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A experiência complexa e os olhares reducionistas

ARTIGO ARTICLE
The complex experience and the reducing
approaches to it

Brani Rozemberg 1
Maria Cecília de Souza Minayo 2

Abstract This article focuses an experience of Resumo Este artigo analisa uma experiência
illness and cure witnessed by the first author de adoecimento e cura acompanhada pela pri-
in a rural community of Nova Friburgo, Rio meira autora em comunidade agrícola do inte-
de Janeiro. The reported experience allows a rior de Nova Friburgo, Rio de Janeiro. A expe-
view of its existential, social, cultural, psycho- riência relatada permite entrever seus signifi-
logical, biological and symbolic meanings both cados existencial, social, cultural, psicológico,
for the patient, her community and their rela- biológico e simbólico tanto para a paciente
tionship. The initial presumption of a strictly quanto para sua comunidade e na relação com
biological diagnosis and intervention was mod- esta última. A expectativa inicial de diagnós-
ified by a sole medical consultation, which ac- tico e intervenção puramente biológicos foi mo-
quired a therapeutical function through broad- dificada através de um único atendimento que
ening the interpretation of the experience be- teve a função terapêutica de ampliar a com-
yond the limits of a “scientific objectivity”. The preensão da experiência para fora dos limites
disease process had its turning point towards de uma “objetivação científica” e o processo de
resolution at the juridical level. The fact that cura acabou tendo seu ponto de resolução no
the recognition of other levels for the disease nível jurídico. O fato de o reconhecimento de
determination took place at the powerful space outras ordens de determinação na doença des-
of medical consultation may have contributed ta paciente ter ocorrido no espaço do atendi-
to the patient’s change of attitude towards her- mento médico pode ter concorrido para sua
self and the community, leading to cure once mudança de atitude frente a si mesma e à co-
she started to play a new social role legally le- munidade, e conseqüente cura, com base no
1 Coordenadoria de gitimated. The reported experience is discussed respaldo oferecido pela grande força simbóli-
Planejamento e in terms of the reducing approaches of health/ ca da consulta médica na legitimação de um
Epidemiologia do Centro
de Pesquisas Hospital
illness. novo papel social que ela passou a exercer. O
Evandro Chagas, Fundação Key words Complexity, Health and illness de- episódio é discutido em relação aos reducio-
Oswaldo Cruz. Av. Brasil terminants, Social and cultural factors nismos na abordagem da saúde/doença.
4.365 – Manguinhos –
21045-900 – Rio de Janeiro
Palavras-chave Complexidade, Determinan-
– RJ, Brasil. tes de saúde e doença, Fatores socioculturais
brani@ensp.ficoruz.br
2 Vice Presidência de
Ambiente, Comunicação
e Informação, Fundação
Oswaldo Cruz.
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Rozemberg, B. & Minayo, M. C. S.

Não sabia que era impossível, foi lá e fez tos e curas dos sujeitos doentes. A tal ponto a
(autor desconhecido) biomedicina deslocou-se do mundo real da vi-
da cotidiana, vivida pelos sujeitos doentes, que
Este texto é especialmente dedicado aos pro- a maior parte dos relatos dos doentes hoje é
fissionais de áreas técnicas e de serviços de saú- desconsiderada pelo profissional de saúde co-
de que buscam a pós-graduação em saúde pú- mo constituinte de seu objeto de saber e prá-
blica. Em sua busca de aprimoramento pro- tica (Tesser et al. 1998).
fissional e de reflexões que aprofundem seus As conseqüências desastrosas desse para-
conhecimentos, esses profissionais se depa- digma que exclui a própria experiência dos su-
ram, com freqüência, com uma “re-leitura” jeitos no âmbito da cultura em saúde são des-
acadêmica de temas com os quais já lidam, e critas em Illich (1995) e consagrada no termo
sobre os quais muitas vezes já acumularam “medicalização” da vida e da sociedade. Além
vasta experiência empírica. O trabalho acadê- da geração infinita de novas necessidades a se-
mico destina-se a lhes prover distanciamento rem satisfeitas exclusivamente por uma me-
crítico, novos conceitos, e a chance de rever diação técnica complexa e custosa e da conse-
seu posicionamento frente à prática, levando a qüente tecnificação do atendimento a serviço
análises fundamentadas e refinadas desta úl- do capital industrial, outra conseqüência do
tima e da vasta gama de ordens de determina- positivismo mecanicista na biomedicina esta-
ção nela implicadas. Costumo dizer que, após ria na focalização da saúde-doença sempre no
terem caminhado no “território”, tais alunos nível individual de responsabilização e de in-
são bem-vindos ao mundo dos “mapas”. Ocor- tervenção. Isso tem a ver com o fato de que um
re que, muitas vezes, o sofisticado discurso dos olhar fragmentado e intervencionista deixa
que são peritos em “mapas” lhes impressiona pouco espaço para a compreensão do contex-
a tal ponto que sua prática no mundo concre- to onde se desenrolam, no mundo vivido, os
to dos territórios se desqualifica, alimentan- processos saúde-doença.
