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Ciência & Saúde Coletiva

ISSN: 1413-8123
cecilia@claves.fiocruz.br
Associação Brasileira de Pós-Graduação em
Saúde Coletiva
Brasil

Brant, Luiz Carlos; Minayo-Gomez, Carlos


A transformação do sofrimento em adoecimento: do nascimento da clínica à psicodinâmica do
trabalho
Ciência & Saúde Coletiva, vol. 9, núm. 1, 2004, pp. 213-223
Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva
Rio de Janeiro, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=63013499021

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A transformação do sofrimento

ARTIGO ARTICLE
em adoecimento: do nascimento da clínica
à psicodinâmica do trabalho

The transformation process of suffering


into illness: from the birth of the clinic
to the psychodynamic work

Luiz Carlos Brant 1


Carlos Minayo-Gomez 1

Abstract Starting from the conceptual differen- Resumo Tem-se como pressuposto que o proces-
tiation of suffering, pain and illness, we tried to so de transformação do sofrimento em adoeci-
find, through previous literary works and inter- mento, na gestão do trabalho, está relacionado
views with workers and managers, elements to não apenas com a produção e reprodução de dis-
demonstrate the existence of a transformation cursos originários da medicina científica, mas
process that turns suffering into illness in the também com um conjunto de práticas sustenta-
work management area. This process is not only das, na atualidade, pela medicina ocupacional.
related with the production and reproduction of Partindo da diferenciação conceitual entre sofri-
discourses originally from the scientific medicine, mento, dor e adoecimento, buscou-se na literatu-
but also with a set of practices supported, in the ra e em entrevistas com trabalhadores e gestores
present time, by the occupational medicine. The elementos para demonstrar a existência deste pro-
evidences of our research point to the attempt of cesso. Constatou-se uma tentativa de silencia-
silencing this suffering and to the existence of an mento do sofrimento e uma cultura da promoção
illness promotion culture in the company space. do adoecimento no espaço da empresa, envolven-
This situation involves workers, health profession- do trabalhadores, profissionais da saúde e os ges-
als, and managers with the complicity of the fam- tores com a cumplicidade de famílias de trabalha-
ilies whose workers are identified as patients. dores identificados como pacientes. No entanto,
However, some cases have shown resistance to this alguns casos oferecem resistência ao processo,
process, which constitutes a real counter-illness constituindo um verdadeiro movimento do con-
movement. After these elements we came to the tra-adoecimento. Conclui-se que, nesses dois sé-
conclusion that, during these two centuries of sci- culos de “medicina científica”, embora houvesse
entific medicine, despite the desire of changing desejo de mudança, renovação das práticas e in-
and renewing practices and investments, iatro- vestimentos das mais diversas ordens, atos iatro-
genic acts and violence still have been done in the gênicos e violências foram e são cometidos ainda
1 Centro de Estudo name of science, of health, and of workers well- em nome da ciência, da saúde e do bem-estar dos
da Saúde do Trabalhador being. trabalhadores.
e Ecologia Humana,
Escola Nacional de Saúde Key words Psychic suffering, Worker’s health, Palavras-chave Sofrimento psíquico, Saúde do
Pública, Fiocruz. Psychodynamic of work, Occupational health trabalhador, Psicodinâmica do trabalho, Saúde
Av. Leopoldo Bulhões 1480, ocupacional
Manguinhos, 21041-410,
Rio de Janeiro RJ.
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Brant, L. C. & Minayo, C. G.

