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ANÁLISE DO DISCURSO:

SITUAÇÕES
DE ARGUMENTAÇÃO
IDA LUCIA MACHADO, GLAUCIA MUNIZ PROENÇA LARA & WANDER EMEDIATO
ANÁLISE DO DISCURSO:

SITUAÇÕES
DE ARGUMENTAÇÃO
IDA LUCIA MACHADO, GLAUCIA MUNIZ PROENÇA LARA & WANDER EMEDIATO
Ficha técnica

Título:
Análise do Discurso: situações de argumentação

Organização:
Ida Lucia Machado
Glaucia Muniz Proença Lara
Wander Emediato

Capa:
Frederico Pompeu

Coordenação editorial:
Mafalda Lalanda

Design gráfico:
Grácio Editor

1ª edição: agosto de 2018 (ebook)

ISBN: 978-989-99960-0-7

© Grácio Editor
Travessa da Vila União, 16, 7.º drt
3030-217 COIMBRA
Telef.: 239 084 370
e-mail: editor@ruigracio.com
sítio: www.ruigracio.com

Reservados todos os direitos


SUMÁRIO

Prefácio ..........................................................................................................7
Jacyntho Lins Brandão

Mediatização e dimensão argumentativa


em narrativas de vida em um jornal eletrônico ......................................11
Cláudio Humberto Lessa

O messianismo como um problema de argumentação:


um estudo da obra profético-messiânica de Padre Vieira ......................37
Clebson Luiz de Brito & Glaucia Muniz Proença Lara

Argumentation, (pseudo-) discours rapportés et figure


de prétérition. Le cas du debat de l’entre-deux-tours de mai 2017 ........59
Françoise Sullet-Nylander

A culpa é da mulher! Uma reflexão sobre a violência verbal


como recurso à culpabilização na internet ..............................................83
Helcira Lima

A mise en scène argumentativa de um discurso de Victor Hugo:


estudo de caso............................................................................................101
Ida Lucia Machado

O racismo velado no processo discursivo-argumentativo.....................119


Kelly Cristina de Oliveira & Moisés Olímpio-Ferreira
A religião ajuda ou atrapalha? Uma análise argumentativa
do debate entre fábio de melo e leandro karnal,
no livro Crer ou não crer.........................................................................141
Mônica Santos de Souza Melo

As emoções no discurso sob a perspectiva semiolinguística .................161


Renata Aiala de Mello

Uma abordagem discursiva da construção midiática da gafe .............181


Roberto Leiser Baronas & Julia Lourenço Costa

Análise do discurso, argumentação e ensino .........................................199


Rui Alexandre Grácio

Argumentation, postures énonciatives et interdiscursivité


dans la médiation journalistique d’un événement ................................219
Wander Emediato

Sobre os autores dos capítulos da coletânea ......................................................255

6
O RACISMO VELADO NO PROCESSO DISCURSIVO-
-ARGUMENTATIVO

Kelly Cristina de Oliveira


Moisés Olímpio-Ferreira

Introdução
Historicamente, o Brasil é reconhecido como país de diversidade
cultural, étnica e social. Entretanto, apesar de a escravidão ter sido abo-
lida em 19881, o ideal de branqueamento, raça pura, trabalho, beleza e
inteligência versus mestiçagem, raça impura, vadiagem, feiura e falta de
inteligência, sempre permeou as diversas esferas sociais, por meio de di-
versas práticas discriminatórias. Ao lado dessas práticas, circulava o mito
de que o Brasil não era racista, fazendo prevalecer a ideia de democracia
racial. Segundo Nascimento (1978, p. 93), essa expressão é “a metáfora
perfeita para designar o racismo brasileiro: não tão óbvio [...], mas efi-
cazmente institucionalizado nos níveis oficiais de governo, assim como
difuso no tecido social, psicológico, econômico e cultural da sociedade
do país”.
O fato de haver miscigenação entre brancos e não brancos foi argu-
mento suficiente para difundir o ideário de um país único, formado pela
mistura de povos que conviviam em “paz e harmonia”. De acordo com
Schwarcz (1999, p. 309), “[...] a oportunidade do mito se mantém para
além de sua desconstrução racional, o que faz com que, mesmo reco-
nhecendo a existência do preconceito, no Brasil, a ideia de harmonia ra-
cial se imponha aos dados e à própria consciência da discriminação”.
Esse mito começou a ser questionado no fim do século XX. Silva e
Rosemberg (2008, p. 79) afirmam que, desde a segunda metade do sé-
culo XIX, ativistas e pesquisadores brancos e não brancos contestaram
a existência de um país “harmonioso” e se dedicaram a pesquisas sobre
as desigualdades raciais no acesso aos bens materiais e simbólicos, pro-
pondo políticas para combatê-las. Os autores ressaltam, ainda, que o
1
Antes disso, porém, destacam-se a lei Eusébio de Queirós, de 1850, a Lei do Ventre Livre, de
1871, e a Lei dos Sexagenários, de 1885, além de várias rebeliões que já haviam diminuído e
onerado essa prática.

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KELLY CRISTINA DE OLIVEIRA & MOISÉS OLÍMPIO-FERREIRA

termo racismo só passou a ser temática no território brasileiro em 1970,


período em que o Movimento Negro se consolidou como organização.
O fortalecimento dos movimentos sociais na década de 1970 e a
reorganização do Movimento Negro2 em 1978 fizeram com que a socie-
dade redimensionasse o problema do racismo, principalmente com a
criação da Constituição de 1988, que torna inconstitucional a prática do
preconceito:
Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil: I — construir uma sociedade livre, justa e solidária; II —
garantir o desenvolvimento nacional; III — erradicar a pobreza e
a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV — promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação
(BRASIL, 1988)

