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Roese A, Lopes MJM.

A visita domiciliar como instrumento de co-


leta de dados de pesquisa e vigilância em saúde: relato de experiên- RELATO DE
98 cia. Rev Gaúcha Enferm, Porto Alegre (RS) 2004 abr;25(1):98-111. EXPERIÊNCIA

A VISITA DOMICILIAR COMO INSTRUMENTO DE COLETA


DE DADOS DE PESQUISA E VIGILÂNCIA EM SAÚDE:
relato de experiência a

Adriana ROESEb
Marta Julia Marques LOPESc

RESUMO

Trata-se de um relato de experiência que descreve e analisa a visita domiciliar na modalidade de busca
ativa como instrumento de coleta de dados para a prática de pesquisa e vigilância em saúde. Tem como base
as anotações em diário de campo. Discute as potencialidades da utilização das visitas domiciliares em pesquisas
acadêmicas e na prática de vigilância em saúde. Conclui-se que a visita domiciliar é um instrumento eficiente
de coleta de dados e de vigilância em saúde, e representa um meio de execução de técnicas ágeis e fidedignas
de pesquisa, ainda pouco divulgado.

Descritores: enfermagem em saúde pública; prática de saúde pública; vigilância da população.

RESUMEN

Es un relato de experiencia que describe y analiza la visita domiciliario en la modalidad de busca activa
como un instrumento de colecta de datos para la práctica de investigación y vigilancia en la salud. Es basado
en las anotaciones de un diario del campo. Discute las potencialidades de el uso de la visita domiciliario en
las investigaciones académicas y en la práctica de vigilancia de salud. Nosotros concluimos que la visita
domiciliario es un instrumento eficaz de colecta de datos y de vigilancia en la salud; representa una manera
de ejecutar técnicas ágiles y fidedignas de investigación, todavía poco publicadas.

Descriptores: enfermería en salud pública; práctica de salud pública; vigilancia de la población.


Título: El visita domiciliario como un instrumento de colecta de datos de pesquisa y vigilancia en la salud:
relato de experiencia.

ABSTRACT

This is an experience report that describes and analyzes home visiting, while a modality of activate
search, to work as an instrument to collect data for the practice of health research and surveillance. It is mainly
based on fieldnotes. It discusses the potentialities of the home visiting applicability in academic researches
and in the practice of health surveillance. We conclude that home visiting is an efficient instrument to collect
data and to do health surveillance, and it represents a way of executing agile and trustworthy techniques
of research, which is still not well explored.

Descriptors: public health nursing; public health practice; population surveillance.


Title: Home visiting as an instrument of data collecting and health surveillance: experience report.

a
Baseado no trabalho: A mortalidade por homicídios em adolescentes em Porto Alegre de 1998 a 2000.
b
Enfermeira. Mestranda da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista de Iniciação Científica no período
do desenvolvimento deste estudo.
c
Doutora em Sociologia pela Université de Paris VII. Professora Titular do Departamento de Assistência e Orientação Profissional da Escola
de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Roese A, Lopes MJM. El visita domiciliario como un instrumento Roese A, Lopes MJM. Home visiting as an instrument of data
de colecta de datos de pesquisa y vigilancia en la salud: relato de collecting and health surveillance: experience report [abstract].
experiencia [resumen]. Rev Gaúcha Enferm, Porto Alegre (RS) 2004 Rev Gaúcha Enferm, Porto Alegre (RS) 2004 abr;25(1):98.
abr;25(1):98.
Roese A, Lopes MJM. A visita domiciliar como instrumento de co-
leta de dados de pesquisa e vigilância em saúde: relato de experiên-
cia. Rev Gaúcha Enferm, Porto Alegre (RS) 2004 abr;25(1):98-111.
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1 INTRODUÇÃO promoção de saúde. A visita domiciliar é um


instrumento que permite ao profissional da
É um relato das experiências vivencia- saúde interagir com o meio em que o indi-
das durante a participação na coleta de da- víduo vive, observar e conhecer sua realida-
dos do Projeto: A Mortalidade por Homicí- de. Neste sentido, concorda-se com Tyllmann
dios em Adolescentes em Porto Alegre de e Perez quando relatam que a visita domi-
1998 a 2000 de Lopes, Sant’Anna e Aerts que ciliar “é vital para a educação em saúde”(4:2),
se desenvolveu sob a forma de visita domi- pois fornece as bases para o planejamento
ciliar às famílias de jovens assassinados, no individualizado dos processos educativos a
município de Porto Alegre(1). cada indivíduo ou grupo familiar.
Para introduzir este relato, tecem-se Assim, Padilha, Carvalho, Silva e Pin-
algumas considerações sobre a prática da vi- to(5), afirmam que o principal objetivo da vi-
sita domiciliar e, na seqüência, discute-se o sita domiciliar é conhecer o indivíduo inse-
potencial instrumental da visita na coleta de rido em seu meio familiar, o que oportuniza
dados em pesquisa e na vigilância em saúde. um contato do profissional com os demais
integrantes do núcleo familiar, permitindo
Nesse sentido os objetivos são: descrever e
que se observe o contexto familiar e a dispo-
analisar a visita domiciliar do tipo busca ati-
nibilidade de recursos na comunidade.
va como instrumento de coleta de dados para
Ceccim e Machado (2) complementam
a prática de pesquisa e vigilância em saúde;
essa idéia no sentido em que situam a visi-
sistematizar as vivências práticas das visi-
ta domiciliar como promotora da ampliação
tas domiciliares para a busca ativa, visando do nível de informações e conhecimentos
identificar e discutir os benefícios e limita- (autocuidado, recursos sociais, ações políti-
ções dessa modalidade como instrumento cas) afirmando que a mesma pode comple-
de coleta de dados e vigilância em saúde. mentar as ações de vigilância em saúde.
Esse referencial conceitual remete aos
1.1 A visita domiciliar como forma de aten- tipos de visitas domiciliares adotados nos
ção em saúde coletiva serviços, principalmente, de saúde comuni-
tária e/ou saúde pública. Conforme Oliveira
Para Ceccim e Machado a visita domici- e Berger(6) existem quatro diferentes classi-
liar é uma “forma de atenção em Saúde Co- ficações, são elas: a visita chamada, que é um
letiva voltada para o atendimento ao indi- atendimento realizado na casa do indivíduo
víduo, à família ou à coletividade, é prestada ou família, por este ou esta possuir algum tipo
nos domicílios ou junto aos diversos recur- de limitaçãod ; as visitas periódicas, que são
sos sociais locais, visando a maior eqüidade feitas para indivíduos ou famílias que ne-
da assistência em saúde” (2:1). Já Mattos(3) cessitam de acompanhamento periódico; as
diz que a visita domiciliar é um conjunto de internações domiciliares, que são indivíduos
ações de saúde voltadas para o atendimento, ou famílias que escolheram realizar o trata-
seja ele assistencial ou educativo. A autora mento em casa, geralmente são necessá-
ainda refere que esta é uma dinâmica utili- rias para pacientes terminais; e, a busca ati-
zada nos programas de atenção à saúde, vis- va, que é a busca de indivíduos ou famílias
to que acontecem no domicílio da família. faltosas (tratamentos, vacinas, gestantes). A
Acredita-se que estes são conceitos ade- vigilância em saúde também é considerada
quados para caracterizar a visita domiciliar, uma busca ativa.
complementando-se entre si. Pensa-se que
essa prática é relevante quando se fala, espe- d
Os autores limitaram-se a referir indivíduos, acrescentamos a família
cialmente, em prevenção da doença/riscos e também como alvo assistencial.
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É necessário, no entanto, ao se adotar as zação da vigilância em saúde, baseada nos


