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ARTIGO / ARTICLE

Práticas Educativas Para a Prevenção do HIV/AIDS:


Aspectos Conceituais
Conceptual Aspects of Educational Practices for HIV/AIDS
Prevention
João Claudio L. Fernandes1

FERNANDES, J. C. L. Conceptual Aspects of Educational Practices for HIV/AIDS Prevention.


Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro,10 (2): 171-180, Apr/Jun, 1994.
The importance and complexity of educational work related to HIV prevention demand a continuing
discussion of its contents. Regarding the ideologic features, it must be assumed that, with the AIDS
epidemic, medical science reaches a dimension of the life relatively preserved from its previous
hegemonic position: sexual behavior. In this field, a coercive attitude on the part of health professionals
may lead to negative reactions. To avoid this, individual and community participation and self-
responsibility are central tools for the improvement of the efficacy of education practices.
The author proposes three components that educational planners should consider: information and its
effects on knowledge, attitudes, and perception related to HIV infection; response facilitation; and
support for individual and collective reflection.
Keys words: Health Education; AIDS; HIV; Prevention

INTRODUÇÃO sos estudos sobre conhecimentos e atitudes re-


lacionados à infecção. Em uma pesquisa reali-
A epidemia do HIV representa uma das mais zada na favela da Rocinha, Rio de Janeiro,
sérias ameaças à saúde pública dos nossos tem- Brasil, por exemplo, observou-se entre os en-
pos. Na falta de métodos preventivos e curati- trevistados um nível bastante razoável de co-
vos eficazes no campo da biologia, as nhecimentos sobre a doença, com mais de 95%
possibilidades de combate à sua propagação de respostas corretas em relação às formas de
continuam sendo amplamente sustentadas no transmissão sexual (Fernandes et al., 1992).
trabalho educativo, visando estimular os ris- Cerca de 45% dos entrevistados, entretanto,
cos de infecção. Esta realidade demanda o acreditavam que a picada de mosquito poderia
constante aprofundamento do debate e da transmitir o vírus, e apenas 8% deles referiram
reflexão em torno das práticas educativas, de usar regularmente o preservativo. A mesma
modo a aumentar sua eficácia e apontar opinião sobre o mosquito enquanto vetor da
caminhos que respondam aos diversos desafios infecção foi compartilhada por 57% dos entre-
a elas relacionados. vistados em um estudo feito numa população
De fato, a questão da mudança de hábitos, de 100 mil norte-americanos (Médecine et
particularmente nos campos diretamente im- Hygiène, 1991). Em um outro inquérito realiza-
plicados na transmissão do HIV, está bem lon- do entre usuários do metrô de São Paulo, regis-
ge de ser simples e transcende, sem dúvida, o trou-se uma referência a mudanças, enquanto
aspecto estritamente informativo, como pode somente 18% deles referiram o uso de preser-
ser observado nos resultados obtidos em diver- vativo (Munhoz et al., 1992). Parker (1991), es-
tudando uma população de homens homo e
bissexuais, relata um amplo conhecimento da
1
Posto de Saúde da Associação dos Moradores e Amigos importância do preservativo como meio de
do Bairro Barcellos. Travessa Flores, 4, Favela da prevenção da infecção, aliado, no entanto, ao
Rocinha, Rio de Janeiro, RJ, 22451-410, Brasil. uso inconsciente deste.

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Fernandes, J. C. L.

