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ARTIGO ARTICLE
The complex experience and the reducing
approaches to it
Brani Rozemberg 1
Maria Cecília de Souza Minayo 2
Abstract This article focuses an experience of Resumo Este artigo analisa uma experiência
illness and cure witnessed by the first author de adoecimento e cura acompanhada pela pri-
in a rural community of Nova Friburgo, Rio meira autora em comunidade agrícola do inte-
de Janeiro. The reported experience allows a rior de Nova Friburgo, Rio de Janeiro. A expe-
view of its existential, social, cultural, psycho- riência relatada permite entrever seus signifi-
logical, biological and symbolic meanings both cados existencial, social, cultural, psicológico,
for the patient, her community and their rela- biológico e simbólico tanto para a paciente
tionship. The initial presumption of a strictly quanto para sua comunidade e na relação com
biological diagnosis and intervention was mod- esta última. A expectativa inicial de diagnós-
ified by a sole medical consultation, which ac- tico e intervenção puramente biológicos foi mo-
quired a therapeutical function through broad- dificada através de um único atendimento que
ening the interpretation of the experience be- teve a função terapêutica de ampliar a com-
yond the limits of a “scientific objectivity”. The preensão da experiência para fora dos limites
disease process had its turning point towards de uma “objetivação científica” e o processo de
resolution at the juridical level. The fact that cura acabou tendo seu ponto de resolução no
the recognition of other levels for the disease nível jurídico. O fato de o reconhecimento de
determination took place at the powerful space outras ordens de determinação na doença des-
of medical consultation may have contributed ta paciente ter ocorrido no espaço do atendi-
to the patient’s change of attitude towards her- mento médico pode ter concorrido para sua
self and the community, leading to cure once mudança de atitude frente a si mesma e à co-
she started to play a new social role legally le- munidade, e conseqüente cura, com base no
1 Coordenadoria de gitimated. The reported experience is discussed respaldo oferecido pela grande força simbóli-
Planejamento e in terms of the reducing approaches of health/ ca da consulta médica na legitimação de um
Epidemiologia do Centro
de Pesquisas Hospital
illness. novo papel social que ela passou a exercer. O
Evandro Chagas, Fundação Key words Complexity, Health and illness de- episódio é discutido em relação aos reducio-
Oswaldo Cruz. Av. Brasil terminants, Social and cultural factors nismos na abordagem da saúde/doença.
4.365 – Manguinhos –
21045-900 – Rio de Janeiro
Palavras-chave Complexidade, Determinan-
– RJ, Brasil. tes de saúde e doença, Fatores socioculturais
brani@ensp.ficoruz.br
2 Vice Presidência de
Ambiente, Comunicação
e Informação, Fundação
Oswaldo Cruz.
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Rozemberg, B. & Minayo, M. C. S.
Não sabia que era impossível, foi lá e fez tos e curas dos sujeitos doentes. A tal ponto a
(autor desconhecido) biomedicina deslocou-se do mundo real da vi-
da cotidiana, vivida pelos sujeitos doentes, que
Este texto é especialmente dedicado aos pro- a maior parte dos relatos dos doentes hoje é
fissionais de áreas técnicas e de serviços de saú- desconsiderada pelo profissional de saúde co-
de que buscam a pós-graduação em saúde pú- mo constituinte de seu objeto de saber e prá-
blica. Em sua busca de aprimoramento pro- tica (Tesser et al. 1998).
fissional e de reflexões que aprofundem seus As conseqüências desastrosas desse para-
conhecimentos, esses profissionais se depa- digma que exclui a própria experiência dos su-
ram, com freqüência, com uma “re-leitura” jeitos no âmbito da cultura em saúde são des-
acadêmica de temas com os quais já lidam, e critas em Illich (1995) e consagrada no termo
sobre os quais muitas vezes já acumularam “medicalização” da vida e da sociedade. Além
vasta experiência empírica. O trabalho acadê- da geração infinita de novas necessidades a se-
mico destina-se a lhes prover distanciamento rem satisfeitas exclusivamente por uma me-
crítico, novos conceitos, e a chance de rever diação técnica complexa e custosa e da conse-
seu posicionamento frente à prática, levando a qüente tecnificação do atendimento a serviço
análises fundamentadas e refinadas desta úl- do capital industrial, outra conseqüência do
tima e da vasta gama de ordens de determina- positivismo mecanicista na biomedicina esta-
ção nela implicadas. Costumo dizer que, após ria na focalização da saúde-doença sempre no
terem caminhado no “território”, tais alunos nível individual de responsabilização e de in-
são bem-vindos ao mundo dos “mapas”. Ocor- tervenção. Isso tem a ver com o fato de que um
re que, muitas vezes, o sofisticado discurso dos olhar fragmentado e intervencionista deixa
que são peritos em “mapas” lhes impressiona pouco espaço para a compreensão do contex-
a tal ponto que sua prática no mundo concre- to onde se desenrolam, no mundo vivido, os
to dos territórios se desqualifica, alimentan- processos saúde-doença.
