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A FORÇA OCULTA

Mauro Trindade
SUMÁRIO

Apresentação…………………...
I – Os emigrados……………….. 3
II – A Força Oculta……………... 7

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I
Os emigrados

A judia
O cargueiro de bandeira francesa Mendoza afasta-se lentamente do porto
de Bordeaux. As poucas pessoas admitidas no píer presenciam a partida.
Enquanto a silhueta cinzenta se esvai na densa neblina matinal, parentes e
amigos são dispersos pelas autoridades.
Extenuados pela expectativa da viagem, os passageiros acomodam-se às
condições do barco, adaptado às pressas para conduzi-los como refugiados
graças as mediações da Cruz Vermelha. Alguns são aguardados por familiares e
velhos conhecidos. Os demais serão acolhidos por organizações locais de apoio
aos refugiados.
Deixam a França em busca da liberdade, acossados pela pressão
antissemita dos nazistas sobre o governo colaboracionista de Vichy, que,
pressionado, os deixara partir para livrar-se do problema.
O navio orienta-se para o sul do Atlântico com escalas em Lisboa e na
Ilha da Madeira. Nesses portos, há opção de desembarque, mas dificilmente
alguém optará por essas alternativas, pois o desejo unânime é afastar-se da
guerra genocida que engolfa todo o continente.
A travessia marítima arrosta muitos perigos, a navegação faz-se próxima
da costa, evitando a ação temível dos submarinos alemães que não respeitam
nem os navios desarmados.
Dentre os refugiados com destino ao Rio de Janeiro, encontra-se a família
judaica polonesa Tüber, composta do jovem casal Indel e Mirna mais a filha
Olga, de seis anos. A família teve a autorização de entrada no país concedida
pelo embaixador brasileiro em Vichy, solidário à causa judia.

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Os dias se sucedem longos e monótonos. Por segurança, a velocidade é
reduzida à noite e as luzes que seriam visíveis do exterior seguem apagadas. A
linha do horizonte parece inatingível. Os mares tornam perigosa a navegação.
Não se vê nenhuma embarcação ao longo do litoral africano.
Próximo a Dacar, o cargueiro se afasta um pouco da costa sem tentar
aportar, passando a ser acompanhado e vigiado à distância pelo cruzador
britânico Astúrias, envolvidos em uma missão preventiva: impedir que os
corsários nazistas afundem o cargueiro e culpem os aliados. É papel do serviço
de inteligência de guerra conhecer os planos e se antecipar às ações do inimigo.
Ao aproximar-se de Capetown, na África do Sul, o navio desvia para
oeste com o objetivo de atingir o extremo sul das Américas. A rota é longa e
cansativa, mas, nesses tempos insanos, é o melhor roteiro para os barcos
mercantes que buscam o continente.
Finalmente o estuário do Plata é alcançado. Alívio para aqueles que se
destinam a Buenos Aires e Montevidéu. Poucos dias depois, deixam o porto da
capital portenha, ainda sob a vigilância do Astúrias, que se mantivera à espera
além das águas territoriais.
A viagem continua ao longo do litoral sul do Brasil até chegar ao largo do
porto de Santos, onde as autoridades sanitárias vistoriam a embarcação e
aplicam vacina contra a febre amarela em tripulantes e passageiros.
Numa esplendorosa manhã de verão, contrastando com a madrugada
cinzenta da partida, o Mendoza ingressa na ampla e bela baía da Guanabara.
Logo, um rebocador o conduz com segurança até as proximidades da Ilha das
Flores, onde os refugiados serão recepcionados.
Enquanto aguardam a lancha do serviço de emigração, com as mãos em
viseira protegem os olhos da luminosidade tropical. Atônitos, deslumbram-se
com a diversificada paisagem.
A odisseia dos Tüber se iniciara na Polônia, país ameaçado por soviéticos
e nazistas, e prosseguira na travessia da Alemanha e no estabelecimento na

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França até a invasão alemã, onde posteriormente se implantou o regime de
Vichy, obrigando-os a deixar a Europa. Agora, distantes da guerra, enfim
renasciam suas esperanças e se preparavam para uma nova vida.

O alemão
Ao fim da 2ª Guerra Mundial, soldados alemães prisioneiros na França
foram repatriados a partir do Sarre. Entre eles, Franz Donner, que, ao pisar o
solo pátrio junto aos companheiros, sentiu-se reconfortado. Contudo, há ainda
um longo caminho a percorrer pelas estradas calcinadas até Dresden, sua cidade
natal e um dos lugares mais castigados no país. Durante a guerra, as operações
aéreas britânicas de dissuasão arrasaram a área metropolitana medieval. O ex-
prisioneiro não pretende se fixar lá. Sua expedição é apenas sentimental. Perdera
todos os parentes próximos, inclusive os pais, vítimas dos bombardeios.
Pretende estabelecer-se em Berlim, onde estudara e desfrutara os
melhores momentos de sua vida. Mochila às costas, rememora os tempos de
Academia de Artes, quando jamais se imaginara matando um semelhante. A
propaganda nazista envolvera a juventude no sonho da grande Alemanha e
fizera dele um soldado, um bom soldado. Passara os três últimos anos na frente
ocidental, elogiado e condecorado por heroísmo. Não sofrera ferimentos graves,
a longa permanência na linha de frente fora suficiente para que se instalasse em
seu íntimo a dúvida: por que lutara?
Dresden! Percorre as ruas da infância, encontra as ruínas de sua casa,
interroga os mudos escombros. Apesar da forte emoção, não se lastima, melhor
mesmo é partir para Berlim como fizera há anos e em condições mais felizes.
A outrora mística e marcial capital do Reich foi palco das mais
impressionantes cerimônias militares da História e transformaram a Alemanha
em uma nova Roma. Agora, arrasada pelos vencedores, outra concepção de vida
ali se encontrava. Diante das arcadas semidestruídas do portão de

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Brandemburgo, apresentava-se um povo faminto e de espírito abatido. Seu
futuro, uma incógnita.
Transcorrido um ano que está na cidade, Franz sobrevive biscateando.
Mal remunerado e solitário, sucumbe ante as privações generalizadas. As
sequelas da guerra, presentes.
Periodicamente é acometido por pesadelos: prédios em chamas, gritos,
lamentos e explosões. É a neurose. Acorda suado, proferindo imprecações. Não
suporta mais, resolve partir para bem longe, onde a guerra só chegara através da
imprensa e dos cinejornais.

A austríaca
Berlim, mil novecentos e quarenta e seis. Zona aliada de ocupação
bloqueada pelos soviéticos e abastecida por comboios aéreos. A jovem Ilse
trabalha na principal cantina das tropas americanas, graças ao seu fluente inglês
e ao sargento Phil Corey, com quem mantém um romance. Espera que o militar
permaneça na Alemanha o tempo suficiente para se casarem. O que propiciaria,
mais tarde, sua ida para a América. Contudo, não é o que acontece.
Desmobilizado o sargento de suas funções intempestivamente, retorna à
Carolina do Sul, desiludindo a namorada.
O fracassado romance é rapidamente esquecido. As condições do pós-
guerra não permitem devaneios sentimentais. Ilse continua na cantina, trabalho
nada gratificante para uma egressa da Academia de Belas-Artes. Vive sem
perspectivas futuras, com a Guerra Fria pairando sobre a Europa e a cidade
dividida sob bloqueio insuportável.
Considerando a iminência de um novo conflito, muitos europeus recorrem
a emigração. Reiniciar a vida em outro país, de preferência distante, dedicar-se à
arte publicitária, objetivo dos estudos que concluíra antes da derrocada
germânica, é o sonho da jovem austríaca. Percorre vários consulados, preenche

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formulários diversos, mas não consegue o visto. A preferência dos países
procurados é por técnicos, cientistas e professores universitários.
O romance frustrado tornara Ilse insensível a uma nova ligação
sentimental. Gostara de Phil, apesar de ele mostrar-se sempre distante, mas o
que a atraíra nele, além do seu charme, fora a possibilidade de partir para a
América. Embora fosse cortejada pelos usuários da cantina, não se iludia.
Preferia a solidão.
Passa o tempo e as coisas mudam. Assediada com insistência por Carl
Griese, um vizinho de bairro, berlinense, recém-saído da adolescência, ela
resolve ceder. Não o amava. Carl era um jovem inexperiente que só conhecera a
guerra. No entanto, sua persistência a sensibilizou. Depois de um ano, casam-se.
A cerimônia foi simples. Não houve festa. Graças ao fato dele ser técnico em
eletrônica, conseguem o desejado visto.

II
A força oculta

Os bastidores
Após aplicarem a Doutrina Monroe como lema, “a América para os
americanos”, e apropriarem-se do conceito da Roma Imperial ao tornar o
Atlântico Sul o seu mare nostrum, justificando-se no messiânico Destino
Manifesto, os Estados Unidos temem a crescente influência soviética no Brasil e
seu efeito dominó em toda a América Latina.
A expansão comunista a partir da satelização de um país, contaminando
os demais da região, preocupa os estrategistas do Pentágono. Os tímidos
movimentos das esquerdas latinas parecem recrudescer e a possibilidade de
obterem êxito assusta. Por outro lado, a presença intervencionista yankee torna
mais evidente o sentimento antiamericano.

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A fragilidade da economia, os problemas sociais gerados pela má
distribuição de renda, a insensibilidade das elites locais, a crescente admiração
pelos feitos espaciais dos soviéticos e o apoio à descolonização na África e Ásia
são fatores que contribuem para a aceitação da propaganda comunista.
As cúpulas do Departamento de Estado, da Agência Central de
Inteligência (CIA) e do Conselho de Relações Exteriores (CFR) se reúnem para
um balanço conjunto da situação. Em foco estão as questões da liderança
político-militar, da luta ideológica e da livre economia de mercado.
Instrumento privado da política externa dos EUA, o CFR representa os
interesses do grande capital. Sua importância afere-se pela assessoria prestada
ao governo para definição da política externa e, também, pelo fato de que seus
quadros ocupam os principais cargos no primeiro escalão da administração
federal. Toda política externa americana é conduzida sob orientação do
triunvirato Departamento de Estado, CIA e CFR.
A reunião tem como finalidade definir os meios de conscientizar os países
do continente quanto às vantagens do american way of life. Nela, concluem que
além da divulgação e das medidas diplomáticas, econômicas e militares
tradicionalmente aplicadas, devem priorizar o Brasil e nele adotarem ações
diferenciadas.
O Estado Brasileiro, já sob forte tensão esquerdizante, necessitará de
maior participação do seu empresariado no processo político e nas decisões do
governo.
A estratégia será simples: despertar o empresariado brasileiro para os
perigos que rondam as instituições basilares, a livre iniciativa e o capital
privado. Contudo, a tarefa deverá ser realizada sem que pareça haver
intervenção ou influência externa nos processos político, econômico e social.
Para isso, a ampla experiência do Conselho para América Látina, braço do CFR,
que, ao término da Segunda Guerra Mundial treinou lideranças de vários países
para incentivar a instalação de organizações empresariais capazes de

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influenciarem seus respectivos governos, é fundamental, considerando o estágio
capitalista e industrial em que se encontra o Brasil na atualidade.

O contato
Londres, outono de 1958, Festival Shakespeare no Barbican Theatre. No
palco, Laurence Olivier representa Hamlet, o infeliz príncipe da Dinamarca,
com o crânio nas mãos crispadas a proferir a frase famosa, to be or no to be. Na
plateia, expectadores de várias partes do mundo se misturam aos circunspectos
ingleses. Sem transparecer as raízes latinas, o brasileiro Ivon Locher com a
esposa inglesa confunde-se com os súditos de sua majestade. De família com
longa tradição na diplomacia, viveu a adolescência na Inglaterra, onde fora
educado, tornando-se entusiasta do chá, do críquete e principalmente do teatro
shakespeariano, cuja temporada anual sempre comparece, a ponto de
ritualisticamente assistir a abertura do mesmo no pequeno e concorrido Swan
Theatre, em Stratford-upon-Avon, terra do imortal dramaturgo.
No Brasil, onde mantém seus negócios, é bem relacionado nos meios
diplomático, político e financeiro. É conhecido também pela agitada
movimentação social, visto que a família desenvolve intensa atividade nos
círculos mundanos e sua esposa é exímia na arte do bem receber.
O relatório da CIA fora meticuloso: Ivon Locher, culto, ambicioso, adepto
da livre iniciativa, politicamente ligado ao jornalista Carlos Lacerda, empresário
no ramo publicitário, possui pequena mais eficiente agência de propaganda e
livre trânsito com políticos e militares. Assim, o CFR encontrara o the right man
in the right place e, de imediato, iniciara o processo de cooptação do
empresário.
Em consonância com a tática adotada, empresas americanas sediadas no
Brasil direcionam parte das suas disputadas verbas publicitárias para a agência
do empresário, a Promotora de Vendas Connection. Convinha neutralizar as
possíveis resistências ou negativas com a ameça de perda tanto de verbas

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substanciais quanto do prestígio de contas importantes que alçaram sua agência
a um novo patamar. O alvo estava na mira.
Concluído o estafante roteiro shakespeariano, o casal retorna ao hotel. No
saguão de entrada, entregam a Ivon um envelope com o timbre do CFR. Era um
convite pessoal para um almoço de negócios no Hotel Saint George com os
representantes do Conselho.
Ciente das atividades e influência dessa instituição no mundo, sabe que
não possui status social para compartilhar a mesa com gente tão proeminente.
Sente-se lisonjeado e curioso.
O hotel apresenta a sua austeridade de sempre, mas para Locher ele
mudou. No restaurante, observa que o sempre sério maître lhe sorri antes de,
solenemente, o conduzir à mesa onde dois cavalheiros o aguardam.
O encontro transcorre informal. Atento, ouve mais do que fala. Sua
fisionomia deixa entrever aos interlocutores o sucesso da missão. Ao fim,
despedem-se efusivamente.
Antes de retornar ao seu hotel, estaciona o carro próximo do Hyde Park
para uma breve caminhada, enquanto repassa as palavras que ouvira à mesa:
“Conhecemos as dificuldades sociais que o seu país enfrenta. Apesar dos vastos
recursos, vocês têm condições de, por meio do liberalismo, aliarem-se às
grandes economias do Ocidente. Algumas das nossas corporações são clientes
de vossa Agência. Sabemos o suficiente para propormos uma organização
nacional que participe nas decisões governamentais do Brasil nos moldes do
CRF já existentes em diversas nações, congregando líderes empresariais e outros
segmentos participantes e consolidando a democracia por meio da livre
iniciativa e da defesa do capital, seja interno ou externo. Mr. Locher, o senhor é
o líder que o momento requer, estamos à disposição para apoiá-lo a atingir esse
objetivo. Convidamos o senhor à nossa sede em Washington, onde outros líderes
empresariais latinos lhe transmitirão suas experiências”. Ingenuamente, Ivon
lhes participa que, em diversas conferências e artigos seus, ele enfatizara a

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necessidade de uma entidade do gênero no Brasil, uma que congregasse o
empresariado brasileiro. Como se eles não soubessem.

A agência
A Promotora de Vendas Connection S.A. ocupa os oitavo e décimo
pavimentos do edifício Partenom, localizado em uma movimentada avenida no
centro do Rio de Janeiro. No pavimento inferior estão os departamentos de
criação/produção e mídia. No superior, a diretoria e os departamentos de
planejamento, finanças e administração. Como agência de pequeno porte, a
Connection possui profissionais polivalentes, atuando em dois ou mais setores,
além de lançar mão de freelancers.
O ambiente no pavimento inferior é informal. As diferenças sociais,
intelectuais, de temperamento e até de nacionalidade não afetam o convívio
harmonioso e os funcionários se entendem bem. O espirituoso e competente
Mário Pacheco é diretor de arte; a loura e esbelta Ilse cuida dos leiautes; a
simpática e calada Martha é desenhista; o chato e eficiente Coutinho, mídia; o
fechado e rabugento Franz, arte-finalista; o jovem e fantasioso Maurício,
produtor gráfico; o atencioso e atarefado Rocha se responsabiliza pelo tráfego e,
por fim, o arisco Luizinho é o office-boy.
Contrastando, no andar superior o ambiente é formalíssimo: Sóbrio no
trajar e discreto no falar, Ivon Locher é o presidente; compartilhando as
características do marido, Alba Locher ocupa a vice-presidência; a séria e
capacitada Olga Tüber é secretária; o criativo Paulo Caldas, diretor e redator; e,
completando o grupo, os assessores José Coutinho e Nilson Nobre.
Vive a agência a expectativa do retorno da Europa do seu presidente, que
sempre lhes traz novidades na área publicitária. Em particular, Caldas aguarda
ansioso sua chegada, para que esclareça os detalhes da misteriosa reunião que
houve em Londres.
— Venha conosco pra casa!