Estes resultados apontam para a existência No campo específico da infecção pelo HIV é
de fatores, para além da informação específica forçoso reconhecer que, com a epidemia, a
sobre a AIDS ou subjacentes a ela, que interfe- medicina alcança um campo de intervenção
rem na adoção de comportamentos preventi- social que lhe era até então relativamente
vos eficazes e que devem ser cuidadosamente restrito: a vida sexual das pessoas. A partir de
investigados e considerados no planejamento então, ela passa a normatizar quantidades,
de trabalhos educativos. Disto podemos parcerias e formas de relação sexual permiti-
depreender que a eficiência das atividades de das, definindo, muitas vezes de modo claramen-
educação dependerá fortemente do nível de te coercitivo, novos padrões de comportamento
abrangência e contextualização com que estas sexual. Ou, atualizando a afirmação de Clavreul
forem planejadas e desenvolvidas. (1983: 47), “regulamentando a vida e o gozo, e
Este texto pretende colaborar no levanta- negando qualquer outra razão de viver que não seja
mento de pontos potencialmente a razão médica que faz viver, eventualmente à
correlacionados ao desempenho destas força”. Esta intenção hegemônica se manifesta
atividades. através de posturas muitas vezes sutis e de difícil
visualização, mas com repercussões profundas
tanto no campo da ética quanto, como
ASPECTOS IDEOLÓGICOS DA comentamos anteriormente, na própria eficácia
EDUCAÇÃO PARA A AIDS técnica das atividades propostas.
É preciso ter claro que, se por um lado inte-
Um primeiro ponto a ser considerado refe- ressa aos serviços de saúde e ao Estado o con-
re-se aos conteúdos ideológicos ligados às prá- trole da infecção, é fundamental reconhecer
ticas de educação, ainda pouco discutidos no clara e explicitamente a responsabilidade e li-
contexto da AIDS. Podemos dizer que, de um vre-arbítrio dos cidadãos em definir a conduta
modo geral, existe um conteúdo medicalizador que lhes convém em relação aos riscos de con-
e autoritário embutido em maior ou menor grau taminação. Não queremos, com esta afirmação,
nas práticas de medicina preventiva. Boltanski desconsiderar nem os aspectos mais gerais que
(19889: 45) refere que interferem no comportamento das pessoas, nem
as questões éticas implicadas na decisão
“a atitude autoritária do médico frente aos mem- comportamental. Não se trata, portanto, de cris-
bros das classes populares... nunca aparece tão cla- talizar uma abordagem individualista. Preten-
ramente quanto no exercício da medicina preventiva, demos aqui, sobretudo, reforçar um enfoque
‘medicina da saúde’, que exige, no entanto, para se que julgamos importante, e freqüentemente
completar totalmente, uma estreita colaboração negado, no desempenho das práticas
entre o médico, encarregado de difundir as regras de educativas: a importância do reconhecimento
higiene, e aqueles que devem pô-las em prática”. da auto-responsabilidade, mesmo admitindo
que este tempo guarda uma série de
Se, por um lado, esta atitude alcança, em al- indefinições e ambigüidades. Entendemos que
guns campos, uma certa eficácia na persuasão e cabe aos organismos responsáveis convidar as
adesão das pessoas aos preceitos médicos, pode, pessoas para a discussão, oferecendo informa-
por outro, despertar reações contra-hege- ções para seu julgamento e apreciação, tratan-
mônicas que acabam por dificultar a elabora- do-as, para usar a imagem de Paulo Freire
ção de comportamentos pessoais saudáveis. (1975), não como “vasilhas a serem enchidas”,
Rifkin a& Walt (1986: 564), em um estudo sobre mas como sujeitos, portadores de uma cultura
duas diferentes formas de práticas de saúde, e historicidade e proprietários de seu destino.
apontam para a ineficácia de projetos autoritá- É, portanto, dentro deste contexto ideológico
rios, que não consideram “o longo e lento proces- que as questões mais gerais, da ordem da cultu-
so que conduz à melhoria sustentada da vida das ra e das relações sociais existentes, poderão ser
pessoas”. identificadas e abordadas. Parece-nos que, se

