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SITUAÇÕES
DE ARGUMENTAÇÃO
IDA LUCIA MACHADO, GLAUCIA MUNIZ PROENÇA LARA & WANDER EMEDIATO
ANÁLISE DO DISCURSO:
SITUAÇÕES
DE ARGUMENTAÇÃO
IDA LUCIA MACHADO, GLAUCIA MUNIZ PROENÇA LARA & WANDER EMEDIATO
Ficha técnica
Título:
Análise do Discurso: situações de argumentação
Organização:
Ida Lucia Machado
Glaucia Muniz Proença Lara
Wander Emediato
Capa:
Frederico Pompeu
Coordenação editorial:
Mafalda Lalanda
Design gráfico:
Grácio Editor
ISBN: 978-989-99960-0-7
© Grácio Editor
Travessa da Vila União, 16, 7.º drt
3030-217 COIMBRA
Telef.: 239 084 370
e-mail: editor@ruigracio.com
sítio: www.ruigracio.com
Prefácio ..........................................................................................................7
Jacyntho Lins Brandão
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O RACISMO VELADO NO PROCESSO DISCURSIVO-
-ARGUMENTATIVO
Introdução
Historicamente, o Brasil é reconhecido como país de diversidade
cultural, étnica e social. Entretanto, apesar de a escravidão ter sido abo-
lida em 19881, o ideal de branqueamento, raça pura, trabalho, beleza e
inteligência versus mestiçagem, raça impura, vadiagem, feiura e falta de
inteligência, sempre permeou as diversas esferas sociais, por meio de di-
versas práticas discriminatórias. Ao lado dessas práticas, circulava o mito
de que o Brasil não era racista, fazendo prevalecer a ideia de democracia
racial. Segundo Nascimento (1978, p. 93), essa expressão é “a metáfora
perfeita para designar o racismo brasileiro: não tão óbvio [...], mas efi-
cazmente institucionalizado nos níveis oficiais de governo, assim como
difuso no tecido social, psicológico, econômico e cultural da sociedade
do país”.
O fato de haver miscigenação entre brancos e não brancos foi argu-
mento suficiente para difundir o ideário de um país único, formado pela
mistura de povos que conviviam em “paz e harmonia”. De acordo com
Schwarcz (1999, p. 309), “[...] a oportunidade do mito se mantém para
além de sua desconstrução racional, o que faz com que, mesmo reco-
nhecendo a existência do preconceito, no Brasil, a ideia de harmonia ra-
cial se imponha aos dados e à própria consciência da discriminação”.
Esse mito começou a ser questionado no fim do século XX. Silva e
Rosemberg (2008, p. 79) afirmam que, desde a segunda metade do sé-
culo XIX, ativistas e pesquisadores brancos e não brancos contestaram
a existência de um país “harmonioso” e se dedicaram a pesquisas sobre
as desigualdades raciais no acesso aos bens materiais e simbólicos, pro-
pondo políticas para combatê-las. Os autores ressaltam, ainda, que o
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Antes disso, porém, destacam-se a lei Eusébio de Queirós, de 1850, a Lei do Ventre Livre, de
1871, e a Lei dos Sexagenários, de 1885, além de várias rebeliões que já haviam diminuído e
onerado essa prática.
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É nítido que Barthes advoga uma visão bem negativa da opinião do-
minante, associando-a sempre à noção de ideologia que, mistificando,
se fortalece até mesmo quando permite a contestação, já que, ajustados
aos limites do status quo vigente, os debates se predestinam à manuten-
ção da dominação alienante das consciências.
No ensaio de Étienne de La Boétie (2009) a respeito da servidão vo-
luntária, somos alertados para o fato de que o esquecimento da perda
do que nos é natural, como a liberdade (e, diremos, igualdade), pode ser
tão profundo que a servidão passa a ser vivida sem relutância. Ainda
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Como afirma Barthes: “[...] diremos que é a doxa a mediação cultural (ou discursiva) através
da qual o poder (ou o não poder) fala: o discurso encrático é um discurso conforme com a
doxa [...]; e o discurso acrático enuncia-se sempre, em graus diversos, contra a doxa (seja ele
qual for, é um discurso para-doxal)", (1984, p. 97, grifos do autor).
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Relevante é a explicação de Barthes do que seja discurso de poder: “[...] O discurso encrático –
posto que submetemos sua definição à mediação da doxa – não é apenas o discurso da classe no
poder; classes fora do poder ou que tentam conquistá-lo por vias reformistas ou promocionais
podem servir-se dele – ou pelo menos recebê-lo com consentimento" (BARTHES, 1984, p. 97).
A relação que Barthes faz, portanto, entre linguagem e poder se dá por mediação cultural.