Introdução que fazem do vocabulário disponível em sua


época e da sua inserção social. As práticas lin-
Na atualidade, parece existir uma tendência de güísticas produzem e reproduzem manifesta-
banir o sofrimento do mundo do trabalho e ções diversas do sofrimento. Existem várias
desconsiderá-lo uma dimensão contingente à maneiras de se experimentar e manifestá-lo:
produção. Dar visibilidade ao processo de pela fala, sonhos, corpo, atos e pelo trabalho.
transformação do sofrimento em adoecimento, Uma vez expresso, o sofrimento recebeu dife-
no âmbito da gestão do trabalho, se faz impor- rentes significações e destinos ao longo da his-
tante à medida que ele explicita a existência de tória. De símbolo do pecado judaico-cristão à
situações políticas (dominação e resistência), de patologia da ciência moderna, passando pela
gozo (mesclagem de prazer e dor) e econômicas bruxaria medieval, o sofrimento sempre exigiu
(prescrição e consumo abusivos de medicaliza- do homem uma explicação lógica, quanto mais
ção). O ato de criar implica rupturas. Não há estranheza a sua manifestação provocava na
como “fazer um omelete sem quebrar ovos”. Da comunidade.
mesma forma, não há criação sem corte, por- Sob essas bases, buscou-se: 1) traçar uma
tanto, sem sofrimento. É possível observar, no breve trajetória que vai do nascimento da clí-
interior das organizações, o quanto a tristeza é, nica, no início do século 19, à psicodinâmica
imediatamente, nomeada como depressão e o dejouriana, em meados dos século 20, servin-
medo, como paranóia, apenas para citar alguns do-se basicamente de Foucault (1998 e 1979);
exemplos. Esse adoecimento não se faz sem Herzlicch e Pierret (1987), Costa (1989a; 1989b)
conseqüências, uma vez que ele discrimina, es- e Dejours (1992; 1994 e 1996); 2) diferenciar
tigmatiza e exclui. O que abre espaço para a me- conceitualmente sofrimento, dor e adoecimen-
dicalização das manifestações do sofrimento to, recorrendo a Freud (1920), aos artigos de
nas empresas através da prescrição indiscrimi- Ricouer (1994) e de Marquez (1994); 3) assina-
nada, principalmente, de antidepressivos e an- lar criticamente o lugar que o sofrimento ocu-
siolíticos. Portanto, evidenciar a transformação pa na teoria dejouriana; 4) dar voz aos traba-
do sofrimento em adoecimento significa criti- lhadores como forma de evidenciar os meca-
car esse conjunto de práticas que permite a nismos de submissão e resistência. Para este úl-
enunciação de determinadas doenças. timo, utilizaram-se recortes de entrevistas
Na saúde do trabalhador, como campo de abertas, de uma pesquisa que tem por objetivo
conhecimento e de intervenção, é ampla a lite- investigar os destinos das manifestações do so-
ratura sobre trabalho e sofrimento psíquico, frimento, no âmbito de uma empresa de gran-
como se pode constatar em Merlo (1999), que de porte, do setor de serviços, situada na região
investigou prazer e sofrimento no trabalho de metropolitana de Belo Horizonte. Foram en-
processamento de dados em Porto Alegre; Pa- trevistados trabalhadores e familiares; gestores
lácios (1999 e 1993), que estudou, no Rio de Ja- e profissionais da saúde. Para a análise dos re-
neiro, o trabalho de caixa bancário em uma latos obtidos recorreu-se ao método Análise de
instituição estatal, bem como o trabalho hospi- Conteúdo (Bardin, 1977; Triviños, 1987; Mina-
talar e a saúde mental; Oliveira (1998), que yo, 1996).
pesquisou trabalhadores da saúde em uma uni-
dade hospitalar no Pará; e Jardim (1994), que
investigou o processo de trabalho dos pilotos Sofrimento, sujeito e dor
do metrô carioca. No entanto, até onde foi pos-
sível pesquisar, sofrimento diferenciado de É importante reconhecer que o sofrimento não
adoecimento e dor, em termos conceituais, tem uma manifestação única para todos os in-
constitui-se uma dimensão pouco investigada. divíduos de uma mesma família, cultura ou pe-
Ao efetuarmos um estudo acerca do proces- ríodo histórico. O que é sofrimento para um,
so de transformação do sofrimento em adoeci- não é, necessariamente, para outro, mesmo
mento, não buscamos conhecer a etiologia de quando submetidos às mesmas condições am-
um determinado sofrimento ou o seu nexo bientais adversas. Ou ainda, aquilo que é sofri-
causal com o trabalho, mas sim investigar o mento para alguém, pode ser prazer para outro
destino seguido a partir de sua manifestação e vice-versa. Um acontecimento, como algo ca-
nas empresas. Partimos do princípio de que os paz de provocar um espanto, em um determi-
sujeitos sofrem e manifestam seu sofrimento, nado momento pode significar sofrimento; em
em maior ou menor grau, de acordo com o uso outro, pode ser vivenciado como satisfação.
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Resta ainda lembrar que no sofrimento é pos- em viver em um ambiente que, na maioria das
sível encontrar uma mesclagem de prazer e dor, vezes, não lhe é favorável. Assim, procurar-se-á
simultaneamente (Brant, 2001a). Assim, essa abordar o sofrimento a partir do sujeito, que
condição básica do ser no mundo não pode ser pode ser definido como: efeito das práticas lin-
definida apenas a partir do acontecimento. O güísticas, uma decorrência do uso de nossos vo-
sofrimento depende da significação que assu- cabulários. Somos aquilo que a linguagem nos
me no tempo e no espaço, bem como no corpo permite ser, acreditamos naquilo que ela permite
que ele toca produzindo algo “além do princí- acreditar, só ela pode fazer-nos acreditar em algo
pio do prazer”. O homem sofre porque passa a do outro como familiar, natural ou, pelo contrá-
perceber a sua finitude; o que faz do sofrimen- rio, repudiá-lo como estranho, antinatural e
to uma dimensão não apenas psicológica, mas, ameaçador (Costa, 1992).
sobretudo, existencial. Falar em tempo exige O sofrimento, marcado por um “estado de
também falar em memória. A memória do so- expectativa diante do perigo”, pressupõe a exis-
frimento é o elemento capaz de implicar o ser tência de um registro, de um código lingüístico
na preservação da vida; eis uma importante que permite identificar, nomear e comunicar
função do sofrimento na construção do sujei- determinadas percepções avaliadas como
to. Estar implicado significa acreditar na pro- ameaça. Na preparação para enfrentá-lo, é pos-
messa de um futuro, sinalizando algo para sível encontrar a dimensão que define o sujei-
além do imediatamente presente. Portanto, o to, a sua submissão a determinados discursos.
sofrimento está relacionado com um saber É a inserção num discurso que permite a repre-
acerca da existência que não se sabe todo, no sentação de um acontecimento como perigoso
que difere o homem do animal. ou não, portanto capaz de desencadear sofri-
O sofrimento, como uma dimensão intole- mento ou não. O perigo pode estar, concreta-
rável nas empresas, pactua com a linguagem mente, no ambiente e ser representado como
que, além de representar, tem a função de criar ameaça, uma mesclagem de experiência e me-
laços discursivos entre os sujeitos, as coisas ao mória, ou pode estar interiorizado, apenas co-
redor, de modo a estruturar um universo de mo fruto do imaginário.
sentido minimamente compatível com a vida Do ponto de vista conceitual, sofrimento e
(Costa, 1992). Esta asserção não implica des- dor não se confundem, mas também não se
considerar o corpo, pois o sofrimento também distinguem com facilidade, da mesma forma
tem uma inscrição nele, compondo uma geo- que não se pode separar a frente e o verso de
grafia marcada por relevos atravessados por uma folha de papel. O que não nos autoriza
prazer e dor, nem sempre passível de ser ex- afirmar a existência de uma relação de comple-
pressa em palavras. As fronteiras entre sofri- mentaridade entre eles. Na realidade, há um es-
mento, não-sofrimento e sofrimento-prazer treito e tênue limite entre os dois termos que
são imprecisas, vagas, e se superpõem em ca- estaria relacionado com um esgarçamento eti-
madas indiscerníveis, muitas vezes inefáveis. O mológico e semântico, como muito apropria-
manifestado depende da modalidade pela qual damente observa Marquez (1994). Fruto de
se introjetou a linguagem e aprendeu a sentir e uma visão dicotômica, a palavra sofrimento
a nomear a experiência como angústia, dor, tem sido associada ao psíquico, ao mental ou à
prazer ou satisfação. A maneira como utiliza a alma, enquanto a palavra dor, geralmente, é re-
linguagem para lidar com as solicitações do metida a algo localizado no corpo. Tanto é, que
outro define os atos, que podem ser de submis- diante da afirmação “estou com dor”, a pergun-
são, desobediência e contestação. O sujeito é, ta imediata é: onde? Ao se referir à existência
portanto, produto da contingência da lingua- de dois tipos de dor, a seguinte fala de um dos
gem, do desejo e do conjunto de dispositivos supervisores entrevistados comporta alguns
presentes no seu espaço institucional. elementos que nos possibilitam melhor pensar
Para Freud (1920), o sofrimento é o estado a diferenciação entre dor e sofrimento: Eu be-
de expectativa diante do perigo e da prepara- bo; quando caio, a dor da culpa dói mais que a
ção para ele, ainda que seja um perigo desco- dor do corpo. Há uma dor física e há uma dor
nhecido (angústia); ou medo quando ele é co- mental. A dor do corpo não dói tanto quanto a
nhecido; ou susto quando o sujeito topa com dor da alma (DV, 49 anos). Mesmo sob a alega-
um perigo sem estar preparado para enfrentá- ção de portar uma concepção fragmentada do
lo. Portanto, o sofrimento se configura como mundo sensível, é possível constatar, na fala do
uma reação, uma manifestação da insistência entrevistado, a indicação da existência de expe-
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Brant, L. C. & Minayo, C. G.

