofe rec o” (2019,
co nstituir locais de prazer erógen
mas imaginários alternativos para
p. 163). . a : E
Adrienne Rich, uma das principais feministas que teorizaram a questão
de “política de
da lesbianidade, desenvolveu três conceitos fundamentais: o
localização”, o de “continuum lésbico” e O de “heterossexualidade compulsó-
geografia do
ria” Em “Notas para uma política de localização” Rich parte da
corpo para pensar nas suas múltiplas e paradoxais identidades, que a colocam
de classe
tanto no centro como nas margens (mulher branca, estadunidense,
média, judia, lésbica), traçando um mapa que à insere na história. Ao partir
do seu próprio corpo, Rich refuta a atitude muito comum de se falar baseado
em uma visão abstrata; “a necessidade de começar com o corpo da mulher - o
nosso próprio corpo - foi vista, não como a aplicação de um princípio marxis-
ta à mulher, mas como a localização do território do qual se possa falar com
autoridade como mulher” (RICH, 2002, p. 17, grifos da autora). A “política de
localização” de Rich nasce de seu contato com ações e discursos dos negros
dos Estados Unidos bem como de sua viagem à Nicarágua, através dos quais
entende melhor seus privilégios de mulher branca e os sentidos políticos das
intervenções de seu país na América Latina. A “política de localização” se co-
necta, assim, com o conceito de “política transversal” de Patricia Hill Collins,
que rejeita o binarismo e propõe pensar os grupos não como vítimas absolu-
tas ou como privilegiados absolutos, todos têm algum tipo de vantagem e de
desvantagem no jogo social (mas, claro que alguns têm muito mais vantagens
e outros, muito mais desvantagens).
Os conceitos de “existência lésbica” e “continuum lésbico”, cunhados por
Rich, têm por objetivo substituir o termo lesbianismo, cuja história está ligada
à doença. Ela recusa o uso do termo gay, que serviria para obscurecer contor-
nos necessários, o que é fundamental para o feminismo. Assim, o continuum
lésbico concebe o erótico em termos femininos, não forçosamente genital.

ostincia lésbica sugere tanto o fato da presença histórica de lésbicas


quanto da nossa criação contínua do significado dessa mesma existên-
cia.a Entendo que o contin
i uum lésb
ésbiico possa incluir um conjunto — ao
ongo da vida de cada mulher
k e a través da história - de experiências de
identificação da mulher,
tivesse alguma vez tido o 4não simplesmente o fato de que uma mulher
conscientemente tivesse desejado uma expe-
riência sexual genital co m outra mulher (RICH,
2010, p. 35-36).
A existência lésbica seria um ato de resistência
truiu: e apago u siste matici amente docum
ao patriarcado que des-
entos :
, registro S, arquiv
os, visando im-
por à heterossexualidade compulsória.
“As lésbicas t em sido historicamen
te
destituídas de sua existóniia política através de sua “inclusão”
como versão fe-
minina da homossexualidade masculina. Equacionar a existência lésbica
com
a homossexualidade masculina, por serem as duas estigmatizadas, é o mesmo
que apagar a realidade feminina mais uma vez” (RICH, 2010,
p. 36).
Nas análises que faz das histórias das mulheres, Rich percebe como elas
resistiram à tirania masculina. “Um feminismo de ação, embora nem sempre
sem teoria, tem reemergido de modo constante em toda cultura e em todos
os tempos” (2010, p. 40). As teorias feministas que contribuem para a invi-
sibilidade lésbica atuam no sentido de impedir ou dificultar a libertação e o
empoderamento das mulheres como um grupo: exigir que relações entre mu-
lheres sejam dissimuladas, marginalizadas, representa uma perda de poder
para todas as mulheres, daí a necessidade de as teorias feministas levarem em
consideração que muitas mulheres estão aprisionadas pelos modelos impos-
tos da heterossexualidade compulsória e detectar todas as formas de opressão.
Aproprio-me das considerações teóricas de Adrienne Rich e expando o
conceito de continuum lésbico para o uso na crítica e na história da literatura
a fim de prospectar os textos e as autoras que escreveram sobre os amores
lésbicos no Brasil. Ainda que de menor alcance, minha proposta se assemelha
à de Laura Arnés (2018, p. 171), que estudou as “ficções lésbicas” na litera-
tura argentina a partir de 1950. Ela assinala que essas ficções desordenam as
tradições e “evidenciam como novas formas coexistem com estruturas do-
minantes e formações obsoletas”; não supõem nem origem (mito fundador )
nem finalidades teleológicas, permitem, antes, avaliar deslocamentos afetivos.
Ev)
Essas ficções não normativas revelam, por outro lado, que as ficções
a nenhume a e:
Vas também não passam de ficções (não correspondem
E nesse ponto Arnés (2018, p. 173) vê uma encruzilhaça enteCaonara a sd
DaTam Seas
UVA

diz respeito à legibilidade ou ilegibilidade do termo lésbica: 1


vel, perde sua autonomia, sua flexibilidade, porque 8€ orist a arativa s (d0-”
a

implic a aceita r as coltuals


na H/história, inegavelmente,
.

Assim, “entrar
Ecs
ue
a.

Arnés destaca que a produção literária é “um lugar ap na multiplicidade


"ações, “um espaço que se constrói e que sé e ep na confluência de
E diferenças, na heterogeneidade discursiva º a neste capítulo é detec-
Si

encontros, piscadas e contradições”. A minha Ni idade e apontar para as


= SIS “go
paro ts

tar como escritoras brasileiras temati zaram à lesbian


sem
Fer

329
com a presença cada vez mais frequente
jnuum
eradas nesse continuum,
: K
SicER as, bij ssexuais e pra icantes do poliamor.
de personagens lésb
pera

Lúcia Facco

), resultado de
Lúcia Facco, no livro As heroínas saem do armário (2004
s a
sua dissertação de Mestrado realizado na UERJ, escrito em forma de carta
várias destinatárias, analisa romances lésbicos ao mesmo tempo que faz uma
espécie de memorial, um working in progress de sua dissertação, A neiratiça
de
de sua primeira experiência homossexual, quando a era divorciada e mãe
dois filhos, é bastante próxima de seu conto Diário”, publicado na antologia
Todos os sentidos, organizado por Cyana Leahy. Trata-se de um interessante
jogo entre a escrita (do diário) e a hipótese de a aventura (sonhada, ficcionali-
zada) ter realmente acontecido. A personagem-narradora de primeira pessoa
explicita esse jogo: “Já transei com mil mulheres. Qual é a diferença entre
uma lembrança e uma fantasia? Depois que vivemos uma experiência, quan-
do ela se torna passado, vai para o mesmo nível de fantasia. Ambas (sobre)
vivem na cabeça, na imaginação. A segunda, inclusive, tem uma vantagem
sobre a primeira. Ela ocorre como queremos” (apud LEAHY, 2004, p. 79-80).
Na falta de experiências reais, essa mulher imagina encontros maravilhosos,
perturbadores, falhados, o que lhe aprouver. O diário é o fiel depositário de
suas fabulações.
Nas cartas e entrevistas que realizou, temos a voz de duas editoras que
criaram selos para viabilizar publicações que abrissem espaço para autores
que tratam da homossexualidade: Laura Bacellar, criadora da GLS, em 1998,
ligada ao Grupo Editorial Summus; e Danda Prado, presidente da Brasiliense,
que fundou um selo especificamente lésbico, a Aletheia, em 1999. Para a pri-
meira, literatura lésbica é aquela destinada a leitoras lésbicas; já Danda Prado
considera que essa literatura deveria mostrar a convivência natural entre per-
sonagens homo e heterossexuais, Porque assim é a
realidade. Algumas auto-
ras entrevistadas hesitam sobre se deveria
se colar esse rótulo ou não, debate
que se assemelha ao da literatura
feminina literatura negra etc. De um lado,
a necessidade de dar visibilidade
>,

às minori as; de outro, o temor de se criar


guetos
. Creio que são fases politi
camente n ecessárias para dar voz aos silen-
ciados, visando a um ideal (utópi
co?) de u m dia todos fazerem literatura, Só.
Alg umas discordam da proposta
das editor as GLS e Aletheia de dar uma ima-
gem positiva dos homossexua
is: Stella Ferra
z avalia que é um gesto político
da maior importância, Fátima Me
squita não
gosta da ideia, Vange Leonel acha

330
MM

im portanteisso, para compensar as imagens ne


Bativas que viraram clichê
mas vê também um perigo de se tornar artificial s,
e monótono. Sobre os est
reótipos, Stella Ferraz declara: e-

Antigamente a relação lésbica era,


de modo geral, pautada pelas

E
ditadas pela relação heterossexual c om sua normas
definição de papéis. Havia

ox
a juich ea femme, a sapatão e a sapa
tilha com funções e papéis bem

EE
de ni os, seguindo Os paradigmas heterossexuais. Hoje,
a necessidade
e sai e Papéis está se perdendo,
até os homens descobrem sua
porção feminina, os limites e as fronteiras dei
xam de ser tão marcados
e aumenta, desse modo, a liberdade de ser o que que sese quer uer quando se quer
a d

qu
(apud FACCO, 2004, p. 177).
,

Embora toda classificação tenda a ser radical e simplista, considero que


as autoras analisadas por Lúcia Facco fazem uma literatura de nicho que se
poderia chamar de “literatura lésbica de gueto ou de nicho”. Ela se caracteriza
por vários elementos: 1. as autoras se assumem como lésbicas; 2. contam his-
tórias de personagens lésbicas; 3. são publicadas por editoras especializadas
que se destinam a esse segmento da população; 4. não têm grandes ambições
literárias. Ela tem o seu público e faz sentido assegurar a existência de histó-
rias que agradem o seu público-alvo.