do a distância entre “quem faz” e “quem pen- Aproxima-se desse reducionismo biomé-
sa”. Este texto tem o objetivo de lembrar que dico um outro, também bastante visado no
todos nós, acadêmicos ou não, estamos irre- meio acadêmico que discute o binômio saú-
mediavelmente inseridos no mundo dos ter- de-doença: a psicologização. Para exemplifi-
ritórios. E que saber ler mapas pode ser útil, car o reducionismo que a leitura psicologizan-
mas não é tudo. te pode operar na experiência temos os nume-
rosos casos de “depressão” diagnosticados que,
às vezes, relacionam-se também com a carên-
Sobre os reducionismos cia de determinados nutrientes na dieta. Um
olhar menos cuidadoso com as demais ordens
Um dos temas centrais dos cursos de pós-gra- de determinação (em especial com a tão visa-
duação é o da demanda por olhares não redu- da biomedicina) pode deixar de lado o trata-
cionistas ao complexo mundo da experiência. mento da privação de ferro, por exemplo, em
No campo da saúde o reducionismo mais vi- favor de longas sessões de terapia analítica.
sado é o do saber biomédico, que classicamen- Uma depressão não é menos depressão por ter
te comporta uma visão de saúde reduzida a de um fundo nutricional associado, mas se a lei-
“ausência de doença”, privilegiando os deter- tura da experiência for apenas psicológica a
minantes biológicos em detrimento dos so- anemia não diagnosticada pode trazer mais
ciais na interpretação dos fenômenos saúde e problemas e reforçar a própria depressão.
doença. Para Tesser et al. (1998) a atual crise Além disso, raramente ou nunca os enfo-
da atenção à saúde está ligada ao exercício co- ques psicológicos são aplicados ou valoriza-
tidiano desse saber biomédico, cuja raciona- dos na prática clínica porque o profissional
lidade procura “fatos” numa relação de causa- não dispõe de tempo, preparo, ou de convic-
lidade linear e mecânica. A base do saber bio- ção sobre o valor de sua utilização (Tesser et
médico é no dizer de Queiroz (1986) “o para- al. 1998). De toda forma essa área do saber é
digma mecanicista da medicina ocidental mo- marginal na biomedicina, ficando sob a tute-
derna”. Segundo Luz (1998) a objetivação cien- la dos profissionais especializados. As aborda-
tífica das doenças instaurou um novo objeto gens que propõem a superação da dicotomia
para a medicina ocidental: é a doença o que entre corpo e mente são reconhecidamente ne-
interessa ao médico, não mais os adoecimen- cessárias pois esta é uma questão central na
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últimos tempos dos sintomas “da doença gra- sobre a forte coerção exercida sobre os indiví-
ve”, a comunidade encontrava inclusive o ar- duos em sociedades onde as funções, as hierar-
gumento do “contágio” para evitar que Délia quias e as atribuições são rigidamente estabe-
se aproximasse da filha. Mas o que a família do lecidas, deixando pouco espaço de liberdade
marido procurava evitar era outro tipo de con- para expressão (não prevista) das pessoas. Em
tágio: o dos valores culturais alheios aos da co- contraposição, analisa também o que denomi-
munidade. Com a madrasta a vida da menina na “sociedades igualitárias” nas quais os indi-
era “perfeita” para os moldes locais: lavar, co- víduos são o núcleo propulsor e o sujeito das
zinhar, deixar a casa brilhando, cuidar do ir- organizações da comunidade. Duarte (1986)
mão de criação e ajudar na lavoura do inha- traz para o âmbito brasileiro, o pensamento
me. Com Délia a menina não aprenderia na- de Dumont considerando que na cindida so-
da disso e ainda, conviveria com um homem ciedade nacional, a lógica hierárquica tende a
“de fora” que ninguém sabe “de que família presidir as relações nas classes populares ur-
veio” e que não é agricultor. banas e rurais, onde são pouco permitidas ex-
Quando Délia obrigou o ex-marido e a ex- pressões individuais diferenciadas, sobretudo
sogra a comparecerem em audiência por inti- quando põem em xeque a reprodução ideoló-
mação judicial para assumirem frente ao juiz gica, o poder dos chefes ou dos mais velhos,
um acordo de respeito aos direitos de conta- ou dos usos e costumes rigidamente internali-
to periódico entre mãe e filha, todos os seus zados. A interdição sobre os dissidentes pode
“pecados” do passado foram expostos e uma ter várias repercussões.