do a distância entre “quem faz” e “quem pen- Aproxima-se desse reducionismo biomé-
sa”. Este texto tem o objetivo de lembrar que dico um outro, também bastante visado no
todos nós, acadêmicos ou não, estamos irre- meio acadêmico que discute o binômio saú-
mediavelmente inseridos no mundo dos ter- de-doença: a psicologização. Para exemplifi-
ritórios. E que saber ler mapas pode ser útil, car o reducionismo que a leitura psicologizan-
mas não é tudo. te pode operar na experiência temos os nume-
rosos casos de “depressão” diagnosticados que,
às vezes, relacionam-se também com a carên-
Sobre os reducionismos cia de determinados nutrientes na dieta. Um
olhar menos cuidadoso com as demais ordens
Um dos temas centrais dos cursos de pós-gra- de determinação (em especial com a tão visa-
duação é o da demanda por olhares não redu- da biomedicina) pode deixar de lado o trata-
cionistas ao complexo mundo da experiência. mento da privação de ferro, por exemplo, em
No campo da saúde o reducionismo mais vi- favor de longas sessões de terapia analítica.
sado é o do saber biomédico, que classicamen- Uma depressão não é menos depressão por ter
te comporta uma visão de saúde reduzida a de um fundo nutricional associado, mas se a lei-
“ausência de doença”, privilegiando os deter- tura da experiência for apenas psicológica a
minantes biológicos em detrimento dos so- anemia não diagnosticada pode trazer mais
ciais na interpretação dos fenômenos saúde e problemas e reforçar a própria depressão.
doença. Para Tesser et al. (1998) a atual crise Além disso, raramente ou nunca os enfo-
da atenção à saúde está ligada ao exercício co- ques psicológicos são aplicados ou valoriza-
tidiano desse saber biomédico, cuja raciona- dos na prática clínica porque o profissional
lidade procura “fatos” numa relação de causa- não dispõe de tempo, preparo, ou de convic-
lidade linear e mecânica. A base do saber bio- ção sobre o valor de sua utilização (Tesser et
médico é no dizer de Queiroz (1986) “o para- al. 1998). De toda forma essa área do saber é
digma mecanicista da medicina ocidental mo- marginal na biomedicina, ficando sob a tute-
derna”. Segundo Luz (1998) a objetivação cien- la dos profissionais especializados. As aborda-
tífica das doenças instaurou um novo objeto gens que propõem a superação da dicotomia
para a medicina ocidental: é a doença o que entre corpo e mente são reconhecidamente ne-
interessa ao médico, não mais os adoecimen- cessárias pois esta é uma questão central na
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crise da atenção à saúde. No entanto, concor- cial” das doenças procede também uma redu-
damos com Tesser et al. (1998) que a agregação ção da experiência negligenciando a questão
do referencial da psicologia e suas correntes à do sujeito e de sua interação no sistema pro-
biomedicina não é suficiente para “remediar” dutivo e na vida social. Além disso, o reducio-
o reducionismo na prática médica. Leituras nismo sociológico no que tange ao componen-
psicologizantes respondem também pelo apri- te técnico de suas ações não deixou de ser nor-
sionamento das questões de saúde/doença no mativo. Segundo Assis (1998) continuava vol-
nível individual de entendimento e consequen- tado para a obtenção de produtos, sendo que
temente de ações. Mesmo reunidos, o saber estes deixavam de ser “mudança de compor-
biológico e o psicológico não esgotam todas as tamento” e passavam a ser “conscientização”.
questões constitutivas do “adoecimento” dos Mesmo quando visava facilitar a participação
sujeitos. Outras ordens de fatores, outras ins- popular no planejamento e fiscalização dos
tâncias de relações, envolvendo o ser humano, serviços de saúde, deixava de problematizar o
sua cultura, seu entorno social e ambiental, ponto de vista do sujeito e o significado para
por exemplo, não são necessariamente con- ele dos programas e conteúdos que lhe são
templadas. propostos.