Literatura lésbica brasileira

Chamo a literatura feita pelas autoras que serão analisadas de “literatu-


ta lésbica” no sentido amplo, porque é aberta ao grande público. As escritoras
podem ser ou não lésbicas (nem sempre é possível saber), suas personagens
são lésbicas, contudo, as obras são publicadas por editoras de amplo espectro,
mea

ção.
grandes ou pequenas, e se destinam, portanto, a um público sem segmenta
o rótulo reivindi-
Qualquer rótulo imposto é discriminador, enquanto
visibilidade às chamadas
cado pode ser bandeira de luta a fim de dar maior
se tais Ego] NE AO NS TS

minorias, conforme lembra Gloria Anzaldúa (2017, p. 410), que não gosta da
Palavra lésbica, de uso das mulheres brancas e burguesas ; ela prefere usar O
ao e a o
JTMO dyke (sapatão). Se o objetivo da doxa é marginalizar dE
a mim mesma é para que à chicana elésbica e tocas ss o
Meu rotular orais ne
omitidas ou assassinadas,
Pessoas em mim não sejam apagadas,
ser conhecida.
com 9 eu afirmo quem e o que eu sou e como quero
Tim mesma é uma tática de sobrevivência”
TR

ura” detectei cinco


No corpus que reuni da chamada “grande a o nte mostra amores
Todelos de comportamentos: 1. O paradigma mais Tec
e que

331
das mulheres tanto quanto
lésbicos como alg o natural, que faz parte da vida
Danda Prado (Myriam Campello,
o casamento heteros sexual, como queria
Saavedra, Carol Bensimon,
Rosângela Vieira Roc ha, Natália Polesso, Carola
Cidinha da Silva); 2. O modelo heteronorma-
Paula Fábrio, Cristina Judar,
é interiorizado pe
la personagem quando jovem, o que a leva a rejeitar
tivo
seus desejos e a se refugiar num casamento infeliz com tira homem (Cíntia
Moscovich, Sônia Peçanha); 3. o modelo mais arcaico € mais cruel que pune
com a morte a personagem desviante (Lygia Fagundes Telles); 4. a persona-
gem homossexual é estuprada por homens que querem ensinar-lhe a seria
lher” (Conceição Evaristo e Míriam Alves); 5. as personagens bissexuais vi-
vem um ménage-à-trois (Clarice Lispector). Esses cinco modelos configuram
as narrativas (romances e contos) que serão analisadas, depois do desvio por
Cassandra Rios.
É preciso abrir um parêntese para dizer que a questão da lesbiani-
dade perpassa muito mais textos que não serão abordados neste capítulo.
Contudo, vale a pena mencionar alguns para alargar o espectro de seu apare-
cimento na literatura brasileira de autoria feminina. Em Ciranda de pedra de
Lygia Fagundes Telles (de 1954), Letícia, a personagem lésbica, tenta seduzir
Virgínia, mas o máximo que consegue é um beijo. A protagonista abandona
a casa daquela família que não era totalmente sua e decide partir em viagem.
Em As meninas há uma curta referência a amores juvenis de Lia e no conto
“Tigrela” existe uma fusão mulher-tigresa numa escrita fantástica. Ela aparece
também nos primeiros romances de Lya Luft: em As parceiras e A asa esquerda
do anjo ambas as personagens têm uma paixão adolescente por uma amiga/
prima; em Reunião de família a narradora adolescente teve contatos íntimos
com a amiga Aretusa, que viria a ser sua cunhada; já Aretusa teve uma histó-
ria (não muito esclarecida) com uma aluna,
Corália > que enlouquece após ten-
tar se matar; a empregada Berta guarda revistas com fotos
de mulheres nuas
em seu quartinho. Até mesmo em As três Marias
de Rachel de Queiroz (de
1939) existem insinuações de homossexualidade
entre as meninas no colégio
interno. Note-se que nesses casos
de amor ado lescente não se pode afirmar
que as personagens sejam lésbicas,
trata-se de experiências que fazem parte
de um processo de aprendizagem.
N ;
gens lésbicas, com
6 ia m na rios dequaTat
Dois ta corariqueira a presença de persona-
se ian
partes, constrói uma rel Salem Levy; dividido em
ação espelhada de Joana duas
que Se apaixonam pela mes e Ant ô io, irmã Emos
ma mulher
, a francesa Mate Ango
ela um amor intenso » Cada
um em um período de > a give cor
tempo. Duas partes, duas

332
ilhas (Dois Rios ea Cór sega), dois irmãos e Marie- Ange fazendo-os
da endog amia, da relação familiar sair de si
claustrofóbica, Carola Saavedra
o pero.
nagens lésbicas em dois romances: Toda terça (2007) e Com armas soole
ntasas
(2018).
Cora, a personagem de Todos nós adorávamos c
aubóis (2013, p. 46) de
Carol paste E da ver tido experiências heterossexuais, considera
que é atraída por garotas. Minha atração pelo sexo feminino era uma doce
aventura es ao mARaao SEDE; uma condenação ao mais claustrofóbico dos
universos” O mais difícil era lidar com as contradições dos
pais que votavam
à esquerda, eram defensores dos direitos humanos e das minorias, mas
não
gostariam de ver a filha com uma namorada. Aos dezesseis anos ela era uma
tomboy, vestia-se como um menino. No entanto, ao entrar na faculdade de
jornalismo e ler o livro O império do efêmero de Gilles Lipovetsky, muda sua
aparência, tornando-se mais atraente sem, entretanto, aderir ao tipicamen-
te feminino. Corta seus jeans e passa a usar shorts curtos, muda os cabelos,
usa argolinha no nariz. Sua “tendência era rejeitar tudo o que estivesse con-
taminado com os conceitos de fragilidade ou excesso de fofura, como laços,
petit-pois, rendas, sapato boneca, acessórios dourados, estampas de coração”
(2013, p. 51).
A roupa não é uma coisa à toa, um dado superficial e sem importância,
ela fornece muitas informações sobre a pessoa: se é pobre, rica, ousada, pro-
vocante, masculina tipo butcher, feminina tipo Barbie, nouveau riche, e assim
em
poderia continuar indefinidamente. Giovana Madalosso (2018, p. 157),
seu romance Tudo pode ser roubado, discute a questão da identidade, mos-
trando que não existe uma essência do ser, são camadas que nara paRa O ser
humano. “Se cavarmos dentro da gente, só vamos achar órgãos e ns o

que indica que não temos um núcleo, mas que somos feitos de ia e
usa sua ne
Yma delas é a roupa, parte do que somos” Assim, O rapaz que
Uma experiência feminina enquanto o uso da jaqueta de tonoo verme aa
Sta Doc Martens aponta para certa masculinidade; em ambos ,
“ntimento de androginia. Lacombe,
de Milly Judar
Nos romances O ano em que morri ; em€ Nova Yoderk Cristina tam-
m dia toparei comigo de Paula Fábrio e Oito do sete .
e sem r
i

ne Neste último, há uma crítica à patoligfinaa t E o OZOnão se precisa discutir:
er o . tural, -
à "al à lesbianidade é encarada como algo nã utro tipo de gozo. Não pela
É O
“Mulher com mulher não pode gozar porque é
= enfocada no capit“
ítulo sob re cosmopolitis
mo.