grande confusão foi deflagrada na comunida- Uma forma freqüente de manifestação de
de. O ex-marido, que antes chegou a colabo- mal-estar é o adoecimento. Alguns antropólo-
rar na compra dos remédios agora a ameaça- gos têm estudado e analisado essa questão. Por
va de morte, e até mesmo nós, por um curto exemplo, Lévi-Strauss, ao introduzir a obra de
período, fomos vistas como quem “apoiou” a Marcel Mauss, faz o seguinte comentário: o es-
“desviante da ordem” naquela sociedade. Mas forço irrealizável, a dor intolerável, o prazer ou
todos acabaram tendo que “engolir” Délia em o aborrecimento são menos função das particu-
seu novo papel de mãe de sua filha. laridades individuais que de critérios sanciona-
dos pela aprovação ou desaprovação coletivas.
(1974). E acrescenta: em face das concepções
Discussão racistas que querem ver no homem o produto de
seu corpo, mostra-se, ao contrário, que é o ho-
A experiência analisada permite entrever seus mem, sempre e em toda a parte, que faz de seu
significados existenciais, sociais, culturais, psi- corpo um produto de suas técnicas e de suas re-
cológicos, biológicos e simbólicos tanto para presentações (1974).
a paciente quanto para sua comunidade e na Essa reflexão de Lévi-Strauss veio a propó-
relação com esta última. O que ressalta mais sito de um belo texto intitulado L’idée de la
fortemente da narrativa é a força coercitiva mort no qual Marcel Mauss analisa a maneira
dessa comunidade onde Délia vive sobre seu como tribos neozelandesas e australianas, re-
foro individual, exercendo um domínio mo- gidas por uma lógica hierárquica, concebem
ral sobre normas de conduta e práticas sociais. os fenômenos da doença e da morte. Sobre elas
Numa localidade pequena, onde as possibilida- existem várias explicações e uma delas está
des de preservação da vida privada são limi- vinculada a causas sociais. Essa é construída
tadas e os comportamentos são estruturados pela idéia de uma ligação direta entre a esfera
por tradições e costumes rígidos, as categorias física, a psicológica e a moral. Ou seja, o medo
“certo” e “errado” estão dadas a priori, provo- da morte de origem puramente social pode
cando um constrangimento profundo em ca- criar tais manifestações mentais e físicas na
da um de seus membros. consciência e nos corpos dos indivíduos, que
No julgamento de qualquer atitude des- eles podem realmente adoecer e morrer. São
viante, a pessoa, na sua totalidade, é aceita ou casos acontecidos de mortes causadas brutal-
rejeitada. Aceita, se porventura se enquadra. mente em numerosos indivíduos, mas simples-
Rejeitada por inteiro, mesmo quando é ape- mente pelo fato de que eles souberam ou acre-
nas um tipo de atitude sua que não se adequa ditaram que iam morrer (Mauss, 1974). Mauss
aos usos e costumes. Dumont (1972) em Ho- comenta que observou nessas sociedades um
mo hierarchicus busca compreender e teoriza fenômeno singular, em que muitas pessoas fi-
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Agradecimentos
À médica Marisa Matos Salgueiro do Centro de Pesqui-
sas Hospital Evandro Chagas por ter realizado o aten-
dimento que gerou este texto e permitido sua divulgação.
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