visitas domiciliares como forma de atenção dados coletados junto às famílias.
em saúde coletiva e/ou comunitária, ter-se Segundo Oliveira e Berger(6) a busca ati-
claro as vantagens e desvantagens que es- va visa a prestação de um atendimento mais
tão envolvidas nessa prática. qualificado. Para que isso ocorra, é necessá-
Mattos(3) cita alguns benefícios da visita rio que a unidade prestadora de serviços te-
domiciliar, tais como o profissional levar o nha um bom sistema de registros, o que pos-
conhecimento para o meio familiar, tendo a sibilita a realização da vigilância à saúde.
possibilidade de fazer um melhor planeja- A vigilância dá subsídios para se identifi-
mento da ação a ser executada naquela fa- car riscos e intensificar o vínculo com a uni-
mília; proporcionar um melhor relaciona- dade de saúde.
mento da família com o profissional, pois é Seguindo a perspectiva de Paim(8), o pro-
uma prática sigilosa e informal e possibili- pósito da vigilância epidemiológica e sanitá-
ta uma maior liberdade para a exposição ria é controlar os riscos, estes podem ser reais
dos problemas dos indivíduos. ou potenciais. Segundo esse autor, o risco na
Quanto às limitações da prática da visita visão epidemiológica, remete à idéia de chance
domiciliar, Mattos(3) e Mazza(7) afirmam que e probabilidade de ocorrência de determina-
trata-se de um método bastante dispendioso, da situação de saúde. Partindo-se desse pres-
visto que se deve dispor de recursos humanos suposto, este autor refere que pode-se veri-
especializados e o custo de locomoção tam- ficar fatores, condições, situações e áreas
bém é alto. Outros aspectos relevantes que de risco e, desta forma, desenvolvem-se ações
podem impedir ou prejudicar a realização de saúde no enfoque de risco. O mesmo au-
da visita domiciliar são a chegada do vi- tor acredita que há a possibilidade de se
sitador na hora dos afazeres domésticos formular políticas públicas e intervenção so-
das donas de casa e/ou o fato de que alguns cial organizada referindo-se à situação de
indivíduos não se encontram em casa no saúde. Vai além, quando afirma que isso e um
horário da visita no período em que se de- novo projeto cultural de comunicação social
senvolvem essas atividades na comunidade. e de educação em saúde, podem possibili-
Por fim, outra dificuldade observada pelas tar a elevação da consciência sanitária da
autoras é que requerem tempo com locomo- cidadania em prol das lutas pela reforma
ção e com a própria execução da visita. sanitária.
Nesse sentido, acredita-se que o profis-
1.2 A visita domiciliar na forma de busca sional enfermeiro possui grande potencial no
ativa como instrumento de pesquisa e processo educativo em saúde, tendo muita
vigilância em saúde responsabilidade na busca de dados fidedig-
nos que identifiquem riscos reais e que pos-
O projeto de pesquisa que originou sam embasar o planejamento de ações para
este relato estudou a vulnerabilidade dos intervir nos problemas de saúde.
adolescentes de Porto Alegre a mortes vio- Dilly e Jesus(9) acreditam que o enfer-
lentas, nos anos de 1998 a 2000, identifi- meiro é o profissional com maior capacidade
cando suas trajetórias pessoais e familia- e requisitos para desenvolver atividades de
res. Portanto, a partir do referencial concei- educação sanitária, para saúde individual e
tual adotado neste texto, as visitas domici- coletiva, almejando reais mudanças quanto
liares do estudo em questão são classifica- aos problemas de saúde. Segundo as auto-
das como busca ativa, pois um de seus obje- ras, a educação em saúde é dinâmica, sendo
tivos é o de fornecer subsídios para a reali- que os indivíduos podem aceitá-la ou não,
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mas o objetivo é que as pessoas busquem As vivências junto às famílias foram