Assim como o reducionismo biomédico, o Pelo que foi exposto até aqui, compreen-
psicológico tem também em sua base uma for- de-se que o “reducionismo” não é um privilé-
te orientação positivista. Para fazer frente ao gio de área alguma do saber em particular. Ele
positivismo inúmeros movimentos teórico-fi- é condição mesma do ato de conhecer, pois as-
losóficos desenvolveram-se (Tesser, 1997), o sim que racionalizamos algum aspecto da ex-
que, segundo o autor, não foi suficiente para periência, mesmo que momentaneamente, ex-
atingir o “império da biomedicina” e influen- cluímos os demais. Ao focalizar a atenção na
ciar sua prática. tentativa de apreender algum aspecto da ex-
Menos visado que os demais, até porque é periência nosso olhar é necessariamente redu-
menos freqüente, o reducionismo operado pe- tor dessa experiência. O maior problema, ao
la sociologia também é digno de nota. Por dé- nosso ver, não está, portanto, no reducionis-
cadas esquivou-se da questão do sujeito da mo em si, mas na pretensão de totalidade e de
saúde, ou seja, abdicou de pensar sobre o ní- controle que as correntes de pensamento ten-
vel individual da assistência. Para Assis (1998) dem a advogar para si mesmas e ainda, na ins-
o discurso crítico na saúde não negou a ques- tituição de uma forma de ver o mundo sob um
tão do indivíduo, apenas tendeu a não enfren- determinado ângulo, desconhecendo e desqua-
tar o tema talvez para fugir do risco de uma lificando outros olhares (ou até mesmo o nos-
prática considerada reacionária e de uma iden- so próprio em outro momento ou contexto).
tificação com o paradigma da biomedicina. Tratamos aqui do termo reducionismo exata-
Esta última tende a ser fortemente orientada mente nesta perspectiva, a de pretensão de ver-
para as “mudanças de comportamento indivi- dade unívoca como foi dito acima seja sobre
dual” sem tratar das estruturas e das relações o olhar estritamente biomédico, psicológico
sociais que possam estar na base e contribuir ou sociológico para o adoecimento.
para os padrões de comportamento que se O exposto nos remete necessariamente à
quer modificar. A compreensão das questões importância da interdisciplinaridade e de co-
coletivas determinantes dos quadros de saú- mo ela se operacionaliza no campo da assis-
de/doença era (e até hoje o é) tão incipiente e tência e da promoção da saúde. As diferentes
negligenciada, que a sociologia focalizou-as leituras realizadas (mapas) deixam-nos pouco
estritamente. O caminho da luta social e polí- otimistas quanto ao que possa estar ocorren-
tica era a única verdade e a meta era o resga- do no campo do atendimento médico (terri-
te do “social” e a formação de “consciência crí- tório) nos serviços de saúde disponíveis à po-
tica”. Fazer frente aos avanços da medicina (sua pulação. A razão deste artigo é partilhar nos-
cultura e seus interesses) e ao seu grotesco es- sa surpresa favorável ao testemunhar ao aca-
quadrinhar da experiência complexa de fato é so um atendimento onde a visão não reduto-
tarefa que exige fôlego. Mas assim como as de- ra e a atenção ao relato da história de vida da
mais ciências, a sociologia na prática é outra. paciente prevaleceu e ampliou a questão da
Faltaram sem dúvida mediações apropriadas saúde para outros campos.
que pudessem transformá-la em abordagem
integradora. Ao advogar a “determinação so-
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Análise de uma experiência nheiro e ela mesma comprava seus remédios.


Os comentários na comunidade davam a en-
Este trabalho tem como objetivo o relato des- tender que se tratava de medicação para AIDS.
