Você está na página 1de 10

DOI: 10.1590/1413-81232018238.

15842016 2469

O lugar da experiência do adoecimento

ARTIGO ARTICLE
no entendimento da doença: discurso médico e subjetividade

The place of the experience of illness in the understanding


of ailments: medical discourse and subjectivity

Amanda Barros Pereira Palmeira 1


Rodrigo Barros Gewehr 1

Abstract Recent discussions in medical discourse Resumo Discussões recentes acerca do discurso
seek to demonstrate the apparent progressive médico buscam demonstrar o aparente esqueci-
omission of the subject as well as the notion of mento progressivo do sujeito, assim como da noção
subjectivity in the development of modern med- de subjetividade, no desenvolvimento da medici-
icine, both in its foundations in clinical practice na moderna, tanto em seus fundamentos na prá-
and in its basic theoretical framework. As a result, tica clínica quanto em seu corpo teórico de base.
they reveal that medicine has evolved in the un- Com isso, mostram que a Medicina evoluiu no en-
derstanding of the ailment, while still leaving a tendimento da doença, embora ainda mantenha a
blind spot regarding the experience of suffering. In experiência do sofrimento como ponto cego. Como
terms of a reaction countless attempts to restore reação, são realizadas inúmeras tentativas de res-
subjectivity in the therapeutic process and medi- tituir a subjetividade no processo terapêutico e no
cal discourse were have been conducted, aiming at discurso médico, buscando um cuidado integral e
comprehensive and humanized care through what humanizado através do que podemos considerar
might be called exteriority discourse. Using Jung’s como discursos de exterioridade. Tendo por refe-
analytical psychology as a benchmark, the experi- rencial a Psicologia Analítica de Jung, analisamos
ence of suffering and its consequences are present como a experiência do sofrimento e seus desdobra-
in clinical practice as expressions of subjectivity in mentos estão presentes na prática clínica, como
the theoretical and practical fields. expressão de subjetividade, nos campos teórico e
Key words Comprehensiveness in health, Sci- prático.
ence, Physician-patient relations, Psychology, Palavras-chave Integralidade em saúde, Ciência,
Clinical medicine Relação médico-paciente, Psicologia, Clínica mé-
dica

1
Universidade Federal
de Alagoas. Av. Lourival
Melo Mota, Tabuleiro dos
Martins. 57072-970
Maceio AL Brasil.
maddyxpp@gmail.com
2470
Palmeira ABP, Gewehr RB

Introdução foco de debate neste ensaio. A opção que fazemos


por enfatizar o fator psicológico nesse quadro
A prática clínica, enquanto objeto de estudo, é complexo tem como objetivo ressaltar o lugar da
fonte incessante de inquietações e pesquisas que subjetividade nessa problemática, e também su-
visam a melhor compreensão dos processos de gerir que a inclusão dessa dimensão é primordial
adoecimento e cura, o aperfeiçoamento de proce- para avançarmos na ideia de atenção integral à
dimentos e consequentemente da atenção presta- saúde.
da à população. As considerações aqui realizadas Apesar das discussões sobre humanização, o
possuem como plano de fundo a prática clínica, lugar da subjetividade, principalmente na ins-
como parte de um programa de Residência Mul- tituição hospitalar, é o de exceção. Com isso, o
tiprofissional em hospital universitário. Nesse psicólogo é convidado a agir para complementar
sentido, partimos de um campo polifônico e que a prática médica, o que não significa necessaria-
causa estranhamentos diversos. Embora a prática mente dar lugar à subjetividade do paciente. Por
clínica seja ampla e complexa, no que diz respeito outro lado, o médico, respaldado por sua cienti-
ao ambiente hospitalar, ela ainda é orientada pela ficidade, assume o papel de imparcial e objetivo.
atuação médica. Se adicionarmos a isso a presen- Dentre as possibilidades de reconhecimento
ça do hospital ao longo da formação dos profis- dos efeitos da subjetividade, podemos enunciar a
sionais de saúde, podemos observar alguns ele- não adesão ao tratamento, a crença na cura, e até
mentos-chave de como se pensa a prática clínica, o choro. Nesse sentido, o discurso do paciente,
suas potencialidades e seus limites, sobretudo como tentativa de contextualização do adoeci-
quando considerada apenas a partir do ponto de mento, pode representar a resistência à supressão
vista do modelo biomédico. O lugar atribuído à da subjetividade. Na prática clínica, é comum
subjetividade neste ambiente servirá, por sua vez, que surja a demanda profissional referente ao
como elemento de observação dos aspectos mais “entendimento da doença”, a partir da qual se
estruturais que se fixaram no modelo de saúde supõe que o paciente é incapaz de compreender
atual. Partindo do ponto de vista da inserção da todos os aspectos contidos em seu diagnóstico.
Psicologia neste contexto, este ensaio problema- Contudo, a escuta clínica permite entrever que
tiza a prática clínica e a centralidade do modelo a preocupação com a falta de entendimento do
biomédico tal qual nossa experiência nos per- paciente pode corresponder à paralização do mé-
mitiu visualizá-los. A partir disso, e ao trabalhar dico ou da equipe frente à subjetividade. Diante
diretamente com as demandas de profissionais dessas manifestações mais ou menos evidentes
de saúde, propomos a discussão sobre as relações da subjetividade, mais ou menos em acordo com
estabelecidas na clínica como desafios à imple- as propostas terapêuticas, cabe interrogar o que
mentação da integralidade em saúde e possíveis está sendo expresso nessas demandas, como se
entraves na visão do sujeito como um todo. manifestam em pacientes e nos profissionais e as
Isso depende, todavia, de uma revisão dos condições de acolhimento de demandas dirigidas
fundamentos epistemológicos que norteiam a à equipe de saúde.
prática, pois além de dificuldades que poderiam
ser atribuídas a questões estruturais ou contextu- Entre a compreensão da patologia
ais, a própria perspectiva dos processos de ado- e a experiência do adoecimento
ecimento e cura interferem no modo como nos
dirigimos aos pacientes e usuários dos serviços Uma das noções para pensar a clínica é a pa-
de saúde. Neste plano de interrogação, as solu- tologia, a qual perpassa diversas finalidades tera-
ções possíveis, se não podem prescindir da luta pêuticas e discursos e segue sendo, como aponta
por condições adequadas de trabalho, dependem Canguilhem1, fundamental para a atividade clí-
também da transformação de postura e de com- nica. Dessa forma, a compreensão da patologia
preensão diante das demandas por parte de pes- embasa a prática e está contida em uma estrutu-
soas em sofrimento. A contribuição da psicologia ração específica do saber. Para Tesser e Luz2, “as
clínica nos servirá como base de reflexão, sem patologias não só ganharam centralidade teórica
desconsiderarmos que a atenção à saúde é um e metodológica (...) como sofreram um processo
sistema complexo, que envolve múltiplas abor- de ontologização que lhes imprimiu existência
dagens e a necessidade de permanente reflexão, independente no ideário biomédico”. Por outro
em vários eixos que vão das políticas públicas, lado, há na posição de Canguilhem a demanda
passando pelas condições de trabalho e chegan- pela reintegração desse fator independente, que
do também ao plano epistemológico, que é nosso pode ser pensada a partir de um sujeito e dos
2471

