Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
e Apoio Matricial
DE EDUCAÇÃO
PERMANENTE
EM SAÚDE
DA FAMÍLIA
UNIDADE 1
Clínica ampliada
Embora no imaginário popular a clínica esteja fortemente ligada à figura médica, todos os
profissionais da saúde possuem sua própria clínica. Campos (2009) descreve como a clínica
é percebida e que na concepção dos profissionais de saúde “A objetividade da clínica é for-
necida pelo conhecimento acumulado em protocolos e diretrizes construídos com base em
evidências” (p. 68-69). O autor ainda nos coloca alguns conteúdos e técnicas que permitem
ao profissional escrever parte da história do processo de adoecimento de uma pessoa, entre
elas a semiologia da doença e avaliação do risco, por meio de entrevistas, exames físicos e
coletas de dados provenientes de laboratórios, imagens ou anatomopatológicos. Esse con-
junto de conhecimentos legitima a autoridade do profissional de saúde frente a um usuário.
Para Campos (2009), essa concepção de saúde não está presente apenas no profissional.
Ela é mantida por três sujeitos nesse processo: o profissional, o usuário e o gestor. Entre os
usuários, é forte a concepção de saúde como um “bem de consumo”, então o momento de
encontro com o profissional de saúde deve ser rápido, resolutivo, com a prescrição de algum
produto a ser consumido pelo usuário que resolva o seu problema. As pessoas querem a
receita e o encaminhamento dos médicos, os choquinhos e a massagem do fisioterapeuta,
a dieta milagrosa da nutricionista, e assim por diante.
Na nossa situação problema, você pode verificar essa concepção no momento em que
a equipe cita os usuários e sua busca pelas “receitas azuis”, como popularmente são
conhecidas as receitas de medicamentos controlados — no caso da situação problema, os
benzodiazepínicos. Esse modelo favorece a criação de relações rápidas e superficiais entre os
profissionais e os serviços, favorecendo a busca por outros locais de trabalho para preencher
o tempo restante e melhorar o salário. Os gestores, por sua vez, caso não sejam implicados
com a qualificação da saúde ou a mudança no modelo de atenção, ficam diante de um cenário
favorável à desqualificação da atenção, em que só precisam mediar a relação entre usuários
e profissionais, dando a cada um o que querem. O resultado é o consumo de procedimentos
nas sintomatologias e pouca resolutividade sobre as causas dos problemas de saúde.
Arouca (1975), em sua tese O Dilema Preventivista, afirmou que uma escola médica norteada
pela clínica biológica, tendo o hospital como local privilegiado para formação e centrada
em procedimentos, gera profissionais descontextualizados das necessidades de saúde da
população. Por isso, a necessidade de compreender a particularidade de cada pessoa e de
cada comunidade é fundamental para ampliar a capacidade resolutiva de uma equipe, seja
ela uma Estratégia Saúde da Família, um NASF, seja um consultório na rua.
Historicamente, uma falsa dicotomia entre clínica e saúde coletiva permeou o espaço dos
serviços de saúde. A atenção primária é vista por alguns profissionais como local exclusivo
para prevenção e ações coletivas, mesmo contendo profissionais que realizam apenas as
condutas clínicas individuais e estas ocorrem no período patogênico, conforme descrito no
modelo da história natural da doença.
A clínica tradicional é um modelo surgido nos ambientes hospitalares e que acabou por ser
reproduzido nos demais pontos do sistema de saúde. Contudo, este não consegue respon-
der às demandas de necessidade de saúde de uma população, gerando algumas situações
que são objetos de estudo:
A clínica tradicional
• Descontinuidade do cuidado
A descontinuidade do cuidado é reflexo da fragmentação do processo de trabalho.
Cada acesso do usuário aos profissionais da rede é isolado, não havendo continui-
dade entre as ações de cada profissional. Exemplo: no tratamento de um usuário
com diabetes, não há um cuidado pactuado dos papéis da Equipe de Saúde da
Família com o endocrinologista da média complexidade ou com o nutricionista
ou o educador físico do NASF.
Todos temos algo que orienta nossa forma de agir, que é construído na relação entre nossa
personalidade e a cultura na qual estamos inseridos. Se pensarmos em culturas diferentes,
será que a concepção sobre ter saúde é a mesma para um árabe, um norte-americano, um
coreano, um alemão e um cubano?
E se olharmos para um mesmo país, o Brasil, por exemplo: será a concepção de saúde para
um amazonense a mesma de um paulistano, de um baiano, de um goiano ou de um gaúcho?
Ou de um índio de uma tribo do Xingu, ou um agricultor de assentamento sem-terra, um mora-
dor de comunidade ribeirinha, ou quilombola? Para homens, mulheres, crianças ou idosos?
Todos temos um conjunto de valores que orientam nossa conduta na vida, seja o que acredita-
mos ser saúde, seja a forma de nos relacionar com o mundo. Estar sensível às particularidades
nos deixa mais próximos de entender o outro e auxilia no momento de pactuar um tratamento.
