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Tratado de

Espiritualidade e Saúde
TEORIA E PRÁTICA DO CUIDADO EM
ESPIRITUALIDADE NA ÁREA DA SAÚDE

Felipe Moraes Toledo Pereira


Camilla Casaletti Braghetta
Paulo Antonio da S. Andrade
Tiago Pugliese Branco

ÀAtheneu
Rio de Janeiro • São Paulo
EDITORA ATHENEU
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DIAGRAMAÇÃO: Know-How Desenvolvimento Editorial
ASSESS0R1A EM LINGUAGEM E REVISÃO SEMÂNTICA: Iraci Nogueira

REVISÃO DE TEXTOS: Lígia Alves

CIF-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

T698

Tratado de espiritualidade e saúde : teoria e prática do cuidado


em espiritualidade na área da saúde / editores Felipe Moraes
Toledo Pereira ... [ et al.] ; [colaboração Adiair Lopes da Silva ...
[et al.]] -1 . ed. - Rio de Janeiro : Atheneu, 2021.

552 p. : il. ; 28 cm.

Inclui bibliografia e índice


ISBN 978-65-5586-217-1

1. Saúde - Aspectos religiosos. 2. Espiritualidade. I. Pereira,


, Felipe Moraes Toledo. II. Silva, Adiair Lopes da.

21-71122 CDD: 204.4


CDU: 27-584:61

Leandra Felix da Cruz Cândido - Bibliotecária - CRB-7/6135


20/05/2021 21/05/2021

PEREIRA, F. M. T: BRAGHETTA, C. C.: ANDRADE, P. A. S.: BRANCO, T. P.


Tratado d e Espiritualidade e Saúde: Teoria e p rá tica d o cu idado em espiritu alidade na área d a saúde

,
£ Direitos reservados à EDITORA ATHENEU - Rio de Janeiro, São Paulo 2021.
PARTE I
Conceitos Fundamentais
Andréa Malta Ferrian

há aqueles que tendem a agir como se sua doença


“0 bom médico trata a doença, mas o grande mé­
dico trata a pessoa com a doença.” fosse banal, mesmo quando ela é grave.3
Sir William Osler A doença pode ou não estar vinculada a um
sofrimento. A palavra “ sofrimento” vem do latim,
“ É do conhecimento de todos, e eu o aceito sufferere ou sufferre - “ sob” “ conduzir” - , e denota
como coisa natural, que uma pessoa atormen­ pena ou dor. Cassell afirma que o sofrimento é um
tada por dor e mal-estar orgânico deixa de estado de aflição severa, associado a acontecimen­
se interessar pelas coisas do mundo externo, tos que ameaçam a integridade de uma pessoa.4 Essa
na medida em que não dizem respeito a seu condição suscita com paixão, que é a empatia trans­
sofrimento. Uma observação mais detida nos formada em ação solidária. “ Em patia” conecta-se
ensina que ela também retira o interesse libi- com a palavra grega patbos, que significa paixão,
dinal de seus objetos amorosos: enquanto so­ excesso, sofrimento, sentimento. O conceito está
fre, deixa de amar. [...] Devemos então dizer: ligado ao padecer, pois o que é passivo de um acon­
o homem enfermo retira suas catexias libidi- tecimento padece desse mesmo acontecimento. Ora,
nais de volta para seu próprio ego, e as põe se empatia vem de in (para dentro) e pathos (senti­
para fora novamente quando se recupera.” mento), dizemos que se trata da capacidade psicoló­
Sigmund Freud.1 gica de tentar compreender sentimentos e emoções
de outras pessoas. Portanto, é o sofrimento que nos
A transição entre a condição de indivíduo sadio
torna humanos, e é ele que deve nos aproximar.5
para a de doente explicita a maneira como a enfer­
midade é vivenciada, sendo sempre um acontecimen­ Houaiss define sofrimento como ação ou
to singular, uma experiência pessoal, resultante da processo de sofrer; dor causada por ferimento ou
história de cada um, de seu modo de ser, de viver, doença, padecimento; dor moral, amargura; ansie­
de se relacionar. E o indivíduo que dá à doença e às dade; angústia; vida miserável, miséria, penúria,
adversidades decorrentes um sentido particular, que dificuldade.6
só pode ser compreendido dentro do conjunto de sua O sofrimento é um fenômeno biopsicossocial e
história.2 Há aqueles que frente a uma doença entre­ espiritual que está presente em contextos associados
gam-se a ela, dominados pela dor e pelo desespero, à doença.4 Daniel Callahan o definiu como a expe­
paralisados na sua capacidade de luta; há outros que riência de impotência diante do prospecto da dor
conseguem fazer dessa condição uma possibilidade não aliviada, situação de doença que leva a interpre­
de repensar a própria existência, de empreender mu­ tar a vida como vazia de sentido. Portanto, o sofri­
danças, enfim, de colocar a vida em questão. E ainda mento é mais amplo que a dor e, fundamentalmente,
Parte I - Conceitos Fundam entais