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Prevenção do HIV/AIDS

estes princípios são válidos para quaisquer ati- o regime sanatorial foi importante como
vidades educativas, em relação à AIDS se tor- forma de prevenção de novas infecções, ou
nam essenciais, na medida em que as decisões contraproducente por reforçar um com-
de mudança possuem um caráter especialmen- portamento sexual pouco seguro na popula-
te íntimo, particular e sensível, e, portanto, ção. Embora este dado não possa ser
dependentes de processos autênticos de considerado representativo da opinião da mai-
internalização e elaboração. oria da população cubana – e por isto não se
Em outras palavras, se a necessidade de mu- trata aqui de avaliar aquele programa em si –,
danças de atitudes na vida sexual é percebida ele traz à tona um possível subproduto de uma
como uma imposição de fora, obrigando a res- ação educativa desenvolvida em um contexto
trições num campo até então considerado “li- autoritário que poderá, eventualmente, redu-
vre”, onde a regra, como refere Parker a(1987), zir chances do esperado impacto positivo da-
é a do “vale tudo”, e que vinha alcançando con- quele programa.
quistas cada vez maiores na sociedade, é razoá- A partir destas colocações, podemos deduzir
vel esperar que ocorram reações, também que este aspecto do trabalho educativo tem tam-
dirigidas ao impositor externo, e não às própri- bém uma relação direta com os custos e a auto-
as resistências pessoais. Desta forma, as práti- sustentação das atividades, no contexto social.
cas educativas que objetivam a modificação de Como referem Green & Krenter (1991: 269),
comportamentos não devem ser justificadas
apenas “na medida em que não reduzem a digni- “pedir a comunidades e às organizações que
dade e auto-responsabilidade”, como sugerem implementem programas planejados em outros luga-
McAlister et al. (1991: 3), mas exatamente de res e avaliados nos termos definidos por outrem pode
modo a considerar o processo de res- ganhar alguns adeptos, mas freqüentemente com
ponsabilização e participação pessoal e coleti- compromissos apenas enquanto durar o dinheiro”.
va como ponto essencial da sua estratégia.
Para ilustrar esta questão, julgamos interes- Uma última questão a ser considerada neste
sante levantar alguns pontos referentes à po- ponto é que a importância do reconhecimento
lítica de controle da AIDS em Cuba. Este país do direito e responsabilidade de cada cidadão
diferenciou-se dos demais ao adotar precoce- em definir seu comportamento perante a
mente uma ampla política de controle baseada epidemia conduz à necessidade, como
na testagem compulsória de grupos po- contrapartida, de um posicionamento também
pulacionais cada vez mais abrangentes, na claro por parte dos planejadores de saúde e do
prática da sanatorização de soropositivos e do- Estado sobre suas próprias e específicas respon-
entes, além do trabalho educativo voltado para sabilidades. Para garantir a credibilidade das
a população (DNE/Minsap, 1992). Não nos práticas educativas relacionadas à AIDS, estas
cabe aqui avaliar os eventuais impactos desta devem estar inseridas em um conjunto de ativi-
política no campo epidemiológico ou ético. dades inter-reforçadoras, que caracterizem po-
Queremos, sobretudo, destacar alguns líticas de controle. Isto significa, por exemplo,
possíveis efeitos dela sobre as práticas desenvolver um sistema que garanta a produção
educativas. Santana et al. (1992), que de informações confiáveis em relação à situa-
realizaram um estudo de natureza qualitativa ção da epidemia no país e ao seu perfil
do Programa Nacional de Prevenção e epidemiológico, de modo a prover substratos
Controle da AIDS (PNPCA) cubano entre 1986 consistentes nos quais a população possa basear
e 1990, observaram, entre outros aspectos, que suas avaliações; garantir o acesso aos meios de
muitas pessoas pareciam sentir que estavam prevenção, bem como a serviços de testagem e
protegidas pelas medidas tomadas para isolar tratamento de boa qualidade etc. Estas são algu-
os soropositivos, não precisando, deste modo, mas responsabilidades que o Estado e os profis-
modificar seus hábitos sexuais. A partir desta sionais de saúde precisam assumir, de modo a
observação a autora questiona até que ponto se mostrarem realmente preocupados

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Fernandes, J. C. L.