Anos mais tarde, em 1995, diversas manifestações — como a “Mar-


cha Zumbi dos Palmares, Contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida”,
do Movimento Negro brasileiro — proporcionaram discussões profícuas
sobre a promoção da igualdade para todos. Segundo Silva Júnior (2003),
o movimento, com a adesão de mais de trinta mil pessoas em Brasília,
entregou um documento denominado Marcha ao Presidente da Repú-
blica, em que se lia: “Não basta, repetimos, a mera abstenção da prática
discriminatória: impõem-se medidas eficazes de promoção da igualdade
de oportunidade e respeito à diferença [...], adoção de políticas de pro-
moção da igualdade.” (p. 15).
Apesar disso, o mito racial fez com que o racismo, presente em di-
versas instâncias políticas, sociais, econômicas, religiosas e educacionais,
permanecesse velado, isto é, mais sutil e silencioso. Assim, mais difícil
de ser localizado, manifesta-se quando se valorizam as qualidades dos
brancos e suas “características [...] são tidas como normas de humani-
dade” (SILVA; ROSEMBERG, 2008, p. 82).
2
De acordo com Gomes (2011, p. 135-136), “o movimento negro contemporâneo, enquanto
movimento social, pode ser compreendido como um novo sujeito coletivo e político que, jun-
tamente com os outros movimentos sociais, emergiu na década de 70 no cenário brasileiro.
[...] Ao emergir no cenário nacional e político destacando a especificidade da luta política con-
tra o racismo, o movimento negro buscou na história a chave para compreender a realidade
do povo negro brasileiro”.

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O RACISMO VELADO NO PROCESSO DISCURSIVO-ARGUMENTATIVO

As mídias impressas, e mais recentemente as digitais, colaboram


para a (re)produção dessa condição, quando representam os negros de
maneira negativa ou associados a estereótipos carregados de preconceito
e discriminação. Não raramente, eles são silenciados e privados do papel
de protagonistas de suas próprias histórias, em novelas, filmes, livros
etc. Van Dijk (2008, p. 14) expõe bem o fato de que o estudo sobre o ra-
cismo na América Latina nunca foi parte predominante das pesquisas
acadêmicas e de que “até hoje os estudos críticos sobre o racismo ainda
têm de enfrentar a relutância acadêmica em reconhecê-los como um
empreendimento relevante, e não considerá-los como ‘mera política’...”.
Justifica-se, por essa razão, a contribuição deste trabalho para a
agenda emancipatória da Análise de Discurso Crítica, que busca alcan-
çar o engajamento da sociedade (sujeitos agentes) na luta contra o ra-
cismo velado, perpetuado por meio de diversos gêneros discursivos,
entre eles, as peças publicitárias. Isso só é possível porque o sujeito é en-
tendido como agente, ou seja, não está definitiva e cabalmente assujei-
tado às ideologias, ainda que profundamente afetado pelas estruturas
sociais; ativadas as suas potencialidades, em liberdade relativa, o sujeito
é capaz de agir no mundo e sobre seus pares.
Considerando o papel que a mídia exerce na constituição e/ou con-
solidação ideológica da sociedade, faz-se necessário trazer uma discus-
são sobre como ela afeta os leitores e como estes podem resistir aos seus
efeitos de sentido. Van Dijk (2008, p. 19) nos lembra de que “não há um
efeito automático sobre as opiniões dos leitores — principalmente por-
que [...] muitos podem resistir às interpretações sugeridas pelo discurso
racista — mas, sob condições especiais, essa influência pode ser pene-
trante”. Por meio de modelos mentais, repletos de ideologias e atitudes
compartilhadas socialmente, os sujeitos estão envolvidos direta ou in-
diretamente “na reprodução do racismo e na formação de ideologias ra-
cistas subjacentes, em particular” (Ibid., p. 20).
Nesse contexto, a doxa tem relevante papel na consolidação desses
modelos que são materializados nos contextos social e linguageiro.
Constituída pelo conjunto de opiniões, crenças e valores comuns, ela ra-
tifica-se pelo hábito e impõe seu modo de ver o mundo, de ver-se e de
ser nele, segundo as representações validadas pela coletividade. Barthes,
em sua perspectiva desmistificadora, chama a atenção para o aspecto

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KELLY CRISTINA DE OLIVEIRA & MOISÉS OLÍMPIO-FERREIRA

ideológico da opinião corrente, quando afirma: “A Doxa [...] é a Opinião


pública, o Espírito majoritário, o Consenso pequeno-burguês, a Voz do
Natural, a Violência do Preconceito” (BARTHES, 1975, p. 51, tradução
nossa), pois é o lugar de mediação (cultural/ discursiva) pelo qual os
discursos de poder — encráticos (pautados na doxa) e acráticos (con-
trários à doxa, paradoxais), com suas gradações — “falam”3. Fundamen-
tados no senso comum, no imaginário coletivo insistentemente
reiterado, os discursos “no poder”4 maquilam suas posições inflexíveis,
a fim de legitimar-se, alcançar o poder e/ou perpetuar-se nele.
Insensível, como a Lei e a Ciência, a doxa não compreende o poder
de felicidade de uma perversão aos valores eleitos como verdades in-
questionáveis (Ibid., p. 68), já que ela não admite o paradoxo, o seu con-
trário, mas preza o seu próprio poder de coerção. Para o autor, a doxa,
efetivamente presente nos discursos,
não é senão um “objeto ruim”: nenhuma definição pelo conteúdo,
nada senão pela forma, e essa forma ruim é, sem dúvida: a repe-
tição. [...]. A doxa é um objeto ruim porque é uma repetição
morta, que não vem do corpo de ninguém, exceto talvez, preci-
samente, do corpo dos Mortos (Ibid., p. 75, tradução nossa).