saúde e que desenvolvam uma consciência categorizadas conforme as temáticas, ba-
crítica para a resolução dos problemas. seando-se no referencial da análise de con-
As considerações reflexivas expostas teúdo. Conforme Bardin, “as categorias são
acima, com base na revisão bibliográfica, rubricas ou classes as quais reúnem um gru-
atestam a relevância social da vigilância em po de elementos sob um título genérico,
saúde, particularmente aquela desenvolvida agrupamento esse efetuado em razão dos
através de pesquisas sobre os enfoques de caracteres comuns desses elementos”(10:117).
risco, mas também apontam o potencial do en- Complementando o caminho metodológico
fermeiro para o trabalho de educação em deste relato, utilizou-se a análise temática
saúde. Essas evidências motivaram e forne- a partir dos estudos de Minayo. A autora
ceram subsídios para a construção deste rela- afirma que “fazer uma análise temática
to que passa-se, a seguir, a apresentar. consiste em descobrir os núcleos de sentido
Buscou-se relatar experiências a partir que compõem uma comunicação cuja pre-
das visitas domiciliares do tipo busca ativa sença ou freqüência signifiquem alguma
coisa para o objetivo analítico visado” (11:209).
como instrumento de coleta de dados para a
As considerações bioéticas para o desen-
prática de pesquisa e vigilância em saúde.
volvimento das visitas recaem no trabalho de
Também, sistematizou-se as vivências prá-
origem intitulado: A Mortalidade por Homi-
ticas das visitas domiciliares para busca ati-
cídios em Adolescentes em Porto Alegre de
va, visando identificar e discutir os benefí-
1998 a 2000(1). Foi obtida aprovação junto à
cios e limitações dessa modalidade como Secretaria Municipal da Saúde de Porto Ale-
instrumento de coleta de dados e de vigi- gre para o acesso aos dados de mortalidade
lância em saúde. e identificação das famílias, respeitando as
normas de pesquisa em saúde referidas pela
2 METODOLOGIA resolução nº 196, de 10 de outubro de 1996,
do Conselho Nacional de Saúde(12). As fa-
Este relato descreve e analisa as ex- mílias dos adolescentes foram esclarecidas
periências vivenciadas em 100 visitas do- oralmente sobre os objetivos da mesma, bem
miciliares desenvolvidas no projeto: A Mor- como assinaram um Termo de Consentimen-
talidade por Homicídios em Adolescentes to Livre e Esclarecido, mediante a ciência do
em Porto Alegre de 1998 a 2000. Teve como conteúdo do documento. Na análise do diá-
base as anotações do diário de campo. Dessa rio de campo, fonte deste relato, foi preserva-
forma, as experiências foram categoriza- do o anonimato dos sujeitos, seus endereços
das pelas temáticas, pelos aspectos relevan- e outros dados que pudessem identificá-los.
tes e pelas dificuldades encontradas na co- O estudo intitulado: A Mortalidade por
leta de dados(1). Homicídios em Adolescentes em Porto Ale-
As visitas domiciliares ocorreram no pe- gre de 1998 a 2000 nasceu de uma pesqui-
ríodo de julho a outubro de 2001. Os sujeitos sa anterior de duas das autoras, Lopes e
das visitas foram os familiares dos 190 ado- Sant’Anna, desenvolvida em 1997. A proble-
lescentes que morreram por homicídio nos mática foi estruturada com base na compa-
anos entre 1998 e 2000, com idades de 10 a ração dos dados de homicídios em um de-
19 anos, na cidade de Porto Alegre. As vi- terminado período de tempo(1).
sitas domiciliares foram realizadas nas ca- Sant’Anna (13) em sua dissertação de
sas das famílias desses jovens, a partir do mestrado, no capítulo de análise dos dados,
endereço constante na Declaração de Óbito refere a importância do trabalho de coleta
dos mesmos. de dados feita pelos entrevistadores. Muitos
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dos problemas enfrentados nas visitas do- indicadores epidemiológicos de risco que se
miciliares no desenvolvimento do primeiro concentram em bairros menos favorecidos
estudo de 1997, repetiram-se e constataram- do município.
se inúmeras evidências interessantes e se- Parmar(14) ao referir-se aos problemas
melhantes nos dois momentos. de saúde no Brasil vincula-os aos de ordem
No estudo de 1997 as autoras relatam socioeconômicos e às estruturas de poder
que a equipe de pesquisadores de campo rea- existentes. Segundo o autor, a assistência
lizou as visitas domiciliares de segunda a primária deve tentar desenvolver a capaci-
sexta-feira, no período da manhã e à tarde dade da comunidade resolver seus próprios
e, evitavam transitar nas vilas depois das problemas.
16 horas, pois iniciava-se a organização do Corroborando com essas afirmações,
tráfico de drogas. Por esse motivo, aos sába- Ceccim e Machado(2) salientam que os proble-
dos utilizavam apenas o turno da manhã. mas socioeconômicos são prioritários para o
Utilizou-se esta informação nas poucas atendimento domiciliar. Referem que os cri-
vezes em que se ultrapassou às 16 horas. térios epidemiológicos e populacionais des-
Constatou-se formas diversas, inclusive de crevem a vida da população de determina-
constrangimento físico e psicológico, im- da localidade e assim pode-se estimar condi-
posto pelo tráfico nas vilas. ções de risco e as formas de sujeição ao risco.
No contato inicial com a comunidade Essa reflexão dos autores remete à vigi-
os entrevistadores se identificavam e apre- lância à saúde que, segundo Souza e Kalich-
sentavam o trabalho, bem como seus obje- man(15) obriga a pensar na problemática da
tivos. Sant’Anna(13) refere o uso de crachá eqüidade na qualidade de vida e seu real
com o nome do visitador e do pesquisador conteúdo. Essa problemática leva a uma
responsável. Assim, utilizou-se o crachá for- complexa discussão relacionada à promo-
necido pela universidade e o jaleco branco, ção da saúde em populações segregadas
como forma de identificação e proteção. econômica e socialmente com caracterís-
A aproximação com o campo permitiu ticas das famílias deste estudo.
a visualização das limitações na realização Nesse contexto, também surge a vigilân-
de visitas domiciliares como instrumento de cia epidemiológica que é discutida por Gaze
coleta de dados em pesquisa e vigilância e Perez(16) quando referem que seu princi-
em saúde. Por outro lado, constatou-se a pal objetivo é coletar dados para o desen-
sua importância, corroborada por Ceccim e cadeamento de ações de prevenção e contro-
Machado(2) quando relatam que a visita do- le. Segundo estes autores, a organização das
miciliar é um bom instrumento para a pes- atividades de vigilância epidemiológica ga-
quisa qualitativa. rante o cumprimento de suas principais fun-
Nesse sentido, Mazza (7) corrobora e ções: coleta, processamento, análise e in-
vai além quando afirma que um dos prin- terpretação dos dados; recomendação, pro-
cipais objetivos da visita domiciliar é a cole- moção e avaliação da efetividade e eficácia
ta de informações sobre as condições sócio- das medidas utilizadas como controle e di-
sanitárias da família, baseada em entrevis- vulgação dos resultados encontrados.
tas e na observação do visitador.
Assim, a experiência somada ao emba- 3 AS VISITAS DOMICILIARES NA CO-
samento teórico, permitiu identificar mui- LETA DE DADOS: nossa experiência
tas famílias em situação de risco, principal-
mente àquelas que habitam bairros e vilas que A partir da utilização dos critérios do
atestam as desigualdades sociais e a segre- capítulo acima, elaborou-se categorias para
gação urbana. Essa situação caracteriza os a sistematização da experiência de utilização
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das visitas domiciliares como forma de coleta as visitas domiciliares às famílias. Esses en-
de dados, são elas: organização da coleta de contros ocorriam em locais públicos, como o
dados e das visitas domiciliares; localização Mercado Público de Porto Alegre, pela sua
das famílias; as reações dos familiares e da posição em relação ao acesso ao transporte
comunidade; desigualdades sociais e cultu- coletivo ou na casa de uma das entrevista-
ras locais. Passa-se a descrevê-las. doras. Esse recurso foi importante para a
articulação das visitas do dia seguinte.
3.1 Organização da coleta de dados e das A experiência vivenciada é salientada
visitas domiciliares por Ceccim e Machado(2) quando referem que
uma das principais etapas para o contato do-
A coleta de dados no trabalho referente miciliar em saúde coletiva é o planejamento
aos anos de 1998 a 2000 foi precedida de específico, onde deve-se definir as atividades
algumas reuniões entre os pesquisadores e os prioritárias e organizar o material a ser utili-
visitadores, onde foram abordadas experiên- zado na visita. Mattos(3) também acrescenta
cias em visitas domiciliares e problemas que a necessidade de refletir-se sobre o tempo
poderiam ocorrer durante o desenvolvimento disponível para a realização da visita, o ho-
das mesmas. Também foram realizadas reu- rário que não atrapalhe a atividade das fa-
niões durante o processo de coleta de dados, mílias e o itinerário que facilite a locomoção
onde analisava-se o andamento do trabalho até o local da execução da visita.
e a necessidade de acompanhamento para Essa forma de organização possibilitou
os entrevistadores. a redução do desperdício de tempo em bus-
Esta preocupação evidencia-se no estu- cas sem sucesso. Isso diminuiu os riscos
do de Sant’Anna (13), onde o grupo de entre- dentro das vilas, já que o conhecimento pré-
vistadores vivenciou situações de ansiedade vio dos locais permitiu o deslocamento mais
e de desgaste perante a realidade encontra- rápido e a freqüente solicitação de informa-
da. Isso ocasionou muito sofrimento e revol- ções a pessoas da comunidade.
ta entre os mesmos e foi o principal motivo A realização das visitas domiciliares
de realização de consecutivas reuniões. ocorreu em diversos bairros da cidade de
Acredita-se na importância da realiza- Porto Alegre, sendo que em alguns deles a
ção de reuniões entre o grupo durante a reali- irregularidade na urbanização dificultou a
zação de visitas domiciliares, pois as vivên- localização dos endereços. Nesses casos
cias são discutidas e trabalhadas, além da algumas unidades e serviços de saúde fo-
coleta de dados obedecer a critérios de base ram fontes de informação para agilizar o
para todos os entrevistadores. trabalho e evitar riscos desnecessários.
A organização dos instrumentos para Em alguns serviços a receptividade foi
a abordagem das famílias é outro fator de limitada e desestimulante e foi salientado
grande relevância em estudos que utili- o risco a que se estava exposto.
zam visitas domiciliares como forma de co- Já em alguns dos serviços recorridos,
leta de dados. Sua importância reflete-se na obteve-se auxílio e acompanhamento de
qualidade dessa abordagem na residên- agentes de saúde para localização das
cia da família. A organização dos trajetos residências. Segundo eles, eram locais peri-
a serem percorridos para racionalizar e di- gosos onde não seria conveniente chegar de-
minuir riscos evitáveis é outro aspecto a sacompanhadas. Para a visita, nas residências
considerar. de menor risco, indicaram caminhos e forne-
No estudo de base a organização do ins- ceram informações que auxiliaram na entre-
trumento deu-se através de encontros após vista. Para esses serviços, experiências como
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esta são relevantes, pois fornecem subsídios desenvolveu-se em todo o município de Porto
para as ações de saúde e prevenção. Alegre e o meio de locomoção foi o transpor-
A recepção pouco cordial em alguns ser- te coletivo. É um meio bastante dispendioso,
viços remete à reflexão sobre as condições pois é financeiramente oneroso e demanda
assistenciais prestadas aos indivíduos que muito tempo, tanto de espera para ir e vir,
dependem do Sistema Único de Saúde. Vas- quanto para o trajeto em si.
concelos(17) alerta para a necessidade de aten- Neste sentido, Padilha, Carvalho, Silva e
tar-se para o trabalho dos profissionais da Pinto(5), Mazza(7) e Mattos(3) corroboram com
área da saúde. O autor salienta que estas a constatação de que a visita domiciliar é
pessoas são trabalhadores assalariados sub- uma forma bastante onerosa, tanto em rela-
metidos às normas e limitações impostas pe- ção aos custos, quanto ao tempo. Segundo
las instituições a que estão trabalhando e eles essa estratégia exige transporte até a
submetidos à dominação do poder econômi- casa a ser visitada e há um grande gasto de
co. Essa reflexão aponta para a contextua- tempo na execução da visita.
lização dos cotidianos dessas pessoas que Ainda relacionado ao transporte, enfren-
tou-se a dificuldade quanto à incorreção de
são profissionais de saúde. O mesmo autor
informações. Este problema foi contornado,
refere que muitos profissionais ficam angus-
pois contava-se com uma lista que continha
tiados com tanto sofrimento, trabalhando
os trajetos dos ônibus utilizados. Outra difi-
muito e obstinados por melhorar a realidade
culdade imposta pelo transporte coletivo é a
e frustram-se ao ver que seu esforço não irá
falta de opções para ir de um local a outro,
mudá-la. interligação entre alguns bairros da cidade.
Desta forma, Vasconcelos(17) refere que Nesse sentido, constatou-se que a loco-
os profissionais têm de conhecer suas limita- moção é um importante obstáculo enfrenta-
ções e ver que existem outras pessoas ajudan- do por pesquisadores. O financiamento nes-
do no processo de busca de saúde para a te caso foi decisivo, do contrário a realiza-
comunidade, assim conseguirá ser feliz e tra- ção das visitas domiciliares seria pratica-
balhar com mais energia. Esta forma de inter- mente inviável.
pretação da realidade faz aflorar a discussão
sobre o atendimento nos serviços básicos de 3.2 Localização das famílias
saúde e o comportamento dos profissionais
que exercem sua atividade nesses locais. A dificuldade de encontrar os endereços
A receptividade dos serviços depende dos familiares dos adolescentes mortos foi
de como é o relacionamento entre as equipes um dos maiores problemas enfrentados para
e as pessoas entre si e também da forma com a realização da visita domiciliar.
que trabalham e como vêem os problemas Essa dificuldade foi levantada e discuti-
sociais e a realidade dos que vivem no local da durante as reuniões preparatórias. Por
onde atuam. Não esquecendo ainda dos esse motivo, realizou-se a classificação das
diferentes tipos de pressão imposta a estes Declarações de Óbito (DOs) por bairros da ci-
profissionais. dade, anexando a estas, a cópia do mapa das
Considerando esses aspectos, as visitas ruas para facilitar a localização das famílias.
domiciliares foram realizadas em duplas, O contato com os cartórios de Porto
devido ao risco que a temática impõe e a Alegre forneceu os nomes dos declarantes e
maioria do grupo tinha experiência anterior seus endereços e, em alguns casos, até o
em visitas domiciliares. complemento dos endereços. Mesmo com
Uma das maiores limitações impostas no toda essa organização surgiram muitas di-
dia-a-dia foi a locomoção. O estudo de base ficuldades em campo.
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As maiores limitações encontradas de- localização desses agentes permitiu o acesso