riências que se diferenciam e que são vivencia- go percurso do “poder disciplinar” que foi
das, espacialmente, em diferentes regiões. aperfeiçoado como uma nova técnica de gestão
Qualquer que seja a denominação e a localiza- dos homens. A partir do século 18, procurou-
ção dessa dimensão humana, no físico ou na se investigar de que maneira os gestos são fei-
alma, pouco importa; o interessante é perceber tos, qual o mais eficaz, rápido e mais ajustado,
a existência de uma diferença que já está assi- conforme descrição de Foucault (1979). Na
nalada, no mínimo, no plano da linguagem. gestão do trabalho pós-industrial, a disciplina
Portanto, sofrimento e dor não podem ser como técnica de exercício do poder tem por
reduzidos à dimensão corporal ou lingüística função não mais controlar os gestos e os cor-
como propõe Ricouer (1994) quando afirma pos, mas o pensamento, a criação e as manifes-
que o termo dor está destinado às manifesta- tações do sofrimento. Os mecanismos de ges-
ções que têm lugar em órgãos específicos do tão disciplinar do corpo, que exigiam uma acir-
corpo ou no corpo como um todo. Ou seja, a rada vigilância de olhares sobre os trabalhado-
dor estaria marcada por um solipsismo que as- res, nas primeiras décadas do século 20, torna-
sinala a prevalência da realidade imaginária do ram-se incompatíveis com a moderna organi-
eu, portanto, não implicaria a dimensão da al- zação. Na contemporaneidade, já não faz senti-
teridade, reflexividade e linguagem, como acon- do que o indivíduo seja observado e cronome-
tece no sofrimento. Nesses termos, a questão trado regularmente. No entanto, a necessidade
exige um cuidadoso estudo de modo que se de controlar parece exigir medidas disciplina-
possa avançar a compreensão do ser no mundo res cada vez mais refinadas. Como acontece,
do trabalho, para além do corpo e da lingua- por exemplo, com o processo saúde-doença-
gem. Diferenciação fundamental quando pen- cuidado, que, no interior das fábricas pós-in-
samos na existência de um processo de trans- dustriais, tornou-se uma dessas medidas. Em
formação do sofrimento em adoecimento nas conseqüência disso, observam-se sutis tentati-
empresas. Pois, em última instância, essa dife- vas de destituição do trabalhador da sua condi-
renciação pode definir pela permanência ou ção de sujeito, para transformá-lo em paciente.
afastamento do trabalhador; ou seja, em termos Processo esse fundado numa relação muito
de saúde ocupacional, ele está doente ou não? É singular, que envolve profissionais da saúde,
tudo que alguns médicos do trabalho definem; gestores, trabalhadores e alguns de seus fami-
o que constitui um enorme reducionismo do liares.
processo saúde-doença-cuidado. Compreender Ao reportarmo-nos ao século 19, é possível
a diferença entre sofrimento e dor e a sua arti- verificar, através das obras de Foucault (1998;
culação com o sujeito, como construto psicana- 1979) e Herzlicch & Pierret (1987), o início da
lítico, pode colaborar no grande desafio que é ruptura que se estabeleceu no saber médico e
estabelecer o diagnóstico diferencial entre os que transformou o sujeito em paciente. Com o
distúrbios osteo-musculares relacionados ao advento da medicina científica, novas formas
trabalho (DORT) e fibromialgia. E assim com- de conhecimento e novas práticas institucio-
preender que mesmo na ausência de um com- nais tornaram o paciente desvinculado do seu
prometimento neuromuscular, resultado dos sofrimento. Nessa época, para conhecer a “ver-
mais avançados exames de imagens, é possível a dade do fato patológico”, o médico precisou
existência da dor no sujeito. O que não signifi- abstrair o sujeito, pois sua disposição, tempera-
ca, necessariamente, manipulação histérica ou mento, fala, idade, modos de vida perturbavam
má-fé do trabalhador. Existe algo para além da a identificação da doença, segundo o desenho
doença ou da não-doença; e isso o médico ja- nosográfico preestabelecido. Com base em
mais poderá esquecer, sob pena de operar um uma formação mecanicista, o papel dessa lógi-
imenso reducionismo na sua prática e silenciar ca médica era neutralizar essas perturbações,
o sofrimento do trabalhador, adoecendo e es- manter o sujeito distante para que a configura-
tigmatizando-o. ção ideal da doença aparecesse aos olhos do
médico, no abismo que se instaurava entre eles.
Nessa nova racionalidade, o olhar clínico
Silenciando o sofrimento e promovendo foi dirigido para o corpo, representado como
o adoecimento: uma trajetória histórica lugar da doença. Houve um quase silenciamen-
to do paciente que, em vão, tentava falar de seu
A transformação do sofrimento em adoeci- sofrimento e daquilo que imaginava ser o seu
mento pode ser compreendida através do lon- mal. A doença foi retirada de sua metafísica da
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maldade, da qual tinha sido parte durante sé- médico-hospitalar. A partir do século 19, lidar
culos e passou a ocupar um estado corporal com a doença tornou-se função dos médicos.
que permitiu sua leitura pela ciência. Ao ins- Como resultado dessa prática, uma conclusão
taurar o fim de uma concepção religiosa e indi- se impôs: a norma familiar produzida pela or-
vidual da doença, acabou-se tamponando as dem médica solicitava, de forma constante, a
reações de sofrimento do sujeito diante das ad- presença de intervenções disciplinares por par-
versidades ou fragilidade da vida. Os sintomas te desses verdadeiros agentes de normalização.
assumiram os significados de determinantes Segundo Boltanski (1979), a história da medi-
naturais das doenças, deixando de lado a arti- cina, há mais de um século, é a história contra
culação entre o sujeito e o sofrimento. Assim, as práticas médicas populares, com o fim de re-
os sintomas deixaram de ser representados co- forçar a autoridade médica e colocar sob sua
mo tentativa de solução de um conflito, de uma jurisdição novos campos abandonados até en-
reconciliação do ser, que habita o mundo da vi- tão ao arbítrio leigo.
da e é por ele habitado. Perdida a sua condição De forma semelhante, quando o sofrimen-
de “um bem” do sujeito, o sintoma passou a se to é manifestado na empresa, trabalhadores e
figurar apenas como sinal de uma patologia. O gestores não sabem como lidar, ficam sem ação
sujeito, banido da cosmologia médica, deu lu- e referencial. Pois, práticas de uma medicina
gar ao paciente, representado como um con- popular, como uso de chás e compra de medi-