Assim como Carol Bensimon, Carola Saavedra é

333
quantidade de orgasmos múltiplos infinitamente maior. Mas porque gozo de
feminino com feminino é a marginalidade do gozo. Gozo ml é gozo-fa-
vela, gozo-cortiço. Não é gozo quarto-sala-cozinha-banheiro-área-de-sery;.
ço. Deve ser menosprezado em sua essência (UDAR, 2017, Pp. 104). Como
Carol Bensimon, essas autoras mostram-se cosmopolitas, tematizando varia-
das experiências e formas de sexualidade. A ppasita de Fábrio e Judar é mais
desconstruída do que a de Lacombe e Bensimon, suas personagens vivem
histórias estilhaçadas em vários espaços e países diferentes. Em Gog Magog
(2017) de Patrícia Melo há um casal de lésbicas que começa a interferir lá pelo
meio da narrativa, cujo protagonista é um homem que mata um vizinho que
o perturba por causa dos barulhos que faz. Em Calcinha no varal (2005) de
Sabina Anzuategui, depois de uma série de aventuras sexuais com homens, a
protagonista finalmente reconhece que estava atraída pela amiga com quem
dividia o apartamento. Em O efeito Urano (2010) de Fernanda Young a relação
homossexual que Cristiana tem com Helena é desencadeadora da crise que
leva ao rompimento de seu casamento com Guido. Na verdade, a lista seria
interminável.

Cassandra Rios

Cassandra Rios (1932-2002) é um fenômeno à parte: fazia uma lite-


ratura para todos, era publicada por boas editoras e vendeu muito. Apesar
dos preconceitos que a envolvem, considero importante tirar seu nome do
ostracismo, por isso lhe dedicarei algumas páginas. Foi a primeira escritora
brasileira a ter sistematicamente explorado os amores lésbicos, por isso está
sendo resgatada pela comunidade lésbica, que a considera uma pioneira. Um
exemplo disso é o documentário Cassandra Rios, a Safo de Perdizes, reali-
zado por Hanna Korich em 2013. Percebe-se, também, o interesse que co-
meça a despertar na universidade, com teses e dissertações que vêm sendo
desenvolvidas.
A má fama de Cassandra Rios (e Adelaide Carraro)
vem do fato de
ter explorado a sexualidade feminina numa época em que as escritoras
sérias
não faziam isso, além, é claro, de praticar uma escrita popular,
que os críticos
chamaram de “literatura de empregada”. As capas de seus livros
são bastante
cpeativas, ada co mulheres nuas Ou seminuas. Começou
muito cedo
, Seu primeiro romance, Volúpia do pecado, aos
16 anos, em 1948, Segundo Pedro Ama
ral, na Apresentação de Eu sou uma
lésbica, ela teria escrito mais
de 30 romances

334
que saiu em 2006, pela Azougue,
na coleçã
blicado como folhetim na revista Sta
tus,
de um romance de formaç
ão, que começa quando
Flávia, à personagem-nar
radora, tinha sete anos e se sentia atraíd -
por seus pés, sapatos e per a pel a viz inh a, Do na Kênia, sobretudo
nas. Ela ficava debaixo
lambendo-os. Fet da me sa bulindo com eles,
ichista, podólatra,? a Pequena
perversa lembra a Lori Lamby
de Hilda Hilst, obra que seria publicada um
a década d epois. “Aos sete anos,
portanto, eu agia com hipocrisia
e dissimula ção, não pela intimi
dação do mé-
todo pelo qual eu era criada, mas por algo intuitivo que já me pre
venia contra
as pessoas e me fazia guardar segredo de tais
emoções” (RIOS, 2006, p. 17).
Brincando de gatinho, vai lamber muito mais, um
a noite em que é deixada
na casa de Dona Kênia pela mãe. Por uma inversão de papéis
, é a criança que
toma a iniciativa dos atos libidinosos com a mulher adulta (qu
e, evidentemen-
te, se aproveita deles). No entanto, Dona Kênia e o marido se mu
dam e as duas
só se reencontram quando Flávia já é adulta. Aos 22 anos, já teve experi
ência
com outras mulheres. Apesar de se vestir de maneira mais masculina de pare-
,
cer um pouco andrógina, detestava o tipo machona, que lhe causava repulsa.
“Metida a homem, andar de fanfarrão, impostando a voz, sacudindo as per-
nas arreganhadas, como se tivesse um enorme saco entre elas, gesticulando
,
falando do seu “caso como se falasse de uma mulher-objeto. As expressões,
o modo de andar, tudo nela me enojou” (2006, p. 67). Neste, como em todos
Os romances aqui pesquisados, discute e defende a prática sáfica, situando-
se
claramente como uma defensora das lésbicas.
Como assinala o professor estadunidense Rick Santos (autor de uma
tese sobre Cassandra), a autora não trata os homossexuais Eua ehjeto do
olhar, mas como sujeitos que tomam suas decisões ergimena = vida interior
comum (2003, p. 20). Em outras palavras, a lesbianidade não é uma patologi
mo
€ suas personagens não são nem prostiti utas nem deprava) das. “Por essa mo-
dalidade transgressiva de discurso, que deu visibilidade à lésbica como suje
baixos” de
de enunciação e questionou a distinção entre
OS e ER ráficos e
Marração, os trabalhos de Cassandra foram marcados
A ii o cam-
'8norados pelos grupos elitistas e heterocêntricos [...] que contr
PO literário no Brasil” (SANTOS, 2003, P. 27).
ser-
realizados romances é A
mãa

Um de seus mais conhecidos e mas ar tástico e s uspense policial,


“se

Pente e q flor, um romance gótico que mistura an


“es.

2 mador: aventuras & leituras


Uso podólatra numa referência ao livro Manual do podólaira à
: 86.
“eum tarado por pés de Glauco Mattoso, publicado em 19

335
que
sexual (1 ésbica). A protagonista é Renata,
romance familiar e de iniciação deses-
mei ro cap ítu lo fog e de cas a, deixa ndo o noivo no altar, os pais
no pri , que seu
os. Vai par a uma casa de praia, velha
perados e os convidados atônit
já que ela nu nca permitiu que fosse vendida,
pai havia lhe dado de presente de sua parte, um pressentimento
embora niing uém qui
ngué i se irir P para lá. Haveria,
ses
om-
ons cie nte de que a cas a esc ond ia um segredo. Trata-se de uma casa ass
inc
à brada que evoca a mansão em ruín as do conto “A queda da au de Usher” de
Edgar Alan Poe. A personagem vê O vulto de um homem que lhe mete medo,
| recebe cartas antigas de sua mãe para um amante, tem pesadelos, faz amizade
grandes
q com duas mulheres jovens, uma delas desperta-lhe grande pao. Os
o, assassi-
q temas do romance gótico estão presentes: incesto, estupro, adultéri
nato, medo, casa grande e velha que ameaça ruir, vivos que parecem fantas-
mas. A protagonista está sempre confusa, ameaçada pela loucura. O suspense
| é muito bem elaborado e o leitor só entende todo o emaranhado da trama nas
últimas páginas. Na relação erótica entre Renata e Mirtza, várias vezes elas se
perguntam quem é a serpente e quem é a flor, um indecidível que só se resolve
no final. É um romance que mereceria uma reedição.
Em Um escorpião na balança, a personagem-narradora é Petra, uma es-
critora, que se apaixona por uma lésbica muito dominadora chamada Andréa,
que é do signo de Escorpião. Como Petra é do signo de balança, o título fica
parcialmente explicado, embora a elaboração da personagem vá muito mais
longe para caracterizar a personalidade agressiva e venenosa de Andréa.
Como em À serpente e a flor, Cassandra joga com uma antítese no título.
Depois de tentar fugir de Andréa, viciada em jogo, Petra tem surtos esquizoi-
des, desdobrando-se em outras identidades (Olívia, Libra), sendo atraída por
outras pessoas, homens e mulheres. O tema da loucura é bastante recorrente
em sua obra. Apesar de parecer que ia descambar para a tragédia, o romance
acaba com a aparente reconciliação das duas, com a promessa de que Andréa
iria parar de jogar.
A despeito do depoimento que deu em entrevista ao jornal Lampião da
esquina (outubro de 1978), dizendo que não há homossexual feliz e realiza
da
em sua obra porque fez uma vez e foi
censurada as personagens desses T0-
mances não têm fim trágico. O livro ,

com final feli z teria sido Eudemônia, de


1949, que não foi reeditado por ela. “No livro, a hom
ossexual é simplesmente
aquilo que ela quer ser; ela enfrenta seus
problemas, que todo mundo os tem)
mas no final é feliz. [...] Então discutiram com
igo: “não é possível descrever
um hégricio desses. Cheguei até a ser
multada. Até que ler um dia que eu
diss
e: Não vou mais” (citado por LONDERO, 2016, p. 39-40). Em Nicoleta