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Caldas se surpreende com o convite. Fora ao aeroporto somente para
recepcionar o patrão que, contrariando o costume de abraçá-lo e logo se
despedir, pede que o acompanhe. Geralmente, quando chega de viagens longas
como essa, ele só fala de trabalho no dia seguinte.
Enquanto Alba se reúne-se com os empregados do apartamento, Locher e
Caldas se sentam no pátio da cobertura com vista para o mar. Ao longe, as
cristas brancas das espumas das ondas deleitam o olhar.
— Você deve estar curioso para saber das novidades.
Caldas não consegue dissimular a ansiedade.
— Preste atenção!
Locher empertiga-se como quem tem algo muito importante a dizer. O
encontro com os representantes do CRF e a conclusão à que chegara são
expostos com minúcias. Não fora aos Estados Unidos de imediato porque
quisera antes a sua aprovação.
A lisonja fortaleceu o entusiasmo de Caldas pelo que ouvia. Gesticulando,
exclama: “É mais do que imaginávamos! Ao seu lado, tenho me empenhado em
difundir suas ideias quanto a contribuição que podemos prestar ao governo.
Saiba que pode contar comigo. Estou para o que der e vier!”.
Com o apoio irrestrito do assessor e amigo, o empresário toma a decisão
de refazer as malas e seguir sem demora para a capital norte-americana.

O ciúme
Recorda-se Pacheco do primeiro contato com Olga, de antemão sabendo-a
competente, segura de si e com lábios cerrados. Costumava transmitir à
secretária as ordens presidente, ato burocrático e funcional sem grande relevo,
mas ali estava ele revivendo mentalmente aqueles instantes, enquanto aguarda a
fim do expediente, para desfrutar de momentos fugazes ao lado daquela mulher
de dupla personalidade. Talvez fosse isso que o fascinasse, a dupla

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personalidade. Olga, uma criatura doce e sensual na intimidade, em choque com
outra, formal, autoritária e extremamente ciumenta.
A junção de pessoas tão diferentes e distantes quanto eles dois somente
seria explicável pela química ou por algo obscuro em seus humores que se
catalisara no contato profissional diário.
O caso se iniciara por uma observação espirituosa da parte dele,
provocando em Olga um raro e contido sorriso. Como se ela estivera há muito à
espera de alguém que rompesse as barreiras impostas pela rígida educação
familiar, pela ortodoxia religiosa e pela obsessão ao trabalho. Foram se atraindo
aos poucos até se dar a explosão final, tornando-os dependentes de uma
neurótica paixão.
Nem sempre havia amor e carinho no relacionamento. Vem-lhe à
memória a primeira reação negativa dela. O estúdio estava quase deserto.
Debruçados sobre a prancheta, rostos ligeiramente próximos, ele e Ilse definiam
a arte-final de um leiaute. Não notaram à aproximação de Olga, que os
observava pelas costas. As longas e belas pernas da austríaca, complementadas
pelos bem delineados quadris e a proximidade dos rostos levaram-na ao
paroxismo do ciúme. Sem se deixar perceber, retirou-se sorrateira. Trirrim!
Trirrim! Absortos, sobressaltaram-se com a estridência do telefone. Pacheco
atendeu. Era Olga, avisando que o presidente solicitava sua presença com
urgência. Desculpou-se com a colega e rapidamente se dirigiu ao gabinete. Na
antessala, foi recebido pela secretária, que, transfigurada, passou por ele
rispidamente e fechou a porta entreaberta: “Traidor! Tirando uma lasquinha da
falsa loura!”. Sem entender a razão da ira, lembra-se bem que tentou acalmá-la,
“Deixe disso, meu bem. Após atender o presidente, conversamos”. Ela
respondeu ainda mais agressiva: “Qual presidente, qual nada! Eu que o chamei
para encerrar aquela descaração na prancheta!”. Pacheco não deixou por menos:
“Sua louca! Um relacionamento estritamente profissional. Deixe de ser
infantil!”. Nessa altura, Olga estava colérica: “Seu monstro! Aproveitador! Você

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me paga!”. Nervoso, ele segurou seus braços. As longas e bem tratadas unhas
riscaram de sangue o seu rosto. Ferido, afastou-a rudemente e saiu batendo a
porta. Com água e toalha de papel, limpou os arranhões. Ao sair do toalete, sem
conseguir disfarçar o seu estado, pressentiu que Ilse, ao vê-lo, pelos seus
antecedentes, entenderia que algo desagradável ocorrera entre ele e outra pessoa
que não o presidente. “Lembro como se fosse hoje”, murmura baixinho
encerrando as divagações.

O retorno
Locher retorna dos Estados Unidos entusiasmado. Em Washington,
aprendera o quanto o Conselho de Relações Exteriores representava nos meios
empresariais, na política e na administração federal. De lá seguiu para Nova
York e visitou a sede do Conselho Latino Americano, assistiu palestras e
contatou com lideres empresariais latinos, empenhados em influir na política e
decisões dos seus próprios países. Tomou consciência de uma comunidade
mundial cuja bandeira é a livre iniciativa. Como empresário, tinha a obrigação
de também empunhar o mastro e preservar o cenário brasileiro, ameaçado por
ideologias centralizadoras. O sonho acalentado de influir nas decisões do
governo como uma parte da força geradora de riquezas estava ao seu alcance.
Saiu de lá com a promessa de que o CRF daria todo seu apoio por meio das suas
associadas estabelecidas no Pais.
Na Connection, Ivon põe Caldas a par dos planos para implementação do
braço da CFR no Brasil, tomando como parâmetro a experiência recente na
Venezuela adaptando-a às nossas peculiaridades e leis. Os recursos virão de
empresários comprometidos com a linha ideológica da Organização, que, a
princípio, ficariam no anonimato.
O assessor ouve a explanação com certo cepticismo. Duvida da fonte dos
recursos, pois conhece bastante o empresariado nacional. Será difícil convencê-
los do perigo que paira sobre suas cabeças. Em seguida, definem o modelo da

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instituição e seus objetivos: defesa da livre iniciativa, proteção ao capital
privado, combate ao comunismo e apoio à democracia. Elaboram o estatuto e o
encaminham à apreciação de personalidades escolhidas pela identificação
ideológica. Após recebido os pareceres, firmarão um documento definitivo.

A fantasia
Às segundas-feiras, na Connection, o centro de atenção é Maurício.
Emérito dançarino de salão e duvidoso conquistador, os colegas ficam na
expectativa das narrativas dos seus mirabolantes fins de semanas.
Principalmente as que envolvam vedetinhas do teatro-revista, ao qual é assíduo
frequentador. Amigo da atriz e dançarina Luz Del Fuego, que lhe facilita o
acesso aos bastidores nas peças em que atua, conhece sua colônia nudista na ilha
do Sol, tendo desenhado o projeto da boate que começara a construir na colônia.
Maurício sempre tem novidades, seja como protagonista ou como
testemunha. Entre os assíduos ouvintes das suas aventuras, destaca-se Ilse,
sempre atenta às suas coloridas descrições. Às vezes, ela lhe solicita detalhes de
um fato ou outro, não escapando ao produtor gráfico seu inusitado interesse.
Quando a vira pela primeira vez, não imaginara que chegassem a tal grau de
intimidade. Ela era do tipo Hollywood, uma Lauren Bacall, loura, olhos azuis,
esbelta, porte elegante e, o que ele mais admira, dona de um belo par de pernas.
Da sua escrivaninha ele diariamente a vislumbra debruçada na prancheta,
equilibrando-se no banquinho alto para esboçar leiautes. Cada pergunta que ela
faz de suas histórias o encoraja a vencer a timidez e tentar uma abordagem.
A atração que Ilse exerce nele torna-se obsessiva. Já não desfruta os fins
de semana como antes. Em pensamento, vagueia pela Connection, ansioso pelo
fim do domingo para que possa desfrutar da presença da sua musa no dia
seguinte.
Embora entre eles as barreiras social, cultural, etária e hierárquica
dificultem uma aproximação direta, a cada dia se sente mais encorajado.

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Arquiteta e desfaz planos de acordo com as avaliações feitas no momento. Falta-
lhe a coragem e o destemor de um D. Juan ou de um Casanova. O melhor,
conclui, é deixar por conta dela. E, assim pensando, aguarda que o tempo
concretize a sua fantasia.

A organização
Os planos da nova organização são submetidos ao CFR para o aval
necessário e, de certo modo, para que garanta também a continuidade dos
contratos das empresas americanas com a Connection. Por essa via serão
distribuídos os recursos que viabilizarão as ações da organização. Trata-se de
uma burla à legislação que proíbe recursos externos para fins políticos, uma
maneira segura de descaracterizar a intervenção estrangeira no processo.
O esquema consiste no superfaturamento das contas de publicidade das
empresas americanas. A Connection cobrará de cada serviço a comissão de
praxe sobre o custo final das campanhas. E mais, dependendo do volume de
publicidade veiculada, a agência terá descontos e outras vantagens. Para que os
recursos alcancem o destino final, a organização também será cliente. Neste
caso, a diferença do superfaturamento se destinará aos seus cofres.
Concluídos os planos, estatuto, estrutura e denominação da organização,
aguarda-se a definição dos associados fundadores e do quadro dirigente para os
respectivos registros oficiais.
São expedidos convites formais aos empresários e às demais
personalidades representativas da sociedade:

PROMOTORA DE VENDAS CONNECTION S.A.


Prezado Sr.,
Nesta,
Sensível aos clamores da classe empresarial no combate às ideologias
estranhas às nossas tradições, na proteção da livre iniciativa e na garantia dos

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investimentos quer nacionais ou internacionais, o Instituto Nacional de Ação
Democrática (INAD) promoveu estudos para constituir-se com o firme apoio
dos cidadãos comprometidos com o futuro da nossa pátria.
Para melhores esclarecimentos convidamos V.S.ª para a reunião a
realizar-se às 19h de 11.01.59 no 10º pavimento do ed. Partenom, situado À
av…
Ivon Locher

P.S. - Anexo minuta do estatuto do INAD

A reunião
Olga providencia para que os funcionários convocados para a reunião
estejam todos presentes ao término do expediente. O presidente é rigoroso em
questão de pontualidade. Como não foi escalada para secretariar os trabalhos,
caso ocorram contratempos, não estará lá para contemporizar.
Afobado, Coutinho reúne as pastas das principais contas da agência. É a
primeira vez que ocorre uma convocação sem prévio conhecimento da pauta e
ele não quer ser surpreendido por nenhum imprevisto. A não menos atarefada
Ilse junta portfólios das últimas campanhas. Ao mesmo tempo, indaga-se da não
convocação do diretor de artes. “A reunião promete!”, suspira. Quanto a Nilson,
que também é o chefe do departamento de publicidade da Orange S.A., cliente
da agência, imagina que a reunião tenha a ver com a conta da sua representada.
Pacheco continua a trabalhar. Por mais que se esforce, não consegue
abstrair-se da movimentação em torno. Há algo nos bastidores que não consegue
captar. Não pergunta, aguarda que alguém esclareça a razão da agitação
reinante.
Encerrado o expediente, as luzes permanecem acesas no décimo
pavimento do Partenom. Na confortável sala de reuniões, utilizada também para

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sessões de brainstorm, a ampla mesa oval, rodeada de cadeiras de espaldar alto e
assento almofadado, está preparada.
Recepcionados por Caldas, os participantes tomam os seus devidos
lugares. À frente de cada um deles está um envelope com seu nome escrito. O
alegre Nilson, a elegante Ilse e o subserviente Coutinho mal se acomodam e o
sorridente redator, em pé com os dedos das mãos apoiados na mesa, dirige-lhes
a palavra: “Colegas! Enquanto aguardamos o presidente, abram seus envelopes
para conhecimento da pauta. Após a leitura, os interessados permaneçam em
seus lugares. Caso contrário, podem se retirar sem constrangimento”. Uma
rápida leitura e todos permanecem sentados. A Caldas não passa desapercebida a
curiosidade estampada nos semblantes.
— Companheiros…
Caldas não conclui a frase, pois Locher entra na sala, cumprimenta a
todos com um meneio de cabeça e se dirige-se à cabeceira da mesa. Observa que
o assessor permanece de pé e o convida a sentar-se.
— Senhoras e senhores, se leram o briefing, já se inteiraram da nova
organização que estamos instalando e o que esperamos de vocês…
Faz uma pequena pausa, sente a disposição do grupo e prossegue,
enfático.
— Empresários dos mais expressivos da indústria e do comércio
resolveram reunir recursos e empreender esforços para manter nossa pátria no
caminho da liberdade e da livre iniciativa. Fomos os escolhidos para esta árdua
missão e acreditamos que, com a capacidade demonstrada pelos senhores em
suas respectivas atividades, sob a supervisão de monsieur Jean Larouche,
contratado na Europa e em breve entre nós, levaremos a bom termo as nossas
obrigações.
Conclui, deixando os presentes livres para dirimir quaisquer dúvidas. Ao
fim, a equipe inteira demonstra satisfação com as deliberações. Ilse transparece
um contentamento maior. Além das atividades na Organização, fora promovida

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a diretora de arte da agência. Coutinho, o responsável pelos contatos. Nilson e
Caldas juntam-se a Locher nos procedimentos de fundação e administração.
Sentados em confortáveis poltronas, usufruindo da paisagem da Baía de
Guanabara enquanto degustam um legítimo escocês, os dois amigos comentam:
“Adesão total, como esperávamos. Parece até que já aguardavam a
oportunidade”, diz Ivon. Caldas concorda. “Mas dependemos do Larouche. Sem
ele, nada podemos fazer. Quando chega?”. Sorrindo, Ivon responde: “Mais cedo
do que pensa”. E complementa: “Hoje ainda você vai recepcioná-lo no aeroporto
e hospedá-lo em Copa. Amanhã à tarde, já adaptado ao fuso horário, nos
reuniremos na Connection”.

O belga
Com atraso, o Super-Costellation desliza na pista do Santos Dumont.
Enquanto a aeronave taxia, Caldas aguarda no saguão o desembarque de
Larouche. Estivera com ele em Bruxelas, enviado pela Connection, que sempre
contratava seus serviços quando precisava atender clientes europeus. O belga,
publicitário freelancer, conhece bem o mercado e o empresariado do continente.
Principalmente, o francês e o italiano, ambos em plena recuperação do pós-
guerra.
Durante o conflito, fora membro da organização belga pró-nazista
Wallonie, destacando-se no serviço de informação. Estagiara no Ministério da
Propaganda na Alemanha. Em várias oportunidades em que trabalhou para
Connection, expressara a vontade de se fixar no Brasil. Enquanto isto não se
realizava, aprendera o português razoavelmente.
Imponente, tinha mais de um metro e noventa de altura, fartos cabelos
grisalhos e cavanhaque pontiagudo. O belga parecia ter saído de um quadro de
Rembrandt. Após os abraços, acomodam-se no carro e rumam para o hotel.
Durante o percurso, Caldas enfatiza detalhes da paisagem que se descortina
diante do estrangeiro que, pela primeira vez, conhece o país.