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que possa causar alguma reação opositora, ela passa a ser naturalizada,
de normal à norma (a Voz do Natural de que fala Barthes) sob a qual se
vive sem questionamentos. A força do hábito consolida o imobilismo
dóxico; o costume obriga o homem a julgar, a crer e a agir como se os
juízos, as crenças e as ações fossem verdades necessárias e imutáveis:
O hábito, que exerce em todas as coisas um poder irresistível
sobre nós, não tem em lugar nenhuma força tão grande quanto a
de nos ensinar a servir. E como dizem de Mitrídates, que foi se
acostumando aos poucos ao veneno, aprendemos a engolir sem
achar amargo o veneno da servidão. Não se pode negar que a na-
tureza nos dirige para onde quer, bem-nascidos ou malnascidos,
mas é preciso confessar que ela tem menos poder sobre nós que
o hábito (LA BOÉTIE, 2009, p. 45).
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2. Análise do corpus
Ao gênero publicitário subjaz o discurso estratégico de natureza per-
suasiva, ou seja, visa à adesão de seu público-alvo. Em razão de sua fi-
nalidade, constitui-se em forte apelo que quer não só alcançar o interesse
de alguns, mas esvaziar, o quanto possível, o lugar do público indiferente.
Para isso, como a adesão a uma ideia se dá com intensidades variáveis,
serve-se ele de crenças comumente admitidas (ainda que implícitas, não
formuladas, o que é mais comum), que lhe assegurem certo sucesso no
empreendimento discursivo. Fairclough (2008, p. 259) sustenta que a
publicidade possui um caráter identitário, porque se constrói a partir de
imagens reconhecidas, aceitas e desejadas pelo outro, o consumidor.
Essa identidade é construída num processo que envolve produto, pro-
dutor e consumidor, num estilo de vida simulado e também construído.
Quando a publicidade utiliza recursos visuais, evoca, no imaginário cole-
tivo (ensinado, reproduzido e cristalizado, que incide no pensamento e
no comportamento sociais), estilos e lugares de vida que podem ser ocu-
pados por potenciais consumidores, motivados por efeitos particulares
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que a propaganda lhes causa. Pistas verbais e sinais não verbais levam a
sentidos que são expressos indiretamente ou sub-repticiamente sugeridos.
É o que se percebe no efeito de sentido causado pela peça publicitária do
metrô do Rio de Janeiro, desencadeador de grande manifestação nas redes
sociais, que provocou a sua retirada de circulação.
A peça foi instalada na estação Antero de Quental. No lado es-
querdo do leitor, há uma mulher e um homem não brancos, jovens, ves-
tidos casualmente. Do outro lado, um homem e mulher brancos, jovens
que também vestem roupas casuais. No meio das imagens há os seguin-
tes dizeres:
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É PELO CORPO
QUE SE RECONHECE
A VERDADEIRA NEGRA.
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Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013,
https://www.priberam.pt/dlpo/devassa, consultado em 22/04/2018.
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aos tempos do colonialismo em que a ela era a fonte de prazer dos se-
nhores das fazendas, como pode ser lido no “Manifesto das Mulheres
Negras”, de 1975 (apud NASCIMENTO, 1978, p. 61): “[...] as mulheres
negras brasileiras receberam uma herança cruel: ser objeto de prazer
dos colonizadores”. O autor esclarece que estamos diante da mais fami-
gerada “democracia racial, em cujo contexto o homem negro e a mulher
negra só podem penetrar sub-repticiamente pela porta dos fundos,
como criminoso ou como prostituta” (Ibid., p. 63). Há um reconheci-
mento geral, prossegue o autor, de que a posição da mulher negra na so-
ciedade era a de uma raça para dar prazer, pois fora prostituída no
passado e a baixo preço; do “intercasamento” resultou a mulata.
Essa associação fica evidente em pleno século XXI, por meio das re-
clamações dos consumidores ao CONAR: “A maioria das queixas de-
nuncia racismo, machismo e sexismo na peça, onde a mulher seria
tratada como ‘um objeto sexual, tal como se fazia na época da escravi-
dão’”. Destaca-se ainda, nesse processo jurídico, o entendimento da re-
latora do recurso que concordou com os consumidores, afirmando que
não conseguia “chegar a nenhuma conclusão diferente de que a mulher
negra está sendo retratada como objeto sexual”.
Considerações finais
As amostras em análise são consideradas textos (eventos situados),
mediados pelas práticas sociais que envolvem, segundo Fairclough
(2003, p. 24), outros elementos complexos da vida social e, por isso, é
preciso relacioná-los a instâncias da vida econômica, política, histórica
e cultural, como sugere Schwarcz (2012, p. 34):
Raça é, pois, uma categoria classificatória que deve ser compreen-
dida como uma construção local, histórica e cultural, que tanto
pertence à ordem das representações sociais — assim como são
as fantasias, mitos e ideologias — como exerce influência real no
mundo, por meio da produção e reprodução de identidades co-
letivas e de hierarquias sociais politicamente poderosas.
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