junto de órgãos e tecidos. Em suma, essa lógica camentos sem receita, são constantemente de-
lançou as bases para a construção da identida- saconselhadas. Logo, demandam consulta mé-
de do doente. dica e, em última instância, a hospitalização.
Um dos destinos da manifestação do sofri- Assim, tudo indica que já não há lugar para as
mento, a partir do século 19, foi o hospital, que práticas de manejo do sofrimento construídas
surgiu como um espaço de consolidação da pelos próprios trabalhadores. Outras vezes, re-
identidade de doente, de assistência, segrega- presentam o manifestado como perturbação
ção e exclusão (Foucault, 1998; 1979). Como mental ou desequilíbrio, uma vez que a ordem
uma imensa vitrine, a hospitalização deu visi- médica já se encontra interiorizada. Em conse-
bilidade ao paciente reafirmando-o como qüência, tornam-se necessários, no cotidiano
doente na família, no trabalho e na comunida- do trabalho, a consulta e o parecer de profissio-
de. Uma vez internado, não havia dúvidas de nais da saúde, que estão sempre de plantão pa-
sua condição de doente, mesmo quando não se ra corrigir os excessos e as faltas, além de ofere-
tinha ainda um diagnóstico. A partir da insti- cer prescrições e medidas de prevenção. Desse
tuição do hospital, a residência deixaria de ser ponto de vista, pode oferecer significativos ele-
o lugar onde o sofrimento se manifestava em mentos para este estudo assinalar as origens
sua forma possível. Assim, a família perdeu a históricas da psiquiatria, no Brasil, pois, a par-
autoridade sobre a maneira de cuidar do seu tir dela, operou-se um deslocamento das práti-
ente, que seria doravante isolado e “olhado cas médicas com pacientes identificados como
cientificamente”. No hospital, a partir do olhar “perturbados ou doentes dos nervos”, para tra-
médico, pretendia-se reparar os excessos ou de- balhadores, famílias e comunidades, sem de-
ficiências das práticas familiares em relação ao mandas explícitas de cuidados. Portanto, dar
processo saúde-doença-cuidado. Introjetada a visibilidade ao nascimento dessa psiquiatria
ordem médica, que desqualificava as práticas tem por objetivo contextualizar uma outra vi-
curativas familiares, cada vez mais a família se cissitude do sofrimento, a da psiquiatrização.
viu obrigada a solicitar atenção médica por se Nos anos 30, os psiquiatras brasileiros, de-
perceber impotente diante das manifestações finindo-se como higienistas, gradativamente,
do sofrimento que foram, imediatamente, re- deslocaram-se da prática asilar tradicional e
presentadas como sinais de doença. penetraram nos meios escolar, profissional e
Na atualidade, o grande número de hospi- social, até então fora dos domínios da psiquia-
talizações desnecessárias revela, muitas vezes, tria, com uma proposta de trabalho apoiada na
as conseqüências históricas desse processo que noção de eugenia. O que é sujo e impuro deve
pode até desestruturar as famílias por seguirem ser mantido distante ou enclausurado para o
as normas de saúde que lhes foram impostas. bem-estar de uma coletividade limpa e pura, de
Essa linha de raciocínio pode elucidar, segundo modo que a ordem e o progresso possam estar
Costa (1989a), a razão da persistência do me- assegurados. Essa era a lógica implícita. A gra-
canismo de tutela familiar, através da atividade dativa travessia da ação médica instituída com
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doentes para uma prática com não-doentes estranho diante do trabalhador. Este último,
implicava a mudança de um domínio circuns- mesmo sendo aquele que faz a demanda da in-
crito para o campo social como um todo. De- tervenção do profissional, é habitualmente um
nominado como prevenção, esse deslocamento “inocente”, pois desconhece os destinos que to-
tentava subordinar cidadãos sem demandas de mará o seu sofrimento manifestado.
cuidado aos critérios de cientificidade da prá-
tica médica, incutindo um ideal forjado, mui-
tas vezes, alhures à realidade do sujeito para re- O sofrimento para a psicodinâmica
ceber o que se julga melhor para ele (Costa, dejouriana
1989a).
No campo da “saúde mental”, o exercício da Interpretar determinadas manifestações do so-
prevenção pode ser considerado historicamen- frimento no trabalho como pecado, loucura,
te falido. No entanto, as noções de sujeito uni- preguiça, malandragem ou patologia depende
versal e de predição controlada do comporta- daquele que o diagnostica, de sua inserção em
mento – que sustentam as práticas preventivas determinados discursos, da utilização que faz
– permanecem firmes e continuam fundamen- do vocabulário disponível em sua época, da
tando teorias e intervenções nos campos da origem social do trabalhador diagnosticado e
saúde e do trabalho. Prevenção implica “pré- do seu capital social. A psicopatologia do tra-
dizer”, imaginariamente, a existência de uma balho, em meados do século 20, tentou fundar
doença no horizonte e dos mecanismos para uma clínica de afecções mentais que poderiam
evitá-la. Assim procedendo, a medicina fornece ser ocasionadas pelo trabalho. Assim, ela repro-
elementos lingüísticos para uma comunidade duzia o espírito da época, caracterizado por
nomear, com vocabulário médico, situações um corpo de conhecimentos extremamente
pertencentes ao seu universo cultural (Costa, dominado pelo organicismo que vivia, então, o
1989a). É nesse sentido que se pode entender o seu apogeu teórico. De forma semelhante, a pa-
encaminhamento de um trabalhador, que se tologia profissional somática, que gozava de
apresenta triste ou com medo, à assistente so- grande prestígio, influenciou as intervenções
cial, que por sua vez o conduz ao médico do sobre os danos físico-químico-biológicos dos
trabalho que o dirige, preventivamente, para o postos de trabalho. As investigações no campo
psiquiatra. Nossas observações indicam, como trabalho-saúde, naquela época, obedeciam a
prática mais comum, que esse sujeito receba o um modelo teórico causal, com vista a encon-
diagnóstico de depressão, de fobia ou paranóia, trar evidências entre doenças mentais e traba-
acompanhado de uma prescrição medicamen- lho. Essas observações, por sua vez, não trouxe-
tosa. Dessa forma, dimensões contingentes à ram os resultados esperados pelos psicopatolo-
existência humana vêm sendo diagnosticados gistas: destacar e caracterizar a doença mental
como transtornos psiquiátricos. específica originária da organização do traba-
Mesmo que na atualidade, nos encontremos lho (Dejours, 1994).
temporalmente distantes do ideal eugênico das Diante do fracasso dos modelos teóricos da