336
ninfeta a protagonista vive com
outra mulher há seis an
se separar, enquanto duas amigas, Mar os, quando decide
ta e Alic & Já estão juntas
portanto, | apesar dos preconceitos, essas há 12 anos,
personagens conseguem
vida conjugal sem nenh viver uma
um drama. Nesse livro, ela faz
uma defesa da norma-
lidade da homossexualidade: “De todo modo é
um crime privar os homosse-
xuais da sua liberdade e considerá-los seres degenerados, anormais e nocivos
à sociedade. Se uma mulher se envolve amorosamente: com
outra mulher é
porque tem tendências. [...] Dividamos o mundo então e Vivamos
em paz, os
homossexuais, os heterossexuais e os outros” (RIOS, 1972, p. 75). As descri-
ções de cenas eróticas são fortes e bem escritas, assim como o arrebata
mento
das paixões lésbicas. A linguagem paga tributo ao romantismo, abusando do
pathos, e por isso envelheceu, alongando-se demais em considerações filosófi-
cas e existenciais, com laivos de psicanálise. Além disso, o vocabulário usado
às vezes é um pouco absconso. Contudo, em geral, tem um bom ritmo folhe-
tinesco, prendendo a atenção do leitor.
Como Cassandra escrevia na primeira pessoa, como personagem-nar-
radora, frequentemente os leitores confundiram a figura da autora com a
da narradora, o que muito a irritava. Ela reclama disso em entrevistas e nos
próprios romances explica que não se trata de relatar o vivido, mas de criar
ficções. Em Nicoleta ninfeta adverte o leitor: “Escrever na primeira pessoa
não quer dizer que o autor esteja fazendo uma autobiografia. Neste livro, por
exemplo, há muitas coincidências entre a personagem, a minha profissão e a
minha própria personalidade [...], entretanto nossos caminhos são opostos
(RIOS, 1972, p. 6). Em Um escorpião na balança reitera o caráter ficcional
de suas personagens e acrescenta que, quando pensa em escrever sobre si, |
descamba logo para a ficção, narrando coisas que não aconteceram e pre
tando personagens que não existem. Reafirma que ficcionista, que gosta de
Criar, não de copiar a vida dos outros. Como preâmbulo desse romance, num
curto texto sem título, defende uma estética da escrita espontânea, sem muita
Preocupação em retocar. “Sem método, sem objetivo à toa: pus o Pp adia
máquina de escrever e logo meus dedos começaram à es né; como
saltitando de uma letra para a outra a formar palavras. Tudo tal q
Mente me vinha” (RIOS, 1972, p. 5). dad aecutardavida
Como Adelaide Carraro, foi censurada pela ditadura p itoras criaram
sexual da mulher lésbica com muita liberalidade. As e aneira Tiro, o que
Personagens femininas que exercem sua seguida am “literatura de em-
maremlivroque
era raro na época. Apesar de alguns afirseus s, “9 e ito que seu público
Susp
Pregada”, cons ider ando a vend agem de

337

Pa
ninfeta à protagonista vive com outra mulher há seis anos, quando decide
se separar, enquanto duas amigas, Marta e Alice, já estão juntas há 12 anos,
ortanto, apesar dos preconceitos, essas personagens conseguem viver uma
vida conjugal sem nenhum drama. Nesse livro, ela faz uma defesa da norma-
lidade da homossexualidade: “De todo modo é um crime privar os homosse-
xuais da sua liberdade e considerá-los seres degenerados, anormais e nocivos
à sociedade. Se uma mulher se envolve amorosamente com outra mulher é
porque tem tendências. [...] Dividamos o mundo então e vivamos em paz, os
homossexuais, OS heterossexuais e os outros” (RIOS, 1972, p. 75). As descri-
ções de cenas eróticas são fortes e bem escritas, assim como o arrebatamento
das paixões lésbicas. A linguagem paga tributo ao romantismo, abusando do
pathos, e por isso envelheceu, alongando-se demais em considerações filosófi-
cas e existenciais, com laivos de psicanálise. Além disso, o vocabulário usado
às vezes é um pouco absconso. Contudo, em geral, tem um bom ritmo folhe-
tinesco, prendendo a atenção do leitor.
Como Cassandra escrevia na primeira pessoa, como personagem-nar-
tadora, frequentemente os leitores confundiram a figura da autora com à
da narradora, o que muito a irritava. Ela reclama disso em entrevistas e nos
próprios romances explica que não se trata de relatar o vivido, mas de criar
ficções. Em Nicoleta ninfeta adverte o leitor: “Escrever na primeira pessoa
por
não quer dizer que o autor esteja fazendo uma autobiografia. Neste livro,
profissão e a
exemplo, há muitas coincidências entre a personagem, à minha
minha própria personalidade [...], entretanto nossos caminhos são opostos
ficcional
(RIOS, 1972, p. 6). Em Um escorpião na balança reitera o caráter
sobre si,
de suas personagens e acrescenta que, quando pensa em escrever
descamba logo para a ficção, narrando coisas que não aconteceram e apresen-
gosta de
tando personagens que não existem. Reafirma que é ficcionista, que
criar, não de copiar a vida dos outros. Como preâmbulo desse romance, num
muita
curto texto sem título, defende uma estética da escrita espontânea, sem
objetivo à toa: pus um papel na
preocupação em retocar. “Sem método, sem
máquina de escrever e logo meus dedos começaram à dança sobre as teclas,
saltitando de uma letra para a outra a formar palavras. Tudo tal qual como à
mente me vinha” (RIOS, 1972, p. 5).
tratar da vida
Como Adelaide Carraro, foi censurada pela ditadura por
As duas escritoras criaram
sexual da mulher lésbica com muita liberalidade.
de maneira livre, o que
Personagens femininas que exercem sua sexualidade de em-
era raro na época. Apesar de alguns afirmarem que faziam “literatura
suspeito que seu público
Pregada”, considerando a vendagem de seus livros,

337
ica
ho me ns , até po rq ue as empregadas domést
muitos
leitor incluísse também ar o que a tbies.
clar
n unca tiveram muito dinheiro
para comprar livrzoos., Mas, é
com menospre uma estética popular
ignar,
são pode simplesmente des

o dos amores lésbicos


Primeiro modelo: à naturalizaçã

Myriam Campello

Myriam Campello publicou vários romances e livros de contos, ten.


do tido contos incluídos em muitas antologias. Vou tratar aqui dos romances
Adeus a Alexandria (2014), São Sebastião Blues (1993) e Como esquecer (2003),
obras que cobrem um período de 20 anos, sendo que seu primeiro romance
data de 1972. Nos três romances predominam personagens homossexuais, so-
bretudo lésbicas, com histórias de amor em suas rupturas, crises, mas também
seus momentos de gozo e descobertas. O amor é o tema principal de seus li-
vros, amor motivo de sofrimento, como em Proust. “O amor era ameaçador. A
infelicidade herdava seus estandartes ilusórios, as trombetas silenciadas [...).
Deixar-se invadir por outro ser humano é como vender a alma, não pode ser
a troco de pouco. A recompensa tem que superar o cansaço, a descrença e o
medo” (1993, p. 62). E é o medo do amor que move a personagem do conto “A
mulher de ouro”, incluído na antologia Entre nós, organizado por Luiz Ruffato.
Em Adeus a Alexandria, a autora dialoga com a poesia de Konstantinos
Kaváfis e com sua biografia: natural de Alexandria, na Grécia, gay, sempre
morou com a mãe e nunca publicou seus poemas. Narrado em primeira pes-
soa por Sílvia, uma ghost-writer, conta a história de amor entre ela e Lol, es-
posa de João Hirsch Miranda, um rico homem de negócios que a contratara
para que escrevesse um romance, que ele assinaria. Num ritmo envolvente,
a autora constrói uma trama quase policial, narrando enredos com guina-
das bruscas, por exemplo, quando o milionário é preso, acusado de várias
falcatruas. “Não havia um só crime financeiro de que João Hirsch Miranda
não fosse acusado. Fraude, sonegação fiscal, lavagem de dinheiro, formação
de quadrilha, suborno, superfaturamento de obras públicas. A lista era longa”
(2014, p. 56). Condenado a 12 anos de reclusão, após alguns meses todo 0
processo é anulado, por falhas na investigação. Mais Brasil atual, impossível.

e E gd pa Eça ei
e de None ma emo
.

ar cio
Tro que quase mata Lol, parece se encamin

ções, são os grandes temas. Ao mesmo tempº»