Ciência & Saúde Coletiva, 23(8):2469-2478, 2018


desdobramentos inclusos na apreciação da expe- tares e alternativas, consideramos que, ao invés
riência do adoecimento. Ou seja, trata-se aqui de de tratar a fala do paciente como incorreta, faz-se
refletir sobre o lugar da compreensão da patolo- necessário reconhecer sua presença como inte-
gia e da experiência do adoecimento, por si mes- grante do processo de adoecimento e cura.
mas necessariamente relacionadas e no cerne da Isto pode ser evidência de quanto a presença
sustentação de todas as práticas clínicas. de fatores subjetivos é geradora de incômodo e
Apesar de a doença reter o caráter de entidade rupturas dentro da dinâmica do tratamento. Di-
quase independente que acomete alguém e mo- ferentes perspectivas em relação ao lugar da sub-
difica sua existência1, há ainda um efeito estru- jetividade nos processos de adoecimento e cura
tural do adoecimento na necessidade de se com- podem conduzir a distintos direcionamentos te-
preender tal experiência. Segundo Nascimento et rapêuticos, o que pode levar a incomunicabilida-
al.3, é possível identificar diferentes sistemas de des entre áreas envolvidas na atenção à saúde. A
pensamento dentro da Medicina que auxiliam a inclusão desses fatores é o que nos levaria a uma
refletir acerca da racionalidade médica; reunindo sistematização integral de saúde, pela proble-
noções de anatomia e fisiologia, saúde e doença, matização das implicações de tal abertura e do
padrões de diagnóstico e direcionamento de in- afastamento que ela pode suscitar entre práticas
tervenção terapêutica, além de um referencial fi- diversas. A partir dessa análise de rupturas e dis-
losófico de base. Dentre esses sistemas, destaca-se tanciamentos é que se pode pensar em refazer o
o paradigma biomédico, o qual “enfatiza concep- caminho do diálogo interdisciplinar, que é condi-
ções (...) centradas na doença e no controle do ção fundamental para que os serviços prestados
corpo biológico e social, compatíveis com a visão na área da saúde possam estar mais em sintonia
de controle sobre a natureza”3. Do ponto de vista com as pessoas que demandam atenção.
epistemológico, isso traduz a equivalência entre
real e racional, e a Medicina ainda está grande- O enfoque na patologia
mente inserida nesse paradigma.
As críticas voltadas ao aspecto político e so- Ao pensar as áreas de atuação em saúde, o
cial da Medicina e o movimento que questiona desenvolvimento e a constante atualização do
sua base epistemológica parecem apontar algu- conhecimento possuem o objetivo de aumentar
ma insuficiência nesse paradigma. Na ênfase ao a eficácia terapêutica. O dado biológico é justifi-
fisiológico, a prática médica acentua a cisão entre cado em sua validação terapêutica. O núcleo cen-
corpo e psiquismo, e o caráter impositivo de sua tral de atividade terapêutica da Medicina concen-
normatividade ameaça a apropriação do adoeci- tra-se na intervenção tecnológica:
mento por parte do indivíduo. Ambos os casos a tendência metodológica a decompor o obje-
se opõem às demandas sociais e à perspectiva de to em elementos, a comparar esses elementos em
saúde atuais. si e ordená-los em uma totalidade racionalmente
A Psicologia clínica mostrou que o paciente montada e hierarquicamente recomposta, perma-
tinha algo a dizer sobre seu sofrimento, que a nece dominante na base da maioria das discipli-
ação tecnológica baseada na biologia pode ser in- nas, sobretudo nos grandes ramos das ciências mais
suficiente para alcançar a cura, e que há um com- próximas da vida humana: a biologia e a medici-
ponente psíquico a ser reconhecido no adoeci- na, ou melhor, uma certa medicina racionalista e
mento. Adentramos, assim, no plano de interro- mecanicista4.
gação que diz respeito à expressão e à experiência Essas características permitem pensar a saúde
do sofrimento. Se a ciência médica destaca a neu- e a doença em termos naturais, com base no estu-
tralidade, a clínica tem que lidar com o sujeito do de diversos sistemas. De forma complementar,
por imposição prática. Mesmo que somente nos conta-se com um sistema classificatório, baseado
casos onde o tratamento não se mostra adequa- no agrupamento de características patológicas.
do, o doente ganha voz, e os problemas começam Para Fonseca e Stauffer4 há correlação entre a uti-
quando há dissonância entre a fala do paciente e lização do referencial mecanicista e o desenvol-
a fala do médico. Mais uma vez, o corpo de co- vimento de modelos classificatórios. Quer dizer:
nhecimento da medicina é posto em questão pelo [...] a patologia detém sobre a prática clínica a
reconhecimento da distância entre a experiência liderança da teoria e o privilégio da ciência sobre
do sofrimento e o conhecimento da patologia. a arte, obtendo-se, dessa forma, uma dupla objeti-
Tomando como exemplo o frequente ques- vação: do corpo humano, que se torna a ‘sede das
tionamento da prática médica em comparação doenças’, e das doenças que se tornam ‘entidades
com a crescente busca por práticas complemen- patológicas’5.
2472
Palmeira ABP, Gewehr RB