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Acomodado o hóspede, compromete-se a buscá-lo na tarde do dia
seguinte. No caminho de casa, Caldas imagina que algo muito importante está
reservado para o recém-chegado. Do contrário, seria um desperdício de talento.

O pesadelo
Debruçado à janela, Franz sorve o ar puro da noite. A brisa que sopra do
Atlântico refresca o verão tropical. Seu olhar acompanha o arco de pérolas
formado por uma miríade de pontos luminosos, emanados dos edifícios que
formam o longo e alto paredão de concreto diante da praia famosa: Copacabana.
É tarde. Desvia a visão para o interior do cômodo, a cama em desalinho. Por que
teme retornar aos lençóis? Por quê?
Noites quentes, longas e mal dormidas. Anseia o alvorecer. À insônia,
sucede-se o cansaço. Depois, o sono. Não o sono reparador, mas aquele que traz
de volta os seus fantasmas.
Novamente na frente ocidental, durante o rigoroso inverno de 44, os
ventos bélicos mudam de direção. O inimigo toma a iniciativa, avança
irresistível. Enquanto eles recuam, recuam. De vez em quando, uma resistência
selvagem e inócua. Os companheiros caem, praguejam, gemem, gritam e
apelam. Feridos, esperam socorro impossível. Outros clamam pela morte
misericordiosa.
Dias e noites o matraquear da metralha e o silvo dos morteiros. Clarões
iluminam a escuridão. Recuar, resistir, recuar e resistir. A rotina. A morte
rondando. Corpos dilacerados. Reconhece os companheiros: Wolf, o corajoso
Wolf, Peter, o alegre Peter, Klaüs, o filósofo. Então, vê a si mesmo: Franz, o
artista. Acorda, gesticula, berra insano, o suor pegajoso empapa a camiseta de
algodão. O pesadelo se desfaz para retornar nas noites seguintes.
Após uma sequência de noites mal dormidas, a manhã de Franz é de
irascibilidade. Na Agência, mantém-se a maior parte do tempo calado. Quando
solicitado, responde com resmungos e grunhidos. De quando em quando,

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profere frases em alemão, que Ilse traduz amenizando a virulência do
significado.

O senador
A pequena cidade colonial, encravada nas montanhas de Minas Gerais,
antiga zona aurífera e outrora cruzamento das tropas de burros, orgulha-se de ser
o berço de tradicional família ligada a independência, à política e a cultura
nacional.
O atual patriarca do clã, senador da república, aguarda curioso a chegada
de Ivon Locher, filho de um velho amigo diplomata. O que desejaria o jovem e
bem-sucedido empresário conversar justamente durante o seu retiro de recesso
parlamentar?
Sentam-se em acolhedoras poltronas de vime e junco, dispostas numa
varanda aberta para o pomar. Saboreiam um cafezinho enquanto conversam:
“Caro senador”, Locher resolve resolver ser objetivo, “Não é segredo, e vossa
senhoria sabe muito bem, que atravessamos tempos cruciais. Nossas instituições
estão seriamente ameaçadas. Sofremos um penoso processo de desgaste que
afeta nossa maneira de viver. As esquerdas não mais agem nas sombras, mas a
Céu aberto. Estão nas praças! Nas fábricas! Nos meios de comunicações! E,
obviamente, nos sindicatos e no próprio Congresso! Dito isto, eu lhe
pergunto…”, faz uma pausa prolongada. Sua formação britânica contém o seu
ímpeto latino. Em tom mais moderado, prossegue: “Até quando vamos tolerar
semelhante situação?”. O senador não se deixa contaminar e responde
calmamente: “Estamos numa democracia. Enquanto esses senhores estiverem
dentro dos parâmetros da Constituição, nada podemos fazer. A maioria dos
parlamentares é conservadora e está vigilante quanto a manutenção da ordem”.
Depois de muitas digressões sobre o avanço das esquerdas, da defesa da
democracia e do enaltecimento dos objetivos do empresariado, o Senador dá-se
por convencido, prometendo recebê-lo em seu gabinete logo que voltar ao

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Congresso e confirmar sua posição. De antemão, compromete-se com os
princípios que norteiam a organização.
Os integrantes da mesa conversam ansiosos na tentativa de antecipar o
que Locher vai comunicar-lhes. Ele entra sem se anunciar. À cabeceira da mesa,
cumprimenta a todos e inicia sua fala: “Hoje é um dia memorável para nossos
planos. Estive com um dos nossos maiores políticos. Sensibilizado com nossas
preocupações e objetivos, comprometeu-se com a nossa cruzada. Infelizmente,
não estou autorizado a revelar seu nome. O êxito das nossas atividades depende
em princípio do seu anonimato. O principal é termos no Congresso alguém de
confiança nos apoiando e, principalmente, que arregimente outros parlamentares
em defesa das nossas proposições”. Em seguida, solicita aos presentes que
comuniquem os avanços de suas funções nos novos postos.

A promoção
Aproxima-se o fim do expediente, Pacheco impacienta-se. Nada soubera a
respeito da reunião. Não desejando demonstrar curiosidade, não pede a Ilse
nenhum pronunciamento a respeito. Prefere aguardar. Olga com certeza lhe dirá
em pormenores o que ocorrera de interessante e porque ele fora olvidado.
A ruiva de óculos gira a chave apressadamente, abre a porta e tem uma
decepção. O apartamento está vazio! Repentinamente, braços fortes a envolvem
e fazem-na tremer.
— Assustou-se?
— Oh, Querido! Eu...
— Não diga mais nada! – Um beijo sufoca a frase.
Nos braços do amante, a ansiedade cede à paixão. Olga Tüber não entende
sua fragilidade diante daquele homem míope, sem grandes atrativos físicos e
com a idade de seu pai, mas que irradia tanto magnetismo e força. Atração
recíproca e incontrolável. Ele, casado, um casal de filhos, perto de ser avô. Ela,
solteirona, beirando os trintas.

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Na intimidade, ele repete o ritual, retira-lhe os óculos, solta seus longos
cabelos fueguinos. Metamorfose: a beleza camuflada no cotidiano dos fios
domados em coque, lentes grossas e armação de óculos pesada, trajes que não
valorizam a silhueta, os gestos bruscos. Liberta das inibições, a crisálida dá
lugar à borboleta. A fêmea surge em toda sua plenitude. O milagre renova-se
toda vez que se encontram a sós. Para Pacheco, que convive diariamente com a
eficiente secretária de raros sorrisos, semblante sério e andar pesado, a Olga em
seus braços só ele conhece, só ele se insere em seu âmago. Tal exclusividade o
remoça.
Momentos depois, exaustos e felizes, compartilham do mesmo cigarro.
— Amor… O que está havendo na agência? Existe algo importante
ocorrendo nos bastidores?
A secretária logo substitui a amante.
— O próprio presidente expediu os convites para a reunião.
— Reunião para quê? Por que o diretor de arte não foi convocado?
— Não foi coisa de rotina. Nem fui chamada para secretariar os trabalhos.
O mais estranho é que não li nada a respeito.
Ele emudece pensativo. Sabe que ela fala a verdade. É incapaz de mentir
para ele.
Dias depois, ao tomar conhecimento que fora promovido a supervisor do
departamento e Ilse a diretora de arte, Pacheco se sente confuso e não tem
certeza se foi promoção ou descarte. Pintor laureado com boa cotação das suas
obras no mercado, seu nome é fator de prestígio para qualquer agência. Talvez,
por essa razão, não abram mão dos seus serviços.
As reuniões prosseguem sempre com os mesmos nomes. Constata que
dentro da agência existe uma outra paralela a qual ele não faz parte. A
responsável pelos leiautes, agora diretora de arte, pressionada, diz serem mera
rotina. Parece que se forma uma confraria. O certo é que a agência prospera com
as novas contas estrangeiras. Dir-se-ia que ventos generosos sopram a favor. O

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quadro das últimas contas conquistadas é de causar admiração. Analisando-se o
ranking das empresas de publicidade, a pequena e quase desconhecida
Connection não teria cacife para atrair e manter esses novos e disputados
clientes: Texaco, Esso, Gulf (empresas petrolíferas); GE, IBM, Remington,
Coca-Cola, U.S.Steel, GM e Willys Overland. Na verdade, não são contas
exclusivas, mas serviços que sobrecarregam as grandes agências ou os
respectivos departamentos de publicidade das empresas que são entregues para
agentes menores. Todavia, considerando a quantidade e qualidade das empresas
que buscam os serviços da Connection em tão breve tempo, esse é um fenômeno
invulgar.

O fauno
O olhar penetrante de Pacheco o acompanha toda vez que cruza a sala.
Fora ao banheiro, examinara-se no espelho, dera uma geral nas roupas, nada.
Nada que despertasse a curiosidade de alguém. “Talvez seja impressão minha”,
pensa Maurício.
Já esquecera o fato quando nota novamente o olhar suspeito do supervisor
de arte, resolve interpelá-lo: “Porque o senhor me olha tanto?”. Pacheco larga o
lápis, ajeita os óculos de grossas lentes. “Estou elaborando um conjunto de
quadros com a temática do fauno e você tem o perfil e a expressão que
procuro!”.
— Eu? Perfil de fauno? Não acredito!
— Pois acredite, vire-se!
— Pronto! Perfeito! O nariz, o queixo…
— Mas a barbicha, os chifres, os pés caprinos…
— Os complementos deixe comigo. Quer ou não posar para mim?
Queda-se pensativo avaliando a proposta. Imagina-se perpetuado na tela
pelo artista reconhecido nacionalmente. Também a ideia de servir de modelo
para o mitológico ser lhe agrada, satisfaz seu ego.

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– Como é, tá disposto?
– Sim, conte comigo! Daí em diante, o supervisor passa a chamá-lo
exclusivamente de “meu fauno”. Para os demais colegas, ele se torna o próprio
ser mitológico. Maurício sente afinidade com o personagem rodeado de belas
mulheres nos bosques. Afinal, ele também vive rodeado de beldades nos
bastidores do teatro-revista.

O laboratório
Em pouco tempo, o belga monta o núcleo mais importante do INAD. Em
apoio às suas ações, edita a revista Democracia em Ação com periodicidade
quinzenal, circulação dirigida e distribuição gratuita. Figuras expressivas das
classes produtoras, da política, das forças armadas, da cultura e do esporte
assinarão artigos e colunas sobre diversos temas. Através das suas páginas, serão
divulgadas as atividades dos políticos afinados com a organização. Os não
alinhados com as diretrizes do INAD serão perseguidos e desacreditados.
Mestre na manipulação da imagem, Larouche dispõe de um laboratório
capaz de transformar um anjo em demônio ou vice-versa. As peças e matérias
gráficas produzidas pelo núcleo, seja para distribuição aos meios de
comunicação ou para campanhas populares, são revistas por um rigoroso
conselho interno empenhado em manter sua coerência ideológica.
O mesmo conselho também assessorará a futura MODEP (Movimento
Democrático Popular) em seus diretórios com representação em todos os estados
da federação, cuja finalidade será a mobilização do povo. Equipes orientadas
pelo belga organizarão palestras, cursos e seminários para doutrinação de
políticos, empresários, profissionais liberais e militares.
Enquanto o INAD toma sua forma definitiva, o desenvolvimentismo e os
arroubos da política independente de JK não são bem-vistos pelos analistas do
Pentágono em Washington. A Operação Pan-Americana, lançada pelo
presidente brasileiro e aceita pragmaticamente por Kennedy, esboça um tipo de

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liderança compartilhada que os EUA não toleram. Temem que, por menor que
seja, delegar liderança ao Brasil seja abrir um flanco para o comunismo e a ruína
da diplomacia do Big Stick.
Em nome da democracia representativa, o governo de JK permite a livre
manifestação das esquerdas, que aproveitam o clima de liberdade para politizar
o proletariado e fortalecer os Sindicatos. O Departamento de Estado americano,
com o intuito de limitar as ações independentes do presidente brasileiro,
programa a visita ao país do secretário do tesouro, Foster Dulles, e impõe
exigências do FMI com o objetivo de frear o processo de industrialização e o
Plano de Metas, alicerces do governo JK.
A resistência do presidente às medidas propostas, considerando que ele
está em fim de mandato e em breve será carta fora do baralho, não os assusta.
Todavia, o momento exige cautela, justificando-se o investimento na formação
do futuro governo e na composição do Congresso. Nos planos dos americanos, o
INAD é a ponta de lança para controlar a situação sem transparecer intervenção
nos assuntos internos do Brasil.

A amiga
Mal termina o expediente, Maurício sai apressado. Vai ao encontro de
Rafael, amigo que o aguarda ao volante do Mercedes 53. Depois de circularem
pelo centro, estacionam na Cinelândia, saltam e se dirigem ao Castelinho.
– Rafa, qual a programação do fim de semana?
– Sabe da atração que tenho por mulheres famosas, que independe do tipo
e da idade?
– ?!
– Explico. Até agora meu relacionamento com a Luz se mantém na
amizade, mas consegui convencê-la a ir à cama comigo.
– Como conseguiu?
– Há tempos me insinuo. Finalmente, cedeu. Porém...

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– Ah, logo vi. Tem algo mais.
– Sim! Depende de você.
– De mim? Como assim?
– Ela só topa se você ficar com uma amiga.
– Espere, que amiga é essa? Conhece?
– Não, mas é gente do teatro-revista. Imagina só.
Como o amigo se demora a lhe responder, insiste:
– Não me deixe na mão!
– Lógico que eu aceito!
O pequeno apartamento é ambivalente, funciona como escritório e
dormitório, e é composto por saleta, banheiro e um quarto discretamente
mobiliado com cama de casal, mesinhas de cabeceira, um pequeno bar e
geladeira.
Beira as vinte e uma horas quando a estrela aparece. Desacompanhada,
desculpa-se pela amiga, retida no teatro. Chegará mais tarde. O casal se recolhe
ao quarto, restando a Maurício a solidão da espera. Meia hora e nada! Pensa em
desistir. Faz menção de sair quando batem à porta e escuta uma voz feminina.
– Olá! Maurício?
– Sim. Sou eu, sim.
Ele abre a porta apressado.
– Ótimo. Perdoe-me o atraso, queridinho…
Surpreso, não sabe o que dizer diante do jovem que livremente adentra ao
cômodo e, tomando o controle da situação, fecha a porta. Sem perder nenhum
tempo, ele tenta acariciá-lo. Maurício se esquiva mecanicamente. O jovem,
acostumado à situação, entende o gesto como timidez, o que torna o jogo para
ele mais excitante.
– Queridinho, não fique constrangido com a sua bonequinha. Relaxe.
Vamos conversar…

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– Não… não é isso. Só estou emocionado. Você chegou no momento em
que eu ia à Lapa comprar champanhe… Para celebrarmos!
– Vai, vai, queridinho. Champanhe é a melhor coisa para desinibir. Vá e
volte logo, logo.
Aproveitando a deixa, o fauno escapole. Desce pela escada e pega um táxi
que o leva à Central, onde um trem o deixará bem distante da “amiga” dos
amigos-ursos.

Os cúmplices
O telefone insiste. Ágil para os seus cento e vinte quilos, Nilson Nobre se
projeta do banheiro e atende: “Alô!… Quem? Coutinho?… Sim, sim. daqui a
meia hora… Certeza!” Repõe o fone no gancho e esfrega as mãos gorduchas,
gesto característico quando as coisas caminham de acordo com suas previsões.
O Amarelinho àquela hora regurgita de habitués e eventuais. De longe,
sente a impaciência do amigo, que, ao vê-lo, não espera aproximar-se, ergue o
copo em inusitada saudação, demonstrando a euforia de que está possuído.
Acomoda-se enquanto espera ser servido. Sem delongas, José Coutinho
abre o jogo: “Precisamos nos entrosar em função das minhas novas
atribuições…”. Hesita um pouco, refletindo se se precipitara. Examina o rosto
do companheiro e sente receptividade. Prossegue: “Sabe das minhas
responsabilidades e dos recursos que doravante passarão pelas minhas mãos.
Unidos, podemos tirar proveito disso”, fala abertamente, o que demonstra o
envolvimento da dupla em outros conluios antes. Nilson ouve sem intervir. É do
seu feitio conhecer primeiro as ideias alheias e, somente depois, expor suas
opiniões, já devidamente depuradas.
Renovando os copos, traçando planos e pactuando informações, assim
passam a noite. Bêbados e eufóricos, gesticulam ao exagero, cantarolam antigas
modinhas de Carnaval.