338
Myriam Campello é, se
m dúvida, » àa escescritritora b
sobre o erotismo brasileir
de mulheres lésbicas,
primindo ânsia, ímpe descrevend Bestosden
to e, ao mesmo temp movimentos, ex-
Em São Se o. lir ism o.
e
bastião Blues a intr
iga gi Ta em torno de um
Literatura, portanto, todos os Prêmio de
Personagens s ão escrit
ores, com exceção da jo-
vem Leonora, que quer fazer cinema, Laur
a Morandi, escritora consagrad
se separou de Júlia Bandeira, ruptura que ain a,
da é sentida pelas duas. O júri
do concurso é presidido por David, escrito r medíoc
re, rico, que participou de
negociatas durante a ditadura e agora é alt O fun
cionário da Petrobras. Sua fi-
lha Leonora, recém-chegada de Nova York » onde conclu
iu o curso de cinema,
se envolve momentaneamente com Júlia, O que vai desenc
adear a perseguição
de David, que lhe tira o prêmio no con curso porque consegue persuadir
os
outros membros, com exceção da única mulher, Aurora Ferrão. Não há final
feliz escancarado, vislumbra-se uma possibilidade de reconciliação. Como em
Adeus a Alexandria, o final fica em aberto.
O romance faz uma veemente crítica/sátira aos prêmios literários, aos
acadêmicos da ABL, seus complôs e suas pressões para consagrar os amigos
medíocres. O assunto, fascinante, reaparece transfigurado em romance recen-
te, A feira (2018), de Adriana Armony, que também se mostra muito mordaz
em sua representação de uma festa literária. David representa o que há de
pior na figura do macho-chefe-de-família-patriarcal. Coleciona amantes, sen-
do que a última tinha 17 anos, menos que sua filha, é conservador e vingativo
com Leonora e Júlia, em suma, um cafajeste. “O casamento não era o calabou-
ço final, a morte do sonho. [...] Queria que todas as mulheres atraentes o se-
(1993, p. 147).
guissem como os ratos ao flautista de Hamelin. E queria Odete”
E quando Odete o ameaça e lhe pede o divórcio, se desespera: quer manter O
belo casamento burguês e ter todas as amantes que desejar.
com O morro cos a
Como esquecer tem uma relação intertextual
epígrafe e sobre o qu Ju a .
uivantes de Emily Brontê, que aparece desde a
Ay se repete O ti o do o
protagonista, está escrevendo um ensaio. E EN
se des nar
outros romances em que despontam casais que
a casa de Antônia, vai morar com Hugo, cujo ra e parecida Helena,
dig eua
de câncer. Dois homossexuais em luto polé oia ra
pintora, recém-chegada de Paris, tara mr cendo o luto. A protagonista bus-

envolver com Júlia, que prefere É o e Heathcliff do romance inglês,


ca fugir do mito do amor irresistível o o ue sou hoje. Dinamitar de vez
como ela diz: “Ser má para mim é a amor. Sei que não será fácil,

a crença nesse conjunto de mitos que se

339
será dificílimo. Meu vernáculo emocional não me ajuda: fui feita para seguir
fielmente Cathy e Heathcliff” (2003, p. 32).
Isso é o que faz a protagonista do conto “A mulher de ouro”, cuja perso-
nagem-narradora é uma mulher lésbica, que tem uma grande paixão por ou-
tra, encontrada numa discoteca. As sensações são narradas por uma profusão
de metáforas. “Quando sua lava fumegante cobriu minhas ruas e becos sem
deixar espaço de respirar, o pânico se instalou em mim como cavalos em fú-
ria, todos os sinais se acenderam” (apud RUFFATO, 2007, p. 198). Apesar do
grande prazer auferido no sexo, não quer compromisso, não quer manter uma
relação amorosa estável e rompe. Esse é um conto muito erótico e em ruptura
com o signo do amor romântico assinalado no romance Como esquecer. Amor
nômade. Myriam Campello trata o amor lésbico como algo natural, discutin-
do relativamente pouco a questão dos preconceitos, mas às vezes menciona o
fato de a sociedade não suportar a diferença.

Rosângela Vieira Rocha

Véspera de lua (2015) é um romance cuja enunciação se dá durante


os dias que duram a TPM e a menstruação, pontuada por muitas cólicas da
personagem Paula que, acamada e mal-humorada, relembra sua vida e seus
amores lésbicos com Lúcia, Ana e a atual, Ester, relacionamento que está che-
gando ao fim. A personagem-narradora gostaria de abolir a memória, não
ficar revivendo em sua mente todos os percalços de sua vida que incluem al-
gumas tentativas de suicídio. “Não rever mais o vivido, parar de passar eterna-
mente a fita procurando as lições, os caminhos, justificando-se para si mesma.
Conseguir nascer de novo sem o antes, nenhuma opção feita, sem compro-
missos nem a culpa. Empurrar a vida vivida dentro de um poço e nunca mais
reencontrá-la” (2015, p. 19).
O curioso nesse romance é que, nas primeiras 50 páginas, a discussão
sobre o fim do relacionamento pode ser lido como se a pessoa de quem se fala,
designada como E, fosse um homem, já que o paradigma de nossa sociedade
é o do amor heterossexual. A surpresa chega na página 53, quando aparece o
nome de Ester, o que obriga o leitor a reler ou reavaliar todo o início do ro-
mance. A menção a Ester desencadeia a narração da cena primária da vida da
narradora, sua iniciação sexual por Lúcia. De um lado, certo preconceito, pois
declara que tinha medo de só gostar de mulheres, de outro lado, a constatação
do prazer que obteve com Lúcia. “Aquelas tinham sido as melhores horas de
sua vida” (2015, p. 69).

340
prescrevia mudanças no figurino tais
como usar saia, pintar as unhas, afof
cabelo, além de, naturalmente, não
admitir a ausência da com ana má
lina. Já a personagem preferia usar calças, camisas, botas, e
casacos de
lie
saía, constantemente, com amigas.
Nesse tomance, palavras como lésb
ica, sapatão, sapata, são evocadas
com conotação negativa, associadas aos preconceitos da
sociedade dos quais
a personagem não consegue fugir totalmente. Ape
sar da persistência dos pre-
conceitos, deve-se observar que Paula tinha 17 anos em 1968
, ou seja, nasceu
por volta de 1951 (como a autora, Rosângela Rocha), num mome
nto em que
os amores lésbicos não pareciam tão naturais.

Cidinha da Silva

O conto “Domingas e a cunhada”, do livro Cada tridente em seu lugar


(2007), se passa no sertão. Domingas saiu de Pernambuco em 1942 e parou
em Buritizeiro fugindo da seca; sua cunhada, Arminda, uma bela índia, partiu
de Serra Talhada, em princípio em busca do marido, mas achou a cunhada
e ali ficou. Não tinham vida social, a única que as visitava era uma ex-frei-
ra holandesa, que vivia com uma amiga, ou seja, no conto há dois casais de
mulheres que vivem juntas no sertão, sem assumir publicamente sua lesbia-
nidade, mas tocando sua vida sem se esconder. “O povo maldava as amizades
dela [ex-freira], mas, ao contrário de Domingas, ela não se importava” (2007,
p. 45). Essa holandesa era a única pessoa que sabia da história de Domingas
e, depois da morte dela, escreveu uma novela sobre a vida das duas para um
concurso na Europa. O irmão de Domingas erafascinado pelo cangaço e, por
isso, abandonou a mulher, ainda adolescente, que foi em busca da cunhada.
Assim, viveram juntas durante mais de cinquenta anos, O que en e
a coabitação de duas mulheres pode passar despercebida, jon
as inn
longínquos. A comunidade não tinha nada de moderno,
gens não eram modernas, elas viviam como podiam, Dm en ai do cial
cias e suas possibilidades de realização. À longevidade da convi

341
deste e de outros contos como
de lésbicas marca a positividade que emana
“Marília, acorda” de Natália Polesso (do livro Amora) e Isaltina Campo Belo
de Conceição Evaristo (do livro Insubmissas lágrimas de mulheres).