Segundo Guerra6, adotando o pensamento A fundamentação da escuta da experiência


de Canguilhem, a prática médica é resultado de do adoecimento
um conhecimento que possui, ao mesmo tem-
po, aspectos tecnológicos e antropológicos. A O paciente, inicialmente inserido no trata-
centralidade na patologia, todavia, significou o mento por meio de uma escuta com o objetivo de
rompimento com aspectos doravante relegados à colher informações que auxiliem o desenrolar do
metafísica – como a própria noção de cura – face trabalho clínico, retorna no discurso médico re-
à necessidade de desenvolvimento tecnológico presentado pela patologia e é, desse modo, forçado
do saber médico. Outrossim, a ênfase tecnológica ao anonimato7. Neste espaço, há sempre a tendên-
dentro de uma base biológica do conhecimento cia a pensar a escuta como questão ética mais que
parece provocar a transição do fator humano técnica. Por outro lado, da mesma forma como
para um segundo plano, reapropriado inicial- apontado por Dunker e Kyrillos Neto8 e Nader9
mente sob a forma de individualidade orgânica. em relação aos novos modelos de atenção à saú-
Contudo, apesar de críticas, é inegável o avan- de mental, o enfoque social das políticas públicas,
ço e a precisão conquistados através do enfoque criticando as relações de poder estabelecidas e o
no entendimento da patologia. O corpo é cons- caráter prescritivo do saber médico, corre o risco
tituído como realidade biológica e, no cenário de produzir novas formas de normatividade, às
da prática médica, mais que em qualquer outra quais é fundamental estar atento. Supõe-se estabe-
área, a precisão e o manejo da técnica fazem toda lecer as melhores condições para o “usuário”, em-
a diferença. Por isso, como aponta Canguilhem1: bora isso seja de fato bastante relativo e não esteja
Não se trata absolutamente de dispensar os livre de ser uma imposição a mais, como a palavra
médicos de estudar a fisiologia e a farmacodinâ- do médico. Assim, humanizar o atendimento não
mica. É muito importante não confundir a doença é sinônimo de incluir a experiência subjetiva do
com o pecado nem com o demônio. Mas só porque adoecimento no processo terapêutico.
o mal não é um ser não se deve concluir que seja A exigência por evidências e cientificidade
um conceito desprovido de sentido, ou que não nos faz abdicar de nossos próprios insights e in-
existam valores negativos, mesmo entre os valores tuições como inapropriados10. Por isso, a presen-
vitais; não se pode concluir que, no fundo, o estado ça da subjetividade do paciente pode provocar
patológico não seja nada mais que o estado normal. incômodo e levar ao questionamento do conhe-
Com isso, queremos dizer que o desenvolvi- cimento que age sobre ele; quer o referido conhe-
mento das ciências que embasam a Medicina de- cimento seja a Psicologia, as ciências sociais que
terminou seu enfoque patológico. Isso significou, sustentam a formulação de Políticas Públicas, ou
ao mesmo tempo, um avanço no conhecimento o conhecimento médico. Como, então, podemos
e na aplicabilidade terapêutica. Diante de tal for- escutar o paciente tomando sua experiência do
mação, o médico prioriza elementos que possi- adoecimento como componente integral e técni-
bilitem a classificação nosográfica dos sintomas co do processo terapêutico?
apresentados pelo paciente. A seu modo, busca Para além da Psicologia, pode-se pensar que
dar sentido à patologia e falha ao marginalizar, o próprio ato de falar é suficiente para que o en-
por exigência epistemológica, o que não é passí- fermo possa sentir-se melhor e aderir ao trata-
vel de objetivação. mento prescrito. É também possível pensar que
O enfoque patológico significa uma leitura os médicos devem aprender a ouvir seus pacien-
condizente ao conhecimento médico atual, que tes, como forma de estreitar a distância que os
narra a doença com base no que foi e no que se separa diante da ignorância de um e da detenção
espera ser observado em cada etapa do tratamen- do poder de conhecimento do outro. Contudo,
to e do desenvolvimento típico de cada patologia. apesar das possibilidades intrínsecas em cada um
A exemplo do exposto por Canguilhem na cita- desses posicionamentos, podemos argumentar
ção acima, entretanto, nisso parece haver alguma que o primeiro não constitui uma escuta de fato
sutileza no modo em como o médico e outros e que o segundo precisa ainda reconhecer o fator
profissionais da saúde mostram relutância em psíquico presente no vínculo com o médico ou
enxergar que outras perspectivas – inclusive a do outro profissional da saúde6.
próprio paciente – não são conceitos desprovidos Seguindo esta lógica, a subjetividade é reco-
de sentido. nhecida como direito, e a escuta como questão
moral e ética para reflexão do profissional. Na
prática atual do SUS, isto pode ser traduzido nos
incentivos à educação em saúde e na preocupa-
2473