correm dos registros das informações no pre- a alguns endereços, pois conhecem a popula-
enchimento das Declarações de Óbito. Iden- ção da região adscrita à unidade de saúde.
tificou-se que o mesmo bairro pode apresen- Os registros das unidades permitiram, desta
tar duas ou três ruas com o mesmo nome, em forma, uma melhor mobilidade espacial já
vilas diferentes. Locais em que diferentes que as informações e referências, em muitos
casas possuem a mesma numeração são co- casos, não constavam nos mapas disponí-
muns, também a mesma casa com números veis.
diferentes, por exemplo, o da Companhia de As situações encontradas foram diver-
Energia Elétrica do Estado e do Departamen- sas, e, muitas vezes, surpreendentes, como
to Municipal de Água e Esgoto são freqüen- por exemplo, dispor do número da casa, na
tes, sendo em ordem completamente diferen- rua correta e as pessoas negarem a identifi-
te. Outra evidência é a inexistência do núme- cação da família. Alguns endereços eram em
ro procurado na rua e, alguns números situa- locais abandonados, sem número mas habi-
rem-se em becos da própria rua. Estas carac- tados. Em alguns casos, dispunha-se apenas
terísticas se concentravam em alguns bairros do nome da rua e a pessoa era desconhecida,
de Porto Alegre como Sarandi, Bom Jesus, no entanto, conseguiu-se informações preci-
Vila Jardim e Partenon, mas ocorriam situa- sas na unidade de saúde.
ções semelhantes em todo o município. Uma dificuldade comum foi a de locali-
Lugares de difícil acesso foram freqüen- zar algumas pessoas na residência, situação
tes, muitas ruas pareciam labirintos onde era apresentada por Padilha, Carvalho, Silva e
preciso se embrenhar e a única saída era a Pinto(5) quando referem a impossibilidade de
entrada. Essa situação deixava os visitadores se marcar a visita com antecedência. Os au-
bastante vulneráveis, durante a realização da tores citam ainda a possibilidade do endere-
visita domiciliar. Em alguns locais não seria ço não existir ou da pessoa não residir mais
possível escapar, caso houvesse necessidade. naquele local, ou ainda, a negativa em con-
Para evitar visitas freqüentes em um mes- ceder a entrevista.
mo endereço, organizaram-se roteiros para As Delegacias de Polícia, também confi-
realizá-las de forma a não retornar à mesma guram-se em aliados na localização das fa-
rua. Algumas vezes esse artifício não era mílias. A receptividade foi boa e obteve-se
suficiente por problemas em encontrar as acesso a alguns endereços através dos re-
residências, era preciso ir e voltar, identi- gistros locais.
ficando os números de todas as casas da Os problemas freqüentes no preenchi-
rua. Para agilizar a coleta de dados contou- mento das Declarações de Óbito são nova-
se com informantes locais e de unidades de mente apontados, apresentam-se com dados
saúde. Alguns entrevistados ou informantes incorretos e, por vezes, até ilegíveis. Essa fa-
auxiliaram no sentido de identificar dificul- lha na informação é um obstáculo à vigilân-
dades, principalmente àquelas relacionadas cia em saúde. Neste sentido, Gaze e Perez(16)
ao tráfico de drogas. reconhecem que as informações provenien-
O auxílio dos agentes de saúde de alguns tes da Declaração de Óbito não têm a qua-
Programas de Saúde da Família (PSFs) foi lidade ideal, no entanto, referem que esse
decisivo na localização de algumas famílias. documento possui grande importância em
Oliveira e Berger(6), citam o fato de que os estimativas de indicadores de saúde.
agentes de saúde por trabalhar fora da unida- As visitas permitiram a constatação de
de, são os responsáveis pelo vínculo dos ser- que localizar endereços, principalmente em
viços de saúde com a comunidade. Assim, a vilas de Porto Alegre, é uma tarefa penosa e
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revela o descaso no preenchimento dos pa- seu ambiente familiar. As autoras referem a
péis e registros e no fornecimento das infor- importância de o visitador ser hábil, ter bom
mações. relacionamento, mostrar seu interesse e von-
tade de ajudar a família. Dizem elas que, para
3.3 As reações dos familiares e da comuni- se conhecer a família, é preciso ouvir e buscar
dade o significado do choro, do silêncio, da dor
de seus membros. Mazza(7) acrescenta que o
Um obstáculo importante para a realiza- visitador deve manter a neutralidade para
ção das visitas domiciliares foi a reação de al- que não haja prejuízo em sua interação com
gumas pessoas, tanto familiares como ami- a família, além de ser cordial, criativo e
gos dos jovens assassinados da comunidade. gostar do que está se propondo a realizar.
O relato de algumas dessas reações e senti- É preciso salientar que se identificou
mentos ilustram, não só os obstáculos, como também desconfiança em algumas pessoas
as reações de acolhida. que manifestavam medo e isso refletia-se em
apreensão de nossa parte. Algumas famílias
3.3.1 Os familiares visitadas confundiam os visitadores com
policiais. A maioria se tranqüilizava após a
Os familiares das vítimas de homicídio, apresentação pessoal e do motivo da visita.
em sua maioria, acolheram muito bem e con- Em uma residência foi necessário apresentar
tribuíram com a pesquisa. Muitos encontra- vários documentos de identificação e telefo-
vam, naquele momento, uma forma de desa- nes de autoras do projeto base. A insegurança
bafo, de poder conversar com pessoas de persistiu e houve manifestação sobre a possi-
fora que dispunham-se a ouvir suas histórias bilidade dos documentos terem sido forjados.
e angústias. Segundo Mattos(3) não é conveniente fornecer
Na experiência relatada por Sant’Anna(13) dados pessoais, mas neste caso foi inevitável.
a receptividade das famílias dos jovens foi Em estudos como o de Ceccim e Macha-
semelhante e acolhedora em sua maioria. do(2) encontrou-se respaldo para o enfrenta-
Agradeciam muito por ter alguém que os mento dessas situações. Os autores situam
ouvisse, inclusive aqueles que se negaram a três momentos na visita domiciliar: o primei-
responder as questões da entrevista. A autora ro é a identificação, explicação do motivo de
refere que algumas pessoas falavam da dor estar ali; o segundo, é quando se desenvolve
da perda como motivo para não conceder o objetivo da visita; e, no encerramento, pode-
a entrevista. No entanto, constatou-se, na- se fazer um feedback dos assuntos conversa-
quele momento, que, em muitos casos de dos, reforçar pontos positivos e promover a
recusa, havia o medo dos agressores que per- auto-estima.
maneciam ameaçando a família. Estas etapas foram úteis para um bom
Neste trabalho, vivenciou-se muitos mo- entendimento com a família visitada, sendo
mentos de emoção em que os familiares cho- relevantes em visitas que tratem de proble-
ravam relembrando seus mortos e mostravam mas tão complexos e dolorosos como nas si-
fotos dos mesmos. Muitas dessas pessoas tuações que envolvem homicídios de jovens.
evidenciavam carência de afeto, de escuta, Um sentimento manifestado pelos pais
de alguém que pudesse entender e respei- durante a visita foi o de culpa por terem
tar seus sentimentos. deixado os filhos caírem no mundo das
Esta situação é referenciada por Padilha, drogas e, alguns deles, tinham inclusive
Carvalho, Silva e Pinto(5), quando afirmam que medo de falar sobre o fato, pois estavam sen-
a visita domiciliar visa conhecer a pessoa em do pressionados por traficantes.
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Em algumas situações observou-se o das, mesmo sem negar as dificuldades ao