Natália Borges Polesso

A autora ganhou o prêmio Jabuti na categoria de contos em 2016


com Amora e, em 2019, publicou seu primeiro romance, Controle, um
Bildungsroman, cuja protagonista e narradora vive uma vida solitária até os 34
anos de idade. A narrativa é pontuada por duas quedas de bicicleta, a inaugu-
ral, criança, que vai detonar a epilepsia, e a última, que corresponde ao pre-
sente da enunciação. Superprotegida pelos pais, ignorada pelos colegas de es-
cola depois de seu primeiro ataque, com exceção de Joana e Davi, Fernanda se
considera estranha. Depois de uma cirurgia que a cura, decide ir ao encontro
de Joana em São Paulo a fim de assistir a um show do grupo New Order. Essa
viagem iniciática a faz descobrir que é capaz de viver uma vida autônoma e, ao
mesmo tempo, lhe dá coragem para enfrentar sua sexualidade. Desde criança
é apaixonada por Joana, o que nunca teve coragem de assumir; esses anos
todos foram “meio truncados, atrasados, arrastados, sem ritmo, sem sabor de
muito” (2019, p. 163). Enciumada ao ver Joana e Mari se beijando, Fernanda
fica atordoada e com raiva de seu medo e de sua timidez. Confessa, finalmen-
te, para si mesma, que deseja conhecer os prazeres com a amiga. “Eu queria
sentir a boca inteira da Joana dentro da minha boca. Queria sentir
como era
sua língua, se era fria ou quente ou mole. Eu queria as mãos da Joana no meu
corpo” (2019, p. 170).
A doença serve como metáfora para assinalar que as pessoas discrimi-
nam aquelas que são marcadas por alguma diferença, seja uma doença,
a cor
da pele, a sexualidade. Vivendo numa família conservadora,
a personagem
tem dificuldade de reconhecer sua lesbianidade, apesar de ter
consciência de
que ama sua melhor amiga desde quando eram meninas. O
romance termina
com um final aberto, sem que tenha realizado
o seu desejo, mas sua atitudeé
p ositiva.À E as últi Hiimas palavras do ro
mance sãoã “Eu quero viver” ou seja, sua
ormação se perfaz, ainda que
tardiamente.
Dividi do em duas partes, « E
Grandes e sumarentas” e “Pequenas e ácidas»
Amora tem 33 contos. Além do
sentido normal (a fruta), a pal
ser lida como o feminino de amor, avra amora dev
já que o livro é dedicado aos amores e
amoras. Todos eles tém Personagens lés e à8
bicas, jovens, maduras e velhas, em
várias situações dramáticas, lírica
s e até trágicas. Vim. dos mais int
eressantes

342
q . « f
e bem construídos é “Vó, a senhora é lésbica?”?
lésbica?”3 Narrado pela :
jovem Joana, o
conto começa com essa pergunta, feita inopinadamente pelo primo Joaquim
que sabia que Joana saía com Taís. O medo e o susto
se justificam porque,
como Joana esconde da família, teme que o primo revele seu
segredo naquele
instante.
Essa interpelação vai funcionar como o detonador de
um esclarecimen-
to que fará bem a todos, Como observa Judith Butler (2015, p. 48), nós depen-
demos do outro, E podemos existir sem interpelar o outro e sem sermos
interpelados por ele”, portanto “é impossível nos livrarmos da nossa sociabi-
lidade fundamental, por mais que queiramos” Por outro lado, por “mais que
cada um de nós deseje o reconhecimento e o exija, nós não somos como o
outro, e, da mesma maneira, nem tudo vale como reconhecimento” Ao ser
confrontada com a pergunta, a avó não foge nem renega, seu discurso é um
performativo porque estabelece sua lesbianidade como uma verdade que não
quer calar. Em outras palavras, ela sai do armário.
Do ponto de vista narrativo é muito eficiente a superposição de tempos
e situações, a narradora evoca o passado, quando era menina e passava as
tardes com a avó, e tia Carolina estava sempre lá na hora do lanche; lembra-se
das histórias que a avó contava, inclusive a leitura de A metamorfose de Kafka;
vem-lhe à memória também o período em que tia Carolina não vinha mais
e a avó estava sempre triste; rememora o início do seu relacionamento com
Taís. É um verdadeiro palimpsesto de impressões, lembranças, um vaivém de
diferentes tempos passados. No momento em que a avó narra, há uma elip-
se; em vez de recontar a história da avó, a narradora descreve uma tapeçaria
com motivos medievais que está na parede, na qual duas mulheres dançam, e
com essas imagens se fundem cenas dela com Taís e da avó com tia Carolina.
Volta a ouvir a avó quando ela diz que fazia vinte anos. Joana pensa que elas
não moraram juntas porque Tia Carolina foi casada com seu Carlos e a avó
também se supõe que foi casada. A avó não entra nesses detalhes e encerra
a conversa. Joana considera que vive em tempos mais liberais a esse respeito,
sua relação com Taís é conhecida de todos os amigos e até dos professores;
todavia, há um ponto cego nesse e em muitos dos outros contos do livro: a
dificuldade de contar para a família. Essa tensão aparece tagmisçem nos fornai-
Blues se
ces Todos nós adorávamos caubóis de Carol Bensimon, São Sebastido
e.
Myriam Campello e O ano em que morri em Nova York de Milly Rasa
abertos, mas têm outras
Os pais podem ser muito avançados, de esquerda, é bem aceita.
expectativas para seus filhos e a homossexualidade raramente
Wo
no conto.
3 Bruna Fonseca realizou um curta-metragem baseado

343
modelo : Interi orizaç ão € poster i
i questionam
ior e nto da
Segun do
heteronormatividade

Cíntia Moscovich

O romance Duas iguais (2004) de Cintia Moscovich percorre a vida


uando eclode a sua paixão por Ana, até a idade adul-
de-Clárá, ar gi q las:cól (representada pela detestável Beatriz
ta. Reprimida pelos pais e pelas colegas trep : sé voltam a
Levi), Clara, a protagonista-narradora, abandona sans só vo se encon-
trar e fazer amor uma única vez, quando Clara já era casada, O sentimento
de culpa corrói a vida de Clara: infeliz por perder Ana, dominada pela melan-
colia, é atacada constantemente por doenças psicossomáticas: “o espirito me
doía no corpo sob a forma de enxaquecas” (2004, p. 103). O bloqueio, a emp
ra de seu superego, toda a repressão daquilo que é considerado uma aberração,
a torna doente. Apesar de ter clareza quanto ao seu amor por Ana, Clara não
é capaz de assumir sua relação, não é capaz de enfrentar o pai, a família, o
marido: “afastar-me de minha companheira de adolescência foi um dos gran-
des equívocos perpetrados em nome do siso” (2004, p. 106). Só muito mais
tarde, depois da morte de Ana, depois da separação do marido, numa visão
prospectiva, ela compreenderá por que passou a vida inteira com dor de cabe-
ça, triste, melancólica, sem vínculos afetivos satisfatórios. Pura perda. Como
em outros romances, a lesbianidade é associada ao tema da gemelidade: já no
título se enfatiza que as duas moças são iguais, como se fossem duplos: “Teu
duplo, réplica de ti, esta agora é que és. A outra que paira em ti desde
sempre,
que levita entre as camadas de tua pele, que te confunde os conceitos.
Tua
conformação já não te pertence porque é a outra que
te constitui; mais do que
insistente recordação, ela é tua matéria de amor”
(2004, p. 90-91).
No seu conto “Morte de mim”, incluído na antologia Entre
nós, organi-
zado por Ruffato, o amor lésbico também aparece
sob a égide da morte, aliás,
é mulher aa Ee apaieçe de madrugada e lhe faz amor é uma súcuba, ou é a
O é a RE as gentes” (apud RUFFATO, 2007, p. 258).

perada de uma visita sclcenaniiad » não e madrugada, após a entrada ines-


leva a narradora à vida e à busca de
“Morte de mim”, como o título indica, leva à morte. “Eu, depois disso, na cer-
teza do amor pela morte que viria, passava as madrugadas inerte, as horas me
percorrendo, assistindo ao espetáculo da dissolução, coisa atraindo coisa, até
que nada restasse, exceto o suor do corpo - água - na superfície transparente”
(apud RUFFATO, 2007, p. 261). As personagens, tanto do romance quanto do
conto, não se realizam plenamente em seus amores lésbicos.