É nítido que Barthes advoga uma visão bem negativa da opinião do-
minante, associando-a sempre à noção de ideologia que, mistificando,
se fortalece até mesmo quando permite a contestação, já que, ajustados
aos limites do status quo vigente, os debates se predestinam à manuten-
ção da dominação alienante das consciências.
No ensaio de Étienne de La Boétie (2009) a respeito da servidão vo-
luntária, somos alertados para o fato de que o esquecimento da perda
do que nos é natural, como a liberdade (e, diremos, igualdade), pode ser
tão profundo que a servidão passa a ser vivida sem relutância. Ainda
3
Como afirma Barthes: “[...] diremos que é a doxa a mediação cultural (ou discursiva) através
da qual o poder (ou o não poder) fala: o discurso encrático é um discurso conforme com a
doxa [...]; e o discurso acrático enuncia-se sempre, em graus diversos, contra a doxa (seja ele
qual for, é um discurso para-doxal)", (1984, p. 97, grifos do autor).
4
Relevante é a explicação de Barthes do que seja discurso de poder: “[...] O discurso encrático –
posto que submetemos sua definição à mediação da doxa – não é apenas o discurso da classe no
poder; classes fora do poder ou que tentam conquistá-lo por vias reformistas ou promocionais
podem servir-se dele – ou pelo menos recebê-lo com consentimento" (BARTHES, 1984, p. 97).
A relação que Barthes faz, portanto, entre linguagem e poder se dá por mediação cultural.

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O RACISMO VELADO NO PROCESSO DISCURSIVO-ARGUMENTATIVO

que possa causar alguma reação opositora, ela passa a ser naturalizada,
de normal à norma (a Voz do Natural de que fala Barthes) sob a qual se
vive sem questionamentos. A força do hábito consolida o imobilismo
dóxico; o costume obriga o homem a julgar, a crer e a agir como se os
juízos, as crenças e as ações fossem verdades necessárias e imutáveis:
O hábito, que exerce em todas as coisas um poder irresistível
sobre nós, não tem em lugar nenhuma força tão grande quanto a
de nos ensinar a servir. E como dizem de Mitrídates, que foi se
acostumando aos poucos ao veneno, aprendemos a engolir sem
achar amargo o veneno da servidão. Não se pode negar que a na-
tureza nos dirige para onde quer, bem-nascidos ou malnascidos,
mas é preciso confessar que ela tem menos poder sobre nós que
o hábito (LA BOÉTIE, 2009, p. 45).

Nesse estado em que o hábito é mais forte do que a própria natureza


livre (no dizer de La Boétie), sem traços discriminatórios de cor, sexo,
classe, religião, sem convicções classificatórias naturalizadas, reivindicar
uma nova opinião (um paradoxo), um novo sentido adverso ao “no
poder” (conforme a doxa), é sempre temerariamente se contrapor a pa-
péis que estão determinados por instituições sociais, a esquemas coleti-
vos ensinados, reproduzidos e cristalizados nas mais diversas esferas
sociais — educação, política, ciência, religião —, formadores e estabili-
zadores da ordem admitida. Na esteira de Durkheim, apontando as for-
ças que incidem sobre o pensamento e o comportamento sociais,
Perelman assim descreve esse monismo sociológico:
As regras às quais a consciência solicita a conformação de cada
um, ditando-lhe o seu dever, seriam não os mandamentos divi-
nos, mas as injunções da consciência coletiva, expressão da so-
ciedade em que vive. Nessa concepção, é o Estado, a nação
política e juridicamente organizada, que inculcaria em todos os
seus membros, graças à tradição e à educação, o conjunto de va-
lores reconhecidos e de condutas obrigatórias, precisando a cada
membro da sociedade o que é proibido, ordenado e desejável (PE-
RELMAN, 1979, p. 6, tradução nossa).

De fato, sob essa perspectiva, “nada há mais intolerante do que a


verdade” (PERELMAN, 1947, p. 41, tradução nossa), fundamentada em
doxa estabelecida em concepções de violência, evidência e natureza (no

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KELLY CRISTINA DE OLIVEIRA & MOISÉS OLÍMPIO-FERREIRA

dizer de Barthes). Denuncia-se, assim, a operacionalização da manipu-


lação, da alienação, da obstrução à reflexão quanto ao que está natura-
lizado, falseada sob a aparência do senso comum:
[...] a verdadeira violência é a do que é dado como certo: o que é
evidente é violento, mesmo se essa evidência é suavemente repre-
sentada, liberalmente, democraticamente; o que é paradoxal, o que
não é evidente, o é menos, mesmo se imposto arbitrariamente: um
tirano que promulgasse leis estranhas seria, afinal de contas,
menos violento do que uma massa que se contentasse de enunciar
o que é dado como certo: o “natural” é, em suma, o último dos ul-
trajes. (BARTHES, 1975, p. 96, tradução nossa, grifos do autor).

Uma análise de perspectiva discursivo-argumentativa apontará,


portanto, em que medida o discurso apoiado na doxa pode ser uma es-
tratégia argumentativa que convoca a seu favor os benefícios advindos
do que já está coletivamente admitido. Considerada como o conjunto
de saberes socialmente compartilhados, a sua explicitação dá a conhecer
as representações coletivas que integram os discursos, absorvidos não
raramente de modo inconsciente. Tendo em vista que o indivíduo é mol-
dado na imersão dóxica automática e involuntariamente, a sua consti-
tuição em sujeito não só ocorre pelos sentidos sobre os quais ele não
tem domínio, mas também pelas condições enunciativas do espaço dó-
xico que lhe são coercitivas: “Se a argumentação implica uma intencio-
nalidade e uma programação, estas se revelam tributárias de um
conjunto dóxico que condiciona o locutor, do qual ele está, muito fre-
quentemente, longe de ter clara consciência” (AMOSSY, 2010, p. 119;
tradução nossa).
No corpus deste capítulo, interessa-nos mostrar os elementos ideo-
lógicos fundados em doxa dominante e dominadora e compreender
como os elementos discursivos fundados no saber comum constroem
o fazer persuasivo.