com a ameaça que a epidemia representa e criar A QUESTÃO DOS GRUPOS DE RISCO
um ambiente favorecedor da conscientização
popular e responsabilização pessoal e coletiva. Uma das conseqüências da adoção de um
modelo teórico autoritário nas práticas
educativas é sua transposição mecânica a con-
FACILITAÇÃO textos diferenciados, já que não considera, na
prática, a participação das pessoas na sua ela-
Dentro do campo educativo, estas questões boração e desenvolvimento. Em relação a este
constituem o que Bandura chama de facilita- aspecto, uma questão a ser avaliada são as es-
ção da resposta (McaAlister et al., 1991). Um tratégias dirigidas especificamente a determi-
aspecto particularmente sensível desta facilita- nados subgrupos populacionais, baseadas na
ção, que queremos destacar, refere-se aos méto- premissa de que o controle da infecção depen-
dos de prevenção, amplamente baseados na deria de uma atuação seletiva nestes grupos.
utilização de preservativos cujo preço, tratan- Estas estratégias têm sido amplamente preco-
do-se de um país pobre, é um viés intransponível nizadas nos Estados Unidos da América e
para ações de prevenção exclusivamente infor- adotadas em diversos outros países. Para discu-
mativas. Uma caixa com três preservativos cus- tirmos esta questão, o primeiro ponto a ser con-
ta atualmente em torno de CR$ 12.000,00 frontado é o fato epidemiológico em si. Existe
(US$ 1.7), o que equivale ao preço de 4,2 litros de no Brasil, como em quase todo o mundo, uma
leite (9/92, Rio de Janeiro). É possível supor que nítida tendência da epidemia de atingir cada
existe um certo número de pessoas que usariam vez mais intensamente a população em geral,
de bom grado o preservativo, sem a necessidade representada particularmente, neste momento,
de grandes discussões, ou em função do que já pelas mulheres (MS, 1992). Em segundo lugar,
sabem sobre a AIDS, ou por intenções a abrangência e o significado das denomina-
contraceptivas, e que simplesmente não podem ções usadas para caracterizar estes subgrupos
adquiri-lo. Ouvimos diversas vezes o relato de “de alto risco” podem variar intensamente en-
jovens que diziam ter de escolher, ao ir a uma tre diferentes culturas. Parker (1978), por exem-
festa, entre tomar um chope ou comprar camisi- plo, faz um interessante estudo sobre os
nhas. A decisão é compreensível. conteúdos atribuídos ao termo “homossexual”
As atividades educativas devem, portanto, no Brasil, confrontando-o com os conceitos
considerar seriamente estes aspectos e elabo- de “atividade” e a “passividade”. Segundo o
rar estratégias que visem garantir o acesso re- autor, o homossexual, nesta cultura, entendido
gular de seu público aos meios facilitadores. como o não-masculino (bicha), seria represen-
Uma alternativa que utilizamos, aparente- tado por pessoas engajadas em práticas homos-
mente com sucesso, é a distribuição periódica sexuais receptivas. As práticas penetrativas são
controlada de preservativos, através de pessoas consideradas genuinamente masculinas, inde-
do próprio grupo ou comunidade, feita a partir pendente do sexo do parceiro. É fácil imaginar
do cadastramento dos interessados as conseqüências práticas desta “falha de per-
(PS.AMABB, 1991). Outra alternativa seria a cepção” por parte dos veiculadores de infor-
distribuição baseada em instituições mações seletivas. Por último, concordamos com
acessíveis. Na medida em que a mudança de as preocupações levantadas por Rifkin a& Walt
hábitos é um processo, a regularidade e a (1986), de que a atuação seletiva em determinados
comunidade destes mecanismos podem ser grupos não implica necessariamente na
pontos decisivos para se alcançar os objetivos inexistência de repercussões para os demais, que
desejados. Neste sentido, deve-se considerar podem implicitamente se considerar com menos
as distribuições eventuais de preservativos em importância ou menor risco de infecção e
palestras ou em determinados eventos como sedimentar hábitos inadequados à prevenção da
atividades limitadas do ponto de vista doença. Desta forma, o objetivo do trabalho
estratégico, embora, como veremos adiante, educativo deve ser a comunidade e todos os seus
úteis eventualmente em termos táticos. membros (Green & Krenter, 1991) e é a partir deste

