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BLACK POWER MIXTAPES:

REFLEXÕES SOBRE O MOVIMENTO NEGRO NOS ESTADOS UNIDOS E NO BRASIL

Rodrigo Medina Zagni


Professor da Universidade Federal de São Paulo

Final da tarde de 26 de novembro de 2013, caminho em direção ao anfiteatro da “Escola


Paulista de Política, Economia e Negócios” da Universidade Federal de São Paulo junto da
professora Christina Windsor Andrews, colega de docência naquele campus e quem me
convidara a debater, com a comunidade acadêmica daquela escola, questões relacionadas ao
movimento negro nos Estados Unidos, após a exibição do documentário sueco Black Power
Mixtapes, filme de 2011 dirigido por Göran Hugo Olsson e que enfoca a história do movimento
Black Power de 1967 a 1975.

Tratava-se de uma atividade proposta no contexto ainda das reflexões ensejadas pela “Semana
da Consciência Negra”, semana anterior e dedicada às discussões sobra a inserção do negro na
sociedade brasileira.

Naquele curto trajeto, via-se o óbvio: dentre a comunidade de alunos, quase não se viam
negros; dentre os funcionários terceirizados incumbidos da limpeza, copa e serviços gerais que
transitavam por ali, quase não havia brancos. O problema da obviedade é o grave risco de ela
passar desapercebido, ou seja, de a violência implícita às relações raciais no Brasil estar de tal
forma diluída no cotidiano que seja percebida, quanto muito, como signo da normalidade.
Poucos alunos constituíam o público que assistiu o filme e participou do debate, apenas dois
eram negros e ambos cursavam a graduação naquele campus, ou seja, via-se não apenas a
exclusão de jovens negros do ensino superior público, mas a ausência do público externo à
universidade e a quem interessa diretamente essa discussão, sobretudo a juventude negra,
pobre e moradora das periferias da cidade, alijadas historicamente das estruturas de poder e
da educação formal no Brasil. Não se trata de desinteresse! Os poucos que ali estavam ou
vieram com seus próprios automóveis (o que escapa, via de regra, ao perfil dessa juventude
periférica) ou vieram, numa viagem hercúlea, utilizando o transporte público de péssima
qualidade e de elevadíssimo custo que temos nas grandes cidades brasileiras. Distante de
estações de trem e assistida por pouquíssimas linhas de ônibus, chegar ao campus utilizando o
transporte público consiste na saga diária de muitos alunos da UNIFESP.

Depois de tomar contato com as ideias revolucionárias de Malcom X, Angela Davis, Stokey
Carmidrael e outros líderes do movimento negro nos Estados Unidos, deu-se início a um
intenso debate que se estendeu para muito além do tempo que havíamos previsto para a
atividade, provando o imenso interesse dos alunos em discutirem aquilo que quase nunca se
discute na realidade brasileira: as relações raciais.

Por que essas questões não são discutidas nas universidades? Essa pergunta fora respondida
por um jovem negro, naquele mesmo anfiteatro, no dia 17 de setembro quando recebemos
Ericka Huggins, que militou e presidiu o Partido dos Panteras Negras (o Black Panther Party)
nos EUA por 14 anos de luta incessante pelos direitos civis das populações negras e oprimidas
naquela realidade. Permitam-me reproduzir a fala desse jovem que deu uma das mais ricas
contribuições deste encontro: "não se discute o racismo nas universidades brasileiras
simplesmente porque, nas universidades brasileiras, praticamente não há negros, as vítimas do
racismo!".

Quanto a discussão, não posso dizer que o filme tenha sido propriamente objeto das reflexões
ali propostas, senão um ponto de partida.
Primeiro porque não nos atemos especificamente sobre a história do movimento negro nos
EUA, e isso por dois motivos. Primeiro, costumo citar a professora Emília Viotti da Costa Vieira
quando afirma jamais ter estudado a História para compreender o passado, senão o tempo
presente, e o tempo presente esteve, durante todo o debate, nas nossas preocupações
imediatas. Vale ainda pontuar que o estudo sobre outras realidades, como a do movimento
negro nos EUA, só faz sentido para nós se, de alguma forma, nos permitir refletir sobre os
destinos do movimento negro no Brasil não por mero contraste, mas porque ambas as
realidades, pós-coloniais, guardam destinos partilhados (guardadas as devidas proporções) na
base do desenvolvimento das relações capitalistas que determinaram suas formações
históricas e sociais: o escravismo colonial, o movimento abolicionista, a criminalização das
populações negras e sua violenta exclusão, a organização e a luta do movimento negro em
ambas as sociedades profundamente racistas ainda hoje.