No caso da nossa situação problema, fica claro que existem outros fatores que desenca-
deiam a utilização de benzodiazepínicos e anti-inflamatórios, principalmente a situação social
da família. Para o enfrentamento do problema, foi preciso mobilizar um conjunto de ações
enquanto ofertas para atingir as causas do adoecimento e não apenas os seus sintomas.
Os serviços de saúde também são organizados por níveis hierárquicos. Quanto maior o nível
hierárquico, maior o suporte de tecnologias duras (eletrocardiograma, ventilação mecânica
etc.), maior a especialização do serviço (centro de referência em cardiologia, em oncolo-
gia, uma maternidade etc.), e menor a autonomia do usuário sobre o “projeto terapêutico”
proposto para reestabelecer sua saúde (geralmente organizado por protocolos clínicos e
rotinas dos serviços). Esse é o caso de um hospital, por exemplo. Nesse tipo de ambiente, é
forte e necessária a preocupação com a velocidade no diagnóstico e na conduta, e menor a
consideração sobre as relações sociais dos indivíduos e a influência destas no processo de
adoecimento e reestabelecimento da saúde.
Quando olhamos para a atenção primária, temos menor aporte de tecnologias duras, com
o predomínio das tecnologias leves (vínculo, escuta qualificada, negociação de projetos) e
leve-duras (conhecimentos de Clínica, Antropologia, Geografia, História, etc.), devido a uma
grande complexidade de fatores que interferem na vida das pessoas e no processo de saú-
de-doença (moradia, renda, condições sanitárias, lazer, educação etc.). Nos espaços em que
ocorre a atenção primária, os usuários possuem mais autonomia para aderir ou não às pro-
postas terapêuticas das equipes, conforme façam sentido ou não em suas vidas.
SERVIÇOS DE SAÚDE EM
MENOR NÍVEL HIERÁRQUICO
Figura 1 - Características dos serviços de saúde de acordo com seus níveis hierárquicos
Veja que:
Tecnologia leve-dura: refere-se aos saberes bem estruturados que operam no pro-
cesso de trabalho em saúde, como a clínica médica, a epidemiologia, o taylorismo.
Observou as diferenças hierárquicas dos serviços de saúde? Elas são importantes para com-
preendermos a clínica ampliada, que é o conteúdo de nossa próxima aula. Até lá!
Clínica ampliada e apoio matricial
Clínica ampliada 7
Aula 3: O que é clínica ampliada?
Vamos, agora, refletir o que afinal é clínica ampliada, começando pelo conceito definido na
Política Nacional de Humanização – PNH.
Clínica ampliada: um compromisso radical com o sujeito doente, visto de modo singular. É
assumir a RESPONSABILIDADE sobre os usuários dos serviços de saúde, buscar ajuda em
outros setores, ao que se dá o nome de INTERSETORIALIDADE. É ainda RECONHECER OS
LIMITES DOS CONHECIMENTOS dos profissionais de saúde e das TECNOLOGIAS por eles
empregadas, buscar outros conhecimentos em diferentes setores e assumir um compro-
misso ÉTICO profundo.
Eixo Orientação
Algumas sugestões encontradas na PNH podem auxiliar você e sua equipe no processo de
ampliação do olhar:
• Exercitar a escuta qualificada dos usuários, acolhendo todo relato ou queixa, mesmo que aparen-
temente não contribua em um primeiro momento para o diagnóstico ou terapêutica – essa atitude
pode ajudar a reconstruir e a respeitar os motivos que ocasionaram o seu adoecimento. Isso tam-
bém o auxiliará a compreender a relação da doença com sua vida e a corresponsabilizá-lo. Mesmo
não podendo ampliar a escuta de forma detalhada em todos os casos, é preciso priorizar os que
precisam mais, mas os outros encontros clínicos podem ser menos duros se norteados com alguns
elementos da vida.
• Essa atitude também colabora com o fortalecimento de vínculo e afetos, o que aumenta as pos-
sibilidades e chances de ajudar a pessoa doente a ganhar mais autonomia e lidar com a doença.
Veremos na Unidade 3 que o vínculo é uma importante diretriz para o trabalho das equipes de
referência, tanto com as famílias quanto para melhorar a relação entre os profissionais da equipe.
• Culpa e medo não são bons aliados. Eles geram resistência e humilhação. Não precisamos de culpa-
dos, e sim de corresponsáveis, pois um plano pactuado entre equipe e usuários gera cumplicidade;
se der certo, foram os dois; e se não estiver dando, a responsabilidade deve ser compartilhada tam-
bém, pois isso diminui as resistências e os abandonos aos tratamentos. Mudar hábitos de vida nem
sempre é fácil: em vez de prescrever mudanças, você pode ofertar experiências novas, novas sensa-
ções prazerosas, por meio de uma atividade física e mudanças alimentares. Não existe só um jeito
saudável de viver a vida. Diálogo e informação são boas ferramentas e lembre-se:
A doença não pode ser a única preocupação da vida de uma pessoa. [...]
Até lá!