pretensioso de uma experiência de adoecimen- Conhecendo melhor Délia e seu atual ma-
to e cura que tivemos a oportunidade de acom- rido, um rapaz de fora da comunidade com
panhar logo nos primeiros meses de convívio quem estava casada há dois anos, confirma-
em um vilarejo agrícola do interior do muni- mos quase todos os comentários ouvidos da
cípio de Nova Friburgo. Nosso interesse em comunidade. Ela realmente abandonou o ma-
colaborar levando para o Rio de Janeiro a pes- rido e a filha pequena; teve vários parceiros
soa doente que chamaremos aqui de Délia (29 sexuais antes de casar-se de novo; sofria de to-
anos) acabou permitindo que assistíssemos sua dos os sintomas acima; tinha uma família pau-
consulta médica em hospital público e acom- pérrima na qual todos sofriam dos nervos e de
panhássemos o desfecho inusitado do caso. “ursa” (úlceras no estômago e duodeno); e
também ela e o marido suspeitavam de AIDS,
O quadro clínico e diagnóstico segundo ainda que tivessem obtido um resultado nega-
a comunidade da qual Délia faz parte tivo. Ambos eram extremamente gratos à co-
munidade pela compra dos remédios. A infor-
Depois de alguns meses de familiaridade mação nova obtida no contato com Délia veio
com a comunidade agrícola tomamos conhe- por escrito: o rótulo dos remédios caro escla-
cimento da doença de Délia. Aos poucos os vi- recia que ela tomava medicação apenas para
zinhos iam nos fornecendo um quadro bas- herpes e infecção urinária e ainda, que seu tes-
tante preocupante que incluía emagrecimen- te realizado recentemente para HIV era real-
to, desmaios, fraqueza, queda de pressão, fe- mente negativo.
ridas pelo corpo, “queimação” na urina, ina- Desconfiando de um falso negativo, o ca-
petência, crises de choro, crises de nervos etc. sal e a comunidade nos pediram para levar Dé-
Todos comentavam que Délia estava com AIDS lia a um médico e a um laboratório “bom” no
mas informavam também que “ela dizia” ter Rio de Janeiro para refazer o exame e desco-
feito um teste para HIV que deu negativo, po- brir afinal “o que ela tem, antes que seja tarde
rém “não o mostrou a ninguém”. demais”. Sabendo que o Centro de Pesquisas
Os comentários sempre incluíam referên- Hospital Evandro Chagas onde trabalhamos,
cias ao período que Délia passou “descasada” realiza atendimento à pacientes portadores do
quando bebia e saía com vários homens dife- HIV, marcamos a consulta.
rentes e de fora da comunidade. Incluíam tam-
bém críticas ao seu fracasso como esposa no A consulta médica no Centro de
primeiro casamento (com um rapaz da comu- Pesquisas Hospital Evandro Chagas
nidade), pois ela “não cozinhava”, não cuidava
da casa e não sabia “cuidar da filha pequena” Por problemas na conciliação de agendas
que já nos anos do casamento foi praticamen- com os médicos e ainda com a disponibilização
te criada pela avó paterna. de um carro da prefeitura de Nova Friburgo
Délia foi uma das primeiras mulheres da para a viagem, mais de um mês se passou até a
comunidade, se não a única na época, a se se- realização da consulta médica (Délia pediu
parar por desejo próprio, apesar dos esforços que a primeira autora estivesse com ela duran-
e da insistência do marido para manter o casa- te o atendimento). Nessa fase intermediária
mento. Casaram-se muito jovens e quando Dé- nos impressionamos com seu estado geral. O
lia o abandonou, voltando para a casa dos pais, rosto estava ainda mais pálido, as olheiras mais
deixou com ele a filha de dois anos, que aca- profundas, a pressão baixava bruscamente oca-
bou sendo criada mesmo pela avó paterna. Os sionando desmaios, a queimação na urina se
comentários dos vizinhos estendiam-se sobre acentuou apesar de toda a medicação que ela já
a família de Délia, uma das mais pobres da co- utilizava, e seu peso era 45kg incompatível com
munidade cujos membros estavam sempre sua altura resultando em aparência cadavéri-
doentes e “sofriam dos nervos”. ca. Os comentários da comunidade não lhe da-
Os vizinhos, penalizados com a doença de vam muito tempo de vida e havia muita expec-
Délia, que se arrastava há quase um ano, se quo- tativa em nossa viagem para o Rio de Janeiro.
tizaram para a compra dos remédios caríssimos Quando a viagem aconteceu chegamos ao
dos quais ela necessitava. Eles davam a ela o di- hospital e esperamos na fila por duas horas ou
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mais. Nosso primeiro pedido à médica que nos consulta ficamos sabendo de um episódio que
atendeu foi um novo teste para HIV. A surpre- deflagrou uma das crises na saúde de Délia.
sa que tivemos com o atendimento recebido e Ela encontrou com a filha no ônibus da loca-
suas decorrências motivou a redação deste re- lidade e a madrasta não deixou que sentassem
lato. A médica “descobriu” que Délia estava juntas. A criança por sua vez tinha medo de
magérrima por que não comia e disse a ela que expressar seu amor pela mãe na frente do pai
“saco vazio não fica de pé”. O motivo dos des- e de sua família pois ouvia dizer que a mãe
maios era exatamente esse. Não influenciada “não prestava”.