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Ainda zonzo, boca amarga, membros doloridos: resquícios da noite.
Coutinho acorda reconhecendo que ultrapassara os limites. A aquiescência do
comparsa o animara mais ainda. Sob os efeitos desinibidores do álcool, abrira-se
com ele, reafirmara a dedicação ao chefe e a confiança cega que o mesmo
depositava nele. Nobre o tranquilizou, nada tirariam do INAD, mas sim dos
beneficiários. Experiência e cautela são as garantias para que auferissem em
segurança as vantagens antevistas.
Quanto a Ivon, ele o escolhera para as missões sigilosas por confiar na sua
capacidade de levá-las a bom termo com eficiência e presteza. Talhado para
levar “mensagem a Garcia”, lidar com malotes de dinheiro, cheques ao portador,
entrega de materiais e equipamentos, sem deixar transparecer dependência dos
beneficiados ao doador, no caso, o INAD. Todas essas ações favorecem para
que o portador surja aos olhos dos favorecidos como influente na liberação das
verbas.
Com o tempo, Coutinho passa a ser identificado como o “Homem da
Mala”, ansiosamente esperado e prestigiado nos gabinetes parlamentares. A
situação favorece para que ele ponha em execução o que planejara com Nilson.
Com o pretexto de despesas operacionais (hotéis, passagens, estadias e etc.),
desconta percentuais das entregas, contando com a cumplicidade dos receptores.
A corrupção interna é encoberta pelas origens espúrias dos recursos.
Portanto, é justo que coutinhos e nobres se aproveitem desta cornucópia a
despejar milhões sem questionamentos. O prestígio sobe à cabeça de Coutinho,
que, com trânsito fácil no Congresso e tantos políticos em suas mãos, imagina
tornar-se um condestável da República em seus delírios de riqueza e poder.

A chacina
— Lemão! Lemão! Vamos fechar. Vá pra casa!
Bêbado, cambaleante, Franz se levanta e instintivamente se dirigi para o
prédio onde mora. Não incomoda ninguém. É figura conhecida no bairro. O

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porteiro acompanha-o ao elevador e o deixa na porta do apartamento. No seu
pequeno mundo, sente-se prisioneiro. O corpanzil pede descanso. A mente
atormentada recusa. Sabe que o adormecer o põe a mercê dos fantasmas.
Finalmente, o corpo vence. Estatela-se pesadamente sobre a cama. Adormece.
Logo o pesadelo toma forma: entardece na França ocupada. Oradour-sur-glane.
A divisão Waffen-SS, sob o comando do Stalpfizer Otto, conduz um grupo de
rústicos aldeões retirados de suas casas sob a mira dos fuzis. Mais à frente, o
descampado. E além, o bosque. Caminham silenciosos, ignorantes dos objetivos
dos nazistas. Imaginam que foram retirados dos lares para algum serviço braçal,
visto que as mulheres e crianças não foram molestadas.
— Halt!
Os soldados estacam. Os prisioneiros entreolham-se temerosos. O
comandante dirige-se aos camponeses, aponta em direção às árvores próximas e,
num francês arrevesado, ordena:
— Avant! Avant! Se passer!
Sem entender a razão, eles se põem a correr. Estariam livres? Ratatatatá!
Ratatatatá! As rajadas de metralhadoras se misturam aos gritos. Dor e desespero.
Os corpos quedam nos arbustos. Os prussianos percorrem a área, eliminando
com tiros na cabeça os agonizantes. Franz acorda gemendo, apalpa o corpo
suarento, olha ao redor, solta um longo suspiro.
Busca o banheiro. Uma ducha fria o desperta. Põe um long-play na
vitrola. Wagner o livra dos seus fantasmas pelo restante da madrugada.

O agente
Após a rendição nazista, Phil Corey, sargento das tropas de ocupação do
exército dos Estados Unidos, atuara sob as ordens do então major V. A. Walters.
Desmobilizado, passara a trabalhar em importação e exportação graças
principalmente à sua facilidade de assimilar línguas estrangeiras.

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Radicado na Carolina do Sul, inesperadamente Corey recebe notificação e
passagem para comparecer ao Departamento de Estado em Washington. É
tempo de guerra na Coréia e ele se imagina convidado para alguma missão
burocrática no sudeste da Ásia. No avião, medita bastante. Não tem interesse em
voltar às fileiras. Nutre boas recordações, mas já se readaptara a vida civil.
Tinha um bom emprego, era celibatário convicto e não pensava em constituir
família.
Embarca em um táxi rumo à Casa Branca. Lá, é conduzido a uma ala onde
aguarda para ser atendido. Admira a mobília retrô e as sancas neoclássicas do
teto. Um segurança vem tirá-lo da contemplação e o acompanha até uma porta
larga e alta com duas folhas que se abrem à sua passagem. Encontra-se agora
num amplo salão, tendo ao centro uma mesa retangular longa, guarnecida por
infinidade de cadeiras. Na cabeceira, ao lado da entrada, havia alguém sentado
de costas.
— Aproxime-se, mister Corey.
Corey avança.
— Com licença, mister…
— Walters! Está me estranhando, soldado?
– Major!
– Major, não. Mais respeito, coronel!
Ao mesmo tempo que fala, levanta-se e estende a mão para cumprimentá-
lo, sendo correspondido.
– Sente-se. Temos muito a conversar.
Passados três meses, está novamente em Washington, prazo que a CIA
lhe dera para livrar-se de todos os compromissos e retornar à capital. Junto a
outros veteranos escolhidos, fará parte de um grupo de elite que, após
treinamento específico, atuará nas Américas Central e do Sul como adido à
Embaixada dos Estados Unidos.

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A defecção de Fidel Castro e o fracasso da invasão da Baia dos Porcos
creditados a CIA, fizeram com que a inteligência americana adotasse uma
abordagem diferente, recrutando novos agentes para agir no hemisfério sul.
O próprio Cel. V. A. Walters, adido militar no Brasil, o indicara para atuar
no país. Apesar de não atender um dos principais requisitos, falar o português,
ele era fluente em espanhol.
O ex-agente do comércio exterior animara-se com a perspectiva de atuar
no gigante do sul. E já imaginava o Carnaval, Copacabana, a moderna Brasília e
a Amazônia. Tudo regado com um delicioso café.
A adaptação ocorrera como ele imaginara. Em pouco tempo, o adido se
entrosara à vida do Rio e já utilizava um razoável portunhol.
Conhecera e fizera valiosa amizade com Valter Caldas, militar da reserva
e elemento importante do INAD.
Sua primeira missão seria monitorar as atividades da organização,
mantendo a CIA a par das atividades desenvolvidas. O novo amigo, mesmo
sabendo e aprovando o caráter alienígena dos recursos, não gostaria de saber
deste monitoramento. O agente infiltrado teria que obter informações sem
despertar suspeitas, principalmente no trato com um ex-militar.

O fã
– Alô, alô! Quem fala?
– O Rafa, não reconhece minha voz?
Maurício se lembra da última vez que se encontraram, do vexame que
passara. Culpa o amigo.
– Como é, não diz nada? Me deixa na mão, desaparece e não dá
satisfação. O que houve?
– Tá me gozando? Sabe muito bem porquê saí do circuito.
Rafael solta uma gargalhada.

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– Luz faz cada uma. Juro que não sabia quem era a amiga, se soubesse
não teria aceitado. Desculpe, amigo.
– Tá bem! Já passou. Porém…
– Ah, temos um programa para o fim de semana. Será em Itacuruçá.
– Tou fora! Quero nada com a Luz.
– Ha! Ha! Ha! Ela vai conosco. E leva aquela vedetinha que você admira,
a Silvana Silvan.
– Verdade? Então pode contar comigo. Mas, os comes e bebes, quem vai
financiar?
– Deixe comigo, lembra do fã? Ele, como sempre, vai providenciar.
Encerrado o papo, relembra o tal fã. Vidrado em Luz, ele não perde
nenhuma das sessões em que ela se apresente. É herdeiro de um fabricante de
salsichas e congêneres. Extremamente tímido, não ousa aproximar-se do objeto
de sua idolatria.
Amanhecer de sábado. A Mercedes Diesel 53 está parada na Praça XV.
Rafael, Maurício, Luz e Silvana estão impacientes. O fã já deveria ter chegado.
O que não demora a ocorrer.
O possante Thunderbird rabo-de-peixe estaciona paralelo à Mercedes. O
motorista salta e abre a porta traseira, expondo o patrão. Depois, retira alguns
pacotes do porta-malas e os transfere para o outro carro. Enquanto isso, algo
inusitado ocorre. Em pé, braço apoiado na porta aberta, Luz tira sua roupa e faz
uma pose diante do olhar extasiado do fã, postado no outro veículo. Concluída a
operação, as portas se fecham, os carros arrancam em direções opostas.
Segunda-feira. Maurício é assediado no primeiro intervalo do trabalho
para a esperada narração do fim de semana. Ao chegar, já anunciara que tinha
novidades: “Pois é, pessoal, antes de partimos para Itacuruçá, estivemos na
Praça XV e…”.

O candidato

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No final de 59 é deflagrada a campanha para a sucessão presidencial. A
linha oposicionista é liderada pelo deputado e jornalista Carlos Lacerda.
Apoiado pela União Democrática Nacional (UDN), ostenta o lema “O preço da
liberdade é a eterna vigilância” e adota a lanterna como emblema.
O partido não lograra êxito nas tentativas de atingir o poder, quer pelo
voto, com a candidatura Juarez Távora em 55, quer pela sedição militar
(Cachimbo e Jacareacanga), com manobras políticas abortada pelo contragolpe
do marechal Lott, nem por meio de chicanas jurídicas (tese da maioria absoluta).
Influenciada por Lacerda, que advoga apoio ao candidato Jânio Quadros
como forma de chegar ao poder, a UDN é atraída pelo “canto da Sereia” e
abandona o seu virtual candidato Juraci Magalhães, que melhor a representa,
para embarcar na corrente populista do bizarro “homem da vassoura”.
Na Convenção, a maioria esmagadora confirma Jânio como candidato,
apesar da sua difusa ideologia. A escolha obriga o INAD a modificar o
tratamento que até então adotara em relação a ele. Ao tempo em que passa a
exaltá-lo, promove uma insidiosa campanha para enfraquecer seu adversário, o
marechal Lott, forjando um documento onde os comunistas prestam apoio ao
seu partido como forma de indispô-lo com os empresários e com a Igreja.
Convencidos pela eloquência de Lacerda a respeito da fidelidade do
candidato, que o mesmo não teria como governar sem o apoio da UDN, confiam
em ter uma maioria dócil no Congresso em face de mobilização do INAD.
Antes constantemente açoitado nas páginas da Democracia em Ação,
Jânio passa a ser exaltado pelos mesmos articulistas como um líder democrático
e ferrenho defensor da probidade administrativa e do saneamento financeiro.
Com os políticos envolvidos na sucessão presidencial, a nova capital é
inaugurada e a antiga transforma-se no Estado da Guanabara. O final de
mandato do governo é marcado pelos esforços na consolidação de Brasília e nas
transferências dos órgãos de apoio aos poderes Executivo, Judiciário e
Legislativo.

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No INAD, graças às habilidades de Larouche, a imagem do candidato de
oposição, que estava desgastada junto as classes produtoras e aos círculos
militares, está em processo de franco resgate. Os pontos fortes do candidato,
como a probidade administrativa e o anticomunismo, são realçados, afastando os
empecilhos para a sua plena aceitação.
Por outro lado, o candidato da situação é inexperiente em política e alvo
fácil para o expert belga, que manobra para ligar seu nome aos comunistas e
afastá-lo do seu vice, João Goulart, mais popular e com melhor intenção de
votos.
Finalmente, a campanha eleitoral se polariza em torno dos dois
candidatos, o que é bom para os planos do INAD. Para confundir ainda mais o
eleitorado, incentiva uma chapa fictícia, popularizada como “dobradinha JAN-
JAN” (Jânio-Jango).

A frustração
A insistência em esmiuçar suas atividades nos fins de semana, leva
Maurício a certeza que Ilse deseja mais do que saciar uma curiosidade. Não há
como entender de outra forma esse desmedido interesse por suas aventuras
suburbanas.
Certo dia, ao findar o expediente, a austríaca o interpela: “Não se vá.
Precisamos ter uma conversa”. O sorriso esboçado quando ela proferiu a frase,
enche de esperanças o deslumbrado dançarino. Resolve ficar. Quando
finalmente estão sós, ela, geralmente imperiosa, demonstra inibição, como se o
que fosse falar pudesse ser mal interpretado: “Maurício, saiba que admiro a
maneira como vive…”. Ele procura deixá-la à vontade e mantém certa distância.
“Tenho um pedido a lhe fazer. Caso atendida, serei grata”. Ele se controla. Não
deixa transparecer a ânsia que o domina. “Sim! Confie na minha discrição”. Ilse
retoma: “Sendo assim, vamos ao assunto. Já deixei escapar o quanto o meu
marido é imaturo. Nós nos conhecemos quando ele mal saíra da adolescência.

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Da vida, só conhecia as privações e os horrores da guerra. Fui sua primeira
namorada e logo nos casamos. Confidencialmente, ele é… Como direi?…”.
Maurício não ousa completar a frase. “Infantil! É isso. Ele é infantil. No entanto,
acredito que você pode ajudá-lo”. Ele se espanta. “Eu? De que maneira?”. Ela
acrescenta, suave: “Você tem vivência. Sabe lidar com as mulheres. Possui
intimidades variadas…”. Maurício, decepcionado, intervém: “E daí?”. Ela
prossegue: “Daí? Tenho falado muito com ele a seu respeito. Gostaria que vocês
se tornassem amigos, que o apresentasse a algumas das suas conhecidas do
teatro-revista. Estou disposta a financiar algumas aventuras em que ele tome
parte”. Sentindo o repentino abatimento dele, complementa: “Posso contar
contigo?”. O frustrado candidato a amante promete pensar no assunto e dar-lhe
uma resposta em breve. “Até amanhã, dona Ilse!”. Despede-se secamente.
Desde então, Ilse nota que ele não é o mesmo, que a trata com cerimônia e
não toca no assunto da conversa a sós. Apesar de chefe, ela sempre o tratou de
igual para igual. Estranha sua formalidade recente. Em represália, ela resolve
tratá-lo com o rigor reservado aos demais. Questiona seus presumíveis atrasos e
falhas no serviço, espera que, assim, ele se decida aceitar a proposta que lhe
fizera.
Nada muda, a atitude dele se mantém a mesma. Magoada, ela lhe cobra
maior controle do serviço externo, diz para não mais aguardar na agência as
provas para revisão, que está obrigado a realizá-la nas gráficas. Com essa
situação, ele se torna mais e mais taciturno. Sente-se revoltado ao saber da
intenção dela em transformá-lo em babá do marido.
Ela só não pedia a dispensa de Maurício por que Ivon e Pacheco estavam
satisfeitos com os seus serviços. Se dependesse do presidente, o funcionário
adaptado à equipe só ia embora se quisesse, pois ele detesta mudanças quando a
máquina está funcionando a contento. Como Ilse não suporta mais o clima
criado entre eles, aguarda a primeira oportunidade para entregar sua cabeça na
bandeja.