Ciência & Saúde Coletiva, 23(8):2469-2478, 2018


ção dos profissionais quanto ao entendimento retome sua funcionalidade. Mesmo que haja uma
e nível de informação possuídos pelo paciente. leitura psicológica dos eventos que levaram ao
Ainda assim, tais medidas são incapazes de su- acontecimento, isso não muda o fato concreto de
perar o status de concessão que assumem, jamais que o braço precisa ser consertado. Portanto, co-
conseguindo justificar-se dentro do corpo do sa- locamos em questão não a atribuição de uma psi-
ber técnico e científico. cogênese, mas o reconhecimento de que mesmo
Podemos então considerar as diferentes pos- um braço quebrado ativará processos concorren-
sibilidades de inserção da escuta da experiência tes no sistema psíquico. Isso implica dizer que a
do paciente. Os aspectos decorrentes do “saber subjetividade está lá, participando do processo de
clínico” do paciente, bem como sua integração adoecimento e de cura, seja este fato reconhecido
com referencial teórico da clínica, não são con- ou não, incluso ou não na terapêutica.
siderados conhecimento científico. Assim, as Parece importante ressaltar que a crítica rea-
iniciativas até então citadas não conseguem ul- lizada pela inserção da subjetividade do paciente
trapassar a prática e alcançar o saber médico na – e do médico – não avança em sua base episte-
dimensão epistemológica de seu conhecimento mológica, visto que não há reconhecimento do
científico. Exigências por empatia, humanização discurso do paciente pelo discurso biomédico. O
e subjetivação assumem uma posição frágil. Den- reconhecimento da condição de sujeito e a legiti-
tro deste raciocínio, a Medicina – com a predo- midade de seu discurso parecem conquistas dis-
minância da objetividade biomédica – vê como tintas nesse caso.
apenas acessória a visão da necessidade de sensi-
bilização do médico, pois que esta estaria baseada Jung e a prática clínica
apenas em padrões morais, na atenção ao pacien-
te, e não em prerrogativas científicas. Uma das queixas à Medicina concerne sua
Se objetivamos de fato captar a estrutura epis- impessoalidade, a partir da qual se presume ser
têmica da Medicina, incluindo o conjunto de co- suficientemente objetiva para avaliar as neces-
nhecimentos relegados, de forma indiferenciada, à sidades de intervenção terapêutica. A supressão
arte médica, então este objetivo motiva uma nova da subjetividade é consequência de um ideal de
abordagem a um desafio ao dualismo epistemoló- generalização o qual, em nossa sociedade, é ad-
gico da Medicina11. quirido somente através da aplicação do conhe-
O estabelecimento do dualismo entre a prá- cimento científico. Seguindo outro viés, Jung12
tica clínica e o conhecimento científico está ba- exemplifica uma das características do processo
seado em um ideal de objetividade científica. Já de cura no Antigo Egito, ao dizer que “(...) na
a tentativa de incluir a subjetividade como algo medicina antiga era largamente conhecido que,
mais que atributo particular à prática impõe uma transportando-se uma doença pessoal a um nível
crítica à estrutura epistemológica da Medicina mais alto e impessoal, atingia-se um efeito cura-
como a conhecemos hoje. Por isso, a fundamen- tivo”. Através da narrativa mitológica, o pacien-
tação da escuta clínica da experiência do paciente te era conduzido a um movimento de cura. Por
deve perpassar ambos os aspectos. O reconheci- mais que esse grau de identificação tenha sido
mento da necessidade de ajustes éticos, morais e abandonado, a generalização permanece presen-
sociais, mostra-se insuficiente do ponto de vista te na construção do conhecimento biológico e “a
epistemológico, o que influi diretamente na prá- habilidade de empregar um ponto de vista geral
tica subsequente. Ao permanecer nessa dicoto- é de grande valor terapêutico”12. Podemos obser-
mia, a prática reproduz e perpetua a oposição var que, apesar de reter seu papel no processo de
entre objetividade e subjetividade, resultando na cura, o deslocamento da generalização instituída
exclusão da última quando tomadas como con- como a priori objetivo, e não mais por seu poten-
trapontos absolutos. Essa oposição radical acaba cial unificador junto ao inconsciente, pode pro-
alimentando a visão ingênua da objetividade ne- duzir o efeito oposto em termos de valor terapêu-
cessária e suficiente do profissional. tico. Ou seja, enquanto a generalização no nível
De início, poderíamos estar inclinados a con- simbólico é embasada por seus efeitos objetivos
cordar com a lógica médica tradicional e ques- na experiência que o paciente tem de seu padeci-
tionar a importância de falar em subjetividade, mento, as generalizações em termos de abstração
e principalmente em compreensão do adoeci- científica parecem não produzir os mesmos efei-
mento, ao nos depararmos com casos de lesão tos no polo da experiência do adoecimento, ain-
ou patologia orgânica. Se alguém quebra o braço, da que sejam mais eficazes em termos de precisão
cabe ao médico simplesmente fazer com que este e procedimentos.
2474
Palmeira ABP, Gewehr RB