1. O racismo velado como processo discursivo


Segundo Van Dijk (2008, p. 15), as pessoas não nascem racistas, nem
tampouco lidamos com racismo apenas estrutural: ele é aprendido num

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O RACISMO VELADO NO PROCESSO DISCURSIVO-ARGUMENTATIVO

processo amplamente discursivo, ou seja, “baseado na conversação e no


contar de histórias diárias, nos livros, na literatura, no cinema, nos artigos
de jornal, nos programas de TV (...)”. Aprendemos a ser racistas por meio
de eventos comunicativos (textos), que também fundamentam opiniões
e atitudes; reproduzimos o status quo do consenso do discurso dominante.
Trata-se, na verdade, de um complexo sistema social de dominação,
constituído por um subsistema social e cognitivo. O primeiro encontra-
se nas diversas práticas sociais de discriminação no (micro-)nível local,
e o segundo, nas relações de abuso de poder exercidas por grupos, or-
ganizações e instituições dominantes em um (macro-)nível de análise
(VAN DIJK, 2008, p. 134).
Para Fairclough (2003), esse processo se dá por meio do discurso
em que crenças, valores, atitudes podem ser instaurados, mantidos ou
alterados. Por meio do discurso, representamos diferentes aspectos do
mundo — “os processos, as relações e estruturas materiais do mundo, o
mundo mental de pensamentos, sentimentos, crenças etc. e o mundo
social” (p. 124) —, de modo particular, ou mesmo de modo mais amplo,
em diferentes níveis de abstração, de compreensão.
Os discursos são investidos de ideologias, que servem para estabele-
cer, firmar ou transformar as relações de poder na sociedade. É por meio
delas que as realidades são construídas, moldadas por diversas ordens
(econômicas, políticas, sociais) e podem sofrer variações nas diversas for-
mas e significados de práticas discursivas, mesmo que nessas relações as
ordens do discurso5 permaneçam implícitas. É nesse sentido que certos
discursos são legitimados e não outros (FAIRCLOUGH, 2008, p. 116).
Os discursos são materializados nos textos e representam os mun-
dos projetados, imaginários e possíveis, vinculados a projetos que visem
à sua manipulação. Os textos são elementos do evento social e são ca-
pazes de influenciar nossas crenças, valores, atitudes, porque possuem
efeitos (biológicos e sociais) tanto imediatos quanto em longo prazo, por
meio das práticas sociais. A exposição prolongada a certas propagandas
5
“Uma ordem do discurso é uma rede de práticas sociais em seu aspecto de linguagem. Os ele-
mentos de ordens de discurso não são coisas como substantivos e sentenças (elementos de es-
truturas linguísticas), mas discursos, gêneros e estilos [...]. Esses elementos selecionam certas
possibilidades definidas pelas línguas e excluem outras – eles controlam a variabilidade linguística
de áreas específicas da vida social. Assim, as ordens de discurso podem ser vistas como a orga-
nização social e controle da variação linguística” (FAIRCLOUGH, 2003, p. 24, tradução nossa).

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KELLY CRISTINA DE OLIVEIRA & MOISÉS OLÍMPIO-FERREIRA

ou anúncios contribui, por exemplo, para moldar as identidades de seus


consumidores (FAIRCLOUGH, 2003, p. 17).
Os discursos possuem, portanto, dimensões sociais, porque se ins-
tauram nas práticas sociais, isto é, no contexto da situação em que cir-
culam valores culturais, ideologias, e também uma dimensão material,
o próprio texto. Ambos (texto e prática social) são mediados pela prática
discursiva, ou seja, por sua produção, distribuição e consumo.
Esse modelo tríade (texto, prática social e prática discursiva) corres-
ponde a três estágios de análise: a Descrição (análise de textos), a Expli-
cação (análise sociocultural) e a Interpretação (análise do processo),
respectivamente. Ao fazer uma análise nessa perspectiva, não se deve pri-
vilegiar um ou outro estágio, pois eles ocorrem simultaneamente, com-
plementam-se: “ninguém nunca fala em aspectos de um texto sem se
referir a sua produção e/ou à interpretação textual” (FAIRCLOUGH,
2008, p. 73, tradução nossa). Mesmo que o analista decida fazer um tra-
balho descritivo, será necessário haver ainda a análise interpretativa, pois
o material em estudo é simbólico. Assim, ao optar pela análise descritiva
da dimensão material (texto), por exemplo, deve-se entender o seu pro-
cesso de produção, distribuição e consumo, ou seja, a dimensão prática
discursiva que a medeia. A esse respeito, Thompson (1998, p. 19) destaca:
Os meios de comunicação têm dimensão simbólica irredutível:
eles se relacionam com a produção, o armazenamento e a circu-
lação de materiais que são significativos para os indivíduos que
os produzem e os recebem. [...] O desenvolvimento dos meios de
comunicação é, em sentido fundamental, uma reelaboração do
caráter simbólico da vida social, uma reorganização dos meios
pelos quais a informação e o conteúdo simbólico são produzidos
e intercambiados no mundo social...

Além disso, toda análise implica também considerar os aspectos so-


ciais ligados às formações ideológicas, poder e hegemonia, inseridos na
prática social. O poder, associado ao consentimento, possui estreita li-
gação com o conceito de hegemonia de Gramsci:
O “espontâneo” consentimento dado pela grande massa da po-
pulação para a direção geral imposta à vida social pelo grupo es-
sencialmente dominante (e.g., por meio de seus intelectuais que
atuam como agentes ou adjuntos) é “historicamente” causado

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O RACISMO VELADO NO PROCESSO DISCURSIVO-ARGUMENTATIVO

pelo prestígio (e consequente confiança) de que o grupo domi-


nante se serve, por causa da sua posição e função no mundo da
produção. (GRAMSCI, 1971, p. 12, tradução nossa).