rechaço, que com insistência e habilidade entrevistar algumas pessoas.
contornou-se na maioria das vezes. Nessas As visitas domiciliares evidenciaram
situações houve grande desconforto nosso também o sentimento de desconfiança nas
perante a comunidade. O constrangimento autoridades e na justiça, da parte dos fa-
por parte dos familiares manifestou-se por miliares dos jovens assassinados.
crises de choro e frases de rechaço. Assim, os Essas vivências encontram respaldo em
desafios foram enfrentados com o suporte autores como Ceccim e Machado(2), quando
teórico e exercitou-se a capacidade para o afirmam que cada casa ou família possui
trabalho comunitário e houve duas negações uma realidade e que o contato domiciliar se
apenas. Respeitou-se o direito desses indi- desenvolverá de forma diferente nas diversas
víduos de não fornecerem informações. visitas. Com a experiência das 100 visitas do-
Muitos familiares relataram que iam le- miciliares muitas dessas diferenças foram
vando a vida, que não tinham mais alegrias identificadas e abordadas com especificidade.
após o homicídio. Constatou-se que muitas Essas experiências podem ser ilustradas
famílias ficaram desestruturadas e muitos fa- pela reação de um pai, bastante humilde, que
miliares doentes em razão da perda. Encon- morava no lugar mais precário visitado, quan-
trou-se pessoas apavoradas, com as constan- do observado que ele relatou acreditar que
tes ameaças dos assassinos, em sua maioria esta pesquisa era excelente, pois poderia aju-
traficantes ou envolvidos com as drogas dar seus outros filhos. Essa manifestação
que, segundo os familiares, representam a ocorreu no último dia das visitas domiciliares
principal causa desses homicídios. e foi recebida como uma vitória pelo nosso
Em certas situações encontrou-se fami- esforço, pela insistência, pelo cansaço e por
liares que pareciam não se importar com o todos os tipos de reações que foram enfrenta-
fim trágico dos adolescentes. Ouviram-se das durante o desenrolar das visitas.
histórias estranhas, onde as peças não se en-
caixavam e as pessoas pareciam querer es- 3.3.2 A comunidade
conder algo ou justificar o esperado fim trá-
gico do adolescente. As pessoas das comunidades (vilas e
Em três residências os entrevistados mos- ruas) recebiam o grupo com olhares curiosos
traram sinais de estarem alcoolizados ou sob e indiscretos, acompanhavam os passos. Em
o efeito de alguma droga. Esses casos susci- alguns lugares seguiam ou mexiam e faziam
taram a busca de mais apoio teórico, encon- brincadeiras nada engraçadas.
trado em Oliveira e Berger (6) quando fazem Algumas pessoas se negavam a dar in-
referência a visitas difíceis, onde as pessoas formações ou referiam outros informantes e
estão alcoolizadas ou sob efeito de alguma assim, iam empurrando de um lado para ou-
outra droga que poderia deixá-las agressivas. tro. Essas dificuldades foram enfrentadas,
Segundo os autores, cabe ao profissional de- em algumas ocasiões, através do uso dos ma-
senvolver sensibilidade para a abordagem pas fidedignos. Um dos problemas diz res-
necessária nesses casos. No entanto, afirmam peito aos registros cartográficos, que nem
que não existe uma receita para isso. Nova- sempre têm localizadas algumas vilas da ci-
mente coloca-se à prova a capacidade de dade e, exatamente nesses lugares, localiza-
desenvolver essa sensibilidade in loco. As- vam se alguns endereços.
sim, conseguiu-se maneiras de enfrentamen- Foi necessário jogo de cintura para se
to adequadas às situações, dessa forma as evitar relatar aos curiosos o motivo das visi-
visitas domiciliares proposta foram realiza- tas. Algumas pessoas solicitaram visitas para
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doentes e para o pessoal da unidade verificar Identificaram-se muitas famílias deses-


