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15842016 2469
ARTIGO ARTICLE
no entendimento da doença: discurso médico e subjetividade
Abstract Recent discussions in medical discourse Resumo Discussões recentes acerca do discurso
seek to demonstrate the apparent progressive médico buscam demonstrar o aparente esqueci-
omission of the subject as well as the notion of mento progressivo do sujeito, assim como da noção
subjectivity in the development of modern med- de subjetividade, no desenvolvimento da medici-
icine, both in its foundations in clinical practice na moderna, tanto em seus fundamentos na prá-
and in its basic theoretical framework. As a result, tica clínica quanto em seu corpo teórico de base.
they reveal that medicine has evolved in the un- Com isso, mostram que a Medicina evoluiu no en-
derstanding of the ailment, while still leaving a tendimento da doença, embora ainda mantenha a
blind spot regarding the experience of suffering. In experiência do sofrimento como ponto cego. Como
terms of a reaction countless attempts to restore reação, são realizadas inúmeras tentativas de res-
subjectivity in the therapeutic process and medi- tituir a subjetividade no processo terapêutico e no
cal discourse were have been conducted, aiming at discurso médico, buscando um cuidado integral e
comprehensive and humanized care through what humanizado através do que podemos considerar
might be called exteriority discourse. Using Jung’s como discursos de exterioridade. Tendo por refe-
analytical psychology as a benchmark, the experi- rencial a Psicologia Analítica de Jung, analisamos
ence of suffering and its consequences are present como a experiência do sofrimento e seus desdobra-
in clinical practice as expressions of subjectivity in mentos estão presentes na prática clínica, como
the theoretical and practical fields. expressão de subjetividade, nos campos teórico e
Key words Comprehensiveness in health, Sci- prático.
ence, Physician-patient relations, Psychology, Palavras-chave Integralidade em saúde, Ciência,
Clinical medicine Relação médico-paciente, Psicologia, Clínica mé-
dica
1
Universidade Federal
de Alagoas. Av. Lourival
Melo Mota, Tabuleiro dos
Martins. 57072-970
Maceio AL Brasil.
maddyxpp@gmail.com
2470
Palmeira ABP, Gewehr RB
Na dicotomia criada entre ciência médica e tum hominem [a arte requer o homem inteiro].
clínica médica, a prática foi sendo dominada pela Jung insiste na totalidade do terapeuta em con-
técnica – como aplicação de um saber, dando es- traposição ao dogmatismo atribuído à aplicação
pecial ênfase ao diagnóstico e ao conhecimento automática da teoria, através do posicionamento
acerca de doenças. Em contrapartida, a crescente de que o “o uso de teorias deve ser evitado, exce-
busca por práticas complementares e alternativas to como auxiliar. A partir do momento em que
retoma a importância da relação estabelecida en- viram dogma, é evidente que alguma dúvida
tre paciente e médico, em sua dimensão simbó- interior está sendo suprimida”15. Em termos de
lica. referencial teórico, essas afirmações não conse-
Não se pode mais entender a doença como um guem sustentação no conhecimento biomédico
ens per se, como uma coisa desenraizada, como há da Medicina, estão em oposição a seus principais
algum tempo atrás se julgava que fosse. A medicina fundamentos. Do ponto de vista psicológico,
moderna, a clínica geral, por exemplo, concebe a contudo, esse mecanismo se repete a cada inter-
doença como um sistema composto de fatores pre- venção médica.
judiciais, e de elementos que levam à cura12. Por tradição, o objeto principal da Medicina
Por outro lado, “a doença faz o homem mais corresponde ao corpo mais que à psique – sendo
corporal, torna-o corpo e nada mais”13. A prin- esta considerada apenas mais um fator biológico
cípio, essas palavras podem ser tomadas como – no qual o homem aparece na qualidade de fe-
justificativa para a exclusão da subjetividade. nômeno fisiológico e anatômico. Assim, pouco se
Todavia, em um contexto ampliado, também po- fala sobre fatores intermediários entre a constru-
dem ser pensadas como a afirmação da experi- ção do conhecimento científico e sua aplicação
ência do adoecimento e do discurso do paciente. na prática clínica. Idealmente, caberia ao médico
Se, enfermo, o ser humano é nada mais que um simplesmente dispor da tecnologia mais avan-
corpo doente, isto garante sua total inserção na çada e do conhecimento mais atual, e isso seria
concretude da doença. Com isso, é sua vivência o suficiente. Ao contrário da ideia de Jung que
que intuitivamente norteia seu conhecimento aponta a personalidade do terapeuta como fator
sobre a patologia, mais que qualquer tentativa de fundamental para a cura, na Medicina a eficácia
medicalização via informação de conhecimento está na apropriação integral do conhecimento já
científico. Ou seja, “alegações de medicalização produzido.
subestimam a habilidade de resistir a ideias médi- Opondo-se a isto, Guerra6 pontua o desejo
cas e ainda contar com o próprio conhecimento e de curar e conhecer como marcantes na prática e
experiência”10. Jackie Pigeaud14 acrescenta, nesse inerentes à atuação do profissional. Consideran-
sentido, um aspecto importante. Diz o autor que do as ideias expostas acima, todavia, o não reco-
independentemente de a doença ser realidade ou nhecimento desses aspectos posiciona-os entre
ilusão, existe uma realidade do sofrimento, “ain- os conteúdos que permanecem negligenciados,
da que se trate de uma realidade do imaginário. A embora presentes, inadvertidamente, na relação
ilusão faz sofrer tanto quanto”. É nesse interseção formada no contato com o paciente. Seguindo a
entre real e imaginário que o saber médico aca- perspectiva junguiana14 e a dinâmica de funcio-
ba calando, ou atribuindo tão somente um valor namento da psique que ela propõe, isto implica a
ético à dimensão da subjetividade, o que descon- necessidade de reconhecer os processos psíquicos
sidera o aspecto epistemológico da estrutura do que se manifestam espontaneamente durante o
adoecimento. Se há necessidade de se considerar tratamento. Ou seja, o relacionamento estabele-
o ser humano integralmente, essa dimensão não cido entre médico e paciente, enquanto relação
pode ser excluída da razão terapêutica, sob pena profissional e humana, pode ilustrar e reprodu-
de reduzirmos o alcance do potencial terapêuti- zir uma tendência à unilateralidade do sistema
co. psíquico, na qual alguns conteúdos permanecem
Jung15 distingue Psicoterapia e Medicina, e inconscientes. A evitação sistemática do saber
afirma que, na Psicoterapia, a personalidade do inerente à experiência do adoecimento é algo
psicoterapeuta constitui o fator principal para a que pode excluir aspectos sutis dos quadros pa-
cura. Enquanto aplicar a mesma lógica à prática tológicos, tais como adoecimentos recorrentes,
médica em geral pode mostrar-se uma emprei- adesão ao tratamento, maior ou menor resposta
tada precipitada, o conflito entre prática clínica às terapêuticas, bem como aspectos relacionados
e conhecimento científico, dentro da Medicina, à maior ou menor disposição dos profissionais
pode ser tomado como evidência para refletir com este ou aquele paciente, com esta ou aquela
sobre as implicações da máxima Ars requirit to- técnica terapêutica, com as próprias ansiedades
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Colaboradores
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