Esse “consentimento espontâneo” colabora com a naturalização de


práticas e relações desiguais, com o controle intelectual (dominação cul-
tural) exercido, principalmente, por classes dominantes que se conside-
ram aptas não só a representar os seus próprios interesses homogêneos
e os valores admitidos pela sociedade, mas também para manipulá-los,
limitando conhecimentos, atitudes, saberes, enfim, a liberdade de ação
dessa sociedade. Por meio das mass media, por exemplo, afirma Van
Dijk (2008, p. 85), os grupos dominantes podem ter acesso e controle
parcial sobre o público em grande escala.
A prática social permite que o analista de discurso estude os gêneros
discursivos na medida em que portam os aspectos quanto às “maneiras
de agir e interagir [dos sujeitos] no decorrer de eventos sociais” (FAIR-
CLOUGH, 2003, p. 65, tradução nossa). Não utilizamos os gêneros ape-
nas para interagir nesses eventos, ou para expressar, reforçar6 certos
valores, crenças e identidades, para naturalizar relações desiguais de
poder, mas também para agir e modificar. Os gêneros discursivos são
enunciados concretos, reais, de natureza dialógica, como os estudos
bakhtinianos bem demonstraram. Eles medeiam todas as atividades co-
municativas; é por meio deles que nos comunicamos e, segundo Fair-
clough (2003, p. 26), agimos ideologicamente, pois os gêneros são
modos de ação.
Enquanto materializadores das ideologias, os gêneros possuem ca-
ráter de relativa estabilidade (e, portanto, de relativa instabilidade), que
refletem as próprias condições específicas, finalidades, desenvolvimentos
e complexidades estáveis e instáveis das esferas que os condicionam. Ora,
como há uma relativa liberdade que permite ao sujeito transcender as
ideologias, que, por sua vez, não possuem caráter estanque, permanente,
6
Na verdade, essa é uma questão que é possível depreender já nos próprios estudos aristotélicos,
ainda que sua perspectiva não lhe permita avanços na discussão. Os gêneros oratórios funda-
mentavam-se na doxa. Se pensarmos que os gêneros judiciário e deliberativo estavam apoiados
nas crenças e valores comuns, nas disposições legitimadas que determinavam ações, não é di-
fícil chegarmos à conclusão da importância do epidíctico, cujo objetivo era aumentar a inten-
sidade da comunhão, da adesão aos valores comuns entre auditório e orador.

127
KELLY CRISTINA DE OLIVEIRA & MOISÉS OLÍMPIO-FERREIRA

já que podem ser recriadas/reestabelecidas nos modos de agir social e


possuem certa durabilidade e estabilidade, tanto quanto os gêneros dis-
cursivos pelos quais se materializam, então, como assevera Fairclough
(2003, p. 9), no momento em que os sujeitos transcendem as relações de
dominação, eles transcendem também a ideologia. É exatamente nesse
ponto, de relativa liberdade do sujeito e de instabilidade da ideologia, que
há a possibilidade de mudanças sociais, com transformações discursivas.
Se, por um lado, o conceito de raça é utilizado para legitimar o dis-
curso opressor e discriminatório de certos grupos que, acreditando ser
superiores, negam a outros o acesso aos recursos culturais, políticos,
materiais, ao trabalho, à habitação etc., por outro lado, esse conceito tem
se mostrado eficiente na construção de alternativas positivas aos grupos
afetados, com a criação de autoidentidade, resistência política, lutas por
mais autonomia política etc. (WODAK; REISIGL, 2001, p. 373), mate-
rializando novas práticas sociais e, alterando, a longo prazo, a ideologia
vigente em suas práticas discursivas.

2. Análise do corpus
Ao gênero publicitário subjaz o discurso estratégico de natureza per-
suasiva, ou seja, visa à adesão de seu público-alvo. Em razão de sua fi-
nalidade, constitui-se em forte apelo que quer não só alcançar o interesse
de alguns, mas esvaziar, o quanto possível, o lugar do público indiferente.
Para isso, como a adesão a uma ideia se dá com intensidades variáveis,
serve-se ele de crenças comumente admitidas (ainda que implícitas, não
formuladas, o que é mais comum), que lhe assegurem certo sucesso no
empreendimento discursivo. Fairclough (2008, p. 259) sustenta que a
publicidade possui um caráter identitário, porque se constrói a partir de
imagens reconhecidas, aceitas e desejadas pelo outro, o consumidor.
Essa identidade é construída num processo que envolve produto, pro-
dutor e consumidor, num estilo de vida simulado e também construído.
Quando a publicidade utiliza recursos visuais, evoca, no imaginário cole-
tivo (ensinado, reproduzido e cristalizado, que incide no pensamento e
no comportamento sociais), estilos e lugares de vida que podem ser ocu-
pados por potenciais consumidores, motivados por efeitos particulares

128
O RACISMO VELADO NO PROCESSO DISCURSIVO-ARGUMENTATIVO

que a propaganda lhes causa. Pistas verbais e sinais não verbais levam a
sentidos que são expressos indiretamente ou sub-repticiamente sugeridos.
É o que se percebe no efeito de sentido causado pela peça publicitária do
metrô do Rio de Janeiro, desencadeador de grande manifestação nas redes
sociais, que provocou a sua retirada de circulação.
A peça foi instalada na estação Antero de Quental. No lado es-
querdo do leitor, há uma mulher e um homem não brancos, jovens, ves-
tidos casualmente. Do outro lado, um homem e mulher brancos, jovens
que também vestem roupas casuais. No meio das imagens há os seguin-
tes dizeres:

“LINHA 4 - CONECTANDO O RIO DE PONTA A PONTA”:

Fonte: Revista Veja Rio (2017)

Inaugurada para os Jogos Olímpicos no Brasil, em 2016, a linha 4


foi feita com o objetivo de conectar cerca de 100 mil habitantes. As pes-
soas escolhidas para ficar nas pontas representam os usuários, morado-
res, principalmente, do Rio de Janeiro. Aparentemente, encontram-se
no mesmo nível social e partilham da “democracia racial”, porque
ambos, não brancos e brancos, podem usufruir do transporte público
livremente. Entretanto, para entendermos o motivo da polêmica gerada,
devemos observar o contexto de produção e a configuração social da ci-
dade do Rio de Janeiro.
De acordo com Costa (2010), a maior concentração de moradores
que se declaram pretos ou pardos reside nos bairros mais pobres e com

