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Resumo – A diversidade de práticas violentas que se verifica na contemporaneidade, bem como, sua
intensificação quantitativa e qualitativa, têm sido alvo de estudos e acaloradas discussões na
academia, na busca por elementos teóricos que explicitem tal crescimento e que contribuam na
elaboração de políticas públicas visando seu controle. A reflexão proposta neste artigo consiste na
observação dos fenômenos violentos, segundo uma perspectiva que ultrapasse as limitações
encontradas em uma análise meramente, criminal e criminológica, todavia, com um enfoque mais
antropológico, que favoreça o estudo da violência enquanto elemento cultural e ideológico, que
contribui na construção e mutação de novos contextos sociais.
Abstract - The diversity of violent practices that can be seen in contemporary times, as well as their
quantitative and qualitative intensification, have been the subject of studies and heated discussions in
the academy, in the search for theoretical elements that explain such growth and that contribute to the
elaboration of public policies aimed at its control. The reflection proposed in this article consists of the
observation of violent phenomena, according to a perspective that goes beyond the limitations found
in a merely criminal and criminological analysis, however, with a more anthropological focus, which
favors the study of violence as a cultural and ideological element, which contributes to the construction
and mutation of new social contexts.
INTRODUÇÃO
Direitos Humanos
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minoria, no passo que a violência tende à destruição dessa ordem”. Arendt (1994;
14), ao estudar o fenômeno face alguns aspectos da política no século XX, faz
referência a esse “elemento de imprevisibilidade total que encontramos no instante
em que nos aproximamos do âmbito da violência” e, como afirma Michaud (2001;
p.12), é “assimilada ao imprevisível, à ausência de forma, ao desregramento
absoluto”.
Assim, se a violência é um conceito que transita pelo universo do previsível e,
sobretudo, consiste na representação daquilo que contraria ou questiona por um
período mais ou menos durável uma ordem considerada natural, sou levado a
concordar com a posição de Michaud (idem, p. 13, 14) ao afirmar que:
3 Segundo Johnson (1997, p. 54), “controle social é um conceito que se refere às maneiras como os
pensamentos, sentimentos, aparências e comportamentos de pessoas são regulados nos sistemas
sociais”. Para Boudon e Bourricaud (1993, p. 101), o controle social apresenta-se como o “conjunto
dos recursos simbólicos de que uma sociedade dispõe para assegurar a conformidade do
comportamento de seus membros a um conjunto de regras e princípios prescritos e sancionados”.
4 É na ação do simbólico, através das representações sociais que construímos, onde vamos
encontrar uma lógica explicativa quanto à origem e à essência dos seres e das coisas, no mundo
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De acordo com Eliade (1989, p. 12), “o mito conta uma história sagrada, relata
um acontecimento que teve lugar no tempo primordial, o tempo fabuloso dos
começos”. Nas sociedades arcaicas, os mitos conduziam os homens a aprender
“não só como as coisas passaram a existir, mas também onde as encontrar e como
fazê-las ressurgir quando elas desaparecem” (ibidem, p. 19). Guimarães (1998, p.
105), ao discorrer sobre as proposições de Eliade, afirma que:
O Paraíso foi perdido por culpa dos homens que desobedeceram a Deus. É
preciso “lembrar” o Momento primordial, quando todos viviam bem antes do
passado original e para onde devemos retornar se formos fiéis à fé cristã e
aos seus mandamentos. O mito cristão, o mito acadêmico, o mito dos
meios de comunicação constroem suas próprias lembranças de modo a
manter uma ordem pretensamente natural, factual, objetiva em relação à
história oficial.