Na dicotomia criada entre ciência médica e tum hominem [a arte requer o homem inteiro].
clínica médica, a prática foi sendo dominada pela Jung insiste na totalidade do terapeuta em con-
técnica – como aplicação de um saber, dando es- traposição ao dogmatismo atribuído à aplicação
pecial ênfase ao diagnóstico e ao conhecimento automática da teoria, através do posicionamento
acerca de doenças. Em contrapartida, a crescente de que o “o uso de teorias deve ser evitado, exce-
busca por práticas complementares e alternativas to como auxiliar. A partir do momento em que
retoma a importância da relação estabelecida en- viram dogma, é evidente que alguma dúvida
tre paciente e médico, em sua dimensão simbó- interior está sendo suprimida”15. Em termos de
lica. referencial teórico, essas afirmações não conse-
Não se pode mais entender a doença como um guem sustentação no conhecimento biomédico
ens per se, como uma coisa desenraizada, como há da Medicina, estão em oposição a seus principais
algum tempo atrás se julgava que fosse. A medicina fundamentos. Do ponto de vista psicológico,
moderna, a clínica geral, por exemplo, concebe a contudo, esse mecanismo se repete a cada inter-
doença como um sistema composto de fatores pre- venção médica.
judiciais, e de elementos que levam à cura12. Por tradição, o objeto principal da Medicina
Por outro lado, “a doença faz o homem mais corresponde ao corpo mais que à psique – sendo
corporal, torna-o corpo e nada mais”13. A prin- esta considerada apenas mais um fator biológico
cípio, essas palavras podem ser tomadas como – no qual o homem aparece na qualidade de fe-
justificativa para a exclusão da subjetividade. nômeno fisiológico e anatômico. Assim, pouco se
Todavia, em um contexto ampliado, também po- fala sobre fatores intermediários entre a constru-
dem ser pensadas como a afirmação da experi- ção do conhecimento científico e sua aplicação
ência do adoecimento e do discurso do paciente. na prática clínica. Idealmente, caberia ao médico
Se, enfermo, o ser humano é nada mais que um simplesmente dispor da tecnologia mais avan-
corpo doente, isto garante sua total inserção na çada e do conhecimento mais atual, e isso seria
concretude da doença. Com isso, é sua vivência o suficiente. Ao contrário da ideia de Jung que
que intuitivamente norteia seu conhecimento aponta a personalidade do terapeuta como fator
sobre a patologia, mais que qualquer tentativa de fundamental para a cura, na Medicina a eficácia
medicalização via informação de conhecimento está na apropriação integral do conhecimento já
científico. Ou seja, “alegações de medicalização produzido.
subestimam a habilidade de resistir a ideias médi- Opondo-se a isto, Guerra6 pontua o desejo
cas e ainda contar com o próprio conhecimento e de curar e conhecer como marcantes na prática e
experiência”10. Jackie Pigeaud14 acrescenta, nesse inerentes à atuação do profissional. Consideran-
sentido, um aspecto importante. Diz o autor que do as ideias expostas acima, todavia, o não reco-
independentemente de a doença ser realidade ou nhecimento desses aspectos posiciona-os entre
ilusão, existe uma realidade do sofrimento, “ain- os conteúdos que permanecem negligenciados,
da que se trate de uma realidade do imaginário. A embora presentes, inadvertidamente, na relação
ilusão faz sofrer tanto quanto”. É nesse interseção formada no contato com o paciente. Seguindo a
entre real e imaginário que o saber médico aca- perspectiva junguiana14 e a dinâmica de funcio-
ba calando, ou atribuindo tão somente um valor namento da psique que ela propõe, isto implica a
ético à dimensão da subjetividade, o que descon- necessidade de reconhecer os processos psíquicos
sidera o aspecto epistemológico da estrutura do que se manifestam espontaneamente durante o
adoecimento. Se há necessidade de se considerar tratamento. Ou seja, o relacionamento estabele-
o ser humano integralmente, essa dimensão não cido entre médico e paciente, enquanto relação
pode ser excluída da razão terapêutica, sob pena profissional e humana, pode ilustrar e reprodu-
de reduzirmos o alcance do potencial terapêuti- zir uma tendência à unilateralidade do sistema
co. psíquico, na qual alguns conteúdos permanecem
Jung15 distingue Psicoterapia e Medicina, e inconscientes. A evitação sistemática do saber
afirma que, na Psicoterapia, a personalidade do inerente à experiência do adoecimento é algo
psicoterapeuta constitui o fator principal para a que pode excluir aspectos sutis dos quadros pa-
cura. Enquanto aplicar a mesma lógica à prática tológicos, tais como adoecimentos recorrentes,
médica em geral pode mostrar-se uma emprei- adesão ao tratamento, maior ou menor resposta
tada precipitada, o conflito entre prática clínica às terapêuticas, bem como aspectos relacionados
e conhecimento científico, dentro da Medicina, à maior ou menor disposição dos profissionais
pode ser tomado como evidência para refletir com este ou aquele paciente, com esta ou aquela
sobre as implicações da máxima Ars requirit to- técnica terapêutica, com as próprias ansiedades
2475