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Prevenção do HIV/AIDS

contexto que podem ser organizadas atividades série de dinâmicas que podem ser úteis ao tra-
dirigidas especificamente a determinados balho educativo, como os sociodramas ligados
grupos. a situações de risco (pode-se abordar, por exem-
plo, a recusa do parceiro em usar o preservati-
vo, o uso de álcool ou de drogas antes da
CAMPOS DE PRÁTICA EDUCATIVA atividade sexual etc) (Kelly et al., 1989; Kelly &
Lawrence, 1990). A metodologia de Paulo
A partir destas observações, podemos consi- Freire (Freire, 1975; 1978) também pode ser
derar algumas questões mais especificamente adaptada, utilizando-se histórias, palavras ou
ligadas às diferentes formas da prática educativa. situações relacionadas ao problema para gerar
Apesar da importância que atribuímos anteri- a reflexão no grupo.
ormente à regularidade e continuidade do tra- Estas práticas, por sua vez, produzem impor-
balho, as atividades educativas instantâneas, tantes multiplicadores para a conversa
como debates, campanhas, distribuições even- interpessoal. Em relação a este aspecto existe
tuais de preservativos, podem ser também de uma ampla aceitação de que a ação de pessoas
utilidade, desde que reconhecidos seus limites do próprio grupo ou da comunidade otimiza os
e, portanto, assumidas suas possibilidades de efeitos e facilita a continuidade do processo
impacto. Na verdade, uma questão a ser levada educativo (Peterson & Szterenfeld, 1992;
em conta é a da diversidade de métodos e práti- McAlister, 1991; O’Reilly, 1991; Green &
cas que podem atuar sinergicamente para a Krenter, 1991). Existem, entretanto, algumas
aquisição de hábitos preventivos. Existe um variações na estratégia utilizada: alguns pro-
vasto leque de possibilidades de atuação, cada põem uma atuação mais profissionalizada com
uma com suas limitações e potencialidades es- agentes comunitários, geralmente remunera-
pecíficas e cujo conjunto pode influir dos, enquanto outros sugerem a ação de mora-
pesadamente no controle da epidemia. A dores mais como modelos ou referências para
integração de atividades massivas, grupais e os demais. Na nossa opinião, embora ambas as
individuais, continuadas e instantâneas, den- formas de atuação devam ser pensadas em fun-
tro de um contexto participativo, pode ser ção da realidade específica de cada trabalho,
desenvolvida com um custo relativamente re- deve-se levar em conta que uma atuação me-
duzido e favorecer, por vários lados, a nos profissionalizada pode ter um melhor efei-
conscientização e o movimento de adaptação to no sentido da normalização da informação
das pessoas à nova realidade. A importância sobre AIDS, apontando mais claramente para
desta diversificação relaciona-se à própria na- a perspectiva de que cada parente, cada colega,
tureza e complexidade do processo educativo e cada pessoa pode e deve ser uma fonte de edu-
visa, em última análise, discutir e buscar a mu- cação. É possível também que a atuação de edu-
dança nas normas sociais que encorajam o cadores profissionais, mesmo sendo da própria
engajamento de pessoas em comportamentos comunidade, provoque uma impressão de
de risco (Kelly & Lawrence, 1990) e, por outro cooptação e diferença em relação aos demais,
lado, favorecer a reflexão e decisão individuais. passando estes a ser identificados (e também a
Exemplificando, podem ser planejadas ati- se identificar!) ideologicamente mais com a
vidades dirigidas a uma comunidade ou muni- instituição ou com o Estado que os contrata
cípio como um todo, como comemoração do que com seus companheiros.
dia mundial de luta contra a AIDS, shows etc,
aliadas à utilização apropriada da mídia e às
chamadas atividades de marketing social, asso- OS COMPONENTES DAS
ciadas, por sua vez, a encontros grupais etc. A PRÁTICAS EDUCATIVAS
participação da comunidade no planejamento
destas ações, não custa insistir, é crucial em ter- Em relação aos conteúdos do trabalho
mos de factibilidade, efetividade e eficiência. educativo, consideramos a existência de três
Em relação às práticas grupais, existe uma aspectos fundamentais, já mencionados em ou-