Como dito, não nos limitamos ao recorte cronológico proposto no filme; mas avançamos a
largos passos em direção ao tempo presente onde esses processos resultam gravemente
inconclusos para ambas as sociedades, locus de gravíssimos problemas raciais.

No filme, são apresentadas duas principais tradições do movimento negro nos EUA:
A primeira é encarnada pelo movimento pacifista liderado por Martin Luther King que,
inspirado por líderes como Mahatma Gandhi, em 1956, propôs o boicote no sistema de ônibus
de Montgomery a fim de se opor às práticas de apartheid que ali vigoravam.
O ato pacífico contra a violência equivale a não violência, ou seja, aquele que é agredido não
reage com o intuito de provocar a consciência de seu agressor, dependendo com isso da
existência dessa consciência por parte dos perpetradores. Stokey Carmidrael, severo crítico
desse pacifismo, era enfático ao dizer que, neste sentido, os EUA não possuíam consciência,
por conseguinte o pacifismo seria inócuo – e naquele contexto era!

Em termos filosóficos não é possível dizer que um indivíduo ou um grupo social não tenham
consciência; mas é possível dizer serem portadores de uma consciência racista. Isso porque a
consciência moral, expressa na forma individual ou como moral social (dominante ou
subalterna), é inexorável à condição imaterial da existência humana, sendo a moral
salvaguarda de valores, estes que se desdobram a partir do binômio bem/mal. Ocorre que
valores e morais não são absolutos, mas relativos; o que nos obriga verificar que
perpetradores, racistas, têm sim uma consciência moral, onde reside uma moral racista
conformada por valores comuns ao racismo, pautados em um tipo de igualitarismo “entre
iguais” e a partir do qual os desiguais deveriam perecer ou pura e simplesmente servir. Essa
axiologia atravessou o período moderno do mercantilismo e encontra-se incrustrada, hoje, nas
mentalidades de uma série de segmentos de sociedades pós-coloniais.

A segunda tradição é a de um movimento de luta cujo principal expoente foi Malcom X e que é
apresentada, no filme, a partir das ideias de Stokey Carmidrael, o primeiro a falar em Black
Power nos EUA, inserindo o coeficiente de poder, logo da força, na luta política por direitos
civis.
Pode-se dizer que, sob vários aspectos, o movimento pacifista foi vencido em 1968 quando
Martin Luther King fora assassinado, a primeira personalidade pública a se opor publicamente
contra a Guerra no Vietnã, motivo mais do que evidente para sua execução. É o mesmo ano
em que John Kennedy foi assassinado em Dallas, evento que é rememorado hoje no marco de
seus 45 anos enquanto a morte de Martin Luther King passa despercebida, ao menos no que
tange à imprensa burguesa.

Neste mesmo período, entre o final da década de 1960 e início dos anos 1970, tem-se uma
notável escalada do ressentimento e do ódio racial nos EUA, movendo classes dominantes e
elites políticas brancas contra programas governamentais focados na redução da pobreza e
que, segundo o argumento racista, favoreceriam populações negras, não por acaso a
avassaladora maioria das populações pobres.

A proeminência desses setores no espectro político estadunidense foi evidenciada no mesmo


ano em que Martin Luther King e John Kennedy foram assassinados: a vitória de Ronald
Reagan (que perseguira Angela Davis e que tentara levar-lhe à cadeira elétrica quando era
governador da Califórnia) nas eleições presidenciais norte-americanas.

Desde a campanha eleitoral, Reagan vinha prometendo acabar com os programas sociais que
beneficiavam populações negras e, chegando ao poder, suas promessas (ao menos essas!)
foram cumpridas sistematicamente.

Como contra resposta, assiste-se à rearticulação do movimento negro em torno de lideranças


como Jesse Jackson, ex-colaborador de Martin Luther King, na propositura de uma aliança
inter-racial que envolvesse também mulheres e brancos liberais numa coalização “arco-íris”
que, contraditoriamente, excluía outras minorias sociais como no caso os judeus, dada a
postura antissemita manifesta por Jackson.