a pressão arterial de idosos. Enfim, aborda- truturadas, a maioria com o núcleo familiar
vam com problemas os mais diversos. Nesse diversificado. Uma dessas situações mostra
contexto, tentou-se chegar nas comunidades uma mãe com sete filhos, com idades diver-
como sugere Carriconde: “escutando, vendo, sas e cada um era filho de um pai diferente,
sentindo, tateando e servindo”(18:229) mesmo re- com os quais ela não conseguia manter um
conhecendo que esse é um constante desafio. relacionamento duradouro. Diz que gostava
As maiores ameaças enfrentadas foram de quando o filho, falecido, trazia o produ-
de parte dos rapazes da comunidade e consta- to de roubos para casa, era uma maneira de
tou-se o envolvimento com drogas em muitas sustentar sua família.
dessas situações. Em uma delas houve a ne- Essa diversidade de núcleo familiar en-
cessidade de obter-se permissão de um tra- contrada entre as famílias entrevistadas en-
ficante para transitar na rua. Em outra, pre- contra ressonância em Goldani(19) que fala do
senciou-se a chegada do carregamento de indicativo de surgimento de uma nova famí-
drogas e foi preciso distância. lia brasileira, onde aparecem modelos alter-
Nesses momentos, constatou-se a im- nativos de relações entre os sexos e intra-
portância da realização de visitas em gru- familiares. Segundo a autora, houve um gran-
pos de no mínimo duas pessoas. de crescimento da participação de famílias
monoparentais (mãe ou pai com filhos), prin-
3.4 Desigualdades sociais e culturas locais cipalmente nas de baixa renda.
No desenrolar das visitas encontrou-se
As visitas domiciliares aqui relatadas muito envolvimento com drogas, observa-
foram realizadas, em sua maioria, em bairros ram-se adolescentes cheirando e fumando
periféricos ou bolsões de miséria do municí- pelas esquinas das vilas e sentados sem
pio de Porto Alegre. Essa experiência mos- nenhuma ocupação durante todo o dia, su-
trou um dado bastante relevante para os pro- gerindo que estão longe da escola e não tra-
fissionais que trabalham com comunidades balham.
carentes, as desigualdades sociais como fa- Já o envolvimento dos adolescentes as-
tor de vulnerabilidade às mortes violentas. sassinados com drogas iniciava-se com a
Segundo Sant’Anna (13), a maioria dos troca da droga pelo trabalho de aviãozinho
adolescentes (acima de 90%) que morreram (vendedor), informam as famílias. Nessa re-
por homicídio, no ano de 1997, em Porto lação, o traficante é considerado um tio ou
Alegre, pertenciam a um estrato social com irmão mais velho. Na maioria das vezes, a fa-
menor poder aquisitivo, com pais modestos mília não percebia o que estava acontecendo
e trabalhadores. Segundo ela, o meio em e, quando se dava conta, era tarde demais
que viviam interferia na maneira com que ou não conseguiam lutar contra o problema.
os adolescentes agiam e reagiam à realidade. Essa situação acabou com muitas famílias,
Observou-se nas visitas que as pessoas conforme salientam.
falavam em drogas, mortes, armas, assaltos, Em uma família constatou-se a presen-
FEBEM, polícia e prisão com muita natura- ça de sete adolescentes sentados na calçada
lidade. Isso tudo parece estar banalizado da frente rindo e conversando, a mãe havia
em suas vidas, faz parte do cotidiano. Essa abandonado a casa e não tinham pai. O rapaz
banalização pode ser atestada através de que morreu, roubava e dessa forma susten-
relatos em que matar evidenciava-se como tava os irmãos. Ele e o irmão mais velho ti-
gesto de coragem e levar tiros no lugar de nham uma espécie de competição para ver
outro seria prova de valentia. quem tinha maior índice de detenções.
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Algumas famílias conviviam, na mesma Considerando esses aspectos relevantes,