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tras partes deste texto, a serem avaliados no seu devemos ter cautela em relação a estratégias
planejamento: a informação a ser oferecida, a voltadas especificamente para aa persuasão e
facilitação da resposta, e o favorecimento da motivação, como, por exemplo, o uso de
abertura de espaços para a reflexão e discussão prêmios ou recompensas. Não queremos com
(Figura 1). Estes aspectos diferem relativamente isto propor uma pretensa neutralidade do
dos conceitos desenvolvidos por McAlister et educador, já que a informação por ele veiculada
al. (1991), baseados na teoria do aprendizado carregará sempre um determinado conteúdo
social de Bandura, na medida em que não se- capaz de influenciar subjetivamente o
paramos a informação dos fatores ligados à per- comportamento, como veremos adiante. Por-
suasão e motivação. Como já mencionamos tanto, será sempre apresentada com conteúdos
anteriormente, é fundamental que as pessoas mais ou menos persuasivos, ou mais ou menos
sejam confrontadas com sua capacidade de re- motivadores. Como diria Torquato Neto, “a
flexão e responsabilidade de decisão; portanto, pureza é um mito”.

FIGURA 1. Componentes do Trabalho Educativo

Processo de Decisão Comportamental

FACILITAÇÃO REFLEXÃO INFORMAÇÃO

• Acesso a meios • Abertura de espaços • Ampliar o conhecimento


de prevenção, de comunicação para
diagnóstico, favorecer tomadas • Melhorar a percepção
tratamento e de posição
aconselhamento - gravidade
- suscetibilidade
- utilidade
- custo
- auto-estima
- auto-eficácia

• Estimular atitudes

- negação

- conflito

- aceitação

INFORMAÇÃO E AIDS Becker (Mehriar & Carballo, 1990) e no PRE-


CEDE Model (Green & Krenter, 1991; Mehriar
Considerando que, em relação aos três el & Varballo, 1990). Desta forma, a veiculação de
ementos constitutivos do trabalho educativo informações relativas ao HIV, nos seus diver-
que propusemos, os aspectos de facilitação e sos níveis, deve considerar três aspectos sobre
reflexão já foram suficientemente abordados os quais inevitavelmente exercerá alguma in-
ao longo do texto, gostaríamos de aprofundar fluência: os conhecimentos das pessoas e suas
um pouco mais o aspecto específico da infor- “falhas” (como a questão do mosquito), suas
mação a ser transmitida nesta prática. Para isto, percepções e as atitudes desta frente à doen-
aproveitaremos alguns elementos teóricos con- ça. Estes três aspectos são certamente
tidos no Health Belief Model (HBM) de Janz & interligados, mas, mesmo correndo o risco da

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Prevenção do HIV/AIDS

segmentação, podemos tentar identificá-los ça pretendida. Desta forma, as informações a