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Quarenta minutos de atraso. Para Ilse, é chegada a hora do “xeque-mate”.
Ela o chama reservadamente: “Que houve?”. Calmo, ele a cumprimenta: “Bom
dia. Passei na gráfica ontem, mas já terminara o expediente. Retornei hoje cedo
para fazer a revisão, face a nossa urgência”. Ela franze a testa em sinal de
descrença. “Vou telefonar para confirmar o que diz!”. Maurício explode: “Que?
Não acredita? Se ligar para a gráfica, peço demissão!”.
Ela nada diz. Pega o aparelho e disca. Olhar fixo nele. Confirmado o que
ele dissera, um pouco perturbada, pede desculpas. Ele faz menção de se retirar.
“Aonde vai?”. Sem se virar, ele responde: “Vou subir e pedir demissão!”. Ela se
descontrola. Pensa na reação de Ivon quando souber o motivo. “Por favor, ouça-
me!”. Levanta-se e se interpõe entre ele e a saída. Com voz candente, suplica-lhe
que a perdoe. Apesar de perplexo com a humildade dela, não cede. Desvencilha-
se e escapa, batendo a porta. Foi a última vez que se viram.

O nazista
A guerra fria atinge o clímax em meados de 61. O muro de Berlim
consolida a cortina de ferro no leste europeu.
Nos jornais do mundo inteiro, o muro é manchete. No seu pequeno
apartamento, Franz lê os jornais, assiste aos noticiários da TV e se revolta:
— O Führer tinha razão, a civilização ocidental está ameaçada!
Por outro lado, sente-se reconfortado. O tempo confirmara que lutara do lado
certo. Esquecera os sofrimentos que o 3º Reich submetera à humanidade, o
genocídio, a destruição, a negação dos direitos humanos. Vivera sempre entre
duas concepções de vida: uma imposta pela formação totalitária e a outra legada
pela sensibilidade de artista. O muro, violentando o direito de circulação do
povo alemão, devolve-lhe o orgulho incutido na juventude nazista.
Relê o noticiário. Nervoso, amassa o jornal e atira-o a esmo. Dirige-se ao
pequeno bar no canto da sala, retira uma garrafa de conhaque, abre, enche o
copo e põe-se a beber. Repousa o copo. Dirige-se ao grande armário, onde

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guarda as relíquias da guerra, em cujo fundo o galhardete da cruz gamada,
símbolo do nazismo, emoldura o retrato de Adolf Hitler.
Pousa os olhos em seu uniforme cinza. O dólmã com a faixa vermelha no
antebraço esquerdo, onde o círculo branco guarnece a suástica negra. Medalhas
concedidas em campanha conferem atos de coragem. Pequenas lembranças dos
países ocupados. O bibelô francês, o cachimbo holandês, a garrafa ainda selada
de vodka polonesa e o ícone russo. Aqui estão suas botas lustrosas e o que mais
lhe emociona, a magnífica Luger 9mm, mantida sempre lubrificada e carregada.
Admira mais uma vez o pequeno museu. Afasta-se, deixando as portas abertas
como se desejasse libertar as testemunhas mudas do passado. Retorna ao copo.
Bebe até esvaziar a garrafa. Após isso, cambaleia em busca da cama e desaba.
O sono lhe traz imagens que desejara esquecer. O professor o chama ao
quadro. Incita-o a escrever frases exaltando a grande Alemanha. Já adulto, na
caserna, não consegue divisar as fisionomias dos companheiros. Ouve a
instrução do sargento: “Mire bem no alvo. Imagine que é um schwein* francês”.
Agora, perfilado na Wünderplatz, a voz hipnótica do führer faz-se ouvir: “…
Bombe mit bombe vergolten!”. Novamente muda o cenário. Momento de trégua
no front. A rádio transmite a alocução do ministro da propaganda, Dr. Goebbels,
nomeando os alemães defensores da Europa. Novamente na Wünderplatz, o
führer encerra o discurso: “…Was nun?”. A multidão delira: “Sieg! Sieg! Sieg!”.
Franz rola na cama e desperta. Ergue seu dorso, gesticula e grita: “Sieg! Sieg!”.
Levanta-se. A brisa da madrugada penetra no quarto através das janelas. As
cortinas ondulam suavemente. Tonto, caminha para o banheiro.
Após o banho, senta-se na beira da cama ainda despido e põe-se a meditar.
Vem-lhe à mente as imagens da noite. Tão nítidas! As vozes, ainda as ouve.
“Kraft durch furcht”. Hipnotizado, caminha na direção do armário, repositório
dos seus fantasmas, cujas portas permanecem abertas. Retira o ainda impecável
uniforme e o veste, movido por ordens subliminares. Calça as botas, abotoa o
dólmã. Olha-se no espelho. Desilusão! Não tem mais o porte altivo de soldado.

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Retorna às suas relíquias. Na fotografia desbotada pela luminosidade dos
trópicos, o führer parece sorrir. Um sorriso incomum. Passa a mão
respeitosamente sobre a suástica no antebraço. “O traje não está completo”, diz
para si. Falta o käppi. Ajusta-o à cabeça. Ato contínuo, pega a Lüger (velha
companheira), acaricia o cabo, empunha, engatilha e mecanicamente a alça à
altura do ouvido. Ergue o braço livre na saudação nazista. “Heil, Hitler!”
Pressiona o gatilho. O estampido ecoa no pequeno apartamento. Sob o olhar
cúmplice do führer, o corpo de Franz tomba e se estende imóvel no tapete.

O ausente
A morte de Franz, como não poderia deixar de ser, é assunto na
Connection. As circunstâncias do fato, sugeridas pelas fotos dos jornais: em
primeiro plano, o corpo estendido uniformizado, no braço a faixa vermelha com
a suástica negra em fundo branco. O armário aberto, deixando entrever a efígie
do Führer. O quadro exposto, para quem o conhecia, gera perguntas sem
respostas definitivas: Certa vez lhe perguntaram por que tantos anos radicado no
país e não se naturalizava. Seu rosto iluminou-se e respondeu, num misto de
arrogância e orgulho: “Serei sempre um alemão!”. Repetia dona Martha de
momento a momento, numa loquacidade incomum em se tratando dela.
Ilse possuía algumas afinidades com o suicida e demonstrava-se abalada
com o desfecho. Comunicavam-se muitas vezes em alemão. Havia momentos
em que ele era mais social. Quanto à Olga, a quem a presença alemã despertava
lembranças dolorosas da infância e dos parentes sucumbidos nos campos de
concentração, nada comentou. Aparentemente, o fato não alterara sua rotina.
Com Pacheco, o arte-finalista tivera um bom relacionamento profissional.
Na diretoria, os comentários giram em torno dos elementos nazistas
destacados nas reportagens, desnudando a complexa personalidade do morto. A
ordem superior é para que se tomem providências para um digno sepultamento

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por conta da agência, visto que, presumivelmente, o mesmo não tinha parentes
ou amigos no Brasil.
Prevalece para todos a imagem de que Franz sempre fora um nazista
saudoso dos triunfos de outrora. E, como tal, morrera. Ninguém percebera o
conflito moral que durante anos acompanhara e torturara o antigo membro da
Jugenbann nazista e garboso ex-soldado da Wehrmacht. Ao deixar a Alemanha,
tentara distanciar-se do passado. Não conseguiu. O que o levou à solução final.

A renúncia
A UDN consegue eleger o seu candidato à presidência. No poder, Jânio
desdenha a orientação partidária. Age por conta própria. Seu governo populista e
de esquerda é a negação dos princípios do partido. Logo, o INAD passa a atacá-
lo de maneira insidiosa. Tachado de alienado pela solidão de Brasília, de louco,
mau- caráter etc.
Suas atitudes confirmam tudo aquilo que pejorativamente dizem dele.
Procede uma série de atos bizarros e inconsequentes: proibição de briga de galo
e biquínis, comunica-se com os ministros e demais auxiliares por meio de
bilhetinhos, impõe nos altos escalões do funcionalismo o uso do blusão bege
com quatro bolsos e mais tarde talvez impusesse as bermudas como na Índia
colonial. O certo é que se torna um peso para a UDN, que, no afã de galgar o
poder, preterira o senador Juraci Magalhães, candidato natural do partido.
As cobranças são rapidamente dirigidas ao jornalista, agora também
governador da Guanabara, Carlos Lacerda, avalista da sua fidelidade. Lacerda se
incorpora às pressões da mídia e lança todo o seu arsenal retórico sobre o ex-
correligionário. Como ocorrera em ocasiões anteriores, sua oposição gera grave
crise política, culminando com a renúncia do Presidente em documento breve e
lacônico:

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“Ao Congresso Nacional, nesta data e por este instrumento, deixando com
o Ministro da Justiça as razões do meu ato, renuncio ao mandato de Presidente
da República”.
Com a renúncia, resta ao INAD empenhar esforços para impedir a posse
do vice-presidente João Goulart, que, por ironia, de acordo com o sistema
eleitoral vigente, pertence aos quadros do partido opositor. Ainda sob o
impacto do gesto teatral de Jânio, não há uma estratégia política definida e a
palavra final deve ser dada pelas Forças Armadas.
A situação torna-se confusa. Alguns advogam o cumprimento da
Constituição, que seja dada a posse ao vice; outros, pelo seu impedimento ou
por novas eleições imediatas.
Com a reação enérgica do então governador Leonel Brizola, apoiado nas
brigadas do Rio Grande do Sul e no 3º Exército, faz-se uma pausa para reflexão
e, como acontece em iminentes confrontos armados, a criatividade de nossos
políticos fala mais alto: a Emenda Parlamentarista contenta a todos e garante a
posse de Goulart à Presidência.
Pela avaliação da INAD, a situação não está de todo perdida. Aproxima-se
a campanha para as eleições parlamentares de 62, onde 2/3 do Congresso será
renovado, assim como oito governadores estaduais e outros tantos prefeitos,
deputados estaduais e vereadores. A estratégia é eleger o máximo de candidatos
afinados com a organização para que se imponha o primeiro-ministro.
Enquanto as eleições não se realizam, com a ajuda do senador aliciado,
consolida-se no Parlamento o lobby contrário à corrente reformista que apoia o
Presidente. Ao mesmo tempo, instala-se o Movimento Democrático Popular e
seus respectivos diretórios nos estados. A partir daí, a intervenção no processo
político torna-se ostensiva em todo o país.
A origem das vultosas verbas começa a ser questionada no âmbito da
própria organização, cobrando saber os nomes dos doadores. O bloqueio das
reformas comprova a eficácia da ação conjunta do senador e INAD.

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Nas proximidades dos locais das votações mais importantes, a presença de
Coutinho com a indefectível mala preta é constante.
Realizadas as eleições, o resultado evidência a intervenção do poder
econômico por meio do fortalecimento dos lobbies, bem como o crescimento da
bancada antirreformista. A suspeita de violação da lei eleitoral leva o Congresso,
apesar da forte oposição, a investigar as ligações INAD/MODEP/Connection.

O reencontro
Presença constante nas dependências da embaixada americana no Rio,
Ilse, sempre elegante, assiste filmes, ouve palestras e frequenta exposições. No
momento, sua atenção está voltada para a mostra de arte gráfica publicitária
montada no saguão.
A esbelta loura circula pelos estandes anotando e consultando catálogos.
Seu porte desperta atenção. Ao vê-la, Phil se sobressalta-se. Parece-lhe familiar.
“Hum! Óculos estilizados, andar elegante… Será possível?”. Chama um
funcionário. “Tom, conhece aquela mulher?”. O rapaz focaliza a imagem.
“Deixe ver. Ah, Sim! Ela é frequentadora assídua das nossas atividades. Até
preencheu minha ficha para envio de publicações e convites”. Phil dissimula sua
emoção. “Me passe a ficha, rápido!”. Assim que a recebe, toma conhecimento
do conteúdo e a devolve, excitado.
– Frau Ilse?
Ela estremece ao ouvir o seu nome pronunciado com intimidade. Vira-se.
“Sim! Ilse Griese...”. Pretendia dizer mais alguma coisa, mas cala-se. Examina
aquele rosto másculo. Seus lábios se entreabrem num sorriso: “Phil! Phil Corey!
Que surpresa!”. Ficam imóveis até que, cerimonioso, o americano toma sua mão
e a conduz a outro salão menos concorrido, guarnecido com confortáveis
poltronas. “Sente-se, temos muito que conversar”. Atônita com o inesperado
encontro, acomoda-se. “Como chegou aqui? O que está fazendo?”. Phil,

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emocionado, atropela as palavras. Tinham tantas coisas pra falar àquela tarde
que resolveram se deslocar para um restaurante.
Não é comum ela retornar tarde. Quando isso acontece, Carl não lhe faz
perguntas. Entende que mais compromissos a retenham depois que se engajara
no INAD.
Passa a noite insone, agravada pelos roncos do marido. O reencontro e seu
desdobramento a deixaram excitada. Não por amar Phil. Não o amava. Era outra
agora. Amadurecida, não deixar-se-ia levar pela emoção. Seu instinto lhe dizia
que ele continuava o mesmo egoísta do passado, porém isso não a incomoda.
Ilse tem certeza que essa aproximação lhe trará bons dividendos no futuro.

A instituição
– Além dos questionamentos internos, acrescente-se a pressão da
imprensa e os pronunciamentos no Congresso a respeito da origem dos recursos.
Sentado, Caldas ouve em silêncio.
– Temos que tomar providências urgentes. Só não sei quais.
Caldas se levanta lentamente, contorna a mesa do chefe e, na pose
costumeira de quando apresenta seus criativos textos, exclama: “Sei como
resolver”. O outro responde, fleumático: “Como? Não é fácil!”. Caldas volta a
se sentar. Explica que a solução é incentivar a criação de outra organização com
as mesmas características, mas financiada pelo empresariado nacional, que já
teme os avanços da esquerda. Locher aplaude a ideia. “Não perderei tempo, vou
contatar as lideranças empresariais e dar todo o nosso apoio para a concretização
da nova organização”.
Desse modo, é criado em São Paulo o Instituto de Pesquisas e Ação Social
- IPAS, apoiado pelo INAD e financiado por empresários e outros segmentos da
sociedade. Nada misterioso ou oculto. Tudo transparente como convém à
democracia.

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O INAD continua nas tarefas escusas, no aliciamento dos meios de
comunicação e no espúrio apoio financeiro aos parlamentares. As duas
organizações não se atropelam. Pelo contrário, completam-se. As elites estão
coesas e prontas para barrar o avanço das esquerdas e o perigo que representam
para a livre iniciativa.

O vernissage
Liberado pela Connection para comparecer à retrospectiva de seus
quadros na Galeria Álvares Penteado, em São Paulo, Pacheco é interpelado por
Olga, que deseja a todo custo acompanhá-lo: “Não é possível. O que vai alegar à
direção?”, ele questiona. A ciumenta amante procura aparentar naturalidade.
“Direi que vou preparar um press release da exposição para a agência. É
interessante que os clientes saibam que nosso laureado funcionário continua
produzindo arte”. o despeito expresso na frase não o abala. “O presidente não
gostaria de saber que sua eficiente e insubstituível secretária particular viajará
para fazer um simples press release. Na certa, escolheria um estagiário. Além do
mais, minha mulher organiza a exposição e já está lá…”. Olga torna-se
agressiva: “Sua… sua mulher? Já estou farta de saber que ela zela pelos seus
interesses, que é competente, sabe lidar com os marchands… Chega!” Pacheco
retira-se estrategicamente, esquivando-se da saraivada de lápis, pincéis, potes de
tinta e toda a parafernália sobre a sua prancheta. Passada a crise, ela se contenta
em aguardar a sua volta, remoendo-se pelo êxito que será creditado à outra.
Sucesso esperado: artístico, financeiro e social. Tudo graças à qualidade
do artista e à organização da companheira. O que seria do Pacheco artista sem o
espírito prático da esposa Norma?