pela comunidade, a médica foi a primeira que
“acreditou” no resultado negativo do teste de O “tratamento” de Délia
HIV. Evidentemente, se prontificou a fazer um
novo pedido desse exame, bem como de toda Todo o exame realizado deu negativo e o
a bateria de exames possíveis para nos conten- tratamento do herpes foi suspenso pois não
tar. Mas sua preocupação era saber por que a havia mais sintoma ou manifestação que jus-
moça queria se matar por inanição. Ela não se tificasse o uso das drogas. No entanto, a con-
contentava com as respostas obtidas: “porque sulta resultou em um tratamento radical por
não consigo comer” ou “porque se eu comer iniciativa da própria paciente com base no
vomito”. Ela não se deteve nos dados “clínicos” ocorrido na consulta: a explicitação de sua
e o foco da consulta não foi a objetivação cien- “doença”. Só que o doutor que ela procurou
tífica de uma doença. Sua consulta focalizava não era médico e sim advogado! Na justiça, ela
a doente e não a doença. Ela estava menos in- conseguiu reaver seu direito de ter contato com
teressada do que nós nas doenças e não havia a filha. A relação entre as duas se estreitou, Dé-
sinal de qualquer reducionismo biológico no lia conseguiu se perdoar por sua negligência
seu olhar para a paciente. como mãe no passado. Com a ajuda do mari-
Perguntou então há quanto tempo esses do se alimentava regularmente, recuperou pe-
sintomas estavam ocorrendo e soubemos que so, não fez mais o quadro de sintomas graves e
tudo começara havia cerca de um ano. “O que não mais desmaiou. Teve uma recuperação rá-
mudou na sua vida há um ano atrás?”, pergun- pida e ficou muito agradecida à médica e a nós
tou a médica. Soubemos que foi por ocasião que a levamos para a consulta. Sempre repete
do casamento do pai de sua filha com uma mu- as frases da médica que ficaram como um mar-
lher da comunidade que “assumiu” a educa- co em sua história de vida. Quanto à médica,
ção da criança, restringindo em muito o con- apenas comentou ter sido esse um caso típico
tato entre Délia e a filha, agora com 9 anos. de psicossomática. Eu me pergunto se ela aten-
“Antes disso, eu podia vê-la quando quisesse de dessa forma todos os seus pacientes e se es-
na casa da avó”. As visitas passaram a ser restri- se perfil de médico da rede pública é comum
tas a uma parte dos fins de semana, porém a ou se estive diante de uma “raridade”.
madrasta sempre inventava algum outro com-
promisso para a filha de Délia justo no horário A reação da comunidade
de deixá-la com a mãe. Eram tarefas domésti-
cas, missa ou até mesmo limpeza da igreja. Délia havia assumido o papel de indiví-
Além do pouco contato, Délia sabia que a duo-sintoma, ou seja, aquele no qual todos
criança era agora obrigada a fazer limpeza e projetam seus próprios fantasmas e que pas-
lavar louça, obrigações que ela própria odia- sa a cumprir a função expiatória em um gru-
va e não cumpria. Na consulta toda a culpa pe- po. Quando voltamos da consulta e dissemos
lo abandono da filha veio à tona e todos cho- que a moça não tinha doença grave, percebe-
ravam com Délia. Dentre as coisas ditas pela mos um misto de alívio e decepção nas pes-
médica, muitas frases ficaram marcadas: “De soas, em especial na família do ex-marido. Tê-
que vai valer para a menina ter a mãe morta?”; la com uma doença grave e ajudá-la com doa-
“Você não precisa de remédios e sim de sua fi- ções para compra de remédios era bem mais
lha”; “Cuide-se, alimente-se e fique forte pa- fácil do que partilhar com ela a educação de
ra lutar pelos teus direitos como mãe”. Na ver- uma criança da comunidade! Délia havia fei-
dade, Délia e seu novo marido não queriam to tanta bobagem e ferido de tantas formas as
brigar pela guarda da criança (por serem mui- regras de conduta daquele grupo social que o
to pobres) mas sim pelos finais de semana e “castigo” da doença grave era uma solução
férias que não estavam sendo respeitados. Na mais fácil para sua exclusão do convívio. Nos
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últimos tempos dos sintomas “da doença gra- sobre a forte coerção exercida sobre os indiví-
ve”, a comunidade encontrava inclusive o ar- duos em sociedades onde as funções, as hierar-
gumento do “contágio” para evitar que Délia quias e as atribuições são rigidamente estabe-
se aproximasse da filha. Mas o que a família do lecidas, deixando pouco espaço de liberdade
marido procurava evitar era outro tipo de con- para expressão (não prevista) das pessoas. Em
tágio: o dos valores culturais alheios aos da co- contraposição, analisa também o que denomi-