sinônimo de qualidade de vida diminuída. Ele se pessoas. Procurou-se investigar de que maneira os
manifesta em contexto de doenças sérias e pro­ gestos eram feitos, quais eram os mais eficazes e
longadas que causam rupturas sociais na vida do mais rápidos. N a gestão do trabalho pós-industrial,
paciente, juntamente com crises familiares, apreen­ a disciplina como técnica de exercício do poder
são diante de problemas financeiros, premonições passou a ter por função não mais controlar os ges­
de morte e preocupações que surgem em razão de tos e o corpo, mas o pensamento, a criação e as m a­
manifestações de novos sintomas e seus possíveis nifestações do sofrimento. Os mecanismos de ges­
significados. 7 tão disciplinar do corpo, que exigiam uma acirrada
Ao traçar considerações sobre a experiência do vigilância de olhares sobre os trabalhadores, nas
adoecimento e do sofrimento, amplia-se o olhar, que primeiras décadas do século X X , tornaram-se in­
ultrapassa os limites da objetificação do saber e da compatíveis com a moderna organização. N a con-
prática médica que, por vezes, ignoram o mundo da temporaneidade, já não faz sentido que o indivíduo
vida e a existência dos adoecidos, o seu cotidiano, as seja observado e cronometrado regularmente.10
formas de agir, reagir, lidar com o corpo, a saúde, a N o entanto, a necessidade de controlar pare­
doença e o cuidado. A experiência do adoecimento ce exigir medidas disciplinares cada vez mais refi­
e do sofrimento é singular, sem que esteja atrelada a nadas. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o
algo, mas sim ligada ao modo como os indivíduos se processo saúde-doença-cuidado, que, no interior
orientam em um mundo de relações com os demais, das fábricas pós-industriais, tornou-se uma dessas
com as atividades e os planos coletivos. medidas. Em consequência disso, observam-se su­
Pensar nessa singularidade é importante para tis tentativas de destituição do trabalhador da sua
que seja possível entender o homem como um ser condição de sujeito para transformá-lo em pacien­
único, que tem um jeito próprio de adoecer e mo­ te. Processo esse fundado numa relação muito sin­
tivos particulares para desenvolver sua doença. A gular, que envolve profissionais de saúde, gestores,
análise ontológica do ser revela uma postura que trabalhadores e alguns de seus familiares.10
busca compreender o paciente e entrar verdadeira­ N o século X IX , com o advento da medicina
mente em contato com ele para só então alcançar científica, novas formas de conhecimento e novas
a totalidade de sua enfermidade. Assim, somente práticas institucionais tornaram o paciente desvin­
entendendo a história do paciente e as angústias e culado do seu sofrimento. N essa época, para co­
sofrimentos que lhe são próprios se torna possível nhecer a “ verdade do fato patológico” , o médico
chegar à origem da doença, uma vez que a cura não precisou abstrair o sujeito, pois sua disposição,
está na medicalização e na erradicação do sintoma, temperamento, fala, idade e modo de vida pertur­
mas sim no entendimento e na exploração da quei­ bavam a identificação da doença. Com base em
xa (o sofrer). Apenas dessa forma se pode propor­ uma formação mecanicista, o papel dessa lógica
cionar qualidade de vida ao paciente.8 médica era neutralizar as perturbações e manter o
N o decorrer da história, as relações entre o sujeito distante para que a configuração ideal da
adoecimento e o sofrimento deram-se de diversas doença aparecesse aos olhos do médico, no abismo
formas e sob diferentes perspectivas. que se abria entre eles.10
N a época medieval, o sofrimento, a doença e a N essa nova racionalidade, o olhar clínico foi
morte eram tomados como naturais e faziam parte dirigido para o corpo, representado como lugar da
da vida humana. Foi lento o percurso que culminou doença. Houve um quase silenciamento do pacien­
numa inversão radical, a partir da qual a dor e o so­ te, que, em vão, tentava falar de seu sofrimento e
frimento passaram a ser objeto de piedade, levando daquilo que imaginava ser o seu mal.
o ser humano a afetar-se diante do sofrer próprio e Ao instaurar o fim de uma concepção religiosa
alheio. N essa época antiga, o sofrimento, a morte, a e individual da doença, acabou-se por tamponar as
dor, a fome e a miséria não mereciam a atenção e cui­ reações de sofrimento do sujeito diante das adversi-
dado do modo aristocrático de enxergar o mundo9. dades ou fragilidades da vida.10
A partir do século XVIII, o “ poder disciplinar” Os sintomas assumiram os significados de de­
foi aperfeiçoado como nova técnica de gestão das terminantes naturais das doenças, deixando de lado