mais especificamente. serem divulgadas devem ser avaliadas em fun-
Os conhecimentos sobre AIDS, como quais- ção de seu possível impacto nestes campos de
quer outros, refletem o terreno efetivo e cultu- percepção, em seu conjunto.
ral em que a informação é lançada (e, portanto, Como já mencionados, as atitudes das pes-
o campo das percepções e atitudes). Desta for- soas frente à AIDS se relacionam diretamente,
ma, voltando à questão do mosquito, é possível embora não exclusivamente, com o conheci-
supor que esta falha tenha relação com uma mento e a percepção que elas possuem do pro-
percepção fatalista da doença (já que ninguém blema. O campo das atitudes revela, entretanto,
pode, efetivamente, se prevenir com seguran- de forma mais nítida, o aspecto histórico e pro-
ça das picadas) e também, ao menos no caso do cessual da questão da mudança de comporta-
Brasil, com a veiculação de informações sobre mentos, daí sua importância na avaliação da
o dengue ou outras doenças provocadas por este informação a ser fornecida. Isto é, o conjunto
vetor que poderiam favorecer a confusão de conhecimento e percepções sobre o HIV
(Fernandes et al., 1992). Diante disto, é preciso influencia a adoção de determinadas posturas
esclarecer a questão de forma direta e objetiva, dentro de um processo pessoal A (ou social) de
mesmo considerando que isto não vá relacionamento com a questão, e a informação
solucionar, por si só, a percepção fatalista su- veiculada poderá, portanto, ser mais ou menos
postamente presente. Possivelmente, esta adequada ao avanço deste processo. Conside-
postura contribuirá para o enfrentamento de rando isto, temos observado três tipos de atitu-
resistências, tornando as pessoas mais des distintos, embora muitas vezes interligados
acessíveis a outras mensagens. Algo como uma no movimento de relação com a epidemia: o
“limpeza de terreno”. É importante, todavia, primeiro se caracteriza por um alheamento do
na avaliação das informações a serem problema, através da negação da auto-suscepti-
transmitidas, o conhecimento prévio destes bilidade ao HIV. O segundo é decorrente da
pontos “falhos” (que podem ser acessados visualização do problema, isto é, da percepção
através de inquéritos CAP, conversas, grupos da susceptibilidade e severidade, e é muitas
focais etc), procurando-se esclarecê-los vezes deflagrado pelo contato com um doente,
diretamente, sem deixar de considerar suas pela conversa regular com um colega ou pela
implicações nos outros campos. divulgação de notícias ou informações
A percepção que as pessoas têm sobre o HIV/ epidemiológicas. Neste momento surge
AIDS, influencia fortemente não só a própria freqüentemente o pânico da doença, e emer-
quantidade e qualidade de informação que é gem suas associações com a questão da morte e
efetivamente assimilada, como se reflete nas outras de conteúdo fantástico, ligadas possivel-
atitudes assumidas frente à questão. Trata-se, mente à sexualidade, punição etc. O terceiro
portanto, de um aspecto fundamental a ser con- tipo se caracteriza por uma desmistificação e
siderado na avaliação da informação a ser aceitação da realidade, onde são traçadas as es-
fornecida. Em relação a isto, o HBM propõe tratégias pessoais de prevenção.
quatro tipos básicos a serem avaliados: A per- Estas observações sobre as atitudes frente ao
cepção da severidade ou gravidade do HIV condensam, de certa forma, os estágios de
problema; a percepção da suscetibilidade mudança referidas por O’Reilly & Higgins
(possibilidade de adquirir a infecção); a (1991), que, utilizando conceitos oriundos de
percepção de utilidade (o sentido de benefício três fontes teóricas distintas (Health Belief
que a modificação de hábitos pode provocar), e Model, Theory of Reasoned Action e Social
a percepção de custo (isto é, as inconveniências Learning Theory), propõem um modelo de
e problemas que esta modificação de hábitos estagiamento do processo de mudança
pode causar). Julgamos importante acrescen- comportamental relacionado ao HIV. Este
tar a estes a noção de auto-estima (Peterson & modelo, já utilizado em programas para redução
Szterenfeld, 1992) e auto-eficácia (McAlister et do tabagismo e de doenças cardiovasculares,
al., 1991), esta última relacionada à consiste em seis estágios: pré-contemplativo
autoconfiança em conseguir efetuar a mudan- (ausência de intenção de mudar o comporta-

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Fernandes, J. C. L.