Com relação á tradição brasileira, ela não se distingue pelas clivagens entre pacifismo e luta;
mas entre mito e consciência.

Juarez Tadeu Xavier, na obra “Construção de um olhar negro”, divide a história do movimento
negro no Brasil em três períodos:

Um primeiro período de “ilusão da integração pacífica” teria tido início em 1931 com a criação
da Frente Negra Brasileira, embebida no mito da democracia racial além de fortemente
influenciada pelo nacionalismo reacionário integralista, foi extinta no mesmo ano em que o
movimento de Plínio Salgado planejava sua intentona, em 1938.

A segunda fase seria a de “denúncias sociais da miséria provocada pelo racismo” e se


estenderia do final da FNB, em 1938, até a década de 1970, marco do fim das ilusões de
possibilidade de integração social dos afro-brasileiros sem que houvesse um movimento
organizado de luta política. Trata-se do momento em que a falácia ideológica da democracia
racial é denunciada pela militância negra.

Durante este período há uma notável ênfase no resgate e na resistência cultural, o que moveu
uma série de iniciativas como grupos de teatro e núcleos de cultura fundados como
instrumentos de luta e de formação de consciência.
O terceiro período é o de “consciência da necessidade de romper a estrutura reprodutora do
racismo” e cujo marco é a fundação do Movimento Negro Unificado contra a Discriminação
Racial, em 1978.

Quem se dedicou a este tipo de análise comparativa – entre o movimento negro nos EUA e no
Brasil - foi George Reid Andrews, professor da Universidade de Pitsburg que nos chama a
atenção para o fato de que, no Brasil, sustenta-se ainda hoje, no plano ideológico, a existência
de uma “democracia racial”, mito insistentemente reiterado sobretudo por elites brancas do
que decorre um tipo silencioso ou velado de racismo. Silencioso e velado para os
perpetradores, não para as vítimas a quem essas práticas soam gritadas! Nos EUA, por sua vez,
a aspereza das relações raciais ganharia maior visibilidade e contaria com maior grau de
consciência em diferentes extratos sociais.
O que nos causa estranheza é o fato de que afro-americanos constituem 12% da população
dos EUA; enquanto afro-brasileiros representam em torno de 50% da população brasileira. No
entanto, os 12% de negros nos EUA teriam uma participação política substancialmente maior
na vida de seu país; enquanto no Brasil e realidade seria diversa.
No caso brasileiro, enquanto engendram-se esforços articulados para reafirmar o mito da
democracia racial, por parte das classes dominantes articuladas aos veículos de comunicação
de massa e a uma pseudo-intelectualidade venal, constata-se a contínua existência da
discriminação e da desigualdade racial na multirracial sociedade brasileira.

No Brasil, segundo Reid Andrews, o movimento negro, da Frente Negra Brasileira ao


Movimento Negro Unificado, não teria conseguido gerar um movimento de massa com o peso
político dos movimentos organizados nos EUA. Dentre os motivos estaria o caráter paternalista
e autoritário das relações sociais e políticas brasileiras, aliados à flexibilidade e sutileza com
que se manifestaria o racismo nestas paragens. Com isso, a indignação moral contra a
desigualdade racial seria muito mais difícil de ser gerada em uma sociedade onde a
discriminação se dá sob forma silenciosa, às vezes inconsciente, tornando difícil identifica-la e
transformar sua negação em ação política.

Não creio que – repito – para a população negra o racismo se apresente assim tão silencioso.
Há que se considerar os aspectos brutais das relações raciais brasileiras como a repressão
policial que sofrem afro-brasileiros, a criminalização da juventude negra e o preconceito por
parte dos órgãos penais.

A miséria, a exclusão social, a violência policial, a atuação dos esquadrões da morte, as


execuções sumárias e o encarceramento em massa da juventude negra impõem a necessidade
premente de uma segunda abolição, não apenas de direito senão de fato, que seja equivalente
à emancipação política não apenas de negros; mas das classes subalternizadas pela ordem
capitalista vigente.

É necessária uma segunda abolição cujo caminho seja de baixo para cima e que se dê de forma
ruptural; e não o contrário, como no caso da primeira, acordada entre as classes dominantes e
manejada de forma a não incluir os recém-libertos senão de forma ainda submetida, ainda
assim para uma ínfima parte deste contingente, nas novas relações assalariadas.
Como revolução social, portanto (assumo aqui uma postura marcadamente política), a luta
antirracista deve manifestar-se na forma da luta de classes, o que anuncia um denso e
complexo debate: as relações entre raça e classe no Brasil.