munidade. Com a madrasta a vida da menina na “sociedades igualitárias” nas quais os indi-
era “perfeita” para os moldes locais: lavar, co- víduos são o núcleo propulsor e o sujeito das
zinhar, deixar a casa brilhando, cuidar do ir- organizações da comunidade. Duarte (1986)
mão de criação e ajudar na lavoura do inha- traz para o âmbito brasileiro, o pensamento
me. Com Délia a menina não aprenderia na- de Dumont considerando que na cindida so-
da disso e ainda, conviveria com um homem ciedade nacional, a lógica hierárquica tende a
“de fora” que ninguém sabe “de que família presidir as relações nas classes populares ur-
veio” e que não é agricultor. banas e rurais, onde são pouco permitidas ex-
Quando Délia obrigou o ex-marido e a ex- pressões individuais diferenciadas, sobretudo
sogra a comparecerem em audiência por inti- quando põem em xeque a reprodução ideoló-
mação judicial para assumirem frente ao juiz gica, o poder dos chefes ou dos mais velhos,
um acordo de respeito aos direitos de conta- ou dos usos e costumes rigidamente internali-
to periódico entre mãe e filha, todos os seus zados. A interdição sobre os dissidentes pode
“pecados” do passado foram expostos e uma ter várias repercussões.
grande confusão foi deflagrada na comunida- Uma forma freqüente de manifestação de
de. O ex-marido, que antes chegou a colabo- mal-estar é o adoecimento. Alguns antropólo-
rar na compra dos remédios agora a ameaça- gos têm estudado e analisado essa questão. Por
va de morte, e até mesmo nós, por um curto exemplo, Lévi-Strauss, ao introduzir a obra de
período, fomos vistas como quem “apoiou” a Marcel Mauss, faz o seguinte comentário: o es-
“desviante da ordem” naquela sociedade. Mas forço irrealizável, a dor intolerável, o prazer ou
todos acabaram tendo que “engolir” Délia em o aborrecimento são menos função das particu-
seu novo papel de mãe de sua filha. laridades individuais que de critérios sanciona-
dos pela aprovação ou desaprovação coletivas.
(1974). E acrescenta: em face das concepções
Discussão racistas que querem ver no homem o produto de
seu corpo, mostra-se, ao contrário, que é o ho-
A experiência analisada permite entrever seus mem, sempre e em toda a parte, que faz de seu
significados existenciais, sociais, culturais, psi- corpo um produto de suas técnicas e de suas re-
cológicos, biológicos e simbólicos tanto para presentações (1974).
a paciente quanto para sua comunidade e na Essa reflexão de Lévi-Strauss veio a propó-
relação com esta última. O que ressalta mais sito de um belo texto intitulado L’idée de la
fortemente da narrativa é a força coercitiva mort no qual Marcel Mauss analisa a maneira
dessa comunidade onde Délia vive sobre seu como tribos neozelandesas e australianas, re-
foro individual, exercendo um domínio mo- gidas por uma lógica hierárquica, concebem
ral sobre normas de conduta e práticas sociais. os fenômenos da doença e da morte. Sobre elas
Numa localidade pequena, onde as possibilida- existem várias explicações e uma delas está
des de preservação da vida privada são limi- vinculada a causas sociais. Essa é construída
tadas e os comportamentos são estruturados pela idéia de uma ligação direta entre a esfera
por tradições e costumes rígidos, as categorias física, a psicológica e a moral. Ou seja, o medo
“certo” e “errado” estão dadas a priori, provo- da morte de origem puramente social pode
cando um constrangimento profundo em ca- criar tais manifestações mentais e físicas na
da um de seus membros. consciência e nos corpos dos indivíduos, que
No julgamento de qualquer atitude des- eles podem realmente adoecer e morrer. São
viante, a pessoa, na sua totalidade, é aceita ou casos acontecidos de mortes causadas brutal-
rejeitada. Aceita, se porventura se enquadra. mente em numerosos indivíduos, mas simples-
Rejeitada por inteiro, mesmo quando é ape- mente pelo fato de que eles souberam ou acre-
nas um tipo de atitude sua que não se adequa ditaram que iam morrer (Mauss, 1974). Mauss
aos usos e costumes. Dumont (1972) em Ho- comenta que observou nessas sociedades um
mo hierarchicus busca compreender e teoriza fenômeno singular, em que muitas pessoas fi-
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cavam possuídas de doenças causadas por fei- O episódio descrito permite exemplificar
tiços, encantamentos ou pela consciência do as múltiplas ordens de determinação que po-
pecado. O adoecimento acontecia pela intro- dem estar presentes nos fenômenos do adoeci-
jeção da consciência de infração, de tal forma mento e da cura.