comunidade, com os assassinos dos filhos acredita-se que entender a linguagem das
adolescentes. Em uma das visitas, uma mãe pessoas com quem estamos trabalhando é
revoltada apontava os maconheiros, como fundamental para o entendimento e a criação
ela dizia e falava deles em tom elevado, com de vínculo com as comunidades com as quais
o objetivo de chamar sua atenção. se trabalha. A comunicação é o canal de en-
Utilizando Oliveira e Berger(6) quando trada para o início do processo de interação
afirmam que a visita domiciliar é uma forma e compreensão da realidade da família vi-
de conhecer a realidade da comunidade, de sitada.
compreender a vida das pessoas e dos grupos
sociais onde estão inseridas, entendendo sua 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS: os limites
cultura e os fatores relacionados a saúde e a e as possibilidades da visita domiciliar
doença existentes nesse contexto, traçou-se na busca ativa
um paralelo com o vivenciado em cada visita
e em relação a comunidade como um todo. A realização das visitas domiciliares no
Assim, conclui-se que as visitas domiciliares
estudo intitulado: A Mortalidade por Homi-
são uma forma muito rica de buscar subsídios
cídios em Adolescentes em Porto Alegre
para compreender os processos de vida e
de 1998 a 2000(1) despertou muitos sentimen-
morte dos sujeitos. Dessa forma a inserção
tos entre o grupo. Esse relato de vivências
na comunidade oportuniza às pessoas ex-
propôs-se a explicitar e refletir sobre essa
porem seus problemas e possibilita aos pes-
quisadores a chance de compreendê-las. forma de abordagem do campo empírico de
No que concerne às culturas locais, pesquisa.
observou-se a linguagem e a religiosidade A tensão e o medo estiveram presentes
como características fortes das famílias nes- nessa trajetória, porém, em duplas, supera-
sas comunidades. ram-se os obstáculos. Mesmo nos momentos
Nos locais visitados, muitas pessoas, jo- mais difíceis o aprendizado levou ao auto-
vens ou velhos, utilizam-se excessivamente controle e a descarga negativa ficou para
de gírias. Essa linguagem particular, remete depois, no ônibus ou em lugares mais segu-
a Carriconde(18) quando relata a necessidade ros.
de chegarmos na comunidade falando das Em muitas situações observou-se que
coisas do povo e na linguagem desse povo. algumas famílias eram parecidas com as
Outros autores seguem a mesma linha, como nossas. Esse sentimento fortaleceu o grupo
Mattos(3) quando acredita que deva-se utili- para enfrentar outras tantas visitas.
zar uma linguagem clara, de acordo com o A emoção esteve presente em muitas
nível de compreensão da família e permitin- visitas, pois cada óbito gera um grande sofri-
do que a mesma fale sobre seus problemas. mento nas pessoas e, explorar esta experiên-
Neste mesmo sentido, Tyllmann e Perez(4) cia, é algo que deve ser bem trabalhado, tanto
relatam que a comunicação não é só a fala, com as famílias quanto com os visitadores.
mas também os gestos, as expressões faciais, Acredita-se que, a partir desse contato
as impressões causadas no outro em relação com as famílias, aprende-se a lidar melhor
a sua imagem. Estas autoras acreditam que com situações extremas como a morte e
a comunicação pode transmitir muitos dados compreender as pessoas que sofreram per-
referentes às pessoas visitadas, como atitu- das em situação de violência.
des, crenças, hábitos, nível de informação, co- Foi gratificante poder ajudar pessoas,
nhecimento de seus problemas, compreensão às vezes, com uma palavra de conforto, com
de sua realidade. um ouvido ou um ombro amigo. Constatou-
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se que não é preciso dominar a técnica perfei- saúde; a oportunidade de (re)ligar teoria e
ta ou decorar o que falar na hora certa, basta prática; a possibilidade de ouvir as pessoas
reconhecer que os caminhos precisam ser e não vê-las como números ou índices; a ob-
traçados compreendendo e respeitando cada tenção de dados fidedignos; o incentivo ao
realidade. trabalho em saúde coletiva.
O diário de campo possibilitou a visua- Por fim, salienta-se que os benefícios da
lização das limitações e das vantagens opor- visita domiciliar como instrumento de coleta
tunizadas pela realização da visita domici- de dados e de vigilância em saúde são mais
liar na busca ativa como instrumento de cole- significativos do que suas limitações. Estas
ta de dados em pesquisa e vigilância em acabam se tornando transponíveis com o de-
saúde. correr do trabalho e com a experiência em
Considera-se que as vantagens e desvan- visitas.
tagens apresentadas por diferentes autores Portanto, acredita-se que a visita domi-
durante a discussão são evidentes e atuais. ciliar é um método eficaz e meio de execu-
Porém, a experiência durante o trabalho de ção de técnicas ágeis e fidedignas de pesqui-
campo, mostra que existem mais situações a sa, ainda pouco divulgado. É utilizada em ser-
serem relatadas, especialmente no que diz viços de atenção básica, sendo pouco explo-
respeito ao tema da violência. Acredita-se rado do ponto de vista da avaliação de ser-
que os profissionais que atuam nas unidades viços e pouco relatado ao público em geral
de saúde e realizam visitas domiciliares, en- e em publicações de pesquisa.
frentam muitas das dificuldades encontradas, Neste sentido, este artigo pretende ser-
bem como evidenciam também outros bene- vir de incentivo à realização de mais traba-
fícios das visitas no planejamento de ações lhos nesta área, de incentivo a pessoas que
em saúde comunitária. se deparam diariamente com os diversos
A visita domiciliar é um instrumento aspectos da visita domiciliar e possibilitar
eficaz para a vigilância em saúde. A partir da maior embasamento teórico sobre visitas
aproximação com o campo, é possível sinte- domiciliares para profissionais que desen-
tizar considerações sobre a visita como con- volvem programas governamentais, como
tribuição para diferentes tipos de estudos, o Programa de Saúde da Família (PSF) e o
não apenas de mortalidade. Programa de Agentes Comunitários de Saú-
Salientam-se entre os benefícios: o co- de (PACS) ou outros trabalhos em comuni-
nhecimento do contexto social em que vivem dade. Outro aspecto é o de discutir em meio
as famílias e comunidades; a visualização in acadêmico a riqueza e a viabilidade da rea-
loco do que os documentos oficiais mostram lização de pesquisas de fonte primária.
de forma limitada; a identificação do perfil
epidemiológico das comunidades; a avalia- REFERÊNCIAS
ção do impacto das ações dos serviços de
saúde; a identificação de situações de risco; 1 Lopes MJM, Sant’Anna AR, Aerts DRG. A morta-
lidade por homicídios em adolescentes em Porto
o fornecimento de dados para o planejamento Alegre de 1998 a 2000 [projeto]. Porto Alegre (RS):
de políticas públicas direcionadas à promo- GENST/EENF/UFRGS; 2000. 53 f.
ção da saúde; a possibilidade de fazer vigi-
lância em saúde através da busca de falto- 2 Ceccim RB, Machado NM. Contato domiciliar em
sos; a chance de interagir e vivenciar o meio saúde coletiva. Porto Alegre (RS): Universidade
em que os indivíduos vivem; a possibilidade Federal do Rio Grande do Sul; [19--?]. 7 p.
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leta de dados de pesquisa e vigilância em saúde: relato de experiên-
cia. Rev Gaúcha Enferm, Porto Alegre (RS) 2004 abr;25(1):98-111.
111