E prossegue:
físico e social, e onde o processo de dominação inculca-se. Para Denise Jodelet, representação
social “ é uma forma de conhecimento socialmente elaborada e partilhada, tendo uma orientação
prática e concorrendo para a construção de uma realidade comum a um conjunto social” (JODELET,
1989, p. 36). Jean-Claude Abric define a representação como “uma visão funcional do mundo, que,
por sua vez, permite ao indivíduo ou ao grupo dar um sentido às suas condutas e compreender a
realidade através de seu próprio sistema de referências, permitindo assim ao indivíduo de se adaptar
e de encontrar um lugar nesta realidade” (ABRIC, 1998, p. 28).
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Esse tipo de violência foi conceituado por Maffesoli como “violência dos
poderes instituídos” ou, ainda, “violência totalitária”. De acordo com o comentário de
Guimarães (ibidem, p. 107) “para além do indivíduo, existe uma unidade abstrata
que neutraliza as diferenças, levando à submissão, à adaptação, e cada um se torna
um espectador passivo de seu próprio destino”.
Assim, os mitos, especialmente, os mitos de castigo, preconizam a punição
daqueles que transgridem as normas sociais – aqueles que “pecam”, que burlam as
ordens dos deuses, das autoridades (que geralmente, recebem um caráter divino),
dos ancestrais, etc. Eles assumem, invariavelmente – enquanto perduram – um
caráter de sacralidade, algo que demanda do sobrenatural ou que está no patamar
do inquestionável.
Logo, conforme propõe Sousa Filho (2001, p. 19):
[...] Só existe vida se existe determinação. A vida não pode ser indefinida
nem infinita; ela precisa de limites. Neste sentido, a etimologia latina do
termo determinatio é instrutiva. É o marco que os romanos estabeleceram
para delimitar a terra cultivada em relação ao indefinido da terra inculta. O
limite, portanto, permite ser. Permite que o trigo brote [...] O marco constitui
uma violência. Violência que é fonte de vida. É o que qualquer um sabe
empiricamente. É também este “saber incorporado” que constitui a
sociedade. Precisamos portanto, dar nomes aos bois: a violência é um
elemento essencial da construção simbólica do social: precisamente
naquilo em que ela nos liga, ou nos religa, à natureza. É algo que
quesemos esquecer, ou que negamos. Em “animal humano” há também
“animal”. Em “natureza humana” há também “natureza”.
É preciso que esta dominação lhes apareça como um serviço que lhes
prestam os dominadores. Desde então o poder destes mostra-se legítimo e
parece aos dominados que é seu dever servir àqueles que os servem. É
preciso, portanto, que dominadores e dominados partilhem as mesmas
representações, para que nasça a força mais forte do pode de uns sobre os
outros: um consentimento fundado no reconhecimento dos benefícios e da
legitimidade desse poder, um consenso fundado no reconhecimento de sua
necessidade.
da ideologia que torna esse projeto como algo universal, que detém os interesses de
toda a sociedade. Desta feita, a dominação é mascarada e possibilita-se o controle
dos indivíduos, pelo exercício do poder. Neste sentido, a obra de Michel Foucault –
em especial, “Vigiar e Punir” – traz importantes considerações acerca da noção de
controle social, cuja análise, extrapola os limites da finalidade deste trabalho.
AS EXPRESSÕES DA VIOLÊNCIA
própria dos Estados, dos partidos, do terrorismo, etc, que pretende impor um
controle monopolizado, que leva à domesticação das paixões, à monotonia da
equivalência generalizada. Aí encontra-se de forma mais incisiva a dominação e
busca-se a preservação de um paradigma cultural, ou seja, como visto, a ordem
estruturada e previsível, que permite o exercício do controle e está diretamente
associada à idéia de poder, o qual se mostra necessário e impõe-se como legítimo,
enquanto consentido por aqueles que a ele se submetem. E aí vale observar as
ponderações de Etienne de La Boétie (1982) sobre essa submissão, a qual
denominou “servidão voluntária”.
La Boétie em seu Discurso da servidão voluntária” aborda a questão dos
dominados como uma servidão que se perpetua, sem que aqueles que são
dominados se dêem conta de sua situação e venham a envidar esforços no sentido
de serem libertos. Ressalto que, embora a temática volte-se para um período de
ação desumana pelo regime monárquico francês, considero-lhe atemporal.