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Capítulo 4 - 0 Sofrim ento com o C on sequên cia do A doecer

a articulação entre o sujeito e o sofrimento. Assim, mais o seu poder. N ão é mais possível compreender
os sintomas deixaram de ser representados como a reação do indivíduo, a doença, a morte e outros
tentativa de solução de um conflito, de uma recon­ infortúnios sem conhecer a cultura em que ele está
ciliação do ser que habita o mundo da vida e é por inserido, ou seja, sem conhecer a lente através da
ele habitado. Perdida a sua condição de “ um bem” qual ele vê e interpreta o mundo a sua volta.11
do sujeito, o sintoma passou a figurar apenas como Com o advento da modernidade, a medicina
sinal de uma patologia. O sujeito, banido da cos­ inaugurou um novo olhar sobre o sofrimento e a
mologia médica, deu lugar ao paciente, representa­ doença, que passaram a ser objetos de conhecimento
do como um conjunto de órgãos e tecidos10 e intervenção. Paulatinamente, o homem deixou a
Um dos destinos da manifestação do sofrimen­ aceitação do sofrimento como condição de salvação
to, a partir do século X IX , foi o hospital, que surgiu para uma concepção na qual a experiência adquire
como um espaço de consolidação da identidade do o status de algo patológico. De fato, a modernida­
doente, de assistência, segregação e exclusão. Como de promoveu uma mudança na concepção do sofrer
uma imensa vitrine, a hospitalização deu visibilidade como salvação, própria do discurso religioso, para
ao paciente, reafirmando-o como doente na família, uma concepção em que caberia ao homem, por meio
no trabalho e na comunidade. Uma vez internado, do conhecimento científico, livrar-se do sofrimento.12
não havia dúvidas quanto a sua condição de doente,
Nesse contexto, o sofrimento, antes compreen­
mesmo quando não se tinha ainda um diagnóstico.10
dido como uma contingência da vida humana, algo
A partir da instituição do hospital, a residência irremediável e, ao mesmo tempo, natural, tornou-se
deixaria de ser o lugar onde o sofrimento se mani­ um problema a ser tratado. A dor, o sofrimento e
festava em sua forma possível. Assim, a família per­ a morte passam a ser combatidos a partir de uma
deu a autoridade sobre a maneira de cuidar do seu clínica que desponta no horizonte paradigmático
ente, que seria doravante isolado e “ olhado cienti­ de uma medicina que surge localizando no corpo
ficamente” . N o hospital, a partir do olhar médico, e na profundidade orgânica o conhecimento sobre
pretendia-se reparar os excessos ou deficiências das
a doença.12
práticas familiares em relação ao processo saúde-
Em qualquer contexto, a experiência de uma
doença-cuidado. Introjetada a ordem médica, que
doença vem associada a um grau de sofrimento
desqualificava as práticas curativas familiares, cada
significativo, e grande parte dele muitas vezes não
vez mais a família se viu obrigada a solicitar aten­
é físico, mas espiritual. Os avanços científicos que
ção profissional por se perceber impotente diante
modificaram os cuidados de saúde aumentaram o
das manifestações do sofrimento, que foram, ime­
diatamente, representadas como sinais de doença.10 foco na cura e na tecnologia, em detrimento dos as­
pectos humanitários e de com paixão do cuidado.13
Ao destacar que o normal e o patológico não
são verdades absolutas, mas juízos de valor, que a Com base nessa reflexão, passa-se a analisar o
saúde é uma norma individual e a doença faz parte sofrimento segundo perspectivas diversas:
da normalidade biológica, e também que a infração a) no âmbito dos profissionais de saúde;
à norma precede a percepção da regularidade e as­ b) no âmbito religioso;
sim revela o que seria considerado normal, come­
c) no âmbito temporal;
çam a surgir questões de ordem ética e terapêutica
d) no âmbito do paciente.
para se pensar no modelo biomédico que surgirá so­
mente no século X X I, cujo objeto de conhecimento
é a patologia. Esta deve ser combatida por meio do Sofrimento no âmbito dos profissionais
máximo controle do corpo, restaurando a condição de saúde
de normal. M as o novo modelo biomédico é valo­ Nesses dois séculos de “ medicina científica” , a
rizado pela assimetria da relação médico-paciente, fala e a memória do paciente se tornaram objeto
uma vez que a princípio se trata do encontro de de interesse apenas como conjunto de dados infor­
uma pessoa que sofre e necessita de uma outra que mativos para a elaboração de diagnósticos, jamais
supostamente é capaz de livrá-la do sofrimento, como registros vivos de uma história complexa,
tendendo alguns médicos a conhecer e a exercitar única e irrepetível.10

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Parte I - Conceitos Fundam entais