4 Tyllmann G, Perez SMS. Entrevista e visita domi- 13 Sant’anna AR. Vulnerabilidade ao homicídio:
ciliar. Santa Rosa (RS): SSMA; 1998. 6 p. sócio-história das mortes violentas dos adoles-
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Revista de Enfermagem UERJ, Rio de Janeiro versidade Federal do Rio Grande do Sul; 2000.
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8 Paim JS. A reforma sanitária e os modelos as-
sistenciais. In: Rouquayrol MZ. Epidemiologia e
16 Gaze R, Perez MA. Vigilância epidemiológica. In:
saúde. 4ª ed. Rio de Janeiro: Medsi; c1994. 527 p.
Epidemiologia. São Paulo: Atheneu; 2002. 517 p.
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9 Dilly CML, Jesus MCP. Processo educativo em
enfermagem: das concepções pedagógicas à prática 17 Vasconcelos EM. Educação popular nos servi-
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12 Ministério da Saúde (BR). Diretrizes e normas 19 Goldani AM. As famílias brasileiras: mudanças e
regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres perspectivas. Cadernos de Pesquisa, São Paulo
humanos. Brasília (DF);1996. 1994 nov;(91):7-22.

AGRADECIMENTOS

As autoras agradecem à Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul (FAPERGS) pelo apoio
financeiro e ao Programa Interno de Iniciação Científica (PROPESQ/UFRGS) pela concessão de bolsa à
pesquisa intitulada A mortalidade por homicídios em adolescentes em Porto Alegre de 1998 a 2000.

Endereço da autora/Author´s address: Recebido em: 03/06/2003


Marta Julia Marques Lopes Aprovado em: 06/03/2004
Rua São Manoel, 963
Porto Alegre, RS
CEP: 90.620-110
E-mail: marta@enf.ufrgs.br

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