Assumindo-se que a questão racial é um dos principais problemas estruturais da realidade


brasileira, uma questão elementar para pensar esta problemática comum a qualquer
sociedade pós-colonial é a relação entre classe e raça, elementos cuja conciliação e articulação
não são nada fáceis, motivo pelo qual não tentaremos fazê-lo aqui, senão apenas apresentar a
questão e a partir dela um posicionamento.

O tema foi e segue sendo objeto dos mais intensos debates internos ao movimento negro e
presente também nas forças políticas de esquerda, de movimentos sociais a partidos políticos.
Apesar de existirem setores do movimento negro que tendem a dissociar a luta antirracista da
luta de classes, raça e classe são elementos indissociáveis de acordo com os estudos de
Florestan Fernandes, para quem essa articulação seria fundamental para a luta do movimento
negro.
Seus estudos remontam a sociedade paulista de 1951, seu objeto de interesse em pesquisas
elaboradas no final da década de 1980 a pedido da UNESCO. Acabou constituindo a mais
incisiva e consistente crítica aos postulados da democracia racial inscritos na obra de Gilberto
Freyre, sustentadas pela verificação de que a grande maioria dos negros brasileiros está
inserida nas classes subalternas.

Para Florestan Fernandes o modus vivendi das classes laboriosas, nos grandes centros
urbanos, não é determinado apenas pela questão social, ou seja, pelo papel que
desempenham na divisão do trabalho social; mas também pela questão racial, o que marca
exatamente a particularidade da luta de classes no Brasil.

Parte fulcral do processo de tomada de consciência de classe seria portanto a superação do


mito da democracia racial e, com isso, a desmistificação da ideia de convivência pacífica entre
raças no Brasil, onde os negros são os mais atingidos pelas desigualdades que se apresentam
na forma do péssimo transporte público, na hiperexploração dos impostos e das práticas de
corrupção (tendo em vista serem aqueles que mais acessam os serviços públicos), pela rapina
capitalista e todas as violências decorrentes da expropriação de classes, pela violência policial
movida contra a juventude pobre e negra nas periferias etc.

A velha percepção difundida pelas classes dominantes no período escravocrata, de que negros
constituiriam classes perigosas, é corroborada hoje pela imprensa sensacionalista (por meio de
seus “profissionais da indignação”) que reafirma o estereótipo do negro naturalmente violento
e potencialmente criminoso; enquanto políticos brancos seguem envolvidos em práticas de
utilização de mão-de-obra escrava em suas fazendas e tendo centenas de quilos de
entorpecentes apreendidos em aeronaves de luxo.

Neste sentido, a experiência de luta nos EUA, encarnada pelo Partido dos Panteras Negras é
extremamente significativa: tornou-se um espaço de denúncia e reivindicação por direitos a
serviço dos mais pobres e oprimidos. Luta não apenas contra a violência policial; mas contra
todas as formas de violência advindas do racismo como a precarização dos serviços públicos
nos bairros pobres - como escolas e hospitais -, o encarceramento massivo da juventude pobre
e negra, a perseguição religiosa e a vigência de uma racista ditadura da beleza cuja matriz é
branca, entre outras tantas formas de manifestação de uma luta que, entendiam os Black
Phanters, tratava-se de luta de classes.

A percepção dos fundadores de seus fundadores, Bobby Seale e Huy Newton, segundo nos
informou Erica Huggins em setembro, era a de que classe e raça seriam elementos
indissociáveis na luta por direitos. Não apenas isso: raça, classe e gênero, dado que as
mulheres são vítimas das mais atrozes violências em sociedades historicamente machistas
como os EUA (e como o Brasil).

Com isso, as mulheres negras são vítimas de ainda mais violência, culpadas pura e
simplesmente por existirem, junto de tantas outras minorias sociais que devem juntar-se à
luta: homossexuais, migrantes, minorias religiosas, trabalhadores pobres etc.

Deste tipo de abertura a todas as classes subalternizadas temos significativas lições de


solidariedade e resistência que podem ser movidas à formação de consciência, pré-condição
para toda e qualquer luta, por sua vez necessária a toda e qualquer vitória.

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