Para La Boétie uma explicação para o fato de o homem preferir a servidão à
liberdade reside no fato de que ao ser educado na servidão e portanto afastado do
conhecimento, o homem é desprovido de outra realidade que não seja a de
servidão. Assim, entendo ser aceitável a comparação entre tais premissas e a ação
da ideologia, bem como, o papel da violência dos poderes instituídos. Como visto,
ao nascer, esse humano vivo é exposto à violência sistêmica de uma imposição
cultural, a bem da verdade, sem a qual não sobreviveria.
Retomando as categorias da violência sugeridas por Maffesoli, verifica-se que
a violência anômica manifesta-se pelo desenraizamento coletivo de instituições
sociais, o que produz uma situação de divergência ou conflito entre normas sociais,
tornando-se difícil para o indivíduo respeita-las igualmente. É uma forma de proteger
o corpo social da violência totalitária. Como exemplo pode-se verificar manifestações
como os tumultos, os quebra-quebra, os arrastões, as turbas enfurecidas.
Aparentemente, isto invalida a teoria de La Boétie, no entanto, a proposição de
Maffesoli (2006) quanto ao que ele considera um vitalismo vigente na sociedade e
ao qual chamou de “potência”, como ele próprio afirma “algo que não existe como
forma pura, uma ‘irrealidade’ cuja única função é servir de revelador para situações
corriqueiras que, elas sim, são bem ‘reais” (ibidem, p. 68).
De acordo com Maffesoli:
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[...] pelo levante, pela ação violenta, pela via democrática, pelo silêncio e
pela abstenção, pelo desconhecimento desdenhoso, pelo humor ou pela
ironia, múltiplas são as maneiras que o povo tem de se expressar sua
potência soberana. E toda a arte do político é fazer com que essas
expressões não assumam demasiada amplitude. O poder abstrato pode,
em determinados pontos, triunfar. E é verdade que se pode colocar a
questão de La Boétie: O que é que fundamenta a “servidão voluntária”? A
resposta está, certamente, nessa segurança incorporada que dá ao corpo
social a certeza de que, a longo prazo, o Príncipe, qualquer que seja a sua
forma (aristocracia, tirania, democracia, etc.), é sempre tributário do
veredito popular (ibidem, p. 89)
Maffesoli aponta para o fato que essa potência, manifesta como uma
“efervescência de vida”, algo que chama, ainda, de “vitalismo irreprimível”, seria a
responsável pela resistência das massas e argumenta que:
Assim, acredito que esse vitalismo, essa potência manifesta-se mesmo pela
manifestação artística e de outros atos de aparente não-violência. Com base no
pensamento de Bachelard (1989, p. 18) pode-se depreender que a imaginação
consiste no poder de constituir imagens que ultrapassam a realidade, o que permite
ao homem reconhecer no mundo imaginário uma realidade diversa daquela que
percebe. Logo, a violência imperceptível aos homens pela ação da ideologia e que
constrói o sentido de coletivo, de universalidade, a qual permeia a cultura,
concretiza-se e atormenta-nos quando pela ação do pensamento imaginante, abre
novas perspectivas de ordem, isto é, a violência toma formas diversas como
expressão de ordens imaginadas, expressão de um vitalismo social.
Uma terceira modalidade de violência consiste na violência banal, emprgada
pela coletividade como forma de confrontar as formas de dominação. A violência
banal apresenta em si a passividade da massa que não se integra ao instituído,
todavia contrapõe-se a ele, subvertendo o poder, contudo sem integrar-se a
qualquer ação política ou contestatória. É uma espécie de resistência pacífica,
silenciosa, manifesta, por exemplo, nos grafites, nas pichações, na ironia, etc.
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CONCLUSÃO
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