129
KELLY CRISTINA DE OLIVEIRA & MOISÉS OLÍMPIO-FERREIRA

maior número de favelas, localizados na zona Norte, enquanto os bairros


mais ricos, com maior número de declarados brancos, estão situados na
zona Sul. Logo, a associação do racismo à região dos moradores ficou
ainda mais evidenciada pelo efeito de sentido produzido: de um lado,
há os negros pobres e do outro, os ricos brancos.
O exemplo de repúdio pode ser constatado nos dizeres da internauta
Thalita Santos: “Deixa eu ver se adivinhei: o casal de negros representa
a Zona Norte, e o de brancos, a Zona Sul. Lamentável”. O comentário
foi replicado diversas vezes no Twitter, gerando diversas discussões. No
Facebook, há um post que se serve de metáfora para associar às estações
do metrô a senzala dos negros, de um lado, e a Casa Grande dos senho-
res brancos, de outro:

Fonte: Facebook (18/09/2017)

Após grande repercussão, o caso tornou-se pauta das principais no-


tícias e revistas on- line, fazendo com que a problemática fosse discutida
e, consequentemente, consumida, por um número maior de pessoas. A
revista Veja Rio (digital) tratou do ocorrido por meio da seguinte notícia:
“Metrô vai retirar anúncio acusado de ser racista”, cujo subtítulo era “Opo-
sição entre casais negro e branco despertou discussões nas redes sociais”.
Ao se atentar para o subtítulo, observa-se uma importante informação
sobre o papel das redes sociais para discutir o racismo, porque o tema des-
pertou discussões e isso se torna motivo de atenção nas grandes mídias.
A rede social, ao mesmo tempo em que se torna suporte para notícias
das mass media (rádio, televisão, cinema, revistas, jornais de grande cir-
culação), também “dita” o grau de valoração que uma situação deve ter.
O que é postado pode circular centenas (e até milhares) de vezes, por
meio de compartilhamentos, como forma de identificação ou de protesto.
Compostas por grupos com naturezas e interesses diversos, por ins-
tituições e empresas de setores e atividades variados, por pessoas anô-

130
O RACISMO VELADO NO PROCESSO DISCURSIVO-ARGUMENTATIVO

nimas e celebridades, as redes sociais permitem, em conexão virtual, a


interação de seus usuários numa nova forma de organização social. Por
meio delas são mobilizadas várias intervenções sociais coletivas, tais
como os rolezinhos (convocação de jovens de classes populares para en-
contros em locais públicos ou privados, que provocou uma série de de-
bates associados à ocupação de lugares, à necessidade de áreas de lazer
e cultura, à ordem social, ao preconceito social etc.), as manifestações
políticas (como o “Protesto contra a corrupção”), as campanhas diversas
de arrecadação de fundos (para vítimas de tragédias naturais ou por ou-
tros fenômenos, para causas e problemas pessoais etc.), as campanhas
ligadas à saúde (para além da arrecadação de fundos, buscam-se doa-
dores de sangue e de órgãos), as passeatas (manifestações populares em
defesa de posições políticas, sociais, ideológicas ou religiosas, como a
“Marcha das Vadias”, “Marcha das Margaridas”, “Marcha Zumbi”, “Pa-
rada do Orgulho LGBT”, “Marcha para Jesus”, “Marcha da Maconha”
etc.), entre outras, que conectam e envolvem pessoas de diversas partes
do país ou fora dele, inicialmente criando uma realidade virtual, mas
podendo, posteriormente, tornar-se uma realidade presencial, física.
Tudo o que pode ser feito pelas redes sociais faz parte de fenômenos
comunicacionais mediados pelo computador ou por celulares com
acesso à internet, que, segundo Recuero (2009, p. 16), estão transfor-
mando “profundamente as formas de organização, identidade, conver-
sação e mobilização social”. Essa nova forma de interação está
relacionada ao que Lévy (1999, p. 94) denomina “cibercultura”. Trata-
se de um “conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de
atitudes, de modos de pensamaento e valores que se desenvolvem jun-
tamente com o crescimento do ciberespaço” (LÉVY, 1999, p. 94).
Além da publicidade instalada no metrô do Rio de Janeiro, outros
anúncios também foram denunciados e retirados de veiculação pelo
Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (CONAR). Ci-
tamos, mais particularmente, o de 2013, da Devassa, marca de cerveja da
empresa Brasil Kirin, em que o produto aparece ao lado da imagem de
uma mulher negra, cujo corpo é posto em evidência por roupas sensuais
e por cores fortes; seu olhar, bem como a sua pose, auxiliam a construção
do efeito de sensualidade. No seu lado esquerdo, lê-se em caixa-alta:

131
KELLY CRISTINA DE OLIVEIRA & MOISÉS OLÍMPIO-FERREIRA

É PELO CORPO
QUE SE RECONHECE
A VERDADEIRA NEGRA.

Fonte: Diário do Centro do Mundo (2013)

É clara a objetificação sexual e a exotificação da mulher negra. O


corpo ratifica o estereótipo (ideias preconcebidas e classificatórias) da
sensualidade genética, ou seja, exterioriza o que faz parte do imaginário
coletivo daquilo que é intrínseco à cor da pele: o corpo feminino de pele
negra está estigmatizado pela sedução lasciva, está irrevogavelmente
destinado a ser fonte de grande prazer, disponível ao consumo tanto
quanto o produto posicionado ao seu lado. Como corpo e negra se refe-
rem tanto à mulher quanto à cerveja, o nome Devassa, cujos sentidos,
entre outros, é "depravada, desregrada, dissoluta, libertina"7, assume
ambos os referentes, destinando-lhes o papel de fontes “proibidas” de
prazer. É na eficácia da ambiguidade referencial que a força argumenta-
tiva se instaura: a seleção lexical, voluntariamente imprecisa, evita um
enunciado cuja exatidão poderia esvaziar os seus efeitos e provocar rea-
ções adversas.