mento), contemplativo (intenção de mudança CONCLUSÃO


a longo prazo); ação iminente (intenção de
mudança a curto prazo); ação (tentativa de O fato de vivermos cotidianamente influen-
mudança); manutenção (mudança de compor- ciados pelo marketing e condicionados em mai-
tamento a longo prazo) e reincidência (que pode or ou menor grau a operarmos determinados
provocar o reinício do processo ou simples- comportamentos não é um argumento sufici-
mente estacioná-lo). Acreditamos, entretanto, ente para acreditarmos ou aderirmos a um tra-
que este estagiamento é de difícil observação e balho educativo centrado nestas mesmas
aplicação práticas, ao menos em nossa realida- estratégias. O papel do subjetivo e peculiar de
de, onde o acompanhamento e monitoramento cada indivíduo ou grupo deve ser reconheci-
dos trabalhos educativos raramente é feito com do, valorizado e explicado, mesmo que, em fun-
a infra-estrutura necessária. É preciso, por ou- ção de sua própria natureza, dificilmente
tro lado, avaliar com cuidado até que ponto se possam ser controlados e avaliados cientifica-
pode identificar uma similaridade nos proces- mente. “O cotidiano não é científico” (SES-RJ,
sos de mudança relacionados a temas com ca- 1992). O que cada um vai fazer em relação à
racterísticas psicossociais tão distintas, como AIDS será sempre uma questão pessoal e ínti-
o tabagismo, a obesidade e a AIDS. Finalmen- ma, e este fato não deve ser atenuado por ilu-
te, consideramos que a mudança de atitude em sões onipotentes comportamentalistas.
relação à epidemia do HIV não se processa de Cabe-nos, como profissionais de saúde, fazer
forma linear, através de estágios, mas antes atra- nossa parte, da melhor forma possível, e acre-
vés de um dinâmico e instável processo de ditar na capacidade das pessoas de desejar e
aprofundamento progressivo destes diversos buscar uma melhor condição de vida, apesar
movimentos no decorrer do tempo. Desta for- de todas as dificuldades que, aliás, também são
ma, a informação a ser veiculada nos trabalhos as nossas, enquanto seres humanos.
educativos individuais, grupais e coletivos deve
ter em conta as atitudes que estão sendo toma-
das, buscando-se compreendê-las enquanto um RESUMO
processo e fortalecer seu aprofundamento atra-
vés da identificação de problemas relaciona- FERNANDES, J. C. L. Práticas Educativas
dos à percepção existente sobre a questão e às Para a Prevenção do HIV.AIDS: Aspectos
lacunas verificadas no seu conhecimento. Conceituais. Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro,
Um último comentário, a título de ilustra- 10 (2): 171-180, abr/jun, 1994.
ção, em relação ao conteúdo das informações A importância e complexidade do trabalho
relacionadas ao HIV, é a forma como são asso- educativo voltado para prevenção do HIV de-
ciadas, nas mensagens educativas, a sexualida- mandam o constante aprofundamento de seus
de, a morte, o desconhecido, o incurável, o conteúdos. Do ponto de vista ideológico, é pre-
trágico, o doente, o feio. Consideramos que este ciso levar em conta que, com a epidemia, a
coquetel deva ser tratado com o maior cuida- medicina alcança um terreno até então relati-
do, já que a sensação de impotência que ele vamente preservado do seu projeto hege-
freqüentemente provoca não combina, de mônico: a vida sexual das pessoas. Uma postura
modo algum, com a positividade e vitalidade normatizadora coercitiva em relação a este
do sexo. Embora tenhamos a compreensão da campo pode levar a uma reação prejudicial à
realidade destes aspectos, julgamos importan- adoção de comportamentos mais seguros. Para
te buscar uma informação relativa e progressi- evitar este tipo de prática, deve-se considerar a
vamente mais normalizada sobre a AIDS, cujos importância da participação e auto-
meios de prevenção podem ser apresentados responsabilização dos indivíduos na preven-
de um modo mais vitalizado e positivado. Afi- ção da infecção. O estado deve também assumir
nal, esta não é a única doença incurável de sua própria responsabilidade em garantir os
nossa época, nem está relacionada, ao menos meios de facilitação necessários à mudança de
biologicamente, à impotência sexual. comportamentos.

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Prevenção do HIV/AIDS

A partir destas premissas, o autor propõe três McALISTER, A. L.; PUSKA, P.; ORLANDI, M.;
aspectos a serem avaliados no planejamento BYE, L. L. & ZBYLOT, P. L., 1991. Behaviour
dos trabalhos educativos destinados à preven- Modification: Principles and Illustration. 2nd
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