Ciência & Saúde Coletiva, 23(8):2469-2478, 2018


relacionadas ao adoecimento, às possibilidades O fato de o paciente transmitir ao médico um
de tratamento e à morte. Sendo assim, a Medi- conteúdo ativado do inconsciente também constela
cina admite e mesmo requer a inclusão da sub- neste último o material inconsciente corresponden-
jetividade6. te, através da ação indutiva regularmente exercida
Se o discurso biomédico, enquanto sistema- em maior ou menor grau pelas projeções. Médico e
tização do pensamento, reproduz uma tendência paciente encontram-se assim numa relação funda-
unilateral, as consequências podem ser notadas da na inconsciência mútua18.
em sua aplicação prática. “A colaboração do in- Contudo, tal argumento poderia ser consi-
consciente (...) mesmo quando se comporta em derado como mais uma tentativa falha de im-
oposição à consciência, sua expressão é sempre plementar uma visão total de cura. Cabe, então,
compensatória de um modo inteligente, como refletir se isto é o suficiente para superar o ma-
se estivesse tentando recuperar o equilíbrio per- terialismo ontológico que perpetua a perspectiva
dido”16. Considerar o ser humano de forma in- de um sujeito fracionado e demonstrar a insufici-
tegral envolve compreender que esses aspectos ência de uma metafísica que tende ao fisicalismo.
compensatórios do aparelho psíquico são fatores De posse de um conhecimento objetivo, o médico
determinantes na conduta de cada pessoa, e que se sente habilitado para diagnosticar e prescrever;
isso implica que na experiência do adoecimento a própria possibilidade de reconhecimento da
a lógica de vida da pessoa também está expressa. subjetividade obedece ao mesmo raciocínio. Para
Essa compreensão sem dúvida amplia e por isso o profissional da Psicologia inserido em contexto
mesmo dificulta a do processo de adoecimento e hospitalar, as demandas de atendimento chegam
cura, mas abre a possibilidade de entendermos o frequentemente como recurso dos profissionais
adoecimento como dimensão não apenas da vida quando estes encontram dificuldade para gerir a
biológica, mas também subjetiva. A partir dessa relação com os pacientes, de modo que a subjeti-
constatação, a discussão sobre a subjetividade vidade aparece aqui como dificultador da relação
está localizada no próprio processo de conscien- e não como parte do raciocínio terapêutico. Se,
tização e de visão integral do processo de cura; por um lado, isso parece indicar a rigidez de um
uma demanda por revisão do plano epistemo- ponto de vista que encontra dificuldades para fa-
lógico do saber médico e não apenas em sua di- zer valer seu plano terapêutico; por outro, mostra
mensão ética. também um afeto, a evidência de que já no plano
Podemos ainda considerar que “a grande das relações a subjetividade está operando tanto
aceitação do conhecimento médico pode ser da perspectiva do médico quanto do paciente.
atribuída a seu significado simbólico, mais que Deste modo, a base da relação médico-pa-
a seu conteúdo”17. A transferência, comumente ciente não é inteiramente compreendida em
relacionada ao processo psicoterapêutico, está todos os seus desdobramentos. Além disso, há
presente em todos os tipos de relação, marcan- uma aparente oposição mantida entre habilidade
do a dinâmica estabelecida entre sujeito e obje- interpessoal requerida na clínica e o desenvolvi-
to, fato este que pode ser modificado mediante mento tecnológico e instrumental que seria pri-
trabalho analítico. No caso da prática médica, o mordialmente o elemento principal no processo
confronto com os aspectos deixados em segundo terapêutico. Nesse sentido, a cura seria buscada
plano inclui a reflexão sobre a escuta, a relação através de um imaginário de supressão do fa-
entre médico e paciente, e a presença da subjeti- tor humano, mesmo que o objetivo final seja a
vidade no adoecimento e na cura. Caso contrá- valorização do mesmo. Por outro lado, do mes-
rio, permanecendo em relações fundadas com mo modo como a Medicina toma como suporte
base em projeções, o resultado seria o isolamento principal a naturalização do saber biomédico,
do sujeito – quer esse sujeito seja reconhecido na o paciente recorre à ciência para fundamentar
figura do médico ou na do paciente. Assim, rela- a confiança que deposita no médico. Quanto
ções humanizadas só são possíveis a partir do re- menos autonomia o processo de cura relega ao
conhecimento dos complexos inconscientes e das doente, mais ele necessitará de vínculo com o
projeções, o que mostra a subjetividade como já médico e ao conhecimento reproduzido por ele,
inerente tanto à relação médico-paciente, como recorrendo menos a suas próprias conclusões so-
inclusa nas equações que cada pessoa faz no que bre o adoecimento.
diz respeito à sua compreensão da vida e da mor- O cuidado clínico é teleológico, normativo e
te. O quanto essa dinâmica subjetiva inside no moral. Mas o fisicalismo não reconhece propósito
próprio adoecimento e nas condições de cura é ou valor. O materialismo pressupõe a lógica e a
algo que ainda merece mais pesquisas. matemática; não as explica. Um materialismo eli-
2476
Palmeira ABP, Gewehr RB

minativo reduz a consciência a um epifenômeno de na prática da enfermagem, da psicologia, da