primeiras décadas do século 20, a história da psicofisiologia pavloviana e da patologia do
psiquiatria permanece exemplar. Ela sinaliza a trabalho para demonstrar a correlação entre
necessidade de conceder especial atenção ao pa- trabalho e doença mental, uma “nova psicopa-
pel dos contextos na produção de teorias e prá- tologia do trabalho” começou a se delinear na
ticas de atenção à saúde, de modo que não ve- França. Para o psiquiatra francês Christophe
nhamos a reproduzir, no interior das empresas, Dejours, um dos seus mentores, esse novo mo-
os erros e equívocos cometidos em nome da delo foi possível a partir do momento em que a
ciência e da saúde. Seguindo essa perspectiva, é normalidade foi considerada “enigma”, tornan-
necessário analisar a passagem da psicopatolo- do-se objeto de estudo. De acordo com essa
gia do trabalho para a psicodinâmica dejouria- nova orientação, as investigações não tiveram
na e as conseqüências da entrada do “espírito mais como direção as “doenças mentais”, mas
científico” nos mecanismos de sobrevivência as estratégias elaboradas pelos trabalhadores
organizados pelo conjunto dos trabalhadores. para enfrentar mentalmente a situação do tra-
O profissional da saúde, como portador de um balho. Iniciava-se assim, no começo dos anos
interesse disseminado em um discurso reco- 80, sob a influência da psicanálise, a psicodinâ-
nhecido e munido das prescrições dos códigos mica do trabalho, cujo objeto de estudo era o
de ética da sua profissão, não deixa de ser um sofrimento e as defesas contra a doença. Nessa
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época, Dejours concebia o sofrimento como a tratégias coletivas dos trabalhadores e não co-
vivência subjetiva intermediária entre doença mo uma conseqüência de situações relaciona-
mental e o conforto (ou bem-estar) psíquico. das ao trabalho. A partir da psicanálise como
Sob esse ângulo, o sofrimento implica, sobre- instrumento de crítica para a organização do
tudo, um estado de luta do sujeito contra as trabalho, Dejours pergunta: “há lugar para os
forças (ligadas à organização do trabalho) que trabalhadores serem sujeitos dos seus desejos?”
o empurram em direção à doença mental. Se- Não se pode esquecer que o desejo, desde Hegel
gundo esta concepção, o sofrimento, até então e, posteriormente em Lacan, é sempre desejo
representado como essencialmente negativo, do Outro. Mesmo empreendendo consideráveis
favorecedor da doença, passou a adquirir uma esforços para fazer avançar no conhecimento
nova significação que abarcava elementos pa- da relação saúde-trabalho, a psicodinâmica de-
togênicos e criativos (Dejours, 1994). jouriana ainda encontra algumas dificuldades,
O grande mérito de Dejours, ao considerar principalmente quando utiliza, de forma vaga e
a significação e o sentido do sofrimento como imprecisa, conceitos como “equilíbrio psíqui-
dimensões essenciais no entendimento da rela- co”, “energia psíquica” e “normalidade”, para ex-
ção saúde-trabalho, foi colocar-se à escuta do plicar o sofrimento. Assim, ao polarizá-lo em
trabalhador para compreender o que lhe ocor- patogênico e criativo, Dejours reproduz uma
ria. Assim, a fala do trabalhador passou a con- longa tradição que, do nascimento da clínica à
figurar um privilegiado instrumento de pes- psicodinâmica do trabalho, transforma o sofri-
quisa e de intervenção (Uchida, 1996). Ao dar mento em adoecimento, fornecendo elementos
voz aos trabalhadores, constatou-se que, entre teóricos que colaboram na construção da iden-
eles, a doença é geralmente associada à pregui- tidade do trabalhador doente.
ça, vagabundagem ou malandragem. Diante da
adversidade, esses trabalhadores tentam domi-
nar a doença de alguma maneira. Partindo des- Identidade de doente:
se princípio, Dejours (1992) elaborou o con- construção e resistência
ceito de “ideologia defensiva”, como constru-
ção social que possibilita dominar e tentar fa- O processo de adoecimento conduz, como re-
zer desaparecer da consciência o sofrimento. sultado final, à configuração da identidade de
É possível constatar, em maior ou menor trabalhador-doente. No espaço da fábrica, a
grau, tanto na psicopatologia do trabalho construção dessa identidade implica submissão
quanto na psicodinâmica – que buscou investi- ao discurso médico e sair dessa condição não
gar as defesas contra a doença – a existência de depende apenas da vontade individual. É preci-
uma transformação do sofrimento em adoeci- so a intervenção no âmbito institucional. O
mento. Segundo a teoria dejouriana, o adoeci- próprio discurso da medicina ocupacional pro-
mento pode acontecer devido a uma “retenção duz uma cultura que fornece subsídios para a
da energia pulsional” por uma situação de tra- formação da identidade do doente – entendida
balho que impede a descarga adequada da car- como processo pelo qual o indivíduo se reco-
ga psíquica. É notória a tentativa da psicodinâ- nhece e constrói a significação da sua vida com
mica de reafirmar a centralidade do sofrimento base no atributo cultural de ser doente – a pon-
no processo saúde-doença-cuidado. No entan- to de excluir outras referências culturais. Se
to, essa perspectiva teórica esbarra em pontos partirmos da definição psicanalítica de que o
críticos. Repete o modelo de explicação causal, “sujeito é efeito de linguagem”, essa identidade
ao dicotomizar o sofrimento em criativo e pa- virá caracterizada pelo conjunto de práticas
togênico, e reproduz aspectos que tentava su- lingüísticas que configuram algumas ações,
perar em relação à psicopatologia. Nesse senti- suscetíveis de apresentar e fazer o sujeito ser re-
do, é possível perceber que a psicodinâmica presentado em seu meio como doente. Os me-
ainda se mantém, um tanto quanto, presa aos diadores lingüísticos não bastam. Outros me-
modelos termodinâmico e biológico, herdados diadores sociofuncionais contribuem para a
da psicanálise freudiana e da ergonomia. Fato constituição dessa identidade, como um con-
que fica evidente quando Dejours desenvolve a junto de práticas instituídas, que nas empresas
abordagem econômica do funcionamento psí- assumem formas de: exames admissionais, pe-
quico, a partir do modelo médico. Sob essa óti- riódicos e demissionais; avaliação de desempe-
ca, a manifestação do sofrimento é interpretada nho; programas de qualidade de vida, de de-
como resultado de um enfraquecimento das es- pendência química e de anti-estresse.
220
Brant, L. C. & Minayo, C. G.