Sônia Peçanha

O conto “Modelo vivo” de Sônia Peçanha segue o mesmo padrão de in-


triga do romance Duas iguais de Cíntia Moscovich: duas adolescentes, Lina e
Vicky, fazem todo o percurso escolar juntas, unidas por uma amizade intensa.
“Foram sete anos cúmplices [...], era amor o que sentia quando os sentimentos
ainda não tinham nome e tudo vinha com a intensidade da primeira vez?”
(apud LEAHY, 2004, p. 107). Esse erotismo difuso, mistura de amor e ami-
zade, que caracteriza as relações das adolescentes, que aparece também nos
romances de Lya Luft, participa da noção de continuum lésbico de Adrienne
Rich. No conto de Sônia Peçanha, para fechar com chave de ouro o ciclo es-
colar, no último dia, elas vão fazer um passeio na gruta azul e têm a primeira
relação sexual, num ambiente paradisíaco. É um momento de revelação e de
prazer. Como depois das férias Vicky partiria para o Rio de Janeiro a fim de
estudar teatro, Lina deveria passar o Natal na casa dela. No entanto, apavora-
da, Lina parte na manhã seguinte para a fazenda dos avós, que detesta, porque
tem medo de assumir sua posição. Naquele mesmo verão conhece Otávio,
sobrinho de uns vizinhos, com quem se casaria de véu e grinalda, como quer
a família patriarcal. Como no romance de Cíntia Moscovich, Lina e o marido
têm um cotidiano de tédio e desinteresse, mas diferente de Duas iguais, não
há reencontro com o antigo amor e sim encontro com outra pessoa. Assim,
no presente da enunciação, 20 anos depois, Lina, em suas aulas de desenho,
conhece uma moça que, como Vicky, trabalha em teatro e a convida para ca-
minhar no Jardim Botânico no dia seguinte (ou qualquer dia). É a partir de
sua decisão de aceitar o convite da nova amiga, por quem está visivelmente
atraída, que rememora sua antiga paixão juvenil. O conto acaba em aberto
prenunciando novas experiências.

345
Terceiro modelo: a punição com à morte da personagem desviante
e .

Lygia Fagundes Telles

«Uma branca sombra pálida”, de Lygia Fagundes Telles, de seu livro À


noite escura e mais eu, foi também inserido na abtalogia Entre nós Organizada
por Luis Ruffato. A narradora em primeira pessoa é mãe da jovem perso-
nagem que se suicida. Ao desconfiar que havia algo mais do que amizade e
estudos quando sua filha Gina e a amiga Oriana se fechavam no quarto, com
música em alto volume, a mãe repressora lhe dá um ultimato: ou ela Ou eu,
Embora diga que não pensou na terceira hipótese, o suicídio, não parece real-
mente arrependida, seu ódio é, então, disparado contra Oriana. A mãe que
quer se imiscuir na sexualidade da filha é criticada pela personagem Lia (de
As meninas) ao responder à pergunta da mãe de Lorena: “A senhora falou em
crueldade mental. Olha aí a crueldade máxima, a mãe ficar se preocupando
se o filho ou a filha é homossexual [...]. Um preconceito tão odiento quanto o
racial ou religioso. A gente tem que amar o próximo como ele é e não como
gostaríamos que ele fosse” (TELLES, 1998, p. 240).
Conto terrível, aí está a mulher mantenedora dos valores da socieda-
de patriarcal com suas exigências heteronormativas, segura de si e fechada
em suas convicções. Como observa Carlos Magno Gomes (2014, p. 108), a
“fala disciplinadora e excludente da mãe ao se referir à amizade afetiva das
duas” marca o desencontro entre mãe e filha, provocando a decisão trágica
de Gina. A disputa acirrada com Oriana continua no cemitério:
a mãe leva
rosas brancas (da pureza) para colocar no jarro do lado
direito do túmulo,
Oriana deposita rosas vermelhas (da paixão) no
jarro que fica do lado esquer-
do. Rosas brancas e lado direito versus rosas vermelhas e lado esquerdo:
a nar-
tadora-mãe é obcecada pela amiga da filha. A relação difícil entre mãe e filha é
um topos recorrente na obra da escritora paulista, como no conto
A medalha
a a ba de sabão), nos romances As horas nuas € si o
de Lygia marca a força dramática q
imprime ceia às personagens
da gs
mm “ SHas Criações, não apelando nunca para o sentimental (de que
Tu

“es são, frequentemente, acusadas).


crer
ac

346
Quarto modelo: estupro corretivo da personagem desviante

Conceição Evaristo e Míriam Alves

Não é mera coincidência E


estupro corretivo serem anegras e ar duas puEDISA que tInAtiZana
situações protagonizadas por
personagens negras, pois aí entra a dupla marginalização (lésbica e negra).
Considerando o conceito de política de localização de Adrienne Rich, assim
como o conceito de interseccionalidade lançado por Kimberlé Crenshaw em
1987, pudenios ver que:6 acúmulo de “diferenças”, tidas como marginalizan-
tes, acirra a rejeição e enseja a violência. Rich enfatiza que ninguém é vítima
absoluta e ninguém está totalmente protegido de sofrer alguma discriminação,
mas é claro que existe uma escala em que há pessoas, no topo da hierarquia
social, com muito menos probabilidade de serem atacadas e há aquelas que
têm, em sua identidade, elementos que podem suscitar desagrado do poder
controlador e censurador em nossa sociedade patriarcal, racista e heteronor-
mativa. Há corpos que têm menos liberdade de circular nas ruas das cidades
sem serem incomodados.
Nos dois contos as personagens, negras, jovens, bonitas e de classe mé-
dia urbana, são agredidas por homens violentos e narcisistas, que não supor-
tam perceber que eles são dispensáveis, não são necessários para a realização
se
sexual de jovens atraentes. Seu objetivo é de humilhá-las, espezinhá-las,
as personagens
possível, destruí-las. Todavia, apesar do sofrimento e da raiva,
depois do estu-
não se deixam abater: se o conto de Míriam Alves acaba logo
vez, algo que acon-
pro, o de Conceição rememora é verbaliza, pela primeira
trauma difícil de ser falado
teceu há mais de 30 anos. Ou seja, trata-se de um
refazer sua vida.
(como todo trauma), que não a impediu de
de Míriam Alves, do livro
O conto “Os olhos verdes de Esmeralda”
mulheres, Esmeralda e Marina,
Olhos de azeviche, conta a história feliz de duas Julita, recebeu esse
na verdade
que estão juntas há algum tempo. Esmeralda,
ambas bonitas e atraem OS olhares
apelido devido aos seus olhos verdes. São
azarações dos primos e dos amigos que estão no churrasco de que parti-
e as
te da enu nci açã o. Sua his tór ia é contada em flash back. Elas
cipam no presen a qd
da faculdade. Dividiram
se conheceram na festa de calouros
. +10 cd
rante o curso, arrumaram empregos subalternos para se manter
amor irresistints
primeiro ano de vida em comum, à amizade evolui para um
formadas, fir ro,
inseparável e secreto” (ALVES, 2017, P: 134). Depois de apart
uma passou a morar em amento próprio.
-se profissionalmente e cada

347
é :
“Mantinham-se discretas, não moravam junta s para €vi itar constrangim
gimentos P
(2017, p. 134). Ao sair do churrasco, elas se acariciam no carro a Esmeralda,
que estava ao volante, distraída pelo desejo, acaba REERSRARHAS eb errapagem,
cantando pneu, no que são paradas por policiais. Eles perce em ú gesto de
carícia das duas, o que os leva a dizer: “Temos dois machos Aqui Hei este aqui
está com lentes de contato verdes. Metida aamericana, hein?” (2017, p. 136).
O sargento, que não conseguia “pegar mulher”, odiava as sapatas, estavam
sempre com uma gostosa ao lado. Odiava negros também, principalmente os
famosos. Estavam sempre acompanhados por loiras de fechar o sinal e mais
umas tantas correndo atrás” (2017, p. 136).
O ódio e o ressentimento levam o sargento a estuprar Esmeralda. “Não
gosta de homem, não é? Vou fazer você gostar! Nunca conheceu um, não é...?
Você vai sentir o que é bom” (2017, p. 136). Ele a espanca e a violenta; enquan-
to isso, os dois outros seguram Marina. “Veja o que um homem faz com uma
mulher. Sapata de merda! Chore não, vai chegar sua vez. Não vou gastar tudo
com ela não, pode esperar!” (2017, p. 137). Por meio de revezamento, os três
policiais estupraram as duas mulheres, deixando-as desfalecidas. “Ajeitando
as calças com um sorriso imbecil no rosto de fera predadora satisfeita, o sar-
gento, já dentro da viatura gritou: 'Suas negras nojentas, sapatas filhas da puta,
não gostaram? Vão reclamar no inferno” (2017, p. 137). Elas ficam um tempo
abraçadas, compartilhando a dor, a angústia e a revolta.
O conto “Isaltina Campo Belo” do livro Insubmissas lágrimas de mu-
lheres de Conceição Evaristo fala de uma superação, uma personagem com
disforia de gênero, que passa por um estupro coletivo, do qual engravida, tem
uma filha, e só muitos anos depois encontra a mulher que seria sua
com-
panheira para sempre. Isaltina quando criança se sentia como menino e se
espantava porque ninguém percebia, nem mesmo sua mãe, nem mesmo
os
médicos, quando ficou internada devido a uma apendicite. Se desde os cinco
anos se via no gênero errado, quando menstruou se espantou
ainda mais. Ela
compreende, mas não aceita, achando-se fora do lugar. “Amarrava
os meus
desejos por outras meninas e fugia dos meninos.
Toda à minha adolescência,
vivi um processo de fuga” (EVARISTO, 2011,
p. 54).
. Aos vinte e dois anos partiu para a cidade grande,
com um diploma na
A
É

mão e algum conhecimento de enfermagem. Conhece um


rapaz a quem tenta
falar do menino que morava dentro dela,
mas em vão. Ele, imbuído de clichês,
considera que ela deve ser fo 8osa por
que não se espera outra coisa de
mulher negra. Convidada pa ta uma uma
festa de aniversário na casa dele,
preendida com a presença de des é sur-
conhecidos que a est upram. “Cinco homens