que o sujeito se enfermava ou morria, não por 1) Social e econômico – a pressão que uma
problemas biológicos, mas por causas atribuí- sociedade pode vir a exercer na direção da
das coletivamente. Em geral, o mal que o aco- constituição de um “quadro clínico” para seus
metia vinha da consciência de ruptura com as elementos desviantes não se dá a ver tão cla-
crenças e representações consideradas boas, ramente em populações urbanas em face das
certas e justas pela comunidade de origem e possibilidades de anonimato e da multiplici-
convivência. dade das relações e contatos sociais travados
No mesmo sentido, Mary Douglas consta- no cotidiano. Na pequena comunidade agrí-
ta que o corpo social limita a forma pela qual o cola todos se conhecem e qualquer estranho
corpo físico é percebido. A experiência física do que circule nas estradas de terra da região di-
corpo, sempre modificada pelas categorias so- ficilmente escapa de ser abordado pelos mais
ciais através das quais é conhecida, sustenta uma velhos para responder à clássica pergunta: “Vo-
visão particular de sociedade (1971). Por isso, a cê é filho de quem?”. Diante da impossibilida-
contribuição da antropologia permite dizer de do anonimato e do testemunho contínuo
que há uma ordem de significações culturais por parte da comunidade das ações cotidianas
mais abrangente que informa o olhar a ser lan- de todos os seus membros, os interesses cole-
çado sobre o corpo que adoece e morre. A lin- tivos ganham visibilidade e força de coerção
guagem da doença é, em primeiro lugar, uma na direção do cumprimento de papéis sociais
linguagem sobre a cultura e as relações sociais, estabelecidos. Tais papéis são adaptativos à re-
mas o fenômeno em si representa a síntese de produção social do grupamento agrícola cuja
uma complexidade dinâmica que se manifes- sobrevivência é razão direta do emprego da
ta no corpo. força familiar na lavoura e tarefas domésticas
Interessante no caso em pauta é a percep- “de apoio”.
ção da médica, cuja sensibilidade se igualou à 2) Ético, moral e simbólico – a força de
dos antropólogos que, por dever de ofício, de- pressão social na direção do enquadramento
vem “desnaturalizar” e compreender as rela- de Délia como “doente terminal” tem origem
ções aparentemente “exóticas” nas sociedades. no seu desvio da norma de conduta como agri-
Essa sensibilidade, que aqui se expressou, é o cultora, esposa e mãe no primeiro casamento.
indício de que é possível romper o pensamen- O agricultor com quem se casou na adoles-
to biologicista monológico, dentro do próprio cência mantinha o estrito padrão de rotina do
contexto médico, sem, simploriamente cair na plantio do inhame, e sua nova esposa assumiu
tentação contrária de acreditar que tudo se a educação da filha de Délia para o desempe-
explica pelo “social” ou pelo “emocional”. O nho do papel tradicional da mulher do cam-
“olho clínico” (para usar uma metáfora médi- po. Essa possibilidade de “resgatar” a criança
ca) distingue as várias razões sem reduzi-las a para os moldes de comportamento adaptati-
uma parte apenas. vos da aldeia em seu modo de produção era de
A expectativa inicial de diagnóstico e in- interesse do grupo. Havia portanto uma “mor-
tervenção puramente biológicos foi modifica- te simbólica” e uma “morte social” decretadas
da através de um único atendimento que teve para Délia ao negar tudo isso, e uma tendência
a função terapêutica de ampliar a compreen- coletiva a encarar sua suposta “AIDS” como
são da experiência para fora dos limites de punição para os pecados contra a maternida-
uma “objetivação científica” e o processo de de e a fidelidade devida ao marido – “ideal”
cura acabou tendo seu ponto de resolução no do ponto de vista da coletividade.
nível jurídico. O fato de o reconhecimento de 3) Emocional, psicológico e físico – Délia
outras ordens de determinação na doença de expressou fisicamente através da inapetência
Délia ter ocorrido no espaço do atendimento essa morte/negação da vida. Apesar de feliz no
médico pode ter concorrido para a mudança segundo casamento, ela entendia que também
de atitude frente a si mesma e à comunidade seu primeiro marido a havia tratado muito
com base no respaldo oferecido pela grande bem e com excesso de zelo, tanto quanto o
força simbólica da consulta médica na legiti- atual. A razão que a fez separar-se era “fútil”
mação de seu novo papel social. do ponto de vista de sua coletividade, princi-
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Rozemberg, B. & Minayo, M. C. S.