7
Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013,
https://www.priberam.pt/dlpo/devassa, consultado em 22/04/2018.

132
O RACISMO VELADO NO PROCESSO DISCURSIVO-ARGUMENTATIVO

A voz que enuncia não é a de um “eu” particularizante, que instaura


a subjetivação no discurso, que aumenta o grau de responsabilidade pes-
soal no juízo que é feito e que aproxima aquele que fala daquilo que diz.
É na não pessoa ele, com espacialidade fora do aqui, que o discurso pro-
duz o efeito de objetividade, de afastamento do interlocutor, próprio do
discurso que simula a autoenunciação, que quer se mostrar sem media-
dor; não há um indivíduo, mas o suporte de uma representação coletiva:
“é pelo corpo que” transforma o subjetivo em norma geral que serve
como ponto de partida para o raciocínio que segue; de fato, quanto mais
ela estiver em comunhão com a doxa do auditório, mais o enunciado “no
poder”, com as consequências dele oriundas, será facilmente absorvido.
O tempo é o presente que, manifestado pelo presente formal, não faz re-
ferência ao tempo cronológico da história contada, mas ao omnitempo-
ral, contínuo-sempre, qualitativo, não mensurável, coexistente ao ser que
nele está necessariamente centrado, o presente/presença (COQUET, 1997,
p. 69), sem possibilidade de ser delimitado ou de ser orientado.
Chama a nossa atenção o adjetivo verdadeira. Uma verdadeira negra
só pode ser reconhecida quando avaliada pelo único critério válido: o
corpo portador de características eróticas estereotipadas. O uso normal
do que seja a verdadeira negra está conforme a essência que lhe foi so-
cialmente atribuída ou determinada; é a partir de certas características
corporais que se chegou a estabilizar os aspectos do que representa a es-
sência da mulher negra: a sexualidade à flor da pele.
Cabe ressaltar, porém, que numa sociedade regida por valores ra-
cistas e machistas, ter essa característica é algo positivo. Como bem lem-
bra Monnerat (2003, p. 98): “Nos textos publicitários, a valorização do
produto (objeto de busca do consumidor) se concretiza verbalmente,
muitas vezes, por meio da adjetivação. Os adjetivos são, portanto, formas
linguísticas desencadeadoras de valores positivos.”. Em a verdadeira
negra apresenta-se, portanto, um juízo de valor que se crê estar compar-
tilhado com o interlocutor; o adjetivo é porta-voz de valores ideológicos
e socioculturais postos em diálogo com o público-alvo do discurso pu-
blicitário, estabelecendo, desse modo, uma relação de proximidade in-
tersubjetiva. Se, por um lado, servir-se da atração e prestígio dessa
relação instaurada faz com que a força argumentativa imprima a sua in-
fluência sobre as vontades e as decisões do público, atravessadas que são

133
KELLY CRISTINA DE OLIVEIRA & MOISÉS OLÍMPIO-FERREIRA

— tanto quanto a fala do locutor — pelas ideias preconcebidas, pelas


evidências de uma época, condicionadas pelas possibilidades de seu
tempo, por outro lado, opor-se a essa forma de agir social significa abrir
espaço para transcender as ideologias, é denunciar uma visão alienada
do mundo, é objetar às concepções de violência, evidência e natureza
dos discursos encráticos enraizados na doxa, desmistificando-os.
Em letras menores, mas ainda destacadas em caixa alta, a constru-
ção estereotipada da mulher negra recebe novas atribuições. Numa se-
quência notadamente descritiva, os adjetivos reforçam o evidente papel
ideológico-argumentativo:
DEVASSA NEGRA. ENCORPADA,
ESTILO DARK ALE. DE ALTA FERMENTAÇÃO,
CREMOSA COM AROMA DE MALTE TORRADO.

Como já apontamos, Devassa negra extrai a sua força argumentativa


da imprecisão referencial, que serve tanto para produzir efeitos de sen-
tido que fazem remissão à luxúria, à concupiscência, ao comportamento
regrado pelo apetite sexual, quanto como estratégia de proteção da face
do locutor (como se pode observar no processo junto ao CONAR). As-
sociados os adjetivos à mulher negra, revela-se a visão tradicional dos
papéis sociais dessa mulher, que permanece presa aos modelos veicula-
dos pela opinião comum, pelas representações culturais que naturalizam
a objetificação sexual e a exotificação, pelas ideias artificialmente pre-
concebidas, impostas, porém, com o selo da natureza. O discurso sub-
misso a uma doxa dominante que mistifica o auditório é, sem dúvida,
manipulador, já que se fundamenta no que é evidente ao locutor (e su-
postamente ao auditório), ou seja, nas ideias convencionais em que as
ideologias se dissimulam.
Devassa negra em associação a encorpada tanto faz referência à con-
sistência da cerveja (grossa, consistente, espessa) quanto ao corpo da mu-
lher (corpulenta, avantajada, volumosa) preparado para o prazer. O
mesmo ocorre com estilo dark ale em que a mulher negra, por força de
analogia, é associada à volúpia: a ideia em destaque é a de que, tal como
a cerveja do tipo ale, produzida com levedura que dá melhores resultados
em temperaturas mais elevadas, fermentando a cerveja em períodos mais

