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Tratado de

Espiritualidade e Saúde
TEORIA E PRÁTICA DO CUIDADO EM
ESPIRITUALIDADE NA ÁREA DA SAÚDE

Felipe Moraes Toledo Pereira


Camilla Casaletti Braghetta
Paulo Antonio da S. Andrade
Tiago Pugliese Branco

ÀAtheneu
Rio de Janeiro • São Paulo
EDITORA ATHENEU
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DIAGRAMAÇÃO: Know-How Desenvolvimento Editorial
ASSESS0R1A EM LINGUAGEM E REVISÃO SEMÂNTICA: Iraci Nogueira

REVISÃO DE TEXTOS: Lígia Alves

CIF-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

T698

Tratado de espiritualidade e saúde : teoria e prática do cuidado


em espiritualidade na área da saúde / editores Felipe Moraes
Toledo Pereira ... [ et al.] ; [colaboração Adiair Lopes da Silva ...
[et al.]] -1 . ed. - Rio de Janeiro : Atheneu, 2021.

552 p. : il. ; 28 cm.

Inclui bibliografia e índice


ISBN 978-65-5586-217-1

1. Saúde - Aspectos religiosos. 2. Espiritualidade. I. Pereira,


, Felipe Moraes Toledo. II. Silva, Adiair Lopes da.

21-71122 CDD: 204.4


CDU: 27-584:61

Leandra Felix da Cruz Cândido - Bibliotecária - CRB-7/6135


20/05/2021 21/05/2021

PEREIRA, F. M. T: BRAGHETTA, C. C.: ANDRADE, P. A. S.: BRANCO, T. P.


Tratado d e Espiritualidade e Saúde: Teoria e p rá tica d o cu idado em espiritu alidade na área d a saúde

,
£ Direitos reservados à EDITORA ATHENEU - Rio de Janeiro, São Paulo 2021.
PARTE I
Conceitos Fundamentais
Diferentes Visões sobre Saúde-Doença

Bruno Belo Lima


Eduardo de Figueiredo Vissotto

de suas chagas. Os tutores espirituais eram res­


“O que é imperfeito será perfeito
ponsáveis por entender o significado da moléstia e
O que é curvo será reto
O que é vazio será cheio orientar o moribundo sobre qual medida deveria
Quando há falta, haverá abundância ser adotada para agradar aos deuses, o que passava
Onde há plenitude haverá vacuidade muitas vezes pelo sacrifício de animais.
Quando algo se dissolve, algo nasce.” N as sociedades cristãs, tendo-se a virtude da
Tao Te Ching
com paixão e entendendo-se o sofrimento não sob
uma óptica de punição, mas de santificação, mo­
Introdução mento de autorreflexão e aproxim ação de Deus, os
O Homem, ao longo de sua história, tem procu­ doentes passaram a ser acolhidos pelas comunida­
rado entender o fenômeno saúde-doença, que pode des religiosas, fortalecendo a relação entre a medi­
ter diferentes explicações de acordo com o contexto cina e a religião.
sociocultural. A definição mais difundida de saú­ Essa ligação só foi reduzida no final do século
de, na atualidade, é a utilizada pela Organização X IX e início do século X X , nas sociedades ociden­
Mundial da Saúde (ÓMS) desde 1946: “ um estado tais, com a profissionalização da medicina e o cien-
de completo bem-estar físico, mental e social, e não tificismo dominante. Esse movimento de seculari-
apenas a ausência de doença” .1 zação ocorreu em paralelo com os demais setores
Em 1999, foi sugerido em assembleia da OMS públicos. Nesse período houve um distanciamento
o acréscimo da espiritualidade à definição de saú­ entre os aspectos biológicos, psicossociais e espi­
de, o que evidencia a importância crescente dessa rituais do indivíduo, o que só seria revisto na se­
temática como consequência do número cada vez gunda metade do século X X , com uma perspectiva
maior de estudos que comprovam a sua influência holística sobre o indivíduo.3
na esfera biopsicossocial, melhorando a qualidade
de vida.2 Medicina ocidental
N a Grécia antiga, as divindades Hygeia (deusa
Aspectos históricos da saúde) e Asclepius (deus da medicina) represen­
Registra-se, nas civilizações antigas, que o tavam formas diferentes de vivência do processo
adoecimento tinha um caráter místico, que podia saúde-doença e da intervenção sobre esse.
ser atribuído à intervenção divina na vida dos ho­ Os seguidores de Hygeia compreendiam que
mens, muitas vezes como castigo. Os doentes eram a saúde adviria da interação do homem com seu
excluídos da sociedade e vistos como merecedores meio, por conseguinte, de hábitos de vida saudáveis.
Parte I - C onceitos Fundam entais