(...) A Medicina envolve aspectos descritivos e nor- nutrição, da fisioterapia, etc. Mas este modelo
mativos de uma epistemologia fisicalista em uma tem sido duramente criticado principalmente
meta-epistemologia “overachieving” que inclui no que tange aos médicos, e nas diretrizes do
todos os aspectos presentes na prática clínica sem SUS observamos um movimento que exige uma
perceber a insuficiência prática disto19. nova postura coletiva. Esta, no entanto, embora
A prática torna-se reducionista e é no confli- centre suas críticas prioritariamente à medicina,
to estabelecido entre aspectos humanos e a ob- enquanto representante eloquente do modelo
jetividade clínica que o cuidado clínico pode ser biomédico, precisa ser estendida ao conjunto dos
repensado. profissionais da área de saúde, pois todos estão
susceptíveis a construir discursos de exteriori-
dade, mesmo a respeito da subjetividade, o que
Considerações finais pode resultar em mudanças no nível retórico que
não condizem com a prática. Para avançarmos na
Vivemos um momento histórico que exige hu- reflexão e na efetivação da interdisciplinaridade,
manização no acolhimento e tratamento, e que um exercício de revisão permanente de teorias e
insiste na retomada do vínculo nas relações com práticas, de todas as áreas envolvidas numa equi-
o paciente. Se as ciências humanas cumprem o pe de saúde, faz-se condição necessária. Isso evita
necessário papel de criticar o reducionismo me- que imperativos, sejam eles quais forem, intro-
canicista e o rol de normatizações que são arti- duzam-se sub-repticiamente numa concepção de
culadas a partir deste ponto de vista, vemos que saúde que prima pela autonomia e pela respon-
este resiste às críticas e em grande medida ainda sabilidade social.
opera na fundamentação mesma das práticas Se a Medicina atinge altos níveis de eficácia,
terapêuticas. Essa peculiaridade de um modelo apoiada em tantos aparatos tecnológicos de pon-
teórico e institucional que tende à normatiza- ta e no aporte do conhecimento científico, não
ção, torna as práticas de atenção à saúde bastante cumpriria dessa forma seu papel, mesmo sem
mais complexas e por isso a tarefa de superar os enfatizar os aspectos relacionais da cura? Enten-
diversos reducionismos que rondam o campo te- demos que o surgimento dos aspectos subjeti-
rapêutico exige um esforço de análise crítica de vos, na prática cotidiana, cria fissuras espessas o
todos os atores e discursos envolvidos, mesmo bastante para que a reflexão sistemática sobre os
os de vanguarda. “Quando se trata de discutir questionamentos trazidos neste ensaio se tornem
os conhecimentos sobre saúde, doença ou sobre fundamentais para a revaloração das práticas te-
os cuidados que visam sublinhar a importância rapêuticas. Trata-se de uma exigência que vem se
de uma leitura compreensiva, nós somos convi- construindo com a ampliação mesma dos servi-
dados a conduzir uma reflexão de ordem epis- ços de saúde, os quais, ao ampliar o escopo do
temológica”20, o que não implica descuidar das que se entende por atenção à saúde, imprimem a
práticas. necessidade de repensar teoria e técnica.
Nesses termos, a inclusão da subjetividade, Esta fissura ocorre justamente nos inters-
como elemento perturbador da relação terapêu- tícios da prática, pois o aparato teórico requer
tica, é de fundamental importância se a pensar- generalizações que não conseguem abarcar a
mos também como índice de relativização dos variabilidade implícita nas práticas terapêuticas,
saberes cristalizados nas práticas, contribuindo a não ser como um tipo de conhecimento com
assim como eixo de análise dos desacordos fun- validade menor do ponto de vista técnico. Nou-
damentais entre teorias e práticas; entre estraté- tros termos, que a inclusão da subjetividade diria
gias de bom acolhimento e a forma como esse respeito sobretudo a uma dimensão ética, o que
acolhimento é recebido. Qualquer tentativa de não deixa de exprimir, uma vez mais, um aspecto
excluir a subjetividade do processo de adoeci- normativo, na medida em que considera a subje-
mento e cura – por descuido ou imposição téc- tividade apenas a partir da exterioridade. A sub-
nica – mostra-se mal sucedida. jetividade, no entanto, comumente revela a falta
Ao longo do texto, utilizamos o médico ape- de continuidade entre o acontecimento, a vivên-
nas como exemplo, tendo em vista que outros cia prática e as subsequentes tentativas de estabe-
profissionais que atuam na prática clínica cor- lecer sua correlação com o saber técnico. Ao invés
rem frequentemente o risco de reproduzir, em de suprir o fator que complementaria a prática
igual medida, o modelo biomédico. Sendo assim, clínica em uma visão do paciente como um todo,
poderíamos questionar o lugar da subjetivida- a subjetividade corresponde mais à exposição do
2477