Esse processo, entretanto, não acontece sem cilmente aceitam atrasos, principalmente, nos
resistências dos atores sociais envolvidos. A in- casos já tornados públicos de abuso do álcool.
subordinação ao imperativo organizacional da Sua mais árdua missão é a manutenção da dis-
transformação do sofrimento em adoecimento ciplina e o controle de horários, objetivos mais
leva à instituição de uma grande diversidade de importantes do que as metas de produtividade.
movimentos. Criam-se diversas alternativas de No entanto, chegar atrasado é tentar reivindi-
sobrevivência emocional e material no espaço car para si próprio o controle de um aspecto de
da fábrica, uma verdadeira cultura do contra- sua identidade e de seu autogoverno. É uma
afastamento por motivos médicos. A socializa- forma de se ver livre do tempo institucional, si-
ção dessas ações entre alguns trabalhadores tuação intolerável para uma empresa. Já, o gole
deixa entrever uma organização política míni- de álcool parece constituir-se uma estratégia
ma e um nível cultural desorganizado. Essa multifacetada de extraordinária importância
cultura, em franca contradição à lógica do para lidar com as condições do chão-de-fábri-
adoecimento, é capaz de abrigar e sustentar, em ca. É usado, geralmente, para lidar com o tédio,
seu interior, atores que fazem um duplo movi- o medo e o cansaço. Serve para enfrentar situa-
mento de subordinação e insubordinação para ções difíceis e problemas, um “verdadeiro re-
driblar essa forma de exclusão. Embora essa médio” para quase tudo, segundo a opinião do
cultura possa garantir a permanência no traba- citado trabalhador.
lho, não é o suficientemente capaz de evitar o É possível detectar estratégias de resistên-
estigma de portador de uma doença. O próprio cia, mesmo em situações em que o trabalhador
movimento de permanecer, principalmente en- se encontra bastante fragilizado. É o caso de
tre aqueles que manifestam seu sofrimento, é uma atendente comercial com diagnóstico de
interpretado como um ato insano. Para uma “distúrbio de estresse pós-traumático” por ma-
melhor observação desse movimento, nada nifestar ansiedade, após ter sofrido dois assal-
mais apropriado do que deixar os próprios tra- tos em seu posto de atendimento, no intervalo
balhadores falarem. de seis meses, e encontrar dificuldades em rea-
Os serviços de saúde na empresa, a veicu- daptar-se. A convivência com os colegas a faz
lação do discurso médico e a existência do hos- constatar, rapidamente, que vinha sofrendo
pital, como medidas disciplinares, parecem não discriminação por apresentar um comporta-
ser suficientes para que a identidade do traba- mento diferenciado. No entanto, ela não perce-
lhador doente possa se configurar. É necessário be que a manifestação do seu sofrimento revela
construir uma rede de comunicação, envolven- a periculosidade da sua função e quebra as es-
do profissionais da saúde, gestores e familiares tratégias defensivas dos colegas que tentam mi-
do trabalhador que, em comum acordo, deci- nimizar a percepção do sofrimento. A sua an-
dem num determinado momento o afastamen- gústia lhes faz lembrar aquilo que gostaria de
to ou a hospitalização. É o que pode ser consta- esquecer e revela um perigo real. Daí a pressão
tado na entrevista com Riovaldo, de 29 anos, para se igualar ao conjunto, na forma de lidar
trabalhador de chão-de-fábrica: A minha inter- com as ameaças a que o cargo a expõe. Por não
nação foi elaborada pelo meu chefe, que ligou pa- conter a própria apreensão, como os demais
ra a assistente social, que chamou minha famí- parecem conseguir, foi obrigada a se afastar,
lia, dizendo que era preciso me hospitalizar. Eles novamente, do seu posto. O grupo profissional
decidiram me internar. Eu não queria, estava armado da ideologia defensiva elimina aquele
com medo. Eu estava bem, apenas bebendo um que não consegue suportar o risco (Dejours,
pouco mais e chegando atrasado. 1992). Entretanto, a nossa entrevistada procura
Os gestores – extrapolando os objetivos resistir às situações que podem transformá-la
formais da organização referentes à gestão do em doente. Sua consciência crítica e sua forma-
trabalho – estabelecem elos com os profissio- ção universitária oferecem alguns subsídios,
nais da saúde para capturar o trabalhador, nu- como é possível constatar quando afirma: Os
ma complexa trama em torno do processo tra- colegas de trabalho resistiram. Até me falam que
balho-doença-cuidado. Sem o apoio familiar, eu devia esquecer tudo. Fazer como eles, traba-
essa estratégia disciplinar não seria possível. A lhar. É terrível tomar antidepressivo. Passa de
família, uma vez acionada e sentindo-se impo- uma questão de trabalho para ser pessoal. Todo
tente diante das manifestações do sofrimento mundo te pára na rua e pergunta se você melho-
do trabalhador, incorpora a ordem médica e rou. As pessoas te enxergam como doente mental.
autoriza a hospitalização. Os supervisores difi- (M., 22 anos, atendente comercial).
22