palmente para uma mulher: ela não estava Considerações finais


apaixonada. Depois de separada sua relação
com a filha era mantida (antes da proibição Do ponto de vista da discussão proposta para
da madrasta da criança), porém numa base de este artigo sobre “mapas” e “territórios”, o ca-
igual para igual: duas crianças que brincavam so narrado permite uma conclusão interessan-
juntas. Mas essa relação era fonte de prazer e te: os olhares reducionistas podem estar onde
equilíbrio para ambas. O início dos sintomas menos se espera. Na doença de Délia, a comu-
datava exatamente da proibição do convívio. nidade, a paciente e até mesmo a primeira au-
Toda a culpa e arrependimento então vieram à tora deste texto restringiram-se ao aprisiona-
tona expressos em crises físicas, emocionais e, mento da questão no nível biomédico. Já a re-
em menor escala, psicológicas. colocação da experiência em toda sua comple-
4) Comportamental, clínico e jurídico – a xidade deu-se justamente a partir daquele ator
consulta médica foi o ponto de reversão do representante da biomedicina: a médica que a
processo de autoflagelo que segundo a médica atendeu.
estava prestes a se tornar um quadro grave. Contrariando a expectativa que a acade-
Ainda que o nível físico de determinação não mia tende a ter sobre o olhar reducionista do
tenha sido negado, quando a médica revelou médico e principalmente contrariando os di-
a Délia “seu problema”, teve início uma mu- tames de sua própria formação profissional
dança radical de comportamento. De vítima que sem dúvida educa o médico para um tal
passiva de uma doença Délia passou a agente olhar, a profissional de saúde que atendeu Dé-
ativo de uma série de erros, trazendo seu pro- lia “escutou” mais do que “auscultou”. A ques-
blema para o nível psicológico. Reconheceu tão colocada por Póvoa (2000) para o atendi-
também seus direitos de ver a filha periodica- mento médico “entre a escuta e a ausculta” nes-
mente. Não se pode dizer que ela desconhe- te caso realizou-se sem polarizações reducio-
cesse seu problema antes da consulta, porém nistas. É possível argumentar que esta tenha
a instância nova de reconhecimento “oficial” sido uma situação de exceção, o que não te-
(frente à médica e à pesquisadora) de seus di- mos meios de constatar, ou ainda, que pelo fa-
reitos criou um novo contexto de “evidência to de o hospital onde ocorreu a consulta ser
pública” e legitimação desses direitos. Já os dentro de instituição de pesquisa os médicos
passos seguintes ela deu em absoluto sigilo e ali partilhem uma visão de saúde diferencia-
sem receber qualquer aconselhamento nessa da em relação a outros serviços. É preciso es-
direção: procurou um advogado. Só soubemos clarecer que nossa escolha não foi influencia-
da mudança de atitude de Délia por ocasião da, sabíamos apenas que o hospital oferecia
da intimação judicial dos envolvidos. Lutar atendimento específico para o HIV. Mesmo se
por seus direitos passou a ser o seu objetivo e considerarmos estar diante de uma ocorrên-
este foi efetivamente o tratamento que pro- cia rara e esporádica, o mundo dos “mapas”
moveu a cura. não pode negligenciar que, lá em baixo, no ter-
ritório, a massiva exposição a inúmeros pa-
cientes por dia possa estar promovendo não
linear e mecanicamente a tecnificação do aten-
dimento, mas de algum modo, a partir do con-
tato estreito com a experiência dos pacientes,
olhares menos limitados e polarizados do que
advogamos em teoria.

Agradecimentos
À médica Marisa Matos Salgueiro do Centro de Pesqui-
sas Hospital Evandro Chagas por ter realizado o aten-
dimento que gerou este texto e permitido sua divulgação.
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Ciência & Saúde Coletiva, 6(1):115-123, 2001


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