A imagem
No laboratório do INAD, a arte de Jean Larouche prossegue na
manipulação das imagens, sempre utilizando as mesmas fontes: fichas do

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histórico do cidadão, suas amizades, seus inimigos, seus hábitos etc. Com os
elementos coletados em mãos, o belga está inteiramente apto. Age como um
publicitário que estuda o produto para projetar uma campanha ou o escultor que
modela a matéria bruta para criar sua obra. De acordo com os objetivos a serem
alcançados, construir ou destruir reputações, elevar mediocridades a sumidades
e vice-versa. Em se tratando de empresas, quando prósperas viram salafrárias;
quando não, impérios.
Abre a gaveta do arquivo e sorri quando retira a pasta encimada com o
nome Brizola, Leonel de Moura. Percorre a ficha recheada de dados, estaciona
nas observações finais:
1. Sotaque da fronteira: não explorar
2. Vida conjugal: estável
3. Probidez administrativa:
4. Capacidade de Liderança:
5. Ideologia: esquerda
6. Filosofia de Governo: centralizadora
7. Afinidade: Fidel Castro
No caso em evidência, o objetivo é criar uma imagem negativa. O
governador gaúcho tomara a iniciativa de encampar a Telefônica Estadual
pertencente ao trust Bond and Share. De acordo com os informes da CIA, o ato
pode gerar uma epidemia nacionalista como fora a campanha do “Petróleo é
nosso”. Além do mais, o governador tenta encampar a empresa de energia no
estado, também de grupo privado americano. O sorriso do belga se explica pela
satisfação de ter achado o ponto de partida para atingir a imagem do ativo
político.
A cúpula da organização está reunida para ouvir a exposição de Jean
Larouche. Sua fama de ser uma fusão de Goebbels e J. J. Hoover no que tinham
de melhor, excita os presentes.

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– O homem é gaúcho. Em termos históricos, o gaúcho apresenta-se como
extremado, não descartando a necessidade da luta armada para atingir seus
objetivos. Ligado por formação aos caudilhos uruguaios e argentinos, cujos
êmulos no Brasil são Flores da Cunha, Batista Luzardo, João Alberto e, o maior
de todos, Getúlio Vargas.
O caminho trilhado por Larouche é bem recebido pelos ouvintes. Ele
prossegue: “Portanto, senhores, devemos ressaltar neste homem a figura do
caudilho pouco afeito ao jogo democrático, capaz de incendiar o país se
contrariado em suas diretrizes”.
Após a explanação, é passada aos presentes um resumo dos pontos
principais a serem abordados na campanha contra o governador, batizada de
“Operação Caudilho”. Nas publicações do INAD e seus aliados, toda vez que
citado o nome Brizola, ele será acompanhado do adjetivo caudilho.

A informante
O reencontro com o antigo amor revive o cenário do pós-guerra, mas que
logo foi desfeito quando reconheceram que não eram mais os mesmos. O
treinamento para a missão deixara Phil capacitado para cooptação de novos
agentes. Quando conversou com Ilse e descobriu que ela era da Connection e,
por extensão, responsável pelo departamento de propaganda do INAD, sentiu
que a sorte estava do seu lado.
Não poderia lhe ocorrer coisa melhor. Em suas mãos estava a melhor
informante dos bastidores da organização, Ilse. Notara a mulher audaciosa que
ela se tornara e compreendeu que isso lhe seria bastante útil.
As visitas dela à embaixada se tornaram mais assíduas. Nessas ocasiões,
mantinha longas conversas com o agente. Ela o imaginava membro do corpo
diplomático. Phil consegue torná-la sua informante utilizando como pretexto a
necessidade do governo americano de proteger suas empresas no exterior e,
também, evitar que as atividades delas causassem dano à política de boa

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vizinhança. Muitas dessas empresas tinham negócios com a Connection. Daí, a
preocupação em saber como se comportava a agência e sua extensão, o INAD.
A publicitária, antevendo os possíveis desdobramentos das suas atividades
ligadas a um diplomata dos Estados Unidos, ponderou que, caso a situação
política no Brasil se tornasse perigosa, ele poderia ajudá-la para que ela e o
marido se transferissem definitivamente para a EUA.
“Talvez devesse utilizá-la como agente”, imagina Phil toda vez que recebe
os detalhados informes de Ilse. Graças à parceria, desistira do assédio à Caldas
para obter informações, evitando assim os riscos de despertar suspeitas. Os
bastidores da organização torna-se um livro aberto para a CIA.

O descontente
Transtornado, Domingues amassa nervosamente o jornal que acabara de
ler. Irrita-se com os artigos que sistematicamente levantam suspeitas relativas
aos financiadores do INAD. Vêm-lhe à mente as evasivas de Ivon Locher às
solicitações dos nomes das empresas e das pessoas influentes que afirma
fazerem doações ao Instituto. Como tesoureiro da organização, sente-se
frustrado pela falta de confiança. Como administrar recursos vultosos utilizados
para objetivos políticos sem o conhecimento da origem dos mesmos? Na
próxima reunião, levantaria a questão de uma vez por todas.
O conselho do MODEP reúne-se. Otimista, Locher abre a sessão
relembrando o êxito obtido na mobilização que precederam as eleições. Em
seguida, o presidente da facção, coronel G. J. Barbas, expõe a situação das
seções estaduais. Chega a vez do tesoureiro demonstrar a movimentação
financeira. Tudo caminha para o final de mais uma reunião rotineira.
– Senhores, estamos encerrando. Alguém tem mais algo a acrescentar?
Domingues, que acabara de concluir sua parte, levanta-se.
– Dr. Locher, pode nos dar uma informação?
– Pois não!

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– Quando teremos acesso aos nomes dos financiadores?
Com um ligeiro movimento de cabeça, demonstrando seu
descontentamento, Ivon responde: “A pergunta fica bem em reunião do INAD,
onde já reiterei que, quando chegar a ocasião, os nomes dos nossos abnegados
doadores estarão à disposição”. O tesoureiro insiste: “Pelo menos, nós do
Conselho podíamos…”. Ivon se irrita: “O senhor está se tornando
impertinente!”. O coronel intervém: “Senhores, não interessa de onde vêm os
recursos. O importante é o fim a que se destinam. Cessem a obsessão por nomes,
por favor. Tratam-se de democratas financiando a luta contra o comunismo. É o
que basta.”
Encerrada a reunião, Domingues disfarça seu inconformismo e
acompanha o grupo no elevador. Para eles, o incidente poderia estar encerrado,
mas o tesoureiro continuava não achando justo trabalhar para algo em que se
acredita e não ter informações primordiais a seu respeito. Se, como especulam,
as origens dos recursos forem espúrias, ele não cooperará mais. Como
democrata convicto, considera grave que os comunistas recebam ajuda
financeira externa. Não incorreria num ato que condena.
Após saírem, os conselheiros Locher e Barbas conferenciam, aferindo os
estragos que a insistência do tesoureiro pode provocar caso o assunto extrapole o
âmbito da organização.
– O melhor é afastá-lo!
– Não tenho certeza coronel. Ele sabe muito. Pode sentir-se humilhado e
abrir a boca.
– Temos que correr o risco.
Ivon se levanta.
– Temos que agir o quanto antes, isto não pode continuar!
– Sim! O que podemos fazer?
– Como militar, o senhor é que deveria aconselhar-me.

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O atentado
Após uma noite maldormida, Domingues resolve definir a situação de
uma vez por todas. Resoluto, chega ao edifício Partenom e se dirige ao décimo
pavimento, onde a organização e a Connection compartilham do mesmo espaço.
Olga o anuncia: “Dr. Locher, o senhor Domingues”. Ivon se surpreende, mas se
refaz de imediato. Desvia o olhar para a janela envidraçada e diz, com desdém:
“Faça-o entrar”. O tesoureiro adentra a sala. “Olga, deixe-nos a sós, mas, antes,
providencie cafezinho para nossa visita e chá para mim”.
– Sente-se, relaxe e diga o porquê da visita.
– Bem, senhor, vamos ao que interessa.
– Isso!?
– O senhor sabe o que me traz aqui.
Ivon o encara.
– Quero saber os nomes.
– Como já disse em outras ocasiões…
São interrompidos pelo copeiro, que põe na mesa do presidente a chávena,
o pequeno bule de chá e adoçante. Na mesinha de centro, a xícara de café, o
pires e pacotinhos contendo cubos de açúcar.
Locher mostra a Domingues uma relação onde os valores das doações
mensais são antecedidos de números. “Como pode ver, os números
correspondem aos nomes. O senhor os terá quando os titulares dos mesmos
autorizarem sua divulgação. Por enquanto, é suficiente que eu os conheça. Fique
sossegado. Seu trabalho é importante”. Domingues ouve com atenção e
desalento. “É, doutor, já que não mereço a confiança que minha posição requer,
peço minha demissão!”.
Locher já esperava, mas mostra estupefação: “Pense bem, seu
Domingues!”. O tesoureiro não hesita: “Já pensei. Meu pedido é irrevogável”.
Levanta-se e põe um envelope sobre a mesa do chefe. “Com licença!”. Sai e
fecha a porta.

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Passa-se uma semana sem que o tesoureiro compareça ao MODEP.
Recebera vários telefonemas ameaçadores, mas não dera atenção aos mesmos.
Não crê que a cúpula do INAD fosse molestá-lo. Sempre mostrara lealdade.
Saíra por divergências de princípios, não por motivos ideológicos.
Horas tardias, ruas desertas na zona norte do Rio. Domingues caminha
para o seu apartamento de solteiro. Uma limusine o segue. Saltam dois homens.
Vão em sua direção. Só os percebe quando um deles lhe dá uma gravata, o outro
agarra seu braço direito e tenta aplicar-lhe uma injeção. Refaz-se da surpresa e
grita por socorro. Os agressores se assustam com a profusão de janelas que se
abrem as luzes que se acendem. Sem consumarem os seus intentos, largam-no e
retornam ao carro que, em alta velocidade, desaparece na primeira esquina. A
partir desse evento, passa a resguardar-se. Recolhe-se cedo em casa e só
caminha pelas ruas no meio da multidão. Felizmente, nada mais lhe acontece,
parece que se contentaram em assustá-lo.

A reação
– Alô, Frederico!
– Quem fala?
– É o Eloy!
– Oh, Deputado! Há tempos não nos falamos!
– Deixa disso. Não sabe o que está acontecendo?
– O quê? O quê?
– Não se faça de inocente. O jornal anda meio esquisito, atacando minhas
posições no Congresso. A coluna do Talarico, uma das melhores, foi suspensa.
Que há? Mudando de lado?
– Não, nada pessoal. Sabe que o jornal andava deficitário. Tivemos que
arrendá-lo.
– Como? Para quem? Não ouvi falar da transação.

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– Bem vou abrir o jogo. O jornal foi arrendado à Connection, uma
empresa de propaganda.
– Sim, mas o que tem isso com a minha observação?
– É que os arrendatários são de opinião que você e o Talarico estão em
desacordo com a linha política apoiada pela empresa.
– Empresa de publicidade? Linha política? Não entendi nada. Ou melhor,
em se tratando da Connection…
Aborrecido, desliga sem despedir-se.
No Congresso, Eloy convida o deputado correligionário Rubens Paiva
para uma conversa reservada.
– Paiva, acabo de confirmar que o INAD, através do seu suposto braço,
apropriou-se de mais um jornal. Temos que tomar providenciais quanto a isso e
quanto a derrama de dinheiro que ocorre na campanha eleitoral, supostamente
patrocinada pelo mesmo.
– Não resta dúvida, mas o que fazer? Somente uma investigação
confirmará a derrama e apontará os responsáveis.
– Podemos solicitar a abertura de uma Comissão Parlamentar de
Inquérito.
– Ora, colega, bem sabe que durante campanha eleitoral não se consegue
criar CPI.
– Tem razão. E ainda temos de enfrentar a resistência dos deputados do
MDP.
– É o que digo…
Encerrada a conversa, a fisionomia de Eloy demonstra que ele não
pretende desistir da abertura da CPI. Apurar a origem dos escandalosos recursos
utilizados nas últimas eleições é questão de alta relevância política. Não será
fácil obter as assinaturas necessárias para a instauração de uma Comissão de
Inquérito, mas o pleiteante tem habilidade suficiente e conhece com
profundidade os meandros da política para aguardar o momento certo de agir.

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O fluxo de verbas do sistema Connection, INAD e MODEP continua
escudado na capacidade de obstrução do MDP e nas articulações do senador.

O teste
Aproximam-se as eleições ao legislativo e aos governos de alguns estados.
Políticos, notórias figuras do jornalismo, da literatura, do empresariado e dos
esportes estão engajados na política partidária, procurando um lugar ao Sol quer
no âmbito local quer no nacional.
Depois de ajudar a eleger Jânio Quadros e sofrer o golpe da sua renúncia,
o INAD se prepara para o seu grande teste: preencher câmaras, assembleias e
governos estaduais com seus aliados. Intenta, assim, constituir um poderoso
lobby político para imobilizar o presidente, os comunistas, os esquerdistas e os
chamados inocentes úteis.
Para atingir os seus objetivos, a organização já erguera e demolira
reputações, utilizara meios legais e ilegais, morais e imorais, ameaças aos
postulantes e aos eleitores e utilizara de filigranas jurídicas para inibir ou
eliminar candidatos indesejáveis. Fez uso de distribuição farta de recursos e
apoio logístico aos comitês simpáticos à causa. Compra de votos, suborno de
autoridades, espionagem partidária e aluguel de opinião dos meios de
comunicação. Corrupção do pleito e cerceamento da livre manifestação dos
cidadãos.
Palestras sobre a livre iniciativa, os males da intervenção do Estado na
economia e o perigo comunista são proferidas constantemente. Tanto Ivon como
Caldas falam aos militares na Associação dos Diplomados da Escola Superior de
Guerra e no Clube Militar. Às classes produtoras e aos demais segmentos da
sociedade, em suas associações. No afã de concretizar seus planos, o INAD
invade a área médica e a social, instalando postos de saúde e assistência com
atendimento gratuito e, por meio delas, aproveita para fazer propaganda política.

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No laboratório, o afã de eleger candidatos afinados com a organização
traz para o belga grandes responsabilidades. Depois de passar pelo crivo de um
conselho, as fichas dos candidatos aliados e dos opositores mais credenciados
lhe são enviadas para a definição da estratégia de campanha.
Como demonstração dos métodos adotados com os adversários, há o caso
do professor universitário homossexual, candidato a deputado. Discreto,
somente os íntimos sabiam da sua orientação sexual. Após espioná-lo durante
um período, Larouche forja um flagrante comprometedor. Temeroso do
escândalo, o infeliz renuncia ao pleito. Outro candidato, dono de uma origem
modesta, recebe a visita de um cidadão portando uma pasta preta e desiste de
concorrer. Um terceiro abandona a campanha em troca de uma providencial
bolsa de estudos no exterior. Assim, eliminam-se candidatos inconvenientes.
Aos persistentes, reservam-se funestos eventos: acidentes, perdas patrimoniais,
ameaças de sequestros etc. Na campanha difamatória, pequenos vícios tornam-
se insanáveis anomalias: o jogo, as mulheres e a bebida são
superdimensionados. Todos os meios são utilizados para aplainar os caminhos
dos candidatos apoiados pela Organização.
Com o resultado favorável à maioria dos seus candidatos, o INAD atinge
seu objetivo de reforçar no Parlamento o time dos antirreformistas. Acima das
legendas partidárias, há o comprometimento com a organização. Indiretamente,
constituem lobbies a serviço de seus interesses escusos e são guiados pelo
slogan “o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”.
A rede de informantes de Corey permite que ele controle e organize uma
relação dos colaboradores que, em caso de crise, permaneçam fiéis à orientação
americana. O agente está a par da infiltração comunista nos setores vitais do
país. Sua rede de informação cobre as Forças Armadas, os sindicatos e os
partidos.
Pretende transformar Ilse numa agente especial. Talvez, acredita,
posteriormente ela se tornasse membro direto da CIA. No momento, a

53
prioridade é cooptar alguém do baixo escalão da Marinha que possua voz de
liderança. O Serviço de Inteligência não encontrara ainda o elemento ideal,
alguém cujas qualidades e situação se enquadre no perfil do plano urdido para
deter o avanço comunista.