Por sua vez, os seguidores de Asclépius entendiam Taoísmo e de onde advém a teoria do yin-yang e
que o papel do médico seria interferir com atos de das cinco fases.
cura sobre a doença já instalada. Esta última rela­ A teoria do yin-yang expressa uma compreen­
ção saúde-doença e médico-paciente se tornou mais são universal de duas essências complementares,
prevalente ao longo do tempo. opostas e inseparáveis “ do todo” . Um estado de
Acrescido a isso, com a influência do pensa­ equilíbrio dinâmico. O yin está associado a qua­
mento do filósofo Descartes, no século XVII, houve lidades como frio, repouso, reação, passividade,
uma separação entre mente e corpo humanos, pas­ escuridão, estrutura, ao interno, ao alentecimento
sando este último a ser entendido e estudado como das emoções, à redução. Por sua vez, o yang estaria
os demais fenômenos da natureza, enfatizando o associado ao calor, à estimulação, ao movimento, à
aspecto mecânico do ser humano. atividade, à luz, ao externo, à elevação da emoção
e ao aumento. Esses elementos só existem um em
A descoberta de que micro-organismos pode­
relação ao outro e nunca são absolutos.
riam ser os agentes causadores de doenças em indi­
víduos previamente saudáveis propagou o modelo O adoecimento, segundo a teoria do yin-yang,
unicausal de doença. aconteceria pelo excesso de um desses elementos,
que teria sua função alterada - o que seria passível
O modelo mecanicista se consolidou com o re­
de intervenção para restabelecer o equilíbrio dessas
latório Flexner, em 1910, que enfatiza o processo
forças.
saúde-doença unicausal e biologicista. As recomen­
Já a teoria das cinco fases enquadra os fenô­
dações desse relatório serviram de base para muitas
menos do universo em cinco categorias que repre­
escolas médicas.4
sentam tendências de movimento e transformação:
O que se pôde perceber na medicina ocidental madeira, fogo, terra, metal e água.
foi o isolamento do indivíduo do seu meio psicos­
A madeira é associada à primavera, cresci­
social e sua dissecção em partes cada vez menores
mento, despertar, manhã, infância, raiva e vento.
até o nível molecular, para a partir deste último dar
O fogo é associado ao verão, estado máximo de
cabo da compreensão do processo de adoecimento.
atividade, crescimento, exuberância, expansão. A
É inegável a contribuição desse modelo para o terra está associada ao equilíbrio, à transição das
desenvolvimento biomédico, todavia ele não é ca­ estações, ao início da tarde, nutrição, abundância,
paz de explicar o todo, dado o entendimento atual reflexão e umidade. O metal é associado ao outono,
do ser humano e o fato de seu processo de adoeci­ decaimento e escuridão. Por fim, a água é associada
mento se dar na esfera biopsicossocial que está em ao inverno, expressando redução do movimento,
constante interação. acúmulo, repouso e o desenvolvimento de um novo
e frio potencial.
Medicina tradicional chinesa As cinco fases se relacionam em uma sequência
N a medicina tradicional chinesa (M TC), que de geração e de dominância.
data de mais de 2.000 anos, o homem está em ín­ A sequência de geração ocorre pelo engendra-
tima relação com o meio que o circunda, sendo o mento de uma nova fase a partir da outra, de forma
adoecimento o desequilíbrio das condições natu­ sequencial. Assim, a madeira dá origem ao fogo, o
rais, que tem correlação com alterações ambientais. fogo dá origem à terra, a terra dá origem ao metal,
O corpo humano é visto como um microcosmos do o metal dá origem à água e a água dá origem à m a­
universo. Assim, as doenças seriam causadas pelo deira. Em uma relação de “ mãe-filho” .
vento, pelo frio, pela umidade, pelo calor, que te­ N a sequência de dominância, uma fase contro­
riam correspondência com funções sistêmicas do la a outra. Dessa forma, a madeira controla a terra,
corpo. Essa alteração funcional é a base para a apli­ a terra controla a água, a água controla o fogo, o
cação das terapêuticas específicas na M TC. fogo controla o metal, o metal controla a madeira.
Essas terapêuticas têm como base os filósofos O adoecimento, quando visto pelo prisma da
naturalistas da antiguidade chinesa, por exemplo, relação “ mãe-filho” , pode ocorrer quando a mãe
em textos de Tao Te Ching, que deram origem ao não tem reservas suficientes para nutrir o filho ou