Ciência & Saúde Coletiva, 23(8):2469-2478, 2018


desnivelamento estabelecido entre dois tipos de rar a fundamental importância da formação dos
saberes. profissionais, na proposta de equipes interdiscipli-
Na medida em que o saber técnico sobre o nares, pautadas em relações horizontais. Não há
adoecimento é mediado pela experiência do so- como questionar o valor de cada uma dessas ini-
frimento, a não inclusão deste processo subjacen- ciativas, o que fugiria ao escopo deste ensaio, mas
te no corpo teórico do pensamento técnico equi- podemos salientar que o modo de pensar a aten-
vale a deixar escapar uma parte significativa do ção à saúde ainda carece de maior aprofundamen-
fenômeno, limitando com isso o acesso ao mes- to, no sentido de incluir uma revisão de fundo nas
mo. A subjetividade se mostra, pois, como aquilo práticas, a qual seria grandemente favorecida se
que resiste, como aquilo que é cerceado por im- agregarmos os desdobramentos estruturais que a
posições metodológicas ou epistemológicas e por inclusão da subjetividade implica.
isso não consegue se inscrever no discurso médi- Mais do que uma lógica de inclusão de as-
co (e noutros saberes da área da saúde), embora pectos relegados a segundo plano, propomos
siga camuflada na prática clínica, independente priorizar estratégias que aproximem ao invés de
do contexto. Neste sentido, o desenvolvimento romper canais de troca e comunicação – tanto no
técnico e científico não alcança a amplitude da plano epistemológico quanto no mais concreto
experiência subjetiva. dia a dia das práticas terapêuticas – incluindo,
Abordar este campo de ação e reflexão atra- primordialmente, as condutas de base que sus-
vés de noções como clínica ampliada, educação tentam as racionalidades profissionais. Contex-
permanente, humanização e acolhimento, pode tualizar a abordagem inicial que visa questionar
nos dar subsídios para romper com práticas redu- e revisitar o modelo biomédico e a prática clínica
cionistas, tão abundantes no percurso histórico e para uma outra abordagem, que perceba as rela-
epistemológico denunciado até aqui. Sendo assim, ções e as dinâmicas estabelecidas dentro de um
partir de um ponto de vista epistemológico não é funcionamento específico e de uma nova chave
gratuito, e leva em consideração aspectos práticos. de compreensão. Esse nos parece um direciona-
Isso vai no sentido de propor a reestruturação da mento fundamental para atendermos a proposta
prática clínica, dentro da qual é preciso conside- de integralidade na atenção à saúde.

Colaboradores

Os autores ABP Palmeira e RB Gewehr declaram


ser responsáveis pela elaboração do manuscrito,
tendo ambos contribuído integralmente para a
concepção e delineamento do estudo, revisão crí-
tica do conteúdo, elaboração e redação do texto,
além da aprovação final da versão a ser publicada.
2478
Palmeira ABP, Gewehr RB

Referências

1. Canguilhem G. O normal e o patológico. 6ª ed. Rio de 13. Mann T. Der Zauberberg. [acessado 2015 Maio 16]. Dis-
Janeiro: Forense Universitária; 2009. ponível em: https://vk.com/doc143790965_365454849?
2. Tesser CD, Luz MT. Racionalidades médicas e integrali- hash=3021a57d579d1387b5&dl=cd52d6963fe8e5d88c
dade. Cien Saude Colet 2008; 13(1):195-206.  14. Pigeaud J. Folie e cure de la folie chez les médecins de
3. Nascimento MC, Barros NF, Nogueira MI, Luz MT. A l’antiquité gréco-romaine: La manie. Paris: Les belles
categoria racionalidade médica e uma nova epistemo- lettres; 2010.
logia em saúde. Cien Saude Colet 2013; 18(12):3595- 15. Jung CG. Practice of Psychotherapy. Princeton: Prince-
3604. ton University Press; 2014.
4. Fonseca AF, Stauffer AB. O processo histórico do traba- 16. Jung CG. Os arquétipos do inconsciente coletivo.
lho em saúde. Rio de Janeiro: Epsjv/Fiocruz; 2007. Petrópolis: Vozes; 2000.
5. Luz MT. Natural, racional, social: razão médica e racio- 17. Young A. The discourse on stress and the reproduction
nalidade científica moderna. Rio de Janeiro: Campus; of conventional knowledge. Soc Sci Med Med Anthropol
1988. 1980; 14B(3):133-146.
6. Guerra G. La place de la subjectivité dans le champ de la 18. Jung CG. Ab-reação, análise dos sonhos e transferência.
médecine; 2010. [acessado 2015 Maio 27]. Disponível Petrópolis: Vozes; 2011.
em: https://www.cairn.info/revue-cliniques-mediter- 19. Whatley SD. Borrowed philosophy: bedside physical-
raneennes-2010-2-page-73.htm ism and the need for a sui generis metaphysic of medi-
7. Zamagni MP. La malattia nella narrazione del medico e cine. J Eval Clin Pract 2014; 20(6):961-964.
del paziente; 2014. [acessado 2015 Maio 26]. Disponível 20. Desgroseilliers V, Vonarx N. Retrouver la complexité du
em: http://siba-ese.unisalento.it/index.php/psychofe- réel dans les approches théoriques de promotion de la
nia/article/viewFile/14678/12798 santé: transiter par l’identité du sujet. Santé Publique
8. Dunker CIL, Kyrillos Neto F. Sobre a retórica da ex- 2014; 26(1):17-31.
clusão: a incidência do discurso ideológico em serviços
substitutivos de cuidado a psicóticos. Psicologia: ciência
e profissão 2004; 24(1):116-125.
9. Nader AR. Manicômios, prisões e liberdade: entre
o pessimismo da razão e o ideal de igualdade. La-
cuna: uma revista de psicanálise 2016; 1:1. [acessado
2015 Maio 27]. Disponível em: https://revistalacuna.
com/2016/05/22/manicomios-prisoes-e-liberdade/
10. Nettleton S. The sociology of health & illness. Cam-
bridge: Polity Press; 1995.
11. Cunningham TV. Objectivity, Scientificity, and the Du-
alist Epistemology of Medicine; 2015. [acessado 2015
Jun 10]. Disponível em: http://philpapers.org/archive/ Artigo apresentado em 20/12/2015
CUNOSA-2.pdf Aprovado em 16/08/2016
12. Jung CG. A vida simbólica. Petrópolis: Vozes; 2012. Versão final apresentada em 18/08/2016

CC BY Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons

Você também pode gostar