Revelar ao médico apenas aspectos positi- (1996), os sintomas e os agentes etiológicos


vos da situação em que se encontra e ocultar a trazem uma carga histórica, cultural, política e
interrupção da medicação, por decisão própria, ideológica e não podem ser contidas apenas
têm se constituído, segundo constatamos em numa fórmula numérica ou num dado estatís-
nossa investigação, formas de enfrentar as prá- tico. Da mesma forma, o processo saúde-doen-
ticas institucionais que podem vir a transfor- ça não pode ser reduzido a um conjunto de sig-
mar o sofrimento em adoecimento e, conse- nificados determinado pela cultura da empresa
qüentemente, em afastamento. A renitência em e pelo discurso médico hegemônico. É necessá-
fornecer informações do estado de saúde acon- rio pensar nesta determinação, para além dos
tece, sobretudo, pelo fato de o trabalhador per- sujeitos do significado, aproximando-a do con-
ceber o poder médico, que ignora o seu sofri- ceito de sujeito do significante, conforme a
mento e reconhece apenas a doença. Para en- concepção lacaniana. Ela deve ser pensada,
frentar a autoridade médica, aprendeu que pre- também, como determinação da ordem da lin-
cisa apresentar-se como doente educado, com guagem, entendida como “verdadeiros Outros”.
semblante de obediente e ingênuo. Como afir- A partir das contribuições da psicanálise, deve-
ma a mesma entrevistada, no final do primeiro se reconhecer que tanto o “doente” quanto o
mês de afastamento: Não tomo mais remédio. “não-doente” não existem em si, como um da-
Eu não comento isso com eles (médicos). Tenho do da “natureza” ou da cultura, mas como su-
medo deles aumentarem a dose, poderiam pen- jeitos que recebem a denominação de doentes,
sar que estou piorando, porque estou resistente. vinda da medicina, e que respondem a esta co-
Chego no consultório: está tudo ótimo! Se não, mo doentes ou como não-doentes (Brant,
você acaba se tornando um doente. Você vai in- 2001). É na condição de efeitos de práticas lin-
ternalizando o que as pessoas acham. güísticas que alguém se identifica e se reconhe-
Apresentar-se como doente ou não, como ce como doente ou não-doente. Para tanto, é
no caso da citada trabalhadora, é uma questão necessário que os mediadores lingüísticos se
de posição do sujeito diante das circunstâncias materializem através das práticas ou mecanis-
e da sua inserção em um dado discurso. Não há mos institucionais, como licenças médicas, in-
fato patológico, afirma Nietzsche (1978). Para serção em serviços de saúde da empresa, hospi-
o filósofo alemão, nem a saúde nem a doença talização e aposentadoria por invalidez.
são entidades; em última instância, são valores, Verificamos, também, que o sofrimento se
da mesma forma que o bem e o mal, o verda- apresenta sob a forma de humor. Nesse caso, o
deiro e o falso. Emitir um diagnóstico de es- trabalhador constrói um subterfúgio para ma-
tresse pós-traumático e uma comunicação de nifestar seu sofrimento, sem que o mesmo apa-
acidente de trabalho (CAT), para aqueles que reça como tal. Essa estratégia parece evitar que
sofreram assaltos no trabalho, não implica, ne- ele sofra o destino do adoecimento. O chão-de-
cessariamente, que esses estejam doentes. Mes- fábrica surge como um terreno fértil para as
mo que eles apresentem ansiedade e dificulda- “brincadeiras” que, segundo nosso entendi-
des de permanecerem em seus postos, sofri- mento, são formas veladas de desrepressão e de
mento e doença não se igualam. A doença de- manipulação. Vejamos como um gestor, que se
pende tanto de quem tem quanto de quem a julga muito sério e exigente, faz uso da brinca-
diagnostica, ou de onde se diagnostica (Camar- deira: Em alguns momentos eu brinco. É quando
go Jr., 1992). A partir do sujeito, como constru- me sinto triste, sozinho. No momento que sou sé-
to teórico psicanalítico, doença pode significar rio, sou menos aceito. Cobro, exageradamente,
saúde e vice-versa. A saúde é aquilo que pode dos meus funcionários. Isto me trás muito cansa-
ser útil a um homem ou a uma tarefa, ainda ço, na maioria das vezes. O brincar me alivia e
que para outros signifique doença. Não fui um me torna mais aceito. A brincadeira não é força-
doente nem mesmo por ocasião da minha maior da, é parte do meu jeito de ser (Gracindo Jr., 39
enfermidade (Nietzsche, 1978). anos, supervisor).
A saúde e a doença não podem ser concei- Ao tentar fazê-la parecer natural, esse tra-
tuadas apenas pela ausência ou pela presença balhador recusa reconhecer a sua brincadeira
de determinados agentes etiológicos e sinto- como uma estratégia. Nem poderia, pois ela é
mas. Manifestar taquicardia, sudorese, trans- parte de uma irreverente conduta, uma vez que
tornos do sono e da alimentação, como é o ca- por esse meio o gestor manifesta seu sofrimen-
so da nossa entrevistada, não autoriza diagnos- to, diverte e subverte o imperativo organizacio-
ticá-la como doente. Como observa Minayo nal que não admite o sofrimento em seu inte-
222
Brant, L. C. & Minayo, C. G.