Para o olhar clínico, a história não está no A atuação médica é movida por dois grandes
sujeito, mas em seus prontuários, bastando con­ princípios morais: a preservação da vida e o alívio
sultá-los. Da mesma forma, é suficiente lembrar a do sofrimento. Esses dois princípios se complemen­
sequência dos sintomas, o aparecimento de seus tam na maior parte das vezes, entretanto, em de­
caracteres atuais e as medicações e intervenções terminadas situações, podem se tornar antagônicos,
médicas já aplicadas. A palavra pela qual o sujeito devendo prevalecer um sobre o outro.
se faz presente no mundo, nessa perspectiva, não é Ao tomar como princípio básico o de optar
relevante; pelo contrário, pode atrapalhar.10 sempre pela preservação da vida, independente­
O olhar sem a escuta faz da relação médico- mente da situação, o profissional adota uma atitude
paciente uma investigação asséptica, isenta do ver­ que nega a existência da finitude humana. Como se
dadeiro diálogo. A medicina, para ser científica, sabe, existe um momento na evolução da doença
tentou anular o que há de sujeito no paciente e no em que a morte se torna um desfecho esperado e na­
profissional, buscando transformá-los, respectiva­ tural, não devendo, portanto, ser combatida. Dessa
mente, em objeto e instrumento.10 forma, no paciente salvável, a aplicação dos princí­
O relacionamento entre o médico, aqui enten­ pios da moral deve fundamentar-se na preservação
dido como símbolo de toda a equipe de saúde, e o da vida, enquanto na etapa de morte inevitável a
paciente deve ter um propósito, que é ajudar a pes­ atuação médica, do ponto de vista da moral, deve
soa, mas essa relação deve ser uma troca que envol­ objetivar prioritariamente o alívio do sofrimento.14
ve atenção, sentimentos, confiança, poder e sensa­ Do ponto de vista do médico e da equipe de
ção de objetivo. Certos atributos, como a empatia, saúde que acompanham o paciente, as doenças crô­
a compaixão e o cuidado, devem ser cultivados no nicas e terminais podem despertar sentimentos de
relacionamento entre o paciente e o médico, pois impotência, desesperança e desvalorização, espe­
aumentam as chances de que a relação contribua cialmente em períodos de exacerbação dos sinto­
para o sucesso do projeto terapêutico acordado en­ mas, gerando grande sofrimento para o paciente e
tre os envolvidos.14 para seu círculo social.3
Esse cuidado foi definido como sendo um pro­ Os sofredores de sintomas indefinidos - pacien­
cesso que inclui conceitos como presença, diálogo, tes que apresentam sintomas sem uma lesão orgâni­
sensibilidade, sentimento, ação e reciprocidade. O ca ou uma causalidade reconhecida - correspondem
cuidado implica total presença e envolvimento do a uma parcela importante da demanda ambulato-
profissional com a pessoa.14 rial que pode ser considerada uma “ anom alia” para
A dor e o sofrimento nas doenças limitadoras o modelo biomédico moderno, já que este negligen­
do tempo de vida poderiam ser intoleráveis. Cicely cia a dimensão subjetiva do adoecimento. O atendi­
Saunders, pioneira do movimento de hospices mo­ mento qualificado dessa demanda representa, ainda
dernos, lembra que: “ o sofrimento somente é intole­ hoje, um desafio para a atenção médica.16
rável quando ninguém cuida” . N as situações em que É frequente encontrar, na prática discursiva da
os pacientes estão fora dos recursos atuais de cura e medicina, referências à necessidade de uma abor­
a possibilidade de morte surge no horizonte, tanto dagem biopsicossocial; mesmo assim, ainda há to­
pacientes e seus familiares quanto profissionais de tal primazia do campo biológico sobre os demais.
saúde sentem-se amedrontados e desamparados. O Dessa forma, a medicina estaria direcionada para
medo da dependência, da perda do amor, da autono­ a descoberta de informações consideradas passíveis
mia, do respeito, da dignidade humana e a percepção de quantificação e não voltada para outros aspec­
de finitude da vida fazem com que muitos desejem tos, tais como sociais ou emocionais, que são de
se afastar desse sofrimento; e muitos se isolam - pa­ difícil mensuração.16
cientes, familiares e profissionais de saúde. A solidão As estratégias dos médicos para lidar com so­
do paciente, das famílias, e a sensação de fracasso fredores de sintomas indefinidos consistem em tra­
e impotência dos profissionais de saúde perante os balhar com a hipótese subjacente de que esses so­
problemas associados às doenças ameaçadoras da fredores, por não apresentarem uma lesão ou uma
vida podem fechar espaço à comunicação, ao cuida­ causalidade reconhecida, constituem uma anomalia
do e ao crescimento individual de cada um.15 - no sentido kuhniano - para o paradigm a médico.

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Capítulo 4 - 0 Sofrim ento com o C on sequên cia do A doecer

Assim, os médicos se deparam com enigmas e fra­ O sofrimento deixa de ser uma preocupação exclusi­
cassos em seu cotidiano, e um deles seria o conjun­ va do familiar cuidador; mas sim de todos os envol­
to de sofrimentos considerados indefinidos.16 vidos no processo, formando uma rede de cuidado.
N o momento da construção do diagnóstico A depender da especialidade médica, más notí­
médico surgem vários elementos - sentimentos, dú­ cias são transmitidas frequentemente tanto no início
vidas, tentativas e erros; porém, no resultado final, quanto no estágio terminal da doença, afetando a
isso desaparece, para que o diagnóstico adquira um vida dos médicos de diferentes formas. Diante do so­
estado de saber científico. Perdem-se, dessa forma, frimento e da dor do paciente, como também de seus
as contextualizações históricas e sociais que se apre­ familiares, os profissionais de saúde vivenciam diver­
sentavam no momento da sua construção e lhe é sas emoções e dificuldades no cotidiano assistencial.17
outorgado um critério de “ objetividade” . Apesar da
O modelo médico ainda é centrado em sinais e
tentativa dos médicos de tornar mais objetivo aqui­
sintomas, e há pouco aprofundamento do cuidado
lo que é indefinido e impreciso, para que a medicina
nos aspectos psíquicos e emocionais dos envolvi­
possa se adequar ao modelo preconizado pela ciên­
dos. Dessa forma, é necessário aperfeiçoar a huma­
cia, o médico, em sua prática clínica, não consegue
nização do processo de comunicação entre médico
cumprir esse ensejo, pois a subjetividade apresen­
e paciente, buscando maior sensibilidade diante do
ta-se em vários momentos: na sua experiência, nas
sofrimento e da realidade deste último. Ao profis­
interpretações dos exames, ao tomar decisões, ao
sional cabe possibilitar que a relação seja centrada
fazer julgamentos e na formulação diagnostica.16
no paciente e não apenas na doença, seguindo o
A experiência profissional é um fator decisivo modelo do médico “ cuidador” : aquele que conside­
no diagnóstico de casos de pacientes com sintomas ra o indivíduo por inteiro, oferecendo-lhe um aten­
indefinidos. Os médicos acreditam que existem re­
dimento holístico.17
cursos mais eficazes para diagnosticar e tratar quan­
do têm uma longa trajetória no âmbito da clínica.
Sofrimento no âmbito religioso
Por sua vez, os profissionais com pouco tempo de
formação atribuem à inexperiência seus temores Em uma de suas cartas apostólicas, o Papa
de fazer um diagnóstico equivocado, por exemplo, Jo ão Paulo II discorre sobre o sentido cristão do so­
afirmar que o paciente não tem nada, quando de frimento humano, que tem seu fundamento, dentre
fato padece de alguma lesão não detectada.16 outros, na Epístola aos Colossenses:

É de fato afirmar que tais dificuldades podem “ Tal é o sentido do sofrimento: verdadei­
estar atreladas à formação médica, visto que as ques­ ramente sobrenatural e, ao mesmo tempo,
tões ligadas à relação médico-paciente, sobretudo no humano; é sobrenatural porque se radica
que diz respeito aos aspectos subjetivos e à singula­ no mistério divino da redenção do mundo;
ridade do sofrimento humano, não são valorizadas e é também profundamente humano, porque
no ensino, tampouco na prática médica em geral.16 nele o homem se aceita a si mesmo, com a
A avaliação do sofrimento e a utilização de sua própria humanidade, com a própria dig­
intervenções representam estratégias úteis a serem nidade e a própria m issão” .18
utilizadas no ambiente hospitalar pela equipe de
saúde. Outros recursos importantes a serem utili­ Essa reflexão evidencia a profundidade da rela­
zados pelas equipes a fim de preservar a saúde do ção entre o Homem e o sofrimento que afeta toda
familiar que acompanha um paciente hospitaliza­ a sua existência. O sofrimento pode ser uma via
do: acolhimento por meio da escuta qualificada e pela qual o ser humano se insere na vida mística e
de um relacionamento empático, atenção às neces­ religiosa. Para lidar com essa condição, não basta
sidades e demandas de cada familiar, abertura para a coragem de enfrentá-lo: necessita-se, também, de
o diálogo e transmissão de informações úteis, além uma religião ou espiritualidade.18
da inclusão do familiar nos grupos terapêuticos.16 A religião é uma expressão da espiritualidade,
Esse cenário gera menos sofrimento aos fami­ que envolve culto e doutrina. Por sua vez, a espi­
liares: ao serem acalentados pela equipe, sentem-se ritualidade é um sentimento pessoal, que estimula
inseridos no contexto da doença do paciente (ente). um interesse pelos outros e por si mesmo.18

39
Parte I - Conceitos Fundam entais

“ Se Deus existe, por que sofrem os?” É ine­ Sofrimento e culpa regulam as relações entre
vitável fazer essa pergunta quando o sofrimento os médicos e os doentes sob seus cuidados. Isso
enfrenta a fé e a crença do paciente. Apesar de se explica pelos conteúdos religiosos presentes na
a indagação ser totalmente compreensiva, muitos cultura. Embora muitas vezes os médicos se digam
pacientes passam a ter pensamentos errados quan­ não religiosos, nos momentos de dificuldade muitos
to ao sofrer, atribuindo-o a Deus, ou julgando que “ conversam intimamente” com Deus ou com uma
com Ele não haverá dor. “ Como ele pode mandar força superior que decide por eles nessas situações.
doenças e junto com elas o sofrim ento?” E muitas A invocação do sagrado, do divino, é uma forma de
vezes o paciente ouve do profissional de saúde, ou se defender da morte como algo que afeta a todos
do seu familiar, ou de alguém do seu círculo social por um lado e, por outro, mesmo um homem não
declarações como “ Esta é a vontade de D eus” ou religioso, ao invocar as formas do sagrado, o faz
“ Você deve ter feito alguma coisa errada para me­ principalmente porque a religião é capaz de dar sig­
recer isso !” . nificado àquilo que não passa de um absurdo se con­
Opiniões como essas derivam da noção de que siderado de um ponto de vista puramente racional.21
o sofrimento parece, para alguns, um argumento Ora, sofrer também não tem a ver com falta de
contra o poder ou a bondade de Deus. A mensagem espiritualidade, assim como a espiritualidade não
cristã responde que Deus não é - nem pode ser - au­ garante sucesso na vida, mas ela pode ser capaz de
tor de mal algum, embora permita que as criaturas, promover transformações positivas quando ajuda
limitadas como são, cometam males físicos e mo­ o paciente e os profissionais de saúde a desenvolver
rais. Ele não quer “ policiar” o mundo artificialmen­ habilidades ou até mesmo a solucionar antigos pro­
te, mas se encarrega de tirar dos males produzidos blemas, melhorando sua qualidade de vida.21
pelas criaturas bens ainda maiores. Essa concepção
se mostra de forma evidente em vários casos, pois Sofrimento no âmbito temporal
se verifica que, para muitas pessoas, o sofrimento é O sofrimento mantém ligação peculiar com o
uma escola que converte e transfigura.18 tempo. Assim, a antecipação da experiência de dor
Em outras situações, os frutos positivos do so­ (diante do diagnóstico de doença neurodegenerati-
frimento não são tão perceptíveis, embora o indiví­ va, por exemplo, em uma pessoa que já cuidou de
duo tenha certeza de que a Providência Divina não um familiar morto por essa doença neurodegenera-
falha e de que um dia ele compreenderá plenamente tiva) pode causar sofrimento e raramente dor. Pode
o plano de Deus, do qual atualmente só percebe também antecipar estas experiências: “ Se a dor que
segmentos e facetas.19 tenho deriva de um câncer, vou morrer” .22
Ainda mais: a figura do Filho de Deus, que, fei­ O fato de podermos sofrer pelo que vamos, su­
to homem, assumiu a dor e a morte a fim de fazê-las postamente, viver no futuro pode ser interpretado
passagem para a ressurreição e a glória, é o teste­ de maneira inversa, ou seja, podemos diminuir o
munho mais eloquente de que o sofrimento não é sofrimento utilizando a sua estreita ligação com a
mera sentença da justiça ou castigo, mas está inti­ dimensão pessoal. Assim, por exemplo, um pacien­
mamente associado ao amor que Deus. te que tem uma doença terminal pode diminuir o
Da perspectiva espírita, o sofrimento é ineren­ seu padecimento atual estabelecendo pequenas me­
te ao estado de imperfeição, mas se atenua com o tas a curto prazo em que realiza ou vê acontecer
progresso e desaparece quando o Espírito vence a determinados fatos, como assegurar que os estudos
matéria. Trata-se de um meio poderoso de educa­ dos filhos menores sejam pagos com dinheiro entre­
ção para as almas, pois desenvolve a sensibilidade, gue para esse fim a alguém de confiança. É a noção
que já é, por si mesma, um acréscimo de vida. O so­ de tempo que relaciona as imagens e que lhes dá luz
frimento é um misterioso operário que trabalha nas e tom que as tornam significantes, porque a memó­
profundezas da alma pela elevação do ser. Em todo ria é indispensável para que o tempo não só possa
o universo, o sofrimento é, sobretudo, um recur­ ser medido como sentido.22
so educativo e purificador. O primeiro juiz enviado N a maioria das doenças, o sofrimento perdura
por Deus é o sofrimento, que procura despertar a menos que o tratamento que leva à cura; uma das
consciência para a realidade superior.20 razões mais importantes para o alívio do sofrimento

40
C apítulo 4 - 0 Sofrim ento com o C on sequên cia do A doecer

deriva da analgesia que uma primeira consulta ao sexual dos doentes crônicos, seja porque têm dores,
médico proporciona. Por contraposição, doenças dificuldades m otoras, insuficiências respiratórias,
crônicas acarretam sofrimento crescente conforme vasculares etc. N o caso das mulheres, o sofrimento
os doentes vão se sentindo um fardo cada vez mais acentua-se facilmente dada a complexidade de fato­
pesado na vida de seus familiares.22 res que afetam sua sexualidade.24
Conforme o tempo passa, tanto os pacientes
Sofrimento no âmbito do paciente quanto os familiares adquirem mais conhecimento
A família representa um sistema aberto no qual sobre as demandas do processo de adoecimento-
funções são cumpridas e se enfrentam determina­ tratamento-reabilitação, e com isso se percebe a
das tarefas desenvolvimentais, que exigem adapta­ integração com novas informações e a realidade.
ção e reestruturação. N essa perspectiva sistêmica, Esse cenário os faz resilientes para aceitar a doença,
a socialização, por exemplo, representa uma dessas encarar o sofrimento e, assim, melhorar sua própria
tarefas, ao considerar que no processo de desenvol­ condição de saúde.24
vimento humano todos os integrantes do ambien­ N a tese de Regina Célia de Castro, ao anali­
te familiar são influenciados pelas mudanças que sar o sofrimento na perspectiva de pacientes com
ocorrem em seu seio. A noção de sistema parte do úlceras venosas, verificou-se que foi representado
princípio de que os integrantes estão em constante por sensações físicas, psicológicas e sociais, organi­
interação, compartilhando crenças e desenvolven­ zadas, pela interpretação das narrativas, nas cate­
do formas de comportamento por meio de inter-re- gorias “ contexto de vida” , “ impacto da existência
lações. Assim, as ações e comportamentos de um da ferida no cotidiano” , “ conhecimento sobre a
de seus membros influenciam o funcionamento do ferida: causas, tratamentos, cuidados e curativo” e
sistema e a dinâmica familiar.23 “ expectativas em relação ao tratamento e cura da
A experiência da doença afeta significativa­ ferida” .25
mente não só a pessoa, mas também, e de maneira Segundo essa autora, quanto ao contexto de
bem particular, sua rede familiar. Emerge um pro­ vida,
cesso coletivo de sofrimento em que a família e o
“ o sofrimento define-se pelas dificuldades
doente sofrem ao lidar com o problema, compar­
diante da necessidade de ajuda de outras pes­
tilhando o medo, a incerteza e a preocupação. As
soas e por dificuldades financeiras ocasiona­
famílias são profundamente afetadas pela doença,
das pelo impacto no trabalho e gastos com o
alterando as ações cotidianas, os papéis dentro da
tratamento. Nesse caso, o isolamento social é
estrutura familiar, as relações com os outros e o sig­
um marco na vida dessas pessoas” .25
nificado da vida.23
A identidade do paciente está profundamente N o que se refere ao impacto da existência da
ligada à vida daqueles que ama reciprocamente. ferida no cotidiano
Sentir que algo lhes tolhe a vida, que os limita,
“ apresenta o sofrimento sob a forma de dor,
torna-se dramático quando essa situação se revela constrangimento, aceitação de uma situação
definitiva. Essas pessoas vivem usualmente o so­ que gera incerteza de cura definitiva e que
frimento mesclado à culpa e ao medo de serem exige resiliência, sem que se esteja devida­
abandonadas.22 mente instrumentalizado para tal” .25
A família também precisa ser apoiada, ouvida “ A análise dessas representações mostrou
e receber atenção da equipe multiprofissional. Seus que o sofrimento, muitas vezes, é reflexo de
hábitos mudam, e, como aqueles de seus entes que­ uma assistência deficitária em vários aspec­
ridos, os relacionamentos e os papéis são alterados e tos, concordando com o que outros autores
os sentimentos se mostram diversos, uma vez que os afirmam sobre a repercussão da assistência
membros desse grupo estão enfraquecidos e, assim, inadequada aos pacientes com úlceras veno­
se tornam também seres vulneráveis.24 sas que pode levar a uma lesão que permane­
Essa situação acarreta dificuldades relacionais ça anos sem cicatrizar, acarretando alto custo
acrescidas, que se refletem, por exemplo, na vida social e emocional” .25

41
Parte I - Conceitos Fundam entais

Percebe-se ainda que a avaliação dos pacientes dor que precisa ser “ calada” , o que carrega signi­
e o monitoramento da reabilitação são ferramentas ficados inerentes ao mundo atual do trabalho e re­
imprescindíveis para mensurar a dimensão e a na­ flete a necessidade de a pessoa estar sempre apta e
tureza desses problemas, não apenas os físicos, mas produtiva.26
também a depressão, a angústia, o sofrimento, os Uma questão que surge junto ao adoecer está
valores e as crenças, sentimentos que interagem di­ relacionada às representações sociais associadas aos
retamente com as condutas das pessoas acometidas trabalhadores adoecidos e os decorrentes estigmas.
por uma doença crônica.25 Se, por um lado, as defesas permitem a convivência
N ão é possível, nos dias de hoje, tratar a doen­ com o sofrimento, por outro devem levar à alienação
ça de forma fragmentada. H á uma linha tênue entre das verdadeiras causas. O problema de saúde é viven-
a saúde mental, a física e a social, todas profunda­ ciado de forma solitária, uma vez que não conta com
mente enraizadas em cada doença crônica. Assim, o coletivo para amparar-se, e o medo do desemprego
devem-se compreender as diversas dimensões gera um sofrimento que não é compartilhado pelos
da doença, que não atinge apenas o corpo físico, colegas de trabalho, e em alguns casos sequer com os
mas a vida como um todo, principalmente no que familiares. Uma vez adoecidos, inicia-se a luta pela
concerne ao estigma e ao preconceito que gera o comprovação da doença, que de certo modo consti­
sofrimento.25 tui um questionamento de sua honestidade e remete
Em artigo de Alencar e Nobre sobre o adoeci- também a um sofrimento ético. Além disso, a neces­
mento e o sofrimento de trabalhadores acometidos sidade de passar em consultas médicas e de realizar
por lesões de esforços repetitivos (LER), os traba­ exames clínicos específicos na busca do diagnóstico
lhadores (pacientes), quando afastados do ambien­ para o problema nem sempre é compreendida no
te laborai, tornando-se público o adoecimento, per­ ambiente de trabalho, o que, em geral, aumenta o
correm um caminho introspectivo de padecimento, medo, a insegurança e o sofrimento.26
havendo assim um distanciamento afetivo de cole­ O temor de voltar a sentir os sintomas de modo
gas, que desestrutura suas relações sociais. Em si­ mais intenso parece ser um potente dificultador
tuação de incapacidade para o trabalho, as pessoas para o retorno ao trabalho, especialmente se esse
sentem-se desvalorizadas, improdutivas, inseguras, retorno se der na mesma atividade e no mesmo am­
o que evidencia uma situação desconfortável, ge­ biente. Nesse contexto, se encontra um corpo que
rando-lhes mais sofrimento.26 dá visibilidade ao sofrimento já vivenciado e ain­
Os sujeitos acometidos por essa doença en­ da presente. O trabalhador precisa se sentir apto
frentam um cotidiano de vida marcado pela dor, e estar emocionalmente disposto para retornar às
sentimentos de inutilidáde e incapacidade provo­ suas funções, o que implica a necessidade de inter­
cados pela enfermidade e agravados, muitas vezes, venções por equipes multiprofissionais e em ações
pelo preconceito e pela discriminação. Apesar de interdisciplinares junto aos processos em fase de
a LER atingir indivíduos de várias profissões nos reabilitação profissional.26
mais diversos locais de trabalho, evidenciou-se nos Em outra situação, os pais de crianças e/ou ado­
depoimentos a tentativa dos próprios doentes de lescentes com doença terminal evitam falar aberta­
cumprir, a qualquer custo, as exigências dos car­ mente sobre o adoecimento e o avanço da doença,
gos que ocupam. Alguns trabalhadores aumentam pois, por ser uma vivência muito dolorosa para eles
espontaneamente a carga produtiva em busca de mesmos (envolvendo grande sofrimento e um senti­
reconhecimento. mento de impotência), tentam poupar o filho desse
N o entanto, a hiperatividade implica um ris­ processo, o que dificulta o enfrentamento da doença.
co para a saúde na medida em que os processos E de extrema importância a mudança nas práticas
intrassubjetivos, constituídos por mecanismos de médicas no sentido de promover uma comunicação
autoconservação, permanecem bloqueados. H á ne­ aberta com crianças, adolescentes e pais.27
cessidade de um equilíbrio entre as forças que ten­ O aumento da eficiência dos meios terapêuticos
tam desestabilizar o sujeito e o esforço deste para e a contínua busca por alternativas de cura e meca­
dar conta das demandas e se manter produtivo. O nismos de sustentação de vida têm colocado pacien­
sintoma precisa ser obscurecido no sentido de uma tes sem condições de sucesso em seus tratamentos.27

42
C apítulo 4 - 0 Sofrim en to com o C on sequência do A doecer

Torna-se evidente que cuidar do doente vai Entender o sofrimento é fundamental para os
muito além da noção de prestar cuidados à pessoa. profissionais de saúde, que muitas vezes atuam como
Sobre o tema, na teoria que desenvolveu, Swanson se as doenças fossem algo monolítico, carecendo de
considera cinco processos de cuidar que visam a ali­ contato com as diferenças culturais e individuais.
viar o sofrimento e dar suporte e proteção à pessoa: A problemática da doença e do sofrimento não
1. Conhecer: o profissional de saúde deve es­ é pura e simplesmente uma questão técnica: trata-
forçar-se para compreender o significado de se de uma questão central no tratamento dos que
determinado acontecimento na vida do ou­ padecem de doenças crônicas, progressivas ou in­
tro, evitando suposições. É necessário con­ curáveis, assim como no relacionamento com os
centrar-se naquele a quem presta cuidados, familiares que os acompanham.
o que promove a apreciação da experiência
É inegável a relação entre paciente e profissio­
de quem recebe os cuidados.
nal de saúde e irrefutável a responsabilidade que as­
2. Estar com: caracteriza-se por uma relação sume este último na assistência ao momento vivido
em que o profissional de saúde está emocio­ pelo paciente em seu itinerário de vida. Esse cenário
nalmente presente para o outro, comunica exclui qualquer caráter de passividade ou de im­
essa disponibilidade e partilha sentimentos. parcialidade em torno da experiência do sofrimen­
N o fundo, trata-se da capacidade de tornar- to humano para ambas as partes, além de acentuar
se emocionalmente aberto para a realida­ significativamente a importância da busca por um
de do outro. Às vezes ceder um minuto a sentido carregado de autotranscendência.
alguém significa dizer “ estou aqui para te
ouvir” .
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ng=pt&nrm=iso.
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dá-lo a ultrapassar os acontecimentos e a avaliar e medir a hospitabilidade. 2016. Disponível
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