O marinheiro
No exterior, o endereço no Rio mais conhecido dos homens do mar, sejam
eles mercantes, marinheiros ou principalmente contrabandistas, é o Zica’s Bar,
na praça Mauá.
Ambiente profusamente iluminado e turvo pelo excesso de fumaça dos
cigarros, charutos e cachimbos. O burburinho da mistura dos idiomas é
interrompido por um repentino entrevero, envolvendo um marinheiro brasileiro
e um mercante yankee. Discussão áspera, os frequentadores se afastam, temendo
eminente corpo a corpo. Ofendem-se em inglês. O brasileiro leva desvantagem
com seu vocabulário restrito e a pronúncia hesitante.
Em um dos cantos, sentado, tendo à mesa a inseparável garrafa de
Canadian, Corey observa a cena. Conjectura: “Aquele é nosso homem. A falta
de domínio do idioma um do outro fora a única causa do mal entendido entre
aqueles homens do mar, sempre dispostos a resolverem os conflitos no braço”.
Antes que a situação se agrave, o adido se levanta, interpõe-se entre os
contendores e, habilmente, afasta o compatriota. Uma breve fala de Corey e o
mercante, sorridente, estende a mão ao marinheiro em gesto fraterno. Surpreso,
seu contendor retribui. Bebem juntos, observados pelo adido, que se recolhera
ao seu canto. Lá para as tantas o mercante se retira. Aguardando alguns minutos,
o agente convida o brasileiro à sua mesa.
Deitado, acompanhando as evoluções da fumaça de seu Phillip Morris,
Corey rememora os eventos da noite. Afinal, está próximo dos escalões
inferiores da Marinha. Tem em mãos o elemento certo. Mais uma vez a CIA
acertara na escolha.

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Identificara-se para Dalmo Reis como adido à embaixada. Sedimentada
uma confiança recíproca, confirmara o perfil do jovem: inteligente, admirava os
EUA e se esforçava para aprender o idioma. Sua promoção a cabo dependia
apenas da conclusão do curso como operador de sonar. Segundo o relatório da
Inteligência, tinha prestígio entre os seus camaradas.
As abordagens seguintes confirmam a possibilidade de introduzi-lo na
rede de informantes. Em breve concluiria o curso e receberia suas divisas. O
último estágio previsto seria em uma viagem de navio. Corey o obsequiara com
diversas revistas americanas. Durante as longas noites de vigília no mar, Dalmo
exercitaria a leitura. Corey aguardaria a sua volta para a cooptação definitiva,
considerada de suma importância depois da crise de mísseis que quase leva os
EUA à guerra com cubanos e soviéticos. As esquerdas, incentivadas pela crise,
intensificam as ações em todo continente. É preciso reagir rápido.

A maleta
Pela terceira vez no mês, Coutinho viaja para a Capital Federal. Além
dele, somente três pessoas sabem da sua missão: o chefe, Caldas e Nilson.
O possante Buick negro de Locher estaciona em frente ao Aeroporto
Santos Dumont. Denotando importância, Coutinho espera o motorista abrir a
porta, como faz com o patrão, e salta, abraçado à inseparável maleta preta
tamanho família, quase uma mala.
Em pleno voo, repassa mentalmente as instruções diretas da chefia. Eram
iguais às anteriores, mas não custava repassá-las. Teria de entregar aos
congressistas listados cheques, dinheiro, passagens e outros tipos de benesses.
No ato, deverão registrar a assinatura na lista para o controle das operações.
O astuto transportador é recebido em privado nos gabinetes. Julgam-no
importante e diretamente responsável pela presteza da entrega. Em razão disso,
sente-se poderoso e requisitado, situação que explora junto a Nilson. A

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cobertura do comparsa permite a ele agir sem suspeição. A confiança do chefe é
sua garantia de bons negócios.
Enquanto não descobre novas maneiras de aumentar sua participação na
prodigiosa cornucópia, aproveita-se do tráfego de influências junto a alguns
parlamentares. Faz solicitação de empregos, transferências e nomeações para
sinecuras de parentes e amigos, quase sempre com retornos pecuniários, troca de
favores ou prestígio para ele.
Os jornalistas que cobrem o Congresso já o identificam como “O Homem
da Mala”, ainda sem perceberem toda a extensão da sua atividade e conectarem
sua presença com os momentos decisivos das votações de matérias importantes.
No entanto, o grupo de sustentação do governo, por meio da Frente Parlamentar
Nacionalista – FPN, já notara a sua persistente figura e monitora os seus passos.
No momento, a grande preocupação do INAD é barrar a ascensão do líder
do governo, Santiago Dantas, a primeiro-ministro. A presença de Coutinho,
desconfia a FPN, deve de algum modo estar ligada ao fato.

O plesbicito
Adotado no momento de crise, o parlamentarismo, em vez de agilizar,
imobiliza as ações do governo. Não há condições partidárias nem institucionais
para que o sistema colegiado funcione. O Congresso, ao recusar o nome de
Santiago Dantas para primeiro-ministro, detona a crise no executivo.
O presidente apela para o plebiscito. A consulta popular para decidir entre
a continuação do sistema vigente ou a volta do presidencialismo se realiza com
grande entusiasmo popular. Como era esperado, o governo retoma os poderes
perdidos na ocasião da mudança do regime.
Imagina-se que o ambiente político se estabilizaria, o que não acontece.
Sentindo-se forte, João Goulart arrisca medidas temerárias e polêmicas:
promulga a Lei de Diretrizes e Bases, o Estatuto do Trabalhador Rural, visando
a reforma agrária, e a Lei de Remessa de Lucros, bem como incrementa a

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Política Externa Independente. As esquerdas e, principalmente, os comunistas,
antes cautelosos, saem a campo defendendo ostensivamente as reformas e
insuflando os sindicatos à ações de apoio as mesmas.
Os debates em torno das medidas extrapolam dos gabinetes partidários
para as ruas. Radicaliza-se. Ou se é a favor ou contra. O grupo a favor exige do
Congresso aprovação. O grupo do contra apela para as Forças Armadas, que,
apesar de não aceitarem a influência cada vez mais presente dos comunistas,
demonstram acreditar que o bom senso prevaleça. A Guerra Fria divide o mundo
em polos antagônicos.

O líder
As notícias dos jornais deixam Corey exultante. Fora instalada a
Associação dos Marinheiros e Dalmo eleito seu presidente. O paradoxo é que,
em Brasília, o Presidente Goulart também tem motivos de júbilo. A jovem
Associação é mais uma força de pressão para que se aprovem as medidas
polêmicas. Ao mesmo tempo, enfraquece os setores hostis das Forças Armadas.
O marinheiro está maduro para a abordagem definitiva. A Inteligência
dificilmente falha na ação de cooptação. Dizendo estimular o aperfeiçoamento
do aprendizado de inglês, Corey introduzira Dalmo às atividades na embaixada
com palestras, filmes e literatura anticomunista. Reservava sempre alguns
momentos para uma conversa onde explicava o combate que se desenvolve no
mundo entre a opressão e a liberdade, enfatizando a luta dos democratas para
além do nacionalismo.
À hora do entardecer, o Zica’s ainda não apreesentava o movimento
característico.
– Oh, Mister Corey! Posso me sentar?
– Yes. Sitting up! Temos muito que conversar.
Uma garrafa de uísque e dois copos eram as testemunhas do acerto entre
os dois homens. O certo é que, ao se afastarem, cada um levava uma impressão

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diferente do encontro. O Adido, por ampliar a sua rede e penetrar num setor
dominado pelas esquerdas, parte certo da efetividade do plano para neutralizar
Goulart e acelerar a ação dos militares descontentes com os rumos do Governo.
O marinheiro sai entusiasmado. Pensa em como estivera errado na maneira
como se enxergava. Agora, com a visão clara a respeito do mundo que vive, tem
como fazer algo realmente importante, apesar de considerar-se ainda
insignificante.
De hoje em diante, com o apoio de Corey, ele, um marinheiro de 1ª Classe
em vias de receber as divisas de Cabo, passará a exercer uma liderança agressiva
no comando da Associação.

O caudilho
Toda referência ao governador do Rio Grande do Sul passara a ser
precedida do adjetivo caudilho. Na ânsia de firmar a imagem negativa de
Brizola, o INAD não despreza suas oportunidades. Nos meios de comunicação,
o seu nome e imagem são objeto de superexposição. Faca de dois gumes, o
prestígio de Brizola extrapola do âmbito regional, expandindo-se por todo o
país.
Graças a Larouche, muitas lideranças esquerdistas emergentes abortam no
nascedouro. A Organização se esforça na formação e manutenção dos quadros
políticos alinhados ao seu esquema. Incentiva a criação de associações de apoio
à ações políticas e revigora as já existentes com incentivos financeiros. As ações
coordenadas pelo INAD dão consistência ideológica à direita e os seus
partidários tornam-se tão ativos quanto os da esquerda.
Uma investigação do Congresso só não prosperara por causa do bloqueio
do MDP e sua sustentação parlamentar, composta de políticos solidários e
influentes colaboradores, todos empenhados na cruzada contra o comunismo.
A ameaça vermelha é superdimensionada nos seminários, organizados sob
a tutela do CFR, em que os sinais “inequívocos” do perigo são apontados:

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1. Desapropriação de empresas privadas no sul;
2. Legalização do Partido Comunista em El Salvador;
3. Candidatos esquerdistas favorecidos em eleições no Peru;
4. Presidente simpatizante dos comunistas no Equador;
5. Presidente relutante no combate aos comunistas na Guatemala;
6. Jornais extrapolando da liberdade de imprensa e atacando os Estados
Unidos na República Dominicana; e
7. Presidente defendendo reformas de base e participação nos lucros das
empresas norte-americanas United Fruit e Standart Fruit em Honduras.

Nos mesmos seminários, o presidente Goulart é apresentado como o


Alexander Kerensky brasileiro, que, após a vitória das esquerdas, seria afastado,
acusado de conservador. Os comunistas instalariam um governo bolchevista
satélite da União Soviética. Esta pregação exerce grande efeito sobre a classe
média, que reage indo às ruas e participando de passeatas com o slogan “Deus,
Família e Propriedade”.
Com a polarização ideológica Direita x Esquerda, o INAD consegue
alcançar um dos seus objetivos: mobilizar a classe média.

A CPI
A persistência do deputado Eloy Dutra é recompensada. Empossados os
novos parlamentares, a CPI da Derrama é proposta, apesar da tenaz oposição do
MDP.
Manobras da liderança do Governo proporcionam a aprovação e a
participação majoritária na composição da Comissão. Logo no início dos
trabalhos, aparecem os indícios da subversão aos princípios democráticos.
Na organização, as reuniões da cúpula se sucedem. Antecipando-se às
conclusões, tentam apagar a origem dos recursos utilizados na campanha

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eleitoral com a queima de documentos comprometedores. Os diretórios dos
MODEPs são reformulados, sendo alguns fechados temporariamente. Para
complicar, surge o misterioso Grupo dos Onze, entidade paramilitar de origem
dúbia, supostamente inspirada pelo agora deputado Leonel Brizola.
Sob intensa guerra psicológica, o INAD vive em sobressaltos depois que
um telefonema anônimo denunciou haver na cesta de papéis do saguão de
entrada um volume com uma bomba relógio. Ação dos Onze, segundo o
denunciante. Constatada a existência do artefato ao se ouvir o tic-tac
característico, a área foi interditada. O episódio se espalhou pelo prédio e
adjacências. Acionaram a polícia, os bombeiros e os sapadores do exército.
Isolado o quarteirão, depois de uma cuidadosa operação antibombas o aparato
ficou a descoberto. Tratava-se de inofensivo despertador barato.
Telefonemas anunciando catástrofes, cartas apócrifas, boatos e ameaças
passam a fazer parte do dia a dia dos funcionários e dirigentes do complexo
Connection, INAD e MODEPs.
No Congresso, a CPI avança. Um ano após o malogrado atentado,
Domingues, no papel de ex-tesoureiro da organização, depõe. Seu relevante
relato estabelece:

1. O comprometimento de candidatos com a carta de princípios do INAD;


2. O número e o cargo de candidatos apoiados (oito a governadores,
duzentos e cinquenta a deputados federais e seiscentos a deputados
estaduais);
3. O patrocínio do INAD à publicação do tendencioso folheto “Assalto ao
Parlamento”;
4. Que a Connection patrocina vários programas de Rádio e Televisão para
o INAD;

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5. Que na recente campanha eleitoral, O INAD enviou ao MODEP de
Pernambuco cerca de trezentos e cinquenta milhões de cruzeiros e, aos de
outros estados, o total de trezentos e dezoito milhões de cruzeiros;
6. Que somente Locher tem os nomes dos financiadores do INAD.

Coligindo provas e depoimentos, a CPI fecha o círculo. As generosas


contas publicitárias da Connection se retraem até desaparecerem. O capital
alienígena não mais necessita do INAD após a eleição de forte contingente
antirreformista e a conscientização do empresariado e da classe média.
O INAD entra em colapso com a ação da CPI. O IPAS, sustentado pelo
empresariado, o substitui. Prevendo sua convocação, Locher viaja
repentinamente. Seu intuito é frear o ritmo dos trabalhos de investigação e
tentar, junto ao CFR, manter o fluxo financeiro, abruptamente estancado.
Depois de algum tempo no exterior, vive um melancólico retorno. Nada
conseguira. Apresenta-se à comissão. Exibindo arrogância, presta um
depoimento eivado de subterfúgios e negativas. Antes do relatório conclusivo, o
governo suspende preventivamente as atividades do INAD e do MODEP.
A aparente derrota, faz crer aos comunistas que estão fortes e poderosos.
Eles abandonam a cautela e passam a se expor sem receios. Para o CFR, com a
extinção da organização, a missão chegara ao fim. Resta à CIA continuar com o
plano de provocar a reação das Forças Armadas, açoitadas pela desobediência
hierárquica e pelo clamor popular.

O levante
Em Brasília, ocorre uma tentativa de sublevação dos sargentos da Marinha
e da Aeronáutica. O movimento é logo abafado. A ação teve inspiração e
objetivos nebulosos, aparentemente uma iniciativa da esquerda.
A situação chega ao limite. Encorajados pela suposta cisão nas Forças
Armadas, os comunistas expõem-se cada vez mais e partem para manobras

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arriscadas. Para os militares e a classe média, o momento é de apreensão. O
governo ostensivamente dá uma guinada para a esquerda.
Os movimentos militares são liderados em sua maioria por subalternos. O
único líder de patente superior é o almirante Aragão, dos fuzileiros navais. As
eclosões não têm origens definidas nem maiores desdobramentos, mantêm-se
isoladas. Permite-se indagar se a quebra da hierarquia não teria o objetivo de
despertar o brio da oficialidade.
Chamado a Washington, Corey participa das discussões sobre a real
situação política no Brasil, onde explica o posicionamento das peças no
tabuleiro, sua estratégia para ações. Explana sobre as manifestações populares e
o estímulo às sedições militares com o objetivo de provocar uma reação das
Forças Armadas. O exemplo cubano inquieta a alta cúpula da política
americana.
Retornando ao Brasil, o agente se surpreende com o clima áspero entre
governo e militares. Os acontecimentos se precipitam. Como membro do corpo
diplomático, não pode se expor, mas a ocasião é propícia para o que tem em
mente e não vai deixar de aproveitá-la. Urge contatar Dalmo discretamente. O
marinheiro é a peça chave na estratégia da CIA para o “empurrão” que lançará
os militares contra João Goulart.