rior. Essa prática permite a figuração do sofri- ção asséptica, sem verdadeiro diálogo. A medi-
mento, mesmo em situações marcadas pela ri- cina para ser científica tentou anular o que há
gidez, como é o caso da reunião com a direto- de sujeito no paciente e no profissional, bus-
ria regional. Segundo esse entrevistado, nin- cando transformá-los, respectivamente, em ob-
guém acredita em sua timidez e dificuldade de jeto e instrumento.
relacionamento, que tanto o fazem sofrer, exa- Partir do nascimento da clínica para tentar
tamente, devido às brincadeiras. É necessária assinalar pontos que poderiam dar sustentação
uma habilidade transgressiva e um certo know- à tese da transformação do sofrimento em
how para expressar os sentimentos dessa for- adoecimento constituiu uma arriscada e ousada
ma. A risada, a conversa e o comportamento de tarefa para um artigo. Apenas limitamo-nos a
pilhagem são bastante eficazes, mas não total- apontar algumas constatações. De forma seme-
mente, para vencer o tédio – um tédio aumenta- lhante aos colegas do século 19, na atualidade,
do por seu próprio êxito (Willis, 1991). determinados profissionais da saúde parecem
não perceber que seus atos contribuem para a
produção da identidade do sujeito doente. No
Considerações finais entanto, assinalar pontos da história parecia in-
suficiente. Ter dado voz aos trabalhadores de-
Quando nos perguntávamos pelos elementos monstrou ser um recurso apropriado. Permitiu
que compõem o processo de transformação do verificar que a articulação entre profissionais da
sofrimento em adoecimento, uma de nossas hi- saúde e gestores para a manutenção da ordem
póteses era de que a produção e a reprodução no espaço da empresa, através do adoecimento,
de determinados discursos no campo da saúde não se faz sem a cumplicidade da família. E que
ocupavam um importante lugar. Muitos desses a “brincadeira”, por exemplo, constitui uma es-
discursos, sustentados por reconhecidos inte- tratégia para expressar o sofrimento sem correr
lectuais e respeitados profissionais do campo os riscos do destino do adoecimento.
da saúde, não são apenas produtos, mas eles A estratégia utilizada permitiu reconhecer
próprios também produzem uma cultura: a do que, no espaço da fábrica pós-industrial, não
sujeito doente. Não obstante, a compreensão parece haver lugar para o sofrimento. A tristeza
essencialmente lingüística desse processo não é e o medo, ao não serem reconhecidos como di-
suficiente. A reprodução do discurso do adoe- mensões próprias do ato de viver, são transfor-
cimento precisa de se “imaginarizar” em práti- mados em depressão e fobia. Numa cultura
cas reconhecidas socialmente, como os exames, marcada pela imediaticidade, o sofrimento é
a medicalização e a internação hospitalar. visto como um sinal de fraqueza. Entendemos
Ao longo da trajetória que vai do nasci- que não é tanto a doença, mas sim o processo
mento da clínica à psicodinâmica dejouriana, do adoecimento que abre maiores possibilida-
embora houvesse um desejo de mudança, de des de afastamento do trabalho. O adoecimen-
renovação dessas práticas e empenho para to só é possível devido à existência de um dis-
acertar, cometeram-se sérias distorções, violên- curso e uma prática que afirmam: “você está
cias e exclusões, em nome da ciência, da saúde doente”; como se a presença da doença e do ser
e do bem-estar dos trabalhadores. doente pertencessem à mesma categoria. As-
Nesses dois séculos da “medicina científi- sim, entre o visível e o enunciável da relação do
ca”, a fala e a memória do paciente se tornaram médico com seu paciente, é preciso perguntar:
objetos de interesse apenas como conjunto de e o que se fala se dá a partir do que se vê? Ou se
dados informativos para elaboração de diag- enxerga apenas o que já existe como discurso?
nósticos, jamais como registros vivos de uma Se assim for, não se vê, reconhece-se. Aquilo
história de trabalho. Para o olhar clínico, a his- que se fala ao paciente sobre a sua condição se
tória não está no sujeito, mas em seus prontuá- baseia no que se reconhece nele. Logo, é possí-
rios, basta consultá-los. Da mesma forma, é su- vel deduzir que o médico apenas vê ilusoria-
ficiente lembrar a seqüência dos sintomas, o mente o trabalhador, pois a doença diagnosti-
aparecimento de seus caracteres atuais, as me- cada não está propriamente nele, tem origem
dicações já aplicadas e as intervenções médicas em outro lugar: na instituição do discurso mé-
sofridas. A palavra pela qual o sujeito se faz dico que conduz à construção de trabalhadores
presença no mundo não é relevante, pelo con- doentes. Sendo assim, a quem pode interessar a
trário, pode atrapalhar. O olhar sem a escuta produção de trabalhadores incapacitados insti-
faz da relação médico-paciente uma investiga- tucionalmente?
22

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