348
deflorando a inexperiência idã u corpo. Diziam, entre eles, que
estavam me entao a ser malha
ato vergonha e nojo do momento.
Nunca contei para ninguém
o acontecido” (20 11, p. 56). Como
cia traumática, a personagem nunca toda experiên-
consegu iu falar sobre essa humilhação,
imobilizada pela vergonha e a impotênc
ia. El a se sentia culpada e encarava o
Ms A um castigo que tinha merecido. Só no momento da enunci
ação,
trinta e cinco anos depois, conta para a narradora o que lhe aconteceu.
Isaltina descobre a felicidade através da filha,
porque foi numa reunião
de escola que conheceu a sua companheira. E, nesse momento, se dá conta
que não existia menino dentro dela, entende que podia amar alguém, era uma
mulher que podia amar outra mulher. “Sim, eu podia me encantar por alguém
e esse alguém podia ser uma mulher. Eu podia desejar a minha semelhan-
te, tanto quanto outras semelhantes minhas desejam o homem. E foi então
que eu me entendi mulher, igual a todas e diferente de todas que ali estavam”
(2011, p. 57). Isaltina viveu feliz com Miríades e sua filha Walquíria.
O conto de Conceição retrata uma mulher, Isaltina, que foi estuprada
virgem e sem se conhecer sexualmente. O trauma a deixa tão alheada de tudo
que nem percebe que estava grávida. A partir do nascimento da filha seu amor
será todo dedicado a ela. Só anos mais tarde, descobre o amor de uma mulher
que, agora, está morta. Trata-se, portanto, de uma personagem que se desco-
briu ao conhecer a professora de sua filha, saiu de sua indefinição identitária
e de sua assexualidade. Assume, a partir daí, sua lesbianidade dentro do ca-
samento, só teve uma parceira ao longo de toda a vida. No momento em que
relata sua história para a narradora do livro, a recolhedora de histórias de mu-
lheres, tem cerca de 60 anos. Já o conto de Míriam Alves conta um episódio
da vida de duas jovens realizadas, que se amam e têm uma experiência sexual
totalmente satisfatória. O trauma do estupro, que se dá no presente da enun-
ciação, é algo a ser superado, mas é uma ferida que pode comprometer o rela-
cionamento das duas personagens porque nem sempre conseguimos elaborar
esse tipo de humilhação vivida junto a outra pessoa. Ainda que em situa-
ções diferentes, os estupros corretivos dos dois contos pretendem humilhar
compulsória.
as mulheres desviantes, que não aceitam a heteronormatividade
O fato de serem negras acentua o estigma da marginalidade numa sociedade
racista como a brasileira.
morto, en que
Diferente do romance de Aline Bei, O peso do pássaro
a protagonista não consegue amar o filho do estupro, Isaltina, que a nãomesuena
por vários, ama
quem é o pai de sua filha, tendo sido estuprada
filhos Natalina tevef,
sem reservas. De modo semelhante, no conto “Quantos

349
do livro Olhos dágua, a personagem deu seus três primeiros álhos cr nec
de conservar aquele que espera, de um estuprador po 4 ado iii guém. 2
terá de divi
rosto. Considera que o filho será só dela, não
personagem em crise no
No mesmo livro, o conto “Beijo na face” tem uma
casamento com um homem ciumento € abusivo, que a vigia. Ela o trai; toda-
via, só no fim do conto é explicitado que se trata de uma amante, uma igual
a ela. “Mulheres, ambas se pareciam. Altas, negras e com dezenas de dreads a
lhes enfeitar a cabeça. Ambas aves fêmeas, ousadas mergulhadoras na própria
encontro de
profundeza. E a cada vez que uma mergulhava na outras o suave
suas fendas-mulheres engravidava as duas de prazer (2014, p. pia Também
em sua poesia Conceição explora O homoerotismo, como em M e M”, do
livro Poemas de recordação e outros movimentos (2008, p. 65). “A mulher que-
dou-se/e na quietude/encontrou a sua nova veste/que suavemente se desfaz/
em corpos iguais/que se roçam”

Quinto modelo: Bissexualidade e ménage-à-trois

Clarice Lispector

O conto “O corpo”, do livro A via crucis do corpo (de 1974), encena um


ménage-á-trois em que tudo vai muito bem entre Xavier e suas duas mulheres,
Carmem e Beatriz, até que elas tenham a ideia de matá-lo. Apesar de realista,
não existe explicação para o comportamento das duas mulheres. Talvez, ao
fazer isso, Clarice Lispector dê conta justamente do ilógico de nossos compor-
tamentos, de como reagimos com impulsos que não compreendemos direito.
Talvez, ao criar duas assassinas frias, que não choram, a autora esteja dando
uma resposta meio nonsense a tanto feminicídio. Apesar de as duas fazerem
amor juntas, de início não se consideram homossexuais. Em termos práticos,
elas são bissexuais.
Xavier é retratado como “um homem truculento e sanguíneo” (1998,
p. 21), grosseiro ao comer: “Xavier comia com maus modos: pegava a comida
com Es mãos, fazia muito barulho para mastigar, além de comer com a boca
aberta” (1998, p. 23). É um homem que aprecia os prazeres da carne: bem
comer, beber efazer muito sexo. Além das duas, durante o dia,
costumava fre-
quentar uma prostituta. Quando as duas descobrem isso, ficam furiosas e lhe
dão uma surra. Ele promete não reincidir, leva-as
a Montevidéu, onde fazem
muitas compras.

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As duas no início faziam pequenos jogos sexuais, depois
contam a
Xavier. Excitado, pede-lhes que façam para ele, mas elas não conseguem. Um
dia, “fizeram amor na frente dele e ele roeu-se de inveja” (1998, p. 24).
Não se
sabe quando surgiu o desejo de vingança das duas, o fato é que um dia elas
o
matam, usando dois facões. Ao fim, exaustas, porque matar requer força, sen-
tam-se. “Se tivessem podido, não teriam matado o seu grande amor” (1998,
p. 26). Enterram O corpo no quintal e plantam rosas vermelhas por cima da
cova. Tristes, as duas ficam em silêncio e quase não comem. Descobertas pela
intrusão do secretário de Xavier, Beatriz diz à Polícia que Xavier está no jar-
dim. “Então Beatriz, sem uma lágrima nos olhos, mostrou-lhes a cova flo-
rida” (1998, p. 28). Um pouco fora da realidade, pedem ao delegado que as
ponha na mesma cela. Ele, para evitar confusão, sugere que se mudem para
o Uruguai.

Balanço

Ficou muito claro nesse levantamento bibliográfico e nessa tentativa de


classificação o quanto o enfoque da lesbianidade mudou na literatura de auto-
ria feminina no Brasil. Tendo deixado de ser tabu, as escritoras não precisam
mais justificar e argumentar que a homossexualidade também é normal, como
fazia Cassandra Rios, a qual teve, aliás, sua importância nesse continuum lés-
bico. Myriam Campello também é um marco importante nessa linhagem que
chega, em nossos dias, a autoras como Natália Polesso, Cristina Judar, Milly
Lacombe e Carol Bensimon, para dar alguns exemplos.
O que mais salta aos olhos é a pluralidade de vivências, as personagens
não são identificadas como ontologicamente homossexuais, têm grande varie-
dade de experiências. Em algum momento, podem tomar uma decisão mais
definitiva, porém percebe-se certo nomadismo nessas escolhas. O casamen-
to monogâmico e heterossexual não aparece como sonho das personagens,
Principalmente nos romances e contos das novas gerações. A maternidade
não é mais uma imposição, trata-se, antes, de uma opção que se pode fazer,
em geral, mais tarde. O mundo muda de forma desigual de modo que essa
literatura aqui analisada corresponde a um imaginário de parte da sociedade,
descolada, cosmopolita, intelectualizada. O Brasil profundo, sob influência
das igrejas neopentecostais, se manifesta cada dia com mais virulência contra
essas transformações, falando muito alto.

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