A revelação
A situação é insuportável para Norminha, que se desespera e pensa ter de
agir o quanto antes. Seu caráter e personalidade não permitem que se imobilize.
A verdade é que Pacheco mantivera romances efêmeros e sem consequências
para a união do casal, mas, agora, ela se sente ameaçada. Pela integridade da
família, lançará mão de qualquer recurso.
Apelara para o diálogo civilizado e fora repelida pela rival com rispidez e
ironia. Quase sofrera agressão! No entanto, encontrara o seu ponto fraco. Norma
descobriu que Olga fora educada com princípios muito rígidos, transmitidos e

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cultivados pelos pais, dois imigrantes judeus aportados no Brasil nos anos
quarenta. Revelaria para a matriarca o relacionamento da filha com um homem
casado. Ainda por cima, um não judeu. Como prova, levará uma foto dos dois
amantes juntos.
No “Lar do Menor”, instituição mantida pela colônia judaica, as senhoras
israelistas se revezam em sua administração. Às quintas-feiras, Mirna Türber
comparece para cumprir as suas obrigações.
– Por favor, gostaria de falar com dona Mirna.
A jovem secretária fixa os olhos na senhora de semblante sério,
sobriamente trajada de branco, que dissimulando o nervosismo, sorri.
– Ela se encontra. A quem devo anunciar?
– Norma. Norma Pacheco. Ela não me conhece. Trata-se de assunto
pessoal.
A senhora Tüber chega em casa mais cedo que de costume. Não suportara
a cruel revelação. Como reagirá papa Hindel? Tem obrigação de pô-lo a par do
que ouvira. Juntos, trariam a filha à razão, perdoá-la-iam e dar-lhe-iam apoio
para que retomasse o caminho certo.
Olga estranha a recepção. A empregada fora dispensada mais cedo. Papa
e mama a conduzem ao pequeno oratório da casa. Inquieta, os acompanha,
prevendo algo grave. Oram. Encerrada a prece, seu papa solene exclama: “Filha,
com o espírito e o coração em comunhão com Jeová, vamos nos sentar à mesa
onde repartimos o ázimo, na alegria e na tristeza, para termos uma conversa”.
Longo, intenso e doloroso sermão, concluído quando, com as grossas
lentes embaçadas pelas lágrimas, a filha pede perdão aos pais. Deprimida,
refugia-se no quarto. É seguida por mami, que tenta consolá-la. Olga quer ficar
só. Relutante, a mãe respeita a sua vontade. Ela se retira e fecha suavemente a
porta, sob o olhar firme de papa Hindel.
Sentindo que se recuperara das emoções, Olga se levanta da cama e, como
se nada houvesse ocorrido, toma o desjejum com os pais. Ao sair, despede-se

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deles com ternura, prometendo resolver em definitivo a situação. Os Tüber
acompanham a filha até o carro e o assistem dobrar a esquina.
Luizinho atende o telefone. “É para o senhor, seu Pacheco”. Relutante,
Pacheco larga o lápis sobre a prancheta e atende. “Alô!…”. Escuta uma voz
conhecida do outro lado: “Querido, espero você logo mais no apartamento”. Ele
retruca: “Mas não tínhamos nada programado”. Olga não o deixa concluir a
frase: “Por favor, não falte”. E desliga.
Quase dezoito horas. Impacienta-se. Ela não ligara mais. Falava sério?
Disca para a diretoria. Informam que ela saíra cedo e não voltara. Sem telefone
no apartamento, resolve encaminhar-se para lá. Encontra um bilhete: “Espere-
me, beijos”. Senta-se no sofá. Uma pestana o ameaça. A chave gira na
fechadura. Ergue-se, impulsionado por molas invisíveis. Ela adentra. Abraçam-
se. Não há tempo para cobranças. Retira-lhe os óculos, liberta os belos cabelos
ruivos e a cobre de beijos. Retribuídos com frenesi e paixão.
Despedem-se. Ela não o acompanha. Usa como pretexto uma pequena
arrumação no apartamento. Dá-lhe um prolongado beijo. Parece querer eternizar
aquele momento. Quase ao término do jornal televiso das vinte horas, o locutor
noticia: “Uma tragédia acaba de ocorrer no centro da cidade. Mulher não
identificada se atira do terraço do edifício Marques do Herval. Segundo
testemunhas, teve morte instantânea. Maiores detalhes na edição…” Pacheco
não quis ouvir o restante. Num relance, ocorre-lhe que se trata de Olga.
Na congestionada rua Debret, o cordão de isolamento mantém os curiosos
afastados, enquanto a perícia trabalha em torno do corpo estendido no asfalto. A
vítima traz um bilhete preso nas vestes, onde pede perdão aos pais pelo ato e
declara que o gesto extremo fora fruto da depressão e da solidão. Assina Olga
Tüber.
Inconsolável, Pacheco não consegue fixar sua atenção no trabalho. A
imagem da amante se interpõe entre ele e o papel à sua frente. “Porquê?”. Ele se
pergunta a razão para Olga não lhe dizer o que a atormentava. Ao mesmo tempo,

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raciocina que ela pensara nele, não deixando nada que o envolvesse,
preservando-o da imprensa e dos curiosos.
Chocada com o desfecho imprevisto, Norminha nada comenta com o
marido. Tem consciência que se precipitara. Jamais imaginara que a rival,
orgulhosa, plena de si, deixaria se levar por um impulso autodestrutivo. Ela, a
esposa ultrajada, estava condenada a viver sob o peso da culpa.

O ocaso
Sem os catalisadores das contas generosas, INAD, MODEP e Connection
não têm mais como se manter. A rápida ascensão financeira não fora seguida do
respectivo aprimoramento técnico. Permanece uma pequena agência e, pior,
estigmatizada pelos fatos que protagonizara.
O extraordinário progresso da publicidade no país, fruto do
desenvolvimentismo dos anos JK, resiste ao atual período conturbado, mas exige
permanente atualização na área de marketing. A Connection não tem como
atender a demanda do mercado e acompanhar as demais agências. Seus
profissionais, defasados para o tipo de trabalho que executavam, ganhavam bem.
Como mantê-los? Como atrair novos clientes? E a má fama que granjeara com a
CPI? A única solução será firmar acordos trabalhistas com seu pessoal e
encerrar suas atividades.
Os funcionários egressos da Connection continuaram atuando na
publicidade. Com a ajuda de Corey e o conhecimento do mercado brasileiro, Ilse
trabalha na filial de uma agência americana e tem possibilidade de ser
transferida para a matriz em Nova Iorque. Pacheco atua em uma grande editora
em São Paulo. Caldas tornou-se assessor do governador da Guanabara. Coutinho
não teve dificuldades em arrumar nova agência. Dona Martha foi contratada
para um importante projeto editorial de preparação de uma enciclopédia.
Maurício se transferira para Brasília e trabalha na construção civil como
desenhista. Quanto ao sempre alegre Nilson...

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O Rei Momo
Segunda-feira de Carnaval. A multidão se posta diante do vetusto Teatro
Municipal. As austeras portadas, franqueadas aos foliões, contrastam com a
feérica alegria à sua volta. O evento máximo de salão da grande festa, o Baile da
Cidade! Carnavalescos e turistas cruzam caminhos nos amplos salões.
Admirando a suntuosa e colorida decoração, ensaiam os primeiros movimentos,
entoam as músicas de maior sucesso deste e de outros carnavais e ignoram o
silêncio da orquestra, que aguarda a chegada do prefeito, do Rei Momo e da
Rainha do Carnaval para a abertura oficial.
As fanfarras e os gritos dos populares anunciam a chegada da comitiva,
sempre em carro aberto do Corpo de Bombeiros como manda a tradição. O Rei
Momo e a Rainha do Carnaval, envoltos por serpentinas e confetes
multicoloridos, reverenciam e jogam beijos para seus súditos. O Prefeito
transpõe a entrada. No interior, a manifestação não é menor. Os foliões deliram
com o espetáculo pomposo, as pantominas e luxos reunidos. Os acordes da
marchinha-hino Cidade Maravilhosa anunciam a chegada dos três ilustres
cidadãos no salão. Deu-se início ao baile.
O grande momento é vivido em plenitude por Nobre. Sua composição de
Momo, juntamente aos enfeites e a iluminação, fazem parte da decoração do
ambiente nesta noite esplendorosa. Sente-se travestido de majestade como o
próprio espírito do Carnaval. Nunca o efêmero trono esteve tão bem ocupado.
A festa atinge o auge. Como sempre, nos bailes carnavalescos ocorrem
fatos inesperados. E este não fugirá à regra. Tumultos à entrada exigem a
presença do prefeito e do chefe de polícia. “Que houve?”, pergunta o edil.
– São as duas loucas que querem entrar, excelência!
– Loucas?!
– Sim, Luz Del Fuego e Elvira Pagã, fantasiadas de Eva e Iemanjá.
O Prefeito não entende o impasse.

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– São atrações! Mesmo que não tenham convites, deixem entrar. Darão
mais brilho a festa.
– Mas, excelência, elas estão praticamente nuas. Luz se cobre com uma
folha de parreira e a Pagã com uma rede. Mais nada!
O Prefeito reage.
– Escandalosas! Despudoradas!
E se dirige ao Chefe de Polícia:
– A ordem é prendê-las e só libertá-las no fim do Baile!
Os amigos procuram Nobre para interceder por elas. Confiam no seu
prestígio para contornar os melindres das autoridades e relaxar a ordem de
prisão.
No centro do salão, rodopiando envolvido pelos foliões, Momo esbanja
alegria, evolui graciosamente o quanto permite sua obesidade. Com dificuldade,
aproximam-se dele, chamam, buscam freneticamente a sua atenção, até que se
fazem notados.
Nobre faz menção de falar-lhes, a boca entreaberta sem emitir sons.
Então, as mãos comprimem o tórax, solta um gemido doloroso e tomba
fulminado. Prestam socorro imediato, livram-no dos apertos da fantasia e o
conduzem para dependências mais arejadas, onde o médico de plantão constata
que Nilson Nobre, o Rei Momo, primeiro e único, jaz morto.

O Potemkin
Final de 63. No comando da Associação, Dalmo, por sua atuação,
aparenta ser ardoroso defensor das reformas. Na Embaixada, protegido pela
imunidade diplomática, o seu mentor, a quem repassa informações, em pouco
tempo monta substancioso dossiê com os nomes dos principais articuladores do
movimento de esquerda na Marinha.
Confirmam-se as projeções do Pentágono sobre o perigo da
“cubanização” do Brasil. Caso se torne realidade, o seu Fidel poderá ser Jango,

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Brizola, algum general desconhecido ou o barulhento almirante naval Aragão. É
preciso despertar o quanto antes os chefes militares e a sociedade brasileira para
o perigo iminente.
A CIA repassa as soluções aplicadas em outros países do continente com
a intervenção velada dos Estados Unidos: golpe militar no Peru; quedas dos
presidentes Arosemena no Equador, Juan Bosch na República Dominicana e
Villeda Morales em Honduras. No Brasil, o método será mais sofisticado.
Do encontro sigiloso fora da Embaixada, Dalmo saíra decidido.
Imprevisível saber o que poderá acontecer. A CIA confia na sua liderança mais
do que ele próprio. Isso o fortalece.
Com extremo cuidado, conduz a caixa de filmes que lhe entregara Phil. A
sessão programada é parte importante do plano. Vários transtornos foram
contornados para estabelecer o lugar de reunião da associação. Seu aniversário
de fundação não fora comemorado na sede da Petrobras porque ministro da
Marinha não autorizara. No entanto, conseguira que o atuante Sindicato dos
Metalúrgicos franqueasse as suas amplas instalações.
Apesar dos temores, está obstinado a levar avante o que se propusera. A
exaltada reunião se realiza com discursos de apoio às reformas e críticas ao alto
comando da Armada. Dalmo profere a sua fala. Para encerrar, exibe o filme
russo O Encouraçado Potemkin, de grande significado para eles, marinheiros.
Na tela, as cenas iniciais galvaniza a plateia. Os atos de repulsa ao sistema
vigente à época, na Rússia, são acolhidos com palmas, gritos e assobios.
Ao tomar conhecimento da reunião ilegal, realizada sem a sua necessária
autorização, o Ministro da Marinha envia um contingente de fuzileiros para
prender os recalcitrantes. Contudo, a tropa de fuzileiros, contagiada por
discursos inflamados, adere à rebelião. Impotente e com receio de enviar mais
fuzileiros que poderiam apoiar os insurretos, o ministro apela ao seu colega do
Exército.

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Rapidamente um contingente se desloca e cerca os marinheiros, que já
contavam com a adesão de vários sindicatos. Os revoltosos só se entregam
depois da contemporização do Presidente da República.
Encaminhados a um dos quartéis do Exército, para desagrado dos seus
superiores, são libertados. Sob a liderança de Dalmo, organizam uma passeata
em ostensiva quebra da hierarquia militar.
Os fatos se sucedem vertiginosamente. Os ministros das duas pastas,
desprestigiados, pedem demissão. O presidente da associação é recebido em
audiência ministerial, configurando que o governo prestigia a desobediência.
O Almirante Aragão, solidário com os marinheiros, é carregado em
triunfo e recebe homenagens na sede da associação. Com a intencional
subversão da disciplina militar e o seu acobertamento por autoridades
governamentais, os escalões superiores das Forças Armadas não ficam
indiferentes. O plano, tão bem urdido nos escaninhos da Embaixada Americana,
começa a surtir efeito.

O Golpe
A rebelião dos marinheiros e a imediata adesão dos fuzileiros, assim como
o apoio dos sindicalistas, deixa o Estado-Maior das Forças Armadas em alerta.
As posições ideológicas estão polarizadas nos meios militares. Há os que
apoiam o presidente, e acham necessário ampliar os seus poderes para impor as
reformas, e aqueles que temem a possibilidade das esquerdas entregarem o
poder aos comunistas. Esta facção, da qual faz parte a maioria das altas patentes,
tem prontos os planos para qualquer eventualidade.
Em impressionante comício, o presidente, sentindo-se politicamente
sólido, reitera os propósitos de realizar as reformas com ou sem o apoio do
Congresso. É o estopim que faltava. A situação agrava-se. Os boatos
revolucionários recrudescem.

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Os chefes militares antigoverno relutam em tomar iniciativas que
envolvam movimento de tropas. Mas, contrariando a diretiva dos opositores da
situação, o general Mourão, comandante do 2° Exército, sediado em Minas, em
conluio com o governador do estado, desloca suas tropas, obrigando os demais
comandos a uma tomada de posição.
Crise militar em curso, o Departamento de Estado, em posse do relatório
da CIA e de seu embaixador, dá carta branca para a operação Brother Sam. O
porta-aviões Independence e dois contratorpedeiros, carregados de armas e
munições, participam de treinamento simulado no Atlântico Sul, próximo à ilha
de Ascensão, uma base avançada americana.
Os militares sediciosos aparentemente não têm conhecimento que tal
operação é de apoio ao movimento, mas, se necessário, receberão de bom grado
a ajuda. Os americanos monitoravam os acontecimentos, mas também foram
surpreendidos pela precipitação do general Mourão.
O governo sente-se seguro e, por isso, não toma as medidas que a situação
requer, facilitando o êxito do movimento militar. Prevalece no fim o espírito
conciliador do presidente, que, diante do fato consumado, não reage. Ele viaja
para se asilar no Uruguai, evitando assim uma guerra civil.
Instala-se no país um regime de força sob a Lei de Segurança Nacional.
Acuado, o Congresso dá cobertura aos militares por meio de um colégio
eleitoral, excluindo do processo político a consulta à população.
O empresariado, comprometido com o golpe, logo se desilude. Imaginava
a devolução do poder aos civis e que o núcleo do IPAS participasse e
assessorasse no estabelecimento de um governo com menor intervenção na
economia. Tais atos não ocorrem. As decisões são emanadas dos quartéis e
militares ocupam cargos civis, sempre justificados pela questão de segurança
nacional.
O jornalista Carlos Lacerda se rebela com a exclusão dos civis do
processo político e, por ato de força do regime, é cassado. Seu admirador, Ivon

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Locher, parte para a Inglaterra, sepultando em definitivo os ideais que o levaram
ao complexo INAD/MODEP/Connection, braço da força oculta que
impulsionara o golpe de prevenção anticomunista, mas também de dimensões
antirreformistas e antidemocrático.

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