134
O RACISMO VELADO NO PROCESSO DISCURSIVO-ARGUMENTATIVO

curtos8, assim é a mulher negra nas questões relativas à sexualidade. A


qualidade cremosa é associada à cerveja e, mais recentemente, à conota-
ção erótica popular feminina, ou seja, à mulher gostosa, cremosa; o ex-
cesso dessa sexualidade à flor da pele se manifesta em sua alta9
fermentação cremosa (a ênfase recai metaforicamente no paladar). Por
fim, o aroma de malte torrado é clara erotização (pela cor e pelo olfato)
que se soma às demais caracterizações para apresentar a mulher como
objeto sexual.
A propaganda recebeu 800 denúncias. Apesar disso, a defesa alegou
que se tratava de uma associação lúdica, como característica das campa-
nhas da marca. É nesse ponto que também podemos entender como o ra-
cismo velado funciona. Em muitos casos, aparece como elogio ou
“brincadeira”, como “valores positivos”; noutros, nem mesmo é admitido:
Nesta, Schincariol e Mood evocam a irreverência que tem mar-
cado as campanhas da cerveja Devassa. Consideram que o foco
do anúncio está totalmente ligado ao produto e negam qualquer
conotação de racismo ou apelo à sensualidade. Aludem, por fim,
ao fato de os consumidores terem o costume de se referir aos di-
ferentes tipos de cerveja da mesma forma que se menciona a cor
dos cabelos das mulheres (loira, ruiva etc.). Em campanha ante-
rior, lembra a defesa, para cerveja de cor clara, o slogan escolhido
foi “Devassa, bem loira” (CONAR [s.d.]).

Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 24) relatam que os discursos domi-


nantes são tão enraizados, que conduzem à naturalização ou à automati-
zação no modo como entendemos e vemos o mundo, levando à
reprodução regular do sistema de crenças e valores e do sistema de relações
e de identidade de determinados grupos sociais. A resposta dada pelas em-
presas reforça o apelo sensual da mulher negra, naturalizando essa prática.
Nessa peça publicitária, a representação da mulher negra na socie-
dade não está atrelada aos seus papéis sociais, mas àquilo que remete
8
Conforme Cervejas do Mundo. Disponível em: http://www.cervejasdomundo.com/Ale.htm.
Acesso em: 22/04/2018.
9
Há, sem dúvida, um processo de intensificação pelo qual os adjetivos são responsáveis. A im-
portância desse processo “reside no fato de ser ele um dos procedimentos responsáveis pela
argumentação de um texto, e tal processo permite ao interlocutor depreender o que está nas
entrelinhas, no âmago do texto, uma vez que o recurso intensificador exacerba a condensação
emocional de todo o fluir do texto” (AZEVEDO; OLIVEIRA, 2005, p. 19).

135
KELLY CRISTINA DE OLIVEIRA & MOISÉS OLÍMPIO-FERREIRA

aos tempos do colonialismo em que a ela era a fonte de prazer dos se-
nhores das fazendas, como pode ser lido no “Manifesto das Mulheres
Negras”, de 1975 (apud NASCIMENTO, 1978, p. 61): “[...] as mulheres
negras brasileiras receberam uma herança cruel: ser objeto de prazer
dos colonizadores”. O autor esclarece que estamos diante da mais fami-
gerada “democracia racial, em cujo contexto o homem negro e a mulher
negra só podem penetrar sub-repticiamente pela porta dos fundos,
como criminoso ou como prostituta” (Ibid., p. 63). Há um reconheci-
mento geral, prossegue o autor, de que a posição da mulher negra na so-
ciedade era a de uma raça para dar prazer, pois fora prostituída no
passado e a baixo preço; do “intercasamento” resultou a mulata.
Essa associação fica evidente em pleno século XXI, por meio das re-
clamações dos consumidores ao CONAR: “A maioria das queixas de-
nuncia racismo, machismo e sexismo na peça, onde a mulher seria
tratada como ‘um objeto sexual, tal como se fazia na época da escravi-
dão’”. Destaca-se ainda, nesse processo jurídico, o entendimento da re-
latora do recurso que concordou com os consumidores, afirmando que
não conseguia “chegar a nenhuma conclusão diferente de que a mulher
negra está sendo retratada como objeto sexual”.

Considerações finais
As amostras em análise são consideradas textos (eventos situados),
mediados pelas práticas sociais que envolvem, segundo Fairclough
(2003, p. 24), outros elementos complexos da vida social e, por isso, é
preciso relacioná-los a instâncias da vida econômica, política, histórica
e cultural, como sugere Schwarcz (2012, p. 34):
Raça é, pois, uma categoria classificatória que deve ser compreen-
dida como uma construção local, histórica e cultural, que tanto
pertence à ordem das representações sociais — assim como são
as fantasias, mitos e ideologias — como exerce influência real no
mundo, por meio da produção e reprodução de identidades co-
letivas e de hierarquias sociais politicamente poderosas.

No caso do Brasil, o racismo é velado, bem particular, conhecido


como “o racismo à la brasileira” e se relaciona com fatos históricos e sociais

136
O RACISMO VELADO NO PROCESSO DISCURSIVO-ARGUMENTATIVO

da escravidão e pós-escravidão e, principalmente, com a sua firme con-


vicção de que o Brasil não é racista, pois o povo brasileiro nasceu “da fusão
harmoniosa de várias raças, que aprenderam a viver juntas e a trabalhar
juntas, numa exemplar comunidade” (NASCIMENTO, 1978, p. 88).
Essa crença (re)produzida pelo discurso midiático e associada a prá-
ticas sociais racistas são mais “penetrantes, se não as mais influentes, a
se julgar pelo poder baseado no número de receptores” (VAN DIJK,
2010, p. 73). A mídia produz efeitos de sentido coletivos de uma nação
igualitária e justa, impedindo a resistência e a luta de classes contra a
forma mais nefasta de racismo: o racismo não declarado. Para isso, o
sujeito deve tornar-se agente corporativo em ações coletivas (FAIR-
CLOUGH, 2003, p. 160).
O resultado dessas ações coletivas pode ser encontrado na ação mo-
vida pelos consumidores contra a peça publicitária e de seu reconheci-
mento pelas autoridades competentes. É desse movimento acional que
movimentos sociais surgem, promovendo agenciamento de políticas
identitárias e desnaturalizando as diversas formas de manifestações ra-
cistas, principalmente quando emergem das elites.

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