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C apítulo 3 - D iferentes V isões sobre Saúde-D oença

quando o filho é alvo de uma demanda excessiva, o N a medicina antroposófica é muito utilizado
que também pode esgotar o suprimento da mãe.5,6 o conceito de salutogênese. Comumente as ciências
da saúde estudam e se concentram no adoecimento
Medicina antroposófica humano (patogênese). A salutogênese, ao contrá­
A antroposofia, do grego “ o conhecimento do rio, questiona como devemos fazer para nos man­
termos saudáveis e em equilíbrio mesmo diante dos
ser humano” , passou a ter um corpo epistemológi-
desajustes. Seria uma harmonia consciente diante
co e entendida como uma vertente da medicina, no
dos desafios da vida. Essa é a definição de senso
início da década de 1920, com Rudolf Steiner e Ita
de coerência, que é a forma pela qual o indivíduo
Wegman, fundadores da medicina antroposófica.
encontra a possibilidade de resolver de modo satis­
Compreende o ser humano e a natureza do fatório e saudável os seus desafios existenciais sem
ponto de vista espiritual, mas ao mesmo tempo sucumbir a eles. Estimula uma postura reflexiva que
científico, aplicando o empirismo e a filosofia em permita estabelecermos uma hierarquia de valores e
seus estudos. O ser humano teria a capacidade de necessidades, e assim treinarmos para cultivar uma
estudar tanto os acontecimentos sensíveis quanto espiritualidade sadia e inserida em nossos desafios
aqueles suprassensíveis. existenciais. M elhoramos nossa qualidade de vida
A antroposofia entende o homem a partir de ao inserirmos nela um tempo para meditação, silên­
uma cosmovisão em que ele seria formado por um cio, boas leituras e a companhia de pessoas dedica­
microcosmo com as mesmas forças presentes no das ao espiritual, ao bom, ao belo e ao verdadeiro.9
macrocosmo e estaria em constante interação com
esse último. O ser humano seria o resultado de qua­ Medicina integrativa
tro níveis de forças formativas: uma força form a­ A medicina integrativa, segundo o Consórcio
tiva física (corpo físico); uma força formativa que de Centros Acadêmicos de Saúde para Medicina
interage com a força física, gerando sua vitalidade, Integrativa, pode ser definida como “ a prática da
crescimento, manutenção e regeneração, que está medicina que reafirma a importância da relação en­
presente em todos os elementos vivos (corpo etéri- tre o paciente e o profissional de saúde, é focada
co ou vital); uma força de consciência que interage na pessoa como um todo, é pautada em evidências
com a força física e a vital, gerando uma dualida­ e faz uso de todas as abordagens terapêuticas ade­
de interno-externo e permitindo uma vida sensitiva quadas, profissionais de saúde e disciplinas para
(corpo astral, anim a, alma); e uma força (Geist, es­ obter a melhora da saúde e cura” .10
pírito) que interage com as outras três forças e que Dentro dessa concepção, o paciente deixa de
dá ao homem a capacidade de reflexão e expressão ocupar um lugar passivo e passa a ser agente de sua
como indivíduo; o eu.7 melhora e da promoção de sua saúde. Assim, são
Quando os quatro níveis de forças formati­ estimuladas práticas de mudança de hábitos de vida
vas interagem com a polaridade humana, entra em que influenciam a saúde do indivíduo, como ali­
ação o modelo de trimembração de sua constitui­ mentação, exercício físico e bem-estar emocional.
ção. Nele existiriam três forças maiores: duas pola­ N ão se contrapõe à medicina convencional.
rizadas uma com a outra (sistema neurossensorial e Pelo contrário, busca a boa relação entre a medi­
sistema motor-metabólico) e uma rítmica. cina convencional ocidental, as práticas comple­
O adoecimento aconteceria pela interação anor­ mentares e de corpo e mente, sempre calcadas em
mal dessas forças que constituem o ser. Ademais, evidências científicas.
partindo dos princípios de dignidade, autonomia, A medicina de corpo e mente parte da com­
autorresponsabilidade, o tratamento antroposófico preensão de que os estímulos estressores, por meio
coloca o indivíduo como ser ativo em seu processo da modulação psicológica, neural, endócrina e imu-
de cura e busca restabelecê-lo de forma holística. nológica, alteram por fim o processo saúde-doença
Para tanto, o tratamento antroposófico é multimo- e que esse eixo pode sofrer interferência de práticas
dal, incluindo medicamentos de fonte animal, mi­ que restabeleçam o equilíbrio.
neral e vegetal; arteterapia; eurritmia; massagem; Em sua gam a terapêutica encontram-se, além
psicoterapia; e outras abordagens.8 da medicina convencional ocidental, a acupuntura,

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Parte I - Conceitos Fundam entais

as terapias alimentares (dietas), as terapias m a­ de um estado de plena saúde. Por outro lado, qual­
nuais, as massagens e o mindfulness.n quer desarmonia desencadeia as doenças. As fun­
Um grande passo no desenvolvimento do con­ ções corporais e mentais são controladas pelos três
ceito de medicina integrativa foi a fundação da humores principais: vata (ar), responsável por to­
Society for Integrative Oncology (SIO), em 2003, dos os movimentos internos e externos no corpo;
unindo forças de pioneiros na área. pitta (fogo), que promove todos os processos de
N a oncologia, por meio de um diálogo aberto transformação, sejam digestivos, enzimáticos ou
e empático entre profissionais de saúde e pacientes, hormonais, e kapha ou sbleshman (água e terra).
especialistas em oncologia integrativa trabalham Cada elemento executa um papel no controle de
em conjunto com a equipe oncológica na busca funções orgânicas específicas. As doenças ocorrem
do estabelecimento de reais expectativas quanto em seis estágios evolutivos, que iniciam pelas mani­
ao tratamento, de desmistificar lendas de cura do festações dos humores nos seus locais preferenciais
câncer com produtos naturais e de guiar pacientes no sistema digestório, até sua localização com com­
no uso de tratamentos não farmacológicos para prometimento de órgãos vitais. São eles: acúmulo
melhor controle de sintomas causados tanto pela {sancaya), agravação (prakopa), hiperfluxo (prasa­
doença como por efeitos colaterais dos tratamentos ra), deslocamento (sthana samçraya), manifestação
oncológicos.12 (:vyakti) e diferenciação (bheda). O principal dife­
rencial do Ayurveda é que essas doenças poderiam
Trata-se de uma abordagem diferente da me­
ser tratadas muito antes, sem chegar a manifestar
dicina alternativa, que habitualmente se baseia em
seus sintomas com tanta gravidade, pois os sinto­
tratamentos sem respaldo científico e desestimula
mas prodrômicos, sobretudo quando as manifes­
tratamentos médicos convencionais que comprova-
tações ocorriam pelas alterações dos humores ain­
damente poderiam beneficiar os pacientes.13
da no aparelho digestório, já seriam os sinais de
alerta para o início de tratamentos e prevenção de
Medicina ayurvédica
agravações.
As práticas místicas sempre foram comuns na
Assim, o sistema dá grande importância à com­
índia, cultura famosa pelos laços com valores es­
preensão dos mecanismos de instalação das doen­
pirituais. A palavra Ayurveda significa literalmente
ças e concentra seus esforços na manutenção da
“ conhecimento ou ciência da longevidade” . Trata-
saúde e na prevenção de doenças.
se de um sistema médico desenvolvido ao lon­
go de aproximadamente 5 mil anos naquele país. Considera-se que existe uma energia pura sus-
Entende-se que o homem só pode ser totalmente tentadora da vida (O jas). N ão se sabe ao certo se é
compreendido na plenitude da vida se estiver em uma substância física ou sutil, mas a localizam na
harmonia com sua dimensão física (corpo físico), região do coração, de onde se dissemina para todas
mental (corpo sensorial e mental) e espiritual (cor­ as direções, mantendo a vitalidade de todas as fun­
po do intelecto e da consciência). ções, físicas e psíquicas. É mantida por alimenta­
Acredita-se que toda forma de existência, ção adequada em quantidade e qualidade, hábitos
animada ou inanimada, seja composta por uma saudáveis de vida, bem como atividade física leve,
Consciência Absoluta (ou corpo espiritual), pela atividades prazerosas da mente, ambientes naturais
Consciência Individual (fruto do desejo e que re­ e agradáveis, boas e adequadas horas de sono e sen­
presenta o papel de cada um na história da cria­ timentos como amor, felicidade e compaixão.
ção), pelo Intelecto (inteligência sem emoções, com Quanto ao diagnóstico, acredita-se que as for­
capacidade de discernimento entre o certo e o er­ mas corporais falam muito a respeito da constitui­
rado no cumprimento do papel individual de cada ção de um indivíduo. Assim, utiliza-se de rotina a
criatura), pelo Ego (memórias de experiências vivi­ observação atenta de comportamento, descrição
das em cada existência e instinto de sobrevivência) pormenorizada dos sintomas, observação dos ele­
e pela Mente Pensante (responsável pelas emoções, mentos de exoneração, exame da língua e exame
dúvidas, fantasias e desejos). criterioso de pulsação.
Quando a relação entre todos esses elementos é O ponto principal dos tratamentos em
harmônica e não há conflitos entre eles, desfrutamos Ayurveda é restabelecer as funções adequadas dos

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Capítulo 3 - D iferentes V isões sobre Saúde-D oença

doshas: vata, pitta e kapha. Para isso, a primeira patológica de valores invertidos, uma economia de
coisa que se busca é entender os mecanismos físicos destruição. Em defesa da construção de um ego,
e mentais que levaram os indivíduos a alterar essas escondemos, rejeitamos, manipulamos, culpamos,
funções e inicialmente corrigir a rotina diária (dina- abusam os, ignoramos e destruímos, em um ciclo de
charya) para impedir que novos produtos tóxicos verdadeira ausência.
(ama) sejam formados. A identificação de desequi­ Por outro lado, existe uma busca por trans­
líbrios emocionais é sempre valorizada, pois emo­ formação, mudança de paradigma e expansão de
ções reprimidas são formadoras de toxinas (ama). consciência. A mente deixa de ver com preconcei­
Quando apenas as rotinas de horários de alimenta­ to e passa a executar com curiosidade. O coração
ção, sono e atividade física não são suficientes para não mais sente raiva, e sim empatia e com paixão. A
o restabelecimento seguro da saúde, procedimentos vontade deixa de ser própria e carregada de medo e
de neutralização de toxinas já profundamente ins­ se torna coletiva e motivada pela coragem. E assim
taladas em órgãos vitais são necessários, utilizando cultivamos a escuta ativa e acolhedora, diálogos
preparações medicinais à base de ervas eméticas, de criativos, sentimentos intuitivos e verdadeiros a fim
ervas purgativas, enemas de ervas, medicações por de visualizar e transformar o futuro emergente em
via nasal e eventuais retiradas de sangue de áreas um ciclo de forte presença.15
de congestão sanguínea (rakta). O aconselhamento A transformação começa dentro de cada um,
dietético específico para cada dosha (vata, pitta e dissemina-se e contagia. Precisamos de uma busca
kapha), a partir de extensas listas de alimentos es­ profunda pelo autoconhecimento, identificação do
pecíficos encontradas nos vários textos modernos papel de cada um na sociedade e sintonia fina com
de Ayurveda, faz parte do plano terapêutico. Vários o mundo.
procedimentos cirúrgicos foram disponibilizados O sistema de saúde vive uma crise semelhante,
tanto na reparação de tecidos lesados por acidentes principalmente por estar sendo operado e protago­
ou batalhas como na excisão de tumores, no esva­ nizado por pessoas que muitas vezes não sabem se
ziamento de ascite e na drenagem de abscessos que relacionar.
já eram realizados pelos cirurgiões do Ayurveda. A relação médico-paciente sofre pelo distan­
O arsenal terapêutico baseia-se na farmacopeia ciamento humano. Pacientes, frágeis diante de uma
indiana, com mais de 10 mil plantas estudadas, al­ doença ameaçadora da vida, reagem com posturas
gumas inclusive utilizadas no Ocidente como fito- defensivas de desconfiança e medo. Os médicos,
terápicos modernos. É importante citar também o com limitação de tempo e envolvidos frequentemen­
estímulo dos vários pontos de energia e seus meri­ te em uma rotina de sofrimento e pressão, padecem
dianos, assemelhados à medicina chinesa, que ofe­ de exaustão física e emocional. Ambos, médicos e
recem um recurso a mais de tratamento, seja pelas pacientes, muitas vezes não estão preparados para
aplicações de agulhas (acupuntura), pelo uso de uma relação empática, não são treinados para se
óleos medicinais ou pela realização de massagens. abrir e escutar, entregar e acolher, confiar e cuidar,
respectivamente. A comunicação é voltada para a
Recentemente se encontram tratamentos em li­
coleta de dados, a busca de diagnóstico e o estabe­
vros de Ayurveda que incluem práticas de posturas
lecimento de plano terapêutico.
físicas e exercícios de respiração e meditação, bus­
cando a harmonização corpo-mente. E muito da visão saúde-doença passa pela per­
cepção das mudanças nessas relações humanas e pro­
O Ayurveda ensina a medicina ocidental a par­
fissionais. Cientes desse paradigma, e na busca por um
tir de seu princípio angular, que direciona suas prá­
movimento de transformação na direção contrária, já
ticas: o de preservar a saúde e prevenir as doenças.14
encontramos pacientes que não apenas busquem no
médico um mero técnico que resolva problemas, mas
Uma visão futura sobre o conceito principalmente que também execute os papéis de ins­
saúde-doença trutor, treinador e guia, auxiliando na busca por uma
Vivemos em um mundo de profundas rupturas: transformação maior naquele momento de fragilida­
ecológica, social e pessoal. As pessoas, de maneira de. E já existem médicos que se preocupam em apro­
geral, não se entendem com a natureza, com a so­ fundar os cuidados com o seu paciente e com a vida
ciedade e consigo mesmas. Criou-se uma sociedade deste, não apenas com foco na doença.

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Parte I - Conceitos Fundam entais

Porém, no meio